ELVENDA

OU

CONQUISTA DE COIMBRA

POR

FERNANDO MAGNO

ROMANCE HISTORICO E MORAL

ELABORADO SOBRE FACTOS DO SECULO XI

POR

MANOEL DA CRUZ PEREIRA COUTINHO

COIMBRA

IMPRENSA DA UNIVERSIDADE

1858.

ADVERTENCIA.

Se este pequeno romance merecer alguns applausos do publico, sejam elles attribuidos ao seu verdadeiro auctor, ainda que incognito, e não a mi, que não obstante reconhecer a minha pobreza de conhecimentos, não pretendo illustrar-me com gloria alhêa. Nao sou plagiario;

Houve uma epocha, e não vai ella muito longe de nós, em que, por effeito de extraordinarias medidas politicas, d'essas que trazeim logo na frente o cunho da urgencia para salvação da patria, na qualifição das quaes não pretendo entrar, porque essa empreza é propria de intelligencias superiores, e iniciadas nos altos mysterios governativos; sim, houve essa epocha em que se fez uma irrupçao barbara nos archivos das ordens religiosas do sexo masculino. Então por incuria d'algumas auctoridades, muìtos, e mui interessantes documentos levaram caminhos diversos, dos que legitimamente lhes tinham sido marcados. Perdôe-se a leveza e improvidencia dos empregados publicos, e das auctoridades!!

n'essa epocha da catastrophe monacal, vi, por acaso, na mão de pessoa incompetente algumas folhas de pergaminho todas dilaceradas, escriptas em characteres de puro gothico. O possuidor d'este documento annuiado aos meus jogos, teve a bondade e franqueza de m'o ceder por alguns dias; encarecendo muito o favor, e mostrando ao mesmo tempo a sua anciedade por saber o que diziam aquellas letras, para elle inintelligiveis. Acreditava possuir um thesouro, a que elle não sabia dar valor. O documento achava-se tão mutilado, principalmente nas dobras e margens, e os characteres tão apagados que foram o martyrio da minha paciencia, durante o curto prazo, pelo qual elle me foi confiado. Os estragos, que tinha soffrido, nao permittiam que se podesse, em muitas partes, ligar sentido; as muitas roturas, e nomes totalmente apagados, a cada linha o interrompiam. Mas não obstante estas graves e irremediaveis perdas, conheci evidentemente que o documento continha uma historia de familia coeva á conquista de Coimbra por Fernando Magno (em 1064); da qual, a não serem os estragos do mesmo documento, se poderia derivar muita luz para esclarecer algumas partes obscuras da historia patria. Creio que os antigos chronistas nunca viram este manuspcripto.

É para lamentar, que o escriptor omittisse, ou se perdessem com as porções mutiladas, muitas circumstancias e acontecimentos parciaes, que deviam revestir a acção principal, Datas, nomes, naturalidades, e outras especialidades que importava saber, ou se perderam, ou não foram escriptas. São todavia bem salientes, talvez por muito repetidos, os nomes de Gundezindo, Elvenda, Arthur, Aragunta, e alguns outros. Não pude alcançar o nome com que o escriptor designou o governador mouro de Coimbra, nem o d'um filho seu, os quaes têm n'esta peça um papel importante; por esta causa, sendo-me precisado a indical-os, appellidei o pai ora como governador, ora como ideia o filho por Iben... por se me figurar que assim principiava o seu nome no documento; mas noutro ligado a este nao tendo podido decifral-o;- notei-o com ...

Fiz esforços para saber o archivo d'onde foi desencaminhado este documento venerando; mas seu possuidor não se dignou satisfazer o meu desejo. É certo que elle tinha entrado em classificação, porque na parte exterior li, em characteres modernos, que pareciam do meado do seculo XVIII -- Não importa. Este termo, e ás vezes outros equivalentes, como -- Inutil, não serve, etc, foram adoptados pelos paleographo-archivistas para marcar os documentos que por não dizerem respeito immediato aos interesses dos senhores dos archivos, formavam uma repartição separada.

A linguagem era, como sabem todas as pessoas costumadas a manusear documentos da edade media, uma rude analgama de latim, portuguez, hespanhol e nao sei de que mais, sem ortographia, nem ordem alguma de syntaxe. Mas não admira: que n'este originai se encontrem taes defeitos, porque elles sao communs nos manuscriptos d'esses tenebrosos e antiquissimos tempos.

A narração original será a expressão d'uma realidade, ou o producto da imaginação viva d'algum escriptor coevo do facto? Eis aqui uma pergunta de resposta difficil. Sem me atrever a decidir a questão, não deixarei de lembrar algumas razões que fazem pender a balança para a primeira parte da interrogação.

É certo, e a leitor verá, que esta peça não offecece acontecimento algum, nem inverosimil; nem opposto á historia patria. E se e documento passasse pela fieira das provas diplomaticas, ninguem duvidaria de lhe imprimir o cunho de verdadeiro.

Se por um lado as regras da sciencia diplomatica abonam o originai de verdadeiro; tambem por outro a crítica philosophica ajuda a crer que os factos n'elle relatados não são indignos de fé. Nao é crivel que no seculo XI, em que a céga ignorancia trazia embrutecidos e sopeados todos os entendimentos, apparecesse um genio inventor que produzisse uma obra verdadeiramente ideal, e admittindo que então houvera entre nós um homem de talento transcendente, não é de presumir que fosse tao audaz que saltasse as balizas das crenças vulgares, e do gosto dominante no seu tempo. Rarissimos foram entre nós os escriptores da edade media; e os pobres monumentos que esses nos legaram da sua instrucção e habilidade não passam d'alguns factos notaveis da historia, dispostos por ordem chronologica; lendas do Sanetos; e poucas e mal coordenadas narrações historicas. Portanto, eu nao duvidaria collocar o original, em questão, entre os escriptos d'esta ultima classe; porque militam a seu favor tantos criterios de verdade, como a favor do mesmo documento considerado pela parte material.

Os factos eram descriptos no original com a singileza, e simplicidade, que characterisam os escriptos do tempo a que elle se refere. Era pois uma narração nua de todas as bellezas com que a poesia sabe ornar as pecas historicas de natureza romantica.

Sobre esta pobreza de nascimento accresciam ainda os estragos do documento; de maneira que a peça original era bem similhante a um esqueleto destroncado e todo em desordem; a relação e harmonia, de cujas partes não podia ser encontrada, sem que as peças que lhe faltavam, fossem antes de tudo suppridas por outras; e collocadas por ordem a restituir o todo, quando não, ao estado da sua primitiva perfeição; ao menos que se approximasse ao natural.

Eis o que fiz: guardando sempre a devida fidelidade aos acontecimentos claros do original, suppri as lacunas com outros de fóra, em que me pareceu encontrar naturalidade, e que, não se oppondo á historia patria, contribuiam para tornar a peça mais ampla e amena. Nas faltas porém, que não poderiam ser preenchidas, sem perigo de erro, que porventura em algum tempo viesse a influir na historia nacional: essas marquei-as com...

Por esta maneira organisei um corpo novo, e, segundo as forças do meu pobre cabedal, revesti-o e aderecei-o a modo que podesse appresentar-se em público; e, se a figura assim preparada não merecer acceitação, peço que se use de indulgencia para comigo.

Coimbra, 12 de Março de 1858.

Manoel da Cruz Pereira Coutinho.

CAPITULO I

O rei de Leão põe assédio a Coimbra. Dados muitos assaltos sem effeito, os Christãos e mouros concordam n'uma suspensão de hostilidades. n'este intervallo uma parte do exercito christão vae descançar das fadigas da guerra para as povoações da margem septentrional do Mondego, logo abaixo de Goimbra. Arthur emprehende estudar as avenidas da cidade pela parte esquerda do rio; n'esta diligeneia descobre de acaso uma dama musulmana, e projecta roubal-a em desforra de Elvenda sua irmã; que os mouros lhe tinham raptado violentamente. Gundezindo oppõe-se ao projecto, classificando-o como louco e temerario; mas por fim, cedendo a razões especialissimas de familia, expostas por Arthur, dá as instrucções para a execução da empreza, e favorece-a. Bom successo d'ella, devido à intrepidez e astucia de Gundezindo. Em vez da esperada musulmana apparece a irma d'Arthur.

I

Fernando Magno de Leão, poucos annos depois de ter conquistado aos mouros algumas cidades, e castellos importantes da provincia da Beira, desceu por conselho do conde D. Sesnando, com um poderoso exercito sobre Coimbra, n'esses tempos uma das mais fortes pragas d'armas, que os Sarracenos occupavam em Portugal.

Posto cêrco á cidade, em combates e assaltos sempre renovados, e sempre repellidos com valor, correram inutilmente rios de sangue christão e sarraceno.

Cançados de tanto porfiar, sem resultado, assim os christãos sitiantes, como os mouros sitiados, concordaram em dar por alguns dias descanço ás armas. Durante estas breves treguas, uma divisão do exercito de Fernando foi acantonar-se pelas povoações da margem direita do Mondego, abaixo de Coimbra.

Parece que esta divisão, como o leitor verá pelo decurso da peça, era, se não toda, ao menos uma grande parte d'ella, composta de voluntarios que, de povoações diversas, principalmente da Beira, affluiram a engrossar as fileiras do exercito restaurador.

Um ligeiro colloquio de intima amizade, sustentado entre dois cavalheiros d'esta milicia, vai começar a descobrir muitos acontecimentos até hoje ignorados.

II

Era n'um dia calmoso, do principio de Julho, proximo ao anoitecer, quando dois amigos se introduziam por uma silenciosa alameda perto das virentes e poeticas margens do pacifico Mondego; ambos mancebos de bella presença, de figura elegante e robusta; ambos sem dúvida cavalheiros, porém o mais novo, Arthur, mostrava (corno depois se conhecerá) pertencer a uma classe mais elevada na sociedade, do que seu companheiro Gundezindo. Este ainda que mancebo parecia ensinado por todos os trabalhos da adversidade; não arriscava um juizo senão depois de madura reflexão; a experiencia do mundo, e o estudo do coração humano eram a fonte d'onde elle tirava todas as maximas, para se dirigir a si, e aos outros nas occasiões difficeis.

Arthur ao contrario era um joven, aliás valente, audaz e destemido, mas sem moderação em seus desejos; qualquer opposição o enchia de furor; não affeito a soffrer trabalhos nem contradições, não podia amoldar-se aos sabios conselhos do seu amigo, nera ao imperio das circumstancias; porém não lhe faltava docilidade; mas era mister um tino delicado para saber reduzir por meio d'este precioso dote natural. Alguem diria que Gundezindo fôra escolhido para Mentor do inexperiente mancebo: o respeito d'este para com a auctoridade d'aquelle assim o indicavam. Arthur, além de parecer disposto a todos os desvarios, que ordinariamente se encontram no verdor e effervescencia dos annos, mostrava-se de mais a mais atormentado com pungentes cuidados; seus olhos cheios de fogo sanguineo, muitas vezes volvidos ao acaso, alguns movimentos, convulsivos do seu corpo, um discurso frequentemente interrompido por ligeiras abstracções, acompanhadas de suspiros exalados com afflicção, denunciavam que sua alma se achava agitada por alguma paixão violenta.

Ao ver entrar os dois mancebos para este sitio de frescura, e tão retirado ao tumulto da povoação, pareceria que elles só tinham em vista a extensão do passeio, e o gozo de respirar a aura refrigerante d'esses logares, para se desalterarem dos ardores, com que o calmoso dia os tinha fatigado. Mas não: motivo mais forte os obrigava a procurar o retiro; porém, não era para concertar algum d'esses planos tremendos, que lançam a abominação sobre seus auctores, e cuja recordação faz tremer de horror.

A conversação, que os dois amigos travaram entre si, vai descobrir ao leitor a causa da violenta agitação d'Arthur, e do passeio para logar tão remoto.

Se local escolhido pelos dois mancebos era precioso pela aragem animadôra, que ahi se respirava; o espectaculo dos céos era um incentivo de profundas meditações. O sol que principiava a banhar-se nas aguas do oceano, deixava o horisonte em fogo; e ao mesmo tempo a lua, com o fulgor da luz alhêa, ia apparecendo magestosa da banda do oriente. Um silencio profundo reinava n'este sitio d'amenidade e consolação. Gundezindo pretendeu convidar o seu amigo para alguns momentos de adoração, conduzindo-lhe espirito desde as creaturas até ao Creador. Contempla, diz elle, esta mysteriosa perspectiva da natureza. Tudo nos revella a existencia de Deus; os céos e a terra, a noite e o dia despertam em nós o dever que temos de elevarmos o nosso espirito ao Creador, por meio de fervorosa oração. Attende... Sim, sim, acudiu Arlhur, deixa-me, deixa-me; -- bem sabes que professo, e creio firmemente tudo quanto a Sancta Madre Egreja crê, e ensina; e tambem deves saber que urna alma angustiada, como a minha, e agora ainda mais, do que pensas, não póde entregar-se exclusivamente a sentimentos religiosos: o desassocego de espirito é inimigo da oração. Ó meu Deus, perdoae-me, se me tenho deixado arrastar por cuidados, ou paixões, que não tenham uma causa fundada nos principios da vossa divina justiça. Se vingar uma afronta abominavel, feita pelos inimigos da vessa religião a uma familia nobre e virtuosa; se procurar desdggravo particular, e ao mesmo tempo destruir esses insolentes oppressores dos Christãos; sim meu Deus, se isto é peccado, entao de duas uma, ou me deveis tirar a vida, ou dar-me forgas para reprimir a vioiencia de meus justos resentimentos!

-- Basta, basta; não profiras mais desconcertos. Uma educação religiosa e moral, bem dirigida, é quem fórma o coração do homem. Perdôa, meu amigo, mas d'isto tens uma grande falta; sempre notei em teus paes, superabundancia de doutrina na educação dos filhos; mas uma sensivel pobreza d'obras correspondentes. A theoria sem práctica é corno o soldado sem armas. Prégavam-te a humildade, e consentiam que fosses soberbo; aconselhavam a paciencia, e applaudiam as explosões da tua ira, como prova d'um genio forte, d'onde havia muito que esperar. Mas a experiencia te ensinará, e eu te notarei muitos d'esses erros, se quizeres corrigil-os.

-- Quero sim, e conto com a tua protecção; mas tempo foge, a lua já vai alta; consente que se de fim aos teus discursos, que, não obstante serem justos, não lisongeam, nem eu os admittiria se fossem dictos por outra pessoa. Convidei-te a este longo passeio, e ainda não tive occasião de expôr a causa principal do meu convite. Quero dar um litre desafogo ás vivas angustias que continuamente me atormentam; peço os teus sábios conselhos e auxilios; e ainda mais peço, que me releves uma falta de attenção commettida para comtigo; não por inadvertencia, mas de caso pensado, porque temi que as tuas acertadas reflexões me desviassem d'uma empreza indiscreta; envolvi-me n'ella porque tinha um fim louvavel, o heroismo. Esta abriu porta a outra, de que não desisto senão com a morte. A primeira era um serviço patriotico : todo o cidadão é obrigado a entregar-se a elle; a segunda nada influe para a extincção dos inimigos; mas é apropriada ao meu character, e á minha edade; dirão, concedo, que é uma rapaziada; mas uma rapaziada, que revela audacia e genio emprehendedor, todos os nossos compatriotas me applaudirão, meus parentes hão de vangloriar-se ao ver que, sendo tão novo, practico acções illustres; em fim, se minha irmã, em algum dia, chegar a saber os meus esforços para a vingar, exultando com alegria, bemdirá seu irmão.

-Já adivinhei os teus projectos; na tua narrativa cheia do fogo, e inspirada pela viveza da imaginação juvenil, soltaste algumas palavras, que bem claramente m'os indicaram, -- descobriste occasião de roubar alguma illustre moura: -- desde já capitúlo o projecto de imprudente, não approvo loucuras.

-- Dize o que quizeres, attende-me, e depois farás as tuas reflexões.

III

Não desconheces, meu amigo, a inquietação em que tenho andado, nas pequenas treguas, que nos deram. Admitto que sitiados e sitiantes careciam d'ellas; mas o meu genio ardente não soffre demoras. As feridas que me fizeram em Coimbra, no assalto à porta de Belcouce, longe de me intimidarem, reforçaram o meu valor e coragem; ellas custaram algumas vidas aos inimigos, como tu sabes e os mais companheiros, que pelejaram ao meu lado. Não descanço emquanto me não vir outra vez a braços com elles.

Entendi que, durante este armisticio, devia estudar algum meio de hostilisar os mouros, logo que outra vez se renovassem os ataques. Desculpa a leveza dos meus projectos, lembrando-te que são vinte annos a fallar, e que tenho disposição para temeridades; posso ser victima do meu atrevimento, mas poderei tambem dar um passo no caminho do heroismo.

Figurou-se-me que, se conseguisse insinuar-me, pela margem esquerda do Mondego, até defronte de Coimbra, sem excitar desconfiança aos mouros, poderia descobrir alguma vereda, ou meio de introduzir gente nossa occultamente na praça, na occasião d'um assalto, para isso combinado; porque a vista repentina de soldados christãos, dentro dos muros, no fervor do ataque, não deixaria de prestar opportunidade para a cidade ser entrada.

Esperava, que a minha digressão de um ou dois dias, offereceria esta, ou alguma outra descoberta, d'onde o exercito christão podesse tirar vantagem immediata para de tudo avisar D. Sesnando, e este com rei tomarem a deliberação, que lhes parecesse mais acertada.

Entro o plano e a execução não mediou tempo. Receando que as tuas boas razões me dissuadissem, parti sem te consultar; falta esta, de que pego me releves.

Como tinha de me encontrar com mouros, e talvez de passar por alguma povoação d'elles, procurei evitar toda a desconfiança e causas de interrogações. Fingi-me caçador; mandei preparar alguns instrumentos usados n'este exercicio; e com um dos meus escudeiros, a quem disse que iamos caçar pelas matas ao sul do Mondego, partimos sem armas defensivas, para mostrar, que não entravamos hostilmente nas terras inimigas.

Caminhámos muito tempo pela margem do rio, até achar porto, onde podessemos passar; encontrámos em fim um, onde atravessámos a corrente; e nos intromettemos pelos salgueiraes e matas á esquerda do Mondego, sempre com direcção a Coimbra; só me servia dos caminhos públicos, quando os arvoredos, silvados, ou matos espessos me impediam o transito. O meu escudeiro, que gosta mais de atravessar, com meia duzia de setas, algum porco montez, do que medir a lança com os mouros, mostrou-se muito contente, quando lhe disse, que íamos à caça; porém logo que observou, que eu despresava os animaes silvestres, que nos appareciam com abundancia, e que só desejava adiantar jornada, teve ousadia para me dizer -- já conheco, senhor Arthur, que a promettida caçada é um pretexto, e não um fim. - Achei-lhe graça, mas não dei resposta.

Assim por caminhos sempre tortuosos, consegui, pelo meio da tarde, ganhar a altura do monte fronteiro á cidade. Ahi á sombra d'algumas arvores, em sitio occulto, apeámo-nos, e determinei ao escudeiro, que me seguisse de longe, guardando sempre meia distancia entro mim, e as cavalgaduras, para as não perdermos de vista.

Desci ató ao meio do monte, por entre silvados e oliveiras, procurando posição commoda, para á minha vontade poder observar miudamente as entradas da cidade, pelo lado, em que ella é banhada pelo rio. Admirei uma encantadora perspectiva. Não ha ponto algum, d'onde Coimbra possa ser militarmente tão bem estudada, como do recosto do monte, em que me colloquei. Convenci-me desde logo, de que, com trajo de caçador, não podia, sem risco, approximar-me á beira do rio, por andar ahi muito povo mourisco, empregado em diversos trabalhos; uns pelas herdades apressando as colheitas; outros occupados em conducções para dentro da cidade; parece que todos á porfia querem aproveitar-se d'este descanço concedido ás armas.

D'aqui volvi á direita, e caminhei por alguns minutos em direcção ao sul, olhando sempre sobre a cidade.

Ah! não,... não posso, meu amigo, expressar o sobresalto que tive n'este logar. Eu vi...! mas que vi...?! Deixei apoderar-se de mim um repentino temor; vergonha é dizel-o, mas sou franco. Um suor frio se derramou por meu corpo; um misto de susto e alegria transtornou, por momentos, o uso da minha razão. Não era sonho, não; era realidade. Dobrei os joelhos, e agradeci a Deus, por favorecer os meus projectos. D'este inexperado encontro devo entender, que o Altissimo approva as minhas intenções.

É uma preciosa occasião, não devo perdel-a ; foiDeus quera m'a deparou; vamos a ella, meu caro amigo; mãos á obra, mãos á obra.

-- Como assim? respondeu Gundezindo. Não ha estouvado maior! dizes que viste, que viste: mãos á obra, mãos á obra; sem declarar nem o que viste, nem qual seja a obra!!

-- É verdade, perdôa: estou allucinado; parecia-me vêl-a ainda. Vou tentar se ligo o meu discurso; ah! sim, já me lembra; toma sentido: enfiei a vista por entre os troncos das arvores, que cobrem o declive do monte, até ao fundo, para onde um estrepitoso susurro d'agua, que parecia despenhar-se, de grande altura, chamava a minha attenção. Então vi, que uma dama de figura gentil, musulmana sem dúvida, ricamente vestida, acompanhada por duas aias, passeava por entre os vigosos e copados arvoredos, que bordam um ribeiro, que d'ahi, atravéz de um prado coberto de verdura, vai correndo em direcção ao Mondego.

O logar é favoravel á empreza; os mouros não temem cousa alguma por este lado. Ha logo juncto do ribeiro uma casa acastellada, d'onde se levanta aos ares uma torre , em cujas ameias passeava um vigia armado; pela campina vi alguma gente dispersa occupada na agricultura. Tudo isto póde ser illudido, e a moura apanhada; resta urdir um bom plano, e saber desempenhal-o. Este encontro impressionou-me vivamente; quero depôr, durante trez ou quatro dias, os cuidados da guerra, para occupar-me semente da moura. Gundezindo, não me desampares!

-- Já disse que não approvo loucuras. O arrebatamento da moura póde trazer resultados funestos; e quando os não traga, de que te serve ella? É nova ou velha, bonita ou feia?

-- Não sei, porque além da distancia, em que me achava, ella trazia o rosto coberto; é verdade que algumas vezes, por negligencia, o véu a descobria, e d'acaso olhava para onde eu estava, mas asseguro-te que me não via; e se estivesse mais perto, não deixaria de lhe distinguir as feições. Em fim, pouco importa que essa moura seja bonita, feia, nova ou velha; o que pretendo é que ella seja illustre; e que a sua falta seja sentida, para d'algum modo o roubo poder equiparar-se ao de minha irmã.

-- Não merece a pena, porque a mulher quanto mais illustre fôr, tanto maior pêso causa ao homem bem educado, a cujo cargo ella estiver. Não vejo, em teu projecto, senão uma imprudencia atrevida; se ella tivesse por fundamento algum affecto do coração, ainda terias applausos dos que padecem estas molestias, teu nome mereceria um logar distincto nos annaes das campanhas amorosas; mas aqui nada ha, que possa justificar-te. Os mouros fazem d'estas emprezas, porque as mulheres não são entre elles, objectos de importação, para a Hespanha; trazém soldados, armas, e bons cavallos; mas as mulheres, essas ficam em Africa, contam com as nossas; se de lá vem alguma, é porque o seu merecimento, ou jerarchia assim o reclama.

As mulheres; por natureza, gostam dos acontecimentos romanticos, e dos homens estrangeiros; porém os mouros, em tudo oppostos aos nossos gostos e costumes, ainda não conseguiram excitar a affeição das nossas damas; se elles, com verdade, se jactam de ter alcançado favores, nós bem sabemos, que ha mulheres vis; e que tambem por desgraça, entre familias honestas, lá de quando em quando, apparece uma louca. Ha uma especie de compromisso tacilo, entre as senhoras de educação e virtude, para repellir qualquer declaração amorosa dos mouros, por mais distincta que seja a sua classe. Elles, offendidos por uma resistencia compacta, têm recorrido aos raptos ; é gosto mourisco, muito da moda, e altamente reprovado pelos nossos costumes, mas que por infelicidade tem graçado, como mal contagioso.

O insulto, feito á tua familia, nao se estranhou, nao foi caso novo; nem houve ahi imputação; foi uma violencia atroz. Agora já esse facto esqueceu, antes e depois d'elle, outras muitas senhoras nobres foram roubadas, e não consta que seus parentes tirassem desforra. Tua irmã, posto que não fosse d'uma belleza arrebatadora, tinha os irresistiveis attractivos da sympathia; talvez seja a melhor dama d'algum serralho d'aqui centenares de leguas; e quem sabe se ella será hoje a sultana favorita?

-- Já vejo, que estás enfeitando um longo discurso calculado para inutilisar o meu projecto. Muito de proposito o interrompo, porque adivinhei o teu desejo; bem sei já d'ha muito, que a tua vontade sempre contrasta a minha. O meu genio fogoso enregela-se, todas as vezes que dou ouvidos ás tuas reflexões; mas agora asseguro-te que não cantarás a victoria; tenho no exercito christão muitos amigos e parentes, tão decididos para qualquer acommettimento audaz, como eu; bem sabes que dois d'elles vieram acantonados para este logar; vou convidal-os para me coadjuvarem; e tenho certeza de que não hão de faltar. Já é alta noite; o ar tem arrefecido vamo-nos embora.

- Dizes bem, esta deliberação approvo eu, sem discussão.

-- Vamos indo com passo lento, disse Arthur, porque antes de entrar na povoação, tenho um segredo importante da minha familia para revellar-te; e depois que o souberes, talvez consintas na execução do meu plano.

-- Dize-o, e então verei.

IV

Quando minha irmã foi roubada, toda a familia então presente e ausente, manifestou ao público um sentimento mais vivo, do que se ella tivesse sido victima da morte; e em prova, ainda hoje, passados já dez annos, trazemos luto rigoroso, e o supportaremos até ao fim da vida: é um dever sagrado, em que se acha compromettida a nossa consciencia. Eu te descubro a razão, e ao mesmo tempo um segredo d'alta transcendencia.

Logo em seguida ao infame e desastroso acontecimento, meu pae mandou avisos secretos a todos os membros da sua numerosa familia, que se achavam estabelecidos em differentes partes, para n'um dia aprazado se junctarem em nossa casa, para negocio urgente, que importava a todos. A maior parte compareceu, outros não, por motivos attendiveis, ou ao menos assim figurados. A todos esses, reunidos na sala principal da casa, de noite ás portas fechadas, dirigiu meu pae um conciso, mas energico discurso, em que lhes excitou a indignação contra o inimigo commum, recordando com vehemencia as violencias continuadamente recebidas, as extorsões, os tributos extraordinarios, e sobre tudo ainda o atroz sacrificio da virgindade; persuadiu a todos por meio de juramento a promessa de lucto perpetuo, pela roubada; e vingança dos mouros a ferro, fogo, veneno, traição, ou por outro qualquer modo, que o entendimento e arte suggerisse a cada um.

Todos applaudiram, e, pela novidade, admiraram esta medida, que reveleva alguma cousa de extraordinario. Da sala foram á capella da casa, onde o nosso capellão deferiu a cada um, por sua vez, sobre o missal, juramento d'uma guerra de exterminio occulta aos insolentes despotas, que nos opprimem até á abjecção. Eu dei este juramento, e acho-me ligado por elle a não desistir do meu projecto, em quanto não apparecerem difficuldades invenciveis.

A revelação d'este juramento importaria o exterminio d'uma numerosa familia, caso os mouros tivessem noticia da conjuração. Só ha uma hypothese em que rapto da moura poderia trazer resultados funestos, se o exercito christão se ausentar, sem Coimbra cair em nosso poder, porque os inimigos voltariam mais atrevidos a recuperar as terras, que já perderam, e a nossa patria e casa não deixaria de ser victima do seu furor. Mas á vista dos mantimentos que diariamente affluem para o campo (graças ás acertadas providencias do nosso D. Sesnando), e da gente que de todas as partes corre a engrossar as fileiras do exercito christão, ha fundamento a esperar que essa terrivel e importante fortaleza mourisca será expugnada em pouco tempo; então a nossa terra ficará livre do governo mahometano, e fóra do alcance das correrias, e assaltos dos inimigos; e na minha casa haverá uma escrava illustre, essa musulmana soberba, que folga no meio da opulencia juncto á cristalina fonte de que já fallei; é uma acquisição devida á minha ousadia; é um facto brilhante para a historia domestica d'uma familia nobre.

Tenho coragem bastante para arriscar a vida, n'esta e n'outras emprezas, a que a honra e o dever me chamem; não me julgo, porém, habilitado a formar plano; peço-te pois que o traces, visto que não queres acompanhar-me; e faz-se preciso que elle esteja prompto d'hoje até ámanhã á noite, porque hei de pôl-o em obra infallivelmente antes de acabarem as treguas.

- Sim, alguma cousa farei, Depois que soube, que tambem estás ligado ao juramento, modifiquei a minha opinião, a teu respeito; porque se fores infeliz na empreza, a tua familia sabe os motivos occultos, que te chamavam ao perigo; mas quanto a mim, nada altero, ao que primeiro declarei; e que foi - não approvo loucuras - e como as não approvo, não te acompanho. Estou prompto a sacrificar a vida pela independencia nacional, combatendo, ou em campo razo, ou nos muros d'Almedina ; é um dever, a que se acha ligado todo o homem de sentimentos patrioticos e nobres; mas expôl-a por capricbos especiaes, e em nosso caso, totalmente alheios da minha pessoa, é um erro indesculpavel, é um grande peccado. Sou teu amigo, estou disposto a valer-te em tudo; menos quando voluntariamente exponhas a tua vida por timbres vaidosos.

Se não me descobrisses o juramento, não teria noticia d'elle. Acaso teu pae receou confiar de mim esse segredo? ha certas reservas, que offendem vivamente a probidade. Mas perdôe-se ao orgulho insupportavel d'alguma gente. Se teu pae ainda fosse vivo, nunca mais voltaria a sua casa. Nas crises, nos trabalhos domesticos, e nas angustias de familia, invocava o meu nome, e os meus serviços. Quando precisava, abatia-se indignamente, e no caso contrario respirava uma altivez insoffrivel. Deus queira que esta censura aproveite ao filho.

-- Não sou culpado nos defeitos de meu pae; Deus o tenha em gloria; fui mais franco do que elle, e portanto a censura não me cabe.

-- Nem eu te crimino; isto é um breve desafogo da minha susceptibilidade offendida. Não quero, que tragues por mais tempo a amargura d'esta critica. Só direi ainda duas palavras antes de traçar o plano para a execução da tua empreza; e é -- que não te fico obrigado por me revelares o juramento; esta revelação foi uma necessidade, e não uma franqueza d'amigo; porque desejavas um pretexto para eu annuir ao teu louco projecto, e coadjuval-o, e não tinhas outro fundamento para o justificar.

-- Não, não, meu amigo! accredita a sinceridade, com que sempre te descobri o meu coração. Admitto, que seja certo alguma cousa do que dizes; mas não é tudo. Abomino o filho, que censura seu pae; não consinto que essa nota infame venha denegrir o meu comportamento. Seus defeitos seriam grave, não duvido; mas baste que eu, em silencio, os reconheça; e feliz de mim, se podér evital-os. Devo defender meu pae todas as vezes que vir offendida a sua fama, mesmo quando ella seja atacada com fundamento; e tu bem sabes, que elle tambem possuia muitas virtudes, que adornavam sua nobre alma. Segundo a tua maxima um cavalheiro nunca deve menosprezar a verdade, ainda mesmo quando seja contra si. Sigo essa maxima, certo de que ella se ajusta exactamente a uma alma nobre e bem formada: portanto, o que vou dizer-te é mais para abono da verdade, que para defensa de meu pae.

Elle, não obstante o orgulho, que todos lhe notavam, e que elle, por erro seu, julgava essencial á sua illustre genealogia, não lhe faltava a virtude da gratidão; não se esquecia de obsequiar, havendo opportunidade, as pessoas, que lhe tivessem prestado serviços. Muitas vezes, no centro da familia, e outras publicamente, disse elle -- que te devia grandes favores; elogiava o teu merecimento; e tinha em grande conta a tua amizade. Se quizeres dar-te ao trabalho de combinar duas epochas, encontrarás em resultado -- que o teu resentimento contra meu pae é injusto. Não estavas na terra quando se fez o juramento da conspiração; porque bem me lembra -- que meu pae lamentou, n'essa occasião terrivel, a falta dos teus judiciosos conselhos. Pensa, recorda-te, vê lá, onde te achavas então?

-- Tens razão. Eu não estava na terra, nem quando raptaram tua irmã, nem quando se fez esse imprudente juramento; creio que me achava então na Galiza. Porém esta circumstancia, posto que sana o meu resentimento com teu pae, não o releva do character insupportavelmente despotico, para com as outras pessoas.

V

Agora já sei a quem se deve attribuir o assassinato dos dois mouros perto da nossa terra, na estrada que vai para;... E que desgraças, e violencias resultaram d'esta horrivel maldade, meo Deus!!

- Sem dúvida, respondeu Arthur, o juramento foi prestado no fervor da paixão; n'esse momento não se attendeu aos graves males, que poderiam resultar da sua observancia. Os dois cavalleiros mouriscos, que se encontraram mortos na estrada que passa juncto á raiz do monte Falisco, fui eu e meu primo Tifardo quem os matou. Tivemos noticia que elles haviam de transitar por ahi; e ajustámos matal-os á traição. Escolhemos o local mais commodo para o attentado; escondemo-nos entre as altas e espessas moutas, que bordam a estrada, na parte em que ella é mais estreita, mas cada um de seu lado para que os mouros passassem ao alcance das nossas lanças, e os podessemos ferir antes de serem vistas por elles.

O exito correspondeu maravilhosamente ás nossas esperanças, mas um pensamento repentino veio quasi deitar-nos a perder. Quando meu primo já do seu lodo tinha ferido um dos mouros, e quando eu da minha parte ia a dar movimenta á lança para fazer outro tanto ao que restava, o golpe destinado ao mouro, encaminhei-o ao cavallo, que logo caiu em terra, ficando illeso o cavalleiro. Tifardo correu para o matar, antes que elle se desembaraçasse do cavallo; gritei-lhe que não. Eu, largando a lança, arranquei da espada; e saltando ao meio da estrada, apresentei-me ao mouro para me bater com elle a pé. Acceitou o desafio, e mostrou mais coragem e desembaraço, do que era de esperar n'um assalto inopinado. Passados poucos minutos o sarraceno achava-se estirado no chão passado de golpes. Tifardo tinha-se conservado a alguma distancia de nós, obaervando o combate, com a espada na mão disposto a chamar o mouro a segando duello, esso eu fosse mal succedido.

- Que foi isto? me perguntou elle, que foi isto? Se mataste o cavallo, porque não mataste cavalleiro? acaso erraste o golpe? Nio; adverti, que era uma acção vil, a de matar por traição qualquer homem. Já não bavia tempo de te avisar, quando reparei na infamia do acto; e se antes tivera notado esta cobardia, o mouro que tu mataste havia de morrer com as armas na mão, mas nunca victima d'uma traição, que sempre cobrirá de ignominia os seus auctores.

Fugimos ambos, cada um por atalho diverso, para depois nos reunirmos em casa. As desgraças que d'aqui resultaram, bem as sabes tu. Não gasto tempo em contal-as uma por uma.

Esta desmarcada loucura custou bem cara a meu pae; foi uma lição, que a elle, e á familia, custou bem cara. A noticia correu depressa; os mouros vieram em pouco tempo conhecer do facto; e como não sabiam de quem deviam tirar vingança singular, e porque entenderam, que o assassinato não tinha sido, nem por odio particular ás duas victimas, nem por motivo de rapina (porque encontraram na estrada tudo que elles levavam comsigo), mas sim por effeito d'uma guerra systematica occultamente feita pelos christãos, tiraram uma vingança cruel dos povos visinhos. Alguns pastores, e gente agricola, e mesmo alguns passageiros, que por desgraga n'essa occasião terrivel caminhavam pela estrada, foram sacrificados no primeiro impeto.

Meu pae tinha sido a causa d'estas atrocidades; e por isso estava, por consciencia, obrigado a reparar os damnos até onde fosse possivel; nem encontrou confessor que o absolvesse antes da reparação. Foi-lhe portanto mister gastar muito de sua fazenda para, a titulo de esmolas, e por meios occultos, satisfazer ás partes lesadas. Deus lhe perdôe.

-- Tambem agora fico certo da origem d'alguns factos, que para mim sempre foi um mysterio, disse Gundezindo. Teu pae prestou avultados soccorros a duas viuvas, a quem os mouros, no primeiro furor da sua indignação, mataram os innocentes maridos. Achei extraordrnari'o tanta caridade em teu pae. n'essa epocha ganhou elle a fama de sancto; mas já vejo que foi obrigado, e então estava muito longe de merecer tão glorioso nome.

Vamos ao plano; antes de chegar a casa terás o gosto de o saber.

VI

Ha, ou não, mais alguma circumstancia a declarar, a respeito do logar onde a moura habita, e da gente que a acompanba e guarda?

-- Não; já disse tudo exactamente.

-- Bem. São necessarios oito homens; seis que sejam valentes, e que saibam jogar as armas; aos outros dois, ainda que faltem estas qualidades, pouco importa, mas são adjunctos indispensaveis; um que seja fiei e práctico nos caminhos, e outro que saiba fallar perfeitamente o arabe: muito bom seria que se descobrisse algum mouro renegado. Todos devem ir montados em bons cavallos; convém que sejam alfarazios.

Entendo, que a expedição deve ser feita de noite, e que os cavalleiros vão vestidos com fatos de aldeão; bem armados, e prevenidos com mais de quatro vendas, e outras tantas mordaças. Logo direi, como hão de ser empregadas.

A difficuldade, que encontro n'esta empreza, consiste em poder aferrar as trez mouras (se d'esta vez não apparecerem mais), sem alguma d'ellas soltar um grito; eis aqui onde está o fino da obra. Porque se sentinella da torre presentir algum movimento, ou voz fóra do commum, dá immediatamente signal e os raptores pagarão com a cabeça a sua temeridade, se logo logo não fugirem. Mas como lá não vou, nem aconselho esta desmacarada loucura, não respondo pelo resultado. Falta-me saber ainda uma particularidade. O sentinella da torre vê a fonte, ribeiro, e logar onde a moura passeava?

-- Por certo veria, se não fôra a espessa coma das arvores, que ahi se prendem estreitamente umas ás outras; mas como as ameias estão sobranceiras aos arvoredos, que circumdam a fonte, e a quem olhar de cima parece-lhe ver uma planicie de verdura, abaixo da qual a vista não penetra, seria preciso, para descobrir algoma cousa, enfiar a vista atravéz dos troncos das arvores; mas isso não póde elle fazer, por occupar uma posição superior.

-- Muito bem. D'ahi alguma vantagem poderá tirar-se.

Logo que cheguem ao monte, devem ahi, no sitio que já sabes, ou n'outro appropriado, e distante das estradas públicas, permanecer escondidos até que um dos bomens, que tiveres collocado em sitio competente para observar, te dê a noticia do apparecimento da moura, e do numero das criadas que a acompanham. Seria muito bom que ella não saisse a passeio senão juncto ao pôr do sol; porque segue-se logo a noite, sempre favoravel a emprezas d'esta ordem. Porém se ella não apparecer n'esse dia, devem aguardal-a para o seguinte.

Recebida a noticia esperada; cinco dos raptores mais valentes e audazes, dos quaes tu serás o principal, partem do latibulo, todos vestidos á rustica, preparados com adagas, e mordaças escondidas. O arabe é aqui o instrumento essencial. Cada um segue differente vereda, mas todos com direcção ao ribeiro, e local apontado, levando passo vagaroso, e parando a meudo, á maneira de quem procura algum animal estraviado; para melhor fingimento convem levar utensilios proprios da agricultura; e se podérem arranjar flores, plantas e ramos de arbustos aromaticos, convém que o arabe de tudo isto leve uma canastra cheia. Chegados á vista das mouras, mas ainda longe d'ellas, começa o arabe a representar o seu papel. É elle quem primeiro deve encaminhar-se para as mulheres; e quando já estiver perto, pouza no chão a sua canastra, ou braçado de flores, e com modo alegre do encontro inesperado, escolhe algumas flores mais delicadas e vistosas, e vai entregal-as a uma das criadas, para esta as offertar a sua ama; e elle, depois que a criada as tiver entregado, dirige-se à musulmana, e de joelhos faz-lhe um protesto da sua submissão; levanta-se, e dirige-se ás damas dizendo que elle, e seus companheiros são criados, que trabalham na quinta de N... e que andam a procurar um cavallo, que seu amo tinha em grande estimação, pouco tempo antes fugido para aquelles sitios; que elle (arabe) acompanhára para ahi outros criados, mas que se encaminhava para a cidade com a canastra de flores. para seu amo, e a dar-lhe parte de que cavallo se tinha perdido.

Este entretenimento serve para dar tempo a que os outros companheiros, em silencio e pausadamente, se vão approximando ao arabe; e logo que ahi cheguem todos a um tempo, tu dirige-te á musulmana para ajoelhar a seus pés, e os outros, ás criadas; tu, e todos, n'um só momento, arrancam as adagas, e apontam-nas ás gargantas das mouras, quasi a ferir; n'este acto o arabe diz na sua lingua, de modo que todas ouçam -- silencio ou morte; -- feito isto com a rapidez, e acêrto possivel, os outros companheiros põem as mordaças ás mulheres, de modo, que fiquem bem seguras, e tapam-lhes os olhos. Na supposição pois de que as mouras não deram signal, e que tudo isto saiu bem, resta ainda procurar o meio de pôr tudo a salvo.

Não é preciso que venham trez mulheres, isso é um onus muito penoso; mas, por decencia, devem trazer uma das criadas. Tu conduzes a moura principal pelo monte acima, em cadeirinha formada pelos teus braços e os d'outro companheiro, e assim a criada; porém se ellas podérem, e quizerem andar empregando para isso algumas ameaças, será melhor, para haver brevidade. É necessario que as outras criadas fiquem bem amarradas com as mãos cada uma a sua arvore, com as vendas e mordaças bem seguras, para não gritarem, nem verem para onde os raptores fugiram com a moura.

Chegados ao latibulo, ou escondedouro, onde as cavalgaduras já devem estar apparelhadas, fujam sem demora, tu com o teu precioso despojo, n'um bom cavallo, e outro com a criada. Ainda que ellas tenham algum deliquio, não seja isto causa para retardar a fuga. Esta deve ser pela estrada principal, a fim de fazer-se urna jornada mais prompta; e até por não haver nada a temer pela frente.

Depois de caminharem meia legoa sem perseguição, podem afastar-se para algum bosque, a tomar um ligeiro descanço; e ahi podem tirar as vendas ás duas mouriscas, mas não as mordaças. Se ainda fôr dia, escolhe para esta breve demora um ponto d'onde possas observar alguma parte da estrada ao longe, que fique na retaguarda, por onde ha receio que os mouros venham no teu alcance, para haver tempo de fugir antes da sua chegada.

Eis o que me parece deves fazer, querendo. Podem apparecer muitas occurrencias difficeis, que não sei prevenir; mas lá te haverás com ellas, segundo a tua sagacidade e juizo.

- Somos chegados á povoação, tudo está a dormir; é já muito tarde, vamos ver se os criados nos dão algutfta cousa para ceiar, e logo depois vou deitar-me.

-- Assim deve ser, respondou Arthur; mas eu nem posso, nem tenho tempo de me entregar ao somno; passarei o resto da noite a estudar o plano, que espero, comegar a desempenhar ámanhã á noite; se me apparecer alguma dúvida, eu t'a exporei em segredo. Logo ao romper da aurora vou por essas casas despertar os meus amigos e pedir-lhes para me coadjuvarem na empreza, e sobretudo fazer por encontrar o guia, e o lingua arabe.

-- Ai! que já me esquecia, acudiu Gundezindo, lembro-te que depois de te declarares com estes dois homens, é necessario segural-os, para que não descubram o segredo.

No dia seguinte pelo meio do tarde, Arthur, coberto de suor, e quasi sem respiração, vem dizer a Gundezindo que tudo se achava prompto para sair á noite, na conformidade do plano; e que tinha encontrado um mouro renegado, que podia servir de lingua e de guia; porque havia annos, que habitava por aquellas vizinhanças em Antaniol e Fermozelhe, e por outras aldêas, e que sabia todos os caminhos e veredas a palmos.

- Manda chamar esse homem. Quero sondal-o; não sei o arabe, mas elle pelo uso já deve saber a nossa linguagem. Tenciono ir, com alguns amigos, esperar-te ao caminho ámanhã á noite, o mais perto de Coimbra que podér ser; porque, se podéres escapar-te do perigo, na occasião do rapto, ou conduzas a prêsa, ou não, é provavel que as mouros vôem sobre os raptores, e n'este caso, 'uma embuscada pode salvar-te.

Ainda Gundezindo fallava, quando o arabe chegou, e interrompeu.

-- Como te chamam?

-- Antes de baptizado era Zolleimman, agora sou João.

-- Vieste ha muitos annos para terra de christãos?

-- Nasci em Cordova, de paes mahometanos. Desde rapaz segui as armas, entrei em alguns combates; teobo andado por differentes cidades de Hespanha; e por, fim não podendo continuar no serviço militar, por falta de forças, e principalmente por lesão da perna direita, devida a quéda d'um cavallo abaixo, tenho permanecido por estes sitios, onde sou estimado pelos christãos, que me conhecem, e gostam de empregar-me no seu serviço. Quando chegou o rei com o exercito, aggreguei-me a elle, não para combater, mas para ser empregado em qualquer occupação, em que podesse prestar algum serviço util.

-- Quem te persuadiu a receber o Baptismo?

-- Foi um lavrador rico de Fermozelhe, em casa de quem estive dois annos. Este sancto homem é um apostolo encuberto; foi elle quem teve a paciencia de me instruir nos principios da verdadeira religião, e de me fazer regenerar pela agua do baptismo, convencendo-me primeiro de que a doutrina de Mafoma era falsa e detestavel. Tenho hoje a consolação de me contar entre os membros da sociedade christã; e ha mais alguns mouros, a quem este sancto homem tem evangelisado, como a mim.

-- Muito mais tenho a perguntar-te; mas, porque não ha tempo a perder, guardarei isso para outra occasião, e agora tractarei do ponto principal, para que mandei chamar-te. Dize-me: sabes com exactidão todos os caminhos públicos; atalhos e povoações d'aquelles montes, que se descobrem d'aqui, além do rio, e que continuam até á frente de Coimbra?

- Sim, senhor; como a palma da minha mão.

- Dize alguns.

- Direi de boa vontade; ha as aldeias d'Assugeira , S. Martinho Bispo, Talaveir , a quinta de Froila Tosanis , e outras; o mente d'Antaniol, e o que lhe segue até á cidade, chamado gemil, pela raiz dos quaez vai a estrada principal; o rio ao lado d'aquelle monte offerece portos de nomes diversos, como o das areias , o de Marroncos , o de ... e outros.

- Estou satisfeito; já vejo que sabes. Vamos agora tractar d'outro negocio.

- És bom cavalleiro?

- Sempre o fui; mas presentemente por causa da minha perna doente, nem posso andar a cavallo muito tempo, nem firmar-me para combater.

- Então já vejo, que tens difficuldades em ir e vir de galope d'aqui ao pé de Coimbra?

- Se me concederem o espaça de meia hora para lá descançar, estou prompto.

- Ha por aqui mais algum homem práctico nos caminhos d'além do rio?

- Que saibam fallar mourisco com exactidão conheço alguns, mas estão longe; dois ou trez d'aqui seguramente trez legoas, em Figueirdo ; e outro aqui mais perto, do logar d'Anzána .

- Não preciso que fallem arabe; contento-me que saibam os caminhos.

- Como é só para isso, qualquer homem d'esta terra os ensina.

-- Procura um que tu conheças por honrado, e que saiba andar a cavallo, e diz-lhe que venha fallar-me hoje á noite ou ámanhã ao nascer do sol; e depois d'isto vai entender-te com o Sr. Arthur; e passados trez dias vem fallar-me para conversar comtigo, e para te dar urna gratificação.

Algum tempo depois que saiu o renegado, entrou Arthur para saber, que juizo o seu amigo fazia do lingua e conductor.

- Então que te parece o homem?

- Parece-me que deixado a si mesmo, é incapaz de fazer mal; não tem instincto para tanto; póde todavia ser instrumento da maldade alheia. É estupido, mas bem intencionado; como toma interesse pelos christãos entendo, que não devemos descongiar d'elle. Creio, que desfigurou a verdade n'uma circumstancia da sua breve historia, mas tem desculpa attendendo á causa. Disse, que não pegava em armas não poder firmar-se na perna direita; e eu creio que é por medo, que elle tem de cair nas mãos dos mouros; porque se estes o apanhassem com armas contra elles, separavam-lhe logo a cabeça do corpo. Se elle soubesse a aventura, em que vai metter-se, talvez não quizesse acompanhar-te,; porque é cobarde; portanto não lhe declares o segredo, se não quando já estiverem no esconderiho do monte; ahi não te esqueças de meio algum, razões, promessas, e por fim ameaças, para que desempenhe com perfeição o papel que lhe é distribuido n'este drama. Vai tractando tua partida, porque d'aqui a pouco tempo é noite.

Quando na estrada, de noite, ouvires gritar - Gundesindo -- responde-me em voz que se ouça -- Arthur, -- e então, ahi serei comtigo.

VII

Já o sol se tiha sepultado no horisone, quando Arthur e seus companheiros vestidos á rustica, partiram do seu acantonamento guiados pelo renegado, para o escondedouro já conhecido por Arthur. A noite pela sua frescura convidava á jornada, e Gundezindo teria acompanhado o seu amigo n'esta expediçao até ao local, onde o havia de esperar, mas ainda não tinha convidado amigos, nem condutor. Era uma necessidade aguardar para o dia seguinte.

Desde logo, deu-se pressa ao arranjo de tudo para esta empreza auxiliar, amigos, conductor, cavalgaduras e factos mouriscos. Uma grande parte da noite foi consumida n'estes preparativos. Na madrugada do dia seguinte appareceu-lhe o homem, que havia de ensinar os caminhos.

- Quem te mandou aqui?

- Foi um mouro renegado, que se chama João.

- Sabes algumas veredas ou caminhos occultos, que, por fóra da estrada conduzam a Coimbra, indo juncto aos montes d'além do rio?

- Sei, mas retardam a jornada por estreitos e tortuosos.

- Poderemos lá chegar n'um dia?

- Em meio.

- Fica sabendo, que me has de acompanhar a cavallo.

- Menos isso, tenho medo de cair; como a marcha não é apressada, vou menos arriscado caminhando a pé.

-- És natural d'aqui?

- Não senhor, sou da Pulgaria .

- Tens familia?

- Mulher e filhos.

- Vai dizer-lhe que, hoje e ámanhã, ficas ao meu serviço; e volta para aqui sem demora.

Quando Gundezinho viu, que tudo estava prompto, e que os cavalleiros só esperavam a voz de partir, chamou o guia, para logar onde ninguem fosse testemunha, e disse-lhe: - Quero ir com doze cavalleiros vestidos á mourisca esconder-me n'um bosque, perto da estrada, e o mais juncto de Coimbra que possa ser; e é necessario que vamos; para lá escondidamente, e que ahi possamos demorar-nos algumas horas, sem as auctoridades sarracenas da cidade o saberem. Tambem desejo que do logar, que tu escolheres se possa avistar ao longe alguma porção da estrada em a nossa frente. Se desempenhas estes requisitos conforme à minha vontade terás paga generosa.

- Sim senhor, farei deligencia para satisfazer os vossos desejos.

Gundezinho era cavalleiro de valor, mas aconselhado pela prudencia antevia os perigos e procurava evital-os em quanto a necessidade extrema o não obrigava, a envolver-se n'elles; e n'esta acção não havia senão dois; um, o encontro de tropa musulmana, que fizesse qualquer reconhecimento; e então seguia-se, ou a fuga, ou o combate; este offerecia todas as probabilidades de ser funesto a meia duzia de christãos atrevidos, e aquella imprimia o ounho da infancia em o nome de Gundezindo. O outro era que se os mouros fossem atrahidos por algum inoidente, para longe de certo cairia nas mãos dos inimigos, com a sua prêsa, caso tivesse conseguido aposar-se d'ella.

Gundezindo tinha pesado na sua mente todas estas terriveis eventualidades; mas o desejo de proteger a retirada d'Arthur, e a esperança de poder embuscar-se perto da cidade sem conhecimento dos mouros, animaram-no á empreza. Achava em seu engenho recursos para, salvo o credito, se livrar dos perigos eminentes e parecia exercitado nos ardiz e estratagemas, a que muitas vezes costumam recorrer os generaes, que sabem vencer grandes exercitos com pouca gente.

Era pouco tempo depois do meio da tarde, quando sem embargo dos ardores do sol partiu esta cavalgada de fingidos sarracenos.

Consumidas mais de seis horas em atravessar por entre bosques espessos de salgueiros, matas e silvas, e infinitas voltas de veredas tertuosas sem encontro de guardas nem sentinellas inimigas, chegaram uma hora antes do crepusculo, a um valle cerrado de fechados arvoredos, no meio do qual se offerecia uma pequena planicie, ao parecer, ignorada do povo, e para onde não havia caminho certo.

Aqui, disse o guia, podemos estar seguros, não se esta noite, mas até dias, se necessario fôr; a estrada pública encontra-se d'aqui a poucos passos. Senhores cavalleiros, permanecei a cavallo, em quanto subo aquelle pequeno monte para observar onde tinha ido, se descortinava a estrada lá mais adiante, onde passava por uma breve elevação a distancia d'um oitavo de legos; e que no meio ficava a vista interceptada por causa d'um grande arvoredo.

Gundezindo ao ouvir esta narrativa, disse ao guia: vai depressa para o alto da collina, fixa a vista na estrada que se descobre ao longe, e do que vires apparecer vem immediatamente dar-me parte, e d'aqui a um instante lá estarei de observação comtigo.

O guia partiu logo; e Gundezindo apeando-se recommendou aos companheiros que fizessem outro tanto, para darem algum descanço aos corpos, o alivio aos cavallos; mas que os não desenfreassem.

Elle tinha reservado para esta ocassião, e por delicadeza, uma consulta com os seus companheiros - se deviam fazer resistencia aos mouros, caso elles viessem com grande força sobre Arthur, ou se deviam fugir. Porém a pressa não deu tempo ao conselho.

Ainda os cavalleiros não estavam todos apeados, quando o quia os sobresaltou do alto da collina, gritando: - aqui vem, aqui vem já muito perto cavalleiros com duas damas.

Gundezindo entendeu logo, que, quando alli chegou, já Arthur vinha na estrada aquem do monte contraposto. Ninguem o esperava tão cedo, porque entendiam, que o rapto, a ter-se verificado, seria mais juncto da noite. Logo logo, sem esperar ordem, todos pullaram acima dos cavallos, e approximaram-se á estrada. Gundezindo saiu fóra da mata, d'um galope sobre a collina a encontrar-se com os raptores; e a determinar ao vigia, que se conservasse attento para a estrada, e dissesse o que visse apparecer; ordem foi dada com Arthur á vista, e no meio das vozes de exultação, pelo bom exito da empreza.

Até este momento, a dama musulmana tinha vindo com muito socego, na cavalgadura, recostada sobre o braço esquerdo d'Arthur; mas tanto que uns e outros cavalleiros começaram a exultar de alegria, e que os nomes de Gundezindo e d'Arthur subiam aos ares com as vozes de applauso, manifestou tamanho desassocego, que attrahiu a attendo de todos; nem a força d'Arthur, nem as vozes de conforto que renegado lhe dirigia, a podiam conter; forcejava como furiosa por despedaçar a venda, arrancar a mordaça, fazia extremas deligencias para fallar e abraçar Arthur; então, Gundezindo, cubiçoso de saber a causa d'um desassocego tão extraordinario, approximou-se, e dirigindo-lhe algumas expressões de consolação; proferidas em arabe pelo interprete, desatou-lhe primeiro a venda sem lhe fitar a vista no rosyo, porque estava muito longe de imaginar um encontro, que tinha tanto de feliz, como de inopinado, mas logo que principiou a tirar a mordaça, conheceu primeiro quem era a dama do que Arthur, que diante de si a segurava na cavalgadura; e immediatamente disse em nos, que todos ouviram, é Elvenda, é Elvenda, digam presa de seu irmão!

- Elvenda! respondeu Arthur, fixando-lhe a vista no rosto, minha irmã... oh, que gloria!!! e n'este instante, perdidos os sentidos, abraçados com transporte um ao outro, ambos se escôam da cavalgadura; e a não serem sustentados por Gundezindo e mais circumstantes, que ahi se achavam apinhados, dariam uma queda mortal.

CAPITULO II

Um troço de cavallaria sarracana corre no alcance dos raptores; Gundezindo sae á pressa d'uma embuscada, faz um discurso ao commandante dos inimigos, e consegue que elles se retirem, sem combate. Volta depois com seus camaradas em seguimento dos dois irmãos, e encontra-os já restituidos á vida. Collisão afflicta d'Arthur entre o dever que lhe corria de acompanhar sua irmã, e de acudir a Gundezindo, a força da amizade, e da gratidão vence a do sangue. Encontram-se todos e entram sãos e salvos na povoação. A delicadeza d'Elvenda é inadvertidamente offendida por seu irmão. Vão todos trez para Coimbra; D. Fernando lhes concede audiencia, e encarrega a Gundezindo o plano do primeiro assalto á cidade depois de feitas as treguas. E ella é expugnada.

VIII

Em quanto um quadro tão patetico pelo duplicado extremo de alegria, e de comtermação, se representava no meio da estrada pública, o homem que se achava de sentinella no alto da colina sentia-se commovido, e como stupefacto pela novidade do acontecimento, volvia com rapidez os olhos ora para o quadro que se debuxava á sua vista, ora para o sitio da estrada que se lhe recommendára observar; e quando todos, cada um a seu modo atormentavam os dois irmãos meios mortos, procurando restituil-os á vida, um forte grito do mesmo sentinella, deu rebate n'este pequeno e confuso arraial. Lá vem, disse elle, lá vem ao longe; assomando o alto da estrada, grande multidão de gente a cavallo.

Esta voz fez uma impressão de natureza diversa; até alli todos tinham vivo interesse, em que Arthur e Elvenda recobrassem os sentidos, mas agora cada um procurava o meio de salvar a propria vida; o expediente mais sensato a seguir, n'este momento de terror, em vista de escacez de gente para fazer resistencia e da protecção da noite, era o da fugida; mas o respeito e confiança, que todos tinham em Gundezindo, fez que aguardassem as suas ordens. E quando todos por diversas maneiras significavam um medo prudente, elle mostrou-se impavido n'esta collisão aterradora.

-- «Meus amigos e vallorosos companheiros, disse elle, não ha tempo de consultar o inimigo, está comnosco dentro em poucos minutos; a fuga é infame, e, n'estas circumstancias, perigosa. Somos poucos, é verdade, mas grande a força dos nossos braços; nunca receei na presença de mouros; a noite protege-nos, ella é medonha aos agressores; as mesmas sombras parecem soldados pela retaguarda e plaucos: não ha que temer, e pela frente appresentaremos, com o valor costumado, o ferro de nossas armas ao inimigo. Serei o primeiro a enviar-lhe a minha lança, quereis acompanhar-me?

- Queremos, responderam todos, já bastante animados; executae rigorosamente as minhas ordens.

Dicto isto, chamou o vigia, e mandou que dois dos seus companheiros se retirassem um com Elvenda, outro com Arthur diante de si nas cavalgaduras conforme podessem que o vigia os acompanhasse a pé com a criada; e que caminhassem de vagar, que elle lhes certificava, que não seriam apanhados pelos mouros.

Dadas estas ordens, dispoz os cavalleiros em fileiras de trez filas, e no meio de dois mais intrepidos junctamente com o renegado subiu a estrada e desceu em direção ao inimigo, mas parou quasi na planicie ficando-lhe na rectaguarda declive do pequeno outeiro atravessado pelo caminho, que desde Gundezindo até ao dorso do monte, e um pouco d'ahi para traz, ficava occupado pelos cavalleiros postos a trez de fundo; os outros dividiu-os em duas partes por cada um dos lados da estrada para andarem por entre as matas contiguas movendo a ramagem das arvores, correndo para diversas partes, e dando outras quaesquer demonstrações de muita gente, sem comtudo se afastarem para longe, nem se descobrirem ao inimigo.

O fim que o auctor d'este engenhoso estratagema tinha em mira, era fazer acreditar aos mouros que aquella posição se achava defendida por uma grande força de tropa christã, que tinha vindo proteger o rapto.

Não decorreram muitos minutos, sem que um tropel de mouros desembocasse da estrada, que, até quasi ao fundo da collina occupada por Gundezindo e seus companheiros, estava toda bordada com matas espessas e altas. Então os primeiros appareceram ao deitar os olhos á pequena subida que lhe ficava fronteira, como sobresaltados, do que viam reprimiram alguma cousa a carreira dos corseis, para se disporem em ordem a atacar, segundo o consentia a estreiteza do logar.

IX

Já o crepusculo annunciava a proxima entrada da noite, favoravel a uma facção tão arriscada; porém, não obstante esta circumstancia, a vantagem da posição, as medidas e providencias tomadas, e sobre tudo a confiança que havia no valor é intelligencia de Gundezindo, todos os cavalleiros christãos esperavam afoutos um combate incarniçado; cujo effeito, se bem que glorioso, não deixaria de custar algumas vidas.

Logo que os mouros, continuando na sua marcha se approximaram a ponto de poderem ouvir distinctamente, Gundezindo mandou ao renegado seu interprete, que, em voz alta, vertessse em arabe o seuinte:

- «Fazei alto, temerios Mahometanos! para onde vindes, o que pretendeis?

- «A cabeça de meia duzia de christãos atrevidos que ha pouco se arrojam a levar por força a dama predilecta que Iben... tinha n'uma das suas casas de campo.

- «Attendei, disse Gundezindo: uma grande força de christãos veio occupar estas posições para favorecer o arrebatamento d'essa dama, a fim de a repôr no centro da sua familia, d'onde foi violentamente roubada, pela brutal lascivia africana. A restituição d'Elvenda não é um roubo, represalia, nem compensação, foi uma industria feliz e louvavel d'um irmão, que não tinha outro meio, a não ser este, de recuperar sua irmã ha tantos annos perdida. Se n'isto ha offensa, os christãos são os offendidos: o vosso dominio violento tem-se excedido até lançar a deshonra e infamia no meio das familias nobres e honestas; se taes procedimentos são consentidos na lei do vosso propheta, elles são abominaveis entre christãos; portanto não se vos fez injuria, não tendes de que pedir satisfacção; porém, se entendeis que este facto offendeu o orgulho da vossa prepotencia, se o abuso já habitual da vossa auctoridade nos fecha o entendimento a estas ponderações, e quereis tomar vingança d'um facto, que na presença de Deus e da razão é justo, sabei que a dama já está muito longe: d'aqui, não alcançaes, nem aos seus conductores; a vossa marcha, ainda mesmo quando vol-a não disputassem, n'este ponto, seria inutil; mas para que não julgueis que vos offereço um vão apparato de tropas, e de palavras enganosas podereis, querendo, provar a força de nosso braço; nenhum de nós cederá um palmo do terreno, que primeiro occupou, sem perder a vida, é um sacrificio heroico, porque combatemos pela desaffronta da religião, de nossos costumes e familias ultrajadas. É um incidente da guerra; póde elle abreviar o termo das tréguas pactuadas, e arrastar apoz de si resultados agora incalculaveis e funestos ao exercito musulmano, cuja responsabilidade terá, por certo, de pesar sobre o primeiro aggressor n'esta conjuncção. É noite, e uma fogueira n'estas matas é o signal combinado para o nosso exercito, além do rio, conhecer que algum tyrannico procedimento da vossa arbitrariedade quebrantou a paz; mando accendel-a ; e em quanto os vossos soldados acodem a estes logares, os christãos por um assalto d'improviso entregarão Coimbra nas mãos de Fernando. Reconhecemos que, durante este penoso armisticio, não deviamos entrar armados no vosso territorio; mas tambem reconhecemos...»

Aqui, o mouro que se achava collocado à frente dos outros, e que parecia o commandante de toda a força interrompeu o discurso de Gundezindo, fazendo ouvir sem arrogacia esta breve resposta:

-- «Não, christãos, não seja uma mulher a causa de se derramar sangue, nem de se interromper a paz. Não crimino a vossa invasão, visto que ella teve um motivo, no meu entender, assás justificado; e tambem nunca pensei, que por Elvenda se movesse um exercito: mas em fim é Elvenda seu alto merecimento tem direito a maiores serviços; que sua familia goze em paz esse anjo do Senhor.»

Tendo assim dicto voltou o cavallo, e os outros com elle retiraram-se.

Era a cavalleria sarracena em quantidade extraordinaria. Os christãos que alli se achatam seriam esmagados na primeira carga, na falta do engenhoso ardil empregado por Gundezindo; ou se o commandante mouro não tivesse algum motivo occulto, que o obrigasse a depôr a altivez natural, e a retroceder sem antes d'isso medir as suas armas com os defensores d'Elvenda.

Gundezindo, pesando a resposta do chefe mourisco, entendeu por ella que, de duas uma, ou aquelle mouro se achava do coração interessado por Elvenda, ou esta dama por algum emprego feliz da sua virtude e talento, soubera ganhar as afeições da aristacracia mahometana, e adquirir grande importancia entre a gente agarena. Fosse em fim pelo que fosse; aqui havia mysterio, que só o futuro poderia revelar.

Gundezindo, capitão d'este punhado de christãos, quando viu que os mouros faziam uma retirada não fingida, a que já se achavam distantes, mandou reunir os companheiros, que se tinham dispersado pela mata antes da pequena allocução. Todos se apinharam em volta do seu chefe, e bemdizendo o engenho feliz, com que Deus o dotára, cobriram-no de elogios e de bem merecidos louvores. O mesmo Gundezindo, pretendendo sempre parecer superior a quaesquer affecções do espirito, não podia comprimir totalmente a alegria vaidosa, que sobremaneira o exaltava pelo bom resultado da sua astucia; e de quando em quando soltava algumas palavras de ufania.

X

Gundezindo e os mais cavalleiros voltaram para a povoação do seu acantonamento, mas pela estrada pública, e não por veredas intrincadas, como na partida para esta facção; e quando cada um ia contando ao seu par os diversos juizos que tinha feito sobre o desfecho d'esta empreza temeraria, um cavalleiro, saiu improvisamente da mata, e por ser de noite causou um pequeno abalo; porque os mouros, se lhes tivera lembrado opportunamente, ou se quizessem poderiam ter enviado alguma tropa em barcos para cortar a retirada aos raptores; felizmente não aconteceu assim; e o receio dissipou-se logo que esse cavalleiro, ao mostrar-se na frente, chamou com voz forte por Gundezindo.

Era Arthur e outro cavalleiro sós, que vinham procurar Gundezindo e consocios; mas ignorantes do que ultimamente tinha acontecido, receavam encontrar pelo caminho alguma soldadesca inimiga; e tendo ao longe sentido estrepito e vozeria, se recolheram á mata para d'ahi escondidamente poderem, pelas fallas dos que passavam, conhecer se eram mouros, se christãos.

Tanto que Gundezindo reconheceu a voz d'Arthur, respondeu-lhe em continente, e voando um para o outro, ahi se deram estreitos abraços em signal de agradecimento, e da alegria em que trasbordava o coração d'ambos.

- Como está Elvenda?

-- Então que fizeram os mouros?

Assim de tropel perguntavam um ao outro, sem esperar resposta; era tal a impaciencia de saber os ultimos acontecimentos de parte a parte, que não se entendiam.

Gundezindo terminou o enleio de interrogações dizendo: Vejo que estás salvo, muito folgo: resta-me saber de tua irmã; o teu companheiro já m'o vai dizer: com os mouros tudo se concluiu á boamente; as miudezas, algum d'esses cavalleiros que t'as diga, que eu chamo o que veio comtigo para me dar noticias d'Elvenda.

XI

Passado um quarto d'hora de fiaminho andado a passo vagaroso, disse o companheiro d'Arthur a Gundezindo: -- Arthur comegou a dar signaes de vida, primeiro abrindo os olhos, dande alguns bocejos, fazendo leves movimentos de braços e cabeça; depois alguns ais e perguntas, como: -- onde estou eu? que é isto? chamem Gundezindo; quem são aquelles, que ahi vão? -- Ai, é minha irmã! e repentinamente saltou do cavallo abaixo (aqui foi preciso parar), e correu para abraçar Elvenda, que ainda não dava signal de si. Por fortuna tambem n'esta occasião a irmã, principiou a dar mostras de vida, e a pouco e pouco se restituiu. Ambos se mostravam perturbados, e como duvidosos do que viam, parecia-lhes tudo um sonho; e principalmente Arthur, que se tornou um doudo perfeito; e até me pareceu que a irmã assim julgou: mas a pobre senhora tinha razão, porque está persuadida, que a empreza foi expressamente intentada para a restituir á liberdade; e logo que ella saiba, que se acha libertada por um acaso, não deixará de comprehender melhor a causa da perturbação d'Arthur,

Ambos parecem contentissimos, porém o rapaz custava-lhe a acreditar que em vez de moura lhe apparecesse a irmã; acontecimento este que nunca lhe viéra à lembrança; e d'aqui procederam todos os transportes, espantos e admirações com que elle festejou reconhecimento d' Elvenda.

O genio ardente d'Arthur não o deixou descançar ao pé da irmã; ignorava tudo quanto se tinha passado, desde que o deliquio o privou dos sentidos, até que melhorou; e então volvia como assombrado, os olhos para uma e outra parte, e furioso perguntava por vós, e pelos outros companheiros. Para o socegar pareceu-me, que nada se perdia em lhe declarar que qs mouros tinham viado sobre elle, e que vós, com todos os mais cavalleiros tinham ficado para os demorar, em quanto nós os levavamos (a elle e irmã) a salvo, passando-os para além do rio; e que por elle ter melhorado nos haviamos apeado alli, onde ainda era terra de infieis.

Tanto que ouviu isto, mostrou-se tão impaciente afflicto, que mettia medo e dó. Não queria deixar Elvenda; mas não podia soffrer que vós estivesseis em perigo, e elle ocioso. São crises terriveis, dizia elle! Jesus, valei-me n'esta occasião tremenda!! que devo fazer? digam, digam o que hei de fazer? falta-me Gundezindo, com elle perdi tudo; eu endoudeço; acudam-me, onde está elle? Por estas e outras palavras que soltava a esmo, passeando se d'uma parte para outra, por diante da irmã, ora batendo na cabeça, ora fazendo movimentos desordenados com os braços, manifestava atè á evidencia a violenta agitação do seu espirito. Em quanto assim andou por alguns minutos; Elvenda, assentada sobre uma pequena ribanceira do caminho, com a reserva juncto de si, guardava um silencio profundo.

Eu, receoso de exacerbar a sua dôr, abstive-me de lhe fallar; pareceu-me dever esperar que acalmasse aquella effervescencia afflictiva. Depois, quando se me figurou, que elle se achava mais socegado, principiei a dizer-lhe, a pouco e pouco, algumas palavras de consolação, para o reanimar; mas elle não lhe dava importancia.

Em fim approximei-me a elle, e, em tom decisivo, fiz-he comprehender a urgencia de continuar a jornada; dizendo que a nossa demora ahi era perigosissima, e que deviamos immediatamente pôr a senhora Elvenda a salvo de qualquer insulto. Para me dar attenção parou; e a todas as minhas palavras respondia -- sim, sim -- e em fim perguntou:

-- Então já disse tudo?

-- Sim senhor já.

-- Que medo é esse?

-- É medo bem fundado, é um medo prudente: estamos em territorio do inimigo, somos só dois cavalleiros, não sabemos de Gundezindo, e temos de nos defender a nós e a vossa irmã; se alguma caterva de infieis nos assaltar aqui seremos todos victimas sem gloria.

-- Não temo a morte, e até desejo morrer, disse elle, olhando para mim com arrogancia.

E, dando uma volta, continuou:

- Quem é aquelle homem (apontando para o guia)?

-- Disse-lhe quem era, e a precisão que tinhamos d'elle.

Tendo ouvido isto, disse -- bem; dois fortes deveres me chamam a pontos inteiramente oppostos, e ambos sagrados; o sangue reclama que não abandone minha irmã; a honra e o valor pede que sacrifique a vida por um amigo intimo e generoso, que por mim, talvez a esta hora, tenha perdido a sua. Se Gundezindo pereceu ás mãos dos infieis, quero ir morrer ao pé d'elle, e assim morro contente. Oh! incomparavel consolação teria eu, se elle soubesse que ainda chegava a tempo de combater para o salvar! Se Nossa Senhora dos Açores assim o permitir, ou que elle esteja são e salvo, desde já aqui lhe voto uma rica peça de fazenda, e prometto fazer-lhe uma romaria em todos os annos de minha vida.

Depois que fez este voto, disse á irmã - Tu, Elvenda e companhia, continúem sem demora a jornada; esse homem que vos ensine o caminho; eu vou procurar Gundezindo; acompanhe-me um de vós que esteja decidido a batalhar até á morte; e dizendo isto chegou-se para um dos cavallos. Aqui suscitaram-se duas brevissimas altercações; a primeira, da irmã que se lhe lançou ao collo para o deter, expondo-lhe -- que de nada aproveitaria o seu valor contra tão avultado numero de inimigos; que a sua deliberação era insensata; que... Elle sem mais ouvir, repelliu com força para longe de si a pobre senhora, que se desfazia em copioso chôro; montou d'um pulo n'um dos cavallos, e, dizendo-lhe adeus, partiu a galope. A segunda foi entre mim e o outro cavalleiro sobre qual de nós o havia de seguir; os cavallos eram só dois, Arthur tinha montado no que, por acaso, achou mais perto, e o meu foi o que ficou; e como era forçoso que um de nós acompanhasse Elvenda, a pé, e outro a cavallo, fosse em seguimento do irmão; o direito de propriedade foi quem decidiu a contenda, montei o meu cavallo, e vim a toda a pressa alcançar Arthur.

E quando já tinhamos andado por espaço d'um quarto d'hora, pouco mais ou menos, com a pressa, que a claridade da noite permittia, sentimos ao longe um susurro de vozes, que parecia ser em nossa frente; e á proporção que nos adiantavamos, mais se distinguia, até que não foi preciso muito tempo para nos desenganarmos, de que nos iamos encontrar com grande numero de cavalleiros, que vinham pela estrada; cansava-nos porém inquietação a dúvida em que nos achavamos, se eram christãos, se infieis. Arthur perguntava-me quem seria; mas tanto o sabia eu como elle.

-- São os mouros, dizia Arthur, estão comnosco; já apanharam o meu querido Gundezindo e seus companheiros; agora vêm ainda no meu alcance e no de minha irmã. Oh! desgragada, que talvez ainda lhe caias nas mãos! eu não arredo pé, quero morrer matando.

- Não, não; acudi eu; isso nada aproveita; talvez seja o senhor Gundezindo que volta com seus companheiros; é prudente, que nos escondamos aqui dentro do bosque, d'onde occultamente observaremos pelas vozes a gente que é.

Depois de muitas instancias, e de lhe declarar que abandonava, porque não queria perder a vida por causa das suas loucuras; e procurando até convencel-o de que isto era um peccado grave, annuiu aos meus rogos, mas quando já estavamos á vista uns dos outros; e dizendo sempre, e eu achava, que elle tinha razão, que se fosse o seu amigo, com a sua gente, deviam marchar em silencio, e não com tamanha algazarra, porque isso era proprio de quem estava em sua casa com grande contentamento.

As vozes aclaravam-se cada vez mais, e em breves instantes reconhecemos serem christãos, que vinham muito contentes; e que, portanto, d'estes sitios, e n'esta conjunctura não podiam ser senão vós com os vossos valentes camaradas. Então saimos dos arvoredos para nos junctarmos todos.

Satisfiz é vossa ordem, narrando exactamente o que se passou desde a occasião, em que nos separámos, para conduzir Elvenda e seu irmão; agora espero, que não vos negueis em satisfazer ao meu ardente desejo, contando-me o que vos aconteceu com os mouros, que vinham a galope na pista d'Arthur.

A este pedido respondeu Gundezindo: -- Não houve facto algum digno de recordação; a approximação da noite, a vantagem das posições, que eu tinha tomado, e a distribuição, que ,fiz d'este punhado de valentes, que me acompanham, sim, tudo isto juncto a meia duzia de paldvras dictas a geito para persuadil-os de que deviam retroceder, foi bastante, para nos deixarem voltar em paz.

-- Muito bem, muito bem; isso foi um caso raro, e só por milagre; respondeu o cavalleiro a Gundezindo.

XII

Quando este dialogo findou, já todos se approximavam ao local onde Arthur tinha deixado a irmã. Aqui, disse em voz alta para todos ouvirem o cavalleiro que tinha acompanhado Arthur, aqui deixamos ha meia hora a senhora Elvenda; vamos depressa para a livrar de cuidados.

-- Vamos, disseram todos.

Arthur, depois que se instruiu miudamente da destreza com que o seu amigo se tinha escapado, com tanto credito do seu nome, ao ataque dos mouros, parecia um doudo varrido; a effusão de sua alegria causava a todos gargalhadas de rizo. Applaudia a sua propria resolução: chamava-se heroe a si mesmo; dava vivas a Gundezindo; abraçava ora um, ora outro dos cavalleiros; enviava graças ao Céo, e ratificava voto feito á Senhora das Açôres.

Gundezindo tambem se achava satisfeito com o procedimento d'Arthur, depois que soube, que elle practicára uma acção de nobre e generoso cavalheiro, deixando a irmã, para o ir procurar, com sacrificio de sua vida. Signal de que o seu coração não era insensivel aos movimentos de verdadeira amizade.

Por esta fórma, com geral contentamento, todos iam caminhando até chegarem á margem do rio, sem incidente algum perturbar a satisfação com que todos marchavam, senão quando d'este sitio viram, que da margem opposta, partia um homem a correr, que parecia fugir d'ellas; a cerração da noite não deixava conhecel-o, apesar de ser em pequena distancia; este acontecimento causou algum sobresalto á maior parte dos cavalleiros. Perguntaram uns aos outros, que homem seria aquelle? que fará por aqui? é espião, diziam uns; não póde ser, diziam outros.

n'esta fluctuação dos espiritos de todos, disse Arthur, eu tiro as duvidas, e logo picando o cavallo, partiu a galope, no alcance do homem, que já a este tempo se tinha perdido de vista, se bem que não podia ir muito distante.

Gundezindo, entendendo a causa, por que o homem appareceu e fugiu, disse aos seus camaradas, que iam perto d'elle. - É algum dos dois individuos, que acompanham Elvenda; não sabem nada do que se tem passado n'este dia historico; sentiram, lá onde estavam a vozeria, que temos feito; augmentou-se-lhes o terror; esconderam-se fóra da estrada, e destacaram aquelle homem para fazer um reconhecimento; e elle tanto que, pelas vozes, conheceu, que eram christãos, voou a desassuatar a senhora; é o mesmo que ainda agora ha pouco succedeu a Arthur, quando me ia procurar.

Tendo atravessado o rio, e trasposto a riba do norte, viram que um cavalleiro corria para elles. Era Arthur a dar parte da descoberta que tinha feito.

- Não tenham medo, gritou elle, era o guia que veio de observação.

-- Como está vossa irmã?

-- Se não vou tão depressa, morria de susto; estava quasi sem sentidos; mas logo que me ouviu, e viu, animou-se. Lá fica de joelhos a dar graças a Deus, pela nossa salvação. Pobre rapariga, continuou Arthur! já hoje por bastantes vezes se tem visto ás portas da morte; e acha-se muito fatigada já por causa da jornada, já por causa das afflicções que aquella alma hoje tem padecido; e Deus queira que sejam estes os ultimos trabalhos da sua vida.

Elvenda e a sua pequena comitiva, quando sentiram de longe a gritaria dos companheiros de Gundezindo, fugiram para um sitio baixo, que ahi no campo encontraram coberto de alto e espesso caniçal, não longe do caminho.

Foi n'este logar que Arthur, indo em seguimento do guia, encontrou sua irmã, cujo coração se achava agitado com mil pungentes cuidados; deitada sobre a relva com a cabega recostada no regalo da escrava. Sem esperança de tornar a ver seu irmão, silenciosa, e desfalecida, aguardava a morte; restava-lhe ainda uma unica, e ultima consolanção, era o conforto divino, era a misericordia de Deus que ella, com todos os signaes de fé ardente e fervorosa, diligenciava alcançar abraçada com um crucifixo, que trazia comsigo; é um extremo, mas consolador recurso que um christão encontra nas angustias da morte. Porém, depois que Arthur veio reanimar seu coração, ella foi conduzida á estrada, para ahi se reunir á gente de Gundezindo, que não tardou em chegar.

n'este encontro teve Elvenda um novo tormento a supportar. Já não era o terror de perder Arthur, nem de se derramar sangue christão, por sua causa; nada era d'isto: os soffrimentos aqui reservados para a infeliz dama, foram d'uma nova especie; eram impertinentes rasgos de grosseira civilidade. Todos os cavalleiros a um tempo disputavam, qual d'elles havia de fazer mais delicados cumprimentos á illustre resgatada; um torrente de perguntas, que succedeu imprudentemente ás grosseiras e desconcertadas expressões de veneração e respeito, aturdiu a consternada senhora. Seu espirito, no curto espaço de poucas horas tinha soffrido commoções terriveis; seu coração tinha passado successivamente de angustia em angustia; suas forças achavam-se attenuadas, e sem vigor para aturar tão impertinente cortejo; nem bastante coragem para despedir os seus obsequiadores, padeceu um novo, mas ligeiro desfalecimento, e talvez fingido para decentemente se vêr livre d'aquella roda oppressiva.

Os mais sensatos reconheceram, que ella carecia de prompto descanço e d'outros soccorros, que alli se não podiam alcançar. Gundezindo mandou aos cavalleiros, que em silencio marchassem na rectaguarda, que elle com Arthur, a escrava, e o guia, iriam na frente até á povoação, conduzindo Elvenda.

E logo que ella ouviu esta determinação, e que os cavalleiros começaram a desviar-se, levantou a cabeça, e principiou a fallar, pedindo que a levassem a povoado.

As ordens dadas por Gundezindo foram plenamente observadas.

XIII

A noite já ia muito adiantada, quando a comitiva se approximava á pequena povoação. Não se sabia que horas eram, mas os gallos, com o seu amiudado cantar, annunciavam, que a futura aurora não estava longe de apparecer.

Na aldêa havia um imperturbavel silencio, mas logo que a entraram, começaram a apparecer d'uma e outra parte, criados, conhecidos, e amigos dos cavalleiros d'esta facção. Todos os habitantes naturaes e estranhos sabiam da saida d'esta gente, mas ignoravam logar para onde, e para que fim; a apparição d'uma dama conduzida quasi em triumpho causou novidade na terra. Já não havia segredo, cada um contava ao seu amigo os grandes e imprevistos acontecimentos de poucas horas. Admirava-se a empreza d'Arthur, a arte de Gundezindo, e a coragem de todos. O povo accendia fogueiras pelas ruas, e amontoava-se á porta de Gundezindo para vêr Elvenda. Foi mister que este, por meio d'um breve discurso, em que expoz a precisão, que a nobre resgatada tinha de tepouso, pedisse ao ajunctamento que se dispersasse.

Adoptaram o quartel de Gundezindo para hospedagem d'Elvenda, por ser uma casa de familia com mais commodidades, que a d'Arthur. Aqui foram administrados todos os soccorros possiveis á nova hospeda; e já a luz do dia começava a brilhar, quando no quartel de Gundezindo os corpos se entregaram ao descanço, de que tanto necessitavam.

O somno foi longo e profundo, para todos os que tiveram parte no trabalho da empreza, e principalmente para Arthur, porque já por espaço d'alguns dias, apenas por momentos, gozára d'este repouso tão essencial á vida.

Gundezindo foi despertar o seu amigoe dizer-lhe -- que era necessario dar-se pressa a conduzir a irmã para casa da familia, logo que ella se achasse com forças para supportar a jornada; que estava proxima a renovação da guerra, cujo resultado era incerto; e que um revés punha em perigo a segurança d'esta senhora.

-- Sim, vou levantar-me, saber de minha irmã, e quando almoçarmos tractaremos d'esse importante negocio: mas já aqui te digo -- quero minha irmã em segurança; não seja ella causa de eu não tomar parte no primeiro assalto que se dér á cidade, logo depois de findarem as tréguas; o meu rancôr contra os mouros ainda não esfriou; por isso a mandarei com alguns dos meus criados de maior confiança, todos acompanhados por uma escolta de soldados que ahi temos, e ndo vou com ella, só para não faltar ao ataque; quero partilhar a gloria d'entrar em Coimbra.

Gundezindo retirou-se, respondendo -- adeus até logo.

Pouco tempo depois, Elvenda, seu irmão, e Gundezindo sentaram-se á mesa para almoçar, que por ser já a horas adiantadas serviu junctamente de jantar. Ahi se tractou da conducção d'aquella senhora, para casa de sua familia, com o que ella se mostrava muito contente, e disposta a partir quando quizessem. Concordaram em que -- na madrugada do seguinte dia, partissem todos trez, para as vizinhanças de Coimbra, com os criados e soldados, que d'ahi por diante haviam de acompanhar a dama e criada, até sua casa; que juncto d'aquella cidade, deviam dirigir-se ao acampamento do rei, e fazer de tudo sciente D. Sesnando, para que notando-se no exercito falta d'alguns dos soldados, com que Arthur tinha contribuido para esta guerra, se não julgasse deserção, o que só era uma urgencia de familia.

XIV

Em todo tempo, que durou esta pequena conferencia, a dama, bem contra sua vontade, deixava perceber um desgosto, que a atormentava. Seu irmão, tendo observado que ella não desenvolvia o regozijo, que era de esperar d'uma escrava, que de repente se acha restituida á liberdade, sentia uma profunda tristeza; e não deixava de fazer alguns juizos menos convenientes ao decoro de sua irmã, attribuindo aquelle desgosto a effeito de saudades. Esta lembrança tinha-lhe posto o espirito n'uma violenta convulsão; as alterações do resto, as frequentes pausas do seu discurso, e algumas palavras sera ligação, accusavam o transtorno das suas idêas, effeito da agitação do seu espirito. E se não fôra achar-se ahi Gundezindo, talvez que o seu genio precipitado o levasse a um rompimento de palavras atrevidas contra a innocente irmã.

Porém Gundezindo, que tinha perceb8do o desgosto d'esta, e a agitação d'aquelle, disse que, desejava fallar em segredo com Arthur; em consequencia, levantaram-se da mesa e saíram ambos para fóra de casa. Em logar acommodado Gundezindo interrogou por este modo o seu amigo:

-- Que é isto Arthur?! tu soffres, dize-me o que tens: observei, que tua irmã deixa apparecer uma tristeza, que é para estranhar; mas d'esta creio eu adivinhar a causa; porém a da tua dá-me que entender; convém pois que te declares comigo, e com tua irmã. Dize-me o que tens.

-- Será possivel que minha irmã aberrasse dos principios de moral, honra e nobreza, que bebeu com o leite de sua infancia, a ponto de se entregar em corpo e alma á posse d'algum maldicto sarraceno?! É mulher e basta, seus principios seguem a volubilidade da sua condição!!!

-- Socega, Arthur! deves fazer uma idêa mais digna de tua irmã: eu suppnho, que outro é o motivo da sua tristeza; e que vós ambos julgais temerariamente; porque ambos n'este ponto padeceis os effeitos, de graves equivocos; ambos andais ás apalpadellas no meio d'um cerrado nevoeiro! Se é a que penso; tua irmã acha-se combatida por dois sentimentos oppostos; a alegria pela sua restituição á liberdade; e o desgosto por uma offensa feita á sua probidade. É necessario, quanto antes, remover tudo que ahi ha desagradavel, para que ella fique do minada por um sentimento unico, a alegria. Repito ainda, tua irmã foi offendida na fibra mais delicada da sua sensibilidade -- nos seus principios moraes e religiosos. Não deve haver demora em lhe descobrir o mysterio da sua restituição, e depois, segundo creio, verás como o seu coração desassombrado de tristezas pulsa livremente, inundado com enchentes de alegria.

-- Explica-te Gundezindo, que não entendo o que dizes!

-- Sim, não tenhas dúvida; mas direi primeiro, que tens a intelligencia muito embotada pela allucinação! Pois não advertes, que tua irmã está persuadida, que a empreza da sua restauração foi expressamente projectada, e posta em obra por sua causa? e que tendo-lhe tu vendado os olhos, e tapado a bôca, empregaste uma violencia, que a offendeu vivamente, fazendo suppôr que ella offereceria resistencia a seu irmão, que, com risco da propria vida, a libertava? Não estás...

-- Basta, basta, já entendi. n'essa hypothese ella tem razão; mas falta agora passar da conjectura á realidade. Como havemos de sondar o verdadeiro sentimento de minha irmã, sem ferir a sua delicadeza, nem sermos illudidos?

- Eu encarrego-me da missão. Vou fallar com ella; e tu espera aqui até eu voltar.

A demora de Gundezindo foi breve, porque a dama desejosa de encontrar algum azo para descobrir o seu desgosto, declarou-se francamente com elle. Este, em poucas palavras lhe expoz todo o mysterio da empreza d'Arthur; isto é, que elle pensando raptar alguma dama sarracena de gerarchia superior, à maneira da represalia, resgatára sua irmã, a quem só reconheceu, quando, na estrada lhe descobriram o rosto.

Dicto isto, a dama, mostrou-se satisfeita; e Gundezindo partiu, logo, logo, a chamar Arthur que pensativo o esperava.

- Anda cá! vem abraçar tua irmã! bem dizia eu, ambos andaveis errados; agora é, que ella está verdadeiramente repleta de consolação; lá fica a rir e a saltar de contente, por causa da moura que apanhaste; foi um logro digno da immortalidade, ella reputa-o d'um merecimento impagavel.

Arthur correu a abraçar sua irmã, e a pedir-lhe mil perdões do mau juizo que tinha feito d'ella. E d'aqui em diante sempre se mostraram contentes um com o outro.

Elvenda referiu, que o tinha reconhecido desde que elle, pela primeira vez, apparecêra na ladeira do monte a cima da quinta; e que para ella se fazer conhecer descobríra o rosto, unico signal que então podia dar-lhe, sem causar suspeita ás pessoas que a acompanhavam; que desde logo entendeu, que elle traçára plano de a libertar; e que n'esta convicção projectára a frequencia d'aquelle sitio com mais assiduidade para facilitar a fuga; mas não podia evitar que as criadas andassem com ella, e que, quando no acto da surpreza, vira o modo violento, e inesperado, com que a tractaram, suspeitára, que pretendiam castigal-a, e não tinha podido ser superior a alguns movimentos de indignação contra Arthur, a quem suppunha auctor de tudo.

Passado este incidente, começaram todos a aprestar-se para a jornada, que na madrugada proxima, tinham de fazer até Coimbra.

Pelas nove horas da manhã seguinte, Gundezindo achava-se juncto do pavilhão real, e requeria fallar ao consul, D. Sesnando. Foi mandado entrar, e recebido com urbanidade pelo general. Gundezindo limitou-se aos termos precisos da participação; a força da sua modestia assim o aconselhavam, dizendo: -- que occurrencias extraordinarias e de grande transcendencia para uma familia nobre obrigavam a mandar a casa, com demora de poucos dias, alguns dos soldados, com que um filho d'essa familia tinha vindo voluntariamente engrossar o exercito christão; que vinha dar esta parte, a fim de evitar qualquer noticia adulterada, que porventura, depois corresse, quando se notasse falta de gente na companhia ás ordens d'aquelle cavalheiro. D. Sesnando quiz tomar miudos esclarecimentos, e perguntou:

- Quem é esse homem tão opulento, que á sua custa sustenta uma companhia de soldados? Muito desejára El-Rei conhecel-o. Como se chama elle?

-- O seu nome é Arthur.

D. Sesnando ao ouvir o nome d'Arthur, levantou-se, e correndo rapidamente a mão pela testa, disse transportado de alegria -- Arthur! oh, bem sei! Arthur, e Gundezindo, são nomes mais conhecidos n'esta guerra pela fama, do que pelas pessoas; já ninguem ignora no exercito os acontecimentos d'antehontem; os nomes d'estes dois guerreiros têm de occupar um logar distincto na historia d'esta guerra; ambos illustres pelo valor, mas Gundezindo ainda mais pelo seu talento militar. El-Rei compraz-se de abraçar estes intrepidos mancebos, já expediu ordem para virem á sua presença.

-- Pois, senhor, disse Gundezindo, elles estão perto d'aqui, e se vós quereis, eu vou chamal-os.

- Sim quero; chamae-os em quanto vou dar parte a El-Rei.

Ambos se apartaram; e d'ahi a poucos minutos Arthur, sua irmã, e Gundezindo achavam-se dentro da tenda real á espera de D. Sesnando; este não tardou; e á sua chegada deixou apparecer alguma surpreza, já por encontrar tambem uma senbora, entendendo logo, pela historia do rapto, ser a irmã d'Arthur; já por vêr que um dos cavalheiros era o mesmo, com quem alle poucos momentos antes tinha fallado, sem o conhecer.

Tanto que o conde entrou, disse-lhe Gundezindo: aqui tendes os dois soldados, a quem El-Rei quer fazer a honra de fallar. Esta é Elvenda (apontando para ella), antehontem resgatada pela arrojada ousadia d'Arthur, seu irmão.

D. Sesnando disse algumas palavras de cortezia e respeito a Elvenda, e abraçou, com transporte, Arthur e Gundezindo.

Ainda conde estava repetindo os abraços, quando veiu ordem para entrarem, para o aposento regio.

El-Rei esperava assentado n'uma cadeira singella collocada sobre um estrado feito de taboas.

Entraram todos, ajoelharam, beijaram a mão real. D. Fernando mandou-os logo levantar, dizendo que desejava, com interesse, saber a historia do rapto, e da resistencia feita aos mouros; que já lhe tinham contado tudo, mas por varios modos.

Gundezindo expoz ao rei um resumido quadro d'esses acontecimentos, sem dizer palavra em que se exaltasse a si proprio; e concluiu mostrando a necessidade, que havia em fazer conduzir Elvenda para casa de seus pais, sem que se esperasse o remate da guerra.

-- É bem entendido, disse o rei, mas por ora não; a rainha tem grande desejo de a vêr, e a sua historia prenderá por muito tempo a attenção de todos; quero pois que ella esteja na companhia da rainha, pelo menos até ao fim da guerra, que espero em Deus, será gloriosa para nós; mas quando o seu, resultido não corresponda ás nossas esperanças, a irmã d'Arthur seguirá a sorte da minha familia.

Todos agradeceram ao rei a estimação e interesse, que elle declarava por Elvenda, e mandou que esta fosse conduzida á presença da rainha; vieram damas, que, na companhia do consul, a guiaram para a tenda de D. Sancha.

D. Sesnando tendo deixado Elvenda voltou para juncto do rei e dos dois cavalheiros, onde gastaram algumas horas em respostas a perguntas, com que D. Fernando continuamente os instava.

Gundezindo era quem mais soffria e pêzo da enchente interrogativa, porque o acêrto e precisão do seu discurso prenderam desde o principio a attenção do rei e do conde; Arthur só respondia relativamente.

D. Fernando terminou esta audiencia por convidar os dois cavalheiros, para jantar com elle, e ficarem d'ahi por diante addidos aos do seu conselho, sem comtudo se eximirem do serviço militar.

XV

Poucos foram os dias, que os dois cavalheiros passaram no meio das folías da paz, recebendo os applausos e agradavel acceitação de toda a côrte de D. Fernando e dos commandantes mais distinctos e graduados do esercita christão; porque em breve começou o reboliço da guerra; as tréguas findaram, e as hostilidades principiavam de novo.

D. Fernando mandou com antecipação avisinhar aos muros da cidade todas as tropas, que se achavam acantonadas pelos arredores, para que, na mesma hora, que findasse o armisticio, todo o exercito estivesse prompto, ou a repellir qualquer sortida, ou a dar assalto.

Em resultado d'esta ordem Gundezindo e Arthur foram buscar a sua companhia. O rei, disse que gostaria de ver trabalhar este corpo, todo composto de soldados beirões, que, commandados por Arthur e seu amigo, já se tinham distinguido em outras batalhas com os mouros.

Satisfez-se a vontade real. A companhia chegou; D. Fernando e o conde foram assistir a um exercicio d'armas, feito á voz d'Arthur.

Anteriormente, e muito de proposito, tinha-se feito correr por todo o arraial, a noticia de que D. Fernando dava esta honrosa distincção á companhia d'Arthur, para que houvesse numerosa concorrencia de expectadores. Nao foi o gosto de vêr em parada uma tão diminuta fracção do exercito, quem despertou ao rei a lembrança d'esta medida; mas sim o desejo de approveitar uma occasião opportuna de, por meio d'um elogio feito a Arthur, Gundezindo, e á companhia commandada por estes, despertar os brios e valor aos demais capitães e soldados de todo exercito.

O rei, n'uma laconica e energica falla, lembrou que as armas sempre victoriosas do seu valeroso exercito, tinham ganhado aos mouros Cea, Viseu, Lamego, S. Martinho de Mouros, e outras mais povoações e castellos; que a sua tropa não sabia batalhar sem vencer; que os fortes muros e altas torres de Coimbra não eram mais difficeis de expugnar, do que os de Viseu e Lamego; que os defensores d'aquella cidade, eram, em grande parte, os fugitivos dos outros castellos já conquistados; que já tinham experimentado o valor do braço christão; e que se achavam descoroçoados.

-- «Ha poucos dias (continuava o rei), Gundezindo á frente de vinte e tantos cavalleiros fez retrogradar mais de trezentos soldados de cavallaria mourisca; este encontro mostrou o terror de que os inimigos se acham possuidos; a obstinada resistencia que elles têm offerecido nos muros da cidade, é mais um extremo desesperado, que esperança de vencer; eu confio em Deus e no vosso heroismo, que, dentro em poucos dias, as nossas bandeiras victoriosas hão de tremular sobre aquellas torres soberbas. Gundezindo e Arthur têm ganho um nome illustre nas guerras contra os infieis; ambos guerreiros distinctos pela sua intrepidez e valor, mas Gundezindo ainda mais distincto pelo seu talento militar; e, sem offensa dos meus velhos generaes, tenho muito a esperar d'estes dois mancebos...

«A Gundezindo encarrego o plano do primeiro assalto, que temos a dar; a este cavalheiro e a Arthur responsabiliso pelo desempenho d'elle. A companhia que estes dois valentes conduziram á guerra, dará, só de per si, o assalto, por aquella parte, que a Gundezindo parecer mais arriscada, para ahi alcançar maior gloria; Arthur dará um attaque em maior extensão á frente da terça parte da exercito, em quanto eu, com Gundezindo, acommetteremos por outro lado. Será muito do meu agrado saber que todos seguem, á porfia, o exemplo d'Arthur e de Gundezindo; e hei de ter muito em conta aquelles soldados, qae se extremarem, por feitos de valor, para galardoar cada um, segundo seu merecimento.»

Esta determinação tendente a excitar a coragem das tropas, e a manifestar o merecimento guerreiro d'Arthur e do seu amigo; podia tambem ser um elemento de intriga, contra estes dois mancebos, por causa da preferencia que o rei lhes dava, com despeito dos generaes antigos; mas a brevidade com que Gundezindo concertou o plano, que lhe foi incumbido, e a promptidão com que foi posto em obra, não deu tempo ao desenvolvimento dos odios.

Gundezindo e Arthur, atonitos pela inesperada cathegoria a que D. Fernando os elevava no meio do exercito mais forte e glorioso, que então havia na Hespanha, correram a beijar a mão do rei, em testemunho de agradecimento, dizendo Gundezindo por um excesso de modestia -- que lhe falleciam os conhecimentos necessarios para formar o plano, e para dirigir uma batalha em ponto grande, que elle estava acostumado a obedecer e não a mandar.

O rei não prestou attenção, e retirou-se dizendo-lhe: -- mas eu mando.

A esta resposta da magestade, teve Gundezindo de guardar silencio, e de obedecer. Foi pois traçar as primeiras linhas do plano, com subordinação aos pontos capitaes já indicados por D. Fernando.

Este trabalho não lhe consumiu muitas horas, nem lhe cançou o entendimento com difficeis e implicadas combinações; porque desde o momento, em que se pôz assedio, tinha elle entendido que a cidade não cairia facilmente seguindo-se o plano então adoptado.

Em obras d'esta natureza até mesmo alguns soldados patenteam sua opinião, e notam os defeitos dos generaes. Muitas vezes decidem sobre o merecimento da direcção, que se deu a uma batalha, mais pelo resultado, do que por intelligencia para avaliar as ordens do commandante.

Gundezindo, egualmente habil para os estratagemas, e para o commando de força descoberta, não desconhecendo o sagrado principio da humanidade, que sempre convém respeitar, a economia de sangue; e entendendo que uma cidade abastecida, e cujos defensores eram muitos e valentes, mais depressa havia de ser entrada por ardil, do que por força, procurou tramar plano do ataque de modo, que o seu pensamento fosse de harmonia com do rei, e que ambos se pozessem por obra.

Poucas horas depois que D. Fernando se retirou, já o novo general, á porta da tenda real, procurava uma conferencia com elle; admittido, e dada a permissão de fallar disse:

- Senhor, o plano está formado, segundo minha curta intelligencia, e venho respeitosamente sobmettel-o á vossa approvação.

- Pois já? disse o rei, isso foi andar muito depressa; em materias de tão alta importancia deve haver mais longa meditação.

- Senhor, nãa faço agora senão communicar o plano, que em segredo formei desde o primeiro assalto dado a esta cidade, logo depois que se estabeleceu o assedio. Então era eu subalterno, a minha intelligencia devia restringir-se á execução das ordens superiores; mas hoje, que por graça especial da vossa real munificeneia, me vejo revestido com auctotidade, venho expor-vos o pensamento que tive ha mezes.

- Deve estar bom, vamos a ouvil-o,

- «Senhor, o vosso exercito, sempre coroado com viçosos louros, tem sahido ganhar a gloria para si e uma esclarecida immortalidade para o seu rei; combate com um valor, que rivalisa com os exercitos mais distinctos do mundo; mas não póde negar-se, que tem encontrado resistencias dignas do seu valor; essas victorias, de que justamente vos gloriaes, têm sido compradas por subido prego. Rios de sangue e milhares de victimas, eis o que ellas têm custado. Alguns dos vossos generaes têm despresado os estratagemas da guerra, porque a gloria alcançada por meio d'elles, não é tão brilhante, como a que se ganha combatendo a força descoberta; para chegarem ao sublime, abusam do numero e coragem da sua tropa. Sempre me oppuz a este systema. Seguirei outro, do qual espero a vossa real approvação. Quero sim valor, mas combinado com a estrategia; porque esta, muitas vezes, dá a victoria, sem o sacrificio de muitas vidas. Espero alcançar um resultado mais feliz, na expugnação d'este alcançar temivel das forças musulmanas por meio d'um ardil industrioso, do que empregando somente a força das armas. O bom exito do meu plano carece de vinte e cinco a trinta cavalheiros valentes, vestidos e armados como os mouros, alguns dos quaes é indispensavel, que saibam fallar perfeitamente o arabe. Trez horas antes de anoitecer, em um dia por vós designado, deve o exercito mover-se para as muralhas de Coimbra, não com o fim d'um assalto geral, mas para a coberto d'elle se poderem collocar emboscadas nos logares mais opportunos, juncto a todas as portas da cidade. Escadas e machinas de guerra serão postas em movimento, e arrimadas aos muros, de modo que os defensores acreditem que a praça vai soffrer um ataque decisivo. Quando a noite estiver proxima a cair sobre nós, deve principiar o assalto mas frouxo da nossa parte, e demorado por algum tempo até que a noite se apresente de todo cerrada, para com o seu favor as emboscadas poderem ser estabelecidas. Então, dado o signal, começa a retirada com ordem; e os mouros, pensando que da nossa parte ha fraqueza, não deixarão de abrir alguma das portas, para ferir a rectaguarda do exercito christão.

«O empenho das embuscadas, seja qualquer que fôr a porta, que se abrir, é, não entrar por ella, porque essa façanha custaria rios de sangue, mas carregar sobre os mouros, de modo que uma grande parte d'elles fique prisioneira e dispersa.

«A felicidade d'esta manobra ha de abrir caminho para entrarmos em Coimbra, sem grande effusão de sangue. Os mouros, logo que se virem accommettidos pelas emboscadas, reconhecem, que a nossa retirada foi cavillosa, e sem esperar que se recolha toda a tropa, que saiu a perseguir a nossa rectaguarda, fecham immediatamente as portas da cidade, ficando muitos prisioneiros em nosso poder. E acontecendo assim, quando a noite já estiver muito adiantada, e á hora que parecer mais propria, devem os nossos cavalheiros, vestidos e armados á mourisca, na companhia dos que fallarem arabe, começar a fazer a sua obrigação.

«A essa hora vão-se approximando todos, mas a pouco e pouco, á porta da Genicoca, que por ser ahi a muralha menos alta, me parece mais opportuna para a empreza; os que fallarem mourisco, quando chegarem á porta, pedem á sentinella que dê noticia para os receberem, dizendo que são dos extraviados e prisioneiros, que poderam fugir aos christãos, que lhe deitem escadas com brevidade, ou que lhe abram a porta, porque ainda podem cair outra vez nas mãos dos inimigos.

«É de esperar que não haja demora, em apparecer alguma das auctoridades musulmanas na cortina da muralha a fazer reconhecimento e interrogações, para certificar-se da verdade. Aqui está o ponto mais difficil da grande empreza; e para se não dar alguma resposta que deite a perder todo o plano, é essencial, que o encarregado de fallar tenha intelligencia bastante para não dizer desacertos, no breve dialogo que ahi se travar.

«Ou seja subindo por escadas, ou entrando pela porta, alguns dos que fallarem a lingua mourisca devem ir na fronte louvando ao profeta, e maldizendo os christãos, para d'este modo mais facilmente desviarem de si qualquer suspeita. Os que não sabem a lingua musulmana guardam silencio. Assim devem ir entrando todos, se os mouros antes d'isso não conhecerem a falsidade. E ainda que a descubram, dez, ou doze valentes, que se introduzam na praça, podem sustentar um combate dos mouros em confusão, e apoderados do terror panico, até que uma porção de tropa escolhida, e já d'antemão preparada, e occulta ahi perto, acuda a um signal combinado, para entrar a todo o custo, ou pela porta, caso os sitiados commettam o erro de abril-a de noite, ou subindo por escadas; logo, todo o exercito, que, em armas aguarda resultado, segue esta porção de tropa. O resto, e providencias para os casos especiaes, eu responderei por ellas. Eis aqui, senhor, como eu espero entregar Coimbra ao vosso poder.

XVI

Este plano, ainda que parecesse complicado, e cujo bom exito estivesse dependente de muitas circumstancias, a falencia d'uma das quaes o deitava a perder, agradou ao rei; que tractou sem demora de procurar, por agentes de segredo e intelligentes, valorosos e intrepidos cavalheiros que quizessem arriscar-se a uma facção, d'onde nao havia probabilidade alguma de sair com vida.

Em pouco tempo se descobriram temerarios, que se ufanavam de ser encarregados d'esta gloriosa façanha.

No dia e hora determinada para a fingido assalto, foi dado à execução o plano tracado por Gundezindo. Tudo correspondeu aos desejos do seu auctor. Os suppostos mouros entraram todos na praça, não pela porta, nem pelas cortinas do muro, mas pelo postigo. Alguns d'elles levavam occultamente machados de cabo curto; e ainda não tinham entrado todos, quando os primeiros, divididos em dois pequenos corpos, formaram duas frentes; uns arrancando rapidamente das armas, começaram a matar os mouros que alli accorriam desprevenidos para felicitar seus camaradas; e os outros com os machados punhaes toda a diligencia em quebrar a porta. n'este meio tempo já o corpo dos christãos, que se achava escondido, vinha subindo a cortina do moro pelas escadas que levavam comsigo, e entrando pelo postigo; e logo apoz estes seguia-se exercito, que, á sua chegada, já encontrou destruida a porta da Genivoco .

Pela sua parte os mouros não estavam ociosos, mas a vantagem era visivelmente desigual; elles achavam-se desprevenidos e entregues á alegria d'uma victoria na verdade apparente, mas que julgavam real.

A noticia de que estavam a entrar os prisioneiros e extraviados, fugidos aos christãos, tinha atraído para a porta da Genicoca uma grande porção de soldados em alvoroço, para receber seus camaradas e felicital-os pelo seu regresso; mas, crendo abraçar seus companheiros d'armas, sentiam-se traspassados pelo ferro dos christãos. Ao contrario, a gente de D. Fernando, preparada para este arrojado accommettiimento, ainda que pouca ao principio, ganhava terreno, e cortava dos mouros sem piedade. E ao tempo que, dentro dos muros, os defensores conhecendo o seu engano, ae preparavam inutilmente para combater com regularidade, e repellir os invasores, estes affluiam em torrente, e dispunham-se logo em ordem; de maneira que, a confusão e o terror, de que a tropa sarracena deixou repentinamente apoderar-se, foram armas mais poderosas a favor do rei, do que o proprio valor do seu exercito.

CAPITULO III

A rainha convida Elvenda a ir com ella, para a côrte de Leão, com a promessa de lhe fazer um bom casamento; a dama não acceita o convite. Gundezindo, annuindo ás instancias do rei, promete-lhe que, depois de ir com Arthur entregar Elvenda á familia, ambos se appresetariam na côrte. Festejos do povo pela restituição d'El-venda. Esta dama, cedendo aos rogos das familias, que se reuniram em sua casa a congratulal-a, começa a narrando da sua historia; um erro na ordem narrativa a lança n'um angustioso trance; succumbindo a elle desfallece; soccorrida por um sacerdote, elle a conforta para continuar a sua narração.

XVII

Rendida Coimbra, e entregues ao conde D. Sesnando os negocios da paz e da guerra, o rei de Leão deixou a cidade, por cuja conquista engastára mais uma pedra preciosa na corôa de suas victorias.

Gundezindo, Arthur e sua irmã ambicionavam regressar ao seio de suas familias, e tambem da parte d'este ultimo havia a romaria a cumprir a Nossa Senhora dos Açôres, em descargo do seu voto.

A rainha havia tornado interesse por Elvenda, porque os extraordinarios acontecimentos historicos d'esta senhora, as suas virtudes e dotes naturaes prendiam a attenção de toda a gente; ella desejava dar-lhe uma prova da affeição, que lhe tinha, levando-a comsigo para a côrte de Leão, onde lhe era facil estabelecel-a vantajosamente por meio d'um casamento feliz, não obstante o desar involuntario da sua fama. Fez-lhe esta proposta; mas a dama, dominada por sentimentos religiosos, regeitou-a com vigor, dizendo -- que a pompa e magnificencia da côrte a não fascinavam; que o seu maior desejo era passar o resto de seus dias no retiro, dedicada tamsómente ao serviço de Deus, a quem tinha gravemente offendido; que fizera voto de fundar um mosteiro para viver retirada da sociedade tumultuosa do mundo, se Deus a libertasse do captiveiro, em que existira; que Deus, por sua infinita bondade, ouvira aquelle voto, e que ainda não tinha esfriado a devoção com que o fizera; que desejava cumprir um dever, em que achava consolação, e que por consciencia estava obrigada.

A rainha, não querendo obstar ás piedosas intenções d'Elvenda, louvou-lhe esta resolução, e offereceu-se para a coadjuvar em tudo.

O rei, pela sua parte, tendo reconhecido o valor d'Arthur, e o talento militar de Gundezindo, desejava approveitar o merecimento d'estes dois cavalheiros, para os seus planos de conquista; e com esta mira fez-lhes offerecimentos vantajosos, e instancias para os acceitarem; querendo que fossem na sua companhia para a côrte; lembrou-lhes os bem merecidos applausos e distincção, com que haviam de ser tractados e recebidos em toda a parte; os serviços que podiam prestar á religião e á patria; não lhe esquecendo os interesses pessoaes e de familia, que d'aqui podiam fluir.

Arthur, pelo seu genio fogoso, e no verdor dos annos, cubiçoso de vêr o mundo, e de illustrar mais o seu nome, queria desde logo, sem mais reflexão, abraçar a proposta do rei; mas detinha-se em manifestar abertamente o seu desejo, esperando com impaciencia a decisão de Gundezindo. Este, ou por naturalmente despido d'ambições, ou por mais instruido nas alternativas da fortuna e trabalhos da vida, preferindo o socego da aldêa ao esplendor da côrte, negou-se por algum tempo a prestar a sua annuencia a Fernando Magno, fazendo-lhe attenciosas ponderações; mas approvou que Arthur acceitasse a elevada consideração, a que a generosidade real o chamava. Porém, o rei, porque tinha mais homens de guerra, que de conselho, renovou as suas instancias em termos energicos a fim de persuadir Gundezindo a seguil-o. O cavalheiro envergonhando-se de offerecer por mais tempo resistencia ao empenho do rei, assentiu, pedindo licença de ir com Arthur acompanhar Elvenda a casa de seus pais, para depois o irem encontrar á cidade de Leão.

D. Fernando approvou com satisfação esta lembrança, e separaram-se, para, cada um pela sua parte, ir tractar da jornada.

XVIII

Alguns dos soldados pertencentes á companhia, com que Arthur viera auxiliar o exercito christão, saudosos de suas patrias e familias, ausentaram-se no dia immediato ao da expugnação de Coimbra; e levaram a noticia da proxima chegada d'Elvenda e d'aquelles dois cavalheiros.

O resgate d'esta nobre dama, as circumstancias, que revestiam um acontecimento; em tudo maravilhoso, e mais ainda, as sympathias que dia n'outro tempo ganhára dos povos pelas virtudes verdadeiramente evangelicas, que adornavam sua alma, desenvolveram no espirito dos habitantes um frenelico transporte d'alegria pela restituição do seu anjo tutellar.

Os moradores da terra natal d'Elvenda, e os das povoações visinhas fizeram causa commum, para á sua propria custa prepararem uma recepção solemne e magnifica á sua bemfeitora. Festejos sagrados e profanos, de tudo lançaram mão para manifestar regosijo público, pela feliz restituição da illustre dama.

As pessoas mais distinctas da sociedade acompanharam a familia d'Elvenda, para a ir esperar a algumas legoas de distancia; e o povo em massa foi recebel-a pouco além da povoação, derramado pela estrada, onde tinha levantado arcos de murta e louro entretecidos com flôres, por baixo dos quaes devia passar Elvenda e o seu acompanhamento.

Houve n'estes dois encontros scenas mais faceis para imaginar, do que para descrever.

No primeiro, a mãe e tias d'Elvenda, consumidas pelos pungentes desgostos da infamia e da saudade, abraçando uma sobrinha virtuosa, que suppunham eternamente perdida no abismo da deshonra e do peccado, interessam na sua causa as pessoas mais estranhas aos sentimentos do coração.

No segundo, os habitantes de muitas aldêas, vestidos de gala, reunidos por gratidão, esperavam com anciedade a sua protectora; tinham-se desprendido expontaneamente dos seus trabalhos domesticos, artisticos e agricolas, para se entregarem aos folguedos d'este dia solemne.

Quando Elvenda foi avistada, troaram os ares com as vozes de jubilo. Tinha-se de antemão ordenado, que o povo se estenderia em duas alas pelas margens da estrada, para dar logar ao transito d'El-venda e do seu cortejo; por baixo dos arcos; mas não pôde observar-se esta ordem; com a apparição da dama tudo se confundiu; todos queriam vel-a de perto, todos tinham alguma pergunta a fazer-lhe, e lisongearam-se de receber resposta; outros desejavam saber se ainda eram conhecidos; e d'esta maneira todo o mundo se apinhava em volta d'ella retardando-lhe o passo.

Elvenda queria fallar a cada pessoa singularmente, e até apear-se para melhor significar o apreço, que dava á explendida recepção, que o povo lhe fazia; mas a isto obstaram Gundezindo e Arthur, dizendo-lhe que désse um agradecimento a todos em geral, e que no outro dia, ou na occasião mais opportuna, receberia em casa todas as pessoas, que quizessem visital-a.

Então a dama dirigiu ao povo agrupado uma allocução na verdade curta, mas tão energica e tocante, que moveu o coração a todos; e a mesma Elvenda, e muitas pessoas deixaram cair algumas lagrimas de ternura. Logo que a dama concluiu o seu agradecimento, os dois cavalheiros Arthur e Gundezindo, fizeram por maneiras de cortezia, afastar o povo, para a comitiva continuar até casa.

Em quanto Elvenda, com as pessoas do seu acompanhamento, depois de terem antes de entrar em casa, ido á egreja da povoação dar graças ao Altissimo, entregavam o resto d'esse dia e a noite seguinte ao descanço da jornada, o povo consumia todo esse tempo na manifestação do seu regosijo. Taes são os effeitos que a virtude associada á nobreza produz sobre os povos!! É uma Sancta, diziam uns; Deus nos privou d'ella para nos castigar; mas ouviu nossas orações, teve misericordia de nós, restituindo-nos o seu anjo. D'ora em diante, diziam outros, a bondade e respeito d'Elvenda protegerá como antigamente os fracos contra a injusta opressão dos fortes; sua benefica influencia restabelecerá a paz entre algumas familias desavindas; suas palavras e conselhos cheios da uncção do Senhor, e sua mão caritativa repartirá soccorros salutares aos desgraçados, e elles nunca mais desfallecerão por mingoa d'alimento, nem corporal nem espiritual.

XIX

Havia um facto, que tinha dado origem aos infaustos successos d'Elvenda; era o seu arrebatamento pelos mouros; mas ignoravam-se todas as circumstancias, que acompanharam este facto, e todos os mais que d'aqui se continuaram, até que ella foi tirada do captiveiro por seu irmão. Eis aqui ainda uma serie de aventuras, que todos tinham empenho de ouvir narrar pela bôcca ingenua da propria Elvenda.

Ella resistiu por algum tempo ao empenho, que todos lhe manifestavam, procurando os pretextos que o seu juizo e sagacidade lhe suggeriam, para se poupar a um trabalho, que se lhe tornava repugnante; porque, se por um lado a sua consciencia a obrigava a uma narração fiel, por outro lado o pudor, a constrangiam a passar em silencio algumas particularidades que offendiam a sua honestidade. Mas por fim, não podendo por mais tempo supportar os rogos importunos de tantos hospedes, para os quaes ella se achava intimamente penhorada, condescendeu. E para evitar a repetição da sua narrativa procurou meio de todos a ficarem sabendo d'uma vez para sempre.

Em hora combinada, a todos reunidos n'uma sala da casa, disse Elvenda:

«Obrigada a ceder ao vosso empenho, terei de recordar tristes acontecimentos, que eu desejaria sepultar n'um abysmo de eterno esquecimento. Tenho de referil-os com exactidão, porque não sei faltar á verdade; relevae pois, se a sua recordação desprender de meus olhos lagrimas de amargura. Estou solteira, sou mãe, e o pai de meus fiihos é um mouro! se eu disser que elle é um christão encoberto, ninguem me acreditará; em fim não estou casada!!! Que infamia para mim? Que vergonha para meus parentes? e que hodoa para a geração futura?! Perdoae, senhores, ao meu pranto; eu succumbo ao pêso de tanta deshonra!!!»

Aqui Elvenda banhada em lagrimas soffocada em soluços afflictivos, consternava o coração dos circumstantes. Sua mãe, tias e mais senhoras, accorreram a confortal-a com pavalvras consoladoras, que pouco approveitaram. Um sacerdote que tambem ahi se achava, percebeu que escrupulos de consciencia, tinham arrojado a dama para uma situação difficil, d'onde ella já não podia sair sem se cobrir de vergonha, na presença d'um ajunctamento de tantas pessoas respeitaveis e virtuosas, porque inconsideradamente principiou, por onde convinha acabar, declarando um facto, que a intelligencia dos assistentes com facilidade subentendia; e então procurou tiral-a d'esta passagem enredada, conduzindo-a como pela mão da Theologia Moral, até metter no caminho plano e seguro da sua narrativa.

Animo, senhora! disse elle, não tendes que envergonhar-vos. Todos sabemos a sorte d'uma dama christã em poder de mouros. Confiamos bastante na firmeza da vossa virtude, para não suppormos, que da vossa parte houvesse culpabilidade. Foi uma violencia atroz, para a qual, accreditamos, que não offendestes a Deus, com que direito podem as creaturas julgar-se offendidas? E supposto que nos actos de coacção hovesse alguma fugitiva annuencia da vontade, quem poderia por um momento obstar á força da natureza?! Porém, se isto mesmo foi peccado, o que eu não creio, bem sabeis, que ha a Penitencia, e um Deus infinitamente misericordioso, para onde podeis recorrer, pelos sentimentos menos puros do vosso coração e da vossa consciencia. Bem sei, que alguem poderá dizer - mas a gloria da religião pedia um sacrificio; porque antes morrer do que peccar. Mas altos juizos de Deus! quem sabe, se a Providencia vos teria reservado para maiores prodigios? Se vos faltou o heroismo de martyr, não vos faltou a firmeza nas outras virtudes necessarias para a salvação. Concluirei dizendo que o tribunal da opinião pública ha de fazer-vos justiça; sois uma mulher, e todos sabemos calcular a distancia immensa, que se dá entre a liberdade e a escravidão. Portanto, animo, senhora, não sossobreis; continuae a vossa interessante narração, e lembrae-vos, que d'ora em diante sereis ainda mais estimada pelo publico, do que antes da vossa catastrophe. O vosso nome tornou-se historico, por um acontecimento notavel, e de veneração pelas vossas singulares aventuras e reconhecidas virtudes.

XX

O improvisado discurso produziu um resultado feliz, foi applaudido por toda a assemblêa, e o seu auctor recebeu abraços de approvação; sua doutrina pareceu conforme á intima convicção de todos, e principalmente á consciencia d'Elvenda.

Esta senhora, depois que o sacerdote acabou de fallar, achava-se já reanimada, e disposta a levar por diante a sua histqria sem obstaculo de qualquer segredo menos decoroso á sua honra, porque as palavras do padre lhe tinham inspirado uma coragem, de que ella até alli não se julgava digna. Com o sorriso nos labios dirigiu expressões de reconhecimento ao bom sacerdote, pela consolação que lhe deu, e pela habilidade com que soube livral-a da angustia em que se achava. E logo começou a sua historia por uma ordem mais regular do que da primeira vez.

CAPITULO IV

Rapto d'Elvenda; sua conducção para Coimbra; é lançada no pequeno harem do governador on rei mouro d'esta cidade; seu horror quando avistou o Eunuco; tentativa de seducção; medo que ella tem de que o rei a visite; por fim elle apparece-lhe; discurso cheio de energia que ella lhe faz. Ferocidade com que o Eunuco procurou vingar-se. Vigilancia sobre as mulheres do palacio; como ellas passam a vida. Dialogo entre Elvenda e a sua criada Aragunta, com relação a uma atrocidade practicada pelo Eunuco contra um mancebo sarraceno; a dama dá a razão, por que olhava para aquelle joven mouro; e em seguida revela o primeiro sentimento de ternura, que n'outro tempo tivera por certo cavalheiro. Ella, triumphante do poder e da seducção, consegue licença para retirar-se a uma das casas de campo, 'que o governador tinha juncto da cidade.

XXI

«Não vos incommodarei referindo o que já deveis saber, isto é; o dia, hora, e local, em que me achava, quando dois homens, que á primeira vista me pareciam christãos, mas que eram mouros, me surprehenderam, juncto á fonte do nosso jardim, para onde n'esse dia, como, em outros muitos, dilatei o meu innocente passeio até anoitecer. Sim, não consumirei tempo relatando estas outras miudezas, porque a criada, que me acompanhava, devia depois referir em casa exactamente as circumstancias d'este infausto acontecimento. Infeliz de mim por ter desattendido os seus avisos. Vamo-nos embora, vamo-nos embora, senhora, me dizia ella, como dominada por um sinistro presentimento, olhe que seus pais podem ralhar, por andarmos até tão tarde por fóra.

«Espera, minha tola, respondia eu, estamos perto de casa, aqui não ha que temer; e eu responderei pela demora.

«Não sei o que me prendia irresistivelmente a estes sitios tão encantadores, se era a poderosa mão do meu triste fado; ou se o prazer de gozar a frescura do logar, aroma das flôres, o brando e soporifero susmro da agua, que por multiplicados regatos se escapava por entre as pedrinhas; e outras mais delicias d'esse local encantador, que me figuravam preciosa a minha demora; é certo, que ahi me deixei esquecer um pouco mais do que costumava, sem nunca me vir á lembrança que esta breve detença traria sobre nós uma horrivel calamidade.

«No momento em que me levantava, para me dirigir a casa, eis que a criada me disse espavorida - Jesus, que ahi vem dois homens! quem são elles? -- Eu com o meu espirito mui socegado, respondilhe:

«-Ora, quem ha de ser! são criados que vêm aqui buscar agua.

«- Credo, sancto nome de Jesus! tenho medo! eu fujo. Ande, ande, senhora» vamos depressa.

«Foram estas as ultimas palavras, que me lembra ouvir-lhe.

«Os homens ao principio vinham vagorosamente, mas accelararam o passo, logo que biram, que eu me ausentava. De repente vejo a criada a fogir em altos gritos diante de mim; sinto um alfange sobre o meu pescoço, e quando começava a exalar um fortissimo grito, taperam-me a bôcca. n'este trance, de certo, perdi ossentidos; porque desde então, até que me achei n'uma cama, e vi uma mulher em pé diante de mim a perguntar-me o que eu precisava, não sei o que me aconteceu, e creio, que nunca o saberei.

«A casa e cama em que me achei, tudo era decente. A alvura do cabello, e um rosto já bastante avellado indicavam, que a mulher contava mais de sessenta annos; mas não obstante esta edade, ella era bem constituida, vigorosa, intelligente e asseada: Eu perguntava-lhe com frenesi - onde estou? quem me arrastou para aqui? - E com toda a energia do meu espirito chamava por meus pais, por Deus e pelos Sanctos, que me valessem.

«A mulher, sem nada responder, parecia uma estatua virada para mim. Apenas por leves movimentos de cabeça, e dos olhos, e de vez em quando encolhendo os hombros, deixava entrever, que se compadecia da minha sorte.

«Ainda que para mim já não era duvidoso, que estava captiva dos mouros, desejava comtudo saber muitas cousas, que me esclarecessem na escuridão do meu porvir. n'esta esperança, apertei a mulher com perguntas; mas ella sómente disse, e em voz alta: -- Senhora, não me é concedido responder ás vossas interrogações. Estou aqui para vos prestar tudo quanto fôr necessario para o vosso alimento, e commodidade. Isto mesmo é por pouco tempo.

«Ao soltar estas palavras passou com rapidez, e furtivamente a mão pelo pescoso; e com um ligeiro volver d'olhos e de cabeça, indicou-me a porta.

«Por estas gesticulações, entendi, que nos guardavam e; observavam muito de perto; e que ella estava ameaçada cpm a morte, se porventura satisfizesse a alguma das minhas perguntas.

«Tanto que a mulher acabou de dar-me aquella resposta, com a qual fechou a porta a todas as minhas esperianças, accrescentou logo: -- Não vos tireis d'aqui, nem se vos metta na cabeça que podeis fugir, eu volto já. Fiquei só; e fazei agora idêa qual seria o meu terror.

«Ella voltou com brevidade, trazendo-me uma grande tigela de caldo, um prato com carne, pão, etc. e disse-me, que bebesse e comesse. Foi com grande repugnancia que apenas encarei esse alimento. Não o quero, disse eu; não posso comer; será muito bom para quem não tiver a minha afflição.

«--Pois não podeis livrar-vos de comer e beber com vontade ou sem ella, replicoa a mulher; porque ha quem vos obrigue na presenta d'um alfange. Tomae, aqui tendes, comei; e poupae-vos a tamanha violencia e insulto. Tendes uma grande jornada a fazer, por caminho, onde se não encontra alimeto, que sirva para gente delicada; e o commandante da escolta, que vos conduz, terá de responder com a cabeça, se acaso vós morrerdes no caminho por falta d'alimento. Aconselho-vos pois, que deveis comer e beber até onde o estomago podér supportar.

«Cada vez o meu futuro se appresentava mais te nebroso; eu dava ais de profundo sentimento, e pedia a morte a Deus. No meio da minha consternação, pareceu-me, que era mais justo fazer um esforço contra a minha repugnancia, comendo alguma cousa, do que vêr juncto de mim algum mouro desapiedado, obrigando-me com o ferro apontado ao peito. Bebi pois algumas gotas do caldo, que me causaram uma nauzea de morte, e então a mulher deixou de instar comigo.

«Logo em seguida comecei a ouvir o estrepito de cavalgaduras, e vozes de homens, que não entendia. Jesus! que é aquillo? disse eu.

«São os mouros a preparar-se para nos irmos embora.

«-Dizei-rme para onde?

«-Não, minha senhora; não me permittem dizel-o. Posso, porém, fazer-vos saber, que temos uma longa e trabalhosa jornada; e que é necessario preparar-vos para ella com brevidade.

«Aqui tendes, accrescentou ella, roupa branca e de côr, de todas as qualidades proprias a uma senhora, escolhei a de que precisaes; não esquecendo um cerome, que vos acoberte do frio da noite. Aconselho-vos paciencia e conformidade christã, n'estes trabalhos, em que a virtude, e a religião de sempre têm que perder. Mas coragem, minha senhora! podereis ainda ser muito feliz; mesmo da escravidão podereis tirar vantagem para a vossa grande fortuna; pedi a Deus que vos não desampare. Sei que não ha de faltar cousa alguma para a vossa grandeza e representação, excepto a liberdade; podeis até vir a ser uma rainha, mas uma rainha escrava. A liberdade é uma palavra illusoria, mas lisongeira para todos aquelles que têm negação á obediencia das leis e dos bons costumes; e a escravidão é sempre uma idêa repugnante; ambas devem conter-se em limites razoaveis, de maneira que, nem a primeira seja licenciosa nem a segunda brutal. Muitas veses convém ceder parte da liberdade por gozos e commodidades, que de outra sorte se não alcançariam; a este respeito cada um discorre segundo a sua opinião; portanto a vossa fortuna será boa ou má conforme o apreço que daes á liberdade.

«Eu gostava de ouvir a mulher a fallar assim; e ella continuaria, se duas panoadas fortes na janella da casa; ende estavamos, dadas pela parte da fóra, a não viessem interromper.

«-- Depressa, senhora, depressa; aquelle signal é para nos irmos, disse ella.

«-- E para onde?

«- Não sei.

«E logo dando uma volta, pegou n'umas peças de roupa, chegou-se a mim, dizendo:- será bom levar algumas camisas de sobejo; olhe, aqui as tem, escolha; e ao mesmo tempo respondeu-me em segredo ao ouvido - para Coimbra; mas fingi que não sabeis.

«Até aqui já eu tinha conceituado a mulher de boa pessoa; mas depois d'esta dclaração senti-me ainda mais afeiçoada para com ella; porque as suas qualidades, pareciam superiores ás de qualquer mulher da plebe.

«Assim preparadas com precipitação e dispostas a sair, deu ella duas pancadas na janella, e logo da parte de fóra abriram a porta. A muiher tomou, na saída, logar diante de mim, e disse-me, que ficasse no degrau da entrada. A casa não tinha escada, e diante da porta vi muitos homens de turbante, dispostos em semi-circulo, a curva do qual era fronteira á porta, e os dois extremos fechavam na parade da casa, de modo que ninguem podia fugir por esta porta, sem quebrar a linha formada pelos mouros. Um d'elles, chegou-se a mim, abraçou-me pelas pernas, levantou-me ao ar, e poz-me em cima d'uma cavalgadura: os outros mouros foram-me seguindo, em roda. O mouro que me levou, tendo examinado o freio e aparelho da cavalgadura, a vêr se tudo estava seguro, entregou a redea á mulher, e esta deu-m'a á mão. Eis aqui uma delicadeza inexperada, que ao mesmo tempo, que me confundiu, tambem me animou. Pozeram a mulher a cavallo, e conduziram-na para o meu lado. Todos os mouros que ahi estavam, e mais alguns que sairam da mesma porta, d'onde eu e a mulher tinhamos saido, montaram a cavallo, e começaram a andar, indo eu e a mulher no meio d'esta escolta.

«n'esta ordem seguiram estradas por mim des conhecidas, até que appareceu a manhã, quando já tinhamos andado mais d'uma legua.

«Quanto mais a claridade se manifestava, tanto mais os mouros apressavam a marcha. Já eu por entre os fios do véu lhes via as caras, sem elles verem a minha; e notava, que elles tractavam mais de me guardar, do que de me analysar; d'onde conclui, que eu não era victima dedicada ao furor libinoso d'algum dos que me acompanhavam; mas sim, que altar mais elevado aguardava o sacrificio da minha honra.

«A mulher tinha-me dicto, que eu podia mandar e fazer o que quizesse; porque os guardas me obedeciam em tudo, menos em cousa que indicasse tentativa de fugir; porque então seria desattendida, e talvez mal tractada. Nunca me servi d'esta auctoridade; ao contrario, sempre me contive dentro dos estreitos limites de humilde captiva. Algumas vezes, porém, dizia eu, á minha companheira de jornada, que desejava descançar, porque me doia o corpo de andar por tao grande espaço a cavallo, movimento este, a que não estava habituada. Então ella dizia-o a um dos mouros, que fallava a nossa lingua; este dava signal aos outros, e paravam todos. Depois apeavam-nos a ambas, retiravam-se, e deixando-nos sósinhas por uma porção de tempo razoavel. Em algumas d'estas estancias, o lingua, dizia o quer que fosse ao ouvido da mulher.

«Eu não perdia a occasião d'estes curtos intervallos, para declarar o meu empenho de colher algum esclarecimento para saber dirigir-me na confusão do meu triste porvir; mas a minha astucia e esforços eram infructiferos. A boa da mulher tractando-me sempre com toda a urbanidade propria só de gente de educação fina, repellia habilmente as minhas interrogações, sem me offender. Tremia de me fallar em segredo, e nem o seu nome queria dizer-me. Tal seria a pena, em que ella incorreria!!

«Assim fomos continuando a nossa jornada, sem acontecimento memoravel até Coimbra. Quando passavamos por alguma povoação, os habitantes corriam a vêr os passageiros. Eu notava, que essa gente attraida pela curiosidade, lançava sobre mim vistas de compaixão; e pareceu-me que algumas vezes, d'esses ajunctamentos do povo, partiam estas, e outras similhantes vozes - Coitadinha! - Aquella vai furtada! - Deus te guarda!

«Ainda dormimos outra noite no caminho, antes de chegar á cidade. Foi n'uma pequena aldêa, onde entrámos, quando já tinham decorrido mais de duas horas depois do sol posto. Estatam á espera de nós, e fui ahi tractada com as mesmas attenções e resguardo, como na primeira noite.

«Como o coração humano não póde viver em afflição perfmanente, e eu via, que a sentença da minha desgraça estava dada sem remedio, gradualmente me predispunha com resignação para soffrer as calamidades que a minha má estrella fizesse chover sobre mim, as quaes nem eu conhecia, nem as sabia calcular.

«Sentia-me muito debilitada, sem comtudo ter fome; figurava-se-me, que todos os membros do meu corpo se tinham desconjunctado; era effeito da jornada. A mulher serviu-me um caldo de galinha, que me soube melhor que o da noite antecedente; tomei um banho, comi alguma cousa, e dormi um ligeiro somno; mas somno mais por força de necessidade, que por vontade. Tinha-se dicto, quando ahi chegámos, que haviamos de sair na seguinte madrugada antes de amanhecer.

«Eu precisava mais tempo de descanço do que aquelle, que se toma em occasião de fuga. Meu espirito achava-se n'uma especie de excitação, que podia conduzir a um delirio, contava cair no poder d'um senhor brutal, que quizesse dispôr de mim como d'uma ignobil escrava, sem consideração ao meu nascimento e educação. De que serve a opulencia e representação, onde não ha virtude? de horror! perguntava eu, e respondua a mim propria.

«Minhas idêas achavam-se inteiramente desordenadas; no meio da variada enchente de sentimentos que a um tempo se despenhava sobre meu espirito, reconhecia a necessidade que havia de prescrever as regras capitaes, por onde me dirigisse no poder do despota, a quem indubitavelmente me iam entregar. Eu tinha percebido, por conjecturas, que mais um dia de jornada nos poria ás portas de Coimbra; e tinha o presentimento de que ahi estava o meu tyranno. Elevar-me, no captiveiro, a cima das mulheres vulgares, e conservar a minha honra até ao sacrificio da vida, eram os principios solidos, sobre os quaes eu desejava estabelecer algumas regras do meu futuro procadimento, que eu havia de jurar cumprir religiosamente, excepto quando o imperio de circumstancias imprevistas, mandassem o contrario. A segunda parte da empreza, era, eu o confesso, na verdade atrevida, para uma senhora, que além da fraqueza natural do sexo, se achava destituida dos auxilios e experiencia do mundo, para a levar a cabo. Mas confiava em Deus que confortasse a minha razão e alumiasse o meu entendimento para saber governar-me em negocio tão arriscado. A minha audacia podia abater-me até á abjecção, mas tambem podia fazer-me subir á classe d'heroina. De qualquer d'estes extremos eu me daria por satisfeita, comtanto que os meus principos triumphassem.

«Com fim de alcançar tempo de formular o plano da minha vida futura, procurei o pretexto de incommodo corporal; disse á criada, que desejava me concedessem mais algumas horas para descançar,porque me achava incapaz de continuar a jornada. Ella dirigiu-se á porta, abriu-a um pouco, e ahi fallou baixo com alguem, suppuz ser com o lingua. Depois de pouco tempo de demora, fechou a porta, e voltou, dizendo-me: -- que o comandante da escolta não podia conceder mais de quatro horas de atrazo no itinerario que levava. Bem, respondi eu, é pouco, mas serve para ter mais tempo de recobrar algumas forças perdidas com o trabalho de tão custosa e longa jornada, agora desejo ficar em silencio: por essas quatro horas. E eu, disse a mulher, tambem as approveito em dormir; elles que nos acordem quando quizerem.

«Fiz altas diligencias por fixar meu pensamento, tão agitado, como a leve penna entregue a um furação de vento; no silencio da noite, dei tractos á razão, para ordenar minhas idêas completamente transtornadas; meus esforços eram inuteis; carecia de pessoa de confidencia e instrucção, que me ajudasse a encaminhar o meu entendimento; nem a tinha, nem só por mim, podia saír d'este labyrintho. O presente e futuro appresentavam-me um aspecto medonho. Assim, perdida já a esperança de aproveitar, como desejava, essas quatro horas, que me tinham dado, e sentindo meu espirito de todo enfraquecido com a lucta de tantos e tão pungentes cuidados; com o pensamento errante pelas regiões da incerteza, e como esquecendo-me de mim mesma, deixei-me insensivelmente adormecer.

«Eu dormia profundamente, quando a mulher me chamou. Este somno, ainda que de pouco tempo, tinha restituido algum socego ao meu espirito; e então achava-me habilitada a dispôr das minhas faculdades inteltectuaes; mas a pressa da partida não me deixava um momento para me entregar a reflexões combinadas.

«Era perto da noite, quando chegámos a Coimbra. A escolta parou defronte d'um palacio, logo adiante do castello. O commandante foi o primeiro, que se apeou, e em seguida todos os mais; elle entrou, e depois de pequena demora voltou; disse o quer que foi ao lingua, e este com a cabega fez um movimento de intelligencia para a mulher que me tinha acompanhado. Enão ella, pegando-me pela mão, accrescentou - Vamos, menina.

«Ambas subimos a escada, e notei que a este tempo, ella olhou para mim, e quasi imperceptivelmente me dava este conselho -Senhora! porte-se com valor christão; não se esqueça das promessas que fez no Baptismo; não deslustre as suas virtudes.

«-- Conheces-me?

«- Só por fama.

«-- Podeis dar noticias a meus pais?

«-- Não, porque essa noticia importaria a perda da minha vida.

«-- Por escripto anonymo se tu sabes escr...

«Aqui me deu ella signal para me calar, porque já chegavamos ao topo da escada, em cujo patamar nos esperavam algumas mulheres, qua pelos vestidos pareciam mouras, ás quaes a minha companheira de jornada me entregou para ser confundida na obscuridade d'um pequeno serralho.

XXII

«Agora deve o quadro da minha vida ser encarado por outra face. Até aqui a narração tem sido esteril, e seria insupportavel, se este nobre ajunctamento, pela grande estimação que me consagra, não imaginasse encontrar luz nas trevas e copiosas fontes n'um deserto mirrado.

«Tenho crucificado a vossa paciencia com uma larga commemoração do meu transito até Coimbra, e dos pungentes cuidados, que, por todo esse tempo, attribularam meu espirito, àcêrca d'um futuro, que a imaginação de todos os lados, me pintava horrivel. E vós ides vêr, em breve, que os factos vieram comprovar, que as minhas apprehensões eram justas.

«Vós sabeis quaes eram os meus conhecimentos; porque não ignoraes os curtos limites da instrucção, que em nossos tempos póde dar-se a uma senhora da minha qualidade. Os rudimentos da doutrina christã, ler e escrever, e alguns factos da Biblia, e Evangelhos, que o nosso padre capellão, homem de mais virtude, que talento, vertia para linguagem; e tambem algumas historias de nações antigas, contadas sem critica nos circulos familiares, eis a grande riqueza dos meus conhecimentos. Tudo isto, reunido á firmeza de meus principios, uma coragem, não sei, se diga, superior ao meu sexo, e uma inabalavel confiança em Deus, constituiam o rico arsenal, d'onde eu esperava tirar as armas necessarias para repellir o poderoso inimigo, com quem ia entrar em guerra aberta. Nem eu sabia combater com outras.

«Inexperiente dos trabalhos e maldades do mundo, sem esta eschola indispensavel a todas as pessoas, que têm de girar n'um circulo de vida complicada; parecia, que ninguem era mais inhabil do que eu, para tomar uma resolucção. Sempre obediente á vontade de meus pais, não tinha adquirido o habito de me decidir, sem os consultar; não, porque me julgasse incapaz para deliberar, mas porque fazia timbre de cumprir strictamente um dever, que a religião, e o direito impõem a todos os filhos. Porfiavamos algumas vezes; elles em me prodigalisar auctoridade e liberdade; e eu, em não querer usar d'estas concessões, que muito me penhoravam, porque eram indubitavelmente uma prova da confiança, que depositavam em mim.

«Porém, esta respeitosa submissão, consagrada a meus pais, estava muito longe da ser por mim tributada a outra alguma pessoa, em quem eu não reconhecesse identicos direitos. A minha indole, nascimento e educação, repelliam-me irresistivelmente de practicar qualquer acto, sem estar primeiro convencida que devia practical-o. Humildade cega ao imperio da lei, e obstinação de morte contra a arbitrariedade: tal era a divisa com que eu entrava; em guerra com o rei, ou governador de Coimbra, em quem eu não reconhecia direito algum para me gozar, visto que violentamente me entregaram ao seu poder.

«Como já disse, escaceou-me o tempo, de que precisava para distinctamente apurar, e firmar algumas regras do meu comportamento futuro; mas de terminei reduzil-as todas a uma só -- dirigir as minhas acções segundo as occurrencias, salvando sempre a inteireza dos meus principios -- religiao e honra.

«As mulheres, que me esperavam ao cimo da escada, e que ahi me receberam, eram escfavas destinadas ao meu serviço. Tractaram-me com todo o respeito, practicando para comigo toda a especie de humilhações, proprias do seu character. Conduziram-me a uma camera ricamente mobilada, onde me promptificaram todas as cousas de que póde carecer uma senhora que chega d'uma longa e penosa jornada.

«Notei que todas se expressavam em linguagem de christãos soffrivelmente intelligivel, sendo bem patente a differença accidental de dialectos; d'onde inferi que talvez uma sorte similhante á minha, as levava para alli de varias e longinquas partes. Este inesperado encontro não deixou de communicar-me um vislumbre de consolação, porque sendo socias nos mesmos infortunios, tambem o deveriamos ser nos mesmos sentimetitos e interesses. A desgraça é sempre mais acerba quando soffrida solitariamente; e a seu tempo direi que a minha esperança, não saiu de todo errada.

«n'esta occasião abstive-me de promover dialogos entre mim e ellas, e procurei por mostrar o semblante tao afflito e triste, como o estava o meu coração. Com este ar, estando proxima a deitar-me, perguntei, e com voz, de caso pensado, altiva, -- se alguma d'ellas dormia ao pé de mim, -- porque não queria ficar alli desamparada ; -- responderam -- que dormiam nos quartos ahi contiguos, que accudiam a qualquer signal que eu desse, e que não me assustasse.

«Deitei-me cheia de terror e desconfiança, temendo alguma traicção; porque as narrações, que muitas vezes tinha ouvido, de sucessos entre mouros, e entre christãos, me persuadiam, que o meu terror não era indiscreto.

«Passou-se esta noite, sem cousa alguma perturbar o meu repouso, excepto a agitacão do meu espirito, que na verdade era violenta, e não me deixou conciliar somno, senão perto da madrugada; mas depressa fugiu elle, porque uma algaravia entoada com toda a força dos pulmões, despertou todas as fibras da minha sensibilidade. n'esta occasião percebi, que as escravas rosnavam uma resa para mim inintelligivel. Chamei por ellas, e em continente se me appresentou uma, á qual perguntei:

«- Que estrepitosa lengalenga veio agora estrugir meus ouvidos?

«-- Que diz, miuha senhora? ... lengalenga!! que blasfemia!!...

«-- Não, rapariga!... não quero offender os sentimentos de ninguem. Blasfemia!!... Sancto Deus!!... longe de mim tal pensamento. Mas dize-me o que foi, sem mais questão.

«-- Foi Muezzyn , que do Minareh cantou Ezan, chamando os fieis á oração.

«- Estou sattsfeita. Deixa-me em silencio.

«Fazei agora idêa em que estado ficaria a minha alma. Pareceu que um suor frio me repassou os ossos. Não entendi as palavras arabes, que ella me disse; mas pelos escarceos que fez, e resposta que deu, conclui, que estas miseraveis tinham arrenegado a crença de seus pais, e que eu, esperando encontrar n'ellas algum lenitivo para a minha desgraça, devia acautelar-me de lhes confiar qualquer segredo, e principalmente sobre materia religiosa.

«A historia das minhas aventuras tem-se tornado mais longa do que eu esperava; sinto-me assás fatigada, minhas forças não comportam uma narração tao extensa. Confio na vossa bondade para não accreditar, que seja tanta a ambição de saber os meus segredos, que não consintaes, que eu por hoje largue o fio da mitifaa narrativa, para ámanhã a uma hora conveniente, o atar e seguir de novo.»

Todos de boa vontade consentiram na proposta d'Elvenda; em seguida entretiveram o tempo fazendo varias reflexões, cada um a seu modo, sobre alguns dos factos que acabavam de ouvir.

XXIII

No dia seguinte, quando o sol declinando para o seu occaso, tinha enfraquecido o ardor de seus raios, e uma viração consoladora convidava a sair de casa, a todos junctos na varanda, cingida por arvoves altas e frondosas, Elvenda continuou a dar relação das suas aventuras, dizendo:

«O dia immediato ao da minha entrada em Coimbra passaria sem acontecimentos dignos de commemoração, além d'essa rapida altereação a respeito do Ezan, se não fôra um grande rebate que soffreu o meu espirito, causado por um leve incidente, que, parecendo talvez a outras pessoas indigno de attenção, para mim era de grande importancia, não só por causa do terror que me dominava, mas ainda mais porque veio, d'um modo indirecto, levantar uma ponta ao denso, viu que cobria o meu futuro.

«Depois de conhecer que as ignobeis escravas tinham apostatado a religião de seus pais, que eu suppunha ser a christã determinei fazer um violencia ao meu character natural, assumindo um ar altivo para com ellas, porque assim poderia repellir mais facilmente qualquer acto menos respeitoso d'elles para comigo. Talvez me engane, mas tenho para mim como principio certo, que sem iuniformidade na fé religiosa, todas as obras entra os dissidentes, feitas sob o nome de caridade e amizade, são edificios sem base.

«Na tarde d'esse dia, achando-me recostada sobre um sofá, entregue aos violentos cuidados que me opprimiam, e as escravas ahi occupadas no trabalho de costura, senti abrir de repente a porta da camara, levantei os olhos e soltei um grito tão forte, que se ouviu em todo o palacio e vizinhanças. Era um mouro horrivelmente feio, e de aspecto mais severo do que a morte; parou á entrada, fixou os olhos em mim, e ausentou-se ajustando a porta sobre si. As escravas riram-se, e procuraram com interesse restituir o socego ao meu espirito. Com impaciencia e indignação perguntei-lhes quem era aquelle insolente, que se atrevia a entrar o asylo d'uma senhora, sem ella mandar. Mas as maldictas, comprimindo violentamente um ataque de riso, que me conduzia á desconfiança, procuravam responder-me, porém, divididas entre a repressão da gargalhada e a seriedade, deixaram-me, alguns momentos, creio, contra sua vontade, em suspensão, fazendo o triste papel de tola. Então uma d'ellas abriu outra vez a mesma porta, olhou com pressa para um e outro lado; e recolhendo-se ajustou-a e disse - já se foi. Mas que monstro é aquelle? instei eu. Tem razão, minha senhora: é um monstro practicado pela arte; é o maior ultrage que o ciume dos homens tem feito á natureza. Antes de dizer alguma cousa d'essa figura horrenda, devemos pedir perdão por não respondermos á vossa pergunta com a presteza e gravidade, que pede o respeito que todas nós vos devemos consagrar; o nosso riso era motivado pelo vosso terror panico; aquelle homem, não é homem; mas tambem não é mulher; não tem sexo; por isso vós, sem o saber, definistes bem cbamando-lhe monstro. É o official de maior importancia deste palacio, assim como é tambem o mais abominavel ao sexo feminino; o seu ministerio principal é vigiar as esposas e escravas do rei; é o maior flagello que todas as mulheres d'este palacio têm contra si. A estes homens mutilados dá-se o nome generico de Eunucos; o que nos vale, é haver aqui só este, e Deus nos livre de lhe chegar aos ouvidos, que nós escarneciamos d'elle. Quando elle voltar não vos atterreis com a sua presença, nem façaes caso d'elle.

«Ouvi com attenção as noticias dadas pela escrava, porque desejava colher grande cópia de idêas, que eu considerava como material, em que o meu entendimento logo depois tinha de laborar, a fim de encontrar um meio de me subtrair dignamente á tempestade em que, d'hora para hora, e de instante para instante, eu esperava e temia vêr-me envolvida.

«No dia seguinte, esta mesma escrava procurou, com muita subtileza, sondar o meu animo a respeito d'uma visita com que o governador pretendia obsequiar-me; não lhe esquecendo artificio algum para me dispôr a fazer-lhe uma recepção favoravel.

«Com este intuito a moça arteira começou a fazer uma apparatosa descripção das riquezas do governador, do seu pleno poder, e extenso dominio; tudo, ao ouvil-a, era grande, magestoso e admiravel. Depois passou a descrever os recreios, importancia e representação que gozavam as mulberes d'aquelle potentado; não lhe esquecendo, todavia, lembrar alguns dissabores, que de tempos a tempos, vinham azedar os prazeres da sua vida; mas isto era, dizia ella, por não saberem appreciar os beneficios que o Céu, tão liberalmente, tinha feito chover sobre ellas.

«Tomou tambem á sua conta a minha pessoa; uma figura direita, bem proporcionada, e o andar desembaraçado, tudo foi dexteramente coberto de elogios; pois os meus olhos! esses, na expressão da escrava, por serem grandes, negros e ternos tinham, no gosto musulmano, um merecimento impagavel; disse, que o governador não podia deixar de ficar perdido por mim, que elle queria ver-me, e que ambos haviamos de ser felizes.

«A escrava continuaria por diante com os seus ridiculos elogios, se eu, por um modo muito alheio do que ella esperava, lhe não pozéra termo.

«Quando ella principiou a fallar, de bom grado, a ouvia, por julgar que a sua exposição não passava d'uma innocente esperteza de que usam as criadas, quando querem ganhar a affeição de suas amas; mas logo que gradualmente fui observando a malicia da sua rhetorica, a minha indignação, similhante aos vapôres que se elevam até formar a nuvem tenebrosa, d'onde o relampago fusila com horrivel detonação cresceu a tal ponto; que toda a força da minha paciencia não era bastante para compriil-a; seguia-se uma explosão inevitavel. Foge de mim, mulher infame! (disse eu, com voz forte, repellindo-a com vigor para longe) não me appareças mais diante dos olhos! Vai-te, e dize ao teu senhor, que eu sei morrer, mas não sei prostituir, nem a minha honra, nem a minha dignidade.

«A escrava, confundida, caiu a meus, pés, implorando mil perdões, expondo lavada em lagrimas, que bem sabia, que as suas palavras deviam ter offendido uma senhora de sentimentos elevados e de nascimento illustre; mas, que ella, pela natureza da sua infeliz condição se achava collocada entre o tormento e o lenocinio; que se ella se negasse a representar este indigno papel, preferindo o castigo, não deixava elle de ser desempenhado por outra pessoa; que...

«Quando ella ainda continuava a fallar, abriram, da parte de fora, a porta do nosso aposento, e eu, com modo de encontrar a vista com alguma figura que me fizesse estremecer, não deitei os olhos para lá. De parte a parte proferiram-se palavras, que não entendi; não soube se era o Eunuco, se algum de de seus empregados; mas é certo, que foi um homem, que fallou da porta ás escravas, e chamando a que elle veio encontrar prostrada a meus pés, conduzia-a comsigo. D'ahi a pouco tempo veio outra substituil-a, e nunca mais tornei a vêr aquella. Coitada! Ainda hoje sinto remorsos, quando me recordo de que talvez fosse causa para lhe applicarem algum castigo. Depois, meditando com socego de espirito sobre a justificação que ella me appresentou; pareceu-me, que eu poderia ter conseguido o mesmo fim, sem de modo algum a prejudicar. A preoccupação mostrou-me um crime, onde só havia um dever, sem dúvida violento e criminoso, mas cuja imputação devia attribuir-se menos á desgraçada rapariga, do que ao despota, que a constrangia a practical-o.

«Todos estes insignificantes acontecimentos eram avisos eloquentes, de que estava proxima a soar a hora extrema, em que a mão do despotismo me havia de collocar entre dois abysimos, e desapiedadamente me havia de arremeçar para um d'elles; ou apostatar, ao menos no externo, da minha religião, e perfazer o numero das quatro mulheres que o governador costumava ter, mas que, n'esta conjunção, se achava só com trez, porque tinha repudiado uma; ou, negando-me a accertar este partido, descer á classe mais infima das escravas mnsulmanas. Esta condição, ainda que abjecta aos olhos da vaidade humana, era abundante de recursos consoladores; na pureza da minha religião, e na conservação da minha honra encontrava eu a maior de todas as felicidades, -- o socego da minha consciencia.

«Com esta firme resolução, principiei logo a descer voluntariamente, antes que, por força me obrigassem. Nunca mais consenti que as escravas me fizessem serviço algum, antes eu procurava muitas vezes ajudal-as no trabalho de costura. Ellas admiraram esta extraordinaria transformação. Minha senhora, diziam ellas, nós temos obrigação de vos obedecer cegamente em tudo; e se não vos daes por contente comnosco, dizei-o com franqueza e liberdade, porque de prompto virão outras occupar o nosso logar.

«-Não é que pensaes. Estou contente comvosco; não consinto, porém, que alguma de vós tome a confiança de me fallar como a outra vossa companheira, que se foi embora; e desejo que se faça constar ao rei, que antes quero ser a mais infima das suas escravas, do que sua mulher; e que se elle não tem coração; totalmente fechado aos principios de justiça e de generosidade, que mande restituir-me a casa de meus pais, d'onde com sacrilega transgressão das leis divinas e humanas fui roubada.

«-Sim, minha senbora. O rei será sciente, pela bôcca do Eunuco, da primeira parte da vossa proposta, não obstante ella offender gravemente o orgulho musulmano; mas a segunda é inutil; porque além de ser essa restitução, aqui o primeiro exemplo, ao menos que eu saiba, traria comsigo resulta dos desagradaveis, a offensa á pessoa que vos mandou de presente, como uma das damas christãs mais bella e nobre, que aqui tem entrado. Consta que o rei anda ancioso por se encontrar comvosco.

«-Não quero ouvir palavra a este respeito; não pensem que sou alguma louca, repillo as adulações, e abomino os aduladores. Se alguma vez tiver a desgraça de me encontrar com vosso amo, elle saberá que tenho a coragem de martyr para lhe dizer tudo quanto eu julgar necessario e justo.

«--Não tardará muito, minha senbora, que elle vos faça essa honra.

«--Honra!... a mim nenhuma; e rejeito com desprezo toda a que, qualquer auctoridade mourisca pretenda fazer-me.

«Puz termo a esta pequena altercação; porque, se ella fosse por diante, poderia causar-me alguns dissabores.

«Passaram-se em seguida muitos dias senti acontecimento digno de recordação ; nem o horrendo Eunuco tornou a mostrar-se no meu aposento, nem alguma das escravas se attreveu mais a fallar-me do governador. Não sei dizer se este silencio e abandono era effeito d'um plano concertado entre todos, esperando-se, que o tempo e circumstancias modificariam meu genio; e que eu, identificando-me com os costumes, e perdendo a pouco e pouco as saudades da familia, me tornaria accessivel ás pretenções sinistras do governador: ou se este por saber da minha repugnancia, determinaria entregar-me ao desprezo, suppondo, que por este meio tomava de mim alguma vingança. Fosse pelo que fosse, é certo, que por muito tempo não me perturbaram; e, se não foram as consumidoras saudades, e o receio d'algum attentado violento contra mim, diria, que este captiveiro não era dos mais desgraçados.

«Não obstante entender eu, d'este silencio, que a tormenta que me havia de assaltar, estava demorada, mas não extincta, bem contra o meu assentado proposito, determinei desencantar-me para chegar algumas vezes à janella, d'onde se gozava a magnifica perspectiva do Mondego, e um dilatado horisonte, rico de vistas deliciosas e variadas. Quando chegava a esta janella, sentia um mysterioso lenitivo aos meus desgostos; minha alma parecia dilatar-se pelas regiões do espaço e acompanhar o pensamento a todos os pontos, para onde eu lançava os olhos; por uma especie de extasis divino esquecia-me dos cuidados pungentes que tão cruelmente me atormentavam. Este quadro encantador communicava ás minhas faculdades intellectuaes uma força superior à expressão; o meu pensamento funccionava com mais energia; e eu julgava-me capaz de formar qualquer plano complicado para uma empreza altrevida, assim eu tivesse com quem relacionar oa meus pensamentos.

«As escravas, tendo observado que eu gostava

de me chegar á janella, gastaram alguns dias para me persuadir, com razões expostas a geito, a ir passear ao jardim, que não obstante ser pequeno, diziam ellas, não deixava de offerecer variedades e distracção, optimo remedio para curar saudades e tristeza. Bem convencida estava eu dos effeitos do passeio; nem as criadas com as suas razões me davam idêa nova; e grande era o desejo, que eu tinha de dar algum desafogo aos meus profundos desgostos; pareceu-me não dever perder esta occasião; e demorei a minha annuencia aos rogos d'ellas, não por teima obcecada, nem por leve movimento de soberba, mas para não affastar nem um ponto do meu systema de comportamento ultimamente adoptado, sem que por motivos urgentes fosse compellida a essa discrepancia; esta leve distracção, em que eu não via nada reprehensivel, era para mim uma necessidade. Cedendo, emfim, ao impulso de meus desejos inoffensivos, mas apparentemente figurando um acto de condescedencia para com as escravas, minhas criadas, porque ellas tambem tinham desejo de ir, ou fingiam têl-o, disse-lhes:

«-- Sim, iremos passear ao jardim, mas ha de ser em occasião, em que por lá se nao encontrem homens, que me causem desconfiança ou terror; nem outras damas, porque não quero adquirir relações.

«-- Sim, minha senhora, tudo se fará á medida dos vossos desejos.

«Pelo decurso de muitos dias, punhamos os nossos véus, desciamos uma escáda de caracol, e logo nos achavamos no jardim, onde nunca encontrei homens, excepto aJgum jornaleiro, nem mesmo alguma das damas, que eu ás vezes, da minha janella por ahi tinha visto a passear. Pelos acontecimentos posteriores inferi, que as criadas deram parte d'esta minha resolução a algum dos seus superiores; porque ninguem apparecia no jardim á hora do meu recreio.

«Esqueceu-me referir, em seu devido logar, que passados dois ou trez dias, depois da minha chegada a Coimbra, enviou-me o governador, diziam as portadoras, um rico presente de vestidos, véus, etc. etc. que eu rejeitei de modo que não offendesse, dizendo:- que muito me penhorava aquella generosa offerta, mas que tinha aprendido por educação a não acceitar mimos dados por homens, sem consentimento de meus pais; e que posto agora a força da minha infelicidade me privava de lh'a pedir, os seus preceitos conservavam-se gravados com letras de fogo na minha memoria; e que não podia deixar de cumpril-os sem incorrer n'um crime que por toda a vida atormentaria a minha consciencia. -- As portadoras foram-se, o presente ficou, mas nunca lhe toquei.

«E agora, n'um dia em que eu me recolhia do jardim, entrou no meu quarto uma dama bem figurada, de maneiras graves, passo magestoso, acompanhada de muitas criadas, chegou-se a mim e disse:

«-- Aqui tendes, acceitae este presente; é o signal do amor, que o rei vos consagra, e de que está proximo a celebrar-se o vesso consorcio com elle. Sabei, que este senhor não soffre recusas.

«-Não acceito, minha senhora; e, confiada em Deus, corajosa aguardo os resultados.

«-- Cumpri a minha missão, o presente fica; não sou portadora de insultos, a responsabilidade é vossa.

«E, dizendo isto, ausentou-se. O presente conservou-se em cima do tremó, onde ella o pôz, por eu lhe não querer pegar.

«Fazei agora idêa da agitação que este facto veio causar ao meu espirito, vendo approximar-se a tempestade, que já de tão longe me fazia tremer. Ella caminhava com passos accellerados; o Céu escurecia-se; o trovão rebentava sobre minha cabeça; a hora extrema soava, e um raio do despotismo enfurecido vinha fulminar tudo quanto eu tinha de mais precioso -- a virtude! O governador invade o meu aposento, as escravas retiram-se á sua chegada, e deixam-me só com elle, o qual em o nosso idioma soffrivelmente intelligivel, me fallou, pouco mais ou menos, n'estes termos:

«-- Estimavel Elvenda! sei que és uma rapariga illustre, dotada de sentimentos ainda superiores á tua classe. Quando entraste n'este palacio devias ser encorporada em o numero das minhas escravas mais distinctas; mas depois que tive noticia da tua genealogia, e do teu raro merecimento, prestei attenção ás circumstancias da tua situação, e tomei parte na tua infelicidade e desgostos. Fiz idêa que uma tempestade de commoções variadas tem agitado horrivelmente o teu coração; e que a tua repentina e forçada mudança do centro da tua familia para o meu poder, devia, sem dúvida, produzir no teu espirito, affecções de morte; e a lembrança de que a mão do teu máu fado, te entregou ao arbitrio d'uma auctoridade poderosa e aborrecida aos christãos; pelo dominio, politica e religião, tem por certo aggravado ainda mais as tuas afflições e desconfianças. Sim, Elvenda! todas estas considerações compassivas enterneceram o meu coração, e fizeram peso na balança do teu destino; e eu determinei suavisar a tua sorte exaltando-te á sublime classe de minha esposa. Espero encontrar em ti um luminoso auxilio nos meus cuidados e trabalhos governativos; e tu gozarás de todas as considerações devidas ao talento, á virtude e ao dominio. Sei castigar a ingratidão e o crime; mas tambem sei perdoar com generosidade; e se não fôra respeito que consagro ao teu merecimento, as tuas desattenções aos meus favores teriam excitado a minha indignação, e uma victima teria sido conduzida ao sacrificio. Mas não! socega o teu espirito; tenho poder de vida e de morte sobre os meus subditos, porém, nunca descerei á baixeza de fazer tirar arbitrariamente a vida a qualquer mulher; pediria sim, a cabeça de mil rivaes, se os tivéra, mas de mulheres!... pobres creaturas! sexo desgraçado!... ha muitos meios de as castigar sem morte; é infamia detestavel, a d'um homem, que da fragilidade tira esta vingança desesperada.

«Para um negocio, que é todo em teu proveito, desisti de pessoas intermedias; determinei vir eu propria tractal-o. É a primeira vez, que viajo pelo caminho d'amor; attende de mais a mais a este sacrificio. Dá-me resposta decisiva; espero que ella, estabelecendo a harmonia entre as nossas vontades, consolidará a futura felicidade para nós ambos.

«-- Senhor! disse eu, pelo vesso discurso faço idêa da nobreza dos vossos sentimentos; vejo, que possuis todos os dotes, que constituem um cavalheiro digno do respeitavel ministerio, que desempenhaes na sociedade; as vossas expressões fizeram mudar completamente a opinião antecipada, que eu tinha formado a vosso respeito. Confesso-me desde já penhorada pelas vossas attenções delicadas e compassivas para com esta infeliz creatura; e peço-vos a graça de esquecer qualquer resentimento contra mim. Reconheço e respeito o absolutismo do vosso poder; sei que, sem remedio, sou um ente do vosso dominio, e portanto exposta aos alvitres da vossa imperiosa vontade. Mas as vossas palavras revellaram alguns principios sublimes, que prestam um apoio firme á fluctuação do meu pensamento, e transmittem ao meu espirito uma segurança, que até hoje não esperava encontrar; é o sentimento de piedade que á maneira de estrella em tenebrosa noite, brilha magestosa no centro do vosso poder discricionario, fixando com interesse a admiração dos povos.

«O vosso discurso impressionou-me profundamente; o edificio das minhas idêas acha-se derruido; tenho de fazer uma reforma radical; careço de tempo para o meditar e coordenar, de modo que por fim possa offerecer-vos em resposta, um todo que não seja indigno, nem de vós, nem de mim. Não ha cousa mais facil do que dizer sim, ou não; mas o modo, porque se diz, póde ter uma influencia grave sobre os resultados.

«Talvez, que a minha humilde petição offenda a vossa nobre delicadeza, porque o generoso offerecimento que me fazeis, é de tal magnitude, que merece ser abraçado sem reflexão; mas porque me ensinaram a não deliberar sem pensar, permitti, que eu faça um livre uso d'esta preciosa faculdade.

«-- Que tempo queres para responder?

«-- Dois oi trez dias.

«- Bem. Condedo-os, e passados elles aqui voltarei.

«Eis aqui, senhores, como passou tranquillo e sem offensa, um transe, a que sempre tive mais horror, do que á propria morte. A preoccupação póde algumas vezes conduzir a resultados funestos. Nunca eu como bem sabeis, tinha tido relações com mouros, e achava-me prevenida, porque sempre ouvi fallar d'elles com detestação. O odio antecipado por herança e educação reduplicava ainda o supplicio dos meus cuidados, a tal ponto, que nunca julguei ficar victoriosa d'este encontro pavoroso.

«Os mouros, diga-se a yerdade, não obstante nossos adversos pelo mahometismo, que influe poderosamente na sua politica, e, pondo tambem de parte o seu character voluvel, o seu orgulho demente e insupportavel, e o dominio de nossos vencedores, origem principal da aversão que geralmente se lhes tem, tido póde negar-se, que elles, de quando em quando: mostram idêas de nobreza, d'honra e de religião, tudo a seu modo, e segundo a indole das suas instituições sociaes. Mas para lhes exoitar estes sentimentos, e colher d'elles os desejados productos a favor de estrangeiros, é preciso ter grande habilidade.

«Em quanta decorria o peremptorio tempo da minha resposta, dei tratos ao entendimento para descobrir o meio de segurar a palavra, e opiniões do mouro, manifestadas na allocução que elle me tinha feito; e de o mover á piedade para comigo, unica taboa de salvação que o dedo da Providencia me apontava n'este procelloso mar de perigos. Mas de que instrumentos deveria servir-me? Nem eu sabia, nem tinha quem me ensinasse; corri á ventura, expondo sem ordem as razões que me suggerisse o meu sentimento, e ao mesmo tempo recheando-os com muitas lisonjas ao mouro, por julgar que por meio d'ellas lhe prenderia a attenção para elle me ouvir com algum interesse.

«Aqui tendes vós, com poucas variantes o que eu lhe disse, quando elle chegou.

«-- Nobre Musulmano! Poderei eu fallar em plena liberdade na vossa respeitavel presença, ou não?

«-- Podeis.

«-- Então attendei. O alto conceito que faço das vossas virtudes, me inspiram a coragem de que precisa uma pobre mulher para fallar perante um principe da terra, com aquella franqueza e liberdade propria, de quem toma por fundamento a razão e a justiça. Conhecedora da minha pequenez, e do menosprezo do sexo feminino entra os mahometanos, eu deveria, talvez, no vosso pensar condescender, céga e muda, com os vossos desejos. Sim, tambem eu digo, que outra qualquer dama, educada nos principios do islamismo, devia, cheia de gratidão, acceitar o vosso generoso offerecimento, e penetrada de piedade agradecer ao Altissimo por ter inspirado ao vosso coração magnanimo, uma obra tão louvavel. Mas eu, oh grão rei! estou em circumtancias especiaes; tenho marcado no mappa da minha razão as grandes distancias que nos separam; instruida na doutrina do Evangelho, faço do Matrimonio uma idêa tao sublime, como a do auctor d'este sacramento, e vós não lhe daes consideração alguma; a razão da nossa discordancia encontra-se ha lei religiosa, que cada um de nós professa; o vossó propheta sujeitou a lei aos homens, e o nosso Christo sujeitou os homens á lei. Este procurou reprimir a desmoralisação, e aquelle procurou dirigil-a. Se Deus na sua insondavel sabedoria entendesse que para bem da sociedade o homem precisava mais, do que uma mulher, Adão teria tido muitas Evas; mas não consta, que Deus lhe désse mais do que uma. Entre os christãos, a unidade é uma das partes essenciaes do Matrimonio, e o seu vinculo principal é o amor; pela primeira condição a mulher é equiparada ao marido, goza dos mesmos direitos, das mesmas prerogativas que elle, são, deixae-me assim dizer, dois entes refundidos n'um só; e pela segunda, como o homem não póde legitimamente gozar mais do que uma mulher, deposita na sua esposa toda a confianga e amor.

«E pela legislação mahometana, é tudo ás avessas dos christãos; ahi os homens são tudo, e as mulheres são nada, ou apenas objectos d'apetites desordenados; Mahomet, legislando a polygamia, attendeu mais a lisongear a imaginação arabe, do que a promover a felicidade das familias. É um estado altamente repugnante com a razão, é a corôa da corrupção dos costumes primitivos.

«Os meus principios religiosos, o meu Credo, é outro obstaculo invencivel ao nosso ajunctamento matrimonial, Então accreditaes vós, que eu seja tão vil que abjure a religião sancta de meus pais, em que fui educada, para me casar? Não, poderoso senbor, antes a morte. Accreditae que, tenho desprezado casamentos vantajosos, de mancebos da minha religião, que me foram propostos por meus pais. Nao quero dizer, com isto, que não estou sujeita a paixões; não, longe de mim tal impostura, tenho coração e sensibilidade, como as outras mulheres; e ainda que a virtude, a educação, e o juizo reprimam, e regulem a força da natureza, não extinguem o foco das paixões. Tambem não quero dizer, que tenho negação absoluta para o Matrimonio, mas nunca serei levada a elle senão pelo amor, e nunca deixarei dominar-me por este delicado sentimento, sem primeiro a razão me convencer de que existem todas as probabilidades para uma felicidade futura; e até hoje ainda me não vi precisada a dar este trabalho ao meu raciocinio, porque esses cavalheiros que me pediram para esposa, tractaram primeiro de sondar a vontade de meus pais do que a minha. Consideravam-me authomato; esta idêa ignobil mereceu a rejeição.

«Não ambiciono o explendor, o dominio, nem as grandezas transitorias do mundo; esses apparatos magnificos não têm encantos para mim, antes os detesto; e não se pense, que por meio d'elles alguem possa fascinar o meu entendimento. Desejo viver n'uma virtuosa humildade, longe dos attractivos dos palacios, e das grandes e esplendidas companhias; porque me parece, que só, no retiro, encontro o meio mais seguro de salvar a minha alma. Diga-se muito embora, que a mania dominante do seculo, que o fanatismo, ou a loucura, imperam em mim a ponto de me fazerem perder o bom gesto; mas digam o que quizerem, estão no seu direito; cada um classifica as acções alheias conforme a sua intelligencia, idêas, e opiniões; póde a força externa violentar os actos do corpo, mas os do entendimento, não ha tyranno, que possa mettel-os a ferros.

«Vós não deveis estranhar, que eu falle tão desabridamente na vossa presença; é um desafogo da minha alma afflicta ; é uma faculdade permittida pela illustrada politica musulmana; vós consentis aos christãos a liberdade do culto religioso; seria pois uma contradicção irrisoria o vedar-lhe a licença de expôr as suas idêas, e de practicar actos conformes á sua fé.

«Confiada n'estes principios da vossa politica, na concordata celebrada por um dos vossos antecessores no governo de Coimbra com os christãos do seu dominio ; e em especial, na vossa palavra, atrevo-me a lembrar-vos, que, longe de ser vossa escrava, apenas sou pequeno ramo d'uma casa vossa tributaria; e que se hoje me vejo vossa hospeda forçada, e sujeita ao vesso dominio pessoal, é por effeito d'uma execranda offensa de todas as leis divinas e humanas. Não fui prisioneira de guerra, nem vendida em almoeda. Um rapto cobarde, e violento me entregou ao vosso poder; sob a protecção das leis e costumes antigos, eu vivia contente, e gozava, em paz, d'uma felicidade impagavel na companhia de meus extremosos e caros pais. Admitto que uma louca, por suggestões amorosas, deserte da sociedade paternal, para se entregar á descripção do preverso, que a seduzio; mas aqui não ha violencia, ha sómente a persuasão, e essa desgraçada não tem de que se queixar, senão da sua leviandade; porque a fuga da sua parte foi um acto livre; mas a acção que se practicou para comigo foi atroz, não póde haver direito algum que a auctorise.

«Todavia no meio da minha calamidade, a Divina Providencia não me abandonou de todo, tive uma boa fortuna; foi a de vir cair, não em poder d'um impudente furioso, mas sim no vosso, que sabeis respeitar as leis da honestidade e decoro, tão justamente devido a uma dama, sem outra alguma protecção mais do que a das vossas virtudes e auctoridade.

«Posto que os actos públicos da vossa governança, demandem uma obediencia em grande parte maquinal, por serem arbitrarios; estou certa de que respeitaes os principios que Deus, como em codigo universal, gravou no coração de todos os homens. Sei, que não fechaes os ouvidos ao grito da razão; e que vossa alma é adornada com os preciosos dotes, da moderando, e da prudencia. Que maior protector poderei desejar do que o rei de Coimbra? Da minha desgraça recorro ás vossas virtudes, e se a minha petição fôr attendida, triumpharei da adversidade. E não podereis vós fazer-me restituir aos braços de meus pais, agora sepultados n'um abysmo de luto e de saudade, amaldiçoando o despotismo dos seus oppressores? ou excede a generosidade e nobreza d'esta acção as balizas da vossa... ah!... perdoae o extremo da minha dôr!... vós tambem sois pai, ponde este negocio na balança da vossa equidade, que o fiel decidirá a meu favor. Se os christãos sujeitassem os povos mahometanos ao seu dominio e..

«-- Basta, não quero ouvir mais; Elvenda, as tuas razões commovem; mas deixam vêr, que o teu coração não está noviço; nas paixões amorosas; eu por certo tenho um rival.

«-Não, não...

«Quando eu principiava a responder a esta audaz temeridade, e moura ausentou-se com semblante irado, e eu fiquei duvidosa sobre a impressão que as minhas razões lhe tinham feito. Ora me parecia que elle sentira desejos de me valer; como cavalheiro honrado; ora se me figurava, reffeito da preoccupação, que elle, indignado por não apanhar a victima pela alliciação, recerreria a algum acto violento. No meio d'esta vacillação, encontrava um ponto firme, em que a minha consciencia descançava com prazer: era a consolação de ter exposto ao mouro, sem o offender, os fundamentos da minha justiça; porque assim ficava elle sabendo que, mesmo a respeito de intelligencia, tambem eu me avantajava ás mulheres ordinarias; e até em attenção a esta circumstancia, eu poderia conseguir, da parte d'elle, alguma deferencia para comigo; e, conseguida ella, talvez que elle, quando tractasse comigo, ou de cousa que me fosse relativa, fizesse mais uso da razão, que do seu habitual e imtpetuoso instincto; pois é de saber, que os tyrannos têm mais exercicio de auctoridade que de raciocinio.

«Em fim, resultado das minhas razões não podia ser peor, do que seria o do meu silencio; e restou-me a consolação de dar este desafogo á minha alma na presença do déspota. E, se elle não se retirasse tão depressa, ainda tinha mais para ouvir; mas empregou a arte dos homena affeitos á crueldade, que é voltar as costas á compaixão.

«Pelos dias seguintes continuei a levar a vida, como até alli, indo algumas vezes distrair-me ao jardim; porém nunca sem as criadas me convidarem. Mas n'um dia...oh... que horror... ainda hoje, quando me lembra, tremo e o sangue se me congella de medo. Oh... que medonho quadro de feroz crueldade e tyranno fez repentinamente appresentar diante de meus olhos desappercebidos!!!...

«Eu passeava na frente das criadas, por uma das ruas do jardim, no fim da qual cruzava outra, ambas ellas marginadas com arbustos de recreio um pouco superiores a altura d'um homem regular; mas tão espessos, que por entre elles não se via d'uma rua para a outra. Quando eu desembocava da primeira, para entrar na segunda rua, eis que de chofre um algoz, saindo d'esta, me appresenta aos olhos, a cabeça d'um homem recentemente cortada. Elle com uma das mãos em alto a sustentava agarrada pelos cabellos; e com a outra empunhava virado para o chão, o alfange homicida. O sangue corria a jorros da garganta troncada, prova de que a victima tinha soffrido a morte n'aquelle instante. Dei um espantoso grito, virei a cara para o lado, apertei-a entre as mãos e o véu, e deitei logo a fugir para casa; e tão céga e precipitada corria, que por duas vezes caí. As criadas ajudavam-me e confortavam-me. Coitadas! queriam dar-me o que não tinham. A palidez dos seus rostos, e a balbuciação das suas palavras accusavam o terror de que se achavam penetradas.

«Esta crueldade veio afogar todas as esperanças, que desde poucos dias antes principiaram a nascer em meu coração. Renovou-se com toda a vivacidade a agitando do meu espirito. Sobreveio-me febre; por causa da qual fiquei do cama alguns dias, quasi totalmente privada de somno e de alimento; d'este, por falta de vontade, e d'aquelle, porque o espectaculo terrifico me impressionára de maneira, qae durante o silencio da noite, logo que cerrasse os olhos, a imaginação representava-me, ao vivo, o executor mettendo-me á cara a cabeça da victima vertendo sangue. Se eu fôra crendeira, julgaria que a alma do miseravel executado exigia de mim algum suffragio ou satisfação d'alguma promessa não cumprida.

«Mas o que mais me confundia, era o mysterio que eu encontrava n'um acontecimento tão barbaro; o meu juizo, apesar de grandes esforços, entrando mesmo na esphera das crueldades, e estabelecendo ahi todas os hypotheses possiveis, não pôde atinar com a causa d'esta. É impossivel calcular as arbitrariedades d'um despota; mas não é difficil explical-as, depois de practicadas, porque sempre se lhe descobre uma causa; aqui, porém, toda a agudeza do meu entendimento se embotava em indagações inuteis. Talvez que ouvindo as criadas eu conseguisse penetrar o mysterio; mas querendo evitar conferencias com ellas, pareceu-me preferivel esperar occasião em que o proprio mouro se declarasse.

«Quando já, pelos confortos, que me prestava a religião, e pelo decurso do tempo que me tinha debilitado a força das impressões, eu me julgava melhor do abalo mortal, que tinha soffrido, mandei participar ao governador, que desejava que elle désse audiencia á sua hospeda Elvenda.

«Respondeu que -- importantes negocios do Estado lhe absorviam todo o tempo; e que os impertinentes interesses das damas infieis , de que os amigos lhe faziam presente, era práctica fazel-os esperar, para serem tractados por divertimento nas horas de recreio; mas que, por honrosa excepção, se eu quizesse abster-me; de o incommodar, que passasse para recado a pretenção, que eu tinha para audiencia.

«D'aqui inferi, que os meus argumentos, se não tinham persuadido o mouro, pelo menos tinham-no convencido; e que elle, não tendo fundamentos para os destruir legitimamente, empregava a força da sua auctoridade absoluta, para me deprimir e atormentar, por meio de insultos e desprezo. O quu é ainda um recurso favorito dos tyrannos, quando vêem a sua vontade contrariada com argumentos irrespondiveis. Podia elle á força fazer o que a sua maldade lhe dictasse; mas as minhas razões permaneciam tão firmes como os principios d'eterna justiça, d'onde partiam.

«Encarreguei pois, da seguinte mensagem, a criada, que me parecia de maior intelligencia;

«-- Faz saber ao rei, que peçto licença para lhe recordar: -- que elle tem o poder, e que lhe falta a humanidade; que eu tenho a humanidade, e que me falta poder; elle causa terror, e eu causo com paixão. Confiada nas suas virtudes; de meu contendor, que elle era, o escolhi para meu juiz, invoquei-o como pai no meu desamparo, e não se tendo elle de negado a acceitar a escolha, fez crear esperanças de que a sentença sairia conforme á minha justa pretenção. Porém, que, infeliz de mim!... elle não só demora a decisão, mas ainda, para mais aggravar a minha dor, procura atormentar-me com espectaculos de crueldade! Se esses factos, tão oppostos ao procedimento d'um cavalheiro, como aos sentimentos de religião e de humanidade, são aviso da sorte, que me espera, que não accredite poder tirar gloria da infamia; porém se o desejo de vingar-se d'uma innocente, sem recursos e sem protecção, o allucinam a ponto de commetter algum attentado contra a minha existencia, eu tenho a energia dos meus pensamentos; antes quero ser victima d'esse transporte de ignobil vingança, do que, em assumto d'alta importancia, annuir á vontade alheia com sacrificio da minha convicção. Pois o que é a morte? É um monstro, um golpe, um mal, ou será um bem? Seja ella o que fôr, é certo que todos estremecem d'ella sem a vêr; e é tambem certo, que ella é a linha de divisão entre a existencia e a não existencia. Sei que irremediavelmente hei de experimentar a acção do seu poder; a minha vida ha de ter um termo, E se hei de esperar esse momento extremo no ieito de obsoura tranquillidade, prefiro experimental-o agora; n'esta epocha da minha vida, em que, fortalecida por um espirito superior que me anima, estou deliberada a dar um exemplo de heroismo a todas as damas christãs, que de futuro tiverem urna desgraça similhante á minha. Não haverá consolação egual á de meus pais, quando tarde ou cedo, tiverem a noticia de que sua filha teve o valor de supportar gloriosa os horrores do supplicio, para salvar as virtudes da educação!!!

«Dize ainda ao rei, que elle já tem idêa da minha condição, e da firmeza do meu character; e que se as minhas razões, as minhas súpplicas, e innocencia lhe não têm despertado movimentos de compaixão, para me fazer entregar a meus pais; e que se elle decretou que eu viva na classe de sua escrava, que estou resignada a cumprir essa injusta sentença; mas que se lembre que não commetti crime algum, para me darem o tormento, mil vezes mais repugnante do que a morte, offertando-me as cabeças palpitantes dos padecentes condemnados ao patibulo.

«Vai, refere tudo isto a teu amo.

«-- Não, minha senhora!!... eu, não sou capaz de dar conta do recado.

-- Porque?

«-- Porque! essa perganta é muito boa!!... porque nem o entendo, nem me fica na cabeça. Escrava, escrava, minha senhora, escrava. Eu vou pedir pergaminho e tinteiro.

«Tive de escrever este extenso arrazoado, em que fiz algumas correcções accideataes, e remetti-o ao mouro.

«Á volta da criada perguntei-lhe se tinha entregado a carta ao rei; respondeu, que não era permittido ás escravas chegar onde elle estava; mas que a déra a um criado do Eunuco, para este, depois de a ler, a appresentar ao rei, seu senhor. Que este era o estilo, que todos os negocios relativos ás damas passavam pela mão do infernal Eunuco.

«-- Se soubera que a minha carta, antes de chegar ao seu destino, havia de passar por tantas mãos, não a escrevia.

«É verdade, minha senhora, e todas ellas iniquas; principalmente o inexoravel Eunuco, que vos tem odio figadal. O coração do rei é naturalmente inclinado ao bem; mas elle tem-lh'o corrompido, a muitos respeitos; e para mim, é sem duvida, que o maldito o começou a indispôr contra vós, desde aquelle dia, em que vos assustastes d'elle aqui se mostrar. Ha dois factos que convencem do que digo. Eu os relatarei, se daes licença.

«-- Sim, dire francamente o que sabes.

«-- Minha senhora, de ha muito que ambicionava esta licença, não só para vos informar, mas tambem para evitar qualquer juizo menos justo da vossa parte, contra a fidelidade das vossas criadas.

«Agora quando entreguei a vossa carta perguntou-me empregado do Eunuco:

«-- Para que é isto?

«-- Disse-lh'o; e elle com modo brutal respondeu -- essa fanatica do inferno, que a levem mil...

«-- Ora bem sabeis que as respostas dos criados revellam as opiniões dos amos.

«O outro acontecimento, que mais agudamente feriu a vessa sensibilidade, foi o encontro da cabeça cortada ao jardim, não é verdade?

«-- Sim, é.

«-- Pósto, que não atinaes a causa d'esse tremendo attentado?

«- Supponho que seria, ou para me annunciar que terei a mesma sorte; ou para me reduzirem pelo terror, a condescender com os desejos libidinosos do rei.

«-- Perdão, minha senhora. Não foi nada d'isso. Pois vós não conhecestes à cabeça?

«-- Eu sim!! fiquei tão aterrada com a vista d'esse horroroso quadro que, como sabes, voltei logo a cara, e parti a fugir. Não houve tempo para analyse, nem reflexão.

«- Então, permitti que vos diga, para vosso governo, que o Eunuco, e seus empregados vigiam e indagam continua e religiosamente todas as acções das mulheres do palacio; e aquelle crimina e castiga por diversos modos, a seu belprazer, até os actos mais innocentes. Vós tendes sido poupada; porque o rei vos tem em grande conta e respeito. Se aquelle monstro deixou de vir aqui fazer pesquizas, é porque o rei assim lh'o determinou, quando soube, que vós ficastes assombrada com a vista d'elle; e d'aqui provém toda a aversão que vos tem; e contae que elle sabe desforrar-se com usura cruel. Não tem contemplações; o seu coração é de tigre.

«Arguiu-vos d'um crime, do qual creio, que estaes tão innocente, como eu; mas crime, só n'esta especie de serralho, porque fora d'aqui, não me consta que seja crime entre algum outro povo; e até se consultarmos a razão natural, ella diz que - o não é.

«Vós não tereis esquecido que, passeando no jardim, por algum tempo nos demoravamos no miradouro; e que d'ahi, por entro as gelosias espreitavamos as pessoas que passavam pela rua; algumas, pela sua má figura, modo extravagante de trajar, etc. etc., desafiavam, como a raparigas, a nossa critica e rizada. Ás vezes a vossa gravidade nos impunha silencio, e levantando-vos, nos obrigaveis assim a separar-nos do logar, que mais nos recreava.

«Acontecia passar pela rua, entre outros, um mancebo musulmano ricamente vestido, bonito, e elegante; em fim, rapaz, ao meu parecer, amavel. Vós, algumas vezess, não sei se por acaso, se por interesse, o seguistes com os olhos. Eis aqui, d'onde cruel Eunuco formou o crime, de que vos accusou a seu senhor!!

«Disse ao rei, que vós gostaveis de frequentar o jardim, porque vos entendieis com um mancebo, que a horas dadas, passava por baixo do miradouro; e que de parte a parte se faziam accionados de intelligencia. Aqui tendes, disse elle, aqui tendes a razão, por que essa infiel tem a insolencia de resistir, e desprezar as justas e honrosas pretenções de seu poderoso e nobre senbor. E consentis vós, que essa atrevida fique impune? É um desdouro para a vossa dignidade!! Que farão para o futuro as outras damas do nosso harem, se esta não fôr exemplarmente castigada?!

«- Não te infureças, respondeu o rei; devemos ser humanos para as mulheres, e tolerar os seus caprichos, quando elles são fundados. Devemos respeitar a virtude, onde quer que ella exista; e a d'essa dama, contra quem te vejo injustamente conapirado, tem mais direitos ao nosso respeito, porque é fundada em principios. Não accredito o crime, de que a accusas. Se tu a ouvisses fallar, se prestasses attenção ás suas razões...

«-- Eu!! dar-lhe attenção!! mulheres para mim são animaes sem prestimo; e o meu aborrecimento para com esta cresce na proporção da estima que vós lhe daes. Se não consentis que ella padeça algum castigo, d'aqui em diante serei escarnecido por todas; e antes quero retirar-me do vosso serviço, do que resignar-me com o opprobrio da minha auctoridade.

«-- Para terminar a contestação, consinto que lhe appropries alguma leve correcção moral, de modo que não se offenda o seu corpo, nem por modo algum se lhe toque.

«- Já sabeis, senhora, que o monstro quiz vingar-se de vós por meio do horror e ferocidade. Amontoou um crime a outro crime. Se vós estaveis innocente, não o estava menos esse mancebo, para a condemnação do qual, o cruel Eunuco grangeou por dinheiro testemunhas falsas. O processo foi summario e verbal; e a sentença de sangue Jogo dada á execução!! Taes costumam ser, minha senbora, as torturas que soffre a justiça nos pleitos, em que influe a prepotencia!

«- Aragunta! estou doida, com o que acabo de ouvir. Será tudo isso verdade?

«-- Minha senhora! é tudo tão certo como...

«-- Não admitto juras. É um costume inloleravel, que accusa sempre má educação. Ha provas e razões para se convencer da verdade sem recorrer a juras. Deixemos essas fórmulas para os tribunaes. Não duvido que sejam verdadeiros os acontecimentos, que acabas de referir-me; porque sei que nos governos despoticos, e sobretudo n'aquelles, que não são baseados na verdadeira religião, as vontades caprichosas e anormaes das prtmeiras auctoridades ser vem de lei; e os cidadãos não têm segurança da sua vida, de seus bens, nem de sua fortuna. Portanto não me admiro das abominações practicadas pelo Eunuco. Todavia, encontro, na tua narrativa algumas durezas; tiradas ellas, sem deixarem prêsa á minha critica, estou decidida a prestar-lhe confiança.

« Confesso, perante o Céu e a terra, que olhava para o mouro. Tu e tuas companheiras tambem olhavam para elle. Todas gostavamos de o ver. Não é verdade?

«-- É sim, minha senhora.

«-- E elle, ou outra alguma pessoa, que olhasse da rua podia coahecer-nos a travéz das grades?

«-- Não, minha senhora.

«- Fiz alguma acção, ou proferi alguma palavra que elle ouvisse?

«- Não, minha senhora.

«E nós estavamos, ou não, sempre sozinhas ao mirante?

«-- Sempre sós.

«- Bem. Ora o Eunuco nem advinha, nem póde fazer-se invisivel; elle soube, que eu olhava para esse desgraçado; logo, tu, ou alguma de tuas companheiras lh'o disseram. Tu propria ministraste as armas para eu te ferir; tracta agora de te defenderes do golpe, de maneira que não incorras na infamia de enredadora e traiçoeira.

«- Triumphantemente, minha senhora! Chegae à janella, e correi a vista ao longo das paredes do palacio; reparae se vêdes por ahi alguma janella, pequena com grades muito estreitas e sem luz por dentro.

«-- Sim; d'aqui vejo só duas; mas sei que do jardim so descobrem mais, porque já de lá as tenho notado.

«- Pois sabei, que não ha ponto no jardim, que malvado Eunuco, ou seus empregados não observem, quando alguma dama vai passear, principalmente quando ella chega ao miradouro, juncto do qual ha outra das taes janellas, com gelosias, ou gradinhas muito miudas, e escuras por dentro, para de fóra não se vêr quem lá está. São tantos os pontos de observação, quantas são estas espreitas ou escutas. Permittem qualquer brinco e folguedo, e até algumas vezes os ha solemnes; mas desgraçada d'aquella, que por qualquer modo excitar a desconfiança de que o seu coração anda separado do rei. E bem sabe o ferino Eunuco da vossa innocencia, quero dizer, bem sabe elle, que não practicastes acção alguma, que despertasse taes suspeitas; mas quiz vingar-se, e os máus sempre esquadrinham, e encontram pretextos; e, se elle não se lembrasse d'este, procurava outro. Para vos não horrorisar esquecerei muitas atrocidades, que sei terem aqui sido practicadas.

«- Dize-me agora mais: como podeste alcançar conhecimento de factos tão particulares, quando parece, que tudp aqui se esconde n'um silencio tenebroso?

«-n'este palacio ha mulheres como a praga, sustentadas tão sómente por magnificencia; a ociosidade é muita, a imaginação viva, e o pensamento precisa alimentar-se; não lhes pésa governo de casa, educação de filhos, nem direcção de negocios; tambem não gastam horas com relações exteriores, porque lh'as não consentem; e que resulta d'aqui? os fructos da ociosidade: indagações frivolas, mexericos, intrigas ridiculas, e murmuração, eis qual o passatempo das amas e criadas. E quando sonham algum facto de segredo, é tal a arte, geito e instancias de de que usam, que o descobrem. Este, muitas vezes remoido, vai dando pasto á critica, em quanto não sobrevem outro que o faça esquecer.

«Eunuco é o primeiro conselheiro do rei nos negocios de gabinete de maior transcendencia; tem a seu cargo o governo domestico em geral, e em especial a vigilancia sobre o comportamento das mulheres, e a direcção e auctoridade sobre tudo quanto lhes pertence. Ás damas e criadas nada importam os negocios publicos, nem os domesticos; mas quando ha cousa relativa ao sexo feminino andam freneticas, em quanto a não sabem miudamente; nada escapa á sua activa curiosidade. Alguma escravas da primeira ordem estão em relação com os empregados do Eunuco (porta dos segredos mais importantes), que lhes relatam tudo quanto as possa lisongear; qualquer novidade n'este gosto é para ellas um mimo precioso. Assim, qualquer noticia communicada com intimidade cordeal, e sob promessa de segrado inviolavel, corre logo de bôcca em bôcca por todos os circulos das mulheres, que compõem esta grande familia. Todas querem ter a gloria de dar a novidade; mas nenhuma declara d'onde a soube. Em fim, nao ha crime, injustiça, nem horror dentro d'esta casa, onde alguem crê ficar tudo abafado, com o peso do terror, que, ainda que tarde, não encontre um respiradouro, pelo qual se evada para o publico.

«Aqui tem, minha senhora, como eu alcancei conhecimento de tudo quanto contei a vosso respeito; e não penseis, que é segredo; cá dentro de casa já não ha mulher que o não saiba. Perguntae a qualquer das minhas companheiras, e vereis que estamos concordes em quanto á veracidade dos factos, porque, quanto á maneira da exposição d'elles póde haver differença; mas essa não depõe contra mim. E se vós, ha mais tempo, tivesseis dado a liberdade para conversarmos, ou mesmo algum incidente houvera proporcionado occasião, tanto eu como qualquer outra das vossas criadas, vos teriamos informado acêrca de tudo isto, e talvez teriamos evitado alguns cuidados ao vosso coração.

«-Assim o creio. Mas deves saber que, quando se vive forçadamente entre gente descohhecida, cuja politica e religião se desapprovam, o resultado é a desconfiança; tahto mais perdoavel por dar-se n'uma senhora da minha edade; que nunca tractou com pessoas estranhas, nem saiu mais de duas legoas além de sua casa, senão agora.

«-- Pois, minha senhora, tendes razão, e assevero-vos, que todas as vossas criadas se interessam por vós; sim, todas porfiamos n'este sentimento, todas com muito gesto vos consagramos respeito, todas vos somos fieis. Não desconfieis de nós. E tambem vos affianço, que nenhuma se acha encarregada de vos seduzir. A epocha d'essa empreza passou; e os desejos illicitos do vosso pretendente converteram-se, não em odio, como quer o feroz Eunuco, mas em veneração. Posso tambem dizer que a vossa heroica resistencia, e a coragem com que soubestes fallar ao rei, para lhe aguar as pretenções, attraiu sobre vós uma religiosa admiração de todas as pessoas que tiveram conhecimento do acontecido. Houve uma lucta, não com ferro, mas com traições; a virtude triumphou, tenho a consolação de vos felicitar.

«- E quem sabe se a perseguição e guerra, que me têm feito, continuará?

«- Creio que não, porque o Eunuco, suppondo que vos hostilisa, favorece os vossos desejos; a causa d'este vantajoso desconcerto é facil de encontrar na idêa, que cada um tem de virtude; vós entendeis, que é grande infamia fazer a vontade ao rei, e elle julga, que este vos faria uma grande honra se vos gozasse; e para vos não permittir essa gloria, desvia-o quanto póde do seu intendo, persuadido que tambem com isto vai ainda encher um vazio, que lhe falta para completar a sua vingança!

«- Aragunda! Estou admirada do que tenho ouvido! o disornimento e discrição, com que sabes appreciar os factos e circumstancias especiaes da minha situação, fazem-me conceber de ti uma alta idêa. Gosta-me a acreditar, que haja uma sarracenar com tão bellas qualidades; porém vejo, que vives aqui na classe de escrava: como é isto?

«- Sarracena! eu!!... Sou christã do intimo de meu coração, e filha de pais christãos... Esta é a minha crença, e n'ella espero salvar-me...

«Aragunta não pôde ir por diante, porque foi interrompida por outro criada, que entrou, trazendo a resposta do rei ao meu pedido.

«Esta resposta era verbal e concisa, em summa - que dissesse eu para onde queria retirar-me, comtanto que fosse para alguma das praças militares sujeitas ao seu dominio, Arouce, Leiria, Monte-mór, etc., onde nada havia de faltar; mas nunca para a minha terra.

«Occorreu-me logo, que a mudança me faria andar de mal para peor; porque passava d'um tyranno para outro tyranno, onde teria de collocar-me em novos apertos. Aragunta tinha começado a merecer a minha confiança, e achava-se restruida nos costumes mouriscos, consulteia-a na minha irresolução.

«- Se quereis o meu conselho, disse ella, eu o darei.

«-Quero, sim, porque me pareces de muito juizo.

«-- Tenho para mim que toda a rapariga, que zela a sua reputação, não deve andar a mudar de senhores, porque a honra sempre corre perigo n'esta especie de trocas.

«- Logo convem-me ir vivendo n'este foco de crimes, porque já são conhecidos. Não é assim?

«-- Não, minha senhora. Não quero dizer tanto. É verdade que do mal o menos; e este entendo, que era ficar aqui. Ha porém um expediente digno de abraçar-se, para sair d'esta crise. Por meio d'elle pondes-vos a salvo da immediata influencia do Eunuco, gosaes de alguma liberdade, sem comtudo haver mudança de senhor.

«-Oh! que fortuna!!... isso é bello!!... anda, anda minha Aragunta, explica-te. Estou anciosa por saber.

«-- Eu, nas vossas circumstancias, pediria ao rei que me deixasse ir viver para alguma das suas casas de campo, onde teria muito gosto de me occupar na seu serviço; por me dever paixão o mister da agricultura; e que só arrastada iria sujeitar-me ao dominio d'outra auctoridade, por não ser possivel encontrar musulmano algum tão virtuoso como elle. É preciso tributar-lhe este incenso. E se quereis pedi tambem licença para ir comvosco alguma das vossas criadas.

«-- Muito bem, muito bem!! vou já escrever-lhe a pedir tudo isso.

«No dia seguinte mandei a carta ao governador, que me fez esperar impacientemente pela resposta, alguns dias. Mas emfim ella veio a meu contento - que fosse para onde quizesse, e que levasse as criadas que me agradassem; que o não importunasse mais; e que tinha expedido as ordens ao administrador geral da sua casa, para que tudo se fizesse ao meu desejo.

«Escacêam-me os termos necessarios, para expressar a enchente de alegria, que trasnsbodava de meu coração; mas imaginae-a, já que não posso descrevel-a. Chamei logo Aragunta para a integrar d'esta resposta, quasi milagrosa, e para me esclarecer sobre a escolha da quinta.

«-- Parabens, minha senhora! triumphou a virtude. O céu tem dirigido os vossos passos. Ha oito annos, que estou n'esta casa, e nunca vi, nem me consta, que dama alguma tivesse coragem para resistir com gloria aos incontinentes apetites do rei. Ah!... que se eu tivera feito outro tanto, gozaria uma sorte egual á vossa. Assistiu-me esse pensamento, mas faltou-me a intrepidez e constancia para o tornar effectivo. Cedi ás instancias, ao imperio, e ás promessas, e fiquei escrava; vós, se como eu, fosseis crédula é pusillanime; terieis por fim de lamentar uma desventura egual á minha.

«-- Aragunta, não digas mais. Já déste o traço principal da tua vida, entendi-o muito bem; guarda o resto para outra occasião; deixemos o passado que te respeita, e vamos agora tractar do meu futuro, que é o que mais me importa. O theor da tua vida, ou bom, ou máu, acha-se estabelecido, e o da minha ainda não. Indica-me a quinta, que deva escolher para minha residencia, e dize se queres ir comigo.

«- Todas nós desejamos acompanhar-vos, porque estamos dominadas pelo sentimento. A quinta seja a das Fontes , além do rio. Ella vê-se muito bem d'aquella janella.

«- Seja essa. Não ponho dúvida em me sujeitar á tua eleição; dize pois a quem cumpre, que eu adoptei essa quinta, para a minha habitação; e que desejo me acompanhem para o meu serviço e companhia as mesmas criadas que aqui tenho. Que nos façam conduzir para lá.

«Decorreram alguns dias entre esta participação e a nossa partida. Durante elles as minhas trez criadas andavam saltando de contentes. Aragunta excedia as outras n'esta declaração de regozijo; não sei se era por me lisongear, se por ser esse contentamento n'ella mais vivo, do que nas outras. Algumas vezes discorriamos ambas sobre assumptos vagos; e outras vezes sobre os successos, que mais tocavam a minha sensibilidade.

«Eu lamentava as barbaridades tão ubualimente practicadas pelas auctoridades mouriscas; e admirava que os povos estivessem tão familiarisados com ellas, que já se não abalavam com qualquer novo horror. Não esquecia recordar o miserando joven mahometano, tanto pela crueldade e injustiça da sua morte, como por ter sido eu, se bem que innocente, a causa d'ella. Esta lembrança inquietava-me profundamente.

«Em uma das occasiões, em que eu só com Aragunta consumiamos o tempo acêrca d'essa atrocidade disse-me ela.

«-É para mim fóra de dúvida, que o vosso coração se interessava por esse mouro gentil.

«- Enganas-te, Aragunta, ainda não conheces a fundo a firmeza das opiniões, nem do meu character. Sabe, que detesto os mouros figadalmente; e accreditas tu, que eu com este odio, que tenho a todos, lançaria sobre mim o opprobio eterno de namorar algum d'elles? Que verginha!!... que horror!!... Em tal desgraça, estava primeiro o rei, do que algum outro.

«- Minha senhora, por direita razão assim deveria ser; mas o amor procura corações e despreza cathegorias.

«- Creio que sim; que o amor não é aristocrata; porque não faz distincção de fidalgos a plebeos; tanto folga nos palacios reaes, como nas choças pastoria. Mas deves advertir, que o juizo natural, assim da mulher como do homem, sendo habilmente desinvolvido, por uma educação dirigida com acêrto, escarnece as arbitrariedades do amor, que, posto não ser aristocrata, é déspota.

«-E se a paixão fôr mais forte do que o juizo?

«-- n'esse caso não ha juizo; ha leviandade; ha loucura; porque o juizo consiste em saber comparar as vantagens do estado presente com as do futuro; ponderando-as em relação ao decoro e á felicidade, assim temporal como espiritual, não só nossa, mas tambem das pesaoas que nos dizem respeito, e da sociedade em geral. Deixar-se apoderar das paixões amorosas, sem lhe acudir logo no principio com estes reparos, é uma loucura desbraçada; e as consequencias são quasi sempre males irremediaveis. Este juizo, que digo, é uma virtude impagavel, tem o seu fundamento na religião, e o seu premio no Céu.

«Ha tambem um certo orgulho proprio das familias e classes elevadas, que faz o effeito da agua lançada n'um incendio, que; apenas começa a desinvolver-se. O horror do descredito, o vexame pessoal, dos parentes, dos conhecidos, e outras mais attenções em tudo temporaes, atabafam tambem, não raro, o fogo do amor, quando elle ainda brandamente principia a sentir-se no intimo do coração.

«A maior parte das pessoas, nas impressões d'amor, obram mais por instincto, como brutos, do que por uso da razão, como. gente; e d'aqui nascem grandes males para essas pessoas, para os filhos, e para a sociedade. E pensas tu, que eu seja como alguma d'essas insensatas, que olhasse para o elegante mouro com sentido reservado? Não creias tal; gostava de vel-o, como já disse; mas o fim para que eu gostava d'elle, ninguem o sabe se não eu; e tanto servia elle vivo como o seu retrato em dezenho, ou em vulto; porque só me prestava para relação de paridade ; pareceu-te que existia amor, onde não havia mais do que um parallelo. Vou já correr o véu ao mysterio, sem receio algum; porque n'elle não ha crime nem vergonha, e com a mesma franqueza com que o revello a ti, tambem o revellaria ao governador, e ao maior tyranno do mundo, se necessario fôsse.

«-- Ha muitos annos, um cavalheiro, de quem eu muito gostava, concorria a miudo a casa da minha familia, onde era estimado por todos com intimidade. As suas qualidades moráes e physicas prendiam a minha attenção. Para não me conceiturares de tola, não me demoro a dizer-te quaes eram essas amaveis qualidades, nem que elle era elegante, bonito, virtuoso, delicado e instruido; gostava d'elle, amava-o em segredo, e figurava-se-me que elle tambem gostava de mim; e assim vivia contente. Nunca chegámos a uma declaração explicita, nem eu lhe daria azo; porque um consorejo entre nós não poderia realisar-se em tempo algum; havia impedimento quasi invencivel. Não obstante, eu amava-o, e procurava com grande cuidado encobrir a minha affeição. Se eu me abandonasse irreflectidamente á força do instincto, deixaria logo apparecer alguns signaes decisivos do frenesi febril, que me atormentava; mas a razão existia firme no seu tribunal; ella mandava soffrer em segredo, era preciso obedecer aos seus justos dictantes. Que resultaria de qualquer imprudente manifestação da minha ternura para com um homem, com quem eu não podia casar? desgostos para os meus pais, a sua indignação contra mim, e o descredito d'esse cavalheiro, a quem cobriam de epithetos infames, tendo eu sido a culpada?!

« Devemos confessar que o público costuma, a este respeito, ser indulgente para com as mulheres, imputando a causa das suas desgraças ao sexo mais audaz; e a maior parte das vezes a culpa vem d'ella, quando astuciosamente põem em acção os attractivos com que a natureza dotou.

«Eu meditava todos estes resultados amargos; e amor e a razão dos combates do espirito; mas a razão sempre se ostentava coroada com viçosos louros. Se o cavalheiro tinha muito juizo para reprimir os impulsos do seu amor para comigo, eu não tinha menos em reprimir e disfarças os do meu para com elle. Resta-me esse prazer do entedimento, muito embora me falte o do coração. Parecia-me que ambos nos temiamos, ao mesmo tempo, que nos amavamos. Os olhos, assim como são a porta, por onde o amor, quasi imperceptivelmente se insinua no coração, tambem depois são os pregoeiros, que com mais energia accusam a existencia d'este sublime e delicado sentimento; são, deixa-me assim dizer, os canaes, por onde duas paixões identicas, se collocam em mutua relação. A linguagem dos olhos tem uma admiravel superioridade á das palavras; esta, expondo um todo por partes, perde, na demora, grande porção da sua energica eloquencia; e aquella conserva-a toda, porque vai com uma velocidade mysteriosa expressar no intimo da alma o total d'um pensamento, que, com a esma rapidez, com que é comprehendido, commove a pessoa affectada pela mesma paixão. Se eu lançava obliquamente a vista para elle, surprehendia-o a olhar para mim; a elle acontecia outro tanto; e n'essas surprezas, ambos como envergonhados, voltavamos a vista para outro lado; mas depressa repetiamos, por instincto, o mesmo divertimento. Se este recreio, mudo, mas terno e significativo, que sem amor não póde avaliar-se, era demorado, eu sentia, que o coração palpitava com mais velocidade, que o seu ordinario, e que as faces ganhavam calor; n'este conflicto retirava-me da sociedade por algum tempo, com receio que se conhecesse a minha agitação, e se adivinhasse a causa d'ella.

«Tambem, quando vinha a proposito, sustentavamos, entre familia, ou na concorrencia de visitas, uma breve conversação. Estes momentos eram na verdade para desejar, mas tambem eram temidos; porque a nossa ternura estabelecia-se n'um contacto mais vivo e pxoximo; e como as fibras da minha sensibilidade se achavam mais dispostas para communicar os sentimentos do coração do que os do entendimento, havia ás vezes um inadvertido transtorno de idêas, d'onde resultava, tanto a mim como a elle, que proferiamos alguma palavra sem nexo. Se este equivoco provinha da abstracção, em que elle se achava, e eu podia conservar a minha razão no seu estado normal, aqui tinha eu um dos recretos mais preciosos; mas se me acontecia; n'essa dôce conjunctura padecer eu o equivoco, fugia immediatamente da sala; com pretesto já antes estudado.

«Este cavalheiro tinha-se ausentado para Castella, dois annos antes que eu fosse roubada; nunca mais tive novas d'elle; mas vivia eternamente na minha lembrança. Durante alguns dias anteriores á sua partida, fingia eu encontros d'acaso com elle esperando que, me dissesse um adeus em particular; não me enganei na minha expectação. n'um d'esses dias, quando elle chegava de fora, appareci-lhe, figurando passar para uma sala; não havia testemunhas; ao deparar comigo fez o seu habitual cumprimento, rapido e respeitoso; deitou com velocidade os olhos para todos os lados, e vendo que estavamos sós, entregou-me furtivamente uma carta; apertou-me a mão, pela primeira vez, limpou os olhos, e sem dizer palavra, seguiu caminho para o quarto de meu pai!

«Este documento da sua paixão fez-me derramar muitas lagrimas de ternura e saudade. O mancebo achava-se tão vivamente apaixonado por mim, como eu por elle; eu suppunha-o alguma cousa, mas são com tanto excesso. A causa da cruel separação, era eu; porque, dizia elle na carta, um matrimonio não poderá realisar-se entre nós; conservando-me na terra não devo, nem posso deixar de frequentar a casa de vossos pais; esta frequencia póde conduzir a alguma catastrophe; amor vence-se fugindo; é preciso que as nossas relações, ainda pouco pronunciadas, sejam cortadas de golpe; é de certo um mal, que a prudencia aconselha, e que o coração reprova: mas devemos soffrel-o para evitar outro maior. O cutello destinado a cortar o grilhão que nos prende, e o meu apartamento. Vou descarregar esse golpe. Adeus...

«Assim passaram as minhas primeiras impressões amorosas; e talvez que por serem as primeiras fossem mais vivas. Posso dizer, que com gozar conheci os effeitos do amor.

«A mocidade encontra n'estes passatempos um recreio de imaginação, cuja existencia o paravrente ideal, mas bem n'isso em prazer incapaz de ser avaliado pelas pessoas estranhas a tão delicada sensação.

«Um mouro, que possa sustentar muitas mulheres, desconhece os encantos e merecimento do amor. Esta paixão instinctiva, que attrae irresistivelmente os sexos um para o outro, é expontanea, a violencia repugna com a sua natureza. Não ha força que me obrigue a amar um homem, contra a disposição do meu coração.

«Tem-se observado que os povos, onde as mulheres são pouco zelosas da sua honra, é onde ellas têm menos consideração, e onde o amor é menos conhecido, porque ahi se domina a corrupção; quando ha facilidade em conseguir, não se encontra merecimento na consecução, é o amor suppõe sempre alguma d'alcance difficil; e para se dar esse sentimento sublime da parte do homem é necessario que a mulher, por uma habilidade fina e muito estudada, lh'o saiba excitar, e ao mesmo tempo saiba recatar-se, para não expôr a sua honestidade e credito aos máus conceitos, que os homens possam fazer sobre qualquer acto de confiança, que por inconsideração se lhes permitta.

«No meio de tantos desgostos e afflicções, que, como sabes, tenho soffrido n'este captiveiro, as recordações saudosas d'esses tempos davam um linitivo consolador aos meus padecimentos; a figura do joven mouro suscitava essas lisongeiras recordações; parecia-se exactamente com o meu amante, e até fantaziava que elle, tendo noticia da minha desgraça, viria a Coimbra para d'algum modo me valer; mas não, conheci a final o meu engano.

«Aqui tens a causa, por que eu me comprazia de vêr mouro.

«Na solidão, e nas occasiões de grande contentamento, a lembrança das pessoas que nos são caras, torna-se mais viva e mais preciosa.

«-- É verdade, minha senhora! assim o tenho experimentado.

CAPITULO V

Elvenda parte para a quinta das Fontes, onde residia um filho do governador junctamente com dois mestres arabes; como ella vivia na companhia d'esta gente. O governador manda-lhe ordem para ella dirigir a educação moral do filho, probibindo-lhe o emprego da doutrina christã. Difficuldades que ella encontra para cumprir, sem offensa da sua fé, nem perigo da sua vida, e como as venceu. Suas opinioes sobre educação. Consegue dominar discipulo, instrue-o occultamente na religião christã. Elle pede, e é baptisado em segredo. Por fim, passa de discipulo para amante de sua educadora; ausenta-se de Coimbra com o pai, quando esta cidade foi conquistada; foge de Leiria para ir procurar Elvenda; chega quando esta dama contava a historia da sua vida, e casa com ella.

XXIV

«O tempo ia-se escoando, e eu andava desassocegada com a demora do aviso para a partida; em fim chegou. Uma das criadas veio dar-me essa boa nova dizendo que o administrador mandava perguntar, se eu queria ir a pé ou a cavallo; e que no dia seguinte depois de jantar devia estar prompta. Respondi, que desejava ir a pé, pqrque precisava dar um passeio longo.

«No dia seguinte á hora indicada estavamos todas promptas, e partimos aoompanhadas por dois officiaes do paço, duas criadas ou escravas, que pareciam de maior graduação do que as minhas. Fomos de vagar, mas por estar desacostumada de andar por fóra de casa, achei-me bastante fatigada, quando chegámos ao topo da ladeira, que por algumas voltas, encaminha do leito do rio até á pequena campina, que me deia entre o monte e o Mondego. Logo d'ahi a pouca distancia entrámos na quinta.

«As casas têm bastantes accommodações, e o edificio é de construcção mourisca . Aqui residiam os criados empregados na agricultura, dois mestres e duas amas d'um filho do governador, que tinha doze annos de edade.

«As pessoas mais auctorisadas eram os dois mestres do pequeno, homens de edade excedente a sessenta annos.

«Estes, e toda a mais gente da casa, receberam-me com muita cortezania e afabilidade; fizeram-me generosos offerecimentos, e parece, que se gloriavam de me obsequiar. Julguei, que tanta benevolencia não passaria além dos primeiros dias de hospedagem; enganei-me, porque a mesma boa vontade que mostraram na minha entrada, conservaram-na até ao fim; e da minha parte, estudava a maneira de a tornar permanente, de me fazer respeitar, e de conseguir algum dominio sobre toda esta gente, sem offender os seus caprichos.

«Para não cançar a vossa paciencia, pouco direi ácêrca dos dois pedagogos. Tinham tanto de impostores como de idiotas; se ao pedantismo se erigisse um monumento de pedras toscas, elles eram dignos de lhe servir de corda. Ambos ensinavam o pequeno, um a ler e escrever, o outro doutrina e regras de moral, segundo os principios do alcorão.

«Algumas vezes, as mais d'ellas à noite, outras encontrando-nos a passear pelo jardim e cêrco da quinta, travavamos conversação para intelligencia da qual as criadas serviam de lingua, porque nem eu os entendia, nem elles a mim. O thesouro dos seus conhecimentos não encerrava mais que meia duzia de bagatellas, com que era todas as reuniões sabiam fazer grande farfalhada, repetindo-as um milhão de vezes com arrogancia characteristica da estupidez.

«Contavam as viagens, que tinham feito, os principes de quem tinham sido mestres, a reputação de sabios que haviam ganhado, nas cortes, onde estiveram, etc. ete, com estas e outras fanfarrices cruxificavam a paciencia de quem lhes dava ouvidos. Via-se que a sua estupidez era tão cerrada, que não souberam colher instrucção alguma intellectual, nem das viagens que fizeram, nem dos personagens com quero tractaram, se era certo, o que elles referiam. Eram uns perfeitos authomatos animados, possuidos por um orgulho insupportavel.

«Estes dois velhos faziam-me o obsequio de gostar muito de mim; e eu divertia-me com elles; ora lisongeava as suas opiniões por disfarçadas ironias, ora os corrigia com tanta suavidade, que elles ainda me ficavam obrigados.

«Por este modo, e em retiro tão ameno, o meu captiveiro, tornou-se mais benigno; e se não fôra a coacção, que ahi me retinha, eu diria, que não estava captiva. Não havia Eunuco nem empregados seus para vigiar as minhas acções nem para as sentenciar.

«Dentro do grande circuito murado, podiamos andar em perfeita liberdade: era todavia crime exceder os limites do cêreo; havia algumas outras prohibições de nenhuma importancia; e para observancia de todas conservavam sempre uma guarda militar na quinta, com sentinella nas ameias da torre.

«Não permittiu Deus, que eu gozasse, por muito tempo, d'este bem-estar, sem novo motivo de inquietação. Alguns mezes depois da minha entrada na quinta, recebi uma participação verbal do governador, a qual, se bem que, por um lado, veio perturbar socego do meu espirito, por outro não deixava de causar-me alguma consolação.

«Queria o mouro que eu presidisse ás lições dadas ao filho, ás de moral, e ás de leitura; a estas, para que elle melhor aprendesse a lingua do paiz; e áquellas, para lhe inspirar o amor da virtude e sentimentos nobres, tudo por meio da práctica acompanhada com as razões que eu entendesse serem convenientes; porque me julgava mais habil para dirigir a razão do menino do que o mestre, que para esse fim lhe fora procurado. Dizia mais -- que esperava que não me negasse a este serviço; mas que me acautellasse de lhe fazer qualqer explicação pela doutrina do Nazareno.

«Esta escolha, posto que lisongeira, porque mostrava, que o governador reconhecia em mim algum merecimento, collocava-me n'uma posição assás arriscada. Negar-me a este serviço tão proprio a uma senhora, por mais especiosos que fossem os pretextos, seria excitar contra mim a indignação do governador; e tyrannos não admittem replicas: educar-lhe o filho segundo as maximas do alcorão, seria offender a minha fé: ensinal-o pelas doutrinas do Evangelho e preceitos da Egreja conforme aos quaes eu tinha sido educada, e que eram a fonte da minha moral, seria uma recommendação para o martyrio, e Deus ainda me não tinha inspirado o valor preciso para ganhar tão gloriosa palma.

«Eu ponderava o peso, do mister, que a mão da primeira auctoridade arrojava para cima de meus debeis hombros; porque, para se obter uma educação como eu a concebia, era preciso que o educador possuisse uma collecção de predicados, que eu não tinha. A educação é como certas doenças, que toda a gente conhece, mas ninguem sabe cural-as. Todos fallam de educação, e poucos sabem o segredo para bem educar; quero dizer -- de formar o homem para a sociedade. Todos os defeitos, que depois se lhe notam, são attribuidos á falta de educação. Se elle não tem piedade, é falta de educação; se não tem cortezia, é falta de educação; se elle é imprudente, injusto, soberbo, ignorante, máu, etc. etc, é falta de educação! E quasi sempre acontece que, os mais rigidos censores da educaçpão alheia, se alguma vez chegam a ser educadores, não são mais felizes no desempemho da sua missão, do que o foram os censurados. Mas diga cada um o que quizer, é certo que uma boa educação, tomada em toda a extensão da idêa, é o patrimonio mais rico, brilhante e nobre, que um pai póde dar a seus filhos.

«Não obstante ponderações tão graves, mandei em resposta ao governador -- que não me julgava com a idoneidade necessaria para desempenhar cargo tão elevado, em que se requeria instrucção appropriada e superior aos conhecimentos d'uma mulher; porém, que não me attrevia a negar qualquer pequeno serviço que estivesse ao meu alcance; e que eu esperava, que elle havia de ponderar as difficuldades, em que este mister constituia uma dama christã firme na sua religião.

«Accedendo assim á intimação do gorernador, eu lançava uma tremenda responsabilidade sobre mim. Era necessario cumprir sem offensa da minha religião, sem risco da minha vida, e sem prejudicar a boa fama, que eu, com os auxilios da Providencia divina, tinha adquirido.

«Eu divagava pensativa sobre o modo, como deveria haver-me em negocio, tão melindroso e transcendente. As preoccupações vinham aggravar ainda mais a minha situação afflictiva; porque a lembrança do governador, escolhendo-me para mestra do filho, com a expressa prohibição de me servir da doutrina christã para fundamentar as obrigações moraes do educando, parecia-me, não um meio procurado com boa fé, para conseguir o fim inculcado; mais um pretexto para de novo me dar mais desgostos a sentir, e para justificar uma vingança; até acreditava, que esta idêa teria partido da cabeça do inexoravel Eunuco.

«Na fluctuação do meu espirito, encontrava um tal, ou qual apoio nas particularidades favoraveis, que me tinham sido revelladas por Aragunta. Porém, ainda que o governador consagrasse algum respeito ás minhas virtudes, não deixava eu de ter contra mim um tyranno da primeira influencia sobre o chefe do Estado, o qual podia procurar mil pretextos de malquistar-me, e alcançar licença, como já tinha feito, de me atormentar para recreação da sua perversidade. Era um inimigo terrivel, de quem nunca devia esquecer-me, para lhe não fornecer pretextos de perseguição; procurasse-os elle, mas eu devia precatar-me de lh'os dar.

«Esta desgraçada especialidade, era exacerbada pelo terror, que naturalmente se apossa de qualquer que, violentado, vive entre povos, em cujas instituições religiosas, ou politicas, não confia; porque se lhe figura, que tem sempre a temer pela sua vida, pessoa e fortuna.

«Mas retirando-me d'este campo, d'onde so brotavam presuppostos aterradores, para me acolher a outro de realidades tambem so hypotheticas, para ahi desassombrada amainar a exaltação do meu espirito, accreditando fiel a escolha do governador, tambem me via enleiada com difficuldades invenciveis.

«Pois como é isto? (discorria eu comigo) se o governador não quer mortificar-me; se a eleição que elle fez de mim é uma realidade, então de duas uma, ou elle é um desmarcado idiota, ou um profundo philosopho. Não podia convencer-me da primeira parte d'este argumento; porque eu tinha-o visto, como já disse, e o seu rosto era a expressão da intelligencia. A força do meu raciocinio levava-me necessariamente a reconhecer no governador um grande philosopho encoberto, e portante a convencer-me que elle admittia, pela doutrina da sua seita, que era possivel, contra a minha convicção, haver moral solida, que não fosse baseada na religião.

«Admittindo, que o governador, por convicção, professava alguma seita philosophica, não podia negar-lhe uma instrucção superior aos christãos do nosso tempo. Aqui tinha eu outra lucta a sustentar contra uma idêa velha, de que não podia desprender-me. Sempre, desde a infancia, tinha ouvido que a aristocracia mahometana era analphabeta, e que todo o seu merecimento consitia na soberba e predominio; mas depois convenci-me que esta opinião, não devia adoptar-se, na sua totalidade. O odio faz detestavel tudo quanto é dos inimigos!

«Para alcançar alguns dados, que marcassem o rumo das minhas idêas, desejava uma conferencia com governador, sobre os principios fundamentaes da educação do filho, e sobre a extensão da auctoridade que elle me dava; visto que o seu mandado, sem estas e outras declarações, me tinha deixado perplexa. Porém, este pensamento era logo combatido por uma especie de vaidade, que me dominava. Persuadi-me que o governador fizera de mim um alto conceito, julgando que a firmeza das minhas idêas, e que o animo imperturbabel, com que lhe fallei nas duas vezes, era que nos avistámos, eram effeitos d'uma grande instrucção litteraria, quando n'isto apenas havia um resto de nobre orgulho de familia, alguma habilidade, e um empenho tenacissimo de me conservar illibada, entrando n'um porto, onde a honra de tantas damas illustres tinha naufragado.

«Portanto, eu temia uma audiencia do mouro, sobre aquelle assumpto, não obstante reconhecer, que d'ella podia tirar esclarecimentos; e temia-a, não porque podésse renovar-lhe os antigos appetites libidinosos; os trabalhos e afflicções tinham derrotado alguma cousa de fascinante, que eu porventura tivesse tido; mas porque uma pergunta ou objecção podia revellar a pobreza dos meus conhecimentos, e eu não queria de modo algum desconceituar-me.

«Occorreu-me outro expediente: lancei logo mão d'elle; lembrei-me de que, sondando, com subtileza, os dois pedagogos, elle» poderiam revellar alguma cousa, que me esclarecesse. Na primeira occasião que nos encontrámos, sem mostrar-me admirada, referi-lhes, quo o rei queria, que eu assistisse ás lições do joven Iben... para lhe dar preceitos de moralidade; que de boa vontade cumpriria esta ordem de tão poderoso senhor, até onde se estendessem os meus conhecimentos: que desejava ir d'accôrdo com os seus mestres, cujo saber eu muito respeitava; mas que vendo-me impedida por muitas dúvidas, a respeito d'uma ordem tão illimitada e imperiosa; e não que rendo importunar, a magestade, por me constar que era contra o estylo fazer petições de esclarecimentos; e porque o rei queria que por uma só palavra ou aceno, lhe entendessem a vontade, porque esta era a vara, por onde elle media a intelligencia dos seus empregados, desejava saber, se elles tinham recebido algumas instrucções, relalivas á minha ingerencia no ensino do principe.

«A minha especulação deu um resultado feliz. Os dois mouros, posto que não se declararam tanto, como era para desejar, deixaram vêr, pela singeleza e promptidão com que ambos d'accôrdo responderam, que não havia intenões malevolas; e queo governador tinha dado ordem para elles se sujeitarem ás correcções e regras, que eu dictasse; mas que não consentissem que eu fizesse applicação alguma da minha doutrina religiosa; e que, passado tempo, elle ordenaria o que entendesse conveniente, e segundo as informações que lhe déssem.

«Esta conferencia, em conversação amigavel, restituíu alguma paz á minha alma, deixando-me plenamente convencida, que a segunda parte do meu argumento era verdadeira; isto é, que o rei moura de Coimbra era um philosopho encoberto, mas um philosopho materialista; e quo os interesses da politica lhe tinham dictado a prohibido, que elle me impoz, com a qual eu devia strictamente conformar-me; porque a politica é uma fera sequiosa de sangue, que para salvar apparencias, e opiniões, faz muitas vezes commetter atrocidades contra a convicção dos chefes do poder!

«Partindo, pois, d'estes dados, como de ponto certo e seguro, precisava crear um systema de educação especial: era uma idêa nova, engenhada pela necessidade. Mas a invenção d'este systema!... eis a maxima difficuldade, em que eu laborava. Consistia ella em encontrar um meio de radicar a virtude no coração do menino, sem tomar por fundamento alguma das religiões revelladas, nem a verdadeira, nem as inculcadas como taes. Isto era um impossivel. Cria então, e ainda hoje creio, que este empenho era estupido; porque tenho por certo como axioma, que todo o codigo de moral, que não tiver por fundamento a religião, será edificio sem alicerce.

«Entretento parecia-me, que o meu systema, se eu conseguisse ordenal-o, não seria alcunhado de estupido, nem de absurdo, se, tendo encontrado principios solidos, d'onde tirasse regras geraes para a educação moral do rapaz, lançasse para o mestre mouro a obrigação de lhe applicar a doutrina mahometana, prestando-se ella a isso, e sabendo o mestre fazer e conveniente explicação. E se ambas, ou alguma d'estas hypotheses falhassem, eu, usando dos termos genericos. Deus, Ente Supremo, Creador, e d'outros, admittidos nas duas religiões, christã e mahometana (mas nunca dos termos characteristicos d'alguma d'ellas para não comprometter-me), suppriria, até onde permittisse a minha curta intelligencia, as faltas que houvesse.

«Por este modo, tinha eu delineado a planta da minha grande obra; carecia porém de material para edificar; faltavam os principios do meu systema; nem sabia ao certo, onde procural-os; mas figurava-se-me que elles existiam; e até imaginava que o governador, a não querer torturar-me, admittia qualquer systema que eu escolhesse, posto que defeituoso na base, respeitando-se a excepção que elle me impoz. Tambem não duvidada, que os erros que eu commettesse mereciam desculpa, attentas as circumstancias especialissimas em que me achava.

«Gastei alguns dias e noites em trabalhosas indagações. Não tinha pesaoas instruidas, a quem pedisse esclarecimentos; Aragunta confidente dos meus pensamentos, desejava, mas não podia elucidar-me; porque o objecto das minhas cogitações estava bastantes gráus acima da sua intelligencia. Tinha vontade de confessar-me, a fim de purificar a minha alma, por meio d'este sacramento, e para seguir a direcção do confessor no labyrintho das minhas dúvidas; porém este recurso offerecia inconvenientes, para uma pessoa empregada no serviço da primeira auctoridade sarracena, e não vale o trabalho de relatar quaes elles eram; além d'isto, parecia-me que a minha salvação não perigava se differisse para mais tarde aquelle acto salutar de religião.

«n'este estado, carecente de quem me indicasse o caminho que devia seguir, entendi, que, se me entregasse a um estudo assiduo da natureza, de mim propria, e dos meus similhantes, poderia colher resultados que, posto não me fornecessem os principios que desejava, não deixariam de fortificar a faculdade de raciocinar, e de consolidar ou reprovar algumas idêas adquiridas pela auctoridade. De mais, se á força de cogitação, dizia eu, encontrar os principios para basear o meu systema, alcançarei a gloria de inventora, a fama de philosopha, e o meu nome poderá ainda, com proveito da christandade, ser respeitado entre os mouros.

« Parecia-me que uma voz occulta me annunciava no intimo d'alma, que existiam os principios geraes de moral, que eu procurava; mas acertar com o methodo para descobril-os, eis uma difficuldade, que se me, representava como invencivel.

«Eu era como o viajante que, em escura noite, perde o caminho no ermo, e pressuroso pel'o encontrar, parece-lhe descobrir a longa distancia uma luz duvidosa, adianta-se para chegar a ella; porém, caminhadas algumas voltas do terreno, encontra uma encruzilhada, e o clarão que se lhe figurava ao longe, desapparece; sem ter quem lhe diga qual dos caminhos deva seguir, pára confuso e tímido; volta sobre seus passos até ao ultimo ponto d'onde partira, para ahi esperar, ou que a aurora o esclareça para se orientar, ou que algum outro viandante lhe mostre o caminho, que deva seguir. Sim, eu era similhante a este homem afflicto; porém, elle podia por algum modo ser ensinado, mas eu! infeliz Elvenda!... nem ao menos via, onde prendesse uma enganosa esperança!!...

«Mas que exemplar deverei escolher para o meu estudo? (perguntava a mim propria) será o homem já creado e desinvolvido sem prejuizos da educação? mas n'esta circumstancia não posso admittir senão o Pai commum do genero humano. Deverá ser uma pessoa da actualidade? eu propria? ou uma criança, estudando-a desde que as suas faculdades intellectuaes, ainda em embrião, principiam, como a mimosa flôr, a tomar consistencia, e a desabotoar?

«Depois de muito pensar sobre o primeiro modelo, Adão, convenci-me de que podia ser enganada, porque, para com elle houve excepções, que não se encontram na sua descendencia. O nosso primeiro pai foi homem sem ter sido menino; safu das mãos do Creador em edade já adulta; o mesmo Ente que lhe deu a existencia, intimou-lhe preceitos especiaes. Aqui tenho eu, é verdade, uma prova da obediencia ao Creador, porque Deus impôz uma regra ao primeiro homem, e castigou-o pela transgressão d'ella. Mas este facto, que por fé creio verdadeiro, ainda não satisfaz o meu desejo. Eu, como philosopha, procuro saber se essa lei moral da obediencia, e outras, são, ou não, leis geraes estabelecidas por Deus; e como poderei conhecel-as d'um modo evidente sem recorrer á auctoridade?

«Desde a creação do primeiro homem (ía eu dizendo para comigo) até á epocha do Sinai, não me consta que houvesse codigo moral escripto; mas o povo de Israel era numeroso, vivia em sociedade, e esta não podia existir sem leis moraes, que marcassem os deveres que os homens eram obrigados a practicar para com seus similhantes. Logo, concluia eu, as leis do Decalogo, dictadas por Deus a Moysés, no Sinai, já se achavam gravadas no coração dos Israelitas, e de todos os povos do mundo; sim; não duvido, adulteradas, porqoe a maldade humana altera e corrompe a natureza.

«Aqui tendes, como de raciocinio em raciocinio, e depois de muito pensar consegui descobrir, sem auxilio d'alguem, e só por esforço da razão, que existem leis naturaes de moral. E vós nºao podeis fazer idêa da satisfação que tive, quando me convenci de que tinha encontrado verdades, de que nunca tinha ouvido fallar. Não quero dizer que isto fosse uma novidade para os doutos, mas era-o para mim, e bem gloriosa, por ser fructo do meu trabalho, e por me abrir caminho a outras descobertas. Uma d'ellas feriu logo a minha attenção, e vem a ser, que - quando me educaram, procuravam fundamentar as virtudes que adquiri, nos mandamentos da Lei de Deus, e nas verdades evangelicas; assim devia ser, approvo, e sempre seguirei essa regra de educação religiosa; mas permitta-se-me que diga, sem faltar a veneração devida a minha cara mãe e tias aqui presentes, que para uma criança dotada do espitiro investigador não é sufficiente tomar por base da sua moral esta sublime doutrina; ella é fundada em auctoridade, e posto que divina, o mestre não sabe se o discipulo, depois de ser homem, terá humildade bastante, ou para não rejeitar a obediencia á palavra de Deus, ou para não investigar a sua origem; e quem sabe, se elle n'esta indagação perderá a sua fé?

«Eu desejaria que o educador moralista, depois de ter instruido os discipulos nos principios rudimentaes da religião, lhes explicasse e os convencesse, até onde podesse, das causas, que Deus teve, para dictar as suas leis aos homens; as do velho e do novo testamento. Ellas não podem ser de modo algum superiores á nossa razão; porque Deus, justo, bom e providente por essencia não podia impôr leis universaes de moral incomprehensiveis á razão humana; aliás quereria o Ente Supremo que o homem, n'esta parte, inutilisasse o seu dote natural mais precioso, -- a intelligência; suppôr isto, seria blasphemar a divindade. Descobertas essas causas, que, segundo o alcance do meu entendimento, são - a perfeição, e a felicidade eterna da humanidade; uma, o fim, e a outra, o meio, deve o educador, tomando-as como principias, crear sobre ellas a sua theoria, ás regras da qual, os discipulos, na práctica, devem conformar as suas obras, no desempenho dos officios, para com Deus, para comsigo e para com os seus próximos.

«Confesso que a maior difficuldade em conseguir uma boa educação moral, não se encontra na creação da theoria, na deducção das regras, nem mesmo na repugnancia dos educandos, porque tudo aquillo que fôr claramente justo e util, ha de sempre encontrar appoio na razão humana. A maior difficuldade, e quasi invencivel á maior parte dos educadores, consiste em fazer contrair o habito de sujeitar, na práctica, as acções moraes ás regras, e á doutrina provada e desinvolvida pela theoria. A não ser assim poucos fructos podem ser colhidos; porque os educandos encontrarão, pelo tempo adiante, uma reacção pertinaz entre a doutrina e os costumes.

«No meu systema o educador não deve nunca desacompanhar o seu discipulo; porque é mestre theorico e práctico. Cumpre qoe elle possua, pelo menos, alguma instrucção adequada, e que tenha a convicção dos seus principios.

«Foi assim que eu encaminhei a educação do meu discipulo; e posso ter a consolação de que, por este modo, consegui habitual-o a que elle se empenhasse para que as suas obras sempre tivessem uma causa justa e racioanl, moralmente faltando.

«Na minha educação houve muito esmero, mas não se usou d'este methodo. Se um revéz não me obrigasse a ser philosopha, ainda hoje accreditaria que as leis das duas taboas eram desconhecidas a todos os povos do mundo, antes da sua publicação no Sinai. E porque? porque meus educadores não quizeram dizer-me que Deus, querendo que o seu povo escolhido (sem lhe impecer a liberdade do pensamento) se avantajasse aos demais povos na obediencia ás leis universaes de moral, resumiu-as, e do que era natural a todos os homens, passou tambem a ser positivo a um povo, particular; formulou, n'esta transição, um código succinto, onde os Israelitas, em especial, e todos os homens, em geral, vissem diante dos olhos escriptas aquellas leis, que a depravação dos costumes, a pouco e pouco, lhes ia apagando no coração.

«Mas quando me ensinaram, não fizeram assim, nem n'este, nem em outros muitos pontos essenciaes da moral christã ; obrigaram-me a crer tudo piamente, sem nada fundamentarem. Jurar na auctoridade do mestre, é ensino de escravos.

«Bem sei que uma instrucção moral, rigorosamente demostrada, não póde estender-se a todas as classes; porque nem todas têm meios de pagar a mestres, ainda mesmo havendo-os; nem ha escholas convenientemente organisadas para esse fim. Não posso, porém, deixar de lamentar uma falta, que na balança do meu juizo, tem o peso d'uma calamidade pública; e é que -- as classes abastadas não levem a sua educação moral mais além, do que as pobres. Estas pela escacez de meios não podem supportar despezas; então; a fé na auctoridade constitue a unica base das suas virtudes; e aquellas estreitam; pelo despreso, a esphera da instrucção moral, e dão amplitude á civil litteraria e de luxo, podendo accordal-as todas, tomando primeiro a moral para base das outras. Despresam o necessario para gozar o superfluo. Contentam-se com uma exterioridade apparatosa, e interior não é mais do qne um lato espaço inane; se não acontece infelizmente ser um vulcão; que derrama a peste que inficiona a sociedade!! Ricos e poderosos pais de familia, não choreis mais alguma despeza, que façaes com a educação moral de vossos filhos: se esta fôr escaça, as outras não podem ser generosas; nem de utilidade permanente. Vós creaes individuos para a sociedade, e a sociedade sem moral corrompe-se, desordena-se, definha e morre.

«Desculpae; senhores, que eu inadvertidamente desviasse um pouco o fio da minha narração, para tocar uma especie, que poderia com mais acêrto, ou entrar em outro logar, ou ficar esquecida. Mas vou já continuar.

«O descobrimento que eu tinha feito, e de que me dava por mui contente, era coma uma luz ainda escaça, mas certa, que de longe começava a esclarecer á minha razão, do espesso nevoeiro de que ella até alli se achava cercada.

«Mas isto não era mais do que um passo no caminho de tão obscuras indagações; eu precisava ainda continuar com uma attenção rigorosa os meus trabalhos, para encontrar e deduzir do coração humano idêas clarar e firmes, para estabelecer o meu systema.

«Se, para exemplar d'estas indagações, eu escolhesse a minha propria pessoa, ou outra já creada e desinvolvida, parecia-me que seria facil enganar-me, tomando o falso pelo certo; porque a verdade poderia achar-se a tal ponto enredada com os habitos e prejuizos da educação, que eu não tivesse habilidade bastante para fazel-a apparecer.

«Então, uma pergunta, como ao acaso, abriu o sanctuario da natureza; fui entrando respeitosamente, e quanto mais me internava, mais meu espirito se esclarecia; cheguei ao throno onde a verdade ostentava toda a sua luz, encontrei o thesouro de segredos preciosos, e triumphei da minha ignorancia.

«Vamos agora á pergunta: Tem, ou não o homem o amor á sua existencia? tudo me convence da affirmativa. Discorrendo por todas as classes do reino animal, desde o insecto mais vil até ao quadrupede mais corpulento, o amor da existecia pantentêa-se por um modo incontestavel; é um amor ingenito com a natureza animal. O Omnipotente dotou a todos com o instincto de procurarem, por modos e artes particulares a cada especie, a conservação da vida. O homem, sobre o instincto commum a todos os animaes, tem a vantagem da razão, que, por milhares de variadas combinações das antecedencias com as consequencias, e das causas com os effeitos, lhe fornece infinitos recursos para defender a existencia; e a observação quotidiana prova que elle, não estando alienado, procura, com interesse, descobrir e empregar esses recursos em seu proveito. Engana-se algumas vezes nos meios, por defeito de entendimento, mas nunca da vontade.

«D'estes factos concluo, como de verdade rigorosamente demonstrada, que - o amor de nós mesmo, -- é uma idêa innata, é uma lei natural dada por Deus ao homem; e que d'ella, como d'um centro de luz, emanam outras muitas leis, por onde as nossas obrigações religiosas, moraes e civis, devem ser reguladas.

«Toda a sciencia do bom educador moralista consiste na feliz deducção d'estas leis, fazendo-as comprehender ao educando; e a sua arte será divina se elle, por meio de persuasão, lhe fizer aquirir o habito de sujeitar as suas acções ao imperio d'ellas. Deus lançou o germe da moral no coração do homem, e deixou á razão o cuidado de o desenvolver; se esta dedicada e trabalhosa operação fôr viciada, o homem, longe de se encaminhar á perfectibilidade, correrá para a sua destruição. A doutrina religiosa deve auxiliar a theoria deduzida d'estas leis; o principio da moral vem de Deus, e não póde ser proveitosamente desenvolvido, sem os auxilios, que deve prestar-lhe a sciencia que ensina as condições para unir a alma humana com divindade. A religião e a moral são meios de conseguir esta união, para a qual uma esperança consoladora acompanha o homem, até á exalação do ultimo alento vital.

«Aqui tenho, continuava eu, dizendo comigo, muito vaidosaa pela originalidade, aqui tenho um principio, que posso considerar com todos os quilates d'um verdadeiro axioma, parar fundemento do edificio, que pretendo levantar.

«Mas isto ainda não é tudo: não posso, firmada só n'esta base, explicar todos os phenomenos da vida moral. É certo que a vida social humana, póde definir-se uma reciprocidade constante de serviços, e o homem é social por sua natureza. Esta reciprocidade de serviços, religiosamente fallando, encontra-se estabelecida ao amor do proximo, tão aconselhado na religião christã; mas se eu encontrar uma ou mais leis naturaes, por onde possa mostrar a causa, pela qual a religião fez da caridade a sua regra prima, convencendo ao mesmo tempo do valor dos seus effeitos, o meu systema assentará em bases solidas.

«Durante a existencia da vida humana, desde o nascimento até á extrema decriptude, o homem é forçado a girar constantemente n'uma esphera, mais ou menos abundante de necessidades e dôres. A intima consciencia e a continua observação convencem de que o homem, sem o auxilio da sociedade, não póde reagir contra os males, que, por natureza da sua constituição, o accommetem. Segue-se, portanto, d'este principio, que a nossa conservação carece dos soccorros prestados pelos nossos similhantes; e que nós lh'os devemos prestar, em termos razoaveis, assim como quereriamos, que elles os prestassem a nós; em circumstancias identicas. Estes officios não são mais do que modificações do - amor de nós mesmos.

«Havia, porém, aqui; um vazio, que eu não sabia encher, sem recorrer á religião christã, e d'este modo o pavimento do edificfo ficava bem sensivelmente solapado em parte; porque, reflectia eu, - se é o amor da nossa conservação, que nos incita a fazer bem aos nossos similhantes, para, em casos analogos, recebermos retribuição, dirão os meus antagonistas, - de que serve contribuir; para a existencia das pessoas inuteis, ou antes pesadas á sociedade, como os miseraveis totalmente impossibilitados, e sem esperança de restabelecimento?

«Para responder a esta objecção hosytil, e remediar o defeito parcial do meu systema, caso algum dos mestres arabes desse n'elle, determinei comigo responder-lhe: - que o Divino Auctor da religião christã fez a salvação das nossas almas dependente das boas obras, practicadas, não com a mira em recompensas temporaes e mundanas; mas só pelo amor de Deus; e como não me era concedido supprir aquella falta recorrendo á doutrina christã, toda fundada em caridade, que a supprissem elles por meio da mahometana.

«E supposto os dois pedagogos gostassem mais de admirar, que de aprofundar; porque a estupidez tambem algumas vezes sabe escolher o papel mais appropriado ao seu charactar; e eu, se bem que ignorante, não me reconhecia por estupida; além d'aquella, preveni outras mais objecções, com que figurei que o meu systema poderia ser atacado.

«Preparada por esta maneira, determinei aprresentar-me ao mestre e dscipulo, que já do dia para dia esperavam que eu assistisse ás lições. Assim o fiz; porém nos primeiros abstive-me de toda a ingerencia no ensino; porque entendi que devia empregal-os em estudar a indole e genio do menino, para depois escolher o methodo mais conducente ao fim do meu cargo, julgando-me por muito feliz se o encontrasse docil, brioso e inclinado á virtude. Se elle tiver, dizia eu, estas preciosas disposições, ou ellas não estiverem já viciadas, não terei mais do que encaminhar a natureza; mas, no caso inverso, penosa e inutil será a minha tarefa; nem elle colherá fructo, nem eu gloria.

«lben... pareceu-me d'um natural correspondente aos meus desejos. Tinha uma viveza extraordinaria, acompanhada com alguma reflexão. Era uma criança de grandes esperanças. Estava, por habito, costumado a obedecer e a respeitar seus mestres; nem lhe fallava docilidade; sua memoria, ainda que, com futilidades, achava-se sufficientemente exercitada; qualidades excellentes, das quaes eu esperava tirar grandes resultados.

«Todavia, do meio de tão boa indole e felizes disposições, sobresaia já em excesso o orgulho mahometano, contrahido pelo costume de ouvir fallar sempre das classes elevadas com indiscreta adulação; e das inferiores com abjecta indifferença.

«Sabia de cór e salteado o credo e cathechismo mahometano. O mestre tinha-lhe feito apprender muitas historias absurdas relativas á sua religião e ao propheta. O menino recitava-as, com um enthusiasmo proprio da convicção.

«Não passava d'aqui toda a educação religiosa e moral do meu discipulo; nada se lhe explicava; de nada se lhe dava razão; nem o pedante mestre sabia dal-a. Se o menino, pela sua natural avidez de saber, ou eu, para o ouvir, lhe perguntava alguma cousa, o estupido impostor tinha sempre, na ponta da lingua, ou eu, para o ouvir, lhe perguntava alguma cousa, o estupido impostor tinha sempre, na ponta da lingua, promptas respostas, com que julgava desfazer todas as dúvidas, e contra as quaes nunca elle ouviu réplica; eram estas: - é a vontade de Deus revellada ao seu propheta; - assim o disse Mahomet, maldicto aquelle, que fôr contra a sua lei, etc. etc.

«Eu indignava-me, em silencio, contra um systema de educação, em que o terror suppria a falta de sciencia. Era um plano estudado attentamente para educar escravos; acostumando-os assim a crer e obedecer sem discussão. Isto era defeito original das instituições e organisação social mahometano; que a prudencia mandava respeitar.

«Não obstante, decidi-me ir suavemente descobrindo a minha opinião ao professor mourisco; e entre outras razões, em que a fundava sobresahia esta - que uma creança nobre, destinada a governar os povos, ou a viver n'uma roda brilhante da sociedade, devia receber uma educação superior á das classes ordinarias; e que, exceptuando os mysterios religiosas, a que, por sacrificio á divindade, convinha sujeitar a razão, tudo o mais que estivesse ao alcance da intelligencia magistral devia ser judiciosamente desenvolvido.

«n'uma das vezes em que eu practicava n'este sentido com o mestre, perguntei-lhe:

«- Existe, ou não, em todos os homens uma tendencia natural para a sua conservação e felicidade, a que chamam - amor de nós mesmos?

«- Existe, respondeu o mouro.

«- Devemos fazer aos nossos similhantes aquillo, que, em identicas circumstancias, e em termos razoaveis, desejariamos, que elles nos fizessem ?

«-- Devemos.

«- Somos, ou não obrigados a amar a Deus sobre todas as cousas, em reconhecimento do seu dominio supremo, e dos seus attributos divinos?

«- Somos.

«-- Muito bem, disse eu. Estamos concordes em pricipios. Agora ouvireis algumas das consequencias.

«Estas leis eternas de moral, e todas as filiaes, ou secundarias que partem d'ellas, não existiriam, sem aquell'outra primeira lei - o amor de nós mesmos.

«Se amo a Deus, é porque preciso dos auxilios da sua graça; é porque a minha boa fortuna d'esta vida, e a salvando da minha alma estão dependentes da sua vontade.

«Se faço aos outros aquillo mesmo, que razoavelmente eu desejaria que elles me fizessem a mim, é para que elles me façam outro tanto em casos identicos.

«Em fim, se devo fazer bem até mesmo ás pessoas inteiramente impossibititadas de me retribuirem serviços identicos, é porque a salvação da minha alma carece d'essas obras de caridade; iste segundo os principios da minha religião; segundo os da vossa não sei.

«Logo, posso dizer que - o amor de nós mesmos - é a primeira das leis eternas de moral universal, gravada por Deus no coração de todos os homens; e que ella é a mola principal de todas as nossas boas obras.

«Incumbe aos mestres intelligentes desenvolver estas bases conforme aos principios religiosos de cada povo, quer elle seja christão, quer mahometano.

«De todas as religiões revelladas, é a christã; a que offerece as condições mais racienaes e luminosas ao pleno desenvolvimento dos, principios universaes da moral; o que é, além d'outros, um signal characteristico da sua divindade.

«Mas porque homem, arrebatado pele amor de si mesmo, podia impecer o direito dos seus eguaes, era de necessidade que houvesse um outro principio, ou lei fundamental, em contraposição áquella por onde elle, esclarecido com a luz da razão, se governasse no amor de si mesmo, sem offensa de pessoa alguma. O omnisciente architecto assim como foi providente com as leis precisas e constantes para o governo do mundo physico; tambem o foi com as do mundo moral, imprimindo no coração do homem um principio, que eu não sei bem como o defina; não sei se lhe chame principio innato de justiça, se um sentimento do justo; é certo, que todos têm este sentimento, e que serve de pedra de toque, para, na ordem moral, poderem ajuizar, das acções e das alheias; sobre este principio, como base immutavel, estabeleceu o divino legislador da minha religião aquella sabia norma da moral e do direito, que eu já referi, adoptada por todos os povos: - devemos fazer ás outras pessoas o que desejamos que ellas nos façam.

«-- Tendes vós, continuei perguntando ao mouro, tendes vós dirigido a educação theorica e práctica do vosso discipulo por estes principios?

«-- Não.

«- Pois então, deixae isso por minha conta, que eu me encarrego de lhe provar até á convicção, em como todos somos obrigados, e a razão por que somos obrigados a cumprir aquelles deveres; e vós ouvireis.

«-- Sim, de muito boa vontade, disse o mestre. Isso, e o que o rei deseja, é tudo o mesmo; e podeis até vigiar e dirigir o joven Ihen... em todas as suas acções da vida familiar; porque d'este modo podereos evitar-lhe muitos defeitos introduzidos pelas criadas, e ensinar-lhe mais facilmente a lingua dos christãos e apprender a nossa.

«Eu andava satisfeita; por vêr que o mestre, nas diversas conferencias, que tivemos sobre os principios de educação, annuia aos meus desejos; e annuia de boa vontade, porque nem entendia o espirito da legislação mahometana, nem desconfiava do meu pensamento, que era alcançar todo o dominio sobre Iben..., fazer-lhe desconfiar da sua religião como insufficiente e falsa, e procurar depois ganhal-o a pouco e pouco para a christã.

«Por este modo, figurava-se-me que a educação do filho do governador de Coimbra se ia libertar dos limites estreitos e acanhados, com que até alli tinha andado sopeada, para se alargar por um campo mais extenso e luminoso.

«Assumi toda a auctoridade sobre o menino, e exceptuando o tempo destinado aos exercicios da religião mahometana, em que elle acompanhava seus mestres, sempre estava comigo.

«Todos me obedeciam cégamente; e até o proprio mestre de moral, de quem eu mais desconfiava, não se esquecia de estudar todas as maneiras de agradar-me; nem eu deixava de ter para com elle a necessaria contemplação.

«A narração da minha historia tem consumido mais tempo do que eu esperava; acho-me fatigada, e vós, senhores, sem dúvida, tambem o estareis de me ouvir: propuz-me concluil-a hoje; concedei, pois, que resuma o methodo seguido no ensino do meu educando.

«A minha melindrosa situação, e até mesmo os annos do meu discipulo reclamavam uma inversão na ordem do ensino. É costume rotineiro, entre mouros e christãos, na educação religiosa das crianças, começar dando uma definição de Deus, e fazendo-lhes decorar os principaes mysterios da religião, para depois deduzir d'aqui as regras da moral. Adoptei o methodo opposto, em vez de partir de Deus para a creatura; parti da creatura para Deus. Segui a ordem natural.

«As minhas prelecções eram sempre feitas, ao educando, na presença do professor, aos quaes Aragunta as transmittia em arabe.

«Appliquei todos os meus cuidados em fazer entender ao menino, que elle era egual a todos os outros homens, e todos os outros homens eguaes a elle; -- que a differença, se alguma se dava, apenas existia, ou na classe da sociedade, ou na abundancia da riqueza; mas que tudo iste era contingente, como a experiencia quotidiana nos convencia, por factos repetidos (que eu lhe mencionava): - que nós, assim grandes como pequenos, se reflectirmos sobre a nossa vida, nos vemos cercados de precisões, a que não podemos recorrer, sem um auxilio constante das outras pessoas; - e que esta necessidade, em que nos achamos, dos auxilios dos nossos similhantes, nos advertia da obrigação, que nós temos de contribuir par aa conservação d'elles.

«Quando vi, que o meu pupillo se achava sufficientemente instruido n'estas verdades, e habituado a dirigir por ellas as suas acções na práctica, no que eu empregava todos os meus cuidados, chamei a sua attenção para outro objecto mais alto, para o conhecimento de Deus. Fiz com que elle, por meio da contemplação das maravilhas e phenomenos da natureza, se convencesse da existencia d'um Ente Supremo, e infinitamente perfeito, que por um acto da sua vontade creou aos céos e a terra; o qual por leis eternas e immutaveis estabeleceu e admirivel harmonia do universo. Persuadia-o até á convicção, que nós eramos a obra mais perfeita, que saia das mão d'este Ente; e que esta perfeição consistia na faculdade de usar recta e livremente da razão, com que elle nos dotou; - que este Ente era o Deus dos christãos, e de todos os povos do mundo; - que elle era o nosso creador e conservador; - que a nossa existencia e felicidade se achava dependente da sua vontade; - que Deus não só estabeleceu leis constintes para o governo do mundo physico, mas tambem do moral; - que a primeira d'estas ultimas leis era o amor de nós mesmos, e que d'ella se derivavam todas as nossas obrigações, para com Deus, para com nossos pais, e proximos em geral; - que no desempenho d'estes deveres, na falta da lei escripta, que nos dirigisse, deviamos, antes de operar, attender ao principio innato de justiça que Deus gravou no coração do homem, para nos casos duvidosos nos guiados por elle.

«Além de muitas especialidades, a que eu fazia chegar a minha theoria, accrescentava ainda que - a lei escripta promulgada por Moysés, no Sinai não passava d'uma ratificação solemne d'aquelles regras primitivamente gravadas por Deus ao coração do primeiro homem, e d'ahi transmittidas a toda a subdescendencia; mas depois viciadas pela corrupção dos costumes, foi, se póde assim dizer-se, necessario avival-as por meio d'um monumento exterior, que posto diante dos olhos fizesse lembrar as obrigações sagradas que Deus nos manda cumprir.

«Gastei mais de dois annos em fazer comprehender esta doutrina ao discipulo e ao mestre. E consumi tanto tempo materia tão facil, não por causa d'Iben...; mas por causa do seu preceptor; porque á sua natural rudeza junctava o enjôo da obsecação. Eu tinha quasi todos os dias muitas objecções a desfazer; muitas questões a sustentar, em que talvez alguma das minhas opiniões ficasse prejudicada, se o antagonista fosse mais instruido que eu, e soubesse disputar com melhor ordem.

«Porém estas questões diarias aproveitavam ao menino, porque constituiam, em ponto pequeno, uma especie de eschola de philosophia moral, em que elle se costumava a pensar e a discorrer com reflexão.

«Os dois mestres apompanhavam algumas vezes o menino ao palacio do pai; e eu accreditava que elle estava contente comigo, porque me enviava mimos de valor; e eu os acceitava com demonstrações de gratidão, e sem escrupulo, porque os julgava recompensa d'um serviço licito.

«Os annos do meu educando tinham-se adiantado; elle no meu conceito, achava-se instruido assim nos principios da religião universal, coma em especial nos da christã; e até consegui, que elle de sua propria vontade pedisse o baptismo, o qual eu, com indizivel prazer, Ihe mandei administrar, com segredo religioso, por um sacerdote da egreja de S. Pedro, onde algumas vezes fui confessar-me.

«Havia já muito tempo, antes da restauração de Coimbra, quando os dois mestres mouros tinham sido substituidos por outros, para ensinarem ao joven Iben... o jogo das armas e a equitação.

«Eu conservava-me sempre na quinta das Fontes, tractada com grandeza e distincção; e o meu discipulo, conhecendo os meus desejos, tinha conseguido uma graça especial do pai -- licença para eu passear, quando quizesse; por fóra dos muros da quinta, mas sempre acompanhada, ao menos, de duas criadas; e até limites assás curtos, que me foram marcados.

«Andava n'esse recreio, quando ao enfiar a vista por entre os troncos das arvores divizei um homem, que me pareceu meu irmão; descobri o resto, como por negligencia para elle me conhecer; mas depois soube que nunca lhe viéra á lembrança, que me tinha tão perto de si. Desde logo entendi, que se tractava da minha restauração. E se houve facilidade em me apanhar, é porque eu estava disposta para isso, e até desejava ardentemente; o que eu não podia comprehender, era a causa por que se usou de violencia para comigo, tapando-me os olhos e a bôca; acreditei, que meu irmão me fazia a injuria de julgar, que eu estava alli por minha vontade; mas depois que me explicaram o enigma, ri-me com muita satisfação, e reformei o meu primeiro juizo. Lá ficou a minha Aragunta coitadinha! trouxeram outra criada, e deixaram a minha confidente!... Muita pena tenho d'ella!!...

«Muitos mouros distinctos alcançavam licença de governador para me fallar; e julgavam que esta concessão era uma prova de alta estima que os elle tinha.

«Fallavam-me em diversas...»

O amiudadado cantar dos gallos, e o tempo consumido n'esta dilatada narração indicavam, que a noite tinha passado além da ametade do seu curso; e parecia que Elvenda estava proxima a findar a sua historia quando um inopinado e repentino successo veio ainda paralysar a desejada conclusão, cortanto-lhe o sentido.

Um domestico, com ar e tom de admiração, veio dizer que á porta da casa batiam alguns cavalleiros, que pretendiam fallar ao pai da senhora Elvenda!!

Esta noticia causou grande alvoroço ás pessoas reunidas no terraço, e deu logar a variadas apprehensões. Arthur, Gundezindo, e outros cavalheiros d'aquella sociedade correram de pressa ás janellas que deitavam para a rua, porque já a esse tempo se achava trancado o portão do páteo. O primeiro d'aquelles perguntou ao de fóra, quem eram, e o que que procuravam.

- Iben... filho de... que foi governador de Coimbra, vem fugido procurar Elvenda e seus pais; e pede hospedagem amigavel e pacifica em sua nobre casa.

- Esperae pela resposta. Disse Arthur, que veio logo dar parte ao ajunctamento do que tinha ouvido.

É inexplciavel a agitação, que a vinda imprevista d'este novo e extraordinario hospede, causou no animo de todos os assistentes.

Elvenda, algum tanto perturbada com um accesso d'alegria, approximou-se respeitosamente de sua mãe, pedindo-lhe que mandasse abrir portas; e ella de prompto assim o mandaria, se Arthur a não impedira com uma prudente reflexão.

- É cauteloso, disse elle, que, antes de tudo, vão alguns exploradores observar as ruas da vizinhança para vêr se ha traição. Os resultados da guerra são incertos. E quem sabe se os mouros voltariam com maiores forças para reganhar o que perderam? E quem nos assevera, que isto não é uma cilada para nos apanhar? Eu proprio serei um dos exploradores.

Em quanto Arthur se occupava com outros n'esta diligenciaa, sua irmã, acompanhada com algumas de suas amigas, foi postar-se com o ouvido attento, por detraz d'uma das janellas a fim de vêr, se pela voz, podia reconhecer o seu discipulo. Com effeito; por algumas palavras que ahi ouviu, convenceu-se que era elle, Aragunta e mais pessoas; e correu em continente para a sala gritando -- é elle, é elle e a minha fiel Aragunta!... eu tinha um presentimento de que assim havia de acontecer...

Dentro em poucos momentos chegou Arthur a dizer que não havia embuscada; e que podia mandar-se que Iben... entrasse.

Depois de expedida a ordem, e que os mais distinctos cavalheiros da sociedade desceram ao páteo, na companhia d'Arthur, para receberem os hospedes, as outras pessoas tomaram os seus assentos na sala, e Elvenda o tomou ao pé de sua mai e tias. Todos em silencio aguardavam a chegada d'um hospede tão qualificado, esperando com anciedade assistir a um novo acto d'este drama tão complicado como extraordinario.

Não pôde saber-se o que Arthur e Iben... diziam um ao outro, no primeiro encontro; mas é de suppôr que este fizesse um esboço rapido da causa, que alli o conduzia; e que aquelle lhe dissesse, que seu pai já não existia; porque, depois, fallando á mai d'Elvenda, não lhe perguntou pelo marido, quando a natureza do negocio pedia a assistencia d'elle.

Não foi longa a expectação da assemblea. Logo, Arthur com Iben... á sua direita, e Gundezindo pelo outro lado, com o hospede no meio, todos com os braços entrelaçados appareceram na sala.

O mancebo árabe tinha tuma figura vistosa e elegante, que sobrepujava acima dos dois cavalheiros dos lados; seus olhos scintilavam como o lume do relampago; e d'um só volver elle percorreu com a vista todas as pessoas em volta da sala. Conduzido á mai d'Elvenda, ahi ajoelhou a seus pés, e invocando-a com o dôce nome de mai, lhe pediu humildemente a benção, e licença para fallar.

A respeitavel senhora mandou-o levantar, dizendo que reservava a benção, para depois de saber os motivos da sua vinda.

Iben... no acto de levantar-se, fixou seus olhos de fogo no rosto d'Elvenda, que, um pouco encoberta entre sua mai e tias, parecia ao mesmo tempo desejar cousas oppostas -- esconder-se, e ser vista. O principe, logo em seguida, fez um breve discurso n'este sentido:

«A natureza deu-me nascimento entro mahometanos; filho de pais illustres da gerarchia governativa, eu, seguindo a marcha das ambições humanas, devia continuar a carreira da minha existencia na mesma cathegoria, em que nasci, conservando a religião de meus progenitores; porém a Divina Providencia ordenou o contrario, e, resignado, obedeço aos seus decretos. Do céu, baixou um anjo sobre o palacio do rei de Coimbra, meu pai: foi Elvenda, cujo espirito, alumiado pela sabedoria do Altissimo, me instruiu nas verdades e principios da verdadeira religião, na de Jesus Christo, em que firmemente creio. A força da sympathia e a convivencia fizeram do discipulo um amante, e tel-o-iam convertido em esposo, se obstaculos invenciveis não tivessem obstado a uma união matrimonial. Acontecimentos extraordinarios preporcionaram a consecução d'um fim, que nós estudavamos alcançar por outros meios. Vós, senhora, tendes dois netos, caros penhores da minha amizade para com vossa filha: se este desgraçado acontecimento foi um crime, imputae-o a mim que de boa vontade soffrerei a pena humana; mas não crimineis a vossa innocente filha. De Lerea (Leiria?) fugi a meu pai, trago comigo um riquissimo espolio, mas não pude trazer os meus ternos filhos, sem que a fuga fosse presentida pelo avô, porque em tal desgraça nem elles, nem eu tornariamos a vêr a mai Elvenda não promette indiscretamente, estou certo que as suas promessas, a sua vontade, e as suas opiniões têm hoje ao lado de sua mai a mesma firmeza, que tinham ha pouco tempo na quinta das Fontes, na minha companhia. A nossa consciencia, a paz e decoro d'esta familia, e em fim a nossa felicidade, só depende da confirmação d'uma promessa feita por Elvenda sem vessa licença. Dignae-vos, senhora, com a vessa benção confirmar os votos de nosso coração. Mandae que um sacerdote á face dos altares assista á celebração do nosso consorcio. É o pai de vossos netos quem vol-o supplica... »

Ao findar esta ultima palavra de novo ajoelhou aos pés de sua futura sogra; é ella com Elvenda a chorar a seu lado, lançou a vista para Arthur e Gundezindo, esperando vêr no rosto d'elles um signal de approvação; não so estes, mas todos os assistentes indicaram por um aceno rapido e unanime o acto que ella queria vêr applaudido.

Então, lançando a benção ao principe, prostrado a seus pés, lhe disse -- sim, meu filho, recebe a minha benção; Deus a confirme no céu, e vos faça tão felizes a ambos, como todos nós desejamos. Agora mesmo póde celebrar-se o matrimonio; temos capella e sacerdote. Levanta-te, vai preparar-te para a confissão; e tu Elvenda faze outro tanto. O padre capellão, que cumpra o seu dever e depois de tudo prompto para a vossa união, mandae aviso para assistirmos a ella.

FIM.

INDICE.

Advertencia. Pag. V -- XI.

CAPITULO I

O rei de Leão põe assedio a Coimbra. Dados muitos assaltos sem effeito, os christãos e mouros concordam n'uma suspensão de hostilidades. n'este intervallo uma parte do exercito christão vai descantar das fadigas da guerra para as povoações da margem septentrional do Mondego, logo abaixo de Coimbra. Arthur emprehende estudar as avenidas da cidade pela parte esquerda do rio; n'esta diligencia descobre de acaso uma dama musulmana, e projecta roubal-a em desforra d'Elvenda sua irmã, que os mouros lhe tinham raptado violentamente. Gundezindo oppõe-se ao projecto, classificando-o como louco e temerario; mas por fim, cedendo a razoes especialissimas de familia, expostas por Arthur, dá as instrucções para a execução da empreza, e favorece-a. Bom successo d'ella, devido á intrepidez e astucia de Gundezindo. Em vez da esperada musulmana, apparece a irmã d'Arthur. Pag. 1--42.

CAPITULO II

Um troço de cavallaria sarracena corre ao atender dos raptores; Gundezindo sae á pressa d'uma embuscada, faz um discurso ao commandante dos inimigos, e consegue que elles se retirem, sem combate. Volta depois com seus camaradas em seguimento dos dois irmãos, e encontra-os já restituidos á vida. Colisão afflictiva d'Arthur entre o dever que lhe corria de acompanhar sua irmã, e o de acudir a Gundezindo; a força da amizade e da gratidão venoe a do sangue. Encontram-se todas, encontram sãos e salvos na povoação. A delicadeza d'Elvenda é inadvertidamente offendida por seu irmão. Vão todos trez para Coimbra; D. Fernando lhes concede audiencia, e encarrega a Gundezindo o plano do primeiro assalto á cidade depois de findas as treguas. E ella é expugnada. Pag. 48 - 88

CAPITULO III

A rainha convida Elvenda a ir com ella para a côrte de Leão, com a promessa de lhe fazer um bom casamento; a dama não acceita o convite. Gundezindo, annuindo ás instancias do rei, promette-lhe que, depois de ir com Arthur entregar Elvenda á familia, ambos se appresentariam na côrte. Festejos do povo pela restituição d'Elvenda. Esta dama, cedendo aos rogos das familias, que se reuniram em sua casa a congratual-a, começa a narração da sua historia; um erro na ordem narrativa a lança n'um angustioso trance; succumbindo a elle, desfallece; socorrida por um sacerdote, elle a conforta para continuar a sua narração. Pag. 89 - 99

CAPITULO IV

Rapto d'Elvenda; sua conducção para Coimbra; é lançada ao pequeno harem do governador ou rei mouro d'esta cidade; seu horror quando avistou o Eunuco; tentativa de seducção; medo que ella tem que o rei a visite; por fim elle apparece-lhe; discurso cheio de energia que ella lhe faz. Ferocidade com que o Eunuco procurou vingar-se. Vigilancia sobre as mulheres do palacio, como ellas passam a vida. Dialogo entre Elvenda e a sua criada Aragunta, com relação a uma atrocidade practicada pelo Eunuco contra um mancebo sarraceno; a dama dá a razão, por que olhava para aquelle joven mouro; e em seguida revela o primeiro sentimento de ternura, que n'outro tempo tivera por certo cavalheiro. Ella, triumphante do poder e da seducção, consegue licença para retirar-se a uma das casas de campo, que o governador tinha juncto da cidade. Pag 101-175.

CAPITULO V

Elvenda parte para a quinta das Fontes, onde residia um filho do governador junctamente com dois mestres arabes; como ella vivia na companhia d'esta gente. O governador manda-lhe ordem para ela dirigir uma educação moral do filho, prohibindo-lhe o emprego da doutrina christã. Difficuldades que ella encontra para cumprir, sem offensa da sua fé, nem perigo da sua vida, e como as venceu. Suas opiniões sobre educação. Consegue dominar o discipulo, instrue-o occultamente na religião christã. Elle pede, e é baptisado em segredo. Por fim, passa de discipulo para amante da sua educadora; ausenta-se de Coimbra com o pai, quando esta cidade foi conquistada; foge de Leiria para ir procurar Elvenda; chega quando esta dama contava a historia da sua vida, e casa com ella. Pag. 177 - 219.

Appendix A

Note:

Este local não podia ser outro senão aquelle, a que depois chamaram -- Quinta do Pombal, - e posteriormente -- Quinta das Lagrimas, -- bem celebrada, e conhecida em todo reino, pelas sentimentaes e tragicas recordações da infeliz Castro.

No anno de 1372, ainda existia n'esta quinta uma grande torre, pela quadra, ou largura d'um dos lados da qual devia regular-se a largura d'uma nova casa, que então ahi se havia de fazer, como se vê d'uma escriptura de aforamento celebrada em 3 d'Abril da Era de 1410 (anno de 1372), entre D. Affonso, prior do mosteiro de Sancta Crus de Coimbra, com seus conegos senhorios directos da quinta, e o foreiro Estevão Braz, onde se lê esta clausula -- «e que outro sim façam logo hùa casa de vinte covados em longuo, e em ancho responda pella quadra da torre da parte de Sancta Clara; e em eguall com a face da casa que sall (sae) mais que a torre contra a azenha; e em alto seja tão alta como a casa que óra hy está juncta com á torre...» Secret. do Governo Civil de Coimbra, Repartição do Thesouro, arch. dos conveotos, Liv. 5.º dos authenticos fl. 22, do Cartorio de Sancta Cruz.

Note:

Sculca.

Note:

Raussos.

Note:

Á porção da cidade de Coimbra cercada com as fortificações, chamavam antigamente -- Almedina.

Note:

Antanhol.

Note:

Hoje Sugeima.

Note:

Taveiro.

Note:

Nome que se perdeu, e não sei que povoação agora lhe corresponde.

Note:

Por causa das grandes mudanças, e alterações que tem soffrido o leito do Mondego abaixo de Coimbra, seria impossivel indicar hoje precisamente, depois de tantos seculos, o local onde eram esses portos; apenas póde dizer-se com probabilidade, que estavam acima de Taveiro.

Note:

Vej. nota 9.

Note:

Hoje Figueira do Campo.

Note:

Ançã.

Note:

Logarejo abaixo de Coimbra, onde, segundo creio, hoje chamado Pedrulha, ou ahi proximo.

Note:

Dentro e fóra do reino deram os Açôres o nome a muitas terras, como ás Ilhas dos Açôres, ao Valle de Andres juncto a Aguiar da Beira, á Ermida da Senhora dos Açôres. D'esta, que tão famosa se tem feito em a nossa historta, diremos alguma cousa, que escapou aos nossos historiadores. A uma legua de Celorico, caminhando quasi em direitura para a Guarda, se acha este nobre e antigo sanctuario na freguezia de Aldêa Rica, cuja matriz mostra ser d'uma mui avançada antiguidade: hoje serve d'uma egreja rural, transferido o priorado e egreja parochial para capella da Senhora dos Açores. Esta que era d'uma estructura gothica, e de trez naves, se demoliu inteiramente, e se reedificou de novo ha poucos annos. n'ella se conservam quatro primorosos quadros: o 1.º do apparecimento da Senhora ao rustico da Vacca: o 2.º do filho do rei resuscitado: o 3.° do Açôr, que, dizem, foi occasião do titulo da Senhora: e o 4.º finalmente da victoria, que os portugueses conseguiram dos hespanhoes não longe d'este logar sancto. Estas pinturas não têm mais fundamento que a tradição d'aquelles povos. Na capella mór, da parte do evangelho, se vê um levantado e respeitoso tumulo, que diz o seguinte:

REQVIEVIT. FAMVLA. XPI. (Chrisiti) IN PACE. SVINTHI: LIVBA. SVB MENCE. NOVEMBRES. ERA. DCCIIII.

D'este epilaphio semi-barbaro se manifesta, que no anno de Christo 666 se sepultou neste logar Suinthiliuba serva do Senhor; mas não se segue, que fosse religiosa em algum mosteiro, que n'este sitio existisse. Está demonstrado já hoje, que os christãos, não só d'aquelles tempos, mas ajuda até do seculo XIII, casados, solteiros, viuvos, por sua devoção, e não perdendo de vista as obrigações, que a lei sancta nos impõe, tomavam os titulos de servos e famulos de Deus, sem profissão alguma de instituto monastico ou eremitico. Porém decidir agora se já no seculo VII havia alli algum mosteiro, seria mais que temerario: o que não tem duvida, é, que houve tempo em que se fundou n'aquelle sitio uma casa religiosa. As columnas do claustro e as paredes das officinas, que em os nossos dias se descobriram nos passaes amplissimos dos priores, e a sua residencia terreira, e mui antiga, não permittem que nós hesitemos em uma cousa tão clara, e patente. Mas, de que orden, ou instituto fossem os seus habitadores, quando principiaram, ou se extinguiram, é cousa de que os documentos nos faltam: ao menos até agora não tem apparecido por um modo, que mereça aquella fé solida e imparcial, que na verdadeira historia se requer. Se houveramos de subscrever ao Auctor da Chronica dos Eremitas de Sancto Agostinho; diriamos, que já no tempo, que diz o epitaphio, alli tinham os seus religiosos um mosteiro; mas adduz elle alguma prova de tão extravagante pensamento?...

Desde os principios da monarchia portuguesa tiveram os nossos principes este Sanctuario na sua lembrança. El-Rei D. Manuel, seguindo as pizadas de seus maiores, no Foral que deu a Celorico no de 1512, declara que a terça parte dos montados, e maninhos se gastará com os cavalleiros, e escudeiros; e que por cavalleiros se interpretarão sempre os que forem feitos cavalleiros, ou escudeiros, havidos por escudeiros (posto que então não tenham cavallos), e todos os que acompanharem a Sina e Bandeira a cavallo edéa, que vão com ella, uma vez no anno, a Sancta Maria d'Açores em romaria. E os officiaes da Camdra gouvirão da dieta libertado aquelle anno, ponto que não vão a cavallo. A trez de Maio é que se te esta romaria pela Camara de Celorico, e cujo dispendio não só é costeado pelas dietas terças dos montados, e maninhos; mas tambem por um grosso Legado, que para isto deixou uma devota; não prevendo sem duvida, que um concurso de vaidade, glotemaria, e galhofa, para não dizer tambem desafios, irreligião, borracheiras, e immodestia, mal poderiam ceder em culto, e veneração da Senhora. Vilerdo, artigo - Açôres.

Note:

Ao cimo da Couraça de Lisboa, em Coimbra, havia um arco da antiga fortificação da cidade, ao qual chamavam da Traição; idêa tradicional, qae tem feito repassar de geração em geração a memoria d'esta entrada historica.

Ao terreno, fóra do arco, onde nos fins do seculo XVI os monges Bentos, e no principio do XVII, os Carmelitas descalços, lançaram as suas cêrcas, e fundaram as suas casas (os primeiros o collegio de S. Sento, e os segundos o convento de S. José) chamavam os antigos, em seus titulos, o sitio da Genicoca.

Note:

Muezzyn é um empregado do culto mahometano, que tem a seu cargo subir a torre (Minareh) da mesquita; onde em pé, d'olhos fechados, mãos abertas e levantadas, com os pollegares mettidos nos ouvidos; e com a voz esganiçada, recita cinco vezes por dia, voltando-se para cada um dos quatro pontos cardeaes, a oração Ezan ou Edzan, que é -- Deus é Altissimo, Attesto, que ha um só Deus, Attesto, que Mahomet é o propheta de Deus, Vinde é oração, vinde ao templo da salvação. Grande Deus. Ha um só Deus. -- E quando elle annuncia o Ezan ao raiar do dia, tendo dicto -- Vinde ao templo da salvanção, accrescenta -- Vale mais orar do que dormir. -- Para o emprego de Muezzyn costumam os mahometanos escolher um homem de voz forte e sonora.

Note:

Alboacen Iben Mahomel, Alhamar Iben Tarif, guerreiro potente, vencedor das Hespanhas, domador da Cantabria gothica e da grande alliança de Rodrigo; visto que Allah me collocou á frente da nação Nazarat, e me fez governador de Coimbra e de todo o territorio entre Goadalva, Mondego e Goadatha, determinei o seguinte:

Os christãos dos meus dominios pagarão o duplo dos tributos, que pagam os mouros. As egrejas pagarão 25 pesos de boa prata, por uma egreja ordinaria (parochial?); 50 por um mosteiro; e 100 por uma cathedral.

Os christãos terão em Coimbra, e em Goadatha um conde de sua nação, que os governará conforme as leis e costumes christãos, e julgará as questões que elles tiverem entre si; mas não applicará a pena de morte, sem consentimento do alcaide, ou do aguazil mouro, perante o qual fará ir o culpado, e mostrará as leis. O alcaide confirmará a sentença, e pela confirmar lhe pagarão 5 pesos de prata; e matem o culpado.

Nos logares de pouca consideração, os christãos podem ter seus juizes, que os governem, sem discordia; e se acontecer que um christão mate ou insulte um mouro, o aguazil, ou alcaide procederá segundo as leis dos mouros.

Se um christão fizer violencia á mulher moura, far-se-ha mouro, ou casará com ella, ou será morto; e se a mulher já fôr casada, tirar-se-ha a vida ao culpado.

Se algum christão entrar em mesquita, ou se blasfamar Allah, ou o propheta, ou se fará mouro, ou será morto.

Os bispos dos christãos não dirão mal dos reis mouros, e se o fizerem serão mortos.

Os sacerdotes não dirão missa senão á porta fecbada; e se fizerem o contrario pagarão 10 pesos de prata.

Os mosteiros que estiverem sob a minha jurisdicção possuirão em paz as suas propriedades, pagando os dictos 50 pesos.

O mosteiro das montanhas, chamado Laubarno (Lorrão), não pagará nada, porque os frades me indicam de boa vontade os logares da sua caça; porque acolhem bem os mouros; e porque nunca encontrei falsidade, nem maldade nos moradores d'este convento. Tambem possuirão suas propriedades, sem se lhes fazer a menor vexação ; poderão ir a Coimbra de dia e de noite, quando quizerem; terão a liberdade de vender e comprar sem alguma retribuição, comtanto que não sáiam do nosso territorio, sem nossa licença.

Tal é a nossa vontade, e para que todos a conheçam, fiz a presente acta, que dou aos christãos, para que elles a cumpram como uma das suas leis; e que a mostrem todas as vezes que os mouros a exigirem.

Se algum mouro se negar a obedecer-lhe terá pena de morte. Dada no anno 772 da Era dos christãos, e no anno 147, Lua 13 dos arabes -- J. M. Athamar.

G. B, Deping, -- Histoire général de l'Espagne.

Note:

Os mahometanos reputam infieis todos os povos, que não professam o Islamismo.

Note:

No seculo XI escrevia-se em pergaminho; ou porque o papel ainda não era assás conhecido, ou porque não estava geralmente em uso.

Note:

Talvez n'esta epocha se nomeasse por este modo a quinta das Lagrimas, em razão de trez fontes, que ali havia antigamente, e ainda hoje as ha; uma perenne, outra só apparece de inverno, e a terceira corre pelo aqueducto, a que chamam Cano dos Amores, que foi comprada ao mosteiro de Santa cruz (nota 1) pela Rainha Sancta Izabel, para as religiosas do seu convento de Sancta Clara fundado na margem esquerda do rio Mondego.

Note:

Na quinta das Lagrimas já não ha vestigio algum, que indique tão remota antiguidade; nem consta que d'elle haja memoria, senão a torre menciada em a nota 1, à pag. 12.

Note:

Omnia... quaecumque vultis ut faciant vobis homines, et vos facite illis. Haec est enim lex et prophetae. S. Matheus, c. VII, v. 12

Note:

Vej. nota. 22 a pag. 205.


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TextGrid Repository (2023). Portuguese ELTeC Novel Corpus (ELTeC-por). Elvenda, ou Conquista de Coimbra por Fernando Magno: Edição para o ELTeC. Elvenda, ou Conquista de Coimbra por Fernando Magno: Edição para o ELTeC. European Literary Text Collection (ELTeC). ELTeC conversion. https://hdl.handle.net/21.T11991/0000-001D-4422-E