ARTHUR LOBO D'AVILA
OS
CARAMURÚS
ROMANCE HISTÓRICO
DA
DESCOBERTA E INDEPENDÊNCIA DO BRAZIL
«Cosi a l’egro fanciul porgiamo aspersi» «Di soave licor gli orli del vaso» «Succhi amari, ingannato intanto ei beve» «E da l'inganno suo vita riceve».
Torquato Tasso -- Jeruaalemme Liberata.
LISBOA
JOÃO ROMANO TORRES -- EDITOR
Rua D. Pedro V, 84 a 88
1900
AO LEITOR
Causará, talvez, uma certa extranheza que n'esta obra conjugassemos o descobrimento do Brazil com a sua emancipação; porque aquelle facto histórico, é, pela grande maioria, considerado como uma gloria, e este, como um revez, na historia portugueza.
Fizemol-o, porém, muito propositadamente, e precisamente porque entendemos ser conveniente destruir no espirito popular essa errada theoria, e pareceu-nos ser momento azado, para o fazer, esta celebração festiva do quarto centenario da gloriosa descoberta da Terra de Santa Cruz por Pedro Alvares Cabral.
Segundo o nosso modo de vêr, e de encarar a missão histórica d’um povo, o valor e a significação d'um grande serviço prestado á humanidade, como é a civilisação e o desenvolvimento d’um rico paiz abençoado pela natureza, coroado pela sua emancipação, e pelo reconhecimento da sua maioridade, está, moral e philosophicamente, em uma altura por tal maneira elevada, que não póde resenttir-se das beliscaduras que o facto d'essa independencia póde ter dado ao amor proprio nacional, mal entendido, graças aos principios da maltadada sciencia de Machiavel, que foi, é, e será sempre: a perniciosa politica, -- e nada mais.
Foi essa politica, e mais nada, que, por uma negação absoluta da lógica, levou as constituintes de 1820 a recusarem á grande colonia da America os direitos e regalias que pedia, ao passo que os gloriosos revolucionarios liberaes as queriam para Portugal. Mas a força e o movimento soberanos da revolução, que eram socialmente elevados e justos, passaram sobre essas pequeninas questiunculas entre figuras politicas, para consummarem o facto historico, inevitavel e logico, do advento simultaneo do regímen constitucional nos dois paizes.
O Brazil, que a monarchia portugueza buscára como refugio quando a espada de Napoleão ameaçava destruir o seu throno europeu, e que, por esse motivo, fora elevado a todas as regalias de metropole, não podia rasoavelmente volver de novo á condição de colonia, justamente pelos votos dos liberaes, que pediam, ou antes, impunham, á realeza, a Carta, intimando-a a voltar a Portugal, já livre da invasão franceza.
Bastaria este facto, só por si, para justificar as pretenções do Brazil, quando n'esse paiz não houvesse todas as razões, sociaes e históricas, derivadas do seu desenvolvimento, da influencia que as idéas da grande revolução franceza tinham no Novo Mundo, e do exemplo das colónias inglezas e hespanholas da America, procurando e conseguindo a emancipação.
Portugal que descobrira, civilisára e desenvolvera o Brazil, e pois tambem a gloria de lhe transmittir o fogo sagrado da verdade. D'ahi a sua independencia, que era fatal e logica, mais conveniente e mais gloriosa, do que a teimosia que se aconselhava nas constituintes, para ter peiado e atrophiado um grande juiz, jungido a outro muito mais pequeno, que lhe dera a existencia como sociedade culta, que o equiparára a si, e que fazendo-se irmão seu, embora mais velho, não podia com justiça continuar a consideral-o menor e tutelado.
Acima, pois, do despeito politico de occasião, o facto historico da independência do Brazil é uma gloria humana, e social, para o paiz que o descobriu e desenvolveu. Muito maior alcance e valor, socialmente e historicamente, do que os protestos egoistas das côrtes de 1820, teem os factos do tronco monarchico portuguez desprender de si um ramo glorioso para constituir o imperalismo brazileiro; de Portugal e Brazil, passageiramente malavindos, se tornarem sinceramente irmãos e amigos; e de, materialmente, muito maior resultado auferir Portugal do Brazil independente, do que d'uma enorme colonia definhada pela falta de recursos d’uma pequena metropole.
Eis porquê, na nossa humilde opinião, a independencia do Brazil pode e deve ser invocada como titulo de gloria para Portugal, a par da sua descoberta.
A obra da independencia foi, pois, o digno e magestoso remate da não menos gloriosa tarefa da colonisação e desenvolvimento do Brazil, promovida pelos portuguezes, e começada alguns annos depois da assignalada descoberta de Alvares Cabral.
O primeiro portuguez colonisador da Terra de Santa Cruz foi Diogo Alvares, fidalgo minhoto, que o destino, atravez dos incidentes de uma vida altamente aventurosa, transformou em rei, póde dizer-se, de tribus indias, com o nome de Caramurú! Honrado e requestado pelos reis de França, nunca o fidalgo minhoto deixou de se conservar fiel vassallo da coroa portugueza, e de concorrer, com todo o seu poder sobre os indios, para alargar a força moral e material do dominio da sua patria no Brazil.
Este portuguez illustre, do qual descendem centenares de familias brazileiras, merece ser consagrado gloriosamente na historia a par do descobridor. Elle personifica bem essa predestinação dos portuguezes do norte do paiz, para serem, desde então até aos nossos dias, constantes e dedicados trabalhadores no desenvolvimento do Brazil.
Em um seu descendente, permittiu-se a phantasia do romancista encarnar o typo dos liberaes cooperadores do primeiro imperador. Brazileiros de nascimento, ou portuguezes, todos eram social e intellectualmente filhos das grandes ideias que desde a revolução franceza agitavam a Europa. De uns e de outros, não ha que dizer senão bem, quanto á forma por que realisaram a emancipação, que, pela força dos phenomenos sociaes e politicos, tinha fatalmente de se dar, e só se deu quando as constituintes, cumprindo a missão que o destino lhes assignalára, de para elle concorrerem indirectamente com o seu egoismo, collocaram o filho de D. João VI na imperiosa necessidade, que até então lealmente evitára, de seguir o conselho que o rei seu pae lhe déra, com o ultimo abraço, ao despedir-se para regressar a Portugal
-- «Bem vejo que o Brazil não tardará a separar-se de Portugal. N'esse caso, se me não puderes conservar a corôa, guarda-a para ti, e não a deixes cahir em mãos de aventureiros».
I
Na eira minhota
Rompia um dia calmoso de julho do anno de 1500.
Os malhadores, postados frente a frente, aguardavam o nascer do sol. Mal despontou no horisonte, os que olhavam para o Oriente descarregaram os malhos sobre a alta camada do centeio, e os do lado opposto imitaram-n'os, a compasso, fazendo cantar a eira muito ao longe, com o echo das pancadas, repetido pelas quebradas dos montes.
Principiava a malhada, e esta, e as esfolhadas, e outras fainas agricolas, entrelaçadas de folgares, como as videiras no Minho se enroscam nos arvoredos, eram famosas no dominio de Santa Martha, perto de Ponte de Lima, residencia senhorial de D. João Telles, e ao mesmo tempo grande assento de lavoura minhota.
O palacio acastellado erguia-se a distancia sobre um monte, coberto da magnifica vegetação d'aquella formosa provincia; e a estatura esbelta e elevada da torre de menagem, desenhando a sua sombra n'esse tapete de verdura, d'onde o castello emergia, vinha reflectir-se, como gracil figura de mulher, no espelho das aguas do poetico rio a que as hostes romanas chamaram Lethes, ou o rio do esquecimento, tal foi o receio de que, ao atravessal-o, a sua belleza lhes fizesse esquecer a patria distante.
Em outra eminencia ficava a eira, aberta aos ventos de todos os quadrantes, ampla, vastissima, lageada, propria ao mesmo tempo para receber os golpes dos malhos e dos mangoaes, sobre montes de massarocas de milho, e de espigas de trigo ou centeio, e para sobre ella dançarem formosas lavradeiras, ao som das violas e guitarras.
Isso, porém, seria á noite, na esfolhada tom que terminaria a festança do dia, que era cheio, e agora começava.
Grande assistencia de visinhos d'ambos os sexos, com seus trajos pittorescos, seguia attenta a compita dos dois bandos de malhadores, que não interrompiam o pesado trabalho, na ancia de fazerem arriar de cançados os contrários. -- A eira cantava cada vez mais alto, o enthusiasmo subia de ponto, cruzando-se os apupos proverbiaes do acto e os vivas inarticulados, que romperam n'uma acclamação estrondosa ao chegar um bando de gentis criadas, trazendo grandes cangirões do puro verdasco, mandado pelo senhor do dominio para reanimar as forças dos robustos batalhadores.
Houve um momento de armisticio, e os malhos descançaram emquanto os cangirões se esvasiavam; depois, a refréga seguiu com novo ardor, e só parou quando, pela volta do meio dia, o fidalgo, acompanhado pela familia e pelos visinhos illustres, convidados para a festa, lhes veio decretar o descanço, e ao mesmo tempo o assalto á refeição que os esperava nas cozinhas do castello, respondendo ao vivorio com que era recebido, com a phrase sacramental:
-- Ide-vos a compôr os malhos!
-- Viva o fidalgo! Viva o sr. D. João Telles! -- repetiram novamente os camponezes em côro.
Depois, a um aceno do senhor, o rancho foi descendo para o valle, emquanto o grupo dos nobres ficava contemplando do alto da eira o colear d'aquella serpente vistosa, formada pelas cores variegadas dos trajos, por entre a verdura da encosta, até a vêr trepar á eminência fronteira, e atravessar o eirado guarnecido de centenarias carvalheiras, sumindo-se pela alta porta do castello!
Brilhante era o acompanhamento de D. João Telles. Dir-se-hia um retalho da côrte de D. Manoel, cujo reinado venturoso começava por esse tempo, ostentando o fulgor das armaduras, o brilho das sedas e a magestade dos velludos, na scena formosa e condigna d'aquella paizagem do Minho. E' que no castello de Santa Martha havia festa cortezã, como na sua eira havia festa campestre.
A nobreza das redondezas fôra, mais uma vez, convocada para as suas salas, de altos tectos de carvalho lavrado, por um d'esses convites mysteriosos, com que D. João Telles, quebrando a reclusão em que vivia, com uma festa grandiosa celebrava o seu regosijo de velho portuguez de lei, quando a patria inscrevia na sua historia mais uma pagina gloriosa. Assim, o ultimo festejo realisado no castello de Santa Martha fôra destinado a celebrar a volta de Vasco da Gama da descoberta da índia.
Eram difficeis n'aquelle tempo as communicações da provincia chamada de Entre-Douro e Minho com o sul do reino. Mas, a despeito d'isso, fazendo largas despezas com postilhões, D. João Telles lograva andar em dia com todos os grandes successos da côrte, e saber muito antes dos senhores seus visinhos as novas que então mais interessavam á nobreza, as das armadas navegadoras dos mares d'Africa e do Oriente, em que todos tinham parentes ou amigos.
Por isso, os fidalgos dos arredores, recebendo o convite do nobre donatario de Santa Manha, em que mysteriosamente lhes dizia que a malhada do centeio e a esfolhada coincidiam com a celebração d'um novo regosijo nacional, ardiam na curiosidade de saber que noticias teria o castellão recebido da côrte.
Elle, porém, mostrára-se até então excessivamente mysterioso, respondendo com espirituosas evasivas ás discretas perguntas que a tal respeito os seus convidados lhe dirigiam, e desanimado por esta reserva, D. Aleixo da Cunha, veterano como elle d'Affonso V, deu novo rumo ao dialogo que traziam travado:
-- Famoso centeio tendes este anno! senhor D. João Telles, -- disse, apontando para o chão da eira.
-- Assim Deus que o mandou seja louvado! -- replicou o castellão; e reparando n'este momento em uma camponeza, vestida de lucto, que não seguira o rancho, proseguiu: -- Então, Maria? porque não foste com as tuas companheiras fazer as honras das cozinhas de Santa Martha aos malhadores?
-- Ah! bem sabeis, senhor! que os folgares acabaram para mim, como para viuva...
-- Coitada! -- exclamou D. Aleixo, intervindo na conversa. -- Sim! de ti se póde dizer a trova do poeta á excellente senhora: nem casada, nem solteira, não és donzella nem freira...
-- Por minha desgraça! -- exclamou a rapariga soluçando...
-- Animo, rapariga! -- tornou D. João Telles, carinhosamente, approximando-se da lavradeira e tomando-lhe a mão. -- Tem esperança! que algum dia el-rei nosso senhor concederá o perdão de teu marido, o meu afilhado Ribeiro...
-- Deus vos ouça, padrinho! e permitta que não morra no degredo...
-- Alegra-te, Maria! -- e D. João Telles, fazendo uma pausa, e relanceando um olhar aos que o rodeavam, sorrindo com intenção, concluiu: -- ainda hoje terás noticias d'elle por um seu companheiro de viagem!
-- Que dizeis?! -- exclamou D. Aleixo attonito.
E, no auge da admiração, do grupo de fidalgos partiram repetidas perguntas.
-- Pedro Alvares Cabral voltou ao Tejo?!
-- Arribou a armada?!
-- Recebestes novas de Lisboa?!
-- Sim! Grandes noticias temos da côrte. As náos com que Pedro Alvares se dirigia á India não voltaram ao Tejo, mas soffreram grandes tempestades. . .
-- Valha-me a Virgem! que meu filho vae na capitaina! -- exclamou uma dama afflicta..
-- Socegae, senhora! -- apressou-se D. João Telles a dizer -- que embora acossados pelo temporal, chegaram os navios a porto e salvamento, com nova gloria para o reino!...
-- Como assim?! -- obtemperou D. Aleixo -- se ha mezes apenas que Pedro Alvares Cabral sahiu para o Oriente?
-- Nada mais vos posso dizer agora -- redarguiu sorrindo o castellão. -- Esperae até á noite, e ouvireis um recem-chegado do outro mundo, que tudo vos dirá...
-- Novo mundo! chamam ás índias Occidentaes descobertas por Colombo ha oito annos! Iria lá ter a armada de Cabral?!
-- Esperae até á esfolhada -- repetiu D. João -- e tudo sabereis. Por agora, bem o vêdes -- continuou, apontando para o terreiro do castello -- a malhada ainda não terminou e reclama os seus direitos... Os malhadores ahi voltam, para enterrarem a velha.
Com effeito, a turba dos camponezes, sahindo novamente do castello em alegre algazarra, atravessára o eirado, e descia o valle, dirigindo-se novamente para ali.
Da multidão partiam estrepitosos vivas, gargalhadas e apupos, alternados com altos gritos de lamentação, soltados sempre por uma unica e mesma voz.
-- Ai! o viuvo! como vem desesperado -- observou rindo uma fidalga.
-- Não quer que lhe enterrem a sua velha; é da praxe, -- ajuntou um cavalleiro.
-- Eil-os que chegam -- accrescentou D. Aleixo, no momento em que, tendo subido a encosta, sobre a eira surgiram os primeiros camponezes.
-- Bravo! rapazes e raparigas! como vocês veem enfarruscados! -- excamou rindo o castellão. -- Alegro-me porque em Santa Martha seja rigorosamente observada a tradicção, e que os malhadores, assaltando as cozinhas com valor, fossem recebidos com não menor coragem pelas cozinheiras.
-- Assim foi, sr. D. João Telles! -- respondeu o que entre o bando fazia o papel de viuvo; -- estas cachopas fartaram-se de atirar pázadas de cinza para cima d'esses malhadores, antes que elles lograssem chegar aos tachos e ás caçarolas.. E elles agora vingam-se em mim! Querem enterrar-me a velha! -- concluiu em tom comicamente lamentoso, apontando para uma boneca de palha, estafermo como os judas queimados em sabbado d'Alleluia, que os malhadores traziam estendida n'uma padiola...
-- Pois não tens remédio senão conformar-te, -- respondeu-lhe o castellão rindo.
-- Enterre-se a velha! Enterre-se a velha! -- gritou o rancho.
E os malhadores, proseguindo na praxe da usança, começaram a andar com a padiola em torno da eira, cada vez mais depressa, seguidos pelo viuvo, tropeçando e cahindo propositadamente, entre os proprios lamentos e a algazarra das chufas, risadas e apupos dos camponezes.
Dentro em breve, a correria tornou-se desesperada. O viuvo parecia fazer esforços inauditos por alcançar a padiola e arrebatar a velha empalhada. -- Conseguiu-o finalmente, e partindo á desfilada, com o estafermo sobre os hombros, seguido pelos malhadores, que o deixavam ganhar terreno, effectuou a ultima phase da velha uzança, trepando ao alto d'uma cerejeira, onde pendurou a velha em guiza de espantalho.
Então, elevou-se da eira um vivorio estrepitoso, entremeado de bravos e applausos ao viuvo, que triumphante voltou ao eirado, trazendo na frente os malhadores, a quem, como a vencidos, impoz a pena de continuarem a malhar o centeio, tarefa que proseguiram a um gesto de D. João Telles, despedindo-se d'elles, emquanto dizia para os seus convidados:
-- Voltemos ao castello, senhoras e senhores! -- digamos adeus á eira, até á noite.
O grupo dos cortezãos afastou-se, retumbaram novamente as pancadas dos malhos, e as lavradeiras, rodeando o viuvo, começaram de entoar os seus alegres cantares.
A caminho do castello, o rancho dos convidados de D. João Telles foi-se fraccionando, ao sabor das conversas particulares travadas por diversos dos personagens que o compunham, e quando chegados ao valle, em cujo fundo corriam as mansas aguas do Lima, a meio da rustica ponte lançada sobre ellas, parou o ultimo par da nobre comitiva, -- um moço cavalleiro de esbelta e attrahente figura, e uma donzella de peregrina belleza e sympathico aspecto: eram Diogo Alvares, mancebo e fidalgo de Vianna do Castello, e D. Anna Telles, sobrinha e pupilla do senhor de Santa Martha.
Houve um momento de silencio, que bem traduzia a difficuldade d'uma explicação necessaria:
-- Estaes zangada? -- animou-se o mancebo a perguntar.
-- Zangada não, mas comprehendereis que satisfeita tambem não posso estar...
-- Porque razão, Anna?
-- Porque faltastes ao ajustado...
-- Vim a Santa Martha a convite de vosso tio!
-- Convidou-vos, para não faltar á cortezia, vindo a esta festa todas as suas relações de Vianna; mas devieis ter-vos abstido de aproveitar o convite, para desvanecer as suspeitas de que me cortejaes e eu vos cotrespondo...
-- Mas que tem o senhor D. João Telles contra mim?
-- Nada que vos seja desairoso... O motivo, já vol-o disse, franca e lealmente: pensa que a minha felicidade está em um casamento vantajoso, que ha muito tem em vista ...
-- Mas que devo fazer?!
-- Deixar-me conduzir, como vos pedi, a empreza de o convencer, sem melindrar a sua auctoridade, de que nunca acceitarei tal enlace.
-- Prometteis-m'o?
A donzella pareceu agastada com a pergunta, e depois de o fixar um instante concluiu com resolução:
-- Só costumo prometter uma vez! Já vos prometti...
-- Perdoae-me, Anna, -- começou o cavalleiro a dizer arrependido, e querendo tomar-lhe a mão; mas n'este momento ouviu-se a voz de D. João Telles, da testa da columna, chamando a sobrinha, que, depois de lhe responder, disse apressadamente a Diogo Alvares:
-- Disfarçae quanto puderdes... A' noite, na eira, falaremos...
E afastou-se, a acudir ao chamamento do castellão, emquanto o mancebo, seguindo o conselho que lhe dera, acabava de atravessar a ponte, e fazendo um largo rodeio na matta, se foi juntar aos convidados por ella dispersos.
II
O caderno de Pero Vaz de Caminha
Chegou emfim a noite anciosamente esperada por velhos e novos, por nobres e plebeus. Aos novos seduzia-os a perspectiva da escamisada, larga sessão, nocturna e livre, de paixões e namoros; aos velhos, o cumprimento da promessa de D. João Telles, de então lhes dar a saber as importantes novas chegadas da corte; e a todos, a curiosidade de conhecerem esse mysterioso personagem que o castellão designára por: recem-chegado do outro mundo!
Por isso, quando a noite fechou de todo, a eira de Santa Martha regorgitava de gente. -- A scena mudára de aspecto, mas nada perdera em belleza. -- Pelo contrario. A luz brilhante, mas incommoda, do sol, que illuminára a malhada, era agora substituida por um luar formosissimo, que dava um encanto magico á paizagem, de entre as meias tintas da qual destacava, por sua alvura, o lagedo da eira e o caiado das casas. Lá em baixo, entre as sombras indecisas do arvoredo do valle, o Lima, como uma serpente prateada, fazia resplandecer aqui e ali a corrente das suas aguas. E sobre a eminencia fronteira, o castello, illuminado em cheio pela suave mas intensa claridade da lua, parecia tomar proporções grandiosas e phantasticas, como se lentamente fossem crescendo para o céo, entre a perspectiva aeria de um horisonte de côr indecisa, mas extremamente suave, as suas torres e ameias.
Ao centro da eira, sobre o esbranquiçado lagedo, as camadas de centeio haviam cedido o logar a um alto monte de massarocas. Em torno, assentava-se uma extensa fileirade raparigas e rapazes, entregues á faina da esfolhada, e um espaço deixado em aberto, indicava os logares reservados para os escamisadores fidalgos, ainda entretidos no castello com as largas palestras que tinham seguido a merenda.
D. João Telles dera ordem para que não demorassem o concerto por sua causa, e assim, as violas e guitarras trinavam acompanhando os desafios poeticos, que se iam succedendo, emquanto ás massarocas se tiravam a camisa e as barbas.
Um serandeiro apaixonado, travado de razões poéticas, e incendido de amor por uma cantadeira afamada pela inspiração, pelo timbre encantador da voz e pela galhardia com que sustentava longos torneios, dirigia-lhe uma quadra ao sabor das trovas do tempo:
Por que meu mal se dobrasseVos fez Deus formosa tanto,Que não sei santo tão santoQue peccar não desejasse.
E ella, requebrando a figura gentil, realçada com o trajar vistoso das lavradeiras de Santa Martha, com o grande lenço-chale de cores matizadas enlaçado na cabeça como um turbante, cahindo as pontas airosamente pelas costas, o peito carregado de ouro brilhando sobre a camisa alvissima, e a saia de riscas em todas as côres, deixando vêr os pés calçados nas chinellas em bico, não demorou a replica:
Não é lei de humanidadeNem consente descripçãoDeixar homem liberdadePor viver em sujeição.
Não faltaram applausos á conceituosa resposta, e o cantador, estimulado nos brios e na paixão, acudiu logo á deixa:
Ouço-vos chamar madomaPorque amor em vós não cansaE ouvi que sois tão mansaQue qualquer homem vos toma.
Iam chegando n'este momento os convidados do castellão, mas na eira tudo estava suspenso dos labios dos dois contendores, e assim, a pupilla de D. João Telles, que foi das primeiras a chegar, pôde tomar assento para a esfolhada, emquanto Diogo Alvares, que a seguia, se assentava ao seu lado, no momento em que a cantadeira retorquia:
Sendo contra si esquivoContra si todos esquiva,Ledo, forro, sempre vivaQuem se livra de captivo.
-- Ouvis? -- perguntou-lhe D. Anna sorrindo. -- Segui o conselho d'esta quadra: vivei ledo e forro, em vez de vos captivardes...
Mas antes que o mancebo protestasse, o cantador replicou:
Vive mais morto que vivoO livre que se captiva:Ledo, forro, sempre vivaQuem se livra de captivo...
-- Ahi tendes a resposta: captivo de amor por vós, não está em meu poder aforrar-me, e só de vós depende que eu não viva mais morto que vivo...
-- De mim não, Diogo Alvares! Menina e moça, como se diz no romance, fiquei sem pae, e a sorte fez-me trocar a casa paterna pela de D. João Telles, meu tio. Segundo pae tem sido para mim, e não devo querer-lhe mal, por pensar em me assegurar o futuro, casando-me com um senhor de casa abastada...
-- Mas a riqueza é-vos indifferente, como me tendes dito!
-- Assim é... quanto a mim... mas não pensa do mesmo modo aquelle que da minha mão tem o direito de dispôr. . .
-- Direito?!
-- Ou antes, sou eu que, por gratidão e respeito, não ouso rebellar-me...
-- Preferis sacrificar-vos e sacrificar-me ?
-- Não! Prefiro usar do meio, unico, para convencer D. João Telles...
-- Qual?
-- A brandura, a persuasão, o tempo. Ainda lhe não disse que repellia o seu projecto, mas ainda lhe não disse tambem que o acceitava... Assim procuro ganhar tempo, ou para que abandone tal idéa, ou para que vós possaes declarar-vos abertamente, com probabilidades de resultado... Sabeis o que é preciso para captivar D. João Telles...
-- Sei -- replicou Diogo Alvares com amargo sorriso.
-- A fortuna...
-- Ou a gloria! -- concluiu D. Anna, levemente reprehensiva, como defendendo o modo de vêr do tutor.
-- Bem está -- concluiu Diogo Alvares. -- Uma ou outra alcançarei; só vos peço dois annos de espera, antes de accederdes á vontade de D. João Telles.
-- Ahi vindes outra vez, a querer que vos repita a promessa já feita... Pareceis desconfiar de mim... -- concluiu com desgosto...
Diogo Alvares ia protestar, mas n'esse momento alguma coisa de extraordinario lhe chamou a attenção. O tanger das guitarras e as canções tinham parado subitamente; o alegre bulicio da escamisada tornára-se attento silencio e espectativa, vendo surgir da encosta e avançar na eira o grupo dos convidados, em animada discussão, como de grande acontecimento. E poucos momentos volvidos, ao chegar o castellão acompanhado por um cavalleiro de meia edade, quando a claridade da lua lhe deu em cheio no rosto, muitos lhe proferiram o nome no auge da admiração:
-- Gaspar de Lemos!!
O caso não era para menor espanto e surpreza.
Esse que ahi chegava, acompanhado por D. João Telles, era um dos capitães da poderosa armada de treze navios, partida havia pouco do Tejo, com destino á India, e que todos suppunham a taes horas sulcando as ondas do antigamente chamado Mar Tenebroso.
-- Eis o recem-chegado do outro mundo! -- exclamou o castellão, com um sorriso de orgulhosa satisfação. -- Depois, passado um instante de silencio, o rosto do velho companheiro d'armas do Principe Perfeito como que se illuminou com o enthusiasmo das glorias presentes, e com as formosas recordações do passado, ao dirigir-se ao capitão da frota de Pedro Alvares Cabral:
-- E' aqui, Gaspar de Lemos! perante esta assembléa de nobres e plebeus, mas todos igualmente portuguezes no coração, que vos desejo ouvir narrar a forma por que Deus, em sua infinita graça, levou aquella gloriosa bandeira de Portugal á descoberta da Terra de Santa Cruz! -- e D. João Telles, assim dizendo, apontava para o grande estandarte branco, com a larga cruz vermelha de Christo, distinctivo dos capitães-móres das armadas, que fizera içar na torre do castello para celebrar a visita d'aquelle que Pedro Alvares Cabral enviára ao reino a participar a el-rei D. Manoel o importante descobrimento.
-- Ouçâmos! Ouçâmos! -- repetiram vozes diversas -- emquanto o castellão indicava a Gaspar de Lemos que tomasse assento sobre um dos cestos vindimos, que, de boca para baixo, serviam de cadeira aos personagens mais qualificados, ao passo que a restante companhia se accommodava á oriental, no chão, de pernas encruzadas.
Deslocou-se grande parte da assistencia, vindo formar roda ao grupo dos fidalgos, em cujo centro se achavam o castellão e Gaspar de Lemos, -- e aquelle, vendo finalmente todos attentos e accommodados, dirigiu-se de novo ao capitão:
-- Vamos, Gaspar de Lemos, começae a vossa narrativa.
-- Fraco narrador sou, senhor D. João Telles! por isso melhor farei lendo as notas, que trago commigo, tomadas pelo escrivão da frota, Pero Vaz de Caminha, que sobre ellas escreveu uma carta a el-rei, da qual fui portador!
-- Seja como dizeis!
Gaspar de Lemos, desabotoando o pellote, tirou d'um bolso interior um caderno, que desdobrou, começando a lêr:
-- «Em 8 de março, depois de celebrada a Santa Missa na ermida do Restello, na qual prégou o bispo de Ceuta, fazendo o elogio do capitão-mór, foi este despedido á beira-mar por el-rei D. Manoel, que ali o abençoou e aos capitães, embarcando-nos todos emquanto a frota salvava. Só no dia seguinte, por os ventos serem ponteiros, pudemos sair a barra. Deixando o Tejo, com rumo ás ilhas de Cabo Verde, ahi fizemos aguada, e depois fez-se a armada ao sudoeste para fugir ás calmas e mais facilmente dobrar o cabo da Boa Esperança.
«Em 24 d'Abril, porém, quando pelos cálculos dos pilotos nos deviamos achar a seiscentas e sessenta leguas de S. Nicolau, viu-se o mar cheio de hervas. No dia seguinte appareceram gaivotas, e finalmente, pela tarde, havia terra á vista! percebendo-se um monte elevado e arredondado, encostado ao sul a uma serra mais baixa e tendo na base uma praia coberta d'arvoredo. Monte Paschoal lhe chamou o capitão-mór, por ser descoberto na Semana-Santa, e Terra de Vera Cruz ao paiz. Ao sol posto os navios lançavam ferro em bom ancoradouro, a seis milhas de terra, approximadamente, e em dezenove braças d'agua.
«De madrugada navegámos para terra, indo na frente os navios que pediam menos fundo, sondando, até chegarmos a meia legua da praia, ancorando a armada em nove braças, na foz d' um rio, que Nicolau Coelho foi mandado a reconhecer. Quando entrou a barra, um grupo de selvagens, armados de arcos e settas, de côr acobreada e completamente nus, preparavam-se para a defeza.
«O capitão fez-lhes signal de que vinha com animo de paz, e a seu convite depuzeram as armas. Vindo á fala, não foi possível entender-lhes a lingua, mas fez-se troca de presentes. Deu-lhes Coelho uma carapuça vermelha, o capuz de linho que elle mesmo levava e um chapéo preto, recebendo adornos de pennas que traziam na cabeça e um fio de contas, que pareciam perolas ordinarias. -- Levantando-se vento rijo durante a noite, o capitão-mór, por conselho dos pilotos, mandou levantar ferro e navegar ao longo da costa em demanda d'um porto. Percorridas dez leguas, encontrou-se um, capaz de dar abrigo a navios de alto bordo, e depois do piloto Affonso Lopes ter ido sondar o ancoradouro, fundeou a armada, dando o capitão a este logar a denominação de Porto Seguro.
«Affonso Lopes, voltando das sondagens, trouxe dois indigenas, apanhados a pescar em uma canôa, moços de bella figura e feições agradaveis. -- Vinha um armado de arco e settas, e no alto da cabeça trazia complicado ornamento de pennas amarellas, alto de dois pés, e solidamente fixado sobre o craneo rapado com uma espécie de massame branco. -- Tinha tambem o lábio inferior furado, e passado atravez um pedaço d'osso branco do comprimento da palma da mão.
«Recebeu-os Alvares Cabral com certo apparato que os impressionasse, -- vestindo-se ricamente, cingindo o pescoço com um bello collar d'ouro, occupando uma cadeira magestosa, collocada, á falta de estrado, sobre um tapete, e em torno do qual fez tomar assento aos seus officiaes. Era noite, e a scena foi abrilhantada com a luz de vellas.
«Trazidos os selvagens á presença do capitão-mór, não pareceram impressionados com a cerimonia, conservando-se silenciosos. -- Passados instantes, um d'elles, fixando o collar, apontou para elle e para a terra, e o mesmo fez indicando um castiçal de prata. -- Julgámos que assim indicava haver no paiz esses metaes, mas depois reconheceu-se que só o seu brilho lhes attrahira as attenções. -- A custo provaram as iguarias e bebidas que lhes apresentavam; mas em compensação, um d'elles estendendo a mão para um rosario de contas brancas, que lhe mostraram com outros objectos, depois de o pôr ao pescoço, metteu-o na boca e comel-o-hia, se o deixassem, parecendo disposto a fazer o mesmo ao collar d'ouro do capitão-mór, para que apontava!
«Ordenou Alvares Cabral aos capitães Bartholomeu Dias e Nicolau Coelho, que desembarcassem na companhia dos dois selvagens, a quem foram deixadas as armas que traziam, e oferecidas camisas, barretes vermelhos, rosarios, cascaveis e campainhas, de que muito gostaram, indo tambem para ficar em terra, Affonso Ribeiro, vosso criado, sr. D. João Telles!
-- Ai! O meu desgraçado marido! -- exclamou afflicta a afilhada do castellão.
-- Consola-te, rapariga! -- acudiu o fidalgo -- por teres noticias d'elle, e saberes que está em paiz de boa gente e mais proximo do que se ficasse nas Indias Orientaes, como era seu destino.
-- Por certo! -- confirmou Gaspar de Lemos. -- Tão bem nos demos com as gentes do paiz descoberto por Alvares Cabral, que da armada até houve mancebos que desertaram para ficarem entre elles. -- Já vêdes, cachopa! que não é muito pesado o degredo de vosso marido.
-- Lá irão frequentes armadas, e qualquer dia ahi o tereis perdoado!
-- O céo vos escute, sr. D. Aleixo!...
-- Vontinuae, Gaspar de Lemos! se vos apraz...
-- «Mal chegaram a terra, correram os selvagens pela praia, e, atravessando um regato, só pararam junto do sitio em que se achavam bastantes indios, nús e pintados de varias côres, aos quaes pareceram contar a sua aventura. Alguns se approximaram, que receberam presentes, e com elles se foi Affonso Ribeiro, a quem um ancião acolhia affavelmente. -- Dentro em pouco, os indios vinham confiadamente trazer aos bateis, agua, fructas e outros productos do paiz, recebendo fazendas, cascaveis e rozarios. Entre elles muitos havia armados de arcos e setas, com altos adornos de pennas na cabeça, e mesmo pegadas por todo o corpo, parecendo chefes graduados. Homens e mulheres eram geralmente bem lançados e de estatura elegante, se bem que não muito avantajada, e todos em geral pintados, mas tendo o corpo guarnecido de côres e dezenhos differentes, e os beiços, o nariz e orelhas furadas e atravessadas por argolas e prégos d'osso ou de metal.
«Pela tarde d'esse dia, veio o capitão-mór, acompanhado pelos capitães, em bateis, navegar proximo á terra, mas não desembarcou, indo porém fazel-o em um ilhéo da bahia, escolhendo o logar para no proximo domingo de Paschoa fazer celebrar a missa. Ahi mandou levantar um docel, e debaixo um altar, muito bem adornados, em que o sacrificio foi celebrado por frei Henrique, capellão-mór da armada, acompanhado pelos frades que iam nos navios. Junto do capitão-mór, circumdado pelos capitães, e pelas tripulações, hasteava-se a bandeira de Christo dada no Restello por el-rei D. Manoel. Terminada a missa, prégou frei Henrique agradecendo ao Altissimo o ter escolhido aquella armada portugueza para descobrir tão formoso paiz e n'elle deixar implantada a Cruz. Multidão de selvagens assistia attenta ás cerimonias religiosas, e terminada a missa, quando o sacerdote subiu ao improvisado pulpito, os indios approximaram-se mais, assentando-se na terra, e assim estiveram emquanto durou o sermão. Quando acabou a prédica, ergueram-se, e fazendo resoar trombetas e buzinas, entregaram-se a danças e folguedos, expressando regosijo.
«Depois, o capitão-mór e os officiaes, entrando nos bateis, atravessaram o braço de mar que separava o ilhéo da terra firme, e n'esta vieram desembarcar. Os selvagens, embora armados, mettiam-se á agua, vindo ao encontro dos barcos, que ajudavam a avançar para a praia, e fazendo-se-lhes signal para que ali fossem depôr as armas, obedeciam promptamente, voltando desarmados a convidar os portuguezes a desembarcarem.
«Apenas alguns homens o fizeram, trazendo de terra grande quantidade de marisco, que na praia acharam.
«Pela tarde, reuniu Alvares Cabral a bordo da sua náo o conselho dos capitães, consultando-os sobre a conveniencia de expedir um dos navios da armada para Portugal, a levar a el-rei a nova do descobrimento, o que foi unanimemente approvado. Tambem se discutiu se conviria apprehender alguns indigenas para os enviar ao reino, mas foi geral opinião que não poderiam dar mais completas informações do paiz, do que dentro em breve o fariam os degredados que ali se deixassem, e que antes este acto de violencia podia causar má impressão nos selvagens, que tão doceis e amigos se mostravam dos descobridores. -- Com effeito, nos dias que ainda ali estivemos, se foram elles acostumando cada vez mais a tratar com os portuguezes, e embora difficilmente se fizessem comprehender, vinham ao nosso encontro logo que desembarcavamos, depondo as armas a distancia ao menor signal, e ajudando-nos a fazer aguada, e a cortar madeiras, com que os carpinteiros, por ordem do capitão, construiram uma grande Cruz, que, antes de partir, ali desejava deixar erguida como padrão de fé e da descoberta realisada.
«Na véspera do dia fixado para esta ceremonia, o primeiro de maio, resolveu o capitão-mór dar aos selvagens um exemplo de respeito ao symbolo que ali deixaria, e, acompanhado por muitos cavalheiros e gentes das tripulações, desembarcou, dirigindo-se ao sitio em [...] Cruz se achava encostada a uma frondosa [...] chegados ali, todos se descobriram, e, ajoelhando, [...] respeitosamente, convidando depois os [...] que os imitassem, o que elles fizeram [...], com visivel respeito.
«No dia seguinte, sexta-feira, 1° de maio, estando tudo disposto para a cerimonia, desembarcaram as tripulações, indo procissionalmcnte, com o estandarte bento alçado na frente, e os frades cantando, arvorar a Cruz em um logar escolhido, a dois tiros de bésta ao sul do rio. -- No sopé, foram postas as armas de Portugal e a esphera, divisa d'el-rei D. Manoel. Armou-se um altar junto a ella, no qual frei Henrique celebrou a missa.
«Os indigenas, agrupados a pequena disancia, imitavam os portuguezes em todos os seus movimentos de devoção, ajoelhando quando elles o faziam. -- A' missa, o capitão-mór e alguns cavalleiros receberam os Sacramentos. -- Depois, tendo-se desparamentado e conservando apenas a alva, frei Henrique subiu a um pulpito, do qual prégou o Evangelho do dia e as vidas de S. Filippe e S. Thiago, que a egreja commemorava, observando-se, entretanto, que um indio de avançada idade, apontando, ora para o altar, ora para a Cruz, fallava aos seus, parecendo fazer-lhes uma pratica religiosa.
«Foram então distribuidas aos indigenas muitas das cruzinhas de chumbo que Nicolau Coelho trouxera, e que eram restos do provimento levado por Vasco da Gama na descoberta da India, lançando-as frei Henrique ao pescoço dos selvagens depois de os ter feito beijal-as; e para lhes infundir mais respeito ao sagrado symbolo, os portuguezes, desfilando a um e um, beijaram a Cruz grande que se acabava de erigir.
«Alvares Cabral suppõe ser a terra que descobriu uma grande ilha, da qual avistou costas por mais de vinte e cinco leguas. -- Grande é a fertilidade do terreno, abundantes as agoas, temperado o clima, possante e viçosa a vegetação, doces e affaveis os seus naturaes. -- Taes são as informações com que me enviou a el-rei, nosso senhor, seguindo o capitão-mór sua derrota para as Indias Orientaes, onde, como sabeis, o leva o encargo de castigar o Samorim, rei de Calecut, pelos aggravos feitos a Vasco da Gama.
-- Famoso paiz deve ser esse que acabaes de nos descrever, Gaspar de Lemos! Bemdita seja a Providencia, que prosegue concedendo a Portugal a realisação das aspirações de gloria e poderio, que em seugrande coração abrigava ei-rei D. João o II, que Santa Gloria haja.
-- Não menos ricas do que as Indias do Oriente mostram ser as do Occidente, a que pertencem estas terras agora descobertas por Alvares Cabral -- accrescentou o velho cavalleiro D Aleixo.
-- Sim! Não menos ricas de certo, e muito melhores quanto a naturaes. Ao passo que os orientaes são falsos e rebeldes comnosco, estes indios das Terras de Santa Cruz parecem mansos e leaes no seu trato...
-- Voltemos ao castello, -- disse D. João Telles erguendo-se -- que a noite avança e a ceia nos espera: Demais, estas raparigas e rapazes teem ainda muito milho a esfolhar, c muitos cantares que ouvir.
Como se apenas se esperasse esta auctorisação do fidalgo, para fechar o parenthesis aberto nos folguedos da escamisada com a leitura de Gaspar de Lemos, logo os instrumentos soaram, e o bulicio e a animação renasceram, ao passo que uma cantadeira erguia a voz de timbre argentino e requebrado:
S. João adormeceuA' porta da sua tia,Acorda, João, acorda,Que já vem rompendo o dia.Oh! meu S. João da Ponte,Oh! meu bello marinheiro,Levae-me na vossa barcaP'ra ganhar muito dinheiro!
-- Ah! -- disse, ouvindo a trova, Diogo Alvares para a sobrinha do castellão, com quem conversava a meia voz -- Gaspar de Lemos, com a narrativa do rico paiz descoberto por Alvares Cabral, e agora esta rapariga com as suas quadras, deram-me o conselho a seguir: partirei para a côrte, e de lá seguirei na primeira armada a buscar fortuna nas Indias do Occidente...
Duas horas durou ainda a esfolhada, e essas foram de certo as mais felizes, e ao mesmo tempo as mais anciosas, na vida e nos amores de Diogo Alvares e de D. Anna; duas horas de protestos, de juramentos, de esperanças, de illusões, emfim, como tudo isso quer dizer, na realidade da Vida...
III
O protegido da rainha D. Leonor
Não tardou em ser de todos conhecida a resolução de Diogo Alvares, que vivia modestissimamente no seu pequeno solar próximo a Deuchriste, passando os dias em ociosidade fidalga, na contemplação dos choupos e salgueiros das
margens do Lima, ou percorrendo em caçadas os arredores de Cardellas, Serlães, Barco do Porto e Villar, todas
essas formosas povoações que, desde Ponte até Vianna, adornam as pittorescas margens do Lima.
A' semelhança do senhor Rameswood, heroe d' uma novella de Walter Scott, Diogo Alvares comprehendera finalmente que lhe era impossivel a vida parca entre as arruinadas paredes do seu pequeno castello, e que, como bom minhoto, tinha de ir correr mundo para ganhar a vida. Hesitára por vezes; o amor decidiu-o.
D. João Telles exultou quando isto soube. -- Não que estimasse ver o joven fidalgo distanciar-se da sua pupilla, a quem melhor do que ninguem sabia que elle fazia a côrte, mas porque em fim o via dar o passo que, por vezes, estivera para lhe aconselhar, o que só não tizera para d'esse modo não tomar um qualquer compromisso moral quanto ao futuro dos namorados. -- Experimentado nas coisas da vida, e nos mysterios do coração humano, buscára conseguir o mesmo fim por uma fórma indirecta, que havia sido o propôr á sobrinha um casamento vantajoso com um seu amigo de confiança. -- Em sua consciencia, nunca pensára em tal, a sério.
Sincero e leal, como era, logo que viu conseguido o fim que se propunha, foi o primeiro a applaudir a resolução de Diogo Alvares, ao qual, como amigo, offereceu valiosas recommendações para pessoas da côrte.
Recusou, de começo, o mancebo, julgando taes movimentos de sympathia devidos ao desejo de quanto antes o vêr longe de Santa Manha, mas convenceram-n'o as razões da sobrinha de D. João Telles, com a qual o castellão tivera larga conferencia, expondo-lhe francamente que nada tinha contra a pessoa e caracter de Diogo Alvares, não se oppondo a que esperasse dois annos até vêr se elle alcançava uma situação que lhe permittisse pedil-a em casamento. D'esta fórma, sem tomar compromissos directos com o mancebo, e dando tempo ao tempo, o senhor de Santa Manha achava-se bem comsigo mesmo, não contrariando os sentimentos da sua pupilla, e uzando discretamente do seu valimento para ajudar o pretendente, nas luctas da vida que ia tentar.
Diogo Alvares chegou pois a Lisboa trazendo, como a mais valiosa das recommendações, uma carta de D. João Telles para a rainha D. Leonor, viuva de D. João II, que n'esse momento entregue, como sempre, aos sentimentos piedosos que no seu coração de mãe enlutada se casavam com as dolorosas recordações da morte desastrosa do seu filho querido, o principe D. Affonso, se achava toda entregue ao projecto da fundação do mosteiro da Madre de Deus, nos terrenos denominados Horta das Conchas, em Xabregas, pertencentes ao solar de Alvaro da Cunha, e agora propriedade da sua viuva, D. Ignez, com quem a rainha andava tratando a compra.
Foi ali que Diogo Alvares foi encontrar a desditosa mãe, a quem o céo parecia enviar constantemente accentuadas coincidencias a lembrarem-lhe o filho que perdera, nos papeis importantes que gentis mancebos da idade d'elle vinham imprevistamente assumir nos factos capitaes da sua vida.
Assim, estando a rainha D. Leonor hesitante sobre a invocação que daria á casa religiosa que tencionava fundar, foi procurada por dois moços de singular gentileza, que, como diz a Historia Serafica e Chronologica da Ordem de S. Francisco, lhe offereceram uma imagem formosissima de Maria Santissima, para comprar, pedindo por ella tão avultado preço, que, apesar de muito agradada da obra, D. Leonor pediu uns dias para resolver. Deixaram os desconhecidos mancebos a imagem, e nunca mais appareceram a receber o preço.
E foi assim que a rainha teve, como aviso do céo, que a indicação enviada por via d'aquelles jovens, que lhe recordavam o filho, era de que a invocação do futuro convento devia ser da Madre de Deus.
D. Leonor, tendo pois ajustado a compra do palacio de Alvaro da Cunha, e solicitado do papa Julio II a licença apostolica para a fundação d'aquella nova casa religiosa, ia frequentes vezes visitar a propriedade, passando largas horas a contemplar da Horta das Conchas o espectaculo formoso do Tejo, cujo estuario magestoso se desenrolava a seus pés. -- Diogo Alvares percorria os jardins, em busca d'alguem que lhe indicasse onde encontraria a rainha, quando, ao virar d'uma alameda, guarnecida de alto buxo, divisou a poucos passos uma religiosa encostada á varanda sobranceira ao rio.
Parecia embebida na contemplação do magnifico panorama, não dando pela sua presença.
-- Minha madre! podereis dizer-me onde encontrar Sua Alteza?
A religiosa voltou-se ao ouvir estas palavras, e dando com os olhos no mancebo, pareceu tomada de vivissima impressão, exclamando:
-- Santo Deus! que similhança! -- mas logo, dominando-se, perguntou-lhe com voz affavel: -- Procuraes a rainha D. Leonor?
-- Senhora! sim.
-- Sou eu! -- concluiu, sorrindo doce e tristemente.
Diogo Alvares, mais impressionado ainda pela dolorosa e sympathica expressão d'aquelle rosto e d'aquella figura de mulher, do que pela consideração da sua alta gerarchia, approximou-se em silencio, e ajoelhando, beijou-lhe longamente as mãos, como se fôra a uma santa.
A mãe desditosa comprehendeu, melhor ainda do que a rainha, o sentimento d'esta reverente homenagem. Houve um momento em que o deixou estar a seus pés, contemplando-lhe em silencio o rosto; depois, com accento de grata melancholia, convidando-o a erguer-se, disse-lhe:
-- Quanto me recordaes o meu filho! Muito vos pareceis com o vosso fallecido principe D. Affonso!
-- Que Santa Gloria tem, senhora! porque está no céo como um anjo que era...
Duas lagrimas assomaram aos olhos da rainha, que por instantes chorou em silencio, fixando as agoas do Tejo, essas agoas que vinham lá da Ribeira de Santarem, onde se dera o tragico successo, e que d'hi a pouco se haviam de confundir na vastidão do mar, como as suas lagrimas desappareciam na immensidade da sua dôr, enorme, sempre a mesma, depois de tantos annos, se não era que o perpassar do tempo ainda a augmentava...
Por fim, o animo varonil de D. Leonor dominou a situação. Enxugando os olhos com um fino lenço de rendas, que tirou de sob a especie de habito de monja que trazia vestido, e que enganara Diogo Alvares, fez-lhe signal que o seguisse, e tomando assento em um banco de pedra, interrogou-o:
-- Sois o mancebo que me fez entregar uma carta de D. João Telles?
-- Deu-me a honra de me recommendar a Vossa Alteza...
-- E quereis seguir na primeira armada para a Terra de Santa Cruz?
-- Senhora! sim!
-- Não vos custa deixar Portugal ? vossos paes!... vossa familia?!...
-- Sou só no mundo, senhora!
-- Sois feliz! -- exclamou involuntariamente D. Leonor. -- Estaes livre de pezares! Quando chegar a vossa hora, partireis do mundo sem saudades, como agora partireis por esse mar fora...
-- Pelo contrario, senhora! Aqui deixo caras e saudosas recordações... Deixo amigos, deixo aquella que um dia ha de commigo constituir familia... Mas a necessidade, o dever de manter alto o nome que herdei, levou-me a procurar, como os homens novos da minha creação, o futuro n'esse paiz que Portugal gloriosamente tem descoberto!
-- Dizeis bem, Diogo Alvares! e não attenteis no que acabaes de me ouvir, expressão d'esta amargura que vive constantemente commigo, mas que não é, Deus me perdôe, o que a um futuro cavalleiro deve aconselhar a que foi rainha d'esta nobre terra, reservada pela Providencia a tão grandes destinos... Vós partilhareis d'elles, por certo...
-- Assim me não falte a protecção de Vossa Alteza...
-- Contae com ella, mancebo! Mesmo sem a recommendação de D. João Telles, a quem muito prézo, bastava que tanto vos parecesseis com o meu chorado Affonso, para em vosso interesse fazer quanto puder.
-- Ser-vos-hei eternamente grato, senhora!-- respondeu commovido Diogo Alvares, -- e se não estivesseis tão distante de mim pelo nascimento, procuraria agradecer-vos, amando-vos como filho...
-- Não é o nascimento, mancebo, que isso torna impossivel, mas sim haver logares no coração que só pódem ser occupados pelos que a natureza creou para isso: nem vós poderieis querer-me como filho, nem eu vos poderia amar como mãe... O que a morte levou, ninguem mais o torna a dar.
-- Ser-vos-hei eternamente grato e affeiçoado, senhora.
-- E com isso me fareis feliz, crêde, Diogo Alvares...
E porque na verdade a pobre mãe era feliz, entretendo-se com o joven que physicamente lhe recordava o filho que perdera, a tarde passou rapida, e só quando a noite chegou, é que D. Leonor percebeu quanto tempo durára a maior das audiencias que na sua vida concedera a alguem.
-- Faz-se tarde, mancebo! e por certo os que me acompanham extranharão esta demora... E' que nunca, olhando para as aguas do Tejo, tão docemente me pareceu estar com aquelle que perdi... Que me importa o mais? Vinde commigo! Voltemos á cidade, e ámanhã procurae-me no paço d'Alcaçova. Quero apresentar-vos a el-rei D. Manoel meu irmão, e elle vos nomeará para a armada que se aprésta.
D'ahi a dias estava cumprida a promessa, e Diogo Alvares não desamparava a Ribeira das Náos, ponto de reunião de todos os maritimos d'aquelle tempo, e dos que pretendiam sel-o.
Um acontecimento importante era ali incessantemente discutido: constava que D. Manoel chamára de Sevilha, com urgencia, o celebre navegador florentino Americo Vespucio, que tendo sido empregado da grande casa commercial dos Medicis, a qual tinha importantissimo trafico com a Hespanha, e sendo por ella enviado, na qualidade de agente, a Cadiz, procedeu á liquidação de contas com o armador Juanoto Berardi, tambem de Florença, e ao tempo vecino de Sevilha e amigo de Christovão Colombo.
Morrendo Berardi, em 1495, Vespucio acceitou o encargo de liquidar os seus negocios, e aproveitando o édito do mez de abril de 1494, do rei Fernando o Catholico, que declarára livre, mediante certas clausulas, o commercio das Indias do Occidente, descobertas por Colombo, partiu em uma armada de commercio, em que iam também Juan Dias de Solis, Juan de la Costa, e de que, provavelmente, Vicente Ianez Pinson era o capitão-mór.
Por duas vezes, entre 1495 e 1499, Vespucio percorrera as costas das Indias do Occidente, ganhando fama como maritimo conhecedor d'aquellas paragens e do seu commercio, motivo por que o rei de Portugal o escolheu para ir na armada que destinava a estudar a Terra de Vera Cruz, descoberta por Cabral.
Seduzido pelas vantajosas propostas do monarcha portuguez, e a despeito dos conselhos dos seus amigos, que lhe faziam notar a muita consideração em que o tinham os reis Catholicos, Vespucio chegou a Lisboa precisamente no momento em que estavam promptas a fazerem-se ao mar as tres caravellas mandadas apromptar pelo rei venturoso.
Sobresaltaram-se os brios dos capitães portuguezes, a quem a longa serie de proezas maritimas, desde as primeiras navegações dirigidas pelo infante D. Henrique, davam titulos indiscutiveis, tendo as recentes façanhas de Bartholomeu Dias, de Vasco da Gama e de Alvares Cabral, mostrado que em paiz algum havia navegadores maís sabidos e mais arrojados.
Levantaram-se protestos contra a outhorga do commando da armada a um extrangeiro, e por fim foi elle commettido a Gonçalo Coelho, indo Vespucio na qualidade de pratico.
Foi n'esta armada que embarcou Diogo Alvares.
A sorte, porém, havia escripto que a estrella do seu destino, que esperava encontrar radiante quando se mettesse ao mar, se converteria, pelo contrario, em signo funesto logo que se dispozesse a partir.
Havia tempo, que nas cartas de D. Anna encontrava passageiras allusões a soffrimentos physicos, e pedindo a D. João Telles informações a tal respeito, respondera-lhe, evasivamente, que a saude da sua pupilla não era tão boa como antigamente, sendo possivel que tivesse de vir á côrte para consultar algum méstre, como então se chamava aos clinicos.
Chegára o dia 13 de junho de 1501, e tendo-se despedido na vespera da rainha D. Leonor, contava Diogo Alvares deixar o Tejo, logo que a viração da tarde fosse propicia para a armada partir. Tudo se dispunha nas caravellas para levantarem ferro dentro em poucas horas, quando entrou a barra, e veio subindo o rio, um bergantim dos que frequentemente navegavam de Portugal para as costas da Hespanha e da proxima Africa. -- A' medida que o bergantim se approximava, parecia a Diogo Alvares descobrir pessoa conhecida na figura de homem que se distinguia á prôa, e passados momentos, com alegria misturada de inquietação, reconhecia D. João Telles. - Fundeou o navio proximo das caravellas, e falando-se facilmente com o porta-voz, soube o mancebo que o castellão de Santa Martha aproveitára a partida do bergantim de Vianna do Castello, para mais commodamente trazer a sobrinha a Lisboa.
Diogo Alvares estava n'um verdadeiro tormento.
A disciplina não lhe permittia deixar a caravella prestes a soltar as vélas, e ao mesmo tempo D. Anna, segundo lhe dizia o fidalgo, não podia subir á tolda, doente como vinha na camara. Assim passaram algumas horas crueis.
Por fim, contra o que se previa, o vento fixou-se da barra, tornando difficil a sahida da armada, que o capitão-mór addiou para o dia seguinte.
As tripulações tiveram licença para desembarcar, e Diogo Alvares, saltando n'um batel, fez-se conduzir a bordo do bergantim.
Ao portaló veio D. João Telles abraçal-o, fazendo-lhe uma prevenção que o inquietou:
-- Esperae um instante... Convém que previna Anna da vossa chegada... Está muito fraca...
-- Mas que doença tem? -- perguntou o mancebo apprehensivo.
-- Não sei! Não o souberam dizer os physicos do Minho... Veremos se o descobrem os de Lisboa... Volto já...
E o fidalgo desceu a escotilha, deixando Diogo Alvares entregue aos seus tristes pensamentos.
Em que situação de dolorosa anciedade ia elle partir para uma longa viagem!
Passados momentos voltava D. João Telles:
-- Podeis descer... Espera-vos...
Diogo Alvares seguiu-o, e assomando á entrada do camarote em que D. Anna se achava deitada n'um beliche, teve de fazer um esforço violento sobre si mesmo, para conter a dolorosa impressão que a sua vista lhe causára, tamanha era a mudança que na formosa menina se operára, tão profundamente accusava a existencia d'uma doença grave, que a consumia... Sem poder articular palavra, Diogo Alvares beijou-lhe as mãos. Estavam de gelo...
-- Ah! Felizmente ainda chegámos antes da partida da armada... Ainda te posso ver uma vez... Dizer-te um ultimo adeus!
E D. Anna falava com um enthusiasmo, com uma paixão, que nunca uzára para com elle, e mais ainda na presença do tio. O mancebo confundia-se, e inquietava-se, percebendo-lhe a exaltação febril.
-- Socega, minha querida Anna! A viagem comballiu-te...
-- Qual? Sinto-me melhor, mais forte... Fez-me bem o ar do mar... Se fosse comtigo por esse oceano fóra, em poucos dias estaria curada..
-- Que lembrança!
-- Não póde ser... bem o sei!... -- exclamou com accento de profunda tristeza. -- E' forçoso que nos separemos, por muito tempo talvez... Deus e a Virgem te protejam nos trabalhos que vaes passar, para dispôr o nosso futuro...
-- Assim o espero, e já provas tive de que as tuas préces em meu favor teem sido attendidas... Encontrei na côrte uma dedicada protectora na rainha D. Leonor, graças á vossa carta, sr. D. João Telles!...
-- Não tanto á minha recommendação, como ao facto de muito terdes recordado a Sua Alteza o filho estremecido por quem chora.
-- Li a carta em que narrou ao tio o vosso encontro, e enterneceu-me! Conheci quantas saudades a tua presença avivou na memoria da rainha, mas percebi tambem que, longe de te querer mal por isso, te ficou agradecida pelo muito que o conhecer-vos adoçou a sua dôr...
N'este momento, vieram avisar D. João Telles de que o esperava o batel, em que desejava ir a Lisboa antes de fazer desembarcar a doente.
O fidalgo despediu-se dos promettidos esposos, que ficaram sós.
-- Ides habitar o palacio d' Alfama?
-- Sim. Deve estar tudo disposto conforme o tio ordenou.
-- Agrada-te a troca de Lisboa pelos campos do Minho?
-- Ah! Não! A não ser a alegria de te ver ainda, de me despedir de ti, toda a minha ambição era antes só vir á côrte quando já fosse tua mulher, mulher do cavalleiro que a rainha ha de armar por sua mão, quando voltares d'esta viagem, em que ganharás honra e fama...
-- Se o não conseguir, não será por me faltarem as préces e os votos de dois anjos: tu e D. Leonor... Bem os preciso, que por mim fracos merecimentos possuo...
-- Tal não digas! que és ingrato comtigo mesmo. Descendes de bom sangue; não farás menos do que fizeram teus antepassados. Como elles, és digno de partir d'estas praias do Restello, onde el-rei veio despedir Vasco da Gama e Pedro Alvares Cabral, d' estas praias a que os navegadores portuguezes voltam sempre com os navios carregados de riquezas, e as bandeiras mais cobertas de gloria... Como elles, tu voltarás senhor de um nome famoso!...
-- Só para t'o offerecer o desejo...
-- Ah! com que satisfação e orgulho o acceitarei...
E D. Anna discorreu por muito tempo sobre projectos futuros, com extraordinaria imaginação, com uma verbosidade, com uma alegria febril que inquietava o mancebo. A sciencia estava longe então de conhecer n'estas particularidades os symptomas da terrivel doença que lhe minava a existencia. Diogo Alvares, sem mesmo possuir o saber dos clinicos do tempo, sentia-se, mau grado seu, inquieto, com aquella eloquencia, aquelle fogo, em que a excitação febril, combinando-se com a elevação do caracter, nobre e forte, da mulher do Minho, de todos os tempos, lhe revelavam a cada momento uma individualidade nova n'aquella que pensava conhecer intimamente.
Umas vezes, D. Anna fallava-lhe, animando-o, aconselhando-o, como se fosse sua mãe; outras, era a noiva apaixonada fazendo-lhe os mais ardentes protestos e juramentos; outras, ainda, dir-se-hia que, n'uma especie de fugitiva apprehensão, de quem borda apenas uma teia de brilhantes illusões, a saudade a enternecia, e fazendo-a desesperar da felicidade na vida, a levava a ter sobre tudo esperança e certeza de que haviam de ser unidos e felizes, n'uma outra existencia.
Assim passou o dia, dia que ficou memoravel na existencia dramatica e accidentada de Diogo Alvares, sem que elle jámais pudesse dizer se fôra o mais feliz ou o mais lugubre de quantos passára n'este mundo.
Quando os dois amantes se despediram, as estrellas brilhavam já no céo: D. Anna, que dizia achar-se muito melhor, teve forças para se erguer e vir acompanhar Diogo Alvares, e quando pela ultima vez lhe apertou a mão, indicando-lhe uma estrella brilhantissima que fulgurava no escuro da abobada celeste, disse-lhe:
-- Vês aquella estrella tão formosa? Seguir-te-ha nos mares que vaes percorrer! Olha para ella todas as noites: será como se olhasses para mim...
-- Assim farei, juro-t'o -- disse a custo o mancebo; e o coração apertou-se-lhe, ao lembrar-se que bastas vezes, pelas noites silenciosas do seu querido Minho, quando o coração se lhe apertava mais com as saudades dos entes estremecidos que perdera, se perguntára antes, se não seria o seu espirito que partindo da terra fora accender mais um d'esses astros fulgurantes do céo...
IV
Na «volta» de Santa Cruz
Pela madrugada seguinte, estando o vento de feição, largou do Restello a pequena armada de tres caravellas, que, sob o commando de Gonçalo Coelho, el-rei de Portugal mandava a reconhecer a Terra de Santa Cruz, descoberta por Alvares Cabral, que n'aquelle momento ia a caminho da India.
Tomou a armada o rumo das Canarias, em que não tocou, dirigindo-se aos baixios de Pargos, perto da costa d'Africa, onde se forneceu de peixe salgado. Tres dias depois, continuava a sua derrota tocando no porto de Bezeguide ou Bezenique, um pouco a sudoeste de Cabo Verde, onde hoje está estabelecida a colonia franceza de Goré, para fazerem aguada. Partindo d'este porto, navegaram dois mezes, sendo mais de quarenta dias sob temporal desteito, e tendo attingido, segundo os calculos de Vespucio, cinco gráos de latitude ao sul do equador, encontraram emfim terra. Fundearam além do cabo depois
chamado de S. Roque, e tomaram posse do paiz em nome do rei de Portugal.
Mandaram embarcações á descoberta, que voltaram dizendo os tripulantes não terem visto habitantes, comquanto a terra devesse ser povoada. Repetiu-se o desembarque no dia seguinte, para fazerem agoada e lenha, e já então appareceram alguns selvagens nos cimos dos outeiros proximos da praia. Não accedendo, porém, aos convites dos portuguezes para se approximarem, deixaram estes nas margens varias mercadorias, entre ellas espelhos e campainhas, que lhes queriam offerecer, e embarcaram novamente. Mal se afastaram, desceram os indigenas das eminencias, vendo os navegantes do mar os signaes de alegria e admiração com que tomaram posse do seu thesouro.
Na manhã seguinte, as alturas appareceram guarnecidas de indios, que accenderam muitas fogueiras, como a chamarem a attenção dos navegadores para voltarem a terra. Assim fizeram, mas desembarcando, continuaram os indigenas a conservar-se a distancia, receiosos. Chamavam, porém, os portuguezes para que os seguissem ás suas habitações.
Offereceram-se dois marinheiros para correrem o risco de o fazer, e internaram-se levando algumas mercadorias, ficando ajustado que a armada esperaria por elles cinco dias. Tendo-se passado, porém, seis sem que voltassem, resolveram os portuguezes procural-os.
Achavam-se, como de costume, guarnecidas as eminencias por selvagens, que d'esta vez tinham trazido comsigo suas mulheres, as quaes fizeram adiantar ao encontro dos portuguezes, como parlamentarias, o que parecia fazerem contra vontade. Para as animar, resolveram os portuguezes mandar um só homem a recebel-as, escolhendo para isso um moço de grande força e agilidade, voltando elles a embarcar. -- Cercaram as indigenas o enviado, com grandes demonstrações de curiosidade, mas entretanto desceu d'um outeiro uma outra mulher, que, chegando por detraz d'elle, com um páo lhe descarregou violenta pancada na cabeça, derrubando-o. Tomaram as outras immediatamente o infeliz, arrastando-o comsigo, emquanto os indigenas, correndo á praia, disparavam as settas contra os bateis. -- Tinham os portuguezes encalhado as embarcações em um banco d'areia proximo, e no primeiro momento, surprehendidos pela repentina aggressão, só cuidaram de as pôr a nado para se fazerem ao mar. -- Mas logo, cobrando animo, responderam ao ataque disparando algumas espingardas contra os indios, que em confusão fugiram para os outeiros. Com elles foram as mulheres, arrastando o corpo do infeliz mancebo, e logo que alcançaram uma eminencia, com grandes signaes de regosijo o mutilaram, e
accendendo uma fogueira ahi assaram pedaços de carne, que immediatamente comeram!
Queriam muitos portuguezes desembarcar e vingar a infeliz victima d'aquella horda de antropophagos, mas não o permittiu o capitão, como Vespucio conta na sua relação da viagem.
Partindo d'este logar, de funesta memoria, seguiram a costa mais alguns gráos para o sul, encontrando populações mais dignas de com ellas se travar relações.
Ahi se deteve a frota alguns dias, e tão amigável trato tiveram os navegantes com os indigenas, que tres d'elles se offereceram para os acompanhar na sua navegação costeira, que tinha por fim estudar o paiz e as suas producções.
Em todos os pontos que tocavam, se mostravam os indigenas igualmente affaveis, recebendo os portuguezes da melhor fórma, trocando os productos da terra pelas mercadorias que lhes offereciam. Eram estes indios extremamente elegantes de constituição, fortes, e melhor pareceriam ainda, se não fossem os estranhos atavios de plumas que lhes ornavam a cabeça e traziam também pegados a varias partes do corpo, quasi todo pintado a côres. Nos beiços, nariz e orelhas, pendiam-lhes argolas e outros enfeites de osso. As mulheres só tinham as orelhas furadas, mas estas largamente, trazendo como que compridos brincos d'osso que lhes chegavam aos hombros.
Não obstante, da observação dos seus costumes e das suas habitações, em que descobriram pedaços de carne pendurados, que de começo os portuguezes suppozeram ser de caça salgada, reconheceram que estes indios eram tambem antropophagos. E ás observações dos portuguezes contra tão horroroso alimento, responderam naturalmente: que não o havia para elles melhor, do que a carne dos inimigos mortos em combate.
Exceptuando esta repugnante circumstancia, tudo no paiz concorreria para captivar os portuguezes. Vegetação esplendida, rica de fructos e sementes de varias especies, aguas limpidissimas, flores das mais bellas formas e enebriantes aromas, aves de brilhante plumagem e harmoniosas vozes, tudo se conjugava para lembrar um paraiso terrestre n'esse abençoado torrão a que os portuguezes tinham chegado a 28 de Agosto, dando por esse motivo o nome de Santo Agostinho ao cabo que d'elle avançava para o mar.
Navegaram dobrando-o, depois de longa estada n'estas paragens, e em 4 de Outubro descobriram a embocadura do rio de S. Francisco, e no primeiro de Novembro uma formosa bahia, a que deram o nome de Todos os Santos.
Depois navegaram para o sul, e successivamente descobriram o Cabo de S. Thomé em 21 de Dezembro, e no 1º do anno o porto a que chamaram Rio de Janeiro. Pelo mez adiante tinham descoberto mais o porto de Angra dos Reis, a Ilha de S. Sebastião e o Rio de S. Vicente. Mais para o sul ainda, descobriram o porta a que denominaram de Cananea, e aqui deixaram um degredado, que por algumas dezenas de annos viveu n'estas paragens, communicando com os navios portuguezes que ali tocavam.
O espirito aventureiro, a ancia de descobrir paizes, ardia em todos os corações. Dos que mais se entregavam a estes sonhos de gloria era Diogo Alvares, e assim, constantemente incitava Vespucio a que aconselhasse o capitão-mór a devassar novos horisontes.
Deixando este ultimo porto em 15 de Fevereiro de 1502, entranharam-se no mar, para sudoeste, mais de quinhentas legoas.
Em 3 de Abril uma tempestade medonha obrigou-os a cassar todas as vélas, correndo em arvore secca por alguns dias. -- As noites eram excessivamente longas nestas paragens, chegando a durar 15 horas! O frio era rigorosissimo. -- A 7 de Abril descobriram costas, ao longo das quaes navegaram, mas completamente deshabitadas. -- O temporal crescia cada vez mais, ameaçando fazer naufragar os navios nas costas desertas, a temperatura dizimára já as tripulações, os viveres começaram a escassear. -- N'estas criticas circumstancias,
tendo feito promessas de missas e romarias, deu o capitão-mór ordem para mudar de rumo, tomando o de Portugal.
Segundo os calculos depois feitos pelos mais auctorisados geographos, estas horrorosas paragens, em que a armada de Gonçalo Coelho esteve prestes a perder-se, eram as costas da Georgica Austral.
Seguindo na volta de Portugal, o rumo de nordeste, e das costas africanas, em 10 de Maio chegavam ao porto de Serra Leoa. Ahi queimaram uma das caravellas, que já não podia navegar, partindo para os Açores, aonde tocavam quinze dias depois, e finalmente em 7 de Setembro davam fundo no Tejo, depois de perto de anno e meio de navegação.
A longa e trabalhosa viagem que a armada de Gonçalo Coelho acabava de fazer, não foi apreciada no reino como merecia, e este facto tornou-se muito sensivel para Diogo Alvares, não só porque interessava ao seu futuro, mas porque tendo-se ligado durante ella por estreita amisade com Vespucio, instruira-se profundamente nos conhecimentos maritimos, commerciaes e politicos, em que o florentino era eminente, e conhecia o erro commettido pelo rei de Portugal.
Com effeito, n'esse tempo, D. Manoel, como os influentes na governação do reino, tinham todas as esperanças e attenções postas no fascinador Oriente, e julgavam dos resultados das emprezas maritimas segundo as riquezas de q-ue as náos voltavam carregadas. Não alcançavam mais as suas vistas, por então, do que o resultado immediato.
Já não fizera grande bulha a descoberta de Santa Cruz por Alvares Cabral, e menos valor se ligou a esta segunda viagem a essas paragens, para as quaes tres caravellas haviam partido, e só duas voltavam, sem trazerem ouro e ricas especiarias, como vinham da India, e apenas o páo brazil, que, ainda assim, pelo seu valor, d'ahi a pouco havia de fazer substituir pelo seu nome o de Santa Cruz, primeiro dado pelo descobridor áquella terra.
Dias depois de Diogo Alvares ter chegado a Lisboa, achava-se com Vespucio na Ribeira das Náos, quando, no meio de grandes acclamações e regosijos, desembarcou João da Nova, que voltava da India com os navios da sua armada abarrotados de especiarias.
Um amargo sorriso deslisou no semblante do florentino:
-- Ahi tendes, Diogo Alvares! como em Portugal se avaliam as navegações! Ah! D. Manoel receberá talvez ainda uma dura lição, como recebeu D. João, o II, que santa gloria haja, quando não confiou no que lhe assegurava Colombo...
-- Tende esperança, Americo! Já fallei á rainha D. Leonor na relação da nossa viagem que estaes acabando para entregar a el-rei... Contei-lhe como, em vosso grande saber das coisas do mar e do que concluís das observações dos astros, feitas nas vossas viagens, estaes convencido que a terra descoberta por Colombo, é parte do mundo diversa da que habitamos e da Asia, e que, penetrando mais pelos mares terriveis até aos quaes chegámos, se dará a volta a esse continente e se terá mais curto caminho para as Indias Orientaes...
-- Sim! Iria jural-o! E se outra vez me metter ao mar, será com navios, meios e regimento dado por el- rei para tentar tal empreza.
-- Tenho fé que n'ella vos acompanharei...
-- Sim? Contaes embarcar novamente? Nada me tendes dito, Diogo Alvares! de vossos negocios particulares. Que noticias tendes da saude da vossa promettida?
-- Animadoras, graças a Deus! D'aqui a dias partirei para o Minho.. Só espero que tenhaes acabado o vosso relatorio para o lêr a D. Leonor, antes de ser entregue a el-rei.
-- Vou para casa concluil-o. -- Passae por lá amanhã, cedo, e podereis leval-o á rainha vossa protectora...
E os dois amigos despediram-se e separaram-se, no momento em que se ouviam, já distantes, os echos dos vivas com que o povo saudava João da Nova e os capitães seus companheiros, que se dirigiam ao paço de Alcaçova, onde el-rei os esperava.
N'esse mesmo paço, d'ahi a dias, recebia D. Manoel, muito em particular, a Diogo Alvares, a fim de com elle se informar minuciosamente sobre o que Americo Vespucio sustentava no relatorio da sua viagem. -- A leitura fizera impressão ao monarcha, e mais ainda o que lhe dissera a rainha sua irmã, espirito do mais largo alcance, educado nas profundas vistas politicas d'esse grande rei de quem fôra esposa.
-- Qual é a vossa opinião? Diogo Alvares!-- perguntava ao mancebo o rei venturoso. -- Não achaes demasiada ousadia, esta de Vespucio, assegurando que na sua proxima viagem passará ao Levante, pelo sul?!
-- Senhor! Novato como sou na arte da navegação, não me sinto com valor para discutir as affirmativas d'um marinheiro como Americo Vespucio... Mas o que posso assegurar a vossa alteza, é que durante a nossa longa derrota o vi sempre estudar, dia e noite, a terra, o mar e o céo, e sustentar que, do que observava, lhe vinha a convicção de que era um «Novo Mundo» o paiz descoberto por Colombo, e não como este pensa, uma parte da Asia...
-- Sim, é o que sustenta no relatório...
-- Como tereis lido, senhor! Vespucio diz que os auctores antigos affirmam que para lá da linha do equinocio, na direcção do sul, não ha mais terra firme, mas somente o mar Atlantico. Ora, a verdade, senhor! é que nós encontrámos terra algumas centenas de legoas para o sul da linha, e essas terras são povoadas.
-- Esse ponto é importante... Mas, paizes e gentes barbaras...
-- Quem sabe? senhor! Não encontrámos, é certo, vestigios de n'elles haver metaes preciosos. Mas tanto como se os tivessem valerão, se por elles se poder fazer a passagem para oeste, e se n'elles se poderem refazer as armadas que, mesmo pelo Cabo da Boa Esperança, navegam para as Indias do Oriente...
D. Manoel pareceu bastante impressionado com estas palavras, e como se lhe acudisse uma idéa subita:
-- Esperae -- e começou procurando algum documento no monte de papeis que tinha na sua frente. -- Deixae-me vêr o que diz João da Nova...
Um sorriso de desdem e despeito, que não escapou a el-rei, passou fugitivo no rosto de Diogo Alvares, que se conservou em silencio.
Entretanto, D. Manoel lia os relatorios dos dois navegadores, cotejando um com outro. Passados momentos, com visivel satisfação, se dirigiu a Diogo Alvares, sorrindo...
-- Ah! vós não gostaes do castelhano. Não morro tambem de amores por elle, não, como não morre Vasco da Gama, nem Bartholomeu Dias, nem D. Francisco d' Almeida, e comtudo, todos reconhecemos que João da Nova é homem que sabe mandar uma náo...
-- Quem duvída, senhor ? Mas d'ahi a saber tanto como esses illustres navegadores, ou como Americo Vespucio...
-- Pois, ouvi, Diogo Alvares: João da Nova, no relatorio d'esta sua ultima viagem, faz afirmativas que confirmam a idéa que Vespucio hoje tem, a mesma que primitivamente tinha Colombo: affirma que as especiarias que se encontram nas Indias Orientaes, e de que traz os navios carregados, não são lá creadas, mas trazidas d'outros paizes do mundo, que se encontrarão navegando em volta pelo occidente! Recommenda que se siga a costa de Malaca, que fica já para o sul da linha do equinocio!
-- Ahi tendes, senhor! -- exclamou Diogo Alvares, triumphante.
D. Manoel, depois de reflectir por alguns instantes, ergueu-se, e dando a audiencia por terminada, despediu o mancebo com estas palavras:
-- Estudarei o assumpto e avisarei os do meu conselho sobre quanto Vespucio diz na relação da sua viagem, e estae certo, Diogo Alvares, que se mandar nova armada, como propõe, e vós desejaes, haverá um navio de que ireis por capitão.
N'este momento entrava na sala a rainha D.Leonor, que, ouvindo estas palavras, commovida se dirigiu a el-rei:
-- Agradeço do coração a vossa alteza o favor que se dignou conceder a Diogo Alvares...
-- E eu, senhora! como poderei agradecer-vos e a sua alteza a protecção com que me honram? -- e o mancebo beijou suecessivamente as mãos a D. Manoel e á rainha sua irmã..
-- Agora, Diogo Alvares, podeis já partir para o Minho, a levar esta boa nova á vossa promettida, que graças a Deus vae muito melhor, como em carta me diz D. João Telles...
-- Partirei ainda hoje, se el-rei não manda o contrario...
-- Pois não partireis, Diogo Alvares ! senão d'aqui por dias, e consolae-vos da demora, porque ireis na minha companhia...
-- Como? senhor!
-- Vou á Galliza visitar a casa do Bemaventurado Apostolo S. Thiago, mas antes de partir quero deixar resolvida a viagem que Vespucio propõe; e quando nos separarmos no Minho, seguireis para o solar de Santa Martha, levando comvosco o alvará da vossa capitania. Ide agora com Deus!
Sem poder encontrar palavras que traduzissem a sua alegria, e as suas grandes esperanças no futuro, Diogo Alvares ajoelhou, agradecendo ao rei, e despedindo-se do monarcha e de D. Leonor, correu a annunciar ao navegador florentino a boa nova.
V
Não tinha de ser
Algum tempo depois, D. Manoel partia de Lisboa para a sua piedosa romaria, tendo antes resolvido que se aprestasse uma nova armada para ir ás Terras de Santa Cruz, sob o commando de Gonçalo Coelho, indo Vespucio e Diogo Alvares por commandantes de dois d'esses navios, alguns dos quaes pertenciam ao estado, e outros eram de armadores, a quem fôra permittido encorporal-os na expedição.
Tudo sorria a Diogo Alvares, que, ao receber o alvará da sua nomeação, tivera a honra de ser armado cavalleiro pela rainha D. Leonor.
Apezar d'el-rei ir incognito, aforrado, como então se dizia, á sua romagem, era numeroso o sequito que o acompanhava, no qual se contava o bispo da Guarda, prior de Santa Cruz de Coimbra, a cujo mosteiro D. Manoel ia visitar a sepultura de Affonso Henriques, fundador da monarchia, D. Diogo Lobo, barão d'Alvito, D. Martinho de Castello Branco, D. Nuno Manoel, guarda-mór d'el-rei, D. António de Noronha, escrivão da puridade, e o marquez de Villa Real, além de outros cavalleiros, entre os quaes Diogo Alvares.
Fez-se paragem em Coimbra, onde el-rei se demorou visitando a sepultura do primeiro e glorioso rei de Portugal, em cujos degráos ajoelhado orou por muito tempo, distribuindo depois muitas esmolas pelos necessitados da cidade, e ordenando a construcção d'um mausoléo mais grandioso, que hoje ali se admira. Seguiu depois o monarcha a Montemór-o-Velho, e a Aveiro, e d'aqui ao Porto a visitar a sepultura de S. Pantalião, que mandára construir como el-rei D. João II deixára ordenado no seu testamento.
Achava-se a comitiva régia n'esta cidade, da qual seguiria a Valença, passando depois á Galliza, e visitando no regresso alguns pontos do Minho, devendo D. Manoel hospedar-se nos solares d'alguns senhores, entre outros no de D. João Telles, em que assistiria ao casamento de Diogo Alvares com a sobrinha do castellão, quando toda esta risonha perspectiva se transformou
no mais negro dos quadros.
Estando no Porto, veio ao encontro de Diogo Alvares um postilhão, que a toda a pressa se dirigia a Lisboa a chamal-o, porque o estado da saude de D. Anna repentinamente se aggravára pela fórma mais assustadora.
O moço cavalleiro teve apenas tempo de se despedir d'el-rei, que procurou animal-o com palavras de esperança:
-- Ao Apostolo S. Thiago pedirei pela saude da vossa futura esposa, Diogo Alvares! e quando regressar da Galliza, espero que terá melhorado, e que assistirei ás vossas bodas.
-- Deus o queira, como vossa alteza deseja; mas não sei que terrivel presentimento me peza no coração.
E o cavalleiro despediu-se do rei, dominado pela maior anciedade; saltou sobre o cavallo que o postilhão tinha á redea, junto á entrada da pousada real, e, seguido por este, partiu a toda a brida.
Assim percorreu a distancia que separa o Porto do Alto Minho, parando só para mudar de ginete. Depois de ter atravessado o Vizella, o Cávado e o Neiva, para encurtar caminho, cortando sempre a direito, na direcção da foz da Lima, chegava uma tarde sobre as margens d'este, poucas leguas distante de Santa Manha. -- Seguiu por aquelles formosos campos tão seus conhecidos, que havia ainda pouco pareciam sorrir-lhe de longe e chamal-o para a realisação das mais risonhas esperanças da sua vida, e que por esta hora melancholica do entardecer, lhe davam uma tristeza infinita, como que a dispol-o para lugubre futuro.
Com um temor, com um receio que nunca sentira entre os mais imminentes perigos das tempestades que arrostára no mar, o mancebo ia-se approximando do solar de D. João Telles. Intimamente desanimado, e como se a esperança o tivesse já abandonado, deixára de esporear o cavallo, morto de fadiga, e este, moderando o andamento, caminhava agora a passo. E o cavalleiro, entregue aos seus lugubres pensamentos, deixava-o ir assim, tendo-lhe passado a ancia de chegar, e sendo substituida por uma cruel agonia intima, como por uma dolorosa lucidez, que a distancia lhe fazia já antever um quadro fatal que o esperava.
A luz crepuscular ia-se esbatendo cada vez mais, a cambiar para as trevas da noite, e já difficilmente deixava perceber as povoações, dispersas a alguns kilometros de distancia. -- Faltava apenas uma centena de passos para alcançar uma volta do caminho da qual se veria o castello, quando repentinamente veio ferir os ouvidos do cavalleiro um echo sinistro, que parecia ir-lhe até ao coração como a lamina d'um punhal! Os sinos da capella do castello, cujo som tão bem conhecia, tinham começado a dobrar, tristemente, a finados!
Diogo Alvares, contrahindo o seu systema nervoso por uma commoção subita de terror, esticou as redeas do cavallo, que parou. Mas logo, n'uma reacção immediata, a exaltação, traduzida na anciedade, fizeram-n'o atacar violentamente os flancos do pobre animal, que parecendo comprehender a angustia do cavalleiro, que lhe pedia um ultimo sacrificio, largou n'uma carreira desesperada. Então, por aquelles meandros e voltas do caminho, o correr desordenado do pobre moço, foi o d'um cavalleiro phantastico em sinistra ballada.
Cahia a noite, mas Diogo Alvares poude distinguir, fluctuando sobre o castello, a meia haste, como se fôra uma ave de máo agouro, a bandeira de D. João Telles: -- e momentos depois, no meio d'aquella confusa angustia em que galopava a toda a brida, umas luzes, movendo-se lentamente, brilhando e desapparecendo, como fogos-fatuos, que o coração lhe fazia comprehender claramente: era um cortejo funebre, que atravessava o terreiro do castello, dirigindo-se á capella.
D'ahi a pouco, á entrada d'esse terreiro, um cavallo cahia extenuado acabando de passar a ponte levadiça; e o cavalleiro, prostrado com elle, erguia-se repentinamente, correndo como louco para a ermida, cuja porta, aberta de par cm par, deixava vêr no interior illuminado uma eça erguida.
Diogo Alvares foi lançar-se, prostrado pela dôr, nos degráos do catafalco, desafogando emfim em convulso pranto. O castellão, que ajoelhado orava a pequena distancia, reconhecendo-o, ergueu-se, como para o abraçar, mas o infeliz parecia tão estranho aos que o cercavam, tão exclusivamente entregue á sua dôr, que o fidalgo, respeitando-a, não o perturbou.
Assim decorreu muito tempo.
Por fim, D. João Telles acercou-se d'elle, e ajoelhando ao seu lado, abraçou-o, dizendo-lhe entre soluços:
-- Coragem, Diogo Alvares!... Respeita a vontade de Deus.
O mancebo fixou-o dolorosamente, e apontando para a eça, a custo respondeu :
-- Eis as bodas que me esperavam!... A vida acabou também para mim!...
VI
O patriota
Decorreu mais d'um anno sobre os successos que temos narrado, e pelos fins de 1503 ainda Diogo Alvares, completamente entregue ao lucto e á dôr, se obstinava no seu proposito de nada mais querer saber do mundo, acabando os seus dias retirado na solidão do seu modestissimo e arruinado solar minhoto.
Instancias de Vespucio, de D. João Telles, da rainha D. Leonor, do proprio monarcha, tudo fôra incapaz de conseguir que o cavalleiro desistisse da renuncia á capitania da náo para que fôra nomeado; e a armada partira nos começos de maio, emquanto Diogo Alvares, inteiramente desinteressado dos projectos de gloria sua e da patria, que sonhára, e prezo constante da saudade e da tristeza, se comprazia em percorrer os logares em que fôra tão passageiramente feliz, e que a todos os momentos lhe recordavam o ente adorado que perdera. O espirito atribulado, n'essa revolta do pensamento e do coração, ante o facto brutalmente natural da morte, que a todos surprehende, com que ninguem se conforma de começo, e a que só o passar do tempo traz um lenitivo, na perspectiva
d'um fim identico, comprazia-se-lhe na frequencia d'esses logares, em que lhe parecia achar-se em contacto com o espirito da mulher amada.
Por uma tarde dos fins do anno de 1503, Diogo Alvares regressava da sua visita diaria ao tambem solitario e acabrunhado castellão de Santa Martha, e ao jazigo da desventurada D. Anna, quando, já proximo da sua casa de Deuchriste, sentiu tropel de cavallos, e dentro em pouco viu surgir da estrada real dois cavalleiros, cujo apparecimento foi logo seguido por estas exclamações:
-- Vespucio!
-- Diogo Alvares!
O afamado navegador apeou-se apressado, deixando o cavallo ao cuidado do escudeiro que o seguia, e correu para o amigo, que estreitou nos braços.
-- Eis- vos de regresso, Americo Vespucio! graças a Deus!
-- Para vos encontrar cada vez mais triste, e mais abatido, Diogo Alvares! do que se tivesseis ido commigo dizer ao mar as vossas dôres e afogal-as nas suas ondas...
-- Fallaes como quem ama o oceano, que não morre... E' diverso amar um ente querido e vel-o arrebatado pela morte... O mar, a que vós tanto quereis, encontraes-lo sempre... Aquelles que a morte leva... não voltam mais...
-- E a fé? e a esperança? de que nos servem? cavalleiro! A mim, é a fé em Deus, que me esclarece as ideias com o que de novo me mostra na terra e no céo, que me anima a seguir pelos mares desconhecidos, á descoberta de novos paizes...
-- Bem o sei...
-- É a esperança, que, no meio das tormentas, nos faz luctar para evitar o naufragio e chegar a salvamento.
-- Convenho...
-- Naufragastes uma vez nos escolhos da vida!... Mas quem vos diz que não podereis ainda chegar a bom porto? que não podereis ainda encontrar a felicidade na terra?
-- Diz-m'o o coração.. Sei que isso é impossivel...
-- Não ha impossiveis na vossa idade, mancebo! -- replicou o florentino, com o accento de auctoridade que lhe davam os seus cabellos, que iam já encanecendo...
-- Eis-nos chegados ao meu humilde solar -- disse Diogo Alvares, sorrindo tristemente. -- Desculpareis, Americo Vespucio! a pobre hospedagem que vou dar-vos.
-- Bem quizera, apezar d'isso, prolongal-a, querido amigo! mas venho apenas para vos dizer algumas coisas importantes, e de madrugada partirei...
-- Mas é impossivel!...
-- Pelo contrario... Não póde deixar de ser... Vou apressadamente a caminho de Hespanha!
-- De Hespanha?!
Entravam n'este momento em uma sala terrea do arruinado castello de Deuchriste. Na lareira ardiam já os troncos de carvalho, a combater o frio de dezembro, e á luz da fogueira, o navegador viu o espanto que se pintára no rosto do seu amigo. Desviou involuntariamente os olhos dos seus, e, um tanto confuso, como quem lhe custava a confissão, explicou:
-- Deixo o serviço de Portugal e volto para o de Fernando e Isabel de Castella..
Diogo Alvares, que, com um gesto, convidára o florentino a tomar assento em um escabello, junto d'uma grande mesa, e que o ia imitar, interrompeu o movimento, e indireitando a acabrunhada figura, ao passo que o rosto se lhe animava, vibrou rijo golpe com o punho cerrado sobre a mesa, que gemeu:
-- E' impossivel! Americo Vespucio! Voltardes ao serviço de Castella?!
-- Ah! Graças a Deus! -- exclamou satisfeito Vespucio. -- No vosso coração arde ainda o amor da patria, sob o gelo amontoado pela dôr... Quando me tiverdes ouvido, abandonareis este retiro, e correreis á côrte, a servir Portugal, como eu o quizera servir, mas não posso, porque, para os vossos compatriotas, sou apenas o piloto florentino... o extrangeiro...
Diogo Alvares, concentrado, sentou-se, e attento replicou:
-- Escuto- vos, Americo Vespucio... Fallae!
-- Para que bem avalieis o alcance das prevenções que vos quero fazer, no interesse d'este paiz, é preciso que vos relate a viagem em que não quizestes ir comnosco.
-- Alguma coisa tenho ouvido: fostes de Lisboa a Cabo Verde, e d'ahi navegastes para o sul, buscando terra na Serra Leoa...
-- Convinha-me isso para mais facilmente dobrar o Cabo de Santo Agostinho... e ao capitão-mór, para ali mostrar ufano a sua armada de seis navios...
-- Não perdeis ensejo de criticar Gonçalo Coelho...
-- Com razão sempre. -- Assim, queria demorar-se na Serra Leoa, mas não pudemos aguentar-nos, e seguimos para o sudoeste; passámos a linha em 10 de Agosto, e tendo navegado mais de quinhentas leguas para o sul, vimos distinctamente uma ilha no horisonte. E com o tempo, a capitaina bateu, e naufragou em umas rochas, perto d'ella.
-- Salvaram-se, creio?
-- Sim! Só o navio se perdeu. -- Fui mandado a buscar um porto na ilha, e approximei-me até quatro leguas de distancia d'ella, mas o resto da armada tinha então desapparecido. -- Só ao cabo de oito dias tornei a avistar uma caravella, para a qual me dirigi, e voltámos juntos á ilha, e depois de termos feito aguada e lenha, como o resto da frota não apparecia, navegámos para a Bahia de Todos os Santos, onde nos deviamos encontrar no caso de nos termos separado.
-- Que tempo gastastes?
-- Dezesete dias! Na Bahia nos demorámos dois mezes e quatro dias, e como os demais não apparecessem, julgámol-os perdidos, e continuámos sós a explorar a costa para o sul, como era nosso fim.
-- Fostes mais além do que na passada viagem?
-- Sim. Communicámos com todos os portos já conhecidos, e, mais para o sul, chegámos a um cabo que dobrámos, apesar do frio que n'aquellas regiões fazia, e encontrámos um porto, em que nos demorámos cinco mezes...
-- Cinco mezes?!
-- Para carregarmos os navios com uma rica madeira que ali abunda, avermelhada, que serve para fazer tinta, e a que os naturaes chamam brasil. Tão rico nos pareceu este genero, que entendemos conveniente deixar ahi fundada uma feitoria, como as que se vão estabelecendo nas Indias do Oriente, -- e assim construimos uma pequena fortaleza, que armámos com doze peças tiradas dos navios, e lá deixámos vinte e quatro homens de guarnição...
-- Grande serviço fizestes, na verdade!...
-- Não pensam como vós na côrte -- replicou Vespucio, sorrindo irónica e tristemente. -- Logo o percebemos, quando a Lisboa chegámos, depois d'uma viagem de setenta e sete dias...
-- Mas o que se passa?
-- Ouvi, agora que estaes ao facto da nossa viagem!
-- Dizei...
-- Não me foi possivel conseguir, como era meu designio, alcançar o caminho das Indias do Oriente dando a volta pelo mar do sul. -- Entendo que esta gloria pertenceria de direito a Portugal, uma vez que mais utilisaria com isso do que Castella, por já possuir os dominios descobertos por Vasco da Gama. Mas na côrte de Lisboa não se cura d'isso, sem pensarem que a divisão do Oceano feita em 1493 pelo papa Alexandre VI, dando a Castella a posse das descobertas para o sul da linha estabelecida na bulla, incita Fernando e Isabel a estabelecerem relações e dominio nas paragens em que, aliaz, os portuguezes foram os primeiros a navegar. Eis a razão por que volto ao serviço de Castella. Em primeiro logar, o empenho de realisar esse sonho grandioso de Colombo e hoje meu; depois, os meus proprios interesses: Vou para velho e estou pobre, apesar de ter arriscado tanto a vida no mar...
-- Estaes então desligado de obrigações com el-rei D. Manoel?
-- Sim! E só a vós, como amigo, falo, leal e francamente... Amanhã, no mar, seremos inimigos quasi: a minha obrigação será pugnar pelos interesses de Castella; a vossa, pelos de Portugal...
-- Decerto....
-- Quiz explicar-vos o meu procedimento... Que ha um caminho para o Oriente, pelo sul, é para mim ponto de fé... Gloria e proveito terá o reino que o descobrir... Eu vou tental-o por Castella... Previno-vos lealmente, já que na côrte me não escutaram; se tendes egual fé, procurae ser melhor ouvido do que eu, fazendo-o tentar pela vossa patria...
-- Sim ! tenho essa fé, e tental-o-hei, -- exclamou Diogo Alvares, erguendo-se, como inspirado, e dirigindo-se a uma janella, que, aberta, deixava passar a claridade suave d'um luar de dezembro.
-- Do coração desejo que sejaes vós o vencedor!
-- Não sei! Mas ao menos, morrerei enpenhando-me n'isso! Vêdes aquella estrella? Vespucio! -- disse Diogo Alvares, fazendo approximar o navegador da janella -- é a estrella do meu destino, que brilha pallidamente ao pé da lua radiante! Mostrou-m'a aquella que perdi, na vespera de deixar o Tejo! E' a imagem da minha existencia, em que a felicidade só fugitivamente brilhou! Não deixo porém de a vêr todas as noites, como se fora o espirito da minha desditosa Anna, a dizer-me que o unico amor capaz de tomar o logar do seu, é o amor da patria...
-- Ah! eis-vos, emfim! resurgido para a vida!
Quando o dia vinha rompendo, sahia do pequeno solar de Deuchriste o navegador florentino para continuar a sua jornada. Depois de ter caminhado um quarto de legua, parou em um ponto cm que a estrada se dividia, e chamando o escudeiro, disse-lhe:
-- Voltae por esse caminho á côrte, onde vos espera a rainha D. Leonor, e dizei a sua alteza que julgo ter desempenhado a missão que me deu, a seu contento...
O escudeiro, como se já esperasse tal mensagem, saudou-o:
-- Que Deus vos guie a Castella, e nas futuras navegações da vossa vida...
-- Fortuna e venturas vos desejo tambem, amigo!
E os dois cavalleiros separaram-se, seguindo Americo Vespucio para o norte e o escudeiro para o sul.
VII
O naufragio
Decorreu ainda algum tempo, em que no espirito de Diogo Alvares a irresolução predominou, sob o aspecto d'uma verdadeira lucta travada entre os seus sentimentos de portuguez, o ardor natural da juventude, e os do apaixonado, a quem, por uns certos phenomenos da vida, a desventura trouxera prematuramente a reflexão da idade provecta.
Que ia tentar? que ia fazer? perguntava-lhe esta segunda individualidade, em que a sua entidade se desdobrava. Se todas as ambições de fortuna e gloria tinham sido intimamente ligadas no seu pensamento á ideia de dourar uma existencia partilhada com aquella que perdera, que mais podia agora querer, se não tinha ambições pessoaes, do que passar o resto da vida na solidão dos logares que essa creatura habitára, visitando todos os dias a sua sepultura, simulando, tanto quanto lhe era possivel, uma união de todos os momentos, por via do pensamento, com o seu espirito, e, materialmente, não se arredando dos restos que d'esse querido ser ainda existiam na terra? Mas depois d'isto, acordavam os sentimentos do portuguez e do cavalleiro. E estes diziam-lhe: que as leis da cavallaria, que então representava socialmente a fórma pratica da elevação dos sentimentos, consideravam fraco e pusilanime aquelle a quem a dôr e o lucto fazia embainhar a espada e quebrar o escudo, e que as lanças mais valiosas, quando a morte da sua dama as impedia de se romperem em sua honra, passavam a romper-se exclusivamente pela patria, buscando a morte no desesperar secreto da vida e na ancia mystica da existencia futura.
N'estas hesitações se achava o solitario de Deuchriste, quando o veio decidir uma carta da rainha D. Leonor, que no seu espirito fez a maior impressão. Nunca na sua vida alguem lhe escrevera tocando mais profundamente as cordas do seu dolorido coração. -- A mãe, a viuva, e a rainha, tinham conjugado em uma só as suas differentes eloquencias, despertando em Diogo Alvares os sentimentos de orphão, de prematuro viuvo, e de patriota. Tão profunda foi a impressão, que todas as demais subjugou, e n'uma resolução de suprema força de vontade, arrancou-se d'aquelles logares tão queridos ao seu padecer, animado pela convicção d'um sacrificio, sem duvida premiado em uma existencia futura.
Quando chegou a Lisboa, veio deparar com um espectaculo que mais ainda o confirmou n'este pensamento! Todo o paiz soffria! Desde el-rei até ao mais humilde vassallo, cada um, na sua esphera, se sacrificava ás duras condições do momento! A fome estendia por todo o Portugal as suas negras azas, aterrando os mais fortes com a perspectiva do lugubre cortejo da peste e da morte, que ordinariamente a seguiam. E todos se sacrificavam, desde o monarcha, que mais uma vez tinha de abandonar a realisação do seu sonho de passar ás terras d'Africa, a combater os mouros, para mandar antes navios e dinheiro por toda a Europa, a obter pão para os esfomeados, até ao humilde camponez, que vira a ceára perdida de um dia para o outro.
Com esse espirito altamente caritativo que distinguia a fundadora do hospital das Caldas da Rainha, da misericordia, do convento da Madre de Deus, e de tantas outras instituições de caridade, com a agudeza de vistas e a virilidade de animo com que acompanhára o tormentoso reinado do Principe Perfeito, e por vezes, nos lances mais difficeis, ajudou o rei seu irmão a governar o leme da náo do estado, a rainha D. Leonor entregava-se á execução de urgentes e caridosos expedientes para suavisar a sorte dos esfomeados, quando Diogo Alvares se lhe apresentou.
-- Lembrae-vos, infeliz cavalleiro! quantos choram n'este momento, como vós, a perda de entes queridos, arrebatados pela morte horrorosa da fome, e antes de nos occuparmos dos vossos soffrimentos, ajudae-me a minorar os seus... Fazei de meu secretario.
-- A's vossas ordens, senhora! -- respondeu Diogo Alvares, a ajoelhar, para escrever o que D. Leonor lhe dictasse, como era do estylo fazerem os secretarios do rei, no despacho.
-- Deixemos o ceremonial; assentae-vos n'esse escabello, que melhor ficareis, pois que bastantes ordens tenho a dictar-vos.
E por algumas horas, o improvisado secretario da viuva de D. João II, escreveu documentos da ordem d'esses que andam publicados, em que a rainha D. Leonor, dirigindo-se ás corporações municipaes e outras do paiz, sobre as quaes tinha enorme prestigio, bem como aos administradores das suas propriedades, a todos pedia auxilios, ou dava ordens, com o caridoso fim de soccorrer as populações a braços com a fome.
Terminada a correspondencia, D. Leonor perguntou de subito a Diogo Alvares:
-- Não tendes curiosidade em conhecer as Indias do Oriente?
Um pouco surprehendido, o mancebo replicou:
-- Senhora! se tornasse a embarcar, preferia antes volver de novo á Terra de Santa Cruz...
-- E' pena! Serieis outra vez capitão d'um navio...
-- Pertencente ás armadas de Alvares Cabral e de Vicente Sodré, que para ali vão partir?
-- Enganaes-vos, cavalleiro! Guardae para vós só, que é ainda segredo de estado, o que vou dizer-vos: uma só armada partirá em breve para a India, sob o commando de D. Vasco da Gama...
-- Ah! triumpha pois o sentir geral do povo...
-- Assim é. Pedro Alvares Cabral pediu esta manhã a el-rei meu irmão, que o dispensasse da capitania-mór. -- Mas, vinde commigo -- concluiu erguendo-se, -- são as horas do despacho real, e preciso falar a el-rei antes...
A rainha viuva atravessou, seguida pelo mancebo, a ala do paço da Alcaçova, em que se alojava provisoriamente, até áquella cm que ficavam os aposentos de D. Manoel. Quando passava em uma grande sala de espera, cheia de cortezãos, que a meia voz discutiam o acontecimento que a todos preoccupava, o commando da armada a partir, D. Leonor disse a meia voz para Diogo Alvares, indicando-lhe um cavalleiro de imponente figura, que vinha em sentido inverso:
-- Eis o descobridor da India! -- e demorou o passo, de modo a encontrar-se com elle.
O almirante do mar das Indias comprehendeu, porventura, a sua intenção, pois que em vez de se limitar a parar, inclinando-se á passagem da rainha, como faziam os demaís fidalgos, dirigiu-se-lhe e, ajoelhando, beijou-lhe a mão.
Todas as attenções se fixaram n'elles, e com accento que fosse ouvido, D. Leonor disse-lhe:
-- Guarde-vos Deus, sr. almirante! Se eu governasse, vós irieis de novo á India, porque no mar vos fez Deus tanta mercê..
-- Depois das mercês de Deus, a maior que tenho recebido são as palavras de vossa alteza...
D. Leonor seguiu para os aposentos do monarcha, mas todos tiveram aquella phrase pela confirmação do boato, que desde a vespera corria com insistencia, de que o descobridor do Brazil, desgostado por el-rei ter repartido em duas divisões a armada, nomeando Vicente Sodré, parente de D. Vasco da Gama, capitão-mór d'uma, se exoneraria, e que o almirante seria então escolhido para commandar em chefe todos os navios.
Depois de se demorar algum tempo a sós com el-rei, D. Leonor assomou á porta d'uma pequena sala contigua, chamando Diogo Alvares.
-- A nomeação do almirante vae ser conhecida. Levará as dez náos que se aprestam, e Vicente Sodré irá sob as suas ordens. Mais cinco náos se lhe irão juntar brevemente, sob o commando de Estevão da Gama. Quereis ser um dos seus capitães? Vae castigar o Samorim das offensas que fez a Alvares Cabral... Que melhor occasião podereis ter para illustrar o vosso nome?
-- Senhora, é n'isso que menos ponho a minha ambição. Servir a pátria obscuramente, com a dedicação e a modestia d'um missionario, é a única fórma que posso acceitar... Na vida, tudo que hoje ambiciono, é não a passar na ociosidade; mas os sonhos de gloria, esses acabaram por uma vez...
-- Quem sabe? mancebo! Não façaes taes protestos, que são incompativeis com a vossa edade... Sois homem de nobre coração, e por muito que tenhaes soffrido, haveis de obedecer ás leis da natureza... Perdestes uma grande affeição, é certo, a de D. Anna; mas é mais do que natural que outra encontreis digna de a substituir...
-- Perdão, senhora, mas vossa alteza engana-se... Tenho isso por impossivel...
-- Não digaes tal, Diogo Alvares!... Por muito que vos custe a perda que soffrestes, acreditae nas palavras de quem é mestra nas dores d'esta vida: a vossa é das que o tempo consegue curar... E quem sabe? talvez um dia, quando voltardes, eu vos apresente um remedio digno de vós e d'aquella que hoje choraes, -- concluiu a rainha sorrindo com intenção...
-- Que dizeis, senhora?! -- exclamou Diogo Alvares, levemente desgostado...
-- Está bem, não vos agasteis com quem tanto se interessa por vós e só a vossa felicidade deseja...
-- Perdoae-me, senhora...
-- Vejo que é cedo ainda para vos falar d'uma parte dos meus planos que vos dizem respeito: Occupemos-nos do que já se póde resolver... Se não ides á India por capitão d'uma náo, o que pensaes fazer?
-- Partir no primeiro navio d'armador para a Terra de Santa Cruz...
-- Em um navio d'armador? vós! um cavalleiro!
-- Senhora! não é batalhando que ambiciono servir a patria... Se o quizesse fazer, partiria para a India, como me aconselhaes, e que se trata de conquistar... Em Santa Cruz, outra é a missão que Portugal tem a cumprir. As gentes são naturalmente pacificas, e mais se obterá d'ellas pela doçura do que pela força. -- Por muito que deslumbrem os governantes do reino as phantasticas riquezas das Indias do Oriente, acreditae, senhora! que todo aquelle que, como eu, teve occasião de vêr esse admiravel paraiso terrestre da Terra de Santa Cruz, não póde acreditar que no mundo haja torrão mais predestinado por Deus, para o homem d'elle tirar a riqueza, não por via da guerra, mas pelo trabalho aturado e pacifico de todos os dias, na labutação dos campos... Com quanto la não se tenha encontrado o ouro, que tenta e cega os que vão ás Indias Orientaes, a riqueza e a fortuna estão ali patentes em todos os mil variados productos da terra...
-- Acredito, Diogo Alvares... Já se averiguou mesmo, que o páo brazil não é menos valioso para o trafico mercantil do que as ricas especiarias do Oriente...
-- E muito d'ellas, senhora, lá se encontram. Acredite vossa alteza, um dia chegará em que se reconheça que muitas são nascidas n'essa outra parte do mundo, a que, como pensava Colombo, e hoje sustenta Vespucio, e como elle muitos navegadores afamados, pertence a Terra de Santa Cruz.
-- Praza a Deus que vos não enganeis, que da confirmação d'essas supposições só virá mais proveito e mais gloria a Portugal. . . Tambem os Corte Reaes assim pensam, e não só que pelo sul de Santa Cruz se encontrará caminho para o Oriente, mas que para o norte da Europa ha ainda paizes a descobrir.. Porque não ides com elles? seria viagem de menos demora...
-- Perdôe vossa alteza, mas justamente pretendo sahir de Portugal não para viagem de ida e volta, mas para me demorar, fixando-me no paiz descoberto por Alvares Cabral... Com as informações que lá obtiver, auxiliarei os que tentarem a navegação pelo sul para o Levante!
-- Que dizeis ? Diogo Alvares! -- exclamou D. Leonor com visivel angustia. -- Quereis desterrar-vos? E os vossos amigos? O vosso Minho? pensaes abandonal-os para sempre?...
-- Para sempre não, senhora! mas por muito tempo... Asseguro, porém, a vossa alteza, como á minha segunda mãe, que, embora distante, não me lembrarei menos dos amigos e da patria.
Pouco tempo depois, partia a grande armada que, sob o commando do almirante do mar da India, se dirigia ao Oriente, a castigar o Samorim, rei de Calicut. Foi solemne e imponente a despedida que el-rei e a côrte fizeram no Restello a D. Vasco da Gama, mais significativa ainda do que a anterior, muito imponente, de Pedro Alvares Cabral, e do que a primeira para a viagem da descoberta.
Pela tarde, quando o bulicio acabára na margem do rio, e o Restello ficara deserto da multidão de povo de Lisboa que viera assistir á partida da grande frota, a porta da pequena ermida do Restello, já fechada, abriu-se novamente, e um frade da ordem de S. Jeronymo collocou-se no limiar, como se esperasse alguem. No rio, não muito distante da terra, viera fundear, havia instantes, uma náo de armador, tendo largado com pouco panno do ancoradouro de Lisboa, em frente da casa da Mina. De bordo, largou um batel, que veio encalhar na praia defronte da capella de Santa Maria de Bethlem, e Diogo Alvares, saltando em terra, encaminhou-se para o monge..
-- Boas tardes, frei Marcos!
-- Seja Deus comvosco, sr. Diogo Alvares!...
-- A que horas esperaes sua alteza?
-- Não póde tardar... Vac~e para as tres, que foi a que marcou.
-- Justamente ahi vem uma liteira no caminho de Lisboa... Será a rainha?... Até já. -- E o cavalleiro, afastando-se da porta da ermida, foi ao encontro da pequena comitiva, que se approximava do lado da cidade.
Compunha-se ella da liteira, conduzida por dois carregadores, seguida por um escudeiro, e atraz d'este outros dois carregadores, para revezarem aquelles.
Quando Diogo Alvares chegou a alguns passos de distancia, as cortinas foram corridas, e D. Leonor ordenou aos portadores que parassem.
-- Aguardae-me aqui. -- E dirigindo-se ao mancebo: -- Vejo que estaes resolvido, Diogo Alvares, a levar por deante o vosso proposito, pois que me esperaes para vos dizer adeus...
-- Assim é, senhora! Venho de bordo da náo do armador, que ainda hoje largará para Santa Cruz, onde fui dispôr o meu alojamento.
-- E nem mesmo a minha ultima proposta é capaz de vos demover? Tendes o coração morto para o amor?
-- Como querieis que me ligasse a essa das vossas damas em cuja affeição por mim me fallastes, se me sinto preso da saudosa recordação d'aquella que perdi? Seria enganar, prometter o que não posso cumprir...
-- Mas, ao menos, não faltareis ao que hontem vos disse, não é verdade? Dentro em tres annos voltareis a Lisboa a vêr-me...
-- Juro-o a vossa alteza... Só o não farei, se antes a morte me levar, ou caso de força maior a minha vontade tolher... O meu fim é estabelecer-me em um bom porto de Santa Cruz, crear ali uma feitoria, chamando para o meu lado alguns dos degredados que Gonçalo Coelho deixou em varios pontos na sua ultima viagem, dispôr os naturaes a bem receberem os portuguezes que ali aportarem, e cultivar aquelle abençoado paiz, tirando do seu solo as riquezas que encerra, e mandando-as para Portugal...
-- Pois bem, antevendo como era inabalavel a vossa resolução, mancebo! fiz o possivel para vos ajudar n'esse
difficil e patriotico emprehendimento. A bordo da náo, em que ides partir, encontrareis alguns dos indios que as armadas d'el-rei meu irmão teem trazido de Santa Cruz, e que sob as vossas ordens para ali voltam. Já entendem a nossa lingua, já conhecem e apreciam os nossos costumes, respeitam o nosso nome... Occupae-os na vossa empreza; facilitar-vos-hão as relações com os seus irmãos, entre os quaes vos ides estabelecer... Um especialmente vos recommendo... Carijó se chama. E' christão, e de boa indole... Dedicar-se-vos-ha.
-- Ah! quanto vos devo, senhora! Bem razão tenho para vêr em vós a minha segunda mãe...
-- Sim, Diogo Alvares! dizeis bem... E a minha sorte n'este mundo é esta: serem-me arrebatados successivamente os que tenho por filhos...
-- Não vos afflijaes, senhora!
-- Deus assim o quer... Cumpra-se a sua vontade. Entremos, -- concluiu commovida, indicando a porta da capella a que chegavam, -- a pedir-lhe que, ao menos, a separação não seja para sempre...
Diogo Alvares não teve animo para responder, tão commovida estava a rainha, e tão negros pensamentos eram os seus, despertados por estas palavras.
D. Leonor tomou a agua benta que frei Marcos, de joelhos, lhe apresentou, e com o hissope aspergiu o cavalleiro. Depois, tomando-o pela mão, dirigiu-se para o altar da Virgem de Bethlem, e, ajoelhando os dois, oraram por bastante tempo ante essa imagem de tanta devoção para os homens do mar, e á qual el-rei D. Manoel fizera o voto de erguer um mosteiro em agradecimento da descoberta da India.
A luz do sol, fugindo e empallidecendo atravez das pequenas ogivas da pobre ermida, chamou a rainha á realidade da vida:
-- Ide, Diogo Alvares! O navio só por vós espera...
-- Já pedimos bastante a Deus, que nos escutará...
-- Parti, que ainda aqui ficarei...
O cavalleiro, mesmo ajoelhado como estava, cobriu de beijos as mãos que ella lhe estendia, dizendo a custo, e esforçando-se por reter as lagrimas prestes a saltarem-lhe dos olhos:
-- Deus vos animará, senhora!... Lançae-me a vossa benção...
D. Leonor assim fez, e o mancebo, recebendo na mais recolhida e respeitosa attitude a honra que pedira, ia partir, quando a rainha, erguendo-se de subito, como obedecendo a uma força superior, lhe disse:
-- Quero abraçar-te, Diogo Alvares! porque me peza não ter abraçado o meu Affonso na fatal sahida para a Ribeira de Santarem.
Dir-se-hia que não havia ali rainha e vassallo, mas sim mãe e filho, que se uniam n'um apertado abraço de custosa despedida.
-- Vae agora na guarda de Deus e da Virgem.
O cavalleiro partiu, e a rainha ajoelhou novamente nos degráos do altar...
D. Leonor orou por muito tempo, e só de vez em quando tirava os olhos da imagem da Virgem de Bethlem, para voltar a cabeça a vêr se ainda não partira a náo, fundeada justamente defronte da ermida.
Por fim, em uma d'estas occasiões, viu o navio já coberto de panno, com o ferro suspenso, que principiava a navegar.
-- Guiae-o sobre as aguas do mar, Santa Maria de Bethlem! -e feita esta ultima préce, D. Leonor ergueu-se, e sahindo da capella, veio até á beira-mar, como attrahida pelas saudações de despedida, que de bordo lhe fazia Diogo Alvares...
A náo distanciando-se interrompeu esta correspondencia, e ainda a rainha se demorava fixando os olhos no navio, que se afastava.
-- As margens do Tejo! As margens do Tejo! -- exclamou. -- Que esta despedida do Restello, não seja para sempre... como a da Ribeira de Santarem !
Dir-se-hia que o coração de D. Leonor antevia o horisonte carregado que esperava o cavalleiro.
Poucos foram os dias de bonança na derrota da náo para a Terra de Santa Cruz. Durante ella, não perdera fogo Alvares um só ensejo de fazer que se lhe affeiçoasse o indio que a rainha lhe dera por cicerone, instruindo-se em conversação com elle, nos costumes das gentes entre as quaes ia estabelecer-se. Pertencia esse indigena á tribu dos goyanazes, felicitando-se o mancebo quando reconheceu não ser de antropophagos. Carijó se chamava, como dissera a rainha, que fizera preceder este nome pelo de Manoel, com o sacramento do baptismo que em Lisboa recebera.
-- Senhor! -- protestava Carijó ao mancebo, -- haveis de gostar dos meus irmãos, que são affeiçoados aos portuguezes, pacificos e leaes. Vivem em cavernas, e não em bonitas casas como as de Lisboa, mas não comem gente, e só da caça e da pesca se sustentam. Muito podereis ensinar-lhes.
-- Sim? Pois estranho que, como já me disseste, Carijó! se não dêem a cultivar a terra e a criar animaes, vivendo em um paiz tão dotado pela natureza!...
-- Tambem agora percebo quantas riquezas deixam de aproveitar, e aprendi-o vendo os campos de Portugal, de que tiraes tantos productos... Se attenderem aos conselhos que por minha boca lhes dareis, emquanto não comprehenderdes a nossa lingua, poderãofazer do nosso paiz um dos mais ricos de Santa Cruz!
Assim, em praticas d'esta ordem, iam passando os longos dias da navegação. Depois de tocar na Serra Leoa, a náo seguiu directamente com rumo á Bahia de Todos os Santos. Na vespera do dia em que, segundo os calculos do capitão, se devia avistar a costa,levantou-se um grande temporal. O tempo foi carregando cada vez mais, tornando-se medonho com o fuzilar dos raios, o estampido dos trovões, e a escuridão tenebrosa do horisonte. Apezar de tomadas todas as precauções, e de se ter caçado todo o panno, a náo corria em arvore secca, com velocidade extraordinaria, aterrando a tripulação com o perigo imminente de irem dar á costa.
Era impossivel fazer governar o navio, contra a força das ondas e do vento que o impelliam, segundo os calculos dos pilotos, na direcção da terra, que não podia estar longe.
A noite desceu, percebendo-se isso pelo tempo decorrido, e não porque tivesse havido sensivel transicção para trevas mais carregadas.
Alta noite, distinguiram-se de bordo uns fogos longinquos, havendo um momento em que a esperança renasceu nos corações, reconhecendo-se que o navio corria ao longo da costa, e a tripulação entoou em côro o Bemdito, dando graças ao Altissimo. N'este momento, Carijó approximou-se de Diogo Alvares, e disse-lhe em voz baixa:
-- O perigo é maior do que nunca, senhor! Se continuamos a correr n'esta direcção, iremos bater nos recifes de Mairagiquig, os quaes não pódem estar longe...
- Porque julgas isso?
-- Porque essas fogueiras só as accendem durante a tempestade os tamoyos, que lhes ficam proximos.
Diogo Alvares, conservando a maior serenidade de espirito, foi dar em segredo o aviso ao capitão, e este mandou as possiveis manobras para afastar o navio d'aquelle perigoso rumo.
Houve ainda algumas horas em que a esperança de salvamento mais animou todos, porque o vento mudou um pouco e o navio obedeceu ao leme, aproando para o mar. Mas, subitamente, recomeçou a soprar violentamente do nefasto quadrante que impellia os infelizes a morte certa, ao passo que ia amanhecendo, e, como para maior crueldade da sorte, bastante claro, deixando perceber no horisonte os rochedos que precediam a costa!
No auge da afflicção, fazendo promessas e dirigindo préces ao céo, quantos homens o leme admittia empregavam esforços inuteis para desviar a náo do abysmo a que corria... Subitamente, esta mesma esperança desappareceu: com um ranger sinistro, o leme, assim forçado, quebrou-se, e a náo, livre já d'aquella fraca peia, encaminhou-se para a voragem, com uma impetuosidade medonha.
No ar, retumbavam os lamentos, as préces, as maldições, tudo confundido na confusão d'um terror louco. E já se distinguiam claramente, a poucas milhas, emergindo das aguas, entre o cavado das ondas, os negros rochedos proximos da costa, sobre os quaes o navio se ia despedaçar...
Pretendendo ainda encontrar uma taboa de salvação, a voz do capitão retumbou, com uma ultima ordem:
-- Arriar os bateis!
Então, confusamente, n'um turbilhão tumultuoso de competencia, a tripulação arrojou se aos barcos, demorando, em vez de abreviar, o seu lançamento á agua... Emfim, organisou-se este derradeiro expediente, e foi já empunhando machados, e ameaçando de morte os que não respeitassem as suas ordens, que o capitão e o piloto conseguiram fazer-se escutar para determinar a embarque:
-- Vós em primeiro logar, senhor Diogo Alvares! -- disse o capitão; -- vindes a bordo como passageiro...
-- Enganaes-vos, capitão! serei o ultimo a embarcar; e não percaes tempo em insistencias inuteis, que a minha resolução é inabalavel...
-- Mas é impossivel!...
-- Respeitae a minha vontade! De contrario, irei buscar a patente do rei, com que venho n'esta náo de armador, e que em certos casos me dá auctoridade superior á vossa...
-- Basta, senhor! Sois um valente mancebo, e honro-me em vos obedecer. Embarquem os mais velhos! -- ordenou o capitão..
A difficil passagem para os bateis, no meio d'aquelle vertiginoso correr do navio, fez-se entretanto depressa, tal era a ancia dos desgraçados em o abandonarem, na certeza de que em breve se despedaçaria de encontro ás rochas.
Um só batel faltava para receber os ultimos foragidos, quando em torno do navio começaram a surgir, nas occasiões em que as vagas mais fundo cavavam, negras pontas de rocha. A costa, e os grandes rochedos, estavam apenas a algumas centenas de braças...
-- Depressa! Depressa! -- exclamou o capitão -- estamos já nos recifes! O navio vae bater!
A ordem cumpriu-se, e só ficaram no convez da náo, já desprovida d'amurada, que os mastros e vergas cahindo tinham arrazado, o capitão, Diogo Alvares e Carijó, que não se afastava do lado do cavalleiro.
-- Embarcae! Ordenou o mancebo ao capitão...
-- Quereis deshonrar-me? --interrogou este. -- O capitão deve ser o ultimo a abandonar o navio!
-- Em nome d'el-rei assumo o commando -- replicou Diogo Alvares -- abrindo o justilho e mostrando o alvará.
-- Obedeço! -- respondeu com desespero o capitão.
-- Quereis morrer, bem o vejo ! -- e saltou para o batel.
N'este momento, como para confirmar as palavras do capitão, um choque violentissimo fez parar subitamente o navio, entre o fragor horrivel do casco despedaçando-se; e as ondas, ressentindo o choque, afastaram do navio o fragil batel, envolvendo-o e fazendo-o desapparecer no abysmo das vagas...
-- Perdidos! Santo Deus! Perdidos!-- exclamou Diogo Alvares desesperado..
A náo, encravada entre as rochas escondidas sob as ondas, e sacudida por ellas, rangia desconjuntando-se. A agua apparecia já pelas escotilhas da segunda coberta, ao passo que o navio se ia submergindo.
-- Salvemo nos, senhor! -- exclamou Carijó.
-- E' tarde, -- respondeu Diogo Alvares.
Mas o indio, tomando um cabo, n'um relance, com pericia extraordinaria, passou duas laçadas uma em torno do busto do cavalleiro e outra ao seu proprio tronco.
-- Vinde! Mando-vos eu agora, em nome da rainha, a quem jurei velar por vós, ou morrer comvosco !
E como o mancebo o olhasse espantado, tomou-o nos braços, como se fôra uma creança, correu para a popa da náo, ainda sobranceira ás vagas, no seu extremo firmou os pés, e distendendo as jarretas d'aço, salvou com um salto os destroços, que cercavam o navio, e foi cahir no meio das vagas, abraçado ao seu fardo.
VIII
Caramurú!
Estava escripto que, de todos que iam a bordo da náo, os unicos que do naufragio escapariam com vida, seriam justamente os dois que não tinham já podido tentar a salvação nos bateis.
Estes em breve se tinham despedaçado, como o navio, de encontro aos recifes, de que o mar estava semeado n'aquelle nefasto ponto, para que a tempestade os impellira. Quando o tempo serenou, de quantos naufragos o mar arrojára á praía, dois apenas viviam: Diogo Alvares e Carijó!
Depois de uma lucta medonha com as ondas, o indio conseguira, evitando as rochas, nadar até á praia, rebocando o seu desfallecido companheiro, mas, chegados a salvamento, as forças tinham-lhe faltado emfim, e perdera os sentidos ao seu lado!
Foi o mancebo quem primeiro os recobrou, e depois d'uma oração mental, agradecendo a Deus tel-os salvado, cuidou de soccorrer o seu salvador.
Falto de todo o recurso, n'aquella praia em que não apparecia um só habitante, recorreu ao unico meio de que dispunha, friccionando-o energicamente com as mãos, para lhe restabelecer a circulação no corpo inteiriçado e frio de pedra. -- Depois de bastante tempo de ançiosa espera, começou a cobrar alguma esperança. A forte organisação do indio vencia a prostração motivada pela violenta lucta que travára com as vagas, o seu corpo ia adquirindo uma temperatura normal, começando a fazer movimentos inconscientes, sem ainda ter recobrado os sentidos. Diogo Alvares, animado por estes indicios, redobrou de energia nos seus esforços, e d'ahi a instantes soltava um grito de alegria, vendo Carijó abrir os olhos e sorrir-lhe dizendo:
-- Se não fosseis vós, senhor! ficaria dormindo o que nós chamamos: o somno dos afogados.
-- Não! Perdeste apenas os sentidos, em consequencia dos esforços que fizeste para me salvar... Eu é que te devo a vida...
-- Pois que, graças ao Céo, as não perdemos, como os nossos desgraçados companheiros, tratemos de as conservar o melhor que pudermos...
-- Não será fácil, Carijó, assim arrojados a uma costa deserta...
-- Deserta, não, senhor! Antes o fôra...
-- Que dizes?!
-- Não vos iiludaes com o facto de não verdes viva alma. -- Não devem estar longe indios anthropophagos...
-- Deixariamos de ser tragados pelo mar, para sermos devorados pelos homens?
-- Esse perigo existe, pelo menos; e só pela nossa coragem e empregando os meios que a civilisação nos dá poderemos conjural-o.
Diogo Alvares olhou com espanto misturado de receio para o seu companheiro na desgraça, receiando que ella lhe tivesse feito perder a razão... Percebeu-o o indio, que acerescentou sorrindo...
-- Estou em meu perfeito juizo, senhor, e garanto-vos que, em poucos dias, aqui teremos construido uma pequena habitação, que tornaremos o mais commoda possivel, e que fortificaremos!
-- E tendes a varinha magica d'uma verdadeira fada para fazer brotar tudo isso das areias e das rochas, que são tudo o que nos cerca?...
-- E' que não contaes com as aguas do mar!...
-- Então?!
-- Deixae que a maré baixe, e vereis como poderemos ir, quasi a pé enxuto, até aos rochedos agora cobertos d'agua, em que o navio está encravado.
-- Será possivel?!
-- E' assim a costa n'estas paragens. D'elle poderemos ir tirando quanto contém.. A nossa salvação está apenas dependente d'uma circumstancia...
-- Qual?
-- Que os indios não appareçam antes de nos termos fortificado e lhes podermos resistir e queiram apossar-se dos despojos do naufragio, antes de nós...
-- Mas que havemos de fazer?...
-- Por agora, recuperar forças e esperar que o mar desça... Como sempre, depois das tormentas, a agua baixará extraordinariamente... Escondamo-nos nas rochas buscando algum alimento...
-- Alimento?!
-- Excellente e fortificante... ides comer mariscos de tal virtude, que só com elles vos sustentarieis toda a vida.
A segurança, a tranquillidade com que o indio falava, incutia no animo de Diogo Alvares uma crescente confiança.-- Demais, a sua fé em Deus, que os salvára do naufragio, era illimitada, e do seu poder estava tendo a prova no espectaculo magnifico da natureza que os cercava, a lembrar-lhe que n'ella havia todos os recursos naturaes dados pela Providencia para o homem viver.
Desapparecera a tempestade, e a bonança succedia-lhe, tornando maravilhoso o scenario que antes era horrivel de vêr, em logar da cerração e das trevas, a luz brilhante do sol magnifico; em logar d'um céo negro de tons ameaçadores, circumscrevendo um horisonte limitadissimo, admirava-se agora uma esplendida abobada azulada, de pureza immaculada, a terminar n'uma linha quasi indistincta, em que se confundia com o mar, já adormecido completamente, d'um verde delicadissimo, que a espaços parecia recamado de lantejoulas, com os reflexos do sol. As mesmas rochas, que se erguiam ao fundo do areal que iam atravessando, já não pareciam negras e tenebrosas, mas brilhantes de palhetas crystalinas; para além d'ellas, um estreito braço d'agua mostrava-se transparente e quieto como um lago, e na margem fronteira começava essa vegetação admiravel das Terras de Santa Cruz, que enthusiasmára o mancebo desde a primeira vez que a vira, expandindo lhe o coração minhoto na contemplação d'um Minho de proporções colossaes. D'ahi chegava o concerto da natureza, nas vozes dos pqssaros e no murmurio das aguas correntes. E, para cumulo de satisfação, não havia signal em parte alguma de passagem
recente de indigenas.
-- Paremos aqui, eis um bom ponto de observação.
-- Sim. D'esta gruta vê-se o mar, e não somos descobertos da outra margem do rio..
-- E temos o manjar que vos prometti. Comei e dizei me se alguma vez em Portugal provastes marisco assim? -- e o indio arrancou das rochas alguns mariscos cujas conchas destramente abriu...
-- Parecem ostras, mas enormes e de magnifico sabor, respondeu o mancebo, satisfazendo com delicia as necessidades do estomago, que já o iam incommodando, e de que poderia dizer, como o famoso Bocage escreveu seculos depois em situação parecida:
«Se alguma palavra digo
«E o halito á boca puxo,
«Sobem as tripas e o buxo
«A espreitar se mastigo.»
Sentaram-se os dois companheiros no interior da gruta, e ali proseguiram na sua refeição. De subito, Carijó, que não deixava de olhar attento para o mar, exclamou radiante:
-- O navio! O navio! Começa a apparecer! Olhae!
Diogo Alvares dirigiu a vista para o ponto que lhe indicava, e só passados instantes é que a custo começou a perceber o casco da destroçada náo encravada entre as rochas.
-- Os meus olhos de minhoto estão para os teus de indio, como as arvores de Entre-Douro e Minho estão para esses gigantes de verdura que se elevam além do rio...
-- D'aqui a duas horas, poderemos chegar á náo, e se não estiver muito avariada, talvez fiquemos esta noite a bordo.. O mar será de leite por estes dias mais chegados e não a escangalhará mais por emquanto.
Com effeito, assim succedeu. Ao pôr do sol, os naufragos, depois de terem caminhado por entre uma verdadeira floresta de rochedos ponteagudos, que o mar descendo ia deixando a descoberto, treparam ao cimo d'aquelles em que a náo se achava engastada e saltaram para o convez.
Os rombos que o casco soffrera batendo nos recifes, muito numerosos, tinham dado sahida á agua, sendo-lhes por isso facil descerem até aos porões e constatarem que, salva a deterioração causada nas mercadorias, poderiam tirar do navio e aproveitar quanto n'elle havia.
-- Precisamos de pôr quanto antes em logar seguro tudo o que encerra este nosso armazem..
-- O que chamaes logar seguro? -- perguntou o cavalleiro.
-- Alguma caverna das rochas, a que o mar não chegue, e cuja entrada facilmente possamos defender dos meus patricios indios, que, mais dia menos dia, por ahi apparecerão...
-- Ser-nos-ha difficil luctarmos sós contra numerosas hordas de selvagens.
-- Enganaes-vos! Não perdi ainda a recordação do terror que eu e os meus companheiros experimentámos a primeira vez que os portuguezes vieram a estas paragens. Julgámol-os entes sobrenaturaes, em razão dos navios em que andavam sobre o mar, dos instrumentos que tocavam, das armas com que se defendiam, de todos os meios, emfim, que lhes dá o seu adiantamento sobre as demais gentes.
-- Felizmente, graças ao céo, temos á nossa disposição de tudo isso, porque este carregamento é completo.
-- Armemo-nos antes de tudo, senhor. Jámais devemos andar sem armas, principalmente de fogo.
-- A bordo ha um verdadeiro arsenal. A polvora dos barris é que poderá estar humida...
-- O sol seccará...
-- Mas temos a fina, dos mosquetes, em latas em que a agua não entrou de certo...
-- O sol vae baixando. Se o entendeis, ficaremos esta noite de guarda ao navio, evitando que de fóra se veja luz; trabalharemos até á madrugada, a dispòr as primeiras cargas que ámanhã transportaremos para terra, depois de termos escolhido o nosso abrigo entre as rochas.
-- Approvo a tua ideia, Carijó.
-- Tambem faremos uma visita á despensa, uma vez que Deus nos quer dar, por algum tempo pelo menos, melhores e mais variados alimentos do que os maríscos e a caça que matarmos...
-- O sustento é o que menos cuidado me dá... Viveriamos, como os naturaes, dos productos d'esta terra, a que a natureza tão liberalmente dotou...
-- Mas isso, senhor, não póde ser para já. Emquanto não estivermos fortificados, e não conhecermos, sem sermos vistos, que especies de tribus vivem por estas paragens, seria temeridade arriscarmo-nos para o interior...
-- Dizes bem.
Assim, trocando ideias e formando os seus planos, passaram a noite os dois naufragos dispondo as coisas para na manhã seguinte voltarem ás margens do rio interior, a escolherem o ponto em que se fixariam provisoriamente.
De madrugada, tendo tomado uma boa refeição, e devidamente armados, dispunham-se a partir, quando subitamente Carijó exclamou:
-- Que imprudencia iamos commetter!
-- Então?
-- Não achaes que um de nós jámais deve abandonar o navio emquanto não estiver descarregado?
-- Mas...
-- Eu irei procurar o refugio que precisamos, e vós, entretanto, ficareis de guarda ao nosso thesouro..
-- Reconheço em parte a razão do que lembras, mas por outro lado, se nos separamos, mais facilmente poderemos ser victimas, d'uma surpreza dos antropophagos.
-- Senhor! São difficeis as circumstancias em que nos achamos, e é preciso entregar alguma coisa á sorte, confiando em Deus.
-- Seja, pois, como dizes... Parte, que melhor saberás do que eu escolher o nosso abrigo, e vae na sua santa guarda.
Sahiu o indio do navio, e Diogo Alvares ficou seguindo-o anciosamente com a vista. Sem saber porquê, dominava-o estranha inquietação; um negro presentimento o assaltava, de que o seu fiel companheiro corria para uma fatalidade, para um grande perigo. E assim esteve por algum tempo, luctando com a tentação de o seguir, e o dever de não abandonar a guarda do navio, de que se encarregára.
Não despregava os olhos da direcção seguida por Carijó, que se distanciava, sumindo-se por entre as rochas, e reapparecendo nos claros de areal que havia entre ellas... Ia já a bastante distancia, quando, subitamente, o cavalleiro soltou uma exclamação de terror:
-- Os antropophagos! Está perdido!
E sem pensar em nada mais do que no perigo que o seu companheiro corria, Diogo Alvares lançou a mão ao mosquete que tinha ao seu lado, e saindo da náo partiu a correr em seu soccorro...
O perigo era effectivamente imminente, porque o pobre Carijó seguia o seu caminho, sem desconfiança, indo no seu encalço os selvagens, que se escondiam entre as rochas, de certo com o fim de só lhe cahirem em cima em ponto apropriado á surpreza.
Em quanto corria, vinha á lembrança de Diogo Alvares a cilada de que resultára a morte d'um valente rapaz, durante a primeira viagem que fizera com Vespucio. Tambem os antropophagos o tinham seguido escondidos, até que, na sua frente, surgiram algumas indigenas, caminhando para elle com maneiras affaveis, inspirando lhe confiança, entretendo-o, emquanto as que o seguiam o feriam á traição, pelas costas.
Temia o mancebo vêr esta tactica subitamente empregada contra o seu companheiro, estando elle ainda longe, e por isso, levava o mosquete prompto a disparar, unico meio que tinha de encurtar a distancia que o separava dos inimigos...
Outra, porém, era a intenção dos indigenas. Depois o souberam os dois naufragos. N'aquelle momento, os selvagens achavam-se, acima de tudo, admirados pelo inesperado encontro d'aquelle homem, vestido estranhamente, mas igual a elles na côr e nas feições. A curiosidade, mais do que o proposito de o atacar, os fazia seguil-o, escondidos, para surprehenderem o seu destino, o ponto a que se dirigia, o que vinha ali fazer. Entretanto, Diogo Alvares avançava tão rapidamente, que ao chegarem ao extremo da zona das rochas estava apenas a uma centena de passos dos selvagens, os quaes não suspeitavam que eram seguidos, da mesma fórma que seguiam Carijó.
No momento, porém, em que este dava os primeiros passos no areal descoberto, voltou-se, de certo para vêr se d'ali descobria o navio, e, dando com os indios, ficou um momento perplexo e aterrado.
Pela sua parte estes, vendo-se descobertos, trataram de se apoderar do perseguido, cercando-o, em quanto o que mais perto se achava corria para elle, pretendendo lançar-lhe as mãos.
Diogo Alvares, vendo isto, visou o selvagem e disparou.
Ouviu-se a detonação do tiro, o primeiro de certo que retumbava em tal logar, e o desgraçado, varado por uma bala, como que deu um salto estendendo os braços para o céo, cahindo logo redondamente no chão.
Os que o seguiam, aterrados por aquelle successo imprevisto, e para elles sobrenatural, voltaram-se para o lado de que a detonação partira, descobrindo Diogo Alvares entre a fumarada produzida pelo mosquete, emquanto, como por effeito magico, de entre os arvoredos e moitas da outra margem do proximo rio, surgia multidão enorme de indios, homens, mulheres e creanças bradando, no auge do espanto e do terror:
-- Caramurú!! Caramurú!!
Comprehendeu Carijó, n'um relance, a situação e o que diziam, e approximando-se rapidamente de Diogo Alvares, prostrando-se a seus pés, como se elle fôra um semi-deus, entregou-lhe o seu mosquete, dizendo:
-- Estamos salvos! Disparae outro tiro! Já! Já!
Anteviu rapidamente o cavalleiro o que se passava, e apontou o mosquete a um grande albatroz que ia voando, ferindo-o de morte.
-- Caramurú!! Caramurú!! -- clamaram novamente os selvagens, com mais accentuado terror supersticioso; e emquanto a multidão não cessava de assim bradar, os indigenas que tinham seguido Carijó, approximavam-se d'este, e imitando os seus movimentos, prostravam-se aos pés do cavalleiro!
-- Para estas gentes, sois um ente sobrenatural -- disse o indio, ajoelhado, ao mancebo; -- fareis d'elles quanto vos approuver!
IX
A favorita do rei
Caramurú! «Homem de fogo!» tinham chamado os indios a Diogo Alvares. E entre elles estabeleceu-se a crença do poder sobrenatural que possuia, de exterminar, como quizesse, todos os seres viventes.
Seguindo o conselho de Carijó, revestindo-se de ademanes olympicos, prometteu o mancebo aos indigenas ajudar-lhes a destruir os inimigos com que andassem em guerra, o que elles acceitaram com enthusiasmo, pedindo-lhe que á sua frente marchasse contra os tapuyas. Respondeu-lhes o cavalleiro que assim faria, logo que o ajudassem a pôr em segurança o carregamento do navio com que elle e o seu companheiro ali tinham sido lançados por um poder superior, para fazerem a ventura d'aquelle paiz, e que, para melhor os ajudar na sua empreza, transferiria provisoriamente uma parte dos dons que possuia, ao seu fiel servo.
-- Em vez d'um «homem de fogo» -- disse Carijó aos indios, -- dois tereis, promptos a defender-vos contra os tapuyas: eu e o meu senhor, se o servirdes com fidelidade.
-- Derrote elle os nossos inimigos -- respondeu o mais velho dos caciques, reunidos em conselho á roda de Diogo Alvares e Carijó, prostrados em attitude submissa.
-- Pergunta-lhes o que motivou a guerra que trazem com os tapuyas -- disse o mancebo ao seu companheiro.
Transmittida a pergunta, o chefe respondeu, commovido, com as lagrimas nos olhos:
-- Roubaram a minha filha querida, Paraguaçú! aquella a quem, por sua extrema formosura, deramos este nome, que é do nosso rio.
Carijó assim o disse ao cavalleiro, explicando-lhe que Paraguaçú queria dizer: Rio Grande.
-- O meu senhor vos promette libertar vossa filha!
-- Assim o queira o Poder Supremo, que entre nós o enviou, e feliz serei se unindo-se com ella, crearem uma geração privilegiada, que faça a grandeza d'este paiz.
Rindo transmittiu Carijó a proposta do cacique a Diogo Alvares, aconselhando-o a que se acostumasse já a considerar o velho chefe indiano como sogro...
Caso extranho: o cavalleiro, que deixára o Minho acabrunhado por uma recordação saudosa que ainda em Lisboa não acceitára as propostas de um novo enlace, feitas pela rainha sua protectora, agora não sentia essa instinctiva repulsão intima pela ideia de se unir a outra mulher. Não que a lembrança de D. Anna se lhe tivesse varrido da memoria; pelo contrario, estava ahi sempre presente, mas tendo como que uma significação de santidade. Parecia-lhe ser agora para elle um espirito de anjo tutelar, que dos céos o protegia e determinava os seus destinos na vida. E quanto lhe succedia era determinado por esse genio bom. Talvez que no fundo d'este phenomeno psychologico existisse apenas o facto dos instinctos, naturaes no homem na força da vida, acordarem novamenfe em Diogo Alvares, ao contacto d'aquella exuberante e magnifica natureza, ao passo que a emoção produzida pelos extraordinarios successos por que ia passando, pelas alternativas de imminentes perigos e miraculosas salvações, apagavam successivamente no seu pensamento a impressão das desventuras soffridas nos seus primeiros amores. E a sua consciencia de cavalleiro, o seu mysticismo de christão, socegavam-se com a idéa de que, a unir-se ainda a qualquer mulher, seria por laços puramente terrenos, e não por essa verdadeira adoração que o ligara a D. Anna, sentimento como que succedaneo das suas crenças religiosas.
Animado por estes pensamentos, tendo largas e profundas vistas, Diogo Alvares comprehendeu quanto poderia ser util para a sua patria tornando-se chefe poderoso dos indios d'aquelles paizes. O amor da gloria reaccendia-se no seu pensamento, e ainda esta idéa se casava com a do seu culto pela recordação da que amara na terra, porque a ella attribuia a missão que lhe fôra destinada, sendo o unico portuguez salvo do terrivel naufragio da náo. Tinha, incontestavelmente, como portuguez e como cavalleiro, um alto destino a cumprir, no seio d'aquelle magnifico paiz, a que fôra arrojado como naufrago, mas a quem a Providencia punha ao alcance os meios de realisar grandes emprehendimentos.
Possuido por estas idéas, crente agora no seu destino, Diogo Alvares sentia-se retemperado de tristezas e desalentos. As suas recordações saudosas transformavam-se em melancholia suave: tinha a cumprir na terra uma elevada missão, que era como que o prologo d'essa outra existencia, em que se uniria á que tanto amára. Esta missão era-lhe por ella commettida. Do paraizo ia seguindo a fórma por que o cavalleiro a cumpria, tornando-se digno e merecedor d'essa união, que seria o seu futuro definitivo.
Renasceu no mancebo um enthusiasmo da vida, com que o seu companheiro se congratulou, sem deixar de secretamente o attribuir a uma já nascente paixão por Paraguaçú, essa mulher de cuja maravilhosa belleza os da tribu falavam com uma especie de veneração, e que devia realmente ser extraordinaria, tão superior a qualificavam a todas as creaturas femininas d aquella raça, geralmente formosa.
Tudo se dispoz, portanto, rapidamente, a fim de sem demora correrem a libertar a filha do velho cacique. Itagybe se chamava este chefe, que pressurosamente fazia executar aos da sua tribu as ordens do Caramurú para pòrem em logar seguro o carregamento da náo antes de partirem ao encontro dos tapuyas.
Tomadas estas e outras disposições, puzeram-se em marcha, e passados alguns dias chegavam aos dominios dos seus inimigos, pelo cahir da noite. Prevenindo-se contra qualquer surpreza, os tapuyas seguiam o seu systema de accenderem, pela tarde, em torno do seu acampamento, fogueiras em que lançavam de continuo uma especie de pimenta, a cujo cheiro estavam acostumados, mas que muito incommodava os que não eram d'aquclla região, e que produzia um fumo espesso que não deixava approximar o inimigo.
Contra esta estrategia, que já lhe haviam relatado, pensava Diogo Alvares empregar o meio decisivo da polvora. Tiros disparados de longe contra o centro do acampamento, haviam de prostrar subitamente alguns contrarios, e estes, cahidos como feridos por mão de genio invisivel, ao passo que se ouvia a detonação, espalhariam o terror no acampamento. Parecia-lhe facil poder sem receio usar d'este meio, por isso que os espias que Itagybe trazia ás suas ordens, e que tinham vindo encontral-o ao caminho, affirmavam que a captiva sua filha se não achava no acampamento, mas a pequena distancia, em uma habitação especial do chefe tapuya.
Ouvindo isto, acudiu ao pensamento do cavalleiro a idéa de, por um golpe de mão arrojado, a libertar, evitando a effusão de sangue de muitos homens, que já sabia serem apenas cegos instrumentos do malvado chefe tapuya.
Informando-se com o espião, por intermedio de Carijó, veio a concluir que a grande difficuldade a vencer estava em conseguirem atravessar a linha do acampamento inimigo, que defendia aquella habitação do chefe..
-- Temos toda a noite por nossa; é tempo mais do que necessário -- respondia Diogo Alvares ás observações de Carijó, que lhe mostrava a temeridade da tentativa... Compensará bem o risco que vamos correr, o podermos attingir o nosso fim, castigando o unico culpado e pondo termo a esta guerra entre povos que viviam como irmãos. Temos visto que só a paixão d'esse temido Mouy, um verdadeiro facinora, por essa pobre rapariga, de que dizem tanto bem, e a que ella não tem querido corresponder, determina esta guerra...
-- E' fóra de duvida...
-- E não menos digno de ser poupado é o sangue d'este velho, que deseja libertar sua filha das garras do malvado, do que o dos seus guerreiros, que se dispõem a morrer por uma causa que nada tem com os negocios da tribu, uma vez que Mouy declarou os não atacaria, a não ser que sustentassem o seu cacique n'este pleito...
-- Tudo isso é confirmado pelas informações dos espias. Segundo é voz geral, o chefe tapuya deu á pobre Paraguaçú um praso que terminará amanhã á noite, para condescender em ser proclamada sua favorita, ou condemnal-a a duro captiveiro, e marchar contra seu velho pae...
-- E' indispensavel castigar sem demora o infame! -- replicou o cavalleiro energicamente, erguendo-se, affirmando-se uma resolução definitiva.
Sem que o reconhecesse, parecia obedecer a uma corrente de attracção para essa mulher de quem todos falavam, com maior elogio ainda de seus talentos e qualidades, do que da sua maravilhosa formosura. Carijó, que bem conhecia já o caracter do mancebo, via que a sua resolução estava tomada, e que nada o impediria de a pôr em pratica.
-- Preparemo-nos bem, Carijó, com as informações dos espias. Vamos pedir a Itagybe para nosso guia um de absoluta confiança, e partiremos alta noite...
-- Faça-se como quereis, senhor.. já que não tenho auctoridade para vos contrariar...
-- Deus nos dará meio de vencermos a difficuldade séria que vejo: atravessarmos a linha das fogueiras e a sua fumarada. Conseguido isso, o resultado é certo, e o golpe que vibraremos anniquilando o Mouy, consolidará de vez o nosso ascendente sobre estas gentes...
-- E' fóra de duvida. Dizem os espias que a fama do vosso nome e do poder das nossas armas de fogo já corre entre os tapuyas; mas que o seu chefe tem feito propalar que se não trata, como dizem, d'um deus vingador, que vem a libertar a virtuosa Paraguaçú, mas d'um embuste inventado por seu pae para os intimidar.
O velho chefe dos goyanazes agradeceu commovido a Diogo Alvares a dedicação que mostrava pela libertação de sua filha, querendo acompanhal-o e partilhar os riscos da difficil empreza.
-- Não! -- lhe observou o cavalleiro. -- O golpe póde falhar, e tudo ficaria perdido, se vós não podesseis em tal caso tentar um derradeiro esforço. Cumpre que fiqueis de atalaya, e que ataqueis o campo fortificado dos tapuyas, quando sentirdes o estrondo das armas que possuimos. Na perturbação causada pelo vosso ataque inesperado, o céo permittirá que libertemos vossa filha...
-- Sim, que o teu grande saber e valor restitua a virtuosa Paraguaçú ao carinho de seu velho pae, e ditoso entregarei nas suas mãos e nas tuas o meu poder de cacique dos goyanazes...
A esta promessa, um significativo olhar dirigiu Carijó ao mancebo; este, porém, perturbado, máo grado seu, pelo que ouvia, e como receioso de que o ancião descobrisse esse mysterio que principiava a tomar vulto no seu espirito, replicou :
-- Deixemos o futuro, que é mais do que incerto ainda, e cuidemos do presente, dos meios a empregar para que possa tornar-se realidade, quanto á libertação de vossa filha.
Foram então combinadas as disposições a tomar, e horas depois, alta noite, quando todo o acampamento inimigo parecia repousar, e só velarem os esculcas a quem estava commettido entreter as fogueiras defensivas, Diogo Alvares e Carijó, precedidos pelo guia, metteram-se a caminho.
Fazendo um largo rodeio, e caminhando por entre denso matto, onde seria impossivel passar um corpo numeroso de atacantes, conseguiram dobrar um dos extremos da linha de fogueiras, dirigindo-se para as cavernas em que o Mouy provisoriamente se acoitára com a sua preza. -- Habitar em grutas naxuraes, e em verdadeiras tocas abertas no interior da terra, era o costume dos tapuyas, tribu das mais rudes e guerreiras dos indios d'aquellas paragens. Mas ainda para maior precaução, no caso d'um ataque victorioso dos inimigos, fizera o barbaro cacique derrubar as arvores gigantes proximas da caverna, construindo com ellas uma palissada, cingida a estacas no chão cravadas, com fortes filamentos da planta chamada cipó.
Se por um lado, porém, esta precaução tornava mais difficil o accesso, por outro, permittiu ao cavalleiro e
aos que o acompanhavam approximarem-se sem serem presentidos, e observarem o que n'aquelle verdadeiro antro de feras se passava...
Ardia no centro do recinto uma fogueira, e á sua luz distinguiram a torva e sinistra figura do chefe selvagem,
que agitado passeava, como animal bravio em uma jaula, dirigindo animadas falas, acompanhadas de energica gesticulação, á prisioneira, que parecia implorar commiseração.
Entre os dois personagens erguia-se a chamma do brazeiro, illuminando a avantajada estatura do cacique, ao passo que o vulto de Paraguaçú ajoelhada, estendendo para elle mãos supplicantes, se recortava em escuro sobre o fundo brilhante das labaredas.
Sem que a distancia permittisse aos que acompanhavam Diogo Alvares ouvirem e traduzirem as palavras proferidas pelo feroz indio, a sua attitude, os seus gestos, o seu olhar, eram demasiado expressivos, para deixarem a menor duvida ao cavalleiro da sua paixão e sentimentos, repartidos entre as expansões de amor brutal e de impetuosa tyrannia, antevendo bem que ia chegar um momento de perigo supremo para o pudor da mulher, que manifestamente Paraguaçú luctava por salvar dos seus desejos ardentes. Ordenou por isso o cavalleiro ao guia que diligenciasse ir abrindo uma passagem na sebe, por onde podessem correr em soccorro da victima, e entretanto Carijó, attento, lhe transmittia algumas palavras que mais distinctamente lhe chegavam aos ouvidos, entre as que trocavam o Mouy e a prisioneira.
-- Promette-lhe não atacar os goyanazes, se quizer ser sua favorita, -- informa va-o Carijó. -- E' pois verdade o que temos ouvido: só a paixão do Mouy promove esta guerra. Agora, ameaçou-a de morte, se não cede..
E como a confirmar esta informação, o cacique avançou para a filha do chefe goyanaz com um gesto ameaçador. Instinctivamente, o cavalleiro apontou-ihe o mosquete por uma pequena abertura da palissada, prompto a desfechar.
N'este momento, porém, um incidente imprevisto, que a todos causou a maior impressão, veio suspender o desfecho fatal, imminente. Paraguaçú, no auge do terror e do desespero, arrancou violentamente um adorno que trazia ao pescoço, com os collares de marfim e coral, estendendo as mãos empunhando-o, como se fosse uma arma com que buscasse defender-se. Distinguiram os dois christãos o que era, e Diogo Alvares exclamou attonito:
-- Um crucifixo!!
E sem formular outra idéa mais do que a da imperiosa necessidade de salvar a misera, no momento em que o selvagem, depois de uma feroz risada de escarneo e desprezo peio symbolo sagrado, a que Paraguaçú implorava a salvação, avançou ainda, estendendo as mãos para lh'o arrancar, Diogo Alvares não poude conter-se, desfechando o mosquete; e ao mesmo tempo que o silencio do acampamento era perturbado pelo estampido do tiro, o feroz Mouy cahia aos pés da sua victima para não mais se levantar!
N'este momento, o guia vinha participar a descoberta de uma passagem a poucos passos:
-- Depressa! Depressa! -- disse o cavalleiro para Carijó; -- arrebatemos a desgraçada, antes que dêem por nós...
-- E' impossivel, senhor! Já as sentinellas dão rebate. A detonação attrahe-as para aqui..
-- Vinde! -- e emquanto atravessavam a sebe, correndo para o lado de Paraguaçú, concluiu: -- executaremos o plano ajustado: faremos fogo até que os goyanazes ataquem o acampamento.
Paraguaçú, com a rara penetração do seu espirito, comprehendeu logo que devia a salvação ao Caramurú, ao homem de fogo, esse ente sobrenatural de cujo apparecimento nos estados de seu pae correra já a noticia por todas as tribus do paiz, e debulhada em lagrimas arrojou-se-lhe aos pés a testemunhar-lhe o seu reconhecimento.
Ergueu-a o mancebo com modos carinhosos, proferindo as poucas palavras de goyanaz que sabia capazes de a socegar, e ficou maravilhado com a sua extraordinaria formosura, quando Paraguaçú ergueu para elle os olhos, perguntando-lhe com anciedade por seu velho pae!
O que lhe tinham dito ficava muito áquem do encanto d'aquella creatura! Era um verdadeiro phenomeno, em que a natureza parecia ter concentrado quanto na sua bella raça havia de mais apreciavel. Não era branca, como a dos europeus, a sua pelle, mas não tinha também a côr de bronze avermelhado dos indios; era a da mais ideal das creoulas, havia por certo muitas europêas que seriam trigueiras ao seu lado. Os cabellos, que lhe cahiam quasi até aos pés, eram negros como o ébano, e todas as suas formas tinham a pureza correcta d'uma Venus da antiga estatuaria grega. Para mais lhe realçar a belleza, concorrera a anciosa amargura do captiveiro, que a não deixara pensar um momento em fazer a toilette propria das mulheres indigenas: a pintura do corpo em desenhos caprichosos de variadas côres, e os complicados penteados guarnecidos de pennas, conservando por trajo apenas um saiote das mais finas plumagens verdes de papagaio e de outras aves, tecidas com fios de algodão.
Acabava o cavalleiro de a fazer erguer, pedindo a Carijó que a tranquillisasse a respeito do cacique seu pae, quando atroaram os ares gritos de guerra! -- Era todo o arrayal que se erguia, correndo em soccorro da habitação do chefe atacada.
-- Não tardam ahi os inimigos, -- exclamou aterrado o guia para Carijó...
-- Senhor! disponhamo-nos para a defeza, -- observou este ao mancebo.
-- Nada mais temos a executar, do que o que foi combinado: emquanto eu faço fogo, carregas tu o outro mosquete...
-- Começae, pois, que elles ahi estão!
O alarido redobrava, medonho, á entrada da caverna, e o cavalleiro só teve o tempo necessario para conduzir Paraguaçú, louca de terror, para um reconcavo da gruta, em que ficava ao abrigo das settas tapuyanas. E logo voltando, desfechou o mosquete, que o indio lhe deu, carregado de metralha, contra o grupo de endemoninhados selvagens que pretendiam entrar na gruta, e para o seu interior disparavam algumas fréchas, que, por felicidade, não attingiram os defensores.
Comprehendeu o cavalleiro que esta falta de pericia, para estranhar n'aquelles atiradores eximios, que com uma frécha atravessavam as aves no seu vôo, só podia vir do terror supersticioso de que estavam possuidos a seu respeito. Bem se denunciava na algazarra com que reciprocamente pretendiam animar-se, sem comtudo algum tomar a resolução de avançar, embora sacrificando a vida, até lançar as mãos ao inimigo, como era o costume dos indigenas na guerra, e sobretudo dos tapuyas, uma das mais ferozes e rudes entre as tribus indias de Santa Cruz, como o demonstrava o torvo aspecto d'esses verdadeiros demonios, que se agitavam á entrada da caverna, medonhos na sua tez acobreada, com os cabellos rapados desde a testa até meio craneo, os beiços, o nariz e as faces furadas e atravessadas por espetos feitos com ossos de animaes, e o corpo todo pintado ás riscas de variadas côres.
Horrivel foi o resultado do tiro de metralha disparado por Diogo Alvares, derrubando quantos indios se achavam á frente dos atacantes. Tomados de panico, os que se lhe seguiam, lançando-se por terra, passaram a implorar esse ente sobrenatural, repetindo tambem a palavra: Caramurú! Caramurú!! No mesmo momento, porém, ouviu-se o grito de guerra dos goyanazes, que, segundo o plano ajustado, atacavam o campo inimigo mal tinha soado a primeira detonação.
Anteviu o cavalleiro que, nas circumstancias que se davam, muito podia fazer com o seu prestigio para evitar uma inutil carnificina, e quanto lhe convinha mostrar-se clemente, a par de invencivel.
Ordenou, pois, a Carijó que, secundado pelo guia, sahisse soltando o grito de suspensão da lucta, o que este achou arriscado e só veio a conseguir disparando para o ar o seu mosquete, e aproveitando a estupefacção que o fuzilar e o estampido da descarga produziam sempre entre os selvagens.
Deu-se então um caso singular: seguindo o seu uso de, como vulgarmente se diz, não conhecerem rei nem roque, os tapuyas só respeitavam como chefe o que na guerra obrava maiores proezas.
Nenhum outro respeito ou affecto os ligava ao chefe. Para elles, o chefe agora era esse terrivel homem de fogo, e mal as hostilidades cessaram, rompeu uma unanime grita proclamando-o cacique supremo!
Logo os pagés, os feiticeiros da tribu, verdadeiros oraculos em cujos vaticinios os tapuyas acreditavam piamente, e que se distinguiam por uma pequena cabaça pendurada na ponta d'uma frecha, ferindo lume com dois pequenos páos aguçados, accenderam as folhas seccas que as cabaças continham. Depois, aspirando o seu fumo, que breve os embriagou, começaram a dançar proclamando chefe o Caramurú!
Os oraculos pronunciavam assim um decreto a que a tribu só tinha de obedecer.
Carijó punha o mancebo ao facto d'estes detalhes, e Diogo Alvares, instruido como era, reconhecia todo o alcance do poder moral sobre aquella gente, de que a sorte o revestia.
Inteiramente seguro, tanto mais que para elle a vida pouco interesse merecia, e os grandes lances tentavam-n'o, como a todas as almas arrojadas e crentes d'aquelles tempos de fé cavalleirosa, tomando pela mão a prisioneira, sahiu da caverna, dirigindo-se ao centro do arraial, por entre os selvagens, que se prostravam na terra á sua passagem. Ahi encontraram o velho cacique goyanaz, em cujos braços Paraguaçú se lançou,
chorando de alegria.
Então os goyanazes, por seu turno, proclamaram a gloria do Caramurú, com as danças e canticos da victoria, ao passo que o ancião seu chefe, dirigindo-se ao cavalleiro e apresentando-lhe aquella a quem chamavam Rio Grande, lhe dizia:
-- Cumpriram os tapuyas a sua lei, proclamando-te seu chefe. -- Devo cumprir tambem a minha palavra: ahi tendes Paraguaçú! Será a tua primeira favorita, e com ella depois da minha morte governarás os goyanazes!
Mal o velho cacique pronunciára estas palavras, que Diogo Alvares comprehendeu pela mimica que as acompanhou, o seu espanto e surpreza attingiram um grau a que não tinham chegado com os maravilhosos casos que lhe succediam, ouvindo Paraguaçú, não em termos de protesto contra a determinação paterna, mas como se desse um persuasivo aviso ao cavalleiro, dizer-lhe:
-- Sou christã!
X
O amor de Paraguaçú
São passados dois annos sobre os acontecimentos que acabamos de descrever.
O Caramurú, assim denominaremos d' aqui por deante o nosso heroe, tem consolidado o seu poder de chefe dos goyanazes, havendo delegado em Carijó o governo da tribu tapuya, assente em dominios distantes d'aquelles em que o fidalgo minhoto se estabeleceu, no sitio denominado Villa Velha, que mais tarde se tornou a séde d'uma importante capitania portugueza, e o germen da futura cidade da Bahia.
N'estes dois annos, a existencia do Caramurú não deixou de ser a de lucta moral, constante, dos seus sentimentos elevados e das suas aspirações de cavalleiro, com os factos positivos da vida, lucta que a sorte parecia ter-lhe destinado em partilha n'este mundo, a par da propicios successos.
No seu coração, disposto pela natureza para se entregar ao amor apaixonado, as recordações ainda vivas de D. Anna luctam umas vezes, outras parecem irmanar-se e fundir-se no encanto maior da sua vida: o affecto que lhe merece Paraguaçú. Da parte d'esta mulher excepcional, mais captivante ainda pela elevação das suas qualidades, incomprehensiveis n'uma filha de selvagens, do que pela sua formosura, ha muito sabe o cavalieiro que existe a seu respeito a mais funda paixão. E não obstante, elle, a quem as exigencias da situação, pela necessidade de não ferir as superstições dos chefes indios, teem obrigado a acceitar por mulheres as suas filhas, dando o ser a uma prole numerosa como as dos patriarchas antigos , a Paraguaçú, que todos consideram a sua primeira favorita, só o ligam laços moraes. Assim o velho cacique Itagybe, pae da bella Rio Grande, morrendo, pedira ao Céo que abençoasse aquella união, até ali esteril, com o nascimento de filhos.
A razão d'este verdadeiro phenomeno entre as mulheres goyanazes, tão ferteis na maternidade, era um mysterio só conhecido pelo cavalieiro e pela sua favorita. Provinha d'essa confissão, que deixára attonito o Caramurú, em que lhe disséra ser christã. Era com effeito christã Paraguaçú, christã peio principio mais respeitavel para os sentimentos religiosos de todo o portuguez d'aquelles tempos: christã, pela fé!
Logo que o Caramurú conheceu bastante o dialecto goyanaz para a sós conversar com a formosa creatura, indagou a razão do que lhe dissera, e como viera ter ás suas mãos o crucifixo que sempre trazia ao pescoço, e ao qual implorara a salvação contra o attentado do feroz Mouy.
-- Fraca memoria tendes, -- lhe respondeu Paraguaçú; -- esqueceis um facto que devia lembrar-vos toda a vida!
-- Não vos comprehendo!
-- Pois não me tendes dito conhecer minuciosamente os detalhes da passagem n'estes paizes do primeiro portuguez que aqui veio ?
-- Alvares Cabral?
-- Esse mesmo!
-- E então?
-- Não sabeis que na vespera de partir ergueu uma grande Cruz em terra, celebrando a missa, e depois da ceremonia, os seus capitães e os frades distribuiram aos indigenas muitos pequenos crucifixos?
-- Sim. Agora me recordo de ter ouvido contar a Nicolau Coelho, em Lisboa, que aos indios de Santa Cruz tinha dado todo o resto d'essas imagens sagradas que levára na viagem da descoberta da India.
-- Isso mesmo.
-- Mas, tenho ideia de que só indios presencearam esse acto...
-- Enganaes-vos! Uma só mulher assistiu, a quem para esse fim deram fatos que lhe incobrissem a nudez. Foi a que me creou, porque, como já sabeis, não cheguei a conhecer minha mãe, -- acerescentou Paraguaçú, com a expressão de tristeza que frequentemente havia nas suas palavras.
-- N'isso ainda, a sorte nos fez irmãos.
-- Irmãos! Irmãos! -- exclamou arrebatadamente a india, acordando n'ella a paixão e o ardor dos sentimentos da sua raça. -- Sempre essa palavra! a tornar impossivel a nossa união, que eu tenho por decretada por Deus! Por esse Deus que é vosso, que este crucifixo representa, e que eu respeito...
-- E' que ainda não estás bem ao facto dos preceitos da sua religião. És christã, Paraguaçú! pela fé com que acreditas no Todo Poderoso, que ahi está representado, e pela confiança com que a Elle tens recorrido nos lances mais difficeis da tua vida. Mas emquanto não receberes o sacramento do baptismo, e um sacerdote não realisar a nossa união perante Deus, seria offensa á sua lei tomar-te por mulher...
-- Mas tomaes outras da minha raça! -- observou Paraguaçú, com visivel ciume.
-- Essas não acreditam como tu no meu Deus... Sacrifica-te.. O sacrificio é a offerta mais valiosa que lhe pódes fazer...
-- Será como dizeis. Sei que não sois capaz de me enganar. As vossas palavras confirmam o que a minha mãe adoptiva me dizia ter ouvido aos linguas que traduziam as praticas feitas pelos sacerdotes da armada de Alvares Cabral, emquanto permaneceram n'este paiz. Mas se um dia tiverdes ensejo de voltar á vossa patria, ou se aqui vier um ministro da vossa religião, já o sabeis, se me não tomardes por esposa matar-me-hei...
-- Para que fazes tão sinistro protesto? E' desnecessario...
-- Quem sabe? Nunca me quizestes jurar que assim farieis...
-- E' inutil um tal juramento, -- e o cavalleiro, dizendo isto, confundia-se e enleava-se, na lucta intima que se travava entre o amor que já nutria pela bella Rio Grande, e as recordações dos estranhos compromissos tomados comsigo mesmo, no desvairamento da sua dôr, pela morte de D. Anna.
-- Ah! que ditosa seria -- exclamou Paraguaçú -- se um dia visse a vossa patria, se pudesse beijar a mão á rainha, que vos quer como mãe!
-- Sim! Sim! Portugal está sempre no meu pensamento, como no teu, Paraguaçú! Pede a Deus que breve tenhamos noticias da minha patria, graças aos meios que encarreguei Carijó de empregar.
A patria! Era, a par das suas ainda saudosas recordações, como o Caramurú dizia, o objecto dos seus pensamentos constantes!
Nada mais soubera de Portugal! Havia dois annos que se achava em Santa Cruz, e n'esse espaço de tempo nenhum navio viera á costa. Dispondo de enorme poder sobre as tribus d'aquellas regiões, tendo-lhes ensinado a aproveitar as riquezas d'aquelle paiz, tão dotado pela natureza, tinha a consciencia dos grandes serviços que podia prestar ao seu rei, collocando sob a corôa de Portugal aquellas regiões, e via-se impedido de o fazer por não ter meios de communicação.
Recentemente, ainda este estado se viera tornar mais desagradavel, redobrando a sua inquietação e o ciume, chamemos-lhe assim, que sentia a respeito da Terra de Santa Cruz, como Paraguaçú sentia pelo seu amor, porque alguns indios de tribus mais distantes tinham vindo participar-lhe que homens christãos, não portuguezes, mas de outros paizes, que o Caramurú conjecturava serem hespanhoes e francezes, andavam em competencia para se estabelecerem em varios pontos da costa.
Foi então que o cavalleiro chamou junto de si Carijó, ordenando-lhe uma exploração aos logares indicados, para averiguar o que se passava, esperando, como dissera a Paraguaçú, anciosamente a sua volta.
Afinal, depois de longa demora, voltou o suzerano do Caramurú, a participar-lhe que em alguns sitios da costa encontrára, entre os indigenas, degredados portuguezes, deixados por navios que ali tinham passado havia bastante tempo, mas que nada mais podiam dizer-lhe senão que d'uma vez tinham avistado navios que lhes pareceram de Castella, mas que não se tinham approximado. Foi ainda assim grande a alegria do Caramurú em saber que, embora distantes e de má especie, existiam compatriotas seus n'aquelles paizes, tratando de se pôr em relações com elles, principalmente para que, podendo chegar á fala com alguma armada que passasse, dessem aviso da sua estada ali.
N'esta situação decorreram alguns annos, nos quaes o Caramurú viu crescer o seu poder e riqueza.
Um dia, quando menos o esperava, appareceu um enviado de Carijó a prevenil-o de que se não ausentasse para o interior, como muitas vezes fazia, por lhe constar terem sido vistos de terra alguns navios, que, mais para o norte, perto do Cabo de Santo Agostinho, tinham carregado páo brazil, segundo o avisára um d'esses degredados, promettendo-lhe importantes noticias, que por um pratico transmittiria ao Caramurú, mal as conhecesse.
Pouco depois, era o cavalleiro emfim inteirado de factos importantes, que iam assignalando a competencia de portuguezes, castelhanos e francezes, sobre o mar, nas paragens de Santa Cruz, e cujo objectivo eram as riquezas do Oriente e a posse de dominios nas Indias Occidentaes.
Soube que o rei de Castella, com o proposito de tomar posse da costa que Vespucio descobrira sob a bandeira de Portugal, enviara uma armada, com a qual se dava o estranho facto de ter dois chetes: eram Vicente Ianés Pinzon e Juan Dias de Solis. Com o fim utopista de evitar discordias entre elles, pertencia a Solis determinar o rumo a seguir, consultando o camarada e os pilotos. Chegariam os navios á fala todos os dias de manhã e á tarde, e o navio de Solis levaria o pharol. Logo que tocassem em terra, Pinzon assumiria o commando e direcção de todas as operações. Não deviam tocar em ilha ou terra firme que pertencesse ao soberano portuguez.
Passado o Cabo de Santo Agostinho navegaram bastante para o Sul, tomando posse da costa e erguendo padrões formados por cruzes. Levantaram-se dissenções entre os chefes, o que os fez regressar a Hespanha. Solis foi encerrado em uma prisão, e Pinzon recompensado. Era a injustiça que triumphava, como tantas vezes succede no mundo, reservando-se o destino mostrar mais tarde, evidentemente, a superioridade dos meritos de Solis.
Entretanto, D. Manoel protestára contra estes actos de posse, que reputára attentorios dos seus direitos e da linha de limites traçada por Alexandre VI para determinar as zonas em que os descobrimentos pertenceriam a Castella e a Portugal.
Descoberto, como estava, o mar do sul, em que Magalhães havia de mais tarde encontrar a passagem do estreito pelo qual daria a volta ao mundo, mandou novamente Fernando o Catholico o afamado navegador, que lançára no carcere, e reconhecendo emfim o seu merito, a uma nova expedição.
Seguiu este até ao rio da Prata, que primeiro tomou por um mar d'agua doce, e convidado pelos naturaes para ir a terra, desembarcou seguido por pouca gente, com o secreto designio de apprehender um indigena que levasse para Hespanha.
Pela sua parte, os naturaes premeditavam trucidar os christãos, e, embuscando-se, cahiram de surpreza sobre elles. Solis foi morto, com os seus companheiros, a golpes de maça, despedidos pelos ferozes selvagens que demoravam então na margem norte do Prata, entre Montevideu e Maldonado, e os seus restos assados e divididos por esses antropophagos.
As náos da sua armada regressaram ao Cabo de Santo Agostinho, carregaram de páo brazil e voltaram a Hespanha.
O rei de Portugal reclamou a entrega d'estes carregamentos e das tripulações, para serem castigadas como contrabandistas, mas chegou a accordo com o rei catholico, mediante a troca dos prisioneiros dos dois paizes por delictos identicos.
A par d'estes successos, aue vieram ao conhecimento do Caramurú, foi elle tambem informado de que homens de outra nação, os francezes, igualmente competiam para em Santa Cruz se estabelecerem, frequentando até ultimamente a costa, mais do que os hespanhoes, e entregando-se principalmente á pirataria, esperando no caminho as náos que voltavam da India carregadas de ricas especiarias, atacando-as e saqueando-as.
-- Não comprehendo -- observou o Caramurú, ouvindo estas informações -- como a este porto não tem vindo navio algum!
-- E' porque, antes de aqui vos estabelecerdes, vieram duas náos francezas, julgando poderem tomar posse d'esta bahia, já descoberta pelos vossos irmãos, -- lhe respondeu o goyatacaz que viera acompanhando Carijó, para o informar.
-- Então?
-- Mas chegou dias depois uma armada de Portugal...
-- De Portugal?!
-- Sim! Christovão Jacques se chamava o capitão-mór!
-- Ah! Foi na segunda viagem de Vespucio, em que fiquei no Minho... E o que se passou?
-- Encontrou os francezes n'um dos reconcavos da costa, e quiz aprisionar-lhes os navios. Resistiram, acabando por serem mettidos no fundo. Alguns dos vossos irmãos, que ha dispersos mais para o norte, na terra firme do banco de Itamaraca, foram ahi deixados por esse capitão...
-- Voltam então os francezes, mas agora por outras paragens?
-- Sim. N'este momento, um navio seu está carregando páo brazil, proximo aos dominios da nossa tribu. De perto os tenho visto, indo a nado até junto da náo...
-- Vós?!
-- Sou pescador de tubarões! -- respondeu o goyatacaz com orgulho...
-- Ah! Sois dos valentes que se acercam d'esses terriveis monstros marinhos, offerecendo-lhes como preza a mão armada d'um pequeno páo aguçado nas pontas, em que ficam encravados pela goela, na ancia de vos tragar?!
-- Tenho assim apanhado centenas d'elles, e feito muitos milhares de settas dos dentes com que me queriam devorar!...
O Caramurú ficou por momentos silencioso, reflectindo. De subito, perguntou ao goyatacaz:
-- Irmã como é a vossa iribu dos goyanazes, de que sou chefe, queres prestar-me um valioso serviço?...
-- Estou prompto a obedecer-vos, Caramurú!...
-- Sereis capaz de levar um presente meu ao capitão d'esse navio francez, convidando-o da minha parte a vir aqui?
-- Partirei quando quizerdes...
-- Amanhã! Esperae; comvosco irá Carijó, que mais facilmente se fará comprehendcr por elle...
-- Como vos parecer. Só pretendo servir-vos, e assim o desejam todos os goyatacazes, que sabem do vosso poder e virtudes...
-- Obrigado, valente pescador de tubarões!... Vae descançar, que de madrugada te porás novamente em marcha.
Despedindo assim o goyatacaz, queria ficar a sós com o seu dedicado Carijó. Logo que o pescador de tubarões se affastou, o Caramurú exclamou com signaes de viva satisfação:
-- Creio que, emfim! poderei realisar os meus planos!...
-- Que intentaes fazer? senhor!
-- Ajustar com o capitão francez levar-me a Portugal...
-- Será difficil obtel-o...
-- Porque pensas isso?
-- Esta ausencia persistente de navios na costa dos vossos dominios, tem para mim o caracter de propositada! Demais, é conhecido o vosso nome, assim como sabido é que vos chamam o homem de fogo e sois christão. Tapuyas, goyanazes, tupiniquins, goyatacazes, guaranys, todas as tribus, emfim, que do norte ao sul habitam as Indias Occidentaes, conhecem e apregoam o vosso nome. Se francezes e hespanhoes, frequentadores da costa, aqui não teem vindo, é porque lhes não convem conhecer-vos..
-- E como explicas que tambem não tenham vindo portuguezes?!
-- Os portuguezes, agora, quasi só pensam nas Indias do Oriente e nas suas riquezas...
-- Tendes razão! -- exclamou o cavalleiro, com um sentimento de profunda tristeza. -- Ouro! Ouro! Eis o que em Portugal se pretende que as náos tragam dos novos paizes descobertos! Sem pensarem que ouro é o que ouro vale, e que tão grande riqueza ha nos productos d'uma terra abençoada por Deus, qual esta de Santa Cruz, como nas minas de metaes e pedras preciosas... E' por isso indispensavel que eu vá a Portugal para assim o dizer ao rei...
N'este momento, ergueu-se um dos pannos de riscas variegadas, entretecidos de pennas, obra de artistas indios, que servia de reposteiro a uma das entradas do recinto da grande tenda do chefe goyanaz, e Paraguaçú entrou, ouvindo estas palavras...
-- E eu irei comtigo! Verei emfim a tua patria, conhecerei a rainha D. Leonor!
Pareceram estas palavras contrariar o cavalleiro, que nada respondeu, limitando-se a fazer signal a Carijó para se retirar, dizendo-lhe:
-- Convoca para esta noite os caciques. Desejo communicar-lhes o meu plano...
O indio christão sahiu... Paraguaçú approximou-se, affavel, mas timidamente, do Caramurú, e perguntou-lhe anciosa:
-- Levar-me-has comtigo, sim?
-- Não é possível, Paraguaçú!... Mas descança... Em breve voltarei, trazendo de Portugal sacerdote que te baptise e nos case...
A favorita, no auge da maior afflicção, rompeu em pranto, dizendo a custo:
-- Assim faltas á tua promessa?!
-- E' que são imprevistas e graves as condições em que irei ao meu paiz...
-- Se ha perigo, mais uma razão para te acompanhar! -- E passando subitamente do estado de abatimento e passividade, ao de uma grande exaltação, accrescentou: -- Confesso-te: escutei quanto falaste com o pescador de tubarões e Carijó, e descubro o teu pensamento: não tens, não pódes ter confiança n'esses navegadores francezes, talvez corsarios ou piratas, que esperas... Vaes entregar-te nas suas mãos, cegamente, ardendo no desejo de tornar a ver Portugal e servires o teu rei! Ha dez probabilidades contra uma de que te lancem ao mar, ou te levem a França preso, para depois se apossarem do teu poder e dominio... Se queres um conselho meu, digo-te: espera que venham portuguezes! Se persistires em ir com os navegadores de França, ou te acompanharei, ou cumprirei o meu voto, pondo termo á vida!...
E a favorita, como quem disse a ultima palavra d'uma sentença irrevogavel, sahiu da tenda!...
O Caramurú, admirando intimamente mais esta prova da entranhada dedicação da formosa indiana por elle, e a penetração das suas vistas, ficou entregue aos seus pensamentos, que em turbilhão se revolviam, accordando e confundindo as recordações dos seus antigos affectos com as circumstancias presentes, as lembranças da patria e o desejo de a servir, com a incerteza e risco do passo que intentava, e no qual tudo podia perder, como lhe dissera Paraguaçú, em lucido ajuizar da situação...
Assim ficou meditando por longas horas.
Mais d'uma vez, Paraguaçú assomou á porta do aposento, para lhe trazer a refeição da tarde, mas não se animou a perturbal-o n'aquella cogitação, que tinha por salutar, e da qual esperava que resultaria o abandono do seu projecto. A noite desceu, e só então o clarão percebido atravez das janellas, o chamou á realidade, lembrando-lhe que estaria já reunido á sua espera o conselho dos caciques.
Assim era, com effeito. A pouca distancia da residencia do chefe, em volta de uma grande fogueira, estavam assentados os caciques goyanazes.
Segundo o uso, entregavam-se já ás libações d'um vinho extrahido de fructas, bebendo todos do cangirão de barro, que passavam de mão em mão, obrigando-se por esta cerimonia a observarem fielmente as resoluções tomadas em commum.
O Caramurú occupou o logar mais elevado, que lhe pertencia, bebendo tambem do cangirão que o mais velho dos caciques lhe veio trazer. Fez-se silencio, e elle assim lhes falou:
-- Ha bastantes annos já que me confiastes a auctoridade suprema, bons goyanazes! e reciprocamente tomámos o compromisso de sustentar em Santa Cruz o poder da minha patria. Chegou a occasião de cumprir-mos a nossa palavra, procurando eu dar-vos todos os beneficios produzidos pelo estabelecimento definitivo da soberania de Portugal na vossa terra, e vós ajudando-me a sustental-a.
Deteve-se o Caramurú um instante, e logo o mais idoso dos chefes respondeu:
Quando essa promessa te fizemos, bebemos comtigo, como agora, e jámais os caciques goyanazes faltaram ao compromisso tomado solemnemente. O que é preciso fazer?
-- Respeitar a auctoridade d'aquelle que eu deixar em meu logar, emquanto me affastar de vós para ir a Portugal.
-- Serás obedecido. Mas os teus dias, Caramurú! são preciosos para nós, e quizeramos que os não arriscasses sem consultar os pagés, para sabermos se serás feliz no que projectas fazer.
-- Era esse o meu propósito, e os pagés vão ser ouvidos.
Como se tudo isto fossem formalidades já previstas, o cacique mais novo ergueu-se, e, soltando um grito especial, pareceu invocar genios invisiveis. Logo das sombras surgiu um grupo de pagés, feiticeiros, homens e mulheres, trazendo cada um espetada na ponta d'uma frecha a maraca, imitando cabeça humana, com boca, nariz, olhos e cabello. Accenderam dentro d'ellas as folhas de bétele que continham, e começando a aspirar o fumo que d'ellas sahia, se foram embriagando, e á medida que se embriagavam, começaram a dançar diabolicamente, entre gritos e cantares. Afinal, acabaram por ir cahindo successivamente no chão, e só ficou de pé o que parecia ser o chefe. A este pediu o Caramurú lhe dissesse qual o voto que tinham formado, ao que respondeu:
-- Não fazem os goyanazes a guerra por cobiça de riquezas, nem para se assenhorearem de novos paizes. Tu, homem de fogo! pensas como elles, e só queres o seu bem,... pelo que o nosso deus nos avisa de que serás feliz no teu plano, e que os goyanazes te devem obedecer.
Os caciques ergueram-se immediatamente, promettendo observar o compromisso que iam tomar, e logo a amphora de vinho correu a roda, ficando sellada a promessa feita por cada um de secundar o projecto do Caramurú.
Só Paraguaçú, quando o cavalleiro voltou á sua habitação, lhe disse sorrindo tristemente:
-- A tua religião que me ensinaste, não me deixa considerar esses compromissos grosseiros firmados em crenças barbaras, em que a tua politica te obriga a fingir que acreditas. O que te disse está dito... Viva ou morta, acompanhar-te-hei!...
-- Pois quê? recusarás ajudar-me, assumindo o poder, que teu pae nos legou, na minha ausencia?!
-- Investi n'elle Carijó. E' homem, e teu fiel servidor. Melhor do que eu póde tomar esse encargo.
Nada respondeu o Caramurú, começando a preoccupar-se seriamente com esta intransigencia da que todos consideravam sua favorita.
Dias depois, um espectaculo extraordinario chamava á costa multidão de goyanazes. A poucas milhas da praia, tinham apparecido pela manhã fundeadas as duas náos francezas que se esperavam.
Profunda impressão causou a vista d'estes navios no cavalleiro, que havia tantos annos se achava inteiramente separado do contacto de europeus. No seu espirito revolvia-se agora um turbilhão de pensamentos elevados, no anceio de voltar á patria a offerecer ao rei os valiosos serviços que em Santa Cruz lhe podia prestar, de lhe depôr aos pés todo o seu poder, e de ao mesmo tempo obter para a sua tribu, que lhe queria como a um pae, todos os beneficios da religião christã, e da civilisação de Portugal.
Ardendo n'estes desejos, o Caramurú mandou logo a bordo Carijó, a convidar o capitão a que desembarcasse.
Em breve voltou só, trazendo uma resposta que bastante admirou ao cavalleiro, e que era apenas o inicio das dificuldades que se haviam de oppôr á integral realisação dos seus projectos, convencendo-o successivamente de quanto eram difficeis de cumprir, em razão das competencias que então lavravam entre as nações da Europa, nas Indias do Occidente. Recusava-se o capitão a vir a terra sem que lhe mandassem importantes refens, allegando para isso a morte tragica do navegador hespanhol Solis, que, em identicas circumstancias, se fiára em um convite dos selvagens.
Exasperado, o cavalleiro exclamou:
-- Mas ignora o capitão d'essas náos, que eu sou portuguez?!...
-- Tem ouvido fallar no homem de fogo, sabe que, como chefe dos goyanazes, vos chamam o Caramurú, mas não acreditou nas minhas palavras... Convida-vos, se quereis, a ir a bordo; mas o meu parecer, é que deveis desconfiar d'elle como desconfia de vós. Mandae-lhe alguns chefes como refens, e que desembarque.
Assim se fez. Foram para bordo das náos alguns caciques, levando presentes do melhor que havia em terra, e pelo meio dia um batel largou de bordo da capitaina. Quando chegou á praia, o cavalleiro, por mal impressionado que estivesse com a desconfiança do commandante francez, não poude dominar os impulsos do seu coração, vendo emfim um europeu e christão, e correndo a abraçal-o, disse:
-- Deus vos traga aos dominios do Caramurú, que é filho de Portugal, christão como vós sois!
Estas palavras, ditas em hespanhol, que o capitão falava, convenceram-n'o da verdade do que até ali suppuzera uma lenda, e affavelmente respondeu:
-- Acredito agora que sois europeu como nós, e felicito-me por ter sido o primeiro navegante que a vossos dominios veio. Francisco I de França, meu rei e senhor, exultará quando ao voltar á patria lh'o fizer saber...
Remotamente acordou no espirito do cavalleiro uma impressão desagradavel, ouvindo estas palavras.
Era como um renascimento das desconfianças politicas e dos ardis diplomaticos, usados na vida da côrte, de que havia tanto se achava desacostumado pelo contacto simples e ingenuo dos selvagens. Respondeu pois ainda, francamente, sem rodeios, como estava habituado:
-- Muito respeito o poderoso rei de França, que será, creio, o successor de Luiz XII, que reinava quando a Europa deixei...
-- Assim é...
-- Acho natural que lhe deis pressuroso a nova de aqui me ter encontrado, mas deveis saber que estes dominios não são propriamente meus, pois que de ha muito pertencem a el-rei de Portugal, meu senhor! Para ir á Europa renovar-lhe a minha vassallagem, como chefe de tribus d'estas regiões, conto com o vosso auxilio...
-- E' impossivel, Caramurú!
-- Impossivel?!
-- Sim!
-- Como?! Pois recusareis a um christão, como vós sois tambem, o serviço de o transportar á Europa no vosso navio?
-- Não! Não vos recuso tal serviço. Por feliz e honrado me darei, até, em vol-o prestar... Mas a par de christão sou francez, e nas condições da politica da Europa n'este momento, que vós ignoraes, mal serviria o rei de França se para o engrandecimento de outro poder, que não seja o seu, na Terra de Santa Cruz, concorresse por qualquer forma!
-- Estão por acaso cm guerra os nossos paizes?!
-- Em guerra não, mas em competencia de poder e gloria!... Francisco I de França, meu rei e senhor, costuma dizer com frequencia que não sabe quaes os dominios do mundo desconhecido, seu primo de Portugal lhe deixará para descobrir.
-- Ah!
-- Não estareis ainda satisfeitos, com as glorias de Vasco da Gama, de Bartholomeu Dias, de Alvares Cabral ? Com as conquistas repetidas na Asia e na Africa? Do vosso grande banquete de fortuna e poderio, não: cedereis, se quer, umas migalhas para a França de S. Luiz, combatente pela fé e pela cruz, como o Portugal de Affonso Henriques?
-- Os homens são todos irmãos, e Deus creou mundo bastante vasto para que a todos pertença o seu quinhão de gloriosas descobertas. Ha de chegar a sua vez á França, como chegou a Castella e a Portugal...
-- O céo vos ouça! Pela minha parte, como irmão estou prompto a servir-vos, comtanto que não prejudique o meu paiz...
-- Nada mais desejo do que ser transportado ao meu...
-- Isso, não o farei, repito!... Para mim, sois como um naufrago, que encontrasse perdido no mar: levar-vos-hei ao porto a que me dirijo, levar-vos-hei a França... Apresentar-vos-hei ao meu rei, e estae certo que vos não honrará menos do que o faria o rei de Portugal...
-- Não duvido, mas antes queria ser posto na minha patria...
-- Pois bem, vossa patria é também esta Terra de Santa Cruz, que estamos pisando...
-- Decerto, pois que é portugueza...
-- Não o contesto! Vinde comigo a França. -- Sereis recebido por Francisco I, e depois, juro-vos que tornarei a reconduzir-vos aqui aos vossos dominios...
O cavalleiro, ficou alguns momentos silencioso, como a calcular os prós e contras da proposta. Depois, perguntou ao capitão francez:
-- E como vos recompensarei?
-- Deixae-me carregar as náos de páo Brazil.
-- Seja! Vinde. Acompanhae-me á minha habitação, onde sellaremos o nosso contracto bebendo vinho de fructas do paiz, á saude dos nossos reis.
N'essa tarde houve animado festim na morada do chefe dos goyanazes, e quando já noite o capitão francez voltou a bordo estavam tomadas as disposições para no dia immediato começar o carregamento das náos, em que logo correu que o Caramurú embarcaria para ir ao seu paiz!
No meio da alegria geral, porque muito esperavam os indigenas dos beneficios que lhes traria da sua patria o chefe a que tanto queriam, só a pobre Paraguaçú dava cada vez mais signaes de profunda tristeza.
Inquietava-se o cavalleiro, com aquelle protesto silencioso, e conhecendo-lhe a força de vontade, e a persistencia nas suas ideias, temia que puzesse em pratica a ameaça já feita. Procurou pois novamente convencel-a:
-- Paraguaçú -- lhe disse -- tinha reconsiderado, e estava disposto a levar-te comigo a Portugal como desejavas..
Um relampago de alegre esperança passou nos olhos e no semblante da india, que exclamou:
-- E então?
-- Mas não vou a Portugal e sim a França, onde pouco me demorarei... Em breve estarei pois novamente ao teu lado...
Novo abatimento e desespero se apossou da formosa indigena:
-- Demasiado sei as razões porque o francez te não leva á patria... Maior é o perigo que vaes correr...
Quem sabe se te lançarão em uma masmorra, para mais facilmente tomarem posse dos teus dominios ?!
-- Razão de sobejo para ficares, e na minha falta te soccorreres ao poder do rei de Portugal... Mais tarde ou mais cedo virão aqui navios seus...
-- Porque os não esperas, então? Não tens esperado tantos annos?
-- O tempo urge, os acontecimentos tem se precipitado na Europa. Em França facil me será conhecer bem e avaliar quanto se passa, e se não obtiver que Francisco I me envie a Portugal, facil me será ao menos escrever d'ali a D. Manoel e á rainha D. Leonor!... Conforma-te pois, Paraguaçú, com os meus desejos...
-- Não! Persistes no teu proposito!... persistirei no meu!..
Por muitos dias, emquanto o carregamento dos navios avançava, andou o cavalleiro luctando comsigo mesmo sobre o que deveria fazer. Não lhe passava pela mente que as palavras de Paraguaçú representassem mais do que uma ameaça para o intimidar, forçando-o a leval-a comsigo, e teria cedido, se agora não comprehendesse realmente que ia correr grande perigo de não ser restituido aos seus estados. Não duvidava da boa fé do capitão francez, mas sabia que uma vez chegado a França o seu destino não lhe pertencia, mas á vontade do monarcha, ou melhor ao sabor dos interesses da politica, para os quaes a vida, e mais ainda as conveniencias, d'um homem, nada são.
Resolveu pois, de accôrdo com o navegador francez, partir sem Paraguaçú dar por isso, dando a Carijó as devidas instrucções para a socegar e fazer conformar-se com o facto consummado. Tratou como capitão indemnisal-o do resto do carregamento indo tomar páo Brazil na costa em que demoravam os tapuyas, a quem dera Carijó por cacique, e assim tudo combinado, certa noite em que se levantára máo tempo, afastando qualquer ideia de que os navios pudessem partir, ergueu-se por horas mortas, e dirigindo-se a uma pequena enseada onde tudo estava preparado para a fugida, embarcou em uma almadia ou piroga, que os remadores indigenas logo fizeram vogar em direcção ao pharol da náo, que brilhava a distancia, entre as trevas nocturnas.
Logo ás primeiras remadas, ouvira o Caramurú, sentado á pôpa da embarcação, e acabrunhado com uma especie de remorso d'aquelle passo com que correspondia á dedicação de Paraguaçú, o choque como de um corpo cahindo na agua. Mas não deu maior attenção, julgando ser um jacaré. Passados instantes, porém, sentia gelar-se-lhe o sangue nas veias, reconhecendo a voz de Paraguaçú, pedindo soccorro..
O instincto da conservação levára a desgraçada, luctando com a morte, a denunciar a loucura que commettera lançando-se ao mar para seguir a embarcação.
Por ordem do cavalleiro alguns remadores se atiraram ao mar, e a custo, apesar da sua dextreza de nadadores, conseguiram salvar a bella e apaixonada india, que já se debatia com a morte.
Teve o Caramurú este tragico successo por um castigo e um aviso do céo, contra o seu procedimento, resolvendo seguir o destino que lhe indicava a Providencia, e trazer Paraguaçú a França e recebel-a ahi por esposa.
XI
Na côrte de França
Durante a viagem para a Europa, nas conversações quotidianas com o capitão da náo, ficou o Caramurú inteiradodos successos occorridos em Portugal, em tantos annos que da patria não tivera noticias. Conheceu todos os factos gloriosos do reinado do monarcha Venturoso, e o fastigio a que chegara o seu poder; por isso, quando chegou a França, acostumado já á ideia d'aquella boa estrella que brilhava para a sua patria, e cujos reflexos esplendidos esperava fazer convergir para a Terra de Santa Cruz, sua patria também de adopção, foi muito desagradavelmente impressionado pela noticia da morte d'el-rei D. Manoel, a quem seu filho D. João III acabava de sueceder no throno. De começo, porém, o honroso e affavel acolhimento que recebeu na côrte de Francisco I, não lhe permittiu fixar-se no caminhoque aquelle inesperado suecesso lhe faria seguir.
Foi levado á côrte do rei de França, n'esse momento estabelecida no historico castello de Blois, em cujos vidros o monarcha voluvel um dia escreveu com um diamante: Souvent femme varie, bien folle est qui s'y fie. Francisco I podia falar como mestre em questões de volubilidade, como rei essencialmente dado a aventuras, e a sonhos phantasticos de gloria, nascidos da sua primeira victoria em Marignan, e que por erros e imprudencias cavalheirosas o levariam mais tarde ao desastre de Pavia, do qual havia de escrever a sua mãe, Luiza de Saboya, e sua tutora politica, póde dizer-se; que tudo se perdera menos a honra!
O faustoso monarcha, não gostava de residir na sua boa cidade de Paris, cujos burguezes lhe eram mediocremente sympathicos, mas sim nos castellos da provincia, hoje em Emboise, ámanhã em Saint-Germain en Laye, em Ancenis, em Angers, em Blois. Ahi desenvolvia um fausto espantoso, ahi resolvia campanhas contra os suissos, conquistas na Italia, guerras ou allianças com Carlos V, e até cruzadas contra os turcos, para que pedia a benção do papa Leão X, e o concurso dos reis de Inglaterra e de Castella. Já tivera demandas com o rei de Portugal por causa de invasões, não guerreiras mas commerciaes, nos seus dominios das Indias do Occidente, e não deixava de lhe sorrir a ideia de alargar os seus proprios dominios pelas novas partes do mundo descobertas, uma vez que por conveniencias da sua politica até promettia estados áquelles de cujo concurso precisava, como a Lourenço II, de Medicis, sobrinho do papa, que fizera casar com uma sobrinha do conde de Vendôme, e que se apossára do ducado de Urbino.
O capitão da náo era amigo e partidario politico do almirante Bonnivet, o ministro de Francisco I, e chefe d'uma das duas facções que disputavam o favor real e o ascendente sobre o rei, competindo com a que tinha por cabeça dirigente a propria rainha mãe, de quem era parcial o chanceller Duprat que governava as finanças e a justiça, como o almirante os negocios externos e a guerra.
Incomparavelmente mais precioso do que todos os possiveis carregamentos de páo Brazil, julgou o fino politico, o presente que o capitão lhe trazia na pessoa d'esse cavalleiro portuguez, tornado chefe e verdadeiro rei de tribus indias de Santa Cruz, calculando bem como faria valer, aos olhos de Francisco I, a acquisição de um tal alliado, que suppunha capaz de esquecer a patria, pondo o seu poder ao serviço da França.
Foi n'este estado d'alma que recebeu o Caramurú, para captivar o qual usou de toda a finura e gentileza de que era capaz:
-- Se a litteratura e a galanteria o não tivessem quasi feito perder o costume das funcções sacerdotaes, havia de ser o famoso abbade de Brantôme, meu amigo, que eu convidaria para celebrar o vosso consorcio, com a gentil princeza india que vos adora..
-- Grande honra seria para nós, senhor almirante!
-- Maior vos está reservada por el-rei...
-- Conheço já por tradição a bondade de sua alteza...
-- Logo que volte a Paris, o que será em breve, deseja el-rei Francisco I que o vosso casamento se realize, servindo-vos de padrinho, bem como a rainha...
-- Não sei como agradeceremos a sua alteza tamanha honra...
-- Não vos faltará meio de vos mostrardes reconhecido, pondo o vosso poder e prestigio ao serviço da França em Santa Cruz...
Desagradavel impressão causaram estas palavras do ministro ao cavalleiro, que respondeu:
-- Dar-me-hei por feliz em o fazer, conciliando a minha gratidão com a lealdade que devo á minha patria e ao meu rei.
Sorriu o fino almirante, percebendo que andára demasiado, com os seus modos faceis de cortezão.
-- Ah! vós peninsulares, castelhanos e portuguezes, sois admiravelmente ciosos da vossa honestidade patriotica... Socegae que vos não pretendo corromper...
-- Quando chegar a Portugal, senhor! estae certo que farei todo o possivel, para que D. João III, occupando Santa Cruz, como deve, considere especialmente o commercio, e os filhos d'esta nobre França, cuja civilisação me espanta, e que tão honrosamente me acolhe...
-- Ah! Pensaes ir a Portugal? -- perguntou distrahidamente Bonnivet.
-- Decerto! Não vos parece natural, senhor?
-- Naturalissimo, cavalleiro! Mas, com franqueza vol-o digo, para vos poupar o dissabor de vêrdes recusado um pedido vosso por el-rei, e a Francisco I o de vol-o recusar: não faleis em tal por agora...
-- Porque, senhor almirante?
-- Porque, confidencialmente vol-o digo, estão muito escuros n'este momento os horisontes da Europa, e o que á primeira vista vos parece tão simples, complica com assumptos da mais alta importancia: Esperae, vos digo como affeiçoado vosso, que já sou...
-- Beijo-vos as mãos...
-- Gozae, gozae um pouco as doçuras da vida na côrte de França. Bem o merece um illustre cavalleiro, como vós, ha tantos annos desterrado em paizes semibarbaros. Casae-vos com a formosa princeza que vos acompanha, deixando-a educar-se na sociedade franceza, em que por sua belleza e qualidades se tornará distincta, e esperae o ensejo conveniente de servirdes ao mesmo tempo o paiz em que nascestes, aquelle em que sois verdadeiro rei, e esta França, que, na pessoa de el-rei, meu senhor, e na d'este seu humilde servo, vos recebe de braços abertos...
Os sentimentos revelados n'esta primeira audiencia que ao Caramurú concedia o ministro de Francisco I, eram os que tinham de predominar em toda a sua longa permanencia n'este paiz.
O rei e a rainha foram extremamente affaveis e benevolentes para com elle e para com Paraguaçú, a quem escolheram o nome de Catharina, por ser o da rainha de Portugal, com que foi baptisada poucos dias antes do seu consorcio com o Caramurú. Entretanto, as condições da politica ambiciosa e irrequieta de Francisco I haviam de promover ao chefe dos goyanazes e tapuyas uma demorada residencia em França sem poder regressar a Santa Cruz, e sem tambem o deixarem seguir para a sua patria. Assumptos mais importantes ainda para o rei de França, mas determinados por principios identicos das suas vistas politicas, a emulação e inveja pelos suecessos e glorias dos outros soberanos, faziam-n'o esquecer momentaneamente as competencias com seu primo de Portugal, com respeito ás Indias do Occidente, para, a respeito não só das mesmas Indias, mas do predominio, na Europa, mais ainda se exasperar com os successos do seu primo de Castella,
o poderoso Carlos V, seu victorioso competidor na candidatura á corôa d'Allemanha.
Corriam, não obstante, para o imperador e rei, tempos bastante difficeis, com a agitação religiosa promovida na Allcmanha pelas doutrinas propagandistas de Luthero, ao passo que a Hespanha em parte se achava ainda rebellada contra elle, contestando o seu direito á acceitação d'aquelle throno. Não se animára, ainda assim, Francisco I a declarar-lhe guerra, porque a despeza o obrigaria a renunciar aos seus prazeres e fausto, mas não perdia occasião de o incommodar por mil diversas maneiras, auxiliando o rei da Navarra, com quem o imperador se achava em lucta, e dando tambem concurso aos senhores da fronteira allemã, contrarios a Carlos V, como Roberto de la Mark, duque de Buillon e senhor de Sédan.
Por estes motivos, o Caramurú foi ficando esquecido entre a agitação dos acontecimentos, e vivendo na côrte, passou a ser olhado como hospede permanente.
Esta situação tinha para elle encantos, que, sem o fazerem esquecer Santa Cruz e Portugal, o levavam a esperar com socego a occasião opportuna de, como lhe dissera o almirante Bonnivet, se resolverem os negocios que interessavam ás suas duas patrias, e entretanto a França ia tomando no seu coração um logar assignalado.
Ao contacto da civilisação d'aquelle paiz, Paraguaçú, por quem o cavalleiro, depois que a recebera por esposa, se achava absolutamente enamorado, enriquecia-se aos seus olhos com o maravilhoso encanto que a sua excepcional intelligencia e dotes do coração, cada dia mais demonstravam, convertendo-se em dama de tanta superioridade como fora D. Anna.
Havia momentos em que o cavalleiro, que, de começo, sentia como que um pequeno remorso, ao vêr o amor que lhe merecia a sua joven esposa apagar um pouco essa recordação que tinha por um dever, de certo modo se justificava aos proprios olhos, capacitando-se de que era o espirito da que fôra objecto da sua primeira paixão que se achava encarnado na mulher a quem agora adorava.
E o que mais contribuia para afervorar este culto, era o reconhecer como Paraguaçú, assimilando todos os principios vantajosos do meio para que fôra transportada, d'esse outro, tão differente, em que nascera, a ingenuidade ao mesmo tempo simples e perspicaz, que lhe fazia avaliar com justiça o viver da côrte, e aproveitar d'elle o que tinha de bom, sem se deixar invadir pelo que tinha de máo.
A galanteria para com as damas, não se considerava culpa, antes pelo contrario, na sociedade em que Francisco I era o exemplo a seguir, e assim, os mais experimentados adoradores tinham procurado discretamente render homenagens á que chamavam a Formoza Rio Grande, acabando sempre por reconhecerem a austeridade das suas virtudes, substituindo a paixão pelo respeito. Rindo, Paraguaçú era a primeira a relatar ao marido cada novo auctor de madrigaes que lhe eram dirigidos, sob a fórma de homenagens de admiração, tão correntes nas galantes festas da côrte, e no Caramurú revivia então o minhoto não isento de ciume, que lhe respondia:
-- Se não fôra o meu grande empenho em conseguir o que desejo para bem de Portugal, partiria sem demora para Santa Cruz...
-- Tens medo que me roubem ao teu amor?
-- Não! Conheço bem quão leal c virtuosa és... mas, por muito que admire a França e a sua civilisação, esta vida corrupta da côrte, que somos forçados a frequentar, desgosta-me soberanamente...
-- Nem tudo é máo n'ellas... Deves reconhecel-o. Tambem temos encontrado damas e cavalleiros das mais solidas virtudes... O teu amigo Bayard, por exemplo!
-- Ah! o bom cavalleiro Bayard! como todos lhe chamam. Esse não é homem, e quasi um santo. Quanto me faz lembrar o que em Portugal se dizia do principe D. Affonso, que todos consideravam mais um anjo descido do céo, do que propriamente um homem.
-- Que noticias ha d'elle ? Quando voltará á côrte?
-- Mandou-me dizer que breve regressará do seu castello de Grenoble. Estes rumores de guerra, que se teem ouvido, hão de trazer para o lado de Francisco I o cavalleiro a quem chamam: sem medo e sem mácula... Tomára já que venha; conto com a sua protecção, que me prometteu, para destruir as duvidas estudadas, e demoras astuciosas do almirante Bonnivet em me deixar seguir para Portugal...
-- E se t'o prometteu, não deixará de o fazer...
-- Seguramente. Bayard é para mim a personificação da honra, da justiça e da lealdade. Lembra-me a inteireza de Affonso d'Albuquerque, e a candura do grande condestavel D. Nuno Alvares Pereira.
Com effeito, pouco depois, tornando-se imminente a guerra com o imperador da Allemanha, em razão da alliança de Francisco I com Henrique VIII da Navarra, a côrte veio para a capital, e o Caramurú encontrou-se com o bom cavalleiro Bayard, no historico palacio real des Tournelles, no momento em que elle, chegando de Grenoble, se apeava no pateo de honra em que mais tarde o rei de França Henrique II seria ferido mortalmente pelo conde de Montgomeri, em um torneio.
Bayard, o cavalleiro sem medo e sem mácula, era uma das figuras notaveis da côrte de Francisco I, e a par do condestavel de Bourbon, que depois lhe seria traidor, dos seus mais afamados capitães. Era grande o seu valimento, de que pouco uso fazia em razão da integridade de caracter que o distinguia, e o afastava systematicamente dos enredos da côrte. Contrahira, porém, Bayard, sincera affeição pelo cavalleiro portuguez, interessando-o a série das suas aventuras, applaudindo do coração a tenacidade patriotica com que, reconhecendo as honras de que em França era objecto, se escusava a retribuil-as, faltando ao que devia á sua patria, e assim lhe promettera interessar-se com o rei para o deixar seguir para Portugal.
Alto, forte, de avantajada estatura, Pedro Terrail, senhor de Bayard, com a sua longa cabelleira e a sua espessa barba negra, realisava o typo d'uma d'essas naturezas de contraste, em que a doçura da fala, do olhar e das maneiras, temperam com uma expressão de bonhomia e affabilidade um aspecto physico de rusticidade e dureza. Ia para os cincoenta annos, e desde muito novo se tornára celebre nas campanhas dos precedentes reinados de Luiz XII e Carlos VIII.
Regosijando-se por o vêr finalmente, não perdeu o Caramurú o ensejo de lhe lembrar a sua promessa.
-- Sabeis, sr. de Bayard! como anceio por ver novamente a minha terra, o meu rei, e aquella que tanto me queria, a rainha D. Leonor...
-- Comprehendo bem esses vossos sentimentos, amigo, depois de tão longa ausencia da patria, em que aquella que vos estimava como filho vive ainda, julgando-vos decerto morto, e farei por vos obter o que desejaes, como já vos prometti...
-- Se quizesseis falar ao almirante Bonnivet...
-- Falar-lhe-hia, decerto, se fosse apenas almirante, isto é, homem de guerra... Mas é tambem, e principalmente, politico, especie que detesto... Porém hoje estarei com o rei, e contae que breve irei vèr-vos e vos darei noticias do que com sua alteza passar a vosso respeito...
E o bom cavalleiro Bayard, entregando as rédeas do cavallo ao escudeiro que o seguia, dirigiu-se para a escada d'honra do palacio, onde de braços abertos o esperavam innumeros cavalleiros, alegres por revêrem o bravo dos bravos, que apparecia na côrte mal se começava a ouvir som de guerra... Francisco I accedera a que André de Lesparre, irmão da condessa de Chateaubriand, sua favorita e parenta do rei da Navarra, levantasse, nos termos do tratado feito em Noyon, um corpo de seis mil gascões, que invadiria aquelle reino, disputado a Carlos V. O sr. de Lautrec, irmão da mesma favorita, juntar-se-hia a esse corpo com trezentas lanças, e Bayard, devendo acompanhal-o, antes de partir para a campanha veio despedir-se do Caramurú e dar-lhe a sua resposta:
-- E' natural -- disse -- que á conquista da Navarra se sigam outras emprezas contra o poder de Carlos V. Por este motivo, mais do que por competir com seu primo de Portugal vosso rei, Francisco I deseja reservar a sua acção nas Indias Occidentaes, em que póde vir a ter necessidade de se medir com os hespanhoes...
-- Nada conseguiste, pois, senhor de Bayard?...
-- Não se póde dizer isso; mas não obtive tambem o que mais desejaveis: poder seguir para Portugal...
-- Então?
-- Tudo o que alcancei, foi que el-rei ordenasse ao almirante Bonnivet que vos dê todos os meios de, querendo, voltardes novamente aos vossos estados; mas directamente de França, em navio que, segundo as suas instrucções, ali vos irá desembarcar...
Acabára o bom cavalleiro de pronunciar estas palavras, quando vieram entregar uma carta ao Caramurú. Abriu-a este, e percorrendo-a com os olhos fez-se excessivamente pallido, dando signaes da maior commoção...
-- Que tendes? -- lhe perguntou Bayard, assustado.
-- Oh! Será possivel? -- exclamou affiicto o cavalleiro portuguez, falando comsigo mesmo...
-- Mas o que ha? -- interrogou novamente o heroe, receiando que aquella carta annunciasse alguma d'essas perfidias tão frequentes então, alguma ordem de prisão contra o Caramurú, sob um motivo futil, ordenada por Bonnivet, para não satisfazer a concessão por elle obtida.
-- Lède -- exclamou o Caramurú, desorientado, estendendo-lhe a carta. -- Preciso sair já, -- continuou, buscando a espada, que começou a afivelar.
Bayard correu com os olhos o papel, e depois lançou-o com desprezo ao brazeiro que ardia na alta lareira de marmore da sala.
-- E' uma denuncia infame! -- e como visse o Caramurú disposto a sair, tomou-lhe o passo, dizendo: -- Mas o que ides fazer, cavalleiro ? Não vêdes que vos deshonraes, dando ouvidos a tão indigna denuncia?!
O Caramurú deteve-se, hesitando. O seu grande amor por Paraguaçú, sobresaltado por uma delação anonyma de que n'esse momento ella estava realisando uma entrevista com um mancebo a quem frequentemente, dizia-se na carta, falava de manhã na egreja proxima de S. Diniz, em que todos os dias ouvia missa, acordava os seus sentimentos ardentes de peninsular e minhoto, desvairando-o o ciume, sem o deixar pensar serenamente... Felizmente, o bom cavalleiro Bayard, o prototypo da honra, da dedicação e da generosidade, estava ali para o aconselhar...
-- Vossa esposa, meu amigo! é, não duvideis um só momento, a mais virtuosa de todas as mulheres. Algum galanteador despeitado com o seu desprezo, terá forjado esta vil denuncia.. Não vos deshonreis dando-lhe ouvidos...
-- Mas lembrae-vos que dizia poder eu mesmo certificar-me immediatamente..
-- Seria procurando fazel-o que vos deshonrarieis. A confiança ou é sem limites, ou não vale nada... Supponde mesmo que chegáveis á basilica de S. Diniz, e que vieis vossa esposa falando com um homem! Acreditae na palavra de Bayard: eu, se estivesse no vosso logar, e que isso me succedesse, nem assim acreditaria que essa conversação fosse criminosa... Paraguaçú não é uma mulher como as demais...
-- Tendes razão, cavalleiro, -- respondeu o Caramurú, cahindo de todo em si, e atirando o chapeu e a espada para cima d'uma alta cadeira de espaldar.
N'este momento, a porta abriu-se, e Paraguaçú, radiante de alegria e formosura, entrou, e fazendo encantadora venia ao bom cavalleiro Bayard, abraçou e beijou ternamente o marido.
-- Então, sr. de Bayard! trazeis-nos boas novas? Podemos emfim seguir para Portugal?...
-- Não, infelizmente...
-- Ah!
-- O mais que nos permittem é voltarmos para Santa Cruz -- respondeu o Caramurú, dirigindo ainda, instinctivamente, um olhar prescrutador a Paraguaçú, a surprehender a impressão que esta noticia lhe causava...
-- E porque não partiremos? se é impossivel irmos á tua patria!...
-- Convem pensar maduramente.. Esperar mais algum tempo. Deixar vêr o que dá esta campanha da Navarra, para que ainda hoje parto. Pode mudar a face dos negocios, e as relações d'el-rei meu senhor com seu primo de Castella, reflectindo-se na sua politica nas Indias do Occidente, em que estão vossos dominios. Esperae, vos digo! e ficae na guarda de Deus, que breve sabereis noticias minhas, se os da Navarra me não derem fim á vida.
E o bom cavalleiro Bayard, beijando a mão a Paraguaçú, despediu-se abraçando o cavalleiro portuguez.
Logo que elle saiu, a formosa goyaneza, fechando todas as portas da sala, chamou junto de si o marido, dizendo-lhe com ares mysteriosos:
-- Tenho grande nova a dar-te...
-- Sim? -- respondeu o Caramurú intrigado, passando-lhe pelo espirito que alguma coisa ia ouvir relacionada com a denuncia que recebera...
-- Esta noite virá aqui, incognito, um joven abbade... a quem conquistei!...
Absolutamente intrigado com esta extraordinaria declaração, o cavalleiro a custo balbuciou:
-- Gracejas? ou deliras? Paraguaçú!
-- Nem uma nem outra coisa. Falo-te muito a sério, e estou em meu perfeito juizo...
-- Não percebo...
-- Vaes perceber. Ouve-me, porque ha dias ando em um verdadeiro martyrio, com receio que descobrisses o que tenho feito e o interpretasses mal, e ao mesmo tempo hesitando em te dar conhecimento da empreza que tentei, sem ter o seu exito assegurado... Custou-me a convencer o abbade, desconfiado e teimoso como teu patricio que é!...
-- Meu patricio?!
-- Sim. Hoje á noite, quando tiver passado a ronda dos suissos, e os sinos tiverem tocado o couvre feu , receberemos a visita d'um joven portuguez chamado Pedro Fernandes Sardinha, que em breve terminará os seus estudos de theologia, voltando a Lisboa. Toda a semana tenho levado a contar-lhe a tua vida, a pôl-o ao facto do que é a nossa terra, e a convencel-o de que se incumba da missão que secretamente lhe deres para el-rei de Portugal e para a rainha D. Leonor...
Cahiu o cavalleiro de joelhos ante a esposa, beijando-lhe as mãos reconhecido, no auge da alegria, reconhecendo a causa da infame denuncia, e não se atrevendo a confessar-lhe que um instante a desconfiança entrára no seu espirito.
-- Oh! vale tamanho agradecimento tão pequeno serviço?
-- Não é pequeno, é enorme! Conheces como anceio por fazer saber a D. Leonor que sou vivo, e ao rei D. João, seu sobrinho, que deve quanto antes occupar effectivamente os seus dominios de Santa Cruz...
-- Pois esta noite conhecerás esse teu patricio, que se encarregará da missão que lhe deres, mas que só aqui virá muito raras vezes, porque tem medo de se comprometter, sabendo como, a par das honras e offertas que em França nos fazem, somos vigiados, e nos teem não só impedido de irmos a Portugal, mas até sequestrados do contacto com os raros portuguezes que ha em Paris.
-- Assim é, com effeito. Somos uns verdadeiros prisioneiros, encerrados n'este carcere dourado que se chama a côrte...
-- Pois encarrega esse mancebo de quanto deve fazer na tua patria, e acceitemos a concessão obtida pela bom cavalleiro Bayard, voltando quanto antes a Santa Cruz.
-- Concordo com a primeira parte do que dizes, não com a segunda. Devemos, já agora, esperar mais algum tempo, como o bom cavalleiro disse, e vêr o que dão os acontecimentos.
Assim fizeram.
N'essa noite, largamente se entreteve o Caramurú com o joven licenciado seu patricio, o primeiro com quem se avistava em França, dando-lhe uma extensa carta para el-rei D. João III, e outra para a rainha D. Leonor, á cautella, receiando, por haver uma terceira pessoa que desconfiára das suas entrevistas com Paraguaçú, que suspeitas de ordem politica se levantassem a tal respeito, impedindo os de se tornarem a encontrar.
E bom foi que assim fizesse, porque em poucos dias o joven Sardinha recebeu ordem de voltar a Portugal.
Para desviar suspeitas, deixou-se ainda o Caramurú ficar em Paris, esperando o nascimento do filho que Paraguaçú lhe ia dar. Esta grande alegria havia porém de ser annuviada pela triste noticia, que então correu, da morte do valoroso cavalleiro sem medo e sem mácula.
A guerra tinha decorrido, e continuava, com fortuna vária para Francisco I e Carlos V, até que as intrigas em que ardia a côrte de França pelas competencias dos partidos dirigidos por Luiza de Saboya e pelo condestavel de Bourbon, determinando o processo intentado contra este, em que lhe fôram confiscados bens que o rei doou desde logo a sua mãe, levaram o condestavel a atraiçoar o rei, passando para o lado dos hespanhoes. Então amiudaram-se os revezes de Francisco I, que haviam de ir até á sua derrota e prisão depois da batalha de Pavia, e entre elles se contou a retirada de Bonnivet da Navarra para Romagnano, em que Bayard encontrou morte gloriosa.
O seu pagem da lança chegou pouco depois á côrte, carregado de lucto, e da sua boca ouviu o Caramurú a narração desse acontecimento, que ficou memoravel na historia: acossado pelos suissos, victoriosos já, o almirante Bonnivet collocára-se na retaguarda do exercito, posto de honra em que fazia frente aos inimigos que o perseguiam; mas ferido por uma bala, teve de ser substituido por Vandenesse, irmão de la Palisse, logo posto como elle fóra de combate. Foi então que o heroico Bayard tomou o commando da retaguarda, obrando prodigios de valor, ora investindo com os suissos, que obrigava a recuar, ora reunindo as rotas fileiras do exercito francez, para que a retirada se não convertesse em fuga e derrota.
Uma bala o feriu mortalmente, quebrando-lhe a espinha. Cahindo, ordenou aos seus que o abandonassem e seguissem na marcha, e estendido no chão, junto de uma arvore, só cuidou de encommendar a alma a Deus, orando com a cruz da sua espada, que se quebrára na lucta, erguida nas mãos. Chegou á frente dos inimigos o réprobo condestavel de Bourbon, que se apiedou da sua sorte.
-- Não vos apiedeis de mim -- lhe disse Bayard -- que expiro honrado; sou eu que me compadeço de vós, vendo-vos combater o vosso rei, a vossa patria e o vosso juramento!
As lagrimas corriam dos olhos do Caramurú, ouvindo narrar o fim glorioso do seu dedicado amigo.
Depois da sua morte, parecia-lhe achar-se inteiramente isolado em França, e assim, invocando a concessão que lhe obtivera, embarcou com Paraguaçú e o filho na primeira náo que do Havre partiu para as Indias do Occidente.
XII
As capitanias do Brazil
Só passado bastante tempo depois de ter regressado aos seus estados, recebeu o Caramurú resposta ás cartas que enviára para Portugal.
Por instancias da rainha D. Leonor, veio uma náo correr a costa do Brazil, já assim chamado em razão da preciosa
madeira que d'ali sahia, mas quanto á occupação effectiva da antes denominada Terra de Santa Cruz, o governo de Portugal não pensou desde logo n'ella.
Estabeleceram-se, comtudo, mais frequentes communicações, os dominios do Caramurú começaram a ser regularmente visitados por armadas que faziam o caminho da India, e se elle não veio a Portugal, como tencionava e a rainha lhe pedia, foi porque o encargo dos seus dominios se ia tornando cada vez mais trabalhoso, á medida que, auxiliado por elementos de civilisação vindos do reino, e da França, que não esfriava as suas instancias junto do chefe goyanaz, fundava novas povoações, armando-as e fortificando-as. Por outro lado, a saude de Paraguaçú, por quem desejava fazer-se acompanhar a Portugal, resentira-se desde que voltara de França, dando-lhc cuidado até pelos seus dias. Mais tarde, porém, a reiteradas instancias do Caramurú, á medida que via outras nações adeantando-se no commercio com as Indias do Occidente, o governo de Portugal resolveu emfim empregar o systema de occupação que seguira nos Açores e Madeira, dividindo a costa em capitanias hereditarias, com alçada criminal e civil, concedendo-as com direitos de jurisdicção illimitados, a quem dispozesse de meios para ali empregar.
Exultou o Caramurú por vêr realisada a sua antiga aspiração, não calculando os máos resultados que produziria, por desconhecer ao mesmo tempo a differença das condições d'aquellas ilhas desertas, comparadas a uma região povoada como era o Brazil, da mesma forma que não sabia quão prejudiciaes elementos de colonisação eram esses que em Santa Cruz se iam estabelecer, educados no absolutismo auctoritario e na exploração dos indigenas, caracteristicos da dominação portugueza no Oriente.
Logo no estabelecimento da primeira capitania, concedida por D. João III a Martim Affonso de Sousa, teve o Caramurú de intervir, para serenar os selvagens que occupavam o paiz no dominio concedido.
Este fidalgo portuguez, depois de examinar detidamente a costa perto do rio que chamou de Janeiro, por ali ter chegado n'este mez, proseguindo para o sul até ao Prata, foi dando aos logares que percorria o nome do dia em que ali chegava.
No desejo de civilisar as tribus d'essas regiões, que o rei de Portugal ia agora conceder, em prazos da extensão de cincoenta leguas cada um, governados por um capitão, entendeu o Caramurú, a troco do auxilio da sua influencia sobre os indios, pedir a coadjuvação dos portuguezes que ali se iam estabelecendo, na obra da civilisação dos selvagens.
Pouco depois de chegar Martim Affonso de Sousa, percebeu Paraguaçú a inclinação d'este por uma formosa indiana, filha do proprio Caramurú e de uma d'essas favoritas que fôra obrigado a ter nos primeiros tempos do seu estabelecimento em Santa Cruz, quando os caciques receberiam como offensa o repudio das mulheres de sua familia que lhe offereciam.
A polygamia era o privilegio dos caciques, e não podera elle, sem perigo para o seu prestigio, derogar essa prerogativa. Mas agora, estava decidido a estabelecer o casamento entre os portuguezes e as mulheres do paiz.
-- Cavalleiro! -- disse pois o Caramurú ao chefe da capitania -- tenho-vos prestado e continuarei a prestar-vos todo o meu auxilio, mas desejo que me honreis nos que de mim descendem...
-- Prompto estou a fazel-o: muito devo ao Caramurú, chefe prestigioso dos goyanazes e tapuyas, em quem não deixo de vêr por isso Diogo Alvares, portuguez e cavalleiro!...
- Bem está. Usemos pois de franqueza: sei que vos agrada uma joven, neta de um cacique da tribu Pagé, e assim chamada, como sua mãe.
-- Não o nego...
-- E' minha filha.
-- Vossa filha?! Ignorava-o... Podeis acredital-o...
-- Não me offendeis pretendendo-a; pelo contrario... Mas o que se torna necessário é que nós, europeus, demos o exemplo contra a polygamia, tomando esposas, segundo a nossa religião.. Pensae se não tendes repugnancia em acceitar Pagé por mulher legitima.. De contrario deixae de a cortejar.
-- Nenhuma duvida tenho, sabendo que lhe corre nas veias o vosso sangue...
-- Guardo a vossa palavra, e de hoje em diante vos considero como filho...
Abraçaram-se os dois cavalleiros, e d'ali a dias um dos sacerdotes que Martim Affonso trouxera de Portugal, celebrava o seu consorcio com essa filha do Caramurú...
Infelizmente, o genro do chefe respeitado pelas tribus indias, chegava a Santa Cruz eivado dos vicios de que enfermava a dominação portugueza no Oriente: a dureza para com os naturaes e a sede de riquezas. Assim, contra a opinião do Caramurú, fez uma exploração para o interior, na direcção do sul, á busca de minas de ouro, na qual nada mais conseguiu do que travar luctas com os indigenas, em que perdeu mais de oitenta homens.
A par d'isto, era Martim Aífonso trabalhador dedicado da terra, e a elle se deve a introducção da canna doce no Brazil e a sua cultura. Assim, o Caramurú ainda por muito tempo contemporisou com as suas ambições, aliás muito excedidas pelas dos portuguezes chefes de outras capitanias que se tinham estabelecido, e que por seu procedimento estavam preparando uma sublevação dos indios, que o Caramurú previa, e que alarmado prophetisava para Portugal nas suas queixas ao rei e á rainha D. Leonor.
Perdera-se aquella tranquillidade paradisiaca dos tempos em que o Caramurú era o unico chefe christão dos selvagens; e estes, atacados nos seus preconceitos, costumes e bens, pelos europeus, levantavam-se contra as suas prepotencias á mão armada, e comquanto materialmente respeitassem o Caramurú, era contra elle que mais se queixavam, por ter promovido o estabelecimento dos chefes das capitanias.
A Paraguaçú e a Carijó, como sendo da sua raça, principalmente se dirigiam, para que o levassem a emendar o seu erro, banindo do Brazil os patricios. Creára-se, portanto, uma situação impossivel para o Caramurú, e para sua esposa, partilhando esta ao mesmo tempo as angustias dos seus irmãos de raça, e as do marido como chefe. A vida intima da virtuosa goyaneza passára a ser um tormento moral constante, que lhe minava a saude e a existencia. Os da sua raça accusavam-n'a por não exercer effectivamente o seu ascendente sobre o esposo, no sentido de serem attendidas as suas reclamações; e os portuguezes chamavam-lhe franceza e fanática, em razão do vivo ardor da sua fé christã que a levava a preferir entre os portuguezes os sacerdotes, com quem convivia, encarecendo-lhes a superioridade dos costumes que observára em França, sobre esses da vida do Oriente portuguez para ali transplantada, que julgava ser peculiar a Portugal.
Tal era a situação, quando o Caramurú teve de deixar por algum tempo os seus dominios, a fim de ir serenar os animos das tribus entre as quaes acabava de se estabelecer um fidalgo portuguez, que na India prestára relevantes serviços.
Tupinambá se chamava essa tribu, que tendo successivamente expulso da região conhecida por: o reconcavo, os tapuyas e os tupinaes, a occupava quando foi doada como capitania a Francisco Pereira Coutinho. Serenou a influencia do Caramurú as primeiras repugnancias dos tupinambás contra o seu estabelecimento, e para mais cordeaes tornar as relações entre indigenas e portuguezes, necessarias ao desenvolvimento das plantações e á laboração dos engenhos, que era urgente, partiu resolvido a propôr a Coutinho e a um seu irmão, o casamento com duas das suas descendentes.
Uma noite, na ausencia do Caramurú, vieram annunciar a Paraguaçú a chegada d'um pagé tupinambá, que lhe trazia noticias do esposo. Recebeu-o immediatamente.
-- Chegaes do reconcavo, bom pagé?
-- Sim, virtuosa Rio Grande. Hontem deixei o Caramurú, quando o sol rompia...
-- Caminhastes pois sem descanço. Deveis estar fatigado...
-- Assim foi preciso, para vos trazer importantes novas.
-- Que ha pois? -- interrogou Paraguaçú inquieta.
-- Preciso de ficar a sós comvosco, para vos transmittir as instrucções de vosso esposo...
Estranhou a india o tom e maneiras mysteriosas do pagé tupinambá, e sobresaltada como andava, havia muito, com as ameaças anonymas e as prophecias sinistras dos feiticeiros a seu respeito e dos que amava, fez signal a Carijó para sahir do aposento em que se achavam.
-- Falae agora, pagé!...
-- Deixae que, antes, vos dê este signal que o Caramurú me entregou para confiardes em mim.
E entregou-lhe um annel, dos que os indios faziam com pequenas barras d'ouro torcidas, que Paraguaçú reconheceu como do esposo.
- E' pois grave o que tendes a dizer-me? -- interrogou cada vez mais sobresaltada...
-- Bastante! O Caramurú ordena-vos que tomeis vosso filho, e que altas horas da noite partaes commigo a encontral-o... onde nos espera...
-- Mas o que determina tão estranha resolução? quando, pelo contrario, me recommendou todo o cuidado na sua guarda aqui, e a maior vigilancia quanto aos negocios do paiz!
-- E' que está imminente uma invasão dos terriveis cahetés! Guiados pelo feroz Tabyra, seu chefe, propõem-se destruir as capitanias portuguezas!
-- Valha-nos o céo!
-- Sabeis como é sagaz e ardiloso esse guerreiro; que grandes talentos militares possue; como sabe espiar os acampamentos, e chegar até junto dos seus maiores inimigos, como eu cheguei junto a vós, formosa Paraguaçú!...
Uma suspeita acordou no pensamento da esposa do Caramurú, ao lembrar-lhe o desconhecido as proezas phantasticas d'esse chefe terrivel, famoso pela ousadia com que se disfarçava para surprehender as suas victimas, e receiosa respondeu:
-- Seja como fôr, não partirei comvosco.
-- Ficae, pois, se não quereis obedecer ao que é vosso senhor! mas cumprirei as suas ordens levando-lhe o filho ! -- e sem mais detença, o desconhecido dirigiu-se ao berço em que dormia a creança...
-- Parae! -- exclamou energicamente Paraguaçú, atterrada com a resolução do pagé, que se lhe tornava cada vez mais suspeito.
Elle, porém, não se deteve...
-- Quem sois? dizei! -- tornou ella, tomando-lhe o passo.
-- Creança! E's tu ? fraca mulher! que pretendes deter Tabyra? -- respondeu o sinistro guerreiro, sorrindo ferozmente, e arredando-a violentamente para se approximar do berço...
Então, n'aquella creaturatão formosa e delicada, que a educação convertera na mais branda e submissa das mulheres, explodiu de repente essa resolução e coragem indomitas da sua raça, que já uma vez a fizera lançar-se ás ondas, arriscando a vida para seguir o Caramurú. A christã fervorosa, para quem era sagrada a vida do seu similhante, desappareceu, e só ficou a mãe, a selvagem india, defendendo um filho. Foi um relampago, na decisão intelligente, a sua resolução! Não tentou uma lucta desproporcionada, em que succumbiria! Correu a uma panoplia, das que guarneciam as paredes d'aquella sala e arsenal do Caramurú, e tomando uma pistola, aperrou-a, desfechando-a contra Tabyra, que cahiu redondo, no momento em que estendia os braços para a creança adormecida...
A' detonação, seguiu-se o apparecimento do fiel Carijó, aterrado, emquanto, vencida pela emoção, Paraguaçú perdia os sentidos.
Avisado do tragico acontecimento, voltou apressadamente o Caramurú aos seus estados, e por bastante tempo foi obrigado a descurar os negocios do governo, passando os dias junto de Paraguaçú, tratando-a da doença que a accommetteu, em resultado da commoção recebida.
O seu espirito, tão lúcido até ali, ficou profundamente abalado, e raros momentos havia em que a não dominavam os terrores de christã pelo sangue que vertera, e o delirio da perseguição. Nas horas em que discorria lucidamente, o assumpto obrigado dos seus pensamentos e das suas palavras, era as recommendações ao esposo sobre a fórma por que havia de fazer educar o filho, pondo-o quanto antes em logar seguro.
Paraguaçú tinha a idea fixa de que cedo morreria e o Caramurú victimas do rancor que entre os povos de Santa Cruz cada vez mais se ateava contra os europeus em razão das prepotencias e rigores dos portuguezes estabelecidas nas capitanias, e dos hespanhoes nas suas feitorias. Constantemente chegavam á pobre Paraguaçú as queixas e representações dos seus irmãos, pedindo-lhe para influir no esposo a fim de tomar elle mesmo a direcção d'um movimento insurreccional que banisse d'aquelle paiz os europeus; e ultimamente recebera positivamente uma intimação ameaçadora, recordando-lhe que a morte de Tabyra pedia reparação, e que se ella a a não desse aos indios, como sua irmã que era, impedindo esses casamentos projectados para breve entre duas filhas do Caramurú e os dois Coutinhos chefes de capitanias, os seus dias estavam contados.
Tão profunda impressão causou esta ameaça no espirito já abalado da esposa do Caramurú, que chegou a fazel-a vacillar no apoio mais seguro em que até então confiára, a fé christã, e a entregar-sc aos preconceitos da sua casta. E a par disto, ainda redobrou de instancias com o esposo.
-- Abandona esse projecto de novas allianças entre portuguezes e indigenas... Não muda isso os sentimentos nem de uns nem de outros, que parecem cada vez mais oppostos.
-- Depois das intimações e ameaças que temos recebido, seria dar uma prova de fraqueza, que nos perderia...
-- Perdidos creio bem que estamos já!... A tua auctoridade, indiscutida antigamente, é hoje desacatada, até por alguns chefes das tuas tribus, e não vem longe o dia em que rebentará a rebellião geral, annunciada desde a fatal morte de Tabyra...
Ahi vens com os teus incessantes remorsos... Não tens de que os ter! Como christão t'o digo: defendeste a vida de teu filho, como te cumpria.
E não o estaremos nós também condemnando agora ? Se não sustas esta aversão contra os teus irmãos europeus, como poderá teu filho ser um dia acceite por chefe em teu logar? Afasta-o quanto antes d'aqui, emquanto não desapparece esta animadversão; procura desvanecel-a, e entretanto, fal-o educar em sentimentos differentes d'esses que os cavalleiros e soldados do Oriente teem manifestado aos naturaes d'este paiz, que eram submissos e bons, que por forma bem diversa te acolheram, e sob as tuas ordens viveram tantos annos, tendo pelo Caramurú essa verdadeira adoração que vae perdida já!...
-- Confio em Deus que tudo ha de encaminhar para melhor. Já não póde tardar a náo que espero do reino, trazendo as ordens e providencias que pedi a el-rei, como pedi á rainha que me enviasse pessoa de sua confiança a quem entregasse o nosso filho para lh'o levar e ser por ella educado.
-- Sim! E se eu morrer antes d'isso, não te esqueças do que tanto te tenho recommendado: que elle seja creado junto á virtuosa D. Leonor, emquanto joven; mas que, logo que chegue á adolescencia, vá completar a sua educação na França, esse paiz que tanto admiraste, que tão carinhosamente nos recebeu, e do qual porventura nos teria vindo maior felicidade, do que da tua patria, não porque Portugal valha menos, mas porque só para Santa Cruz manda os despotas e tyrannos educados na má escola do Oriente...
Não respondeu o Caramurú, ficando pensativo e concentrado na ideia de que a esposa dizia uma grande verdade... Passados instantes, ella acerescentou:
-- Praza a Deus que melhores tempos aguardem o nosso filho, e que bem educado em Portugal e na França, depois de ter visitado o teu solar do Minho em que nasceste, inspirado nas virtudes domesticas e no amor do trabalho de teus irmãos minhotos, possa vir governar as tribus indias, suas irmãs por sua mãe!...
Assim, n 'estas alternativas de esperanças e desalentos, ia passando o tempo. Mas Paraguaçú reconhecia que não abrandava a aversão dos naturaes, porque as exacções dos europeus eram cada vez maiores. Um facto deploravel veio ainda complicar a situação. Em uma das ilhas pertencentes á parte da costa em que ficava a capitania dos Coutinhos, proxima de Villa Velha, chamada Ilha do Medo, foi morto pelos europeus o filho d'um chefe indigena.
Passou então a ser considerada como um verdadeiro repto, lançado aos indigenas, a não desistencia do projecto do Caramurú de unir duas filhas suas aos Coutinhos, e redobraram junto de Paraguaçú mais vivas instancias e mais positivas ameaças. Tamanha era a perturbação em que o seu espirito foi lançado, que, nas vesperas do dia marcado para a ceremonia, a infeliz retrogradou ás idéas fetichistas que a religião christã e a civilisação lhe tinham feito repudiar. Na ausencia do Caramurú, quiz consultar os oraculos do culto indigena, e estes confirmaram-lhe a prophecia de grande desventura proxima.
Quando o esposo chegou, não poude conter-se e envergonhada lhe fez essa confissão.
-- E és tu, Paraguaçú! tão ferverosa christã, que te entregas a taes puerilidades?!
-- Tens razão; fiz mal n'essa ridicula consulta...
-- Póde ser que os pagés se não tenham enganado, porque de facto uma nova tenho a dar-te, que não sei se deva classificar de triste ou de agradavel...
-- Então?
-- Avisam-me das capitanias do Norte ter ali chegado uma náo do reino que me traz o enviado da rainha D. Leonor...
-- Ah! quer dizer, chegou o momento de nos separarmos do nosso filho, -- exclamou Paraguaçú, rompendo em pranto...
-- Não é o teu mais ardente desejo que o colloquemos por agora fóra do alcance dos perigos que aqui dizes correr?
-- É! E embora me custe, terei forças para consummar o sacrificio...
- N'esse caso, logo que esteja livre dos trabalhos relativos á capitania dos Coutinhos, que se está organisando, e celebrados que sejam os seus casamentos, trataremos da partida do nosso filho para Portugal.
Tudo se dispoz n'esta conformidade, e apezar dos surdos rumores de descontentamento, cada vez mais pronunciados nas tribus indigenas, prepararam-se grandes festas para o dia dos esponsorios dos dois irmãos e cavalleiros portuguezes.
Para impressionar, como era uso, os indios com o apparato das ceremonias do culto christão, armou-se um altar no meio da floresta, em que um sacerdote diria missa antes de celebrar o matrimonio.
Nunca houvera tamanho enthusiasmo festivo.
Chegavam de todos os lados tribus, conduzidas pelos seus caciques, as quaes acampavam ao redor de Villa Velha e passavam os dias e as noites em canticos, danças e folguedos.
Preparavam as mulheres, em vasos de barro, o licor com que se beberia á saude dos nubentes, emquanto torciam a mussurana, ou extensas cordas, d'um apuro especial, com que compunham grinaldas que passavam d'umas a outras arvores. Faziam os principaes personagens a toilette antecipada para a cerimonia, cobrindo o corpo com gomma, em que pegavam pennas unidas, das mais variadas côres. Outros compunham fios de plumas com que revestiam a yvarapenne, ou a clava das festas de gala.
Dispunham-se as talhas com o vinho de mandioca, preparado a rigor, para ser servido quente em malgas, que os homens viriam receber cantando e dançando.
O aspecto de Villa Velha tornára-se o mais animado e pittoresco possivel, tamanha era a diversidade de tribus que alli se viam representadas, desde os tupinambás, de longos cabellos soltos ou cuidadosamente entrançados, até aos guaranys e maguás, cujo luxo consistia na cuidada pintura do corpo e do rosto, em listas e desenhos das mais vivas côres, e aos aymorés e tupis, cuja elegancia estava na magnifica pelle e brilhante plumagem côr de laranja do peito de tucano, que grudavam nas faces, usando o cabello cortado rente na linha das orelhas e comprido na parte posterior do craneo, prendendo cocares de brilhantes plumas, que lhes cahiam sobre os hombros como um cabeção.
Novas tribus chegavam constantemente; e de continuo se via indios que depois de se estenderem no chão, com o ouvido encostado á terra, annunciavam a approximação de outras, que conheciam pela marcha percebida a grande distancia, e logo centenares de indigenas subiam velozmente até os cumes das mais altas arvores a saudarem os que ainda se não descobriam no horisonte, com grita atroadora.
Quão fácil teria sido aos europeus, se procedessem por fórma mais humana, captar as boas graças e trazer á completa submissão estas gentes, naturalmente doceis e propensas a deixarem-se levar por faceis encantamentos. Fôra preciso decerto bastante excesso de prepotencias e tyrannias, para levar a esse estado de revolta latente, que o Caramurú temia, estas tribus, que os sacerdotes christãos catechisavam entrando nas povoações com um crucifixo alçado, e seguidos por meninos de côro que entoavam a ladainha, e que a pouco trecho os indios seguiam encantados, como elles mesmos encantavam as cobras com os sons das suas rudes flautas.
Chegou a vespera do dia marcado para o consorcio dos Coutinhos com as filhas do Caramurú, e quando a noite desceu, no acampamento dos cahetés, tribu de que fôra chefe o terrivel e audacioso Tabyra, victimado por Paraguaçú quando lhe quizera raptar o filho, e que recentemente, com geral surpreza, viera pedir paz e trazer presentes ao Caramurú, passava-se um estranho espectaculo, que o poria de sobreaviso se o tivesse conhecido.
Estavam em volta do fogo reunidos em conselho diversos caciques de varias tribus.
-- Leval-a-hemos viva, para que nossas mulheres se divirtam com ella, e servirá de Kavy-pepibe! -- propoz um cacique caheté.
Queria isto dizer, que essa a quem se referiam, decerto Paraguaçú, seria morta e comida, porque estes indios eram antropophagos, por occasião da festa chamada «dos bebados».
-- Não! -- exclamou uma mulher de estatura colossal, da tribu vinda do territorio distante de Paguana, e conhecida pela denominação de Amazonas, por isso que, quasi inteiramente despidas, apenas trazendo um saiote, e usando longos cabellos cahidos pelas costas, faziam a guerra como os homens. -- Não! -- repetiu ella -- deve morrer como ferida pelo raio, como Tabyra morreu!...
-- Mudaste de plano? -- perguntou um cacique da tribu dos urtuasés, limitrophe da Mansão do Sol, como se chamava o paiz habitado pelas amazonas.
-- Porque o dizeis? -- perguntou arrogante a india guerreira.
-- Ouvi que era vosso desejo apanhal-a viva, para lhe cortar o seio direito, como a vós mesmas fazeis em novas, e obrigal-a depois a fazer a guerra ao vosso lado, por castigo...
-- Seria incapaz de combater! --respondeu com desdem a amazona; -- tal não pensámos jámais.
-- O mais justo -- volveu de novo o chefe caheté -- é que consultemos a maraca e ella decretará a sorte de Paraguaçú.
-- Seja - responderam os chefes de varias tribus.
Então, começaram todos o acto, dançando o aprasse em honra da maraca. Chama-se assim este fetiche ou symbolo da sorte, entre os indios, como o fructo do mesmo nome, uma especie de grande abobora, de que era formado. Era um oraculo familiar das tribus brazileiras, variando, porém, d'umas para outras.
Seccavam ellas essa casca da abobora, e d'esta cabaça faziam, como já dissemos, uma imitação da cabeça humana, por cuja boca falavam os seus oraculos ou pagés, pretendendo annunciar o futuro. Dentro lhe mettiam estas tribus, pedras e seixos, que, agitando-a, faziam soar, qual matraca, e abrindo-lhe olhos, pondo-lhe dentes e cabellos das victimas immoladas, adornavam-n'a com vistosa corôa de pennas vermelhas de goaraz. Cada homem tinha a sua maraca, e todas as dos chefes indios presentes foram, terminada a dança, dispostas em circulo, começando os selvagens a cantar, pedindo-lhe a sua prophecia, emquanto escravos prisioneiros serviam constantemente em vasos de barro a bebida chamada kaavy, com que se iam embriagando.
De subito, no meio da bacchanal, um pagé, ou feiticeiro caheté, saltou para o meio do circulo formado pelos chefes, agitando a sua maraca, dançando e gesticulando como um possesso até cahir extenuado no chão. Fez-se logo silencio, e todos aguardaram que recuperasse os sentidos aquelle a quem a maraca inspirára, e pela boca do qual falaria.
-- Paraguaçú deve morrer como tu disseste, amazona! -- proferiu o pagé dirigindo-se á guerreira india, -- de morte repentina!
-- Quem lh'a dará? -- perguntou o chefe caheté.
-- Tu mesmo! que representas o assassinado Tabyra!.. -- respondeu o pagé agitando a sua maraca.
Todos o imitaram, e um matraquear ruidoso, acompanhado por umas voltas de aprásse, terminou a consulta, entre canticos de agradecimento ao oraculo.
O successor de Tabyra cumpriu á risca a sua sinistra missão, e o Caramurú, que, havia muitos annos, admirára um dia nos jardins do paço de Santos-o-Velho, em Lisboa, a pericia com que uns indios trazidos de Santa Cruz a D. Manuel, na sua presença despediam com o arco setas que iam cravar-se em pequenos bocados de cortiça que o Tejo arrastava na corrente, sem jámais errarem a pontaria, e que depois tantas proezas vira deste genero, foi victima indirecta de tal dextreza.
No dia seguinte, quando o consorcio dos cavalleiros portuguezes concluia, e se iam a retirar para a morada do chefe goyanaz, uma seta partida d'uma eminencia distante, em que se achava reunida a tribu dos cahetés, veio ferir mortalmente Paraguaçú. O ferro envenenado produziu morte quasi repentina, prostrando a desgraçada, que ao exhalar o ultimo alento só poude dizer ao esposo:
-- Salva o nosso filho!
O Caramurú, louco de dôr e desespero, cahia tambem por terra, abraçado ao corpo de Paraguaçú, a quem pretendera amparar, vendo-a ferida e vacillante.
Levantou-se medonha confusão, e os cavalleiros portuguezes iam lançar-se, á frente dos goyanazes, sobre as tribus traidoras, que, soltando gritos alegres de victoria, se encaminhavam precipitadamente para as mattas proximas, quando o Caramurú, levantando-se e cobrando animo, sereno mas imperioso os deteve.
-- Esperae! que não é este o momento nem o logar do castigo! -- Depois, ajoelhando, beijou o cadaver na testa, dizendo. -- Serás obedecida, Paraguaçú!... e depois... vingada!
XIII
A vingança e a morte do Caramurú
O voto de Paraguaçú expirante, recommendando ao esposo a salvação do filho, como que foi ouvido pelo céo: na tarde mesmo d'aquelle nefasto dia, surgiu defronte de villa Velha a náo portugueza em que vinha o enviado de D. Leonor, a quem o Caramurú poderia confiadamente entregar o filho para ser levado a Portugal.
Agora, mais ainda do que a sua educação, fazendo-o abandonar os seus estados, tinha o chefe goyanaz em mira subtrahil-o a algum novo acto de vingança das tribus hostis aos europeus, e a elle em especial, por os auxiliar no estabelecimento de capitanias em Santa Cruz.
Esta animadversão, convem dizel-o, não era exclusivamente contra os portuguezes. Do norte ao sul, do oriente ao occidente, nos dominios portuguezes, como nos castelhanos, da mesma forma que ao desembarcarem francezes em qualquer parte da costa, as numerosas tribus selvagens das Indias Occidentaes umas vezes recebiam os europeus amigavelmente, outras fingiam fazel-o, para d'ahi a pouco, traiçoeiramente, os exterminarem. Por seculos subsistiram estas alternativas registadas na historia da America do Sul, e assim como no tempo a que se refere a nossa narrativa houve uma época em que algumas das tribus de Santa Cruz se levantaram contra o proprio Caramurú, outras hostilisaram differentes chefes descobridores castelhanos, como Gonzalo Pizarro, quando buscava o El Dorado, Orellana, e Irala, que logrou chegar até aos confins do Perú, na contra costa sobre o Pacifico.
Entretanto, reconhecia o chefe dos goyanazes a injustiça e ferocidade da vingança exercida na pessoa de Paraguaçú, victima innocente dos desmandos e exacções praticadas contra os indigenas pelos portuguezes das capitanias, e falando com o enviado da rainha, dava largas á sua dôr e á sua indignação.
Hans Stade se chamava o mensageiro, allemão nascido em Hamburgo, no eleitorado de Hesse, que em busca de fortuna embarcára na Hollanda em uma frota mercante que a Setubal vinha carregar sal. Ali buscára a protecção da rainha projectando ir á India, mas tendo partido já as náos d'esta carreira, e vendo D. Leonor, pelas recommendações que trazia e pelo trato que com elle teve, ser um bom homem, merecedor da sua confiança, estimou encontrar n'elle pessoa idonea para de seu mando ir a Santa Cruz, não só buscar o filho do cavalleiro, mas ajuizar da situação, e imparcialmente, como extrangeiro, lh'a relatar, uma vez que os do conselho do rei, ás representações do chefe goyanaz, contestavam com as razões allegadas pelos governadores das capitanias para justificarem os seus rigores contra os indios.
-- Assim, não tereis duvida, ao regressar ao reino, em me deixar a maior parte da artilheria?
-- Está ás vossas ordens, pois que a rainha me ordenou que vos désse todo o auxilio, e venho encontrar-vos em apertadas circumstancias.
-- Sim ! A guerra é agora inevitavel. Quando mesmo não abrigasse no coração o desejo de vingar o assassinato da minha pobre Paraguaçú, fortemente abalado ficaria o meu prestigio, e em risco a existencia dos europeus, se, pelo menos as tribus que aqui vieram como amigas e depois commetteram essa infame traição, não fossem castigadas...
-- E ficam distantes?
-- Algumas leguas para o norte...
-- Preparae, pois, a vossa expedição, e vinde commigo por mar, que ainda tenho que fazer em Santa Cruz antes de regressar ao reino...
-- Não voltaes directamente a Portugal? -- perguntou o Caramurú, inquieto pelo que respeitava á conducção do filho.
-- Voltarei, desde que me encarregue do vosso herdeiro: para isso aqui tocarei novamente. Mas tenho ainda que ir á capitania de Duarte Coelho, em Pernambuco, entregar-lhe os degredados que trago...
-- Degredados! Degredados! -- exclamou o Caramurú exasperado. -- Eis a gente que de Portugal mandam para civilisar os indios! Degredados, ou cavalleiros e soldados acostumados á vida dissoluta do Oriente. Eis porque eu mesmo me vejo a braços com uma rebellião, d'esses indios pacificos que por tantos annos me respeitaram como pae!...
-- Tendes razão, cavalleiro! Não entendem, desgraçadamente, outra coisa os do conselho do rei; e não
lhes serve de exemplo o que se tem passado nas Indias do Oriente, onde grandes capitães, como D. Francisco d'Almeida e Affonso d' Albuquerque, se teem visto nas maiores difficuldades para manter com honra o dominio portuguez...
-- Quando quereis seguir para a costa de Pernambuco?
-- Quanto antes. Amanhã, se podeis embarcar...
-- E' impossivel! Preciso, pelo menos, uma semana para dispôr as minhas tribus e as que me são fieis, a seguirem por terra á capitania de Duarte Coelho, onde nos reuniremos para marcharmos sobre os cahetés...
-- Esperarei...
-- Além d'isso, tenho de reunir os mais idosos caciques, e escolher tres, que ficarão encarregados do governo, pois desejo deixar em segurança meu filho a bordo da vossa náo, ao cuidado do meu fiel Carijó.
-- Aproveitarei esta semana para desembarcar parte do carregamento que a rainha vos manda, e que, por vir nos ultimos porões, só tencionava fazer na volta de Pernambuco...
Com effeito, no dia seguinte, começou a descarga da grande quantidade de fazendas, armas, materiaes de construcção e munições, no valor de muitos milhares de cruzados, presente verdadeiramente real, que D. Leonor mais uma vez enviava ao seu filho adoptivo, para desenvolver a sua nascente povoação.
Dias depois levantaram ferro as duas náos, e passada breve navegação costeira, dobraram o cabo de Santo Agostinho, e entrando no porto de Pernambuco, encontraram Duarte Coelho, chefe da capitania, prestes a sahir em soccorro do visinho estabelecimento portuguez de Iguaraçú, que os indios acabavam de atacar, instigados pelos aguerridos cahetés, esperando que a sua capitania fosse tambem atacada, porque o proposito attribuido aos selvagens era seguirem devastando todos os engenhos, plantações e feitorias de que as capitanias se compunham, até levarem a ruina e a morte aos proprios dominios do Caramurú.
-- Prestae-me, pois, auxilio, -- dizia Duarte Coelho aos recem-chegados, -- que o vosso interesse, como o meu, nos aconselha a determos a onda de barbaros prestes a esmagar-nos...
-- Nenhuma duvida tenho em vos acompanhar á guerra, porque o meu designio era marchar só com os meus contra os cahetés...
-- E vós, Hans Stade! -- accrescentou o chefe da capitania, -- não podereis tambem ajudar-nos com alguma gente de desembarque, principalmente artilheiros?
-- Artilheiro sou eu mesmo, e com a maior satisfação desembarcarei uma parte da tripulação e bombardas, com que vos acompanharei... Mas não depende isso de mim só...
-- Não vindes por capitão-mór da armada? -- perguntou, admirado e descontente, Duarte Coelho.
-- Sim, mas trago encargo especial, e não posso dispôr de mim sem auctorisação do chefe da Villa Velha...
-- Comprehendo-vos e agradeço a vossa attenção -- obtemperou o Caramurú -- mas tudo se remediará. Podereis vir comnosco e parte da vossa gente, e deixaremos Carijó com meu filho a bordo das náos. Se a sorte das armas nos fosse contraria, seguiria n'ellas para Portugal.
Ajustado este plano, com a maior brevidade ultimaram todos os preparativos, e pelo anoitecer do dia seguinte marcharam para Iguaraçú, onde chegaram de madrugada.
Estavam o engenho e respectiva feitoria edificados em plena matta, sobre uma angra que entra a duas leguas pela terra dentro. Guarneciam-n'a noventa europeus e trinta escravos, sendo um negro e todos os restantes indigenas. A tão pequeno numero de defensores, atacava um exercito de indios, composto de varias tribus, que não contava menos de oito mil homens.
Nenhuma fortificação havia, a não ser uma palissada, feita pelos portuguezes, á imitação d'aquellas com que os indios defendiam os seus acampamentos. Se alguma coisa tinha até ali obstado a que fossem esmagados pelos numerosos sitiantes, era o terror que lhes infundiam algumas raras peças d'artilheria, collocadas em varios pontos d'essa fraca linha de defeza.
Quando chegaram as forças do Caramurú e dos que o acompanhavam, tinham os indios acabado de construir dois grosseiros baluartes de troncos d'arvores, dos quaes disparavam settas, abrigados das descargas dos canhões, e percebia-se que andavam cavando poços, para de surpreza chegarem junto da praça improvisada.
Reuniram-se em conselho os chefes para deliberarem, porque, em vista da falta de mantimentos, era preciso ou tomar a offensiva e romper o cerco, ou usar d'algum ardil para obter viveres; demais, agora que tinham chegado consideraveis reforços, se por um lado a situação melhorava, peiorava por outro, em razão de haver muitas mais boccas a sustentar.
Resolveu-se, pois, uma sortida para a alvorada seguinte, e o Caramurú, escolhido para general em chefe, assignalou aos Coutinhos, que haviam chegado com as suas gentes, os pontos por onde tentariam envolver o campo inimigo, emquanto elle e Hans o atacariam pela ala opposta, ficando Duarte Coelho no centro, defendendo a palissada. Entretanto, no campo contrario não se tomavam menos disposições para a lucta, precedendo-a as cerimonias usadas entre os indios. A cada momento os velhos dirigiam aos moços as exhortações dos ritos:
- Lembrae-vos do exemplo que nos deixaram nossos paes! Elles pelejavam, conquistavam, matavam e devoravam os contrarios!...
-- Nós faremos como elles! -- respondiam os novos.
-- Soffreremos que o inimigo, que antes não podia supportar o nosso aspecto, venha agora bater ás nossas portas e nos traga a guerra a casa?
-- Não! Não! -- respondiam os novos, batendo nas espaduas e nos quadris.
O enthusiasmo ia crescendo, porque entre os indios todos os discursos acalorados eram acompanhados de grandes movimentos.
-- Cahetés! Margaiás! Tupiniquins! Saiamos! Matemos! Comamos!
E os chefes ordenavam ás diversas tábas das tribus os pontos a que deviam dirigir o ataque.
De subito, ouviram-se, partindo da retaguarda do campo indio, altos gritos de lamentação, como se uma grande fatalidade houvesse succedido.
Chegou o seu echo ao acampamento christão, e o Caramurú disse para Hans:
-- São reforços que chegam ao inimigo. E' costume dos selvagens saudarem com lamentos e prantos a chegada de amigos.
Eram duas tribus mais que chegavam, a dos xarayés, notavel porque além de usarem as mulheres o labio inferior furado, e d'elle pendente como brinco a casca d'uma fructa enorme, especie de cabaça, era a unica de Santa Cruz em que os homens deixavam crescer o bigode; e a dos guaranys, os mais aguerridos e orgulhosos de todos os indigenas, especie de verdadeiros patricios entre os selvagens das Indias do Occidente.
Logo que chegaram, conferenciaram os chefes das tribus, Akindar Miri, cacique dos guaranys, Uvatile, o feroz successor de Tabyra na chefatura dos cahetés, e Ieppipo Wassú, o autocrata dos xarayés.
-- Antes de amanhecer, -- disse Uvatile -- com a minha guarda atravessarei o rio, buscando rodear o campo inimigo. A minha tribu seguirá nas trevas que ainda reinarão, ao som dos instrumentos.
E dizendo assim, indicava um grupo numeroso de guerreiros collocados por detraz d'elle, armados de arcos e frexas, e grandes escudos forrados de pelle de anta. Uns traziam na mão buzinas, outros umas trombetas feitas de compridas cabaças, outros ainda umas flautas compostas com fracções de ossos dos inimigos devorados por elles.
-- Pois que tudo assim está disposto -- accrescentou Ieppipo Wassú -- dizei-me em que ponto devo collocar os meus.
-- Occupareis os bosques densos, que um meu cacique vos indicará, e ahi esperareis o inimigo, quando já vencido e disperso, pretender encontrar no matto a salvação. Convém que recolhamos aos nossos lares levando bastantes prisioneiros, que immolaremos em honra dos nossos que os estrangeiros nos teem morto.
-- Saiam pois a terreiro as maracas! -- concluiu com auctoridade Akindar Miri, -- e depois de termos escutado os seus avisos e prevenções sobre o combate que vamos travar, recolhamos-nos por algum tempo em nós mesmos, para sonhar! e pedir aos nossos deuses farta colheita de prisioneiros.
Assim fizeram, e ás diabólicas e vertiginosas danças dos pagés, embriagados até cahirem repetindo as consultas dos oraculos, succedeu no acampamento um silencio de morte, emquanto aquelles milhares de selvagens ali reunidos se entregavam a essa contemplação intima, a que chamavam o sonho!
Passado algum tempo, começaram a ouvir-se, partidos de pontos diversos do campo, sons especiaes de trombetas e buzinas. Eram os chefes que se consultavam, usando d'este systema secreto para precisarem o momento proximo de avançarem.
Se no campo fronteiro se não conhecia a cifra d'esses signaes mysteriosos, sabia-se qual era o seu fim, e o Caramurú fez partir por toda a sua linha de defeza a ordem de estar álerta.
Na escuridão que ainda reinava, Uvatili ordenava aos selvagens sarigues e tocambús, que realisassem as suas proezas de amphibios. Lançaram-se estes ao rio, nadando e fazendo avançar na sua frente as pequenissiimas canôas, que lhes serviam de escudos contra os tiros inimigos, para o atravessarem.
Mas não eram menos finos os ouvidos dos goyanazes, do que dissimulada esta navegação, pois logo nas trévas sibilaram fréchas, cujo mergulhar na agua mais se distinguia do que o marulhar da arremettida inimiga.
Pouco demorou esta primeira phase silenciosa do combate. Foi alvorecendo, e os orgulhosos guaranys, rompendo as hostilidades, fizeram-n'o, pelo contrario, estrepitosamente, acordando as suas trombetas e atabales os echos dos montes e os recessos da floresta. Avançaram estes, destemidos, do seu campo, retezando a corda de tocon dos seus arcos de madeira preta ou vermelha, despedindo nuvens de fréchas, trazendo a tiracollo a arma de pau chamada macaná, especie de pá de dois gumes, pesada como uma verdadeira acha d'armas.
Do acampamento inimigo, os europeus começaram a responder com fuzilaria, emquanto do lado contrario os cahetés faziam fogo á sua moda, despedindo contra as habitações da feitoria setas que, incendiando-se no ar, pegavam fogo onde quer que cahissem. Eram uns verdadeiros foguetes de guerra.
Dentro em pouco, o ardor da lucta chegou a confusão dos combates corpo a corpo. Uma parte dos indios conseguira avançar até junto da palissada, e ahi combatia com os europeus e indigenas seus alliados, ao passo que n'outros pontos, portuguezes, goyanezes e tapuyas tinham invadido o campo das tribus indias e ahi faziam grande mortandade.
Foi no meio d'esta lucta encarniçada, que um indio, tendo derrubado um cacique goyanaz, approximando-se do Caramurú lhe disse:
-- Caramurú! se me tomas por cacique em logar d'esse que acaba de cahir, indicar-te-hei aquelle que matou Paraguaçú...
-- Acceito ! Eis o penhor da minha palavra! -- respondeu o Caramurú, abaixando-se para tomar o turbante empenachado do cacique morto, que lhe entregou.
-- Segue-me, sem receio, que te não conhecem.
-- Seguir-te-hei ao inferno para vingal-a!
-- Perto está, e poderás derrubal-o com um tiro da tua arma.
O Caramurú deu alguns passos seguindo o indio, mas entretanto a reflexão e a desconfiança prevaleceram sobre a sua sêde de vingar-se, fazendo-o perguntar-lhe:
-- Só a ambição te faz traidor?!
-- Não! Mas o desejo de vingar-me, tambem, esse desejo que te leva, Caramurú, a seguires-me, sendo ainda ha pouco teu inimigo.
Tinham-se afastado um tanto do ponto em que mais rija ia a peleja, e chegado a uma pequena eminencia. De repente, surgiu d'entre as espessas moitas um troço de ferozes cahetés a cuja frente vinha o chefe Uvatili.
-- Ahi tendes o que arrojou a setta envenenada que matou tua esposa! -- exclamou o indio mostrando-o ao Caramurú.
-- Traidor! - uivou medonhamente Uvatili --, e com um golpe terrivel de macaná, prostrou o novo cacique goyanaz.
-- Vinga-nos, Caramurú ! -- exclamou este cahindo.
O seu voto foi cumprido: antes que Uvatili tivesse tempo de attingir o Caramurú com repetido golpe de macaná, este disparou o mosquete, e o chefe caheque cahiu, para não mais se levantar.
Os selvagens que acompanhavam Uvatili precipitaram-se sobre o Caramurú. Tendo o mosquete descarregado, era-lhe impossivel prolongar uma lucta tão desegual com numerosos inimigos, mas ainda assim, brandindo-o agora como se fôra uma acha d'armas, antes que o tivessem attingido com as lanças ou macanás, alguns derribou. Um, porém, conseguiu feril-o em um braço com uma comprida lança. O sangue que foi perdendo, obrigou-o a affrouxar a violencia dos seus ataques, e tendo de passar a defender-se apenas, diminuindo a rapidez dos seus movimentos, um indio com mão certeira lhe atirou de longe o tocon, comprida e delgada corda fortissima, com que laçam e deteem um cavallo na carreira, e com que agarram os inimigos que desejam colher com vida.
Enlaçado pelo pescoço, prestes a ser asphixiado, perdendo sangue pela grande ferida que recebera, o Caramurú succumbia, no momento em que, attrahidos pelo tiro que tinham ouvido no campo das hostes contrarias, e notando a falta do chefe dos goyanazes, Hans, seguido por alguns d'estes, appareceu em seu soccorro.
-- Não o matemos! Não o matemos! Guardemol-o para o devorarmos! -- exclamavam enthusiasmados os ferozes cahetés antropophagos, precisamente no momento em que Hans chegava.
Disparou este o mosquete carregado de metralha sobre o grupo dos indios, e o effeito foi assombroso, porque bastantes cahiram feridos. Muitos, porém, ainda rodeavam o Caramurú, e Hans comprehendeu que não podia repetir sobre elles as descargas dos mosquetes carregados que os goyanazes traziam, pelo risco de o ferir. Exhortando-os pois a libertarem o chefe, exclamou:
-- Salvemos o Caramurú, ou morramos com elle!
Travou-se uma lucta desesperada, por que muito inferioresem numero eram os goyanazes.
Conseguiram, porém, unindo-se, formar um pequeno quadrado, cujas frentes se defendiam por fórma a ter o inimigo em certa distancia, e no centro do qual o Caramurú, passados instantes, logrou, apesar do seu abatimento, desenvensilhar-se das laçadas com que já o tinham envolvido.
-- Caramurú! Caramurú! -- repetiam em torno os indios cahetés, enfurecidos por verem escapar-lhe a preza, invocando esse titulo sobrenatural de «homem de fogo», que fazia a grande força do chefe dos goyanazes e tapuyas.
Como a justificar essa reputação, o cavalleiro, reu-nindo n'um ultimo esforço todas as forças de que era susceptivel, tornando o pequeno quadrado em um baluarte humano, começou descarregando os mosquetes que tomava das mãos dos indios, em quanto Hans e outros goyanazes com as suas compridas lanças, de junco e madeira, com pontas de osso afiladas, impediam os cahetés de se approximarem.
Assim foram batendo em retirada heroica, e percorrendo a distancia que, no seu ardente e desvairado desejo de vingar a morte de Paraguaçú, o chefe goyanaz temerariamente avançára, internando-se no massiço das forças inimigas.
Dentro em pouco a lucta tomava para os europeus e seus alliados indigenas melhor aspecto. Os Coutinhos haviam rechassado os guaranys em varios pontos, e as tribus que viam estes afamados guerreiros vencidos, perdiam a força moral, e batiam em retirada para o interior da grande floresta proxima.
Comtudo, a batalha prolongou-se ainda por bastante tempo, e o seu resultado final seria duvidoso, se não sobreviesse um facto extraordinario e imprevisto, que, se por um lado veio dar definitivamente a victoria ao exercito do Caramurú, por outro, lançou-o na maior inquietação. Com assombro geral, começou a sentir-se troar artilheria de grosso calibre, e a choverem sobre o campo inimigo granadas, que explodiam lançando a morte e o pavor em quem jámais vira o effeito d'essa terrirel chuva de fogo, que os indios acreditam cahida do céo. E pouco depois, dobrando uma apertada curva do extremo da angra, sobre que assentava a povoação de Iguaraçú, iam surgindo, como uma apparição phantastica, primeiro os topes dos mastros, depois o velame e por fim os cascos das náos, que tinham ficado em Villa Velha!
-- Carijó! Meu filho! -- exclamou o Caramurú empallidecendo mais e vacillando --, Deus os trouxe para me despedir d'elles! -- e desmaiou, prostrado, pelo excesso dos esforços que fizera n'aquella defeza desesperada.
Eram mortaes as feridas que o cavalleiro recebera, e conhecendo bem que o seu fim se approximava, todo o seu cuidado se concentrou na transmissão do poder e dominio ao seu herdeiro, sem prejuizo de o fazer seguir para Portugal a educar-se.
Fez pois reunir os chefes, e tendo ao seu lado Carijó, disse-lhes:
-- Vamos partir para a nossa tába de Villa Velha. Receiando não chegar lá com vida, desejo que reconheçaes aqui mesmo por vosso chefe o que é meu filho e de Paraguaçú! embora creança ainda!
-- Em muitas das nossas tribus, -- respondeu o mais velho dos caciques, -- é costume, quando o chefe morre batalhando, escolher para seu suecessor o que mais provas deu de bravura, ainda que seja o mais novo. O teu sangue de guerreiro destemido, não se desmentirá no que é teu filho, como se não desmentirá o sangue indio que tem da virtuosa Rio Grande, que todos choramos. Creança embora, promptos estamos a reconhecel-o por chefe.
O filho do Caramurú veio então, trazido por Carijó, ao centro do circulo formado pelos caciques, e logo correu a roda o vaso de barro cheio de vinho de fructas de que todos beberam, e elle em ultimo logar, recebendo assim o juramento de fidelidade. Depois, ordenou-se a marcha.
O Caramurú queria exhalar o ultimo suspiro na sua povoação, queria fazer d'ella entrega solemne a Carijó, para ficar governando emquanto o seu herdeiro estivesse auzente na Europa.
-- Mas não virieis melhor por mar em uma das náos? -- diziam-lhe.
-- Não! Quero voltar a Villa Velha marchando com os goyanazes e tapuyas victoriosos. Quero que elles conduzam sob as minhas vistas meu filho, já reconhecido seu chefe, á tába que lhe pertence. Hans, irá esperar-nos com as náos.
Assim se fez, e pela tarde os navios começaram descendo novamente o rio, e atravessando a angra sahiram ao mar, a tornejar a costa até Villa Velha, emquanto por terra, deixando a capitania de Iguaraçú, o exercito victorioso do Caramurú, levando o filho d'este na frente sobre um palanquim sustentado por goyanezes e tapuyas, era seguido por uma especie de maca feita de ramos d'arvore e d'uma rede de cipó, na qual ia deitado o vencedor, mortalmente ferido.
Era uma estranha marcha triumphal, porque era ao mesmo tempo um cortejo funebre!
Os indios entoavam os seus cantos de regresso victorioso á sua tába, emquanto alguns sacerdotes christãos, rodeando o leito ambulante do Caramurú, recitavam as orações com que a religião assiste aos que estão em artigos de morte.
Marchou-se sem descanço, e pelo cahir da tarde do dia immediato entravam em Villa Velha.
O Caramurú sentia proximo o seu fim, e dava graças a Deus por ter o feito chegar com vida ao seu dominio.
-- Agradecei-lhe, com o acto de misericordia que vos aconselhei, -- disse-lhe um dos sacerdotes...
-- Não sei, padre! se o devo fazer... Irei talvez ferir os preconceitos dos indios, a quem desejo deixar a minha memoria venerada, respeitando a meu filho...
-- Pela boca de teu filho, que é um innocente, ouvirás a vontade de Deus! a sua palavra, que é toda amor da humanidade e perdão aos desgraçados! -- E o sacerdote, chamando a creança, perguntou-lhe:
-- O que achaes que se deve fazer a esses desgraçados prisioneiros que ahi veem?
-- Mandal-os para os seus, por quem choram, -- respondeu o innocente.
-- Será feita a vossa vontade, meu Deus ! -- exclamou o Caramurú.
Foram chamados os caciques, e o cavalleiro disse-lhes que era aquella a vontade da creança, já reconhecida chefe...
-- Cumpra-se! -- responderam estes sem hesitar.
Um clarão de alegria brilhou no semblante do Caramurú em que a morte se ia já pintando.
Foram trazidos os prisioneiros, e o seu cacique, arrogante, como quem está prompto ao fim que o espera, disse altivamente:
-- Os bravos morrem valentemente no paiz dos inimigos. Vossa foi a victoria, e tendes-nos nas mãos! Ampla é a nossa patria, e povoam-n'a guerreiros que não deixarão de vingar a nossa morte!...
-- Enganaes-vos! Estaes livres, podeis regressar á vossa tába! Assim o manda esta creança, hoje chefe de goyanazes e tapuyas!
A terra que se tivesse aberto aos pés dos guaranys e cahetés prisioneiros, não lhes teria causado maior espanto! E foi preciso que os caciques vencedores lhes tirassem os laços de tocon que os ligavam, e lhes deixassem franca sahida, para acreditarem o que ouviam.
Então, esse germen de docilidade que existe sempre no homem, ainda o menos culto, e esse apreço da vida, que não deixa de abrigar tambem o coração ainda o mais destemido, acordaram na alma d'aquelles rudes selvagens, que se prostraram aos pés da creança, roçando as frontes na terra, em signal de reconhecimento.
Foi este espectaculo sublime, o ultimo que o cavalleiro admirou tendo ainda consciencia do que o cercava, e que lhe deixou um sorriso de esperança e alegria suave estampado no rosto! Foi essa a expressão que acompanhou as palavras incoherentes que começou a proferir, n'essa confusão em que a natureza como que lança o pensamento do homem, quando a Deus apraz, talvez, fazer esquecer successivamente ao espirito humano esta vida, preparando a sua transicção para a outra.
-- Ridentes paizagens do Minho! Portugal! Portugal! -- foram as suas ultimas palavras...
-- Erguei-vos e retirae-vos em silencio! Não canteis os vossos aprasses -- disse baixinho a creança, já orphã, aos prisioneiros. -- Não acordeis o Caramurú,que dorme e sonha com a outra nossa patria... Portugal!
Com effeito, Diogo Alvares, o minhoto, o cavalleiro christão, adormecera no seio da morte.
FIM DA PARTE PRIMEIRA
PARTE II
A INDEPENDÊNCIA DO BRAZIL
I
A aprendizagem liberal
Manteve-se na geração de Diogo Alvares, o fidalgo minhoto, de que a sorte fizera o chefe indio Caramurú, a disposição por elle estabelecida a respeito de seu filho, ao mandal-o para Portugal a fim de ser educado, e sendo observada fielmente, e perpetuada pelos seus descendentes, que se honravam em serem chamados os Caramurús, os senhores do solar minhoto de Deuchriste passavam, segundo essa tradicção de familia, a infancia no Minho, depois iam instruir-se em França, e por ultimo partiam a exercer a sua actividade no Brazil, em que possuiam extensas propriedades e commercio, provindos do estabelecimento do seu famoso antepassado em Villa Velha, proximo da Bahia, cidade da qual as principaes familias eram do seu sangue.
Em tres seculos decorridos, o dominio portuguez na Brazil mantivera-se, apesar de todas as vicissitudes da mãe patria, que, por muitos annos encorporada na monarchia hespanhola, logrou, não obstante as ambições de inglezes, hollandezes e francezes, não ser desapossada da Terra de Santa Cruz, descoberta por Cabral.
Copiosa foi a série de acontecimentos que n'esse longo periodo se deu, e a historia do Brazil relata.
Entre elles são notaveis: a expedição ingleza de Lencastre; as ambições dos hespanhoes pela conquista d'esse sonhado paiz em que o rei todos os dias se cobria de pó de ouro, e por isso chamado El Dorado; a primeira rebellião de Fernandes Vieira contra o jugo hollandez; o dominio geral dos jesuitas, de que o padre Antonio Vieira foi ali figura principal; a descoberta do ouro em Minas Geraes; depois as novas ambições dos francezes, que deram as expedições de Duclerc e Dugain Trouin em 1710, sonhando a realisação da França Antartica; a descoberta dos diamantes em 1729; mais tarde as medidas do marquez de Pombal, creando as companhias do Maranhão e do Grão Pará; a guerra de 1762, quando a França se alliou á Hespanha contra a Inglaterra; e, finalmente, a conspiração de Minas Geraes, organisada por José Joaquim da Silva Xavier, mais conhecido pelo Tiradentes, influenciado pelo exemplo da emancipação das colonias inglezas da America, precisamente no mesmo anno de 1789, em que na Europa explodia o movimento gigante da revolução franceza.
Quando na capital da França se deram esses memoraveis acontecimentos, achava-se ali a educar o morgado de Deuchriste, tambem chamado Diogo Alvares, como o seu antepassado, mas por toda a gente conhecido por o Caramurú, pois que este nome ficára designando os senhores do velho solar minhoto.
Fôra companheiro d'estudos de José Bonifacio de Andrade e Silva, um dos futuros heroes da emancipação do Brazil.
Tinham-se dado os successos da revolução franceza, que foram grandiosos, e de certa maneira justificados pelas razões amontoadas no passado e pelas legitimas aspirações do futuro, que a nova sociedade formuláva, e o joven Caramurú, dotado de grande intelligencia, embora creado no Minho, em atmosphera de principios bem diversos, se era aristocrata pelo viver e costumes, era liberal pela finura intellectual e pela grandeza d'alma. Ninguem venerava mais do que elle a Deus, mas não confundia o divino com o profano. Entendia que se podia ser bom christão sem jurar cegamente em todos os artigos do direito divino, e applaudindo no intimo do coração os votos da soberania nacional, enthusiasmára-se com as imponentes primeiras manifestações da democracia: as sessões da constituinte, o juramento do jogo da péla e a tomada da Bastilha.
Tinha seguido com interesse os successos da tentativa revolucionaria do Tiradentes, no Brazil, procurando estabelecer uma republica, animado pelo exemplo da emancipação das colonias inglezas da America do Norte.
Suecessos identicos na patria e no paiz que então habitavam, formavam e esclareciam os espiritos dos dois jovens para as idéas liberaes; mas quando chegou a epoca do terror, não podendo transigir com os seus excessos sanguinários, deixaram Paris, indo o Caramurú acompanhar o seu amigo, que aproveitava o ensejo para na Italia proseguir os estudos de naturalista de que o governo portuguez o encarregára, por proposta da Academia Real das Sciencias de Lisboa. Em Napoles tinham entretido estreitas relações com essa mulher extraordinaria, descendente de portuguezes e nascida em Roma, Leonor da Fonseca Pimentel, poetisa e erudita, cerebro poderoso, que, então, dedicada á realeza, foi bibliothecaria da rainha das Duas Sicilias, e por fim havia de tornar-se a alma da revolução de Napoles e morrer no cadafalso, martyr da liberdade!
Esta permanencia na formosa cidade do mar Tyrreno formára um capitulo amoroso da vida do joven Diogo Alvares. Apaixonára-se, mais ainda pela grande alma do que pela formosura, de Leonor da Fonseca Pimentel, que então era casada, e cuja honestidade soubera conter sempre no limite de profundo respeito os adoradores ainda os mais perdidos de amor.
Tinham os dois jovens portuguezes voltado a França, agora que Paris era de novo habitavel sob o regimen facil e divertido do directorio, enthusiasmando-os a gloria nascente de Napoleão, a cujas homericas victorias iam assistindo.
Estava-se no anno VI da republica, ou 1798 da era christã.
Paris offerecia um grandioso e memoravel espectaculo n'aquelle dia, um dos mais notaveis da historia de França: a recepção official, pelo directorio, de Napoleão, regressado victorioso da campanha da Italia, arrancada á Áustria pelo tratado de Campo Formio, que negociára, e de cuja ratificação era portador.
O Caramurú e José Bonifacio dirigiam-se ao Luxemburgo, para assistirem a essa maravilhosa solemnidade republicana, com a curiosidade enthusiastica de corações novos e espiritos elevados, abertos á admiração das grandes conquistas da humanidade.
Quando iam chegando perto do formoso palacio construido por Debrosse para Maria de Médicis, o Caramurú soltou involuntariamente uma exclamação de contentamento:
-- Ah! eis a nossa formosa patricia! -- e indicava ao seu amigo uma menina de deslumbrante belleza, que, acompanhada por um homem de meia idade, se approximava.
-- Quem será?! Que é portugueza, não me resta duvida, depois d'aquella citação que lhe ouvimos fazer a outra noite no theatro...
-- Eu inclino-me a que seja filha do Brazil... Assim o indica a sua formosura especial e a pronuncia.
-- Talvez não... Pareceu-me antes pessoa deshabituada de fallar o portuguez.
Já iam entrando no palacio, e o cavalheiro e a sua gentil companheira encaminharam-se para os amphitheatros reservados ao corpo diplomatico.
-- Ainda hoje procurarei saber do nosso ministro quem são. Deve conhecel-os, uma vez que foram convidados para aquella galeria...
-- Bem! bem! -- observou José Bonifacio, em tom de conselho. -- Toma conta com os enthusiasmos do teu coração, meu ardente Caramurú! No amor, como nas ideias politicas, desconfia sempre dos teus primeiros impetos.
-- Ahi vens com a moral do costume...
-- Não esqueças o teu romance de Napoles, assim como o teu fanatismo por esta revolução franceza e os seus homens, que estão longe de ser amaveis para com... Portugal.
-- A culpa é dos seus estadistas, que teem deixado o paiz submettido á tutella ingleza...
-- O futuro dirá qual de nós tem razão...
Temperado pelo convivio constante das sciencias naturaes, em que era profundo, José Bonifacio era uma especie de mentor do seu amigo, cuja minima credulidade e extrema fogosidade enthusiasta, só viam o lado fascinador e bello de quanto o cercava.
-- Com que intenção magnificente tem o directorio preparado esta recepção de Bonaparte!... Como tudo isto é grandioso e imponente! -- dizia extasiado ante a maravilhosa decoração da entrada monumental do Luxemburgo, em que a solemnidade se ia realisar.
-- Concordo! E' magnifico na verdade! Mas, ouviremos logo os discursos de Talleyrand, do general e de Barras, e d'elles concluiremos, com verdade, até que ponto é sincera esta manifestação...
-- Acreditas nos ciumes do directorio pela gloria de Napoleão?!
-- Pois que duvida?! E mais ainda: acredito na finura com que elle apparenta essa modestia que todos lhe notam... Não leste o que os jornaes dizem da sua attitude hontem no ministerio dos estrangeiros?
-- Não, -- respondeu o Caramurú, distrahido, a dirigir ardentes olhares para a tribuna do corpo diplomatico, em que appareceu a supposta brazileira.
-- Bem! Não ouves o que digo... E's todo olhos para a tua nova conquista.
-- Então? -- volveu o Caramurú desculpando-se. -- Dize lá...
-- Envoltas na sua modesta, o general tem já as maneiras calculadas d'um rei. A sala do ministerio estava cheia de gente anciosa por vêr e apertar a mão ao heroe, mas elle, entrando, silencioso e modesto, a ninguem se dirigiu a não ser a Bougainville, o celebre navegador, para o felicitar pela sua viagem á volta do mundo... Elle! o modesto! só a esse distinguiu!
O Caramurú não respondeu, tão presos tinha agora o espirito e os olhos na admiração de quanto via.
O espectaculo era, com effeito, imponente! De distancia a distancia, trophéos magnificos formados de bandeiras tomadas pelos exercitos de Napoleão, destacando sobre o tecido das tres côres nacionaes, que forrava as paredes.
Apinhada nas galerias, toda a alta sociedade de Paris, brilhante nos trajos caracteristicos das modas requintadas do directorio. Musicos e coristas collocados em diversos pontos, entoando canticos nacionaes, e que logo fariam ouvir o hymno composto expressamente por André Chenier para esta solemnidade. Ao fundo, sobre um grande estrado, formavam os membros do directorio, na frente do altar da patria, e vestidos á romana. Rodeava-os uma assistencia brilhante, de generaes, ministros, embaixadores, membros dos dois conselhos, magistrados, guarnecendo os degraus d'esse vasto amphitheatro, que era um verdadeiro throno, sobre o qual se elevava o altar da patria, de que os directores, com as suas tunicas, lembravam os sacerdotes.
D'este espectaculo fascinador o Caramurú só desviava os olhos para contemplar a sua formosa patricia. No meio da anciedade geral, ouviu-se ao longe as bandas marciaes entoarem a Marselheza, e pouco depois a artilheria, formada proximo do palacio, salvava annunciando a chegada ao Luxemburgo do vencedor de Arcole, de Rivoli de Montenotte e de tantas outras batalhas.
-- Eil-o! Eil-o! -- exclamou o Caramurú, indicando ao seu amigo a figura franzina de Napoleão, que apparecia, acompanhado por Talleyrand, causando a admiração geral o seu rosto pallido, de feições correctas, como a effigie de uma moeda antiga, em que destacava o seu olhar agudo, de aguia.
-- Viva a republica! Viva Bonaparte! -- gritou a multidão.
Acalmada a emoção geral, Talleyrand começou um breve e habil discurso, pondo em relevo os meritos e talentos de Napoleão, que apresentou como isempto de ambições.
-- Que tal é o receio que os directores teem da competencia que lhes póde fazer Bonaparte, que não fazem senão apregoar como sua virtude principal; a modestia das suas aspirações pessoaes!...
-- E' que na verdade as suas grandes concepções e planos são todos no interesse exclusivo da patria...
-- Has de ser toda a vida creança! -- replicou José Bonifacio.
Escutemos. Vae fallar o general.
-- O que dirá?! Attenção! -- concluiu o Caramurú, todo attento ao que o heroe ia proferir.
No meio de um silencio religioso Napoleão, em um tom firme e peremptorio, não fez um discurso, mas, em breves periodos, estabeleceu proposições dizendo:
«Cidadãos!
«O povo francez para ser livre tinha de combater os reis.
«Para obter uma constituição fundada sobre a razão, havia dezoito seculos de preconceitos a vencer.
«Vós e a constituição do anno III triumphastes d'estes obstaculos.
«A religião, o feudalismo, a realeza teem ha vinte seculos governado a Europa; mas a paz que acabaes de estabelecer, marca a era dos governos representativos.
«Conseguistes formar a grande nação cujo vasto territorio só é circumscripto pelos limites que a natureza lhe poz.
«Fizestes mais. As duas mais bellas partes da Europa, out'rora tão celebres pelas artes, pelas sciencias e pelos grandes homens de que foram berços, vêem com as maiores esperanças o genio da liberdade elevar-se do tumulo dos antepassados.
«São dois pedestaes sobre que os destinos vão collocar duas poderosas nações.
«Tenho a honra de vos entregar o tratado assignado em Campio Formio, e ratificado por sua Magestade o imperador.
«A paz assegura a liberdade, a prosperidade e a gloria da republica.
«Quando a felicidade do povo francez se firmar em melhores leis organicas, a Europa inteira tornar-se-ha livre.»
Estrondosas acclamações retumbaram, acolhendo a curta peroração do libertador.
-- Então?! não admiravel o que disse?! -- perguntou o Caramurú ao amigo..
-- Admirável, é, decerto, como theoria, e fino como progamma politico, apezar da apregoada modestia... Olha, agora ahi lhe vae responder a rapoza velha de Barrás! Ouçamos...
De facto, n'aquelle momento, o presidente do directorio, e já previsto contrario de Bonaparte, começou um longo e diffuso discurso, em que seguiu tambem o caminho de pôr em evidencia a modestia e simplicidada do heroe, lamentando, porém, com finura, que não estivesse presente para o festejar o seu camarada Hoche, outro general illustre da republica, cujos serviços pôz também em evidencia, e que era o rival supposto de Napoleão.
E por fim, fazendo-se echo da opinião preparada pelo directorio, para afastar de novo Bonaparte de Paris e da politica activa, propunha que elle fosse colher novos louros na expedição contra a Inglaterra.
-- Ora, aqui tens a moralidade do caso: Napoleão é um homem excepcional, modestissimo, grande patriota, mas... querem-n'o a distancia do governo!...
-- Depois discutiremos esse ponto,-- replicou o Caramurú um tanto abalado nas suas convicções. -- Deixa-me agora dar attenção ao hymno do Chenier.
-- E á tua bella, tão attenta como tu ás harmonias.
-- Estás hoje de bom humor!
-- E tu, entre Deus e os anjos, -- tornou sorrindo José Bonifacio ao Caramurú a um tempo enlevado na musica e dirgindo apaixonados olhares para a gentil menina, que tambem não tirava os olhos d'elle.
-- Deixa que não me faltará tempo para voltar ás durezas da vida, pois como diz o poeta: as horas de prazer voam ligeiras...
-- Bem! Pódes sonhar á tua vontade...
Emquanto o hymno se executava, dois militares afamados, Joubert, o heroe do Tyrol, e Andreossy, um dos mais celebres officiaes da artiiheria republicana, approximaram-se de Napoleão, trazendo a bandeira magnifica, de seda, cheia de inscripções em letras de ouro, contendo todos os feitos do exercito de Italia, e que ao mesmo exercito offerecia o directorio, celebrando a terminação da campanha.
Fallaram ainda estes officiaes, que depois apertaram a mão a Barras; e quando este, a seu turno, veio saudar Bonaparte, os membros do directorio, n'um movimento, estudado ou espontaneo, lançaram-se successivamente nos braços do heroe.
-- E' a peça final! -- commentou José Bonifacio...
Novas acclamações romperam por todo o recinto, as musicas tocaram de novo a Marselheza, troaram os canhões, e no meio de saudações delirantes, Napoleão fez a sua retirada solemne.
-- Então? Então? Qual é a tua impressão de tudo quanto vimos? -- perguntou o Caramurú ao seu companheiro. -- Mas vem depressa! quero seguil-a a casa -- e referia-se á desconhecida beldade.
-- E' que, como diz o proverbio francez: quem muito abraça, pouco aperta. Não é grande, creio bem, a amizade do directorio por Napoleão, a quem abraça, mas nem por isso a França, deixará de se lançar nos braços d'este, mais dia menos dia, e veremos o que elle faz, -- respondeu José Bonifacio seguindo o apressado amigo.
-- Ainda bem! respondeu o Caramurú, sem perder de vista a escada das tribunas -- e concluiu, com alegria -- Ah! eil-a que desce!... Chegamos a tempo.
-- Ainda mal, digo eu: Napoleão quer mais guerras, e ao nosso paiz o que convém é a paz; Bonaparte é dos vultos preponderantes menos affectos ao nosso ministro plenipotenciario Antonio de Araujo. Olha! justamente elle ahi desce tambem... Lá se encontrou com a tua futura...
-- Veremos que noticias ha esta noite das negociações. Irei á legação...
-- Tu queres saber noticias mais e a respeito d'aquella gente...
N'essa noite, com effeito, não deixou o Caramurú de ir visitar o ministro portuguez, e d'elle soube que a gentil menina que o interessava era effectivamente portugueza, nascida no Brazil.
-- E' orphã, -- disse-lhe o ministro. -- Seu pae morreu, coronel de um regimento mandado de Portugal a requisição de Mendonça Furtado...
-- O irmão do grande Sebastião de Carvalho, que foi capitão general do Maranhão e Pará?
-- Exactamente. Quando se tratava da delimitação das fronteiras com a Hespanha. Morto elle, por pedido da poetisa napolitana, Leonor Pimentel... sua parenta.
-- Ah! são parentas? -- interrompeu o Caramurú, impressionado ao ouvir citar essa mulher por quem já se apaixonára tambem.
-- Sim. Sebastião de Carvalho, abriu uma excepção á lei, e permittiu que a menina, que hoje viu no Luxemburgo, viesse educar-se no convento de Chellas; e agora, vae a Italia agradecer á sua parenta esse obsequio...
D'ahi a dias n'um grupo de membros da colonia portugueza, em que se achava D. Manoel de Mascaranhas, tio da formosa patricia que o Caramurú cortejava, e a quem já fôra apresentado, discutiam-se os engrandecimentos da França, a ruptura das negociações de Lille com a Grã-Bertanha, e a difficeis circumstancias em que se achava Portugal, que até ali tergiversára, não tendo ratificado o tratado negociado por Antonio de Araujo, o qual o directorio já mandara sair de Paris, e que só extra-officialmente obtivera a concessão d'um praso de demora, que estava a expirar.
Sabia-se a má vontade de Napoleão a respeito de Portugal, e as intrigas movidas contra o ministro portuguez por Barrás e Talleyrand.
-- Praza a Deus que tantas glorias possam emfim ser dignamente rematadas com a paz.
-- Esperemos que sim! -- replicou o Caramurú. -- Ainda ante-hontem estive com o nosso embaixador, que tem as melhores esperanças na proxima ratificação do tratado entre a França e Portugal. Muito interessa elle ao nosso Brazil. Antonio d'Araujo conseguiu uma grande victoria a respeito dos territorios que nos eram contestados na America...
-- Sim. Tambem m'o repetiu.
-- Condição não menos importante é que entre a França e Portugal se observe reciproca neutralidade.
-- Ah! se tudo isso se realisasse, poderia emfim Portugal respirar, e dedicar-se em socego a reparar tantas desgraças soffridas, e a fazer emfim prosperar o Brazil! -- exclamou José Bonifacio.
-- Bem o precisa esse tambem... Sem paz interna não será possivel reparar os estragos das luctas com os francezes, e acabar com esse estado latente de inquietação e desconfiança entre a colonia e a metropole, que já deu a primeira tentativa separatista, na louca revolução tentada pelo Tiradentes...
-- E a clemencia da rainha não baixará, finalmente, sobre os que ainda estão deportados por esse delicto?
-- E' duvidoso. Infelizmente, as idéas reaccionarias accentuam-se cada vez mais em Portugal; é isso que me conserva afastado da patria, de que já estou ausente ha tantos annos.
N'este momento, acercou-se do grupo um outro filho illustre do Brazil, Manoel de Arruda Camara, que egualmente seguia, como José Bonifacio, o estudo das sciencias naturaes pensionado pelo estado. Trazia na mão uma carta, cuja leitura lhe deixára carregado o semblante.
-- Noticias de Lisboa? -- perguntou-lhe o Caramurú.
-- Sim, meu amigo... e desagradaveis para os que vivemos em França...
-- Então?
-- O ministro Luiz Pinto de Sousa Coutinho parece decididamente curvar-se ás imposições da Inglaterra.
-- N'esse caso, a situação de Antonio de Araujo aqui, juncto do directorio, torna-se insustentavel.
-- Bem difficil é ella já. Ainda hontem o nosso representante m'o disse na legação com amargura: passou o dia marcado para a troca das ratificações, o directorio convidou-o a sair de Paris, declarando rotas as negociações, e só por attenção pessoal para com elle, lhe concedeu o mez de espera que pediu.
-- Mas de Lisboa o que informam?
-- Que o tratado se não ratificará. Reina ali o terror depois que se romperam as negociações de Lille entre a França c a Gran-Bretanha. Receia-se que de novo a guerra se accenda, e a Hespanha, dominada pela republica, deixe os seus exercitos entrarem em Portugal.
-- Faz bem Luiz Pinto! não haja duvida, em facilitar a Napoleão o fazer da Peninsula theatro das suas victorias como tem sido a Italia -- accrescentou o joven Caramurú.
-- Se nos ouvissem falar assim em Portugal, longe de nos chamarem patriotas, ter-nos-hiam por jacobinos.
-- Tal é a desorientação que lá reina, que dizer a verdade francamente, é ser considerado traidor...
-- Pouco se me daria...
-- Ainda bem que vos noto essa disposição de espirito, para que vos não incommodeis com as admoestações que, supponho, por recommendação de vossos parentes, o nosso ministro está encarregado de vos fazer...
-- A mim?! -- respondeu altivamente o Caramurú.
-- A vós mesmo... Hontem me pediu Antonio de Araujo para vos dizer que o procureis.
-- Ainda hoje o irei vêr.
-- Serão, como d'outras vezes, receios dos paes da vossa futura esposa de que a alma se vos perca n'este convivio das bas bleus do directorio...
No dia immediato, o Caramurú procurou o representante de Portugal. Foi encontral-o doente, de cama, occupado a pôr em ordem documentos officiaes e cartas particulares, muitas das quaes, depois de as ter lido, mandava inutilisar por empregados da legação que lhe assistiam.
-- Sêde bem vindo, meu amigo, -- disse-lhe Antonio de Araujo.
-- Ignorava que V. Ex.ª estivesse doente, sem o que teria já vindo informar-me do seu estado...
-- Isto não vale nada... Resultados do excesso de trabalho e dos cuidados em que ando, graças á desorientação da nossa gente de Portugal, -- respondeu o ministro com modo apprehensivo.
-- Não se ratifica o tratado? -- animou-se o Caramurú a perguntar.
-- Perdôe-me pedir-lhe para não falarmos em tal, -- replicou o diplomata com visivel amargura. -- Por mais acostumado que esteja a conter os meus sentimentos, n'esta espinhosa tarefa de representante de uma nação fraca e mal dirigida, difficil me é conservar animo sereno quando a tal respeito falo com portuguezes de confiança...
-- Comprehendo como deve ser angustiosa a sua situação...
-- Em Portugal não se tem uma idéa, sequer approximada, da tempestade imminente sobre a nossa terra, que longe de conjurar, só fazem por attrahir... Quando a quizerem afastar será tarde . . . Bem o tenho dito a Luiz de Sousa Coutinho. Mas falemos do que importa... O tempo urge, e não convem que vos demoreis aqui... Poderia resultar- vos algum incommodo...
-- O que pretende V. Ex.ª dizer? -- retorquiu com interesse o Caramurú, vendo a apprehensão do embaixador. -- Terão por acaso fundamento os boatos que teem corrido das desconfianças do directorio a respeito de V. Ex.ª?
-- Sei quanto me sois dedicado, sr. Diogo Alvares.
-- Chame-me V. Ex.ª, sem cerimonia, Caramurú, como toda a gente...
-- Bem vos fica honrar-vos de usar esse nome!... Pois muito particularmente vos digo que tudo devo esperar... Talleyrand e os seus collegas são capazes de tudo... A politica e a diplomacia, n'estes tempos, não olham os meios, e só attendem aos fins...
-- Comprehendo, comprehendo, -- e o Caramurú e o ministro trocaram um olhar de intelligencia que era um commentario aos sabidos presenres de barras d'ouro do Brazil, com que o negociador portuguez arrancára as condições favoraveis do tratado.
-- O tempo urge, repito. Preciso acabar de pôr em ordem papeis importantes, e estar prevenido para o que der e vier. Chamei-vos para vos entregar estas cartas da vossa familia, vindas com grande recommendação na mala official, e para mais uma vez, a pedido de vossos parentes, vos aconselhar a que vos não deixeis perverter pelas idéas jacobinas...
-- Tal preoccupação vae-me parecendo monomania...
-- E' que não fazeis idéa do estado dos espiritos em Portugal... A reacção campeia mais livre do que nunca..
-- Por isso não volto para lá, apezar das recommendações...
-- Mas lembrae-vos da vossa futura esposa.
-- Que eu apenas vi, sequer... Um casamento que outros trataram por mim!
-- Uma santa menina, cheia de amor por vós, e de boa fé, segundo affirmam...
-- E eu acredito...
-- No vosso caso, antes iria para o seu lado, prócurar encaminhal-a para as sãs idéas e esclarecel-a...
-- Ahi está v. ex.ª a exercer o seu papel de diplomata, cumprindo discretamente o encargo de me convencer, que lhe deram.
-- Não! Como amigo! por minha inspiração vos falava. Mas lêde; lêde, e retirae-vos, não tenhaes algum dissabor... O terreno da legação, que pizaes, não é seguro n'este momento...
Emquanto o Caramurú se afastava para o vão d' uma janella, a abrir as cartas que o embaixador lhe entregára, este continuou pondo em ordem os seus papeis.
O Caramurú estava prestes a findar a leitura da carta da sua futura esposa, que, como elle dissera, lhe era quasi desconhecida, pois se tratava d'uma combinação de familia, e que parecia causar-lhe grande impressão, quando subitamente entrou o mordomo, com o semblante afflicto de quem é portador de grave noticia:
-- Sr. ministro! veem prender a v. ex.ª!
Antonio de Araujo, embora sciente d'uma parte das intrigas contra elle urdidas por Jorge Pope e Viscovi, dois especuladores do demi-monde, de quem se servira como agentes, para comprar com muitos milhares de cruzados, influentes politicos que facilitassem a negociação do tratado de paz, recebeu um grande choque, mas logo recobrou a serenidade de animo.
-- Fazei entrar as auctoridades.
O mordomo sahiu, e entretanto o ministro mandou levar e queimar immediatamente os papeis rasgados. Depois, muito sereno, esperou recostado no leito.
Passados momentos, entrou um agente do ministro da policia Sotin, que, inclinando-se, leu o seguinte mandado de captura:
«Ministerio da policia geral da republica franceza -- Liberdade-Igualdade-Fraternidade. Paris, 8 de Nivose, anno 6.° da republica. O directorio executivo, em virtude do art. 145.º da Constituição, e considerando que o sr. Araujo de Azevedo, ex-ministro plenipotenciario da rainha de Portugal em França, é indiciado de ter durante a sua residencia em França conspirado contra a segurança interna, e especialmente de haver urdido uma trama, por meio da qual se pretendia comprometter alguns dos membros do governo; determina que o dito Araujo d'Azevedo seja preso, que se ponham os sellos nos seus papeis, em todos os seus moveis, ouro e prata, depois de separados aquelles dos ditos papeis que puderem parecer suspeitos, e que sejam immediatamente remettidos ao ministerio da policia geral. Ordena a todos os executores de mandados de justiça que conduzam sem demora o dito Araujo de Azevedo ao Templo, na Communa de Paris, e ao director d'esta casa de detenção que o receba, tudo em conformidade com a lei;
Encarrega a qualquer commandante da força publica que preste auxilio em caso de necessidade para a execução do presente mandado de prisão:
Os ministros da policia geral e da justiça, cada um no que lhe toca, executem a presente resolução, que não se imprimirá. Conferido com o original. O presidente do directorio executivo, Barras.
Pelo directorio executivo, o secretario geral Lagarde. Está conforme. O ministro da policia geral Sotin.»
-- Estou de cama, como vêdes; não posso acompanhar-vos.
-- Sinto dizer-vos, senhor! que tenho de cumprir esta ordem, sem attender a observações de qualquer natureza que sejam.
-- Muito bem! Vou vestir-me e seguir-vos-hei, depois de ter lavrado o meu protesto contra esta violação do direito e de todas as leis e principios de cortezia, que hoje mesmo farei distribuir ao corpo diplomatico.
- Como entenderdes, -- limitou-se o agente a dizer.
D'ahi a pouco, o ministro, tendo lavrado o seu protesto dirigido a Talleyrand, despediu-se dos compatriotas, e seguiu para o ministerio da policia, sendo n'esse mesmo dia encarcerado na prisão do Templo.
Decorreram bastantes mezes, em que todos os portuguezes residentes em Paris seguiram com anciedade os azares das negociações com a França, e as reclamações para ser posto em liberdade o ministro.
Desgostoso com taes successos, dizia o Caramurú a José Bonifacio :
-- Com a fraqueza com que os nossos estadistas se estão deixando humilhar por todos os gabinetes extrangeiros... qualquer dia deixo a Europa e vou estabelecer-me para sempre nas minhas terras do Brazil...
-- N'isso farias bem.... Entretanto, convence-te, não nos fica mal sahirmos de Paris... como te é recommendado pelos teus parentes...
-- Onde querias tu ir agora continuar os teus estudos?
-- Em Napoles. Desejo avistar-me com a nossa erudita compatriota Leonor da Fonseca Pimentel...
Ouvindo pronunciar este nome, o Caramurú ergueu-se de repente, como tomado de forte emoção, e, desconfiado, interrogou:
-- E convidas-me para isso?!
-- Porque não? -- respondeu José Bonifácio naturalmente, sorrindo. -- Só se ainda receias ser outra vez assaltado pela tua antiga paixão...
O Caramurú ficou alguns momentos absorvido nos seus pensamentos; depois, como quem toma uma resolução, concluiu:
-- Estou persuadido que estás feito com os meus, para me experimentarem...
-- Eu?!
-- Ou então, é grande forca do acaso. Hoje és tu que me incitas a tornar a vêr Leonor Pimentel; hontem era esta carta que recebi da minha futura mulher. Lê este periodo... -- e deu-lhe a carta.
-- «Tanto não tenho já ciumes, como julgas, que te peço voltes a Napoles, a dizer da minha parte a Leonor, que lhe faço inteira justiça, e sou sempre a sua amiga dedicada e admiradora do seu talento.»
-- Não será estranha coincidencia?...
-- Provaria isso que tua prima, falando-te como um livro aberto, te diz coisa que não destôa do meu conselho de amigo.. Essa experiencia de ti mesmo, tambem eu a julgo opportuna.
-- Pois seja. Vamos a Napoles. Será uma ultima estancia d'esta peregrinação atravez da Europa, que o Caramurú, meu antepassado, impoz aos seus descendentes, e que essa minha creancice de ha um anno em Roma tem feito prolongar, em razão das coisas assombrosas que foram dizer em Lisboa. Vamos a Napoles! -- concluiu enthusiasmado.
II
No mar Tyrreno
A veleira barca franceza Jeanne d' Arc deixára, havia tres dias, o porto de Marselha, seguindo a sua curta derrota para Napoles.
Seguiam n'ella, como passageiros, o Caramurú e José Bonifacio. Do dialogo que, á ré, sobre a coberta, entretinham, concluia-se que a bordo vinham tambem D. Manoel de Mascarenhas e a sobrinha.
-- Como tu conseguiste saber que viriam n'este navio! -- dizia o naturalista em tom admirativo. -- E's realmente perito em questões de namoro.
-- Estás completamente enganado ! Não fiz a menor indagação, para embarcar no mesmo transporte.
-- Foi então obra do acaso?! -- replicou sorrindo o incredulo José Bonifacio.
-- Decerto! A não ser que os papeis se tenham invertido, e que em logar de eu ser o indagante, fosse o indagado...
- Como?
-- Nas ultimas vezes que nos encontrámos em Paris, foi D. Manoel quem me perguntou: quando e em que navio tencionavamos seguir de Marselha para Napoles!...
-- E' celebre! Haverá aqui trama? -- concluiu ironico o estudante. -- Quererá a sua formosa sobrinha fazer-te quebrar esse historico compromisso de casamento que tens em Portugal, arrebatando-te a essa noiva que é para ti quasi um mytho, porque desde que sahiste, creança ainda, do Minho, nunca mais a viste?
-- Ahi vens tu com gracejos. Isto, é apenas mais um episodio amoroso na minha vida, e que não tem importancia...
-- Como o de Napoles, não é verdade? Pois acautela-te, que Leonor Pimentel está agora viuva, e pódes novamente apaixonares-te; o que vale é que este teu novo romance fará diversão ao antigo.. E's um homem fadado para amores!...
-- Não sejas indiscreto... Cala-te, -- atalhou apressado o Caramurú, vendo surgir, quasi repentinamente, ao seu lado, d' uma escotilha, como apparição magica, a formosa brazileira, seguida pelo tio.
-- Bons dias, meus senhores. Vejo que são marinheiros, que se dão bem com o mar, -- disse-lhes sorrindo.
-- Não admira! Ha muito que viajamos...
-- V. ex.ª é que me admira, - observou amavel o Caramurú; -- em geral as senhoras incommodam-se com o balanço, e a Jeanne d' Arc marcha bem, mas salta sobre as ondas como uma corça...
-- Até me faz bem este baloiçar constante. De noite, embala-me e faz-me dormir melhor; de dia, não me incommoda e da-me excellente appetite, o que em terra nem sempre tenho.
José Bonifacio afastára-se, entretanto, com D. Manoel, para a prôa, d'onde o capitão da barca, com um occulo, interrogava attento o horisonte.
-- V. ex.ª estava talhada para esposa d'um marinheiro... Poderia passar toda a vida embarcada.
-- Deus me livre! Gosto das viagens por mar, uma vez por outra... Mas trocar o elemento solido pelo liquido, permanentemente, isso não! Lá diz o proverbio: por terra anda a rapoza...
-- Pois sinto... Já pensava em me fazer marinheiro... Era uma probabilidade...
-- Ahi recomeça com os seus galanteios de Paris... Já esqueceu o meu sermão e os meus conselhos?...
-- Então? se a sympathia que v. ex.ª me deve, é mais forte do que todas as sensatas considerações...
-- Não, não é esse o motivo... mas o que lhe dizia o seu amigo quando eu surgi d'aquella escotilha, como figura de theatro d'um alçapão. Elle bem lh'o disse: o sr. Diogo Alvares...
-- Chame-me v. ex.ª Caramurú. Prefiro-o...
-- E' um predestinado para lances amorosos. Não lhes póde resistir, e por isso não attende aos conselhos que lhe dei. E' o caso: chassez le naturel, il revient au galop.
-- E até aqui mesmo, á vista d'essas formosas costas da Italia, paiz da arte, da poesia e de amores; sobre este mar de idyllios, que vamos atravessando; a bordo d'esta esbelta embarcação, cujo nome recorda um dos mais admiraveis typos de mulher, enthusiasta e digna de todos os preitos e homenagens, v. ex.ª quer que eu vença esta tendencia do meu coração, levado naturalmente, bem o sei, para adorar tudo que é digno de ser adorado, como v. ex.ª...
-- Cuidado! sr. Diogo Alvares, com as suas invocações... Estamos brincando, como creanças, convenho, mas nem brincando se toca em venerandas imagens: Jeanne d'Arc é um d'esses entes intermedios entre a humanidade e a divindade, que não pódem ser chamados para desculpa de peccadilhos, e só como exemplo de virtudes superiores. Jeanne d' Arc era o typo da lealdade... Lembro-lhe este nobre dever. Recorde-se da sua noiva de Portugal... Não esqueça que vae a Napoles em romaria de contricção, e exame de consciencia, para averiguar se lhe passou de todo essa outra paixão pela minha amiga, a grande poetisa Leonor Pimentel...
N'este momento, ouviu-se um tiro distante no mar, e logo depois o capitão dizendo da ponte para os passageiros que, na coberta, de occulos assestados, observavam o horisonte:
-- Não ha duvida! São as esquadras de Nelson e do marquez de Niza, que se encontram e saúdam.
-- Se andam por estes sitios, graves successos se terão dado nas Duas Sicilias.
-- Quando aqui estive, ha um mez, era cada vez maior a perseguição contra os patriotas. No castello de Sant'Elmo já não cabiam mais prisioneiros.
-- Pobre Leonor! Tremo por ella! E nós aqui a brincarmos a seu respeito. Queira Deus que não vamos assistir em Napoles, a tristes acontecimentos.
-- Tambem o receio, -- respondeu o Caramurú, arrancado por momentos ás suas paixões. -- Estou curado a respeito de amor por ella, mas tenho-lhe verdadeira amisade, e sei que vive nos maiores perigos depois que se tornou a alma da revolução, como redactora do Monitor de Napoles.
- Se nós conseguissemos arrancal-a d'ali e trazel-a para Portugal.. Isso sim, isso seria empreza digna de si e de mim, e na qual não teria duvida em nos associarmos...
-- E porque não?! Sou um escravo de v. ex.ª.
-- Escravo?! E' incompativel tal situação com um patriota! Basta que seja meu alliado...
-- Serei o que v. ex.ª quizer, comtanto que lhe mostre a minha dedicação..
-- Pois á noite esboçaremos um plano. Agora, veja: as esquadras approximam-se, e parecem até dirigir-se para nós.
-- Olá! O que nos quererá o inglez, para me estar pedindo a bandeira? -- exclamou o capitão com o occulo dirigido para os navios inglezes.
-- Sabeis a condição com que tomei passagem no vosso navio, estando, póde dizer-se, novamente declarada a guerra entre a republica e a Grã-Bretanha, depois que se romperam as negociações de Lille, -- disse D. Manoel.
-- Perfeitamente, senhor! E cumprirei o que vos prometti, embora me custe. Descançae, que não sereis incommodado.
-- N'esse caso, o que tem de ser, seja. Olhae, d'um dos navios inglezes deitaram um escaler ao mar..
-- Pois não teremos de receber a sua desagradavel visita! -- E com surpreza dos demais passageiros, que não sabiam das condições estabelecidas entre o fidalgo e o capitão, para o caso de encontrarem navios de guerra inglezes, este mandou içar a bandeira portugueza.
-- Muito bem! Muito bem! -- exclamou novamente o tio da formosa brazileira, -- poderemos seguir o nosso caminho sem sermos incommodados. Os nossos alliados portam-se correctamente... Lá voltou já o escaler para o navio...
-- Os nossos alliados! -- disse com accentuado desdem a sobrinha. -- Tomára não ouvir falar em tal gente...
-- Não sabes o que dizes, Margarida!... Se não fossem os inglezes, o que teria já sido de Portugal e do Brazil?... Estavamos nas mãos dos francezes ha que tempos...
-- O que equivale a dizer que as nossas patrias se acham entre Scylla e Charybdes -- observou o Caramurú approximando-se.
-- Ah! V. Ex.ª, é também anglophobo como Margarida...
-- Bem! agora são os seus patricios, sr. D. Manoel -- exclamou o commandante, -- que deitam uma embarcação ao mar. A esses é que não podemos deixar de receber, desde que arvorámos a sua bandeira.
-- Decerto! Decerto! E estae seguro que nos tratarão bem, e nos deixarão seguir para Napoles. Na esquadra do Marquez de Niza tenho não só muitos officiaes conhecidos e amigos, mas até parentes.
-- A' la bonne heure, -- replicou o commandante. -- Vou mandar arriar a escada de portaló, -- e afastou-se para dar as suas ordens.
Emquanto Margarida e o Caramurú reatavam o seu interrompido dialogo, D. Manoel, chamando de parte José Bonifacio, que, estranho a quanto se passava, lia attentamente um livro, disse-lhe confidencialmente:
-- Tinha graça que se encontrasse a ronda com a justiça... no alto mar...
-- Não percebo, -- respondeu o sabio, mal disposto por se ver perturbado nos seus estudos...
-- Lembra-se da nossa ultima conversa em Paris?
-- A respeito do outro pretendente á mão de sua sobrinha?
-- Sim! Meu sobrinho tambem... Primo d'ella... E' isso mesmo...
-- E então?
-- E' tenente d'uma das fragatas da esquadra do Marquez de Niza...
-- Perfeitamente... E depois?
-- Não tinha graça, que fosse elle quem viesse n'esse escaler?
-- Seria uma fortuna... para lhe tirar essa paixão. Permitta V. Ex.ª que lhe diga: a sr.ª D. Margarida tomou muito a serio os seus antigos compromissos...
-- Infelizmente! Infelizmente! -- murmurou entre dentes o fidalgo. Mas immediatamente, mudando de expressão e com o maior contentamento, exclamou: -- Pois é elle! Não ha duvida! Parecia que o coração m'o adivinhava...
-- Elle quem?! -- perguntou Margarida approximando-se.
-- Teu primo! O nosso Alexandre! E' o official que vem no escaler!
-- Pois digo-lhe que tem artes magicas para ser massador! Nem sequer no mar deixa de nos perseguir!
-- E tu! continuas, como sempre, a ser o mais desobrigante possivel para com elle.. Queira Deus te não venhas a arrepender... Bem me entendes...
Só terei que me queixar de mim...
Mas D. Manoel já a não ouviu, porque todo era olhos para o escaler, que se achava já pertissimo, e com o qual trocava animados signaes.
D'ahi a pouco, abraçava orgulhoso o tenente da marinha portugueza, mal este punha o pé no convez da Jeanne d' Arc, e com ufania o apresentava ao Caramurú e a José Bonifacio:
-- Meu sobrinho Alexandre de Mascarenhas! -- e trocados os cumprimentos, concluiu: -- Isto é que se chama um feliz accaso!
-- Não tanto accaso, como pensa, meu caro tio. Recebi ha dias em Napoles a sua carta annunciando-me o dia da sua partida de Marselha, e a precaução com que viajaria em navio francez; e por isso, vendo a Jeanne d'Arc, que tanto nós, como os inglezes, bem sabiamos não ser portugueza, arvorar a bandeira azul e branca, tive suspeitas de que o conduzia, e pedi para vir no escaler, com a esperança de o encontrar e á prima, que não vejo!... Estará incommodada?...
-- Não! Não tarda ahi, -- e D. Manoel a custo disfarçava o seu mau humor por a sobrinha se ter retirado.
-- Onde se dirige a esquadra?
-- Andamos cruzando. A'manhã ou depois voltaremos a Napoles.
-- Ah! então lá nos encontraremos...
-- Sim, mas não lhe aconselho a que se demore. Aquillo está por lá muito agitado.
-- Então?!
-- Os jacobinos, os taes patriotas napolitanos! não querem ter juizo... apezar da licção que receberam depois da capitulação..
-- Desculpe V. Ex.ª que o interrompa, -- observou o Caramurú, com o sentimento previsto de quem se dirigia a um inimigo politico e a um rival em amor -- foi um logro, uma traição de Nelson, que prendeu e fez julgar os que, fiados na sua palavra, se tinham embarcado com o fim de emigrarem para França...
-- Ora! na guerra, como guerra! -- respondeu o tenente...
-- Perdão! não é tanto assim, e exulto por que ao menos o nome de Moreira Freire não figurasse na capitulação violada pelo rei Fernando das duas Sicilias, já que a complacencia do nosso governo deixou que tropas portuguezas se juntassem a esse famoso exercito do cardeal Ruffo, o exercito chamado dá Santa Fé, de que fazem parte os grilhetas de Panedigrano, e os salteadores de Mammone e de Fra Diavolo!
-- Vejo que o sr. Diogo Alvares está saturado das ideias predominantes em França. Não admira, vivendo n'esse paiz ha bastantes annos. Conhecemo-nos ha um instante, e por isso não posso aconselhal-o como amigo; mas desejaria, se m'o permittisse, fazer-lhe, como patricio, uma prevenção...
-- Ouvil-a-hei...
-- Em Napoles, para onde se dirige, não exponha com tanta franqueza, a toda a gente, essas ideias... Seria arriscado...
-- Mas, não digo senão a verdade!...
-- Póde ser, não discuto, porque não costumo discutir os principios que, como militar, tenho obrigação de combater...
-- E eu direi a v. ex.ª que, se fosse militar, não defenderia causas que não podesse discutir... Passou o tempo do homem combater cegamente, sem saber se as idéas que defende são ou não justas...
-- Tambem isso é possivel, e também não discuto... São modos de encarar as coisas. O que não invalida a prevenção que lhe fiz.. Por expender no Monitor Napolitano idéas como essas, ainda estes dias esteve para ser preza a nossa patricia, e parenta afastada, Leonor da Fonseca Pimentel.
-- Preza! Leonor! Um tamanho talento e uma tão grande alma! Seria mais uma cobardia d'esses reis, seus antigos amigos! -- exclamou Margarida, que chegáva.
-- Oh! minha prima! disse o tenente, admirado com a inesperada intervenção. -- Como está exaltada! Sinto notar os progressos que as suas idéas fizeram em Paris..
-- E eu estimo até muito que as note, para conhecer que são cada vez mais differentes das suas...
-- Linda forma, na verdade, de receberes o Alexandre, que aqui veio só para nos ver...
-- Não é tanto assim, meu tio volveu o official, despeitado com aquelle acolhimento. -- Trago encargo a cumprir junto do capitão d'este navio, e como não posso demorar-me, permittam que vá tomar as suas declarações.
E afastou-se seguido pelo tio, em quanto Margarida, consternada, dirigindo-se ao Caramurú com uma intimidade effusiva, que elle não deixou de notar, lhe disse:
-- Leonor corre perigo!... Agora mais do que nunca precisamos unir os nossos esforços para a arrancarmos a tal situação...
-- N'isso, como em tudo, o meu coração só pode estar ao lado de V. Ex.ª a combater pela mesma causa...
-- Deixemos o coração de parte, por agora--, replicou Margarida sorrindo. -- Das nossas razões, frias e socegadas, é que precisamos, para lhe valer.
-- Mande V. Ex.ª... eu obedecerei...
-- Não!... Antes de chegarmos a Napoles teremos tempo de formar um plano... Leonor é um espirito muito elevado, mas especialissimo... O sr. Diogo Alvares deve sabel-o.. Creio que a conhece intimamente... Ouvi até dizer que foi já um dos seus apaixonados.... - concluiu com um risinho motejador...
-- Quer castigar-me recordando-me essa creancice?
-- Creancice?! Mas foi hontem! póde dizer-se... Porque não julgarei creancice tambem os protestos que me faz?
-- Desde então tenho pensado muito; tenho-me transformado; e pela primeira vez, quer v. ex.ª me acredite ou não, reconheço que encaro o amor a sério...
-- Sim?! -- replicou incredula, sorrindo...
-- Tanto a sério, que a todos os momentos penso na fórma, digna e razoavel, de romper esse compromisso que tenho desde creança, com uma outra creança tambem, que não me conhece, póde dizer-se, como eu a não conheço, porque tudo foi tratado por nossas familias... E' o que farei em chegando a Portugal.
-- Ah! estimo vêr a lealdade com que deseja proceder... Em Portugal nos veremos algum dia, e saberei o que conseguiu...
-- Ser livre decerto, para lhe poder offerecer o meu nome... Acceital-o-ha então?
-- Veremos... Isso ainda vem muito longe... Agora é na pobre Leonor que devemos pensar.
N'este momento, sahia o tenente da camara do capitão. Viu que a prima ainda estava conversando com o Caramurú, e despeitado disse ao tio, que o seguia:
-- Não me irei despedir, para a não incommodar... Os seus planos, meu tio, vão-se pela agua abaixo...
-- Não! Não! e não! -- replicou D. Manoel. -- Assim que chegar a Napoles, sob um pretexto qualquer, voltaremos para Lisboa. Porei termo a esta correria, em que condescendi para fazer a tal experiencia que ella dizia...
-- Experiencia que, diga-se a verdade, -- observou o tenente com visivel despeito, -- parece ir-lhe sahindo ás mil maravilhas....
-- Eu cá estou para lhe pôr impedimentos...
-- Deus queira que seja mais feliz do que até agora!...
E apertando a mão do tio e, abraçando-o, desceu a escada de portaló, e só do escaler, quando este já vogava afastando-se da barca, cumprimentou a prima e o Caramurú, encostados á amurada.
III
A martyr napolitana
Convém mostrar a situação que se dava em Napoles. A dois passos da França, o movimento das idéas liberaes da grande revolução de 1789, fizera-se ali repercutir, casando-se com as naturaes aspirações que abrigava o reino das Duas Sicilias, e que, germinando ainda por meio seculo, daria mais tarde a unidade italiana. Quando, pois, a revolução explodiu em França, o rei Fernando IV achou a occasião opportuna para eximir as Duas Sicilias á tutella do pontificado, e não quiz pagar a contribuição de sete mil ducados que annualmente dava ao papa.
Todo o povo o applaudiu, e Leonor da Fonseca Pimentel, uma das mulheres mais talentosas de Napoles, filha de portuguezes de Beja, que havia annos se tinham ido estabelecer em Roma, poetisa e profunda conhecedora de todas as sciencias, com a sua inspirada penna sustentára e defendera este movimento de libertação, inaugurado pela monarchia napolitana.
Leonor Pimentel era uma liberal convicta, embora n'esse tempo fosse uma palaciana, pois que exercia o cargo de bibliothecaria da rainha Maria Carolina, esposa de Fernando IV.
Quando, porém, a revolução tranceza se lançou nos excessos demagogicos e nas crueldades do terror, quando abateu a realeza, depois de ter destruido as velhas prerogativas da aristocracia, e levou ao cadafalso Luiz XVI e Maria Antonieta, o rei de Napoles, Bourbon aparentado com os da França, poz-se ao lado das nações que combatiam a republica, e renegou as ideias liberaes que admittira, congraçando-se com a côrte de Roma.
Começou uma lucta intestina, de que veio a brotar a revolução de Napoles, e a existencia ephemera da republica partenopêa, auxiliada pela entrada dos francezes nas Duas Sicilias, e depois a contra revolução determinada pela alliança da monarchia napolitana com a Inglaterra e as nações que, como Portugal, a seguiram, na qualidade de chefe da opposição feita á republica. Foi então que o chamado exercito da Santa Fé entrou em Napoles, commandado pelo cardeal Ruffo e composto dos mais variados elementos, como os grilhetas de Panedigrano, que o general inglez Stuart expulsára de Messina, os salteadores de Mammone e de Fra Diavolo, russos schismaticos, turcos, protestantes inglezes destacados da esquadra de Nelson e catholicos portuguezes igualmente destacados, sob o commando de Moreira Freire, da esquadra do marquez de Niza, que seguia a do almirante inglez na campanha do Mediterraneo, contra a França. O rei Fernando, que fugira para a Sicilia, voltou á capital, e, incitado pela rainha Carolina, ligada por estreita amisade com a embaixatriz ingleza Emma Lyona, amante do almirante Nelson, lançou-se nos excessos da contra revolução, atulhando o castello de Sant'Elmo, e outras masmorras, de prisioneiros liberaes.
Leonor da Fonseca Pimentel, que enviuvara em 1795, entrou com ardor na lucta politica, e, rompendo os antigos laços que a uniam á côrte, tornou-se a alma e a musa da revolução. Foi quem escreveu a Marselhesa Napolitana, e redigia com extraordinaria vehemencia o Monitor de Napoles, no momento em que segue a nossa narrativa. A sua existencia e a sua liberdade corriam o maior risco, e a todo o momento se esperava contra ella um acto de violencia, que a lançasse no carcere onde jaziam tantos milhares de patriotas.
O castello de Sant'Elmo, a prisão Marmetina e o castello Nuovo regorgitavam de prisioneiros politicos, que summariamente eram julgados pelo tribunal constituido no convento de Monte Oliveto, e que funccionava na grande sala do refeitorio, para o effeito guarnecida de preto, com um grande crucifixo collocado na parede, por detraz do estrado do presidente, e rodeado por trophéos das armas dos Bourbons de Napoles e de Hespanha.
O processo corria breve; todos eram condemnados, e, com a mesma sina fatal dos que, no tempo da senhoria de Veneza, tinham a desventura de atravessar a celebre ponte dos suspiros, os patriotas que entravam n'aquella sala do segundo andar de Monte Oliveto, passavam d'ali para a Vicarie, onde os esperava o oratorio, ultima estação antes do cadafalso.
Tal era o horror da situação em Napoles, e D. Manoel dizia mal á sua vida por ter consentido n'aquelle desejo da sobrinha de se encontrar com Leonor da Fonseca Pimentel. Os dias d'esta mulher celebre estavam contados. Vulto proeminente da revolução, o seu grande talento e as suas grandes qualidades de caracter tinham feito da sua pessoa um symbolo popular. Era nova, pois contava trinta e tantos annos, e depois que enviuvára, a dôr e o lucto em que vivia lançaram-n'a fanaticamente na lucta politica, apaixonada pelo ideal da emancipação do povo, e com a esperança intima, que lhe sorria, de encontrar na morte gloriosa da martyr politica o termo dos seus soffrimentos de viuva. Tinha, pois, a fé dos que já descontam a morte, como um allivio das desventuras da vida.
O povo adorava-a, fazia d'ella o seu idolo. Os seus artigos do Monitor Napolitano, vibrantes, escriptos com uma inspiração de poeta, que rivalisava com o grande Metastasio, e com um vigor que nenhum outro pamphletario da republica partenopêa attingira, eram devorados pelos patriotas sedentos de liberdade e cegos de furor contra as exacções de Nelson, do cardeal Ruffo e dos seus sicarios, fieis cumpridores do programma de violencias e perseguições com que os reis Fernando e Maria Carolina tinham voltado a Napoles, trazidos pelo almirante inglez, depois da sua fuga ao rebentar a revolução. E assim, Leonor Pimentel, alegrando-se sinceramente por conhecer Margarida e por tornar a ver o Caramurú, recusava obstinadamente o convite que lhe faziam para abandonar o movimento politico e vir com elles a Portugal.
-- Seria um acto de fraqueza indigno de mim, -- dizia-lhes -- desertar a causa que jurei, e pela qual estou disposta a morrer!
-- Mas, bem o sabeis, -- observou-lhe Margarida -- é uma causa irremediavelmente perdida.
-- Embora! o sangue dos martyres que vae correndo no cadafalso, não será perdido, e cimentará a liberdade futura d'este povo.
-- Tão nova! -- dizia-lhe o Caramurú -- bella e cheia de meritos e virtudes, maior e melhor seria o vosso destino em outro paiz, no qual, sem o sacrificio da vida, pudesseis egualmente trabalhar pelos principios liberaes.
-- Esta é a minha patria!...
-- Vinde comnosco, e se vos desagrada a reacção que em Portugal se accentua, passareis commigo ao Brazil, essa terra virgem, em que mais cedo ou mais tarde, a liberdade despontará brilhante...
-- Creio-o bem! E vós dois! novos, amantes e apaixonados, sois bem a personificação d'esse futuro ridente que espera a antiga Terra de Santa Cruz. Trabalhae pela sua emancipação, e será esse o melhor preito que prestareis á minha memoria.
-- Vindes sempre envolvendo os nossos negocios particulares com a causa da liberdade, -- observou-lhe Margarida. -- E comtudo, sabeis a situação delicada em que se acha o sr. Diogo Alvares, com o seu compromisso de casamento em Portugal...
-- Ora! -- observou a poetisa com um riso incredulo, perdendo por momentos o seu rosto a expressão de tristeza inspirada, que lhe era habitual. -- Qualquer dia vereis como eu tenho poder para desfazer esse compromisso, como desfiz essa paixão que por mim sentiu.. Quereis que o faça?
-- Não! não! -- atalhou Margarida, receiosa, dirigindo a Leonor Pimentel um olhar profundamente significativo, que o Caramurú surprehendeu, e o deixou intrigado.
-- Dir-se-hia -- não poude elle deixar de observar -- que tendes receio de que assim se esclarecesse a situação. Pezar-vos-ha mais romper com os sonhados projectos de vosso tio, da que a mim me custará quebrar esse historico compromisso com os meus parentes do Minho e de Lisboa?!
-- Vede o que são os homens! -- disse Margarida para a escriptora. -- Injustos em amor, como em politica; desconfiados, e arrogando-se já direitos quando ainda são pretendentes. O sr. Diogo Alvares já me accusa... E, não obstante, eu ainda nem sequer tomei compromisso algum a seu respeito...
O Caramurú ia desculpar-se, mas n'este momento chegou D. Manoel, que vinha buscar a sobrinha, e que muito contrariado se mostrou por ali o encontrar.
-- Ainda vos demoraes em Napoles, sr. Diogo Alvares?...
-- De certo! porque m'o perguntaes?...
Contente com a franca resposta, D. Manoel replicou:
-- Pois nós partimos brevemente...
-- Brevemente?! -- exclamou attonita Margarida.
-- Sim. Negocios importantes me chamam a Lisboa.Com sacrificio, como sabes, aqui me tenho demorado, sempre na esperança de que a nossa parenta -- e designava Leonor Pimentel -- ouvisse a razão, deixando a perdida causa dos seus amigos patriotas, que lhe ha de custar cara, para seguir a Portugal os parentes, seus amigos tambem... Mas visto que nada conseguimos, e que as coisas cada vez se complicam mais, resolvo partir... Já somos vistos com suspeita...
-- Minha querida Margarida, -- interrompeu Leonor Pimentel, num d'aquelles movimentos espontaneos do seu caracter varonil: -- é preciso que obedeças a teu tio sem uma réplica, e que não procures mais vêr-me. O que diz é verdade. A minha frequencia é perigosa.
-- Eu não queria dizer tanto, -- observou D.Manoel, surprehendido e pezaroso.
-- Mas digo-o eu, porque é a verdade... A'manhã, hoje ainda, talvez, serei preza. Estou avisada, e não fugirei... O meu nome figura n'essa lista fatal que o rei tyranno apresentou a Nelson ao voltar a Napoles!... Déste-me já a maior prova de amisade que me era possivel ter n'estes ultimos dias que passo no mundo, de que partirei sem saudades nem tristezas; e a lembrança da tua dedicação consolará as minhas ultimas horas, de tantas miserias e torpezas que a humanidade me tem revelado... Segue o teu destino, que deve ser risonho, se tiveres fé e energia para o cumprir... Margarida!
-- Terei!... Espero-o em Deus...
-- E vós, meu amigo! -- continuou a poetisa dirigindo-se ao Caramurú, -- voltae também ás vossas patrias, tendes lá mais e melhor que fazer do que em Napoles, onde pela causa da liberdade só devem ficar os que por ella teem de morrer... Lá o sol ainda não se ergueu e chama á acção e á lucta os que devem viver para vencer!... Ide tambem...
-- Não! minha senhora! Felizmente, não tenho em Portugal negocios urgentes, como o sr. D. Manoel de Mascarenhas... E, felizmente tambem, não tenho tutor a quem obedecer... Ficarei, pois, para vos assistir até á derrota completa ou á victoria, e decerto fazendo-o não desmerecerei nem serei esquecido, por aquelles dos nossos amigos que são forçados a deixar-vos.
-- Podeis crel-o! -- exclamou com desassombro e determinação Margarida apertando-lhe a mão para se despedir; e com intenção, concluiu para Leonor Pimentel -- Meu tio reconhecerá ainda, que não foi tão inutil, como suppõe, esta viagem que o forcei a fazer.
O proposito de D. Manoel foi, porém, modificado pela marcha dos acontecimentos. A esquadra do Marquez de Niza teve ordem para continuar seguindo as operações de Nelson no Mediterraneo, e portanto julgou mais conveniente demorar-se em Napoles, onde o sobrinho vinha com frequencia renovar as suas tentativas de pretendente junto de Margarida, e sorria-lhe a idéa por elle suggerida de obterem passagem no seu navio para regressarem a Lisboa. Contava o dedicado tio que esta frequencia a bordo coroaria a obra de afastamento e quasi reclusão em que tinha a sobrinha do convivio com o rival de Alexandre. Com effeito, Margarida não tornára a ver Leonor Pimentel, que fôra preza dias depois da visita que relatamos e só clandestinamente conseguia escrever e falar raras vezes ao Caramurú.
Excusado é dizer que, com tal afastamento e contrariedades, longe de diminuir, augmentára a paixão dos dois.
Assim decorreu algum tempo, até que os jornaes deram uma nova fatal: d'ahi a dias, Leonor Pimentel seria enforcada com outros conspiradores, na praça dei Mercato. Margarida, a esta noticia terrivel, resolveu-se a dar um passo que muito lhe custava, o de acceitar favor dos que já considerava seus contrarios politicos, o tio e Alexandre, que, em relações estreitas com os chefes das forças portuguezas então em Napoles, lhe offereciam obter o perdão de Leonor, renunciando ella ás suas idéas. Seria um golpe de effeito contra os patriotas, arrancar-lhe aquella figura genial da poetisa napolitana. Margarida, para esse effeito excepcionalmente libertada da especie de clausura em que a tinham, poude falar com o Caramurú e apresentar-lhe o alvitre.
-- Conheço bem, -- respondeu-lhe este -- não só o alcance politico d'essa proposta, mas a obrigação em que vós mesma ides ficar, para com os que nos são adversos; mas a nossa dedicação pela infeliz condemnada deve estar acima de todas as considerações... Hoje a visitarei na prisão, e farei por a convencer.
A que horas ides vêl-a?
-- Ao cair da tarde. E' quando me facilita, a occultas, a entrada o carcereiro que comprei...
-- Ah! quanto vos arriscaes Diogo Alvares! Tremo constantemente por que sejaes descoberto e prezo tambem... O odio cada vez é mais vivo da parte dos tyrannos...
-- Infelizmente, esse perigo está a acabar. Depois de ámanhã Leonor deixará de existir; estou certo que rejeitará o perdão que lhe offerecem.
-- Queria pedir-vos um favor, -- disse Margarida receiosa.
-- Dizei...
-- Peza-me do coração não ver ainda uma vez a nossa amiga, não me poder despedir d'ella... Se não tivesseis duvida, hoje que estou menos vigiada, sahiria para ir comvosco...
-- Ah! é impossivel, Margarida! Attentae na situação em que estamos... Não somos parentes... Amamos-nos. Ha conveniencias a guardar... Esse passo seria interpretado em vosso desabono... iria redobrar os rigores do vosso tio...
-- Que importa isso?... Mais alguns incommodos n'estes annos que ainda me faltam para ser maior, e fazer a minha vontade!... eis tudo... Consenti no que peço... Seria um desgosto, quasi remorso de toda a minha vida, deixar de vêr Leonor n'estes angustiosos dias.. Queria unir as minhas supplicas ás vossas, para que acceite o perdão que lhe offerecem.
-- Serieis, bem o conheço, muito mais eloquente e persuasiva conselheira do que eu, mas nem assim transijo com as considerações que vos expuz... Pedi a vosso tio que vá comvosco...
-- Isso sim! Mais facilmente entraria na jaula d'um leão, do que nas prisões atulhadas de patriotas... A paixão politica converteu-se n'elle em aversão, que o leva a uma especie de loucura... Tornou-se os mais exaltados dos bianchi!...
-- Ha ainda outra pessoa que vos poderia acompanhar...
-- Quem?
-- Vosso primo! -- respondeu o Caramurú n'um rasgo de generosidade...
-- Ah! é realmente grande a vossa alma, Diogo Alvares! porque assim pondes o dever e a dedicação acima do amor por mim, convidando-me a acceitar o braço do vosso rival para chegar até junto d'essa pobre martyr da liberdade...
Ora! Não vos arrebataria, creio bem...
-- Decerto! Mas, com franqueza vol-o digo: valho bem menos do que vós, porque tudo faria menos isso...
-- Deixae-me então ir só, e inspirado pelo amor que vos tenho... Sabendo quanto desejaes salval-a, elle me dará a eloquencia que me falta...
Ao cahir da tarde d'esse dia, o Caramurú exgotava, com effeito, todas as suas razões para convencer Leonor Pimentel a que acceitasse o perdão que lhe offereciam; ella, porém, oppunha a mais formal recusa. O seu espirito, elevadissimo, ia-se já librando a essas regiões superiores ao amor da vida, e ao instincto da conservação, que faz a loucura sublime que ha na dedicação dos verdadeiros martyres pelas grandes ideias. Começava a ser essa mulher extraordinaria, que, acima dos mais corajosos e convictos patriotas, havia de espantar o povo de Napoles pela serenidade, e pela grandeza sobrehumana, de que deu provas no cadafalso.
-- Não me faleis em acceitar o perdão! Seria confessar-me culpada e transigir com os reprovados principios dos tyrannos do povo...
-- Mas o povo, está, póde dizer-se, com elles...
-- Que importa?! Se está illudido pela ignorancia? O verdadeiro dever dos apostolos d'uma grande ideia, é morrerem por aquelles mesmos que, por defeito de entendimento, não estão no caso de avaliar a verdade que os beneficia!...
- Se o não fazeis por amor á vida... fazei-o por amor dos que vos são dedicados... por mim!... por Margarida!...
-- Tudo farei pela vossa felicidade, menos isso...
-- Sabeis que, pondo de parte todos os preconceitos e conveniencias, queria vir aqui só commigo, para vos convencer?...
-- Ah! Não me admira . . . Era mais um acto de força de vontade, de elevação de sentimentos, de dedicação ás suas idéas, n'essa crença, que Deus, que vos protege, Diogo Alvares! vos fez encontrar na nossa orphandade, para um dia vos ser companheira dedicada e vos amparar na vida... Devo-lhe a maior das provas de confiança que tenho recebido n'este mundo, e é dever meu retribuir-lh'a, agora que d'elle estou prestes a partir... Dae-me a vossa palavra, meu amigo! de que guardareis para vós o que vos vou dizer, e que respeita ao compromisso que tendes contrahido em Portugal..
Dizei senhora! -- respondeu Caramurú, muito impressionado.
-- Socegae! que não se trata de uma má nova, de uma difficuldade mais, anteposta ao vosso amor... E', pelo contrario, a antecipação d'uma alegria que terieis só mais tarde, ao regressar á patria...
-- Então! Dizei... Dizei!... No meu espirito tem por vezes começado a esboçar-se uma suspeita... a que não tenho querido dar ouvidos... porque seria demasiada felicidade...
-- Qual era?
-- Não vol-o direi. Fallae vós... antes... O que ieis revelar-me?
-- Não! -- continuou Leonor sorrindo, levada pela sua dedicação, alegre d'aquelle sublime sentimento do bem e da felicidade dos que amava, que lhe fazia esquecer as angustias da morte proxima, -- sempre quero ver até que ponto sois innoccnte em amor, vós que um dia fostes meu apaixonado...
-- Pois então dir-vos-hei: que esta viagem de Margarida a Napoles; o nosso encontro em Paris; as palavras mysteriosas que por vezes lhe tenho ouvido; a forma, ora submissa, ora independente, com que fala ao tio a respeito do seu direito a escolher o homem de quem acceitar o nome; os seus gracejos sobre esse compromisso de casamento que tenho em Portugal, tomado por parentes, quando creança ainda, e com uma outra creança, que desde muitissimos annos não tornei a vêr, tudo isto me tem feito suspeitar...
-- O quê?
-- Oh! não póde ser! Seria demasiada ventura...
-- Vamos, coragem, continuae...
-- Que Margarida fosse essa creança...
N'este momento, ouviu-se um tilintar de ferros. Era o carcereiro que se approximava:
-- Tendes que vos retirar, senhor! Veem lêr a sentença á prisioneira. Esta noite entrareis no oratorio da Vicaria.
-- Acceitae o perdão, Leonor! -- exclamou o Caramurú, cahindo de joelhos...
-- Não! Acceitae vós o meu ultimo abraço. -- E Leonor Pimentel, erguendo o mancebo e, abraçando-o, disse-lhe ao ouvido: -- advinhou o vosso coração: Margarida! é essa creança com quem ha muito tendes o casamento ajustado...
Quarenta e oito horas depois, na praça del Mercato a martyr da liberdade napolitana subia ao cadafalso. Tinham-lhe destinado uma forca mais alta, e a multidão hurlava selvagem, no odio inconsciente da ignorancia, e na brutalidade curiosa d'um insulto na hora derradeira ao pudor d'essa mulher, tão virtuosa como bella, graças á altissima forca em que o seu cadaver ia ficar dependurado, e na que o prostituiriam os olhares impudicos da populaça.
Leonor Pimentel quiz falar ao povo, para pedir o respeito do seu corpo, mas a turba abafou-lhe a voz, gritando:
-- Viva il ré!
Sorriu a martyr d'aquelle côro enthusiasta que a ignorancia escrava entoava a tyrannia escravisadora, e quando a onda do delirio passou, volvendo á realidade da angustiosa situação, illuminou-se-lhe o rosto de uma alegria extraordinaria, de uma expressão de sympathia e reconhecimento indefiniveis, vendo uma mulher do povo, muito embuçada n'um véo, despregal-o, ao subir as escadas do cadafalso, tirando um rico alfinete de ouro, que lhe offereceu, indicando-lhe que pregasse o vestido, de modo a não serem profanadas as suas fórmas pelos olhares da multidão.
O véo abriu-se, e Leonor Pimentel exclamou:
-- Margarida! -- lançando-se-lhe nos braços, e cobrindo-a de beijos.
-- E' uma patriota ! -- uivou a populaça, ameaçadora.
-- Abaixo ! Abaixo !
Um homem sahiu então d'entre o povo, e subindo tambem ao cadafalso, beijou a mão da martyr, dizendo-lhe:
-- Coragem! Deus espera-vos no céo! Os que mais vos amam, estarão perto de vós na terra até ao ultimo momento. -- Depois, dando o braço a Margarida, quasi desfallecida, amparou-a ao descer a escada do cadafalso; e entretanto, dominando com o olhar a multidão ameaçadora, o Caramurú exclamou: -- Somos portuguezes! e parentes da condemnada!
O povo, n'um d'esses momentos em que a paixão das turbas é dominada pela coragem d' um homem! calou-se, abrindo-lhes passagem. Entretanto, o carrasco cumpria o seu dever, no meio d'um silencio verdadeimente de morte!
IV
No convento de Chellas
Margarida infringira as ordens expressas do tio, commettendo a imprudencia de sahir sósinha para assistir aos ultimos momentos de Leonor Pimentel.
Fizera-o levada por uma d'essas impetuosidades do seu caracter varonil, independente, despido de preconceitos, tendo uma ideia demasiadamente elevada da dedicação e da amizade, para se excusar a tal sacrificio.
Diogo Alvares, reconhecendo-a quando subira ao cadafalso para dar o alfinete a Leonor Pimentel, puzera-se ao seu lado para a defender em caso de necessidade.
E ella exultára por d'ali voltar pelo braço do homem em quem via já o seu futuro esposo.
Foi justamente esta circumstancia, e o ver como os acontecimentos se precipitavam, contrariando as suas vistas pessoaes a respeito do futuro da sobrinha, que mais exasperou D. Manoel de Mascarenhas, quando soube do ultimo incidente da tragedia da praça del Mercato, em que o Caramurú e Margarida haviam figurado.
D. Manoel era parente da sua pupilla por parte de seu pae, emquanto o Caramurú era primo d'ella por parte de sua mãe, filha da Bahia, e pertencente a uma das mais consideradas familias da cidade brazileira, descendente, como tantas outras, do fundador de Villa Velha.
D. Manoel, porém, amava como filho seu sobrinho Alexandre de Mascarenhas, empenhando toda a sua influencia de tutor para fazer esquecer a Margarida esse antigo compromisso, tomado não tanto por ella, mas por outros parentes seus e do Caramurú, quando ainda creanças, de se casarem. Fôra assim ajustado o enlace de dois entes, que depois haviam de separar-se por muitos annos, e do qual o mancebo durante muito tempo quasi se não lembrára, mas que Margarida tomara sempre a sério, em razão do seu caracter especial, perseverante e concentrado.
O tio permittira-lhe, pois, esta viagem em que, sem que o Caramurú a reconhecesse, desejára observar as suas frequentes paixões, esperançado em que d'esta forma a sobrinha perderia as illusões, e facilmente se desligaria de tal compromisso, acceitando por marido Alexandre, como elle desejava.
A sua amizade pelo tenente levava-o a querer vêl-o partilhar a grande fortuna que Margarida possuia. N'estas condições, era muito especial a situação em que respectivamente se achavam tio e sobrinha. Elle, como tutor, conhecendo-lhe o genio energico e a força de vontade, deixava-a fazer livremente quanto queria, comtanto que não fosse no assumpto que mais o interessava, o do seu casamento.
N'este ponto, só transigia no que lhe parecia convir-lhe. Mas da liberdade que lhe deixava no restante, Margarida contrahira o habito d'uma quasi absoluta independencia, incompativel com a sua qualidade de menor, que só d'ahi a alguns annos attingiria a maioridade.
D'estas circumstancias, nasceu um verdadeiro conflicto, em seguida ao incidente da execução da martyr revolucionaria, por isso que D. Manoel reconheceu que, longe de se desfazer o compromisso que havia entre Margarida e o Caramurú, desde creanças, d'essa approximação, em que consentira, resultára o contrario do que esperava: um novo amor mais ardente, agora que se reconheciam. Alarmado, lançou-se nos meios violentos, pensando com elles atalhar o perigo.
-- A imprudência que acabas de commetter, -- dissera elle á pupilla, -- mostra-me como tenho feito mal em permittir todas as tuas phantasias...
-- Não o comprehendo, meu tio, não sei a que phantasias se refere!
-- Esta ultima, para não fallar do resto... Consenti em te tirar do convento, para vires fazer esta inopportuna viagem!...
-- Inopportuna?! E' isso que chama phantasia? Desejar conhecer e avaliar, por mim mesma, a verdade do que me diziam a respeito d'aquelle com quem devia unir-me um dia?!...
-- Bastava que o fizesses quando fosses senhora da tua vontade... Entretanto, em vez de te acabares de educar nos bons principios religiosos do recolhimento de Chellas, vieste beber estas disparatadas idéas do jacobinismo, que lavram por todos os paizes da Europa...
-- Ufano-me em as partilhar! digo-o francamente, sem por isso deixar de ser a christã temente a Deus, que as religiosas de Chellas educaram, e das quaes guardo as melhores recordações. O amor da liberdade não me faz odial-as, como o tio odeia os patriotas liberaes. Dou a Deus o que é de Deus, e a César o que é de César...
-- E's quasi outra Leonor Pimentel a falar! Deus lhe perdôe, que ella e esse jacobino exaltado, no qual infelizmente persistes em vêr o teu futuro marido, deram-te realmente volta ao juizo! Mas sei as responsabilidades que a teu respeito sobre mim pezam, e, custe o que custar, farei por te repôr nos sãos principios...
-- Faça o que quizer, meu tio! mas observo-lhe que não tem o direito de desacatar a memoria d'essa martyr, nem as convicções d'um homem sincero e honrado, como é Diogo Alvares.
-- Bem! Bem! Não discutiremos. Em obras, que não em palavras, está o remedio do mal.
E não tardou D. Manoel em metter mãos á obra. Margarida foi prohibida de tornar a falar ao Caramurú, nos poucos dias em que o tio dispôz tudo para voltarem a Portugal, a fim de a enclausurar novamente no convento de Chellas. Apenas pôde enviar-lhe uma carta, ás escondidas, por José Bonifacio, na occasião de se despedirem, contando-lhe o futuro de dificuldades que os planos e vistas do tio lhe preparavam, mas protestando-lhe que seria fiel ao seu compromisso.
E' escusado dizer que o Caramurú se dirigiu tambem logo para Lisboa, disposto a combater esses planos por todas as fórmas.
O tempo foi decorrendo. Margarida, rigorosamente vigiada, ao passo que recebia assiduas visitas do tio, frequentes vezes acompanhado pelo sobrinho, trajando o vistoso uniforme de marinha, esmerando-se os dois em lhe fazerem a côrte, por systemas diversos e proprios das suas respectivas posições, nem licença tinha para comparecer na grade, quando se realisavam esses torneios poeticos, conhecidos pelo nome de outeiros, tal era o receio de que entre os poetas que vinham glosar os motes das freiras e recolhidas, o Caramurú se acercasse do convento. Mal sabiam elles que, a despeito de todas as suas vigilancias, entre os dois se mantinha seguida correspondencia, e que por via d'esta se iam cada vez identificando mais os seus sentimentos de liberaes convictos, ateando o amor que se professavam. Como em todas as verdadeiras e elevadas paixões, o soffrimento e a dedicação dos sacrificios, exaltava-os e attrahia-os. E o espectaculo que os destinos da patria iam mostrando era demasiado apropriado para mais vivos tornar esses sentimentos.
Estava-se em 1803, e tinham-se dado os tumultos do mez de julho no Campo de Ourique em que o regimento de Gomes Freire de Andrade e soldados da Legião do Marquez de Alorna tinham lavrado protestos desejando modificações liberaes no governo então existente e accentuadamente reaccionario. Estes generaes eram justamente os que, durante a desastrosa campanha de 1801 tinham salvo a honra do exercito portuguez contra os francezes e os hespanhoes alliados, que invadiram Portugal.
Em Traz-os-Montes, Gomes Freire resgatára os revezes soffridos pelo exercito portuguez na campanha do Alemtejo.
O joven Caramurú, tendo chegado do Brazil, para onde seguirá de Portugal pouco depois dos successos de Napoles, sentindo referver-lhe no peito a indignação pelas humilhações successivas que a patria soffria, como joguete das conveniencias da Inglaterra, e
vexada constantemente pela França e pela Hespanha,
suas inimigas, fôra d'esses poucos bravos que no Uruguay, sob o commando de José Borges de Castro, tinham arrancado ao dominio hespanhol as Sete Reducções. Em seguida, voltando a Portugal servira sob as ordens de Gomes Freire d'Andrade, cujas idéas liberaes o attrahiam, e agora, quando começavam a pronunciar-se nos horisontes nacionaes, com as violencias de Lannes, embaixador de Napoleão, os futuros vexames e oppressões da invasão franceza sentia revoltar-se-lhe o animo contra a fraqueza do governo portuguez, que chegara até demittir o director da alfandega, Pina Manique, em virtude das reclamações do
embaixador, por aquelle o não deixar desembarcar o carregamento d'um navio, directamente para sua casa, sem ir á alfandega!
E o governo e a côrte, harmonisando o seu proceder pelo caracter fraco do principe regente, acceitavam toda a especie de humilhações do embaixador francez, que levava a insolencia até apresentar-se no paço perguntando simplesmente: se monsieur du Brésil! estava em casa.
Não obstante os duros tempos que se ia atravessando, havia uma tal inconsciencia publica, que permittia nas classes elevadas e nas suas alliadas naturaes, a despreoccupação que se entretinha com folguedos e divertimentos, no meio dos acontecimentos em que se jogava o futuro e a independencia do paiz. A Inglaterra e a França, ameaçando-se reciprocamente, declaravam como represalia apropriar-se do continente portuguez e das suas colonias, como melhor lhes conviesse; e entretanto em Portugal folgava-se, e entre as festas mais caracteristicas distinguiam-se os outeiros poeticos, nos coutos e grades dos conventos.
Era difficil n'esses tempos a posição dos liberaes de boa fé, e ao mesmo tempo patriotas, como era o Caramurú, porque a nação ia-sc extremando em dois partidos: um de ideias avançadas, defendendo os principios da revolução franceza; outro, de conservadores e mesmo de reaccionarios. N'este, enfileiravam-se os que seguiam a politica dos inglezes; n'aquelle, os que admiravam a obra da França moderna, de que Napoleão era o deus. Mas era esta França, e não o espirito e os principios da revolução, que vexava Portugal. Não obstante, eram cegos a paixão e os odios que estes sentimentos provocavam, e deploraveis as consequencias que produziam, quando reflectidas nas discordias de família.
Era justamente isto, o que se passava na contenda que entre os parentes liberaes e os parentes reaccionarios de Margarida ia travada a respeito do seu casamento. Desde que, em um assumpto d'aquella ordem, se tinham manifestado os antagonismos de principios que dividiam a sociedade portugueza, tudo era permittido, todos os meios e todas as violencias desculpaveis.
A ultima coisa em que pensavam os que desejavam vêr Margarida casada com o Caramurú, e os que ardiam por a vêr casada com Alexandre de Mascarenhas, era no amor ou na indifferença que ella pudesse sentir por um ou por outro. Estes, desejavam a victoria do official de marinha porque eram, como elle e como D. Manoel, inimigos figadaes dos chamados jacobinos; aquelles, desejavam a do Caramurú, porque commungavam nos seus principios.
Entretanto, o tutor, tendo pelo seu lado a auctoridade e a lei, desesperado com a resistencia passiva da vontade de ferro de Margarida, lançára-se sem pejo no caminho dos rigores violentos. A clausura da pobre menina no convento de Chellas, ia-se convertendo em uma verdadeira prisão, que, para ser consentida, bastava a invocação do argumento de que o tio, um homem de sãos principios, a queria salvar da união com um jacobino.
No convento, pois, em que, segundo a tradicção, florescia o galanteio amoroso, que se ostentava liberrimo nos famosos torneios poeticos, em que os vates e peraltas apaixonados glosavam os motes das freiras e noviças, estava, como em carcere privado, uma joven desligada de qualquer voto religioso, pelo crime de guardar a fé d'um compromisso da infancia e de amar um homem de idéas avançadas. E emquanto as conspicuas e sizudas lançavam das grades para os namorados, olhares, motes e confeitos, ella, que era livre, não podia receber uma carta do homem que amava, nem assistir a essas festas em que o poderia vêr.
Era isto o que se passava, mais uma vez, na tarde em que nos achamos. Emquanto no pateo do convento, cuja porta aberta de par em par, dera livre entrada á chusma dos poetas e ao publico, guloso d'estes divertimentos, o outeiro proseguia com a maior animação, Margarida, reclusa na sua cella, não sabia o que pensar d'um estranho e mysterioso aviso, que uma criada, recentemente admittida no convento, n'essa manhã lhe dera, dizendo-lhe que se preparasse, pois á hora da festa receberia uma visita de quem mais amava no mundo.
-- Não comprehendo o que me dizeis, -- respondeu Margarida, desconfiada de que seria alguma nova intriga armada pelo tio, para avaliar o estado do seu espirito, ou fazel-a commetter imprudencia que explicasse novos rigores.
-- Nada mais posso dizer-vos, senhora! mas virei prevenir-vos.
Quando ia entardecendo, Margarida, concentrada nos pensamentos que o aviso da creada lhe despertára n'aquelle dia, sentia, máu grado seu, uma especie de tristeza por vêr que nada de imprevisto vinha quebrar a quietação do encerro em que se achava, ao passo que lhe chegavam aos ouvidos as palmas e o alegre borborinho da festa que ia no convento. Ter-se-hia contentado até em vêr chegar as figuras desagradaveis do tio carrasco e do pretendente odioso, realisando ironicamente o acontecimento de que recebera aviso. Foi em meio d'estas impressões, que a mesma creada lhe bateu á porta da cella:
-- Dá licença? minha senhora!
-- Entre.
Com modos excessivamente mysteriosos, fechou a serviçal a porta, dizendo-lhe:
-- Não tarda ahi...
-- Quem?
-- O sr. Diogo Alvares...
-- Enlouqueceu?!...
-- Estou em meu perfeito juizo... Foram amigos seus e de v. ex.ª que me fizeram entrar para o serviço do convento...
-- Repito que não comprehendo nada do que me diz -- respondeu Margarida, anciosa, entre o receio d'uma cilada da parte do tutor, euma vaga esperança, se fosse verdade o que ouvia.
-- Dentro em pouco v. ex.ª se convencerá... Não sabe que é uso n'esta casa fazer a porteira vista grossa, quando está alguma recolhida ou freira doente, e deixar entrar qualquer parente para a vêr em logar da moço que lhe traga recado?...
-- Sei! E depois?...
-- Pois vae repetir-se o caso que n'este convento de Chellas se deu quando aqui estava prisioneira, como v. ex.ª, com sua mãe e irmã, no tempo do Pombal, a famosa poetisa D. Leonor d'Almeida, hoje marqueza d'Alorna...
-- O que foi?
-- Estando a marqueza doente, apresentou-se a saber d'ella o filho D. Pedro; e como n'esse momento chegasse o aguadeiro que servia a casa, o fidalgo tirou-lhe o barril, e, carregando com elle, entrou em seu logar e foi vêr a mãe.
-- Tem graça...
-- Mais graça achará v. ex.ª, quando aqui chegar, embrulhado em esfarrapada capa de poeta, em logar do medico chamado para uma recolhida, o sr. Diogo Alvares...
-- Volta ao seu gracejo d'esta manhã?!
-- Falo tão a sério, -- respondeu a criada, indo á porta a escutar, -- que ouso dizer a v. ex.ª que já lhe sinto os passos..
Com effeito, ouviu-se andar de homem, que se approximava, e Margarida, anciosa, entre a esperança e o receio, a custo respondeu:
-- E' talvez meu tio...
-- T'arrenego! Abrenuntio! -- retorquiu a creada no momento em que batiam de leve na porta. -- Veja! Veja quem é! - concluiu ella abrindo.
Margarida soltou um grito de alegria, reconhecendo o Caramurú.
Abraçaram-se carinhosamente os dois entes que tanto se queriam, e que, embora separados havia tanto tempo, se consideravam unidos já pelos mais indissoluveis laços, os do matrimonio.
-- Como estás formosa, Margarida! Os algozes que nos separam, e que ha annos, desde Napoles, me impedem de te vêr, não teem, graças a Deus, logrado com os tratos que te impõem murchar a expansão da tua saude e belleza... Mas que cuidados ella me tem dado!...
-- E a mim?! Faltarem-me as tuas cartas, no momento em que me annunciavas que te alistáras e ias seguir com o exercito ás ordens de Gomes Freire...
-- Foi quando o teu digno tutor descobriu a maneira por que nos correspondiamos.
-- Valeu-me isso o ser transferida para esta cella, que habito só, e privarem-me da companhia das outras meninas, cujos parentes se encarregavam de me fazer chegar as tuas cartas...
-- E dizem-se bons christãos!...
-- Agora só vejo algumas das freiras graduadas, reaccionarias fanaticas, em quem meu tio deposita a maior
confiança... Passo a minha vida como verdadeira prisioneira, só podendo sahir d'este quarto para a sala proxima, onde nunca vou porque era certo encontrar alguma d'essas odiosas creaturas...
-- O que me dizes, Margarida! varre os ultimos escrupulos que ainda influiam no meu espirito, vindo aqui para te fazer um pedido...
-- Dize, Diogo; por certo não serás capaz de me propôr coisa que não deva fazer...
-- Receio que não approves o meu plano... Bem sei que é romper com as considerações sociaes; mas, na guerra como na guerra; os excessos de que estás sendo victima, os meios empregados para contrariarem a nossa união, o que ainda ha instantes ouvi a teu tio...
-- A meu tio?! Falas-te-lhe?!
-- Deus me livre! -- exclamou o Caramurú com expressão de repugnancia, -- mas estive a dois passos d'elle, no couto do convento, quando começava o outeiro...
-- Para que te arriscaste d'essa maneira?!...
-- Ora! estava disfarçado com estas compridas barbas, e estes oculos, e muito bem embuçado n'esta rôta capa de poeta de má sorte, como na verdade é a minha, com quanto não verseje..
-- E que lhe ouviste?
-- Falava com o sobrinho, com o teu apaixonado pretendente. Dizia-lhe que d'aqui a um anno, quando sejas maior, espera que cederás a certo meio, em que deposita absoluta confiança, e cases com elle.
-- Faz bem! No dia em que eu fôr maior! N'esse dia, que espero como o de verdadeira libertação, verá como se transfórma esta minha passividade, com que tenho soffrido todas as suas violencias...
-- E' muito arriscado, embora mais digno de elogio, confesso-o, esse plano que traças... O meu, o que te venho propôr, será mais sujeito a criticas, mas é mais seguro.
-- E vem a ser?
-- Fugires agora, simplesmente, comigo...
-- Ah! isso não...
-- Duvidas de mim? Tudo tenho preparado. Ámanhã casaremos, e em seguida embarcamos para o Brazil. Comtigo, ou só, vou partir para lá... não posso continuar aqui...
-- Ameaça-te algum novo perigo?! -- perguntou Margarida commovida...
-- Nem mais nem menos do que até agora... Mas este espectaculo que o paiz offerece, é incompativel com os meus sentimentos. Esta fraqueza da reacção ante as pressões e os insultos extrangeiros; este aviltamento continuo da nossa dignidade nacional, que ora se curva ante inglezes, ora ante francezes, que, uns, nos ambicionam para colonia na Europa, e outros para gratificação á Hespanha, ou para elevar mais um throno a algum parente ou general de Napoleão, é-me insupportavel! A aversão que já vae lavrando contra Gomes Freire, o campeão liberal que melhor tem sustentado a honra e o brio das armas portuguezas, tudo me arrasta invencivelmente para o Brazil, esse paiz que mostra querer ser livre, que o ha de ser, e onde talvez não tarde a ir-se refugiar a monarchia portugueza, no dia em que se vir finalmente abandonada pelos falsos amigos d'hoje... Vem comigo, segue-me, Margarida, a essa outra patria, que é tambem a tua e a minha!...
-- Não! Já agora deixa-me consummar o sacrificio... Vae tu! Segue o destino que o dever e a fidelidade aos nossos principios te impõem. Será mais um anno de separação, mas ninguem terá nada que nos lançar em rosto no dia, que então chegará, de legalmente nos unirmos...
-- E entretanto, ficas entregue nas mãos de despotas que não hesitam nos meios para conseguir os fins! e que menos escrupulos terão, á medida que se approximar o momento da lei te eximir á sua tutella!...
-- Não o receies, como eu o não temo tambe. Poderão incommodar-me, fazer-me sofifrer... Mas arrancar-me a approvação dos seus planos, jámais!...
N'este momento, a criada entrou precipitadamente no quarto:
-- Retirae-vos quanto antes, meu senhor! Um dos vossos amigos, o sr. José Bonifacio, que deixastes a vigiar D. Manoel de Mascarenhas, viu-o falar mysteriosamente com o intendente da policia Pina-Manique, que foi esperar á entrada do convento, e que logo fez cercar o edificio por aguazis... Suppõe que vos descobriu e sabe que estaes aqui...
-- Valha-nos o céo! -- exclamou Margarida aterrada. -- A que perigo te vieste expôr! Se te prendem!...
-- Socega! Tenho a retirada segura... Acompanha-me, Margarida, como te peço... Aqui tens mais uma prova de que empregarão os ultimos excessos para nos separarem definitivamente... Reflecte emquanto é tempo...
-- Não! Deixa-me até ao fim ter confiança em Deus, e proceder por fórma que sempre possa trazer a cabeça erguida...
-- Escrupulisas, quando hoje não ha escrupulos, nas idéas e na conducta dos que nos guerreiam.
-- Embora! Quero ser tua mulher, pela minha energia e pela minha força de vontade, impondo-me ás suas violencias, e não pelo caminho dubio e tortuoso d'um rapto...
-- Fugi, sr. Diogo Alvares! Fugi! -- exclamou, entrando novamente no quarto, a criada, que fôra saber o que se passava.
-- Bem! O que ha? -- perguntou o Caramurú.
-- E' certo que fostes descoberto. Vem ahi o sr. D. Manoel com as auctoridades...
E a criada, abrindo a porta, com receio de mais se comprometter, fugiu para o lado do corredor opposto áquelle em que se ouvia já o marchar dos aguazis.
O Caramurú fechou a porta á chave
-- Ainda uma vez, Margarida, fujamos... E' tempo...
-- Não! Salva-te, peço-t'o! -- implorou afflicta.
-- Vem! Estão ahi os nossos amigos, -- replicou elle abraçando-a e arrastando-a para a janella, da qual perguntou: -- Estaes ahi?
-- Sim! içae a escada!
-- Vem, Margarida! Não confies n'esses infames!
-- Confio em Deus! Foge! De joelhos, t'o peço! -- proferiu a pobre menina afflicta -- ouvindo baterem á porta.
-- Que Elle nos proteja!... A' sua guarda te deixo.
-- Içae a escada, despachae-vos, que é noite, -- repetiram de fóra algumas vozes.
-- Não é preciso! Vou só! -- E o Caramurú, beijando as mãos a Margarida, quando já tentavam arrombar a porta, transpoz a varanda, e pendurando-se d'ella, deixou-se cahir na cerca do convento.
-- Salvo! -- exclamou a pobre menina com alegria, sentindo o affastar-se com os que o esperavam.
-- Abri! Abri! Margarida! -- repetia entretanto, exasperado, D. Manoel, emquanto os que o acompanhavam forçavam a entrada da cella.
Em vez de lhe obedecer, a reclusa, com uma força que só a excitação nervosa lhe podia dar, arrastou uma pesada commoda contra a porta, dizendo com satisfação:
-- Não entrarão tão cedo!...
E com effeito, travou-se uma lucta desesperada, na qual fez todo o possivel por lhes demorar a entrada no quarto, em que contavam prender o Caramurú. Finalmente, cahiu extenuada, quando a porta cedeu, passado bastante tempo.
-- Ah! Conseguiste demorar-nos emquanto o jacobino se escapava! Mas não tem duvida! Esperam-n'o as prisões de S. Julião da Barra, mais dia menos dia, como a ti a reclusão e a penitencia até que tenhas juizo...
-- Por ter juizo, meu tio! não serei já ámanha a mulher de Diogo Alvares. Mas sel-o-hei, estae certo! d'aqui a um anno, quando senhora da minha vontade!
V
A fuga real para o Brazil
Em seguida á aventura passada no convento de Chellas emquanto as freiras e recolhidas ouviam da grade os versos inspirados dos poetas repentistas, desenvolveu-se contra o Caramurú, como era proprio do tempo, e da influencia de que D. Manoel dispunha, uma verdadeira perseguição, que só, propositadamente, abrandou para o deixar escapar-se, diziam os seus contrarios, para o Brazil, onde na verdade ia cumprir os deveres a que o chamavam a sua tradição de familia, e as suas idéas. Respirou o tutor despotico de Margarida, julgando ver-se por esta fórma livre, por muito tempo, da presença do competidor perigoso nos planos em que a respeito da sua mão se achava empenhado a favor do sobrinho. Ia este voltar ao Tejo com a esquadra do Marquez de Niza, e esperava que, livre da presença do rival preferido, lograriam fazer que Margarida o esquecesse. Por isso, se jactava falando com José Bonifacio a respeito da partida do Caramurú:
-- Foi o que lhe valeu!...
-- O quê?
-- Pôr-se a salvo para o Brazil!... senão!...
-- V. ex.ª está laborando n'um erro.
-- Como! não partiu?!... -- perguntou receioso...
-- Partiu... mas não se pôz a salvo... Partiu, porque chegára á edade em que, seguindo a tradição estabelecida na sua familia, os Caramurús vão tratar de desenvolver as suas propriedades no Brazil... Mas voltará, esteja v. ex.ª certo, quando fôr a occasião opportuna...
-- Veremos... Veremos...
-- Entretanto, vae trabalhar para si, para a familia que deseja crear, e para a liberdade da segunda patria...
---Faz muito bem!... Aqui, comprehendo que não pudesse exercer essas valiosas aptidões de jacobino...
-- Ainda mal, para o paiz e para nós todos...
-- Ainda bem! digo eu...
-- Talvez v. ex.ª se arrependa do que diz, mais cedo do que pensa...
-- Parece-lhe?! -- respondeu ironicamente D.Manoel.
-- Estou certo. Não vem longe o dia em que todos soffreremos os resultados da reacção em que nos vamos demorando, quando por toda a Europa se propagam as idéas avançadas...
-- Por toda a Europa, não!... Apenas pelos sitios em que pretende mandar esse famoso heroe theatral, chamado Bonaparte!...
-- Que mais dia menos dia invadirá este paiz e lhe dará a lei.. E talvez então v. ex.ª, e os que tanto mal querem á liberdade, tenham de se abrigar á sua sombra...
-- Em França?! Era o que faltava!
-- Não! no Brazil...
-- Ahi volta o sr. José Bonifacio com o estafado e ridiculo juizo do anno que vem, dos bordas d'agua politicos!...
Esta prophecia, a despeito do comico que D. Manoel de Mascarenhas, na sua filaucia reaccionaria, lhe attribuia, veio a cumprir-se. O tempo passou, e emquanto o Caramurú ia ganhando no Brazil grande prestigio e ascendente entre os patriotas, que por todas as fórmas procuravam fazer seguir na importante colonia normas liberaes, que eram um protesto contra a politica de reacção e fraqueza, seguida em Portugal pelos governos absolutos de D. João VI, chegou a dura lição da invasão extrangeira, vendo-se a côrte portugueza forçada a deixar a metropole, buscando refugio n'aquella importantissima possessão da America. Negros se mostráram então os horisontes para as combinações abrigadas na mente do tutor de Margarida. Achava-se em apertada conjunctura, num verdadeiro dilemma: ou ficar em Portugal, e sujeitar-se a todos os incommodos e perigos da invasão, ou seguir com a côrte para o Brazil, onde esta ia ser hospeda da liberdade, que alli despertava. O instincto da conservação, é, porém, o mais forte dos sentimentos humanos, e prevalece sobre todos os calculos de interesse, e sobre as paixões mais accesas.
Quando, pois, o hesitante D. João VI, tendo por largos annos seguido a titubeante politica de successivas affirmativas, ora a favor da Inglaterra, ora inclinando-se para a França, sua inimiga, se viu forçado a curvar-se a todos os dictames de Napoleão, ao dirigir-se a marchas forçadas sobre Portugal o exercito invasor de Junot, tentando, n'um ultimo excesso de fraqueza, sustar a tempestade que se approximava, lhe mandou por embaixador o marquez de Marialva, que não poude ir além de Madrid, porque Junot estava já no coração de Portugal, correu por todo o reino uma confusão e receio medonhos, e no terror do contacto e das exacções dos francezes jacobinos, a côrte, especialmente, soltou o grito de: salve-se quem puder! E a este grito geral, só fez opposição a rainha D. Carlota Joaquina.
Tal era a colera e desgosto com que o povo assistia áquella fuga da côrte, que grande parte dos nobres fugitivos, temendo represalias, embarcou de noite, ás escondidas, para bordo da numerosa esquadra composta das náos Principe Real, em que ia a familia reinante, Rainha de Portugal, Principe do Brazil, Meduza, e muitos outros navios.
D. Manoel foi dos que se puzeram a salvo, arrastando comsigo Margarida, em cujo coração combatiam os mais encontrados sentimentos. Por um lado, repugnava ao seu animo varonil aquella fuga vergonhosa, deixando Portugal e o povo abandonados á mercê do inimigo; por outro, sorria-lhe a idéa de tornar a vêr o Brazil, em que nascera, e onde se achava o homem que amava, no desempenho de uma missão patriotica, que sabia ir cumprindo elevadamente. Ainda poucos dias antes de embarcarem tivera a confirmação d'esta ideia, que a enchia de esperança e de alegria, pelo seu antigo e dedicado amigo Antonio de Araujo, o embaixador, que fôra, de Portugal em Paris, a cuja prisão assistimos no tempo do Directorio.
Vulto de grande influencia na côrte, e conselheiro dos mais ouvidos por D. João VI, fôra a elle que D. Manoel se dirigira na difficuldade de obter passagem na esquadra, em que toda a gente queria fugir. E Antonio de Araujo viera assistir ao final da ultima tentativa feita pelo tutor, para conjurar o perigo que via imminente aos seus projectos, n'aquella debandada para o Brazil, que lhe salváva a vida, mas que o mettia, por assim dizer, na boca do lobo, com relação ao rival do sobrinho.
Chamou, pois, Margarida, em um dos dias proximos da partida, e com grande solemnidade lhe falou:
-- Conheces, tão bem como eu, as perigosas condições em que somos obrigados a deixar Lisboa.
-- Pois não corramos o perigo, e fiquemos, como tanta gente da classe media e do povo, que tambem fica!...
-- Ahi começas com os teus jacobinismos... Assim não nos entendemos... Vamos para o Brazil, porque o nosso dever é acompanhar a côrte.
-- Que foge... N'esse caso, se entende cumprir um dever, não se queixe, meu tio!...
-- Eu não me queixo! O que desejava, apenas, era prevenir os perigos que esta ida para terras distantes e desconhecidas, tem para ti, uma senhora nova, acompanhada e atida só a um velho como eu!...
-- Ah! Não tenha o menor receio. No Brazil nasci, e lá tenho decerto muitos e bons amigos, tão dedicados como os de Portugal -- acerescentou com intenção, -- que me assistiriam se por acaso, que Deus não permittirá, o tio me faltasse de repente...
Muito desconcertado pelo que ouvia, D. Manoel a custo avançou:
-- Sim, mas entretanto melhor era que embarcasses n'uma situação social mais definida, e mais garantida, pela assistencia de teu marido...
Margarida, que havia muito percebia o ponto a que o tutor queria chegar, e que já se não encolerisava com as suas insistencias, que temia cada vez menos, contentou-se em sorrir, respondendo:
-- Não comprehendo...
-- Fazes-te desentendida... Melhor do que ninguem percebes o que eu quero dizer, visto que embarcaremos no Voador, em que está de guarnição teu primo Alexandre de Mascarenhas...
-- E o que tenho eu com isso?...
-- E' sempre melindrosa a bordo a situação d'uma senhora a quem um official do navio faz a côrte, como toda a gente sabe... Melhor era então, que fosses já na qualidade de sua mulher...
Margarida, sem se alterar, revestiu-se d'um aspecto muito sério, para lhe dizer:
-- Meu tio! Sabe que, desde o incidente de Chellas, tenho pela minha parte, e para fugir a discussões desagradaveis e inuteis, evitado de lhe falar no inabalavel projecto de casar com Diogo Alvares, logo que possa dispor de mim. Esse prazo não vem longe. Vamos, além d'isso, para o Brazil, onde elle está; vamos por vontade do tio, não porque eu o tenha induzido a fazel-o. Por todos estes motivos, já vê que não póde haver nada mais descabido e inopportuno, do que insistir n'essa ideia, que eu cheguei a suppôr que, sensatamente, puzera de parte...
-- Tanto não puz! -- exclamou D. Manoel, exasperado -- que sou capaz até de ficar em Portugal...
-- Faria muito melhor, como portuguez, sem por isso adeantar nem mais um passo quanto a esse irrealisavel projecto...
N'este momento, um criado annunciou á porta da sala:
-- O sr. Antonio de Araujo.
-- Ah! -- exclamou D. Manoel com accentuada alegria, e dirigindo-se ancioso ao recem-chegado. -- Obtiveste as passagens?
-- Trago-vos as ordens de embarque -- e apresentou-lhe uns papeis.
Margarida, apertando a mão ao antigo embaixador em Paris, não poude conter-se, e sorrindo maliciosamente, observou:
-- Bem vê, meu tio! o seu empenho em ir para o Brazil, é ainda mais forte do que o de me casar como entende...
D. Manoel mordeu os beiços despeitado:
-- O nosso amigo Antonio de Araujo incommodou-se por nossa causa vindo aqui... Era dever meu perguntar-lhe pelo negocio em que me fez o favor de se empenhar...
-- Decerto! -- concordou Margarida sempre ironica; e alegremente, concluiu para o diplomata : -- Vamos então todos para o Brazil! Excellente occasião de v. ex.ª empregar a sua influencia para realisar as largas vistas liberaes que tem a respeito d'aquelle grande paiz...
-- Ah! v. ex.ª é a melhor procuradora da patriotica demanda em que o Caramurú, permitta que assim chame familiarmente ao nosso amigo Diogo Alvares, e os patriotas seus correligionarios, se empenham n'esse bello paiz de Santa Cruz...
-- E que admiração?... Não sou eu filha do Brazil?!...
-- Filha... e mais alguma coisa .. -- observou o - diplomata maliciosamente.
-- O quê?
-- Noiva é que eu diria! se não tivesse receio de fazer zangar seu tio...
-- Minha sobrinha é já, póde dizer-se, senhora da sua vontade . . . Disporá o seu futuro como entender... Eu tenho-a aconselhado como a consciencia me diz... Mais nada... -- respondeu D. Manoel apparentando indifferença.
-- O futuro a Deus pertence,-- observou Margarida, occultando mal a sua satisfação por ver como o tio ia batendo em retirada; e concluiu para Antonio de Araujo: -- Temos então que embarcar ámanhã?
-- Ao meio dia devem estar v. ex.as a bordo...
-- Então tratemos dos ultimos arranjos, que não ha tempo a perder...
-- Convenhâmos, -- observou o estadista finamente, -- que a v. ex.ª a fuga da côrte para o Rio de Janeiro, não deixa de lhe causar uma certa alegria...
-- Sou pupilla... acompanho o meu tutor... Se elle quizesse ficar, ficaria da mesma forma contente...
-- Sim -- murmurou a meia voz D. Manoel, conduzindo á porta o seu amigo, -- é o caso da raposa com as uvas...
Na manhã seguinte, muito cedo, no meio da balburdia em que tudo e todos andavam, e da commoção que no povo causava aquella verdadeira fuga da familia real, Antonio de Araujo veio encontrar D. Manoel, fazendo-lhe uma communicação, cujo primeiro effeito foi aterral-o...
-- Já não póde ter logar a vossa ida no Voador.
-- Como?! Ficaremos em Lisboa! quando toda a nobreza vae com o rei?!
-- Não é isso. Ireis em outro navio.
-- Do mal o menos. Em qual vamos, pois?
-- No momento de embarcar vol-o direi, porque depende ainda de varias circumstancias. E até logo, que tenho immenso que fazer.
-- A que horas se parte?
-- Não sei ao certo; esperae-me em Belem, onde embarcará a familia real.
D. Manoel, preoccupado com o arranjo das malas, que por todos os lados ali estavam abertas na propria sala, n'essa confusão que ia por muitas centenas de casas e palacios da capital, em que as familias da alta sociedade, aterradas com a marcha dos francezes invasores, se preparavam para fugir, esqueceu-se de acompanhar o diplomata na sua retirada. Em compensação, esperava-o na sala contigua Margarida, a quem elle disse a meia voz:
-- Está conseguido o que v. ex.ª desejava.
-- Sim?
-- Não irão no Voador, e v. ex.ª fará a viagem livre da côrte assidua e importuna de seu primo.
-- Ainda bem.
-- Mas não é só isso... Tenho agradável nova a dar-lhe...
-- Então?
-- Iremos todos, o que não quiz dizer ainda a D. Manoel, na propria náo Principe Real, em que vae o regente, a rainha mãe, e o infante D. Pedro...
-- Ah!
-- Foi este ultimo que, tendo conhecimento do vosso romance, e verdadeira sympathia pelos liberaes do Brazil em geral, e em particular pelo vosso futuro esposo, o Caramurú, como familiarmente lhe chama, a meu pedido se empenhou com o commandante da esquadra, Manoel da Cunha Souto Maior, para nos dar alojamentos na sua propria náo...
-- Quanto favor devemos a sua alteza..
-- Tereis muitas occasiões de lh'o agradecer, e o Caramurú de lhe prestar bons serviços, pois vamos animados de ardentes desejos de realisar grandes reformas que façam do Brazil o paiz adeantado que deve ser.
Poucas horas depois, o embarcadouro em Belem apresentava um quadro para sempre memoravel.
A multidão apinhava-se sobre o vasto lamaçal em que o terreno junto ao caes fôra convertido pelas chuvas torrenciaes dos dias anteriores.
Estava-se em novembro, e um frio rigoroso de começo do inverno, bem como o tempo carregado, accentuavam o tom desolador d'aquelle momento historico, em que uma rainha victima da loucura, um regente timorato, e uma côrte egoista, partiam para o exilio voluntario, abandonando o reino á mercê dos estrangeiros invasores, emquanto o povo assistia contristado á partida dos seus reis, e ainda tinha abraços, lagrimas e soluços para os despedir, cuidando mais de lhes mostrar dedicação e amisade, do que de evidenciar a angustia e o receio pelo abandono em que o deixavam!
Chegou primeiro o principe regente D. João, como sempre afastado de sua mulher, a princeza D. Carlota Joaquina. A confusão em que tudo andava era tal, que não havia no caes personagens que o aguardassem. Sahiu do coche acompanhado pelo infante de Hespanha, e o povo recebeu-o com lamentos e prantos, tomando-o nos braços, para assim o levar á galeota real, por sobre umas pranchas, que dois cabos de policia, unicas auctoridades presentes, estendiam por cima do lameiro. Partiu a galeota em direcção á náo Principe Real, e pouco depois chegava D. Carlota Joaquina com os filhos.
A princeza, as infantas e o infante D. Miguel, com as damas, embarcaram tambem em outra galeota para a náo Rainha de Portugal. Em terra, rodeado pelo povo, de que depois tantas vezes se havia de acercar nos dias historicos e gloriosos da sua vida, no Brazil e em Portugal, ficou o infante D. Pedro d'Alcantara, esperando a avó, a rainha D. Maria I.
Foi quando esta chegou, acompanhada por duas damas, que se deram as scenas mais pungentes.
Com essa irritação da loucura, que se rebella contra as vontades extranhas que se lhe impõem, a magestade louca recusava-se a caminhar, e protestava em altos gritos, dizendo-se roubada, arrastada ao supplicio, conduzida ao cadafalso!
No animo do povo, esta grita desordenada da rainha era antes considerada como acto consciente, resultado dos factos que se davam, como um protesto da sua vontade contra essa fuga e abandono do reino, que a realeza consummava n'aquelle momento. E por isso, correu voz de que a rainha tinha recobrado n'esses instantes a razão, pensando mais sensatamente do que a multidão dos fidalgos que se diziam em seu juizo.
Não foram os protestos e a grita da pobre rainha louca que detiveram a armada portugueza conduzindo os reis e os aristocratas fugitivos. D'ahi a pouco levantava ferro, para ser saudada, primeiro pelos tiros de polvora secca das náos inglezas surtas no Tejo, que salvavam festivamente, vendo em pratica o conselho do embaixador inglez, e para, a seguir, ser alvejada pelos tiros de bala da propria fortaleza de S. Julião da Barra, que Junot, o general francez da primeira invasão, lhe mandava disparar.
E esta emigração politica em grande, este exodo no Brazil, haviam de ser passos gigantes para o engrandecimento e futura independencia da antiga Terra de Santa Cruz.
VI
Sonhos realisados
O estabelecimento da côrte portugueza na sua colonia da America foi pelo regente notificado ás potencias, adduzindo como causa da fuga de Portugal a invasão franceza; e d'aqui, em represalia, derivou ser um dos primeiros actos do governo, creado no Rio de Janeiro, a conquista da Guyana franceza. A par d'isto, tomaram-se algumas medidas que augmentaram a prosperidade do Brazil, como foi a abertura dos seus portos ao commercio extrangeiro, ao passo que a categoria de côrte, a que a capital brazileira passava, pedia a creação de estabelecimentos superiores de ensino, e a divulgação da imprensa. Estes factos, conjugados com o exemplo das colonias hespanholas da America libertando-se da tutella da metropole, e aspirando a maiores garantias liberaes, estabeleceram no Brazil um conflicto latente, de principios, entre a monarchia que ali fôra abrigar-se, e que era sempre absolutista, e as idéas predominantes no paiz, que eram avançadas.
Felizmente, uma alta individualidade, a do filho do principe regente, o infante D. Pedro d'Alcantara, estabeleceu o traço de união entre esses dois principios; e quando D. João VI occupou de direito o throno, em que havia muito se assentava de facto, seu filho, tornado principe herdeiro, tinha já a aureolar-lhe o nome a reputação de espirito superior e avançado, que o fez naturalmente donatario da corôa do Brazil, quando o rei de novo voltou a Portugal, successor indicado primeiro pela força das circumstancias, e depois consagrado pela revolução. Esse movimento liberal levou, entretanto, alguns annos, e foi-se fazendo gradualmente pela politica habil de D. Pedro, que, livrando o rei seu pae das sérias difficuldades em que muitas vezes se achava para transigir com os principios liberaes, soube ir-se rodeando dos patriotas brazileiros, e d'alguns portuguezes liberaes, que, como o Caramurú, tinham desertado de Portugal antes da côrte, não, como ella, fugindo aos incommodos da invasão franceza, mas por não poderem supportar a reacção absolutista que no reinado de D. Maria I se accentuára contra as tendencias liberaes da anterior administração do grande marquez de Pombal.
D'este estado de coisas, derivára a realisação dos planos a que Antonio de Araujo se referira, falando com Margarida na vespera de deixarem Lisboa. O Caramurú tornára-se um dos enthusiastas do principe D. Pedro, e este, novo como elle, comprehendera, a par das suas ideias politicas, os sentimentos do seu coração, e fizera-se paladino da victoria d'esses antigos amores entre a sobrinha de D. Manoel de Mascarenhas e o joven patriota. Esta clientella partidaria que se creára, levou
Antonio de Araujo ao ministerio, pela morte do conde das Galvêas, e, dando satisfação ás aspirações dos liberaes brazileiros, o primeiro acto da sua administração foi elevar o Brazil á categoria de reino, unido ao de Portugal e dos Algarves, o que acabava com a sua posição de simples colonia, dando-lhe todas as garantias da metropole europêa.
Foi este um acontecimento faustoso, seguido em breve por outro não menos feliz: o ajuste de casamento entre o principe D. Pedro e a archiduqueza d'Austria, Maria Leopoldina. Fôra o marquez de Marialva encarregado de ir como embaixador a Vienna d'Austria desposar a princeza por procuração, e o principe, querendo testemunhar ao Caramurú o seu affecto, mandou-o chamar dias antes da embaixada partir.
-- Diogo Alvares, quero dar-te uma prova de sympathia que me deve a tua pessoa e o teu caracter, e da conta em que tenho os serviços que me tens prestado e ao Brazil...
-- Mais do que tudo, me recompensam as palavras de vossa alteza...
-- E' bem que attendas um pouco ao teu futuro, e á tua propria felicidade, que esqueceis um tanto, dedicado de preferencia á felicidade e ao futuro d'esta patria adoptiva.. Sabes que vou casar-me... Tu casaras tambem na mesma occasião...
-- Mas... Senhor!
-- Porventura não achaes ainda que seja tempo? Queres esperar e Margarida, pelos cabellos brancos? Já attingiu, como queria, a maior idade...
-- E' certo, meu senhor... Mas tendo-me dito generosamente que, agora, já senhora da sua vontade, mais lhe agradaria obter o voluntario assentimento do tio, e contando com isso, estimaria que addiassemos o nosso enlace para o fim d'este anno...
-- Tens excessiva boa fé, Diogo Alvares, e convém que sem demora esclareças uma situação, que, como teu amigo, me dá que pensar...
-- Quer Vossa Alteza que suspeite dos sentimentos de Margarida?!
-- Não! por Deus! que ainda mais confiante, em tudo e em todos, é do que tu mesmo!... Mas, para te fallar com inteira franqueza, tenho conversado muito a teu respeito com Antonio de Araujo...
-- Mais uma graça, meu senhor!
-- Tem vindo isso, por varios motivos, á discussão, quando nos temos occupado das tentativas da reacção para restabelecerem o Santo Officio no Brazil...
-- Mas, esclarecei-me, senhor! o que sabeis?... -- interrogou o Caramurú inquieto.
-- Saber, nada sabemos, por ora. Mas suspeitamos e procuramos esclarecer-nos... Faze outro tanto.
-- Farei, decerto, meu senhor...
-- Comtudo, não te assustes... Maiores dificuldades temos vencido... E, dê por onde dér, espero que, como te disse, casarás quando eu casar; e como demonstração publica do apreço em que te tenho, Diogo Alvares! irás como aggregado á embaixada do marquez de Marialva a Vienna d'Austria, e acompanharás para o Rio de Janeiro a minha noiva...
-- E' insigne a honra que vossa alteza me concede, -- respondeu commovido o Caramurú, beijando a mão do futuro imperador do Brazil.
-- Não merece menos a dedicação que tens mostrado ao lado dos patriotas brazileiros, pela causa do progresso e da liberdade d'este reino... Vae, e faze o que te disse, emquanto te preparas para seguir para a Europa a encontrar-te com o embaixador.
N'essa mesma noite, o Caramurú foi, como de costume, falar com Margarida. Tendo já attingido a maioridade, e senhora, portanto, das suas acções, D. Manoel comprehendera que a unica esperança que ainda lhe restava de realisar os seus planos, era não fazer opposição aberta á sua vontade.
Iria demorando o casamento, sob pretextos diversos, tendo um plano reservado; ou esperando novo acaso propicio que o viesse ajudar, contando mesmo que pudesse surgir na lucta de interesses e paixões em que o Caramurú andava envolvido, por via das suas ideias politicas. Não fazia porém dificuldades materiaes á correspondencia dos namorados, comquanto seguisse attento e dissimulado a marcha das suas relações, e falando da sobrinha com os seus affeiçoados muitas vezes dizia:
-- Por emquanto não ha perigo, occupam-se mais do que chamam : a liberdade do Brazil, do que de negocios de coração...
O Caramurú nunca mais falára a D. Manoel, desde os acontecimentos de Napoles, mas quasi diariamente se encontrava com Margarida em casas de pessoas da alta sociedade estabelecida no Rio. Contou-lhe, portanto, o que o infante lhe dissera, accrescentando:
-- Parece-me, com effeito, que é tempo de concluirmos os nossos negocios particulares..
-- Quando casa sua alteza? -- perguntou Margarida, parecendo bastante apprehensiva.
-- Ainda este anno, logo que o embaixador volte de Vienna com a archiduqueza...
-- Está bem... até então, espero que tudo se resolverá...
-- Mas, não te comprehendo, Margarida! Agora que és maior e senhora da tua vontade!... de que póde estar dependente a tua resolução, a não ser d'ella?...
Margarida ficou pensativa e silenciosa, o que muito estranhou o Caramurú...
-- Não respondes! Que motivo póde haver?
-- Motivo não ha... Apenas desejo meu de esclarecer o assumpto...
-- Fala sem rodeios, como sempre tens usado comigo. Francamente, desconheço-te!... Reticencias, meias palavras, agora que és livre!... espantam-me -- replicou o Caramurú começando a exaltar-se...
-- Socega, por Deus t'o peço!... Não estamos em logar proprio para tratarmos, como é necessario, a questão grave que ambos temos o dever de apurar... A'manhã á noite te esperarei... como de costume... Sim?
-- Irei... Quero saber que mysterio é este!...
No dia seguinte, entendeu Margarida, dispondo-se
para a entrevista que devia ter com Diogo Alvares,
consultar antes o tio quanto ao extranho caso que, ha-
via dias, a trazia sob. penosa impressão.
-- Tenho que o ouvir, meu tio, sobre um assumpto muito grave...
-- Agradeço-te a attenção, uma vez que és já senhora das tuas acções... De que se trata?
-- Do meu casamento!
E dizendo isto, Margarida fixava attentamente os olhos nos de D. Manoel, pretendendo descobrir as suas mais reservadas impressões.
-- Conheces as minhas ideias; mas, repito, és agora senhora da tua vontade... Com quem pretendes casar, é inutil perguntar-t'o... Sabes que não sympathiso com o Caramurú, unicamente pelos seus principios... mais nada.
-- E' que também eu hesito agora...
-- Sim?! E que razão tens? -- perguntou D. Manoel com um vislumbre de esperança renovada...
Margarida, sem responder, tirou subitamente d'algibeira um papel, e estudando-lhe a expressão do rosto, disse a D. Manoel:
-- Esta carta que recebi... Leia! Se não é verdade o que ahi se diz, representa a maior das infamias!...
-- Mas o que é? -- insistiu o fidalgo com a maior naturalidade...
-- Leia!... Leia!...
D. Manoel leu em voz alta:
«Amigos dedicados aconselham a V. Ex.ª que, antes de casar, averigue se não existirá entre si e o Caramurú um parentesco que torna o casamento impossivel. O pae de V. Ex.ª quando esteve no Brazil, commandando um dos regimentos da guarnição do Pará, durante o governo do irmão do marquez de Pombal, Mendonça Furtado, para se proceder á demarcação das fronteiras, achou-se envolvido em uma aventura amorosa, em que o supposto pae do Caramurú attentou contra os seus dias.»
-- Oh! isto é infame! Volvidos tantos annos, quem será o miseravel que se lembra de reviver essa vil calumnia?! -- exclamou D. Manoel, amarrotando o papel que tinha nas mãos...
-- Mas então? meu tio! houve um qualquer incidente entre meu pae e o de Diogo Alvares?...
-- Não, descança, e tenho as provas d'isso...
-- Sim?
-- Dar-t'as-hei.. E só te digo que suspeito de que lado partiu esta inacceitavel maneira de combater um adversario politico...
-- De quem desconfia? diga-me...
-- Não, não quero fazer juizos temerarios. Deixa-me guardar para mim o que pódem ser infundadas suspeitas... Este meio que vejo empregar, menos para impedir o teu casamento, do que para lançarem no desespero um inimigo politico, revolta-me por tal fórma, que não quero, nem por sonhos, embora indirectamente, beneficiar de tal obra... Sabes quanto me tenho opposto a que te unas ao Caramurú.
«Pois bem, em vista d'esta infame aleivosia, sou eu que te digo: casa com elle!...
-- Oh! Meu caro tio! Mal sabe a felicidade que me dá! -- exclamou Margarida abraçando entre lagrimas D. Manoel...
A' noite, como estava ajustado, o Caramurú veiu junto da varanda do jardim do palacete.
-- Será agora occasião de me explicares as extraordinarias palavras que hontem te ouvi?...
-- E'! Mas não serei eu que t'as explicarei...
-- Quem, então?
-- Meu tio, que está aqui a meu lado, e que te pede para entrares em sua casa.
Na escuridão da noite, não foi possivel ver o enorme espanto que se pintou no rosto do Caramurú, mas traduziu-se elle nas suas palavras...
-- Gracejas, Margarida! Teu tio é o mais irreconciliavel dos meus inimigos!...
-- E' injusto, sr. Diogo Alvares! tem outros muito mais para temer... E' justamente isso que lhe quero provar. Suba, -- concluiu D. Manoel, que descera e abria uma pequena porta do jardim.
Quando chegados a uma sala, o fidalgo fechou a porta, e convidando o Caramurú a sentar-se disse-lhe:
-- Professamos ideias contrarias, e politicamente nunca seremos amigos. Mas assim como a grande familia portugueza se acha dividida em avançados e reaccionarios, assim póde haver um tio reaccionario d'um sobrinho liberal... Sel-o-hei...
-- Mas a que feliz successo devo a mudança que vejo nos sentimentos de v. ex.ª a meu respeito ?
-- Ao facto de não querer beneficiar d'um ataque aleivoso dos seus inimigos. Leia, lhe digo, como Margarida me disse esta manhã.
O mancebo percorreu com os olhos, ancioso, o papel que D. Manoel lhe dera, e fazendo-se excessivamente pallido, exclamou indignado:
-- Isto é não só infame, mas insensato!... Jámais ouvi a menor referencia a semelhante facto...
-- Foi effectivamente uma calumnia que inventaram, no tempo em que seu pae e o pae de Margarida habitavam no Brazil. Seu pae era partidario acerrimo da politica de Pombal, de quem era irmão e representante o governador do Maranhão e Pará, Mendonça Furtado. Achou este empenhado em uma guerra sem tregoas com os jesuitas.
-- Ah! presinto d'onde vem o golpe...
-- Meu irmão, coronel d'um regimento vindo de Portugal para sustentar a auctoridade do governador, cumpriu o seu dever de militar, sem cuidar de politica e era amigo intimo do Caramurú d'esses tempos.
-- Assim o ouvi sempre!
-- E eu tambem! -- accrescentou alegremente Margarida.
-- Querendo desunil-os, e promover discordias, uma vez que o coronel ia sendo victima d'uma traiçoeira embuscada, inventaram um romance em que faziam d'elles rivaes, accusando seu pae d'esse attentado... Tenho aqui as cartas em que meu irmão me contou toda essa vil intriga, que agora quizeram reviver contra si... Eis o que nos fará amigos, não politicamente, mas como parentes que seremos...
-- Consinta que lhe aperte a mão agradecido, sr. D. Manoel, como áquelle a quem nunca desejei senão bem.
-- Vel-os felizes á agora o meu maior desejo. Tu, -- continuou, dirigindo-se a Margarida, -- sei que lhe queres, tanto quanto é possivel...
-- Foi o que sempre lhe disse, meu tio, desde pequena... -- respondeu Margarida, no auge da alegria, abraçando o ex-tutor.
-- Sei-o! Sei-o bem! Que elle te retribua sempre, querendo-te como quer á sua deusa, a liberdade, por amor da qual lhe iam fazendo passar um máu bocado, com essa denuncia...
Quando o Caramurú narrou ao principe o succedido, D. Pedro, voltando-se para Antonio de Araujo, perguntou-lhe:
-- Que dizes a isto?
-- Que me não admira: é o agradecimento que os partidarios da reacção queriam dar ao nosso Caramurú, por se ter feito um dos mais acerrimos adversarios da readmissão do Santo Officio no Brazil, medida que me ufano de ter feito decretar ao augusto pae de vossa alteza.
-- Deixa-os comnosco, Diogo Alvares! que lhes não permittiremos levantarem a cabeça. O Brazil será cada dia mais liberal!... Parte para Vienna, como te disse, e quando voltares haverá successos importantes, não sendo o menor o dos nossos casamentos.
Assim succedeu, com effeito, algum tempo depois.
Os esponsaes de D. Pedro d'Alcantara com a archiduqueza Maria Leopoldina d'Austria, e do Caramurú com Margarida, realisaram-se com poucos dias de intervallo, sendo os principes seus padrinhos. Terminada a ceremonia, o futuro imperador do Brazil, tomando o afilhado de parte, disse-lhe:
-- E' natural que desejes ir mostrar a tua mulher os dominios d'esse teu antepassado, o Caramurú chefe de goyanazes e tapuyas. Vae descançar algum tempo das lides patrioticas, em Villa Velha, para estares prompto no dia em que te chamar e precisar de ti...
-- A corôa do Brazil, senhor! pertencer-vos-ha, para felicidade deste povo, mais cedo do que era de esperar...
-- Ah! não digas tal!... Deus avivente meu pae!..
-- Por muitos e largos annos... para felicidade de Portugal, que o chama, e precisa d'el-rei D. João VI, como o Brazil precisa de D. Pedro I.
-- Não sonhes acordado, Diogo Alvares!...
Não estão realisados já, com o casamento, uma parte dos nossos sonhos? senhor!
-- Estão! com effeito...
-- Creia-o vossa alteza: depois de uma, outra paixão; depois do coração, o cerebro; depois do amor, a independencia da Terra de Santa Cruz!
VII
O regresso a Portugal
Como o príncipe D. Pedro lhe dissera, o Caramurú fôra mostrar a sua mulher os dominios herdados de seus maiores, perto da cidade da Bahia, da qual Margarida era oriunda, e entretido com negocios importantes nas suas fazendas de Villa Velha, demorára-se por mais tempo do que tencionava, esperando aviso do principe a chamal-o novamente para o seu lado. Foi ali que teve conhecimento dos dois importantes successos que, ao mesmo tempo quasi, se deram no Brazil e em Portugal, e que, foram o verdadeiro prefacio da revolução de 1820, que havia de estabelecer na antiga metropole, definitivamente, o novo regimen da monarchia liberal, e que repercutindo-se na tambem antiga colonia da America, agora erigida em reino, determinaria a sua independencia.
Foram esses successos: a conspiração liberal contra o governo absolutista e vexatorio da regencia, que em Lisboa ficára representando a realeza ausente no Brazil, e que deu em resultado as execuções dos martyres da patria, no Campo de Sant'Anna, e a de Gomes Freire d' Andrade junto á Torre de S. Julião da Barra, e a revolução de Pernambuco, motivada mais pelo exemplo das colonias hespanholas pretendendo emancipar-se da auctoridade da metropole, do que, como se propalou, por justas queixas contra as preterições soffridas nas promoções dos postos militares pelos filhos do Brazil, em proveito dos nascidos em Portugal. Tanto um como outro d'esses movimentos foram supplantados, mas não deixaram de ter consequencias, que logo se começaram a fazer sentir. Em Portugal, foram ellas o tornarem-se cada vez mais vivas as accusações contra a regencia, e mais instantes as supplicas a D. João VI para que regressasse ao reino, onde já não havia occupação franceza que justificasse a ausencia da côrte; e no Brazil, o desgosto por vêr partir a realeza, e d'ahi a consequencia natural, da aspiração a elevar uma realeza sua propria, a monarchia brazileira, na pessoa do principe real D. Pedro, que se havia creado um verdadeiro partido, pela fórma por que sempre interviera junto de seu pae em favor das aspirações liberaes do Brazil.
D. João VI, porém, fraco e incapaz de arrostar com as difficuldades, valia-se do filho para as conjurar, mas, passada a crise, afastava-o dos negocios do estado, propositadamente.
Tal era a situação, quando o Caramurú foi de novo chamado para o lado do principe, cujo espirito esclarecido de politico antevia os importantes suecessos que se approximavam.
Chegou o Caramurú ao Rio de Janeiro, precisamente em um dia memoravel: D. João VI acabava de convocar a toda a pressa o conselho de ministros, por causa da noticia da revolução de 1820, trazida ao Rio de Janeiro pelo bergantim mercante Providencia.
Emquanto o conselho deliberava, em uma sala dos aposentos do principe D. Pedro, entretinha-se este com o Caramurú e José Bonifacio a respeito dos acontecimentos.
-- E' para lamentar -- dizia o ultimo -- que el-rei não chamasse vossa alteza a assistir ao conselho...
-- Acatemos sem commentarios as resoluções de sua magestade...
-- Por certo, meu senhor! -- observou o Caramurú, mas seria absoluta cegueira não reconhecer que vossa alteza é a unica pessoa capaz de bem aconselhar el-rei n'estas condições, é de o coadjuvar na crise em que a realeza se acha, aqui e em Portugal mesmo.
-- Lá estão no conselho, o conde dos Arcos, liberal como nós, e Villa-Nova Portugal, conservador intransigente, para, entre as suas idéas differentes, el-rei optar pelo que melhor lhe parecer. Esperemos. Entretanto, este nome de Villa Nova, traz-me á memoria Villa Velha, os teus dominios de que chegas, Diogo Alvares!... Lá o que se pensa?...
-- Que sua magestade, mais dia menos dia, terá de regressar a Portugal, e que vossa alteza é aquelle a quem Deus destinou para subir ao throno do Brazil independente...
O principe sorriu-se, como se esta perspectiva futura lhe não desagradasse, e respondeu:
-- Vem longe ainda, e é bastante duvidoso, esse futuro... Mas tu, Diogo Alvares, que és portuguez, como eu, não te sentes um tanto melindrado no teu amor proprio com a idéa do Brazil se emancipar de Portugal?
-- Não, meu senhor! Nasci no Minho e quero a Portugal como filho, mas o Brazil tem sido, ha trez seculos, para mim e para os meus antepassados, uma outra patria! Diz-me a razão que devo querer tanto a um como a outro; e diz-me o conhecimento das condições d'ambos, que a melhor maneira de se engrandecerem e ajudarem reciprocamente, é vivendo como irmãos, sim, mas livres e independentes.
-- E vós que pensaes? José Bonifacio.
-- Que o Brazil é grande de mais para colonia de Portugal, e Portugal metropole pequena de mais para ter o Brazil por colonia!... Unidos pelos laços do sangue e dos interesses politicos e commerciaes, poderão, independentes, cada um, coadjuvar-se muito melhor...
N'este momento, a chegada do conde dos Arcos veiu interromper a conversação.
-- O que se decidiu no conselho?...
-- El-rei tomou a resolução de censurar como illegal o procedimento da regencia, que transigiu com a revolução; de ordenar que em Portugal se convoquem as côrtes, não constituintes, para approvarem a reclamada carta constitucional que a revolução pede, mas pelo systema antigo; e que vossa alteza parta immediatamente para a Europa.
-- Cumprirei, como sempre, as ordens d'el-rei meu pae; mas sinto ver que sua magestade não mede todo o alcance dos acontecimentos...
-- Tambem assim lealmente lh'o representei no conselho... El-rei espera a vossa alteza...
-- Vou já receber as suas ordens, -- respondeu o principe; e como n'este momento chegassem mais alguns patriotas brazileiros, visivelmente descontentes com a resolução annunciada, tomando o Caramurú á parte, disse-lhe: -- Convence-os que el-rei é que terá de regressar a Portugal! Mas se eu tiver de ir, Diogo Alvares, conto comtigo para me acompanhares, pois será difficil a nossa tarefa... Não te custará deixares agora tua mulher?
-- O dever está em primeiro logar, meu senhor...
-- Assim é. Elle me chama agora ao pé de meu pae, que eu bem quizera vêr seguir francamente o caminho que a revolução liberal lhe indica...
Os acontecimentos vieram logo dar razão ao modo de ver do principe, e mostrar como impossiveis as hesitações de D. João VI, ora aferrado ás prerogativas absolutistas, ora tremente e receioso, deixando correr tudo á revelia, atemorisado nos momentos criticos com o espectro de Luiz XVI levado pela revolução ao cadafalso.
Chegou ao Rio de Janeiro o conde de Palmella, que veiu expôr bem claramente a el-rei como as idéas liberaes faziam caminho em Portugal, e como seria perigoso querer deter o movimento, já victorioso, da revolução de 1820. Foi, portanto, sustada a partida do principe, emquanto el-rei, como dissera, pensava maduramente no que havia de fazer.
Os acontecimentos, porém, não deram lugar a pachorrentas reflexões. O proprio movimento de Portugal communicára-se a todas as ilhas adjacentes e ás suas colonias, e fazia-se já sentir tambem no Brazil, mais disposto ainda do que ellas para essa nova ordem de idéas. Mas, depois d'um novo conselho de ministros, o rei persistiu no seu proposito, promulgando decretos n'esse sentido. O conde de Palmella, vendo o perigo para que a monarchia corria, deu a demissão, e os patriotas, quando o rei insistiu em mandar para Portugal o principe, em quem punham todas as suas esperanças, romperam na insurreição do Rio de Janeiro.
No auge do terror, D. João VI valeu-se, como de costume, da popularidade do filho.
D. Pedro, rodeado pelos seus mais fieis partidarios, dirigiu-se ao ponto em que se achavam os regimentos sublevados em armas e o povo amotinado, impondo-se-lhes pela sua coragem.
-- O que desejaes? -- lhes perguntou!
Foi um dos chefes do movimento, o advogado Macamboa quem respondeu:
-- Queremos a demissão dos ministros reaccionarios, e que el-rei jure promulgar a constituição que as côrtes de Lisboa fizerem.
-- Sim! Sim! Eis o que desejamos -- bradaram em coro o povo e a tropa.
-- Esperae em socego a resolução d'el-rei, a quem vou transmittir o que pedis...
E o principe retirou-se, acclamado pelos insurrectos.
Como sempre, D. João VI transigiu em face do perigo. Foi demittido o ministerio e nomeada uma situação liberal em que entrava o publicista Silvestre Pinheiro, um dos mais respeitados patriotas, o conde da Louzã, Monteiro Torres e Ignacio Quintella, e prometteu jurar a constituição.
D. Pedro, leal como filho e principe, quiz fazer reverter para a côroa de seu pae e rei, a ovação enthusiastica de que foi alvo, quando veiu trazer aos insurrectos a resposta ás suas reclamações.
-- Agradeço-vos do coração! Não é a mim, porém, mas a el-rei, que deveis acclamar.
E dirigindo-se ao paço, convenceu D. João VI a que sem demora se apresentasse ao povo.
D'ahi a pouco, o Rocio do Rio de Janeiro apresentava um espectaculo extraordinario! O rei apparecia de carruagem, acompanhado pelo principe, e a multidão, em onda tumultosa, gritando enthusiasticamente, saudava-o com vivas e acclamações, e tirando os cavallos ao coche, levava-o triumphalmente ao paço, e ali, erguendo nos braços o rei, subia as escadas até o depôr na primeira sala, voltando á rua a acclamal-o.
-- Apparecei-lhe novamente, senhor!-- disse então o principe.
D. João VI, repartido entre o terror e o contentamento, chorando como uma creança, e impellido pelo filho, chegou á varanda do paço, e d'ahi renovou as suas promessas, que o povo acolheu com novos e enthusiasticos vivas.
E não obstante, passadas varias scenas de hesitações d'el-rei, parecidas com esta, D. João VI, aterrado com o contacto da revolução liberal que se pronunciára junto a si, resolvia partir para Portugal.
A primeira impressão no povo, foi de espanto e dôr. Mas os patriotas brazileiros, pondo novamente as esperanças no principe, que ficava, definiram então o principio da indepedencia brazileira, que até ahi se confundia com o principio liberal.
Para o Caramurú e Margarida estes acontecimentos acarretavam mais um sacrificio.
-- El-rei parte ámanhã. Em Lisboa vão reunir-se as côrtes que farão a constituição para Portugal e para o Brazil. D. Pedro e os meus amigos querem que eu siga os acontecimentos na Europa, para de tudo os informar...
-- N'esse caso acompanhar-te-hei...
-- Não! Peço-te que fiques...
-- Mas não tencionavamos ir a Portugal depois de casados visitarmos juntos o nosso Minho?...
-- Esses planos, são infelizmente irrealisaveis, por agora, e queira Deus que se não tornem mesmo para sempre impossiveis, -- respondeu o Caramurú com accentuada tristeza. E vendo a admiração que ás suas palavras se traduzia no rosto da esposa, concluiu: -- Nunca pensei, Margarida! que a minha fé liberal viesse a trazer-me tão graves sacrificios...
-- O que queres dizer?...
-- A missão que o principe me confia, e que já agora cumprirei, porque não quero renegar os meus principios, ha de ser mal vista em Portugal por todos aquelles para quem a liberdade não seja um ideal superior a quaesquer outras ideias... Uma terão elles que hão de antecipar a essa...
-- Qual?
-- A ideia da patria...
-- Começo a perceber... Receias as rivalidades entre o amor patrio portuguez e o amor patrio brazileiro...
-- Exactamente!... Esse nobre egoismo, se assim se lhe póde chamar, esse amor proprio de metropole e colonia, despertou já... Portugal fez a revolução pedindo a carta d'uma nova constituição, e o Brazil emitte o mesmo voto pedindo-a igualmente... Estão n'este ponto d'accordo... Mas quando Portugal reclama os seus direitos de metropole e pede que o rei volva á sua antiga côrte, o Brazil protesta, receiando que, perdida a sua qualidade de côrte, volte a ser considerada colonia...
-- Mas D. Pedro fica?!...
-- E para quê? Não nos illudamos... Os destinos historicos teem de cumprir-se... Por mais leal que o principe se queira conservar para com seu pae, o Brazil só vê n'elle um rei que fica, no logar do rei que parte... Em Portugal, vê-se isto tambem; e quando ámanhã, nas côrtes constituintes encarregadas de preparar a constituição, os deputados brazileiros pedirem para a sua terra as mesmas garantias que Portugal obtiver, no espirito do legislador, o amor proprio despertará ciumento, e recusará essas franquias, cuja consequencia natural seria a emancipação da antiga colonia..
-- Mas não as concedendo, -- observou Margarida com a sua natural perspicacia, -- a minha patria tomal-as-ha... Far-se-ha independente!...
-- Ahi estás tu proferindo a realidade do futuro, leal e espontaneamente, como filha do Brazil, apesar de minha mulher... E' uma consequencia de factos historicos, que tem de dar-se...
-- Mas, embora independentes, os dois paizes, viverão unidos pela amizade de irmãos...
-- De certo.. Porém... mais tarde, quando a reflexão vier e animos tiverem serenado... Por agora, no calor dos affectos patrios, e no ardor das paixões politicas, predominarão más vontades e despeitos de parte a parte... Eis o que tornará mal vista dos portuguezes a missão que eu, filho do Minho, vou exercer, em Lisboa...
-- Mais uma razão para querer estar ao teu lado..
-- E soffreres, como eu, sem resultado util, porque todos comprehenderão que os deputados brazileiros pugnem pelos direitos da sua patria; ninguem comprehenderá, porém, que eu, portuguez, lá esteja como uma especie de procurador da causa da independencia d'esta terra...
-- E porque não recusas essa missão?...
-- Pela mesma razão porque o principe não poderá um dia recusar a corôa do Brazil...
-- Antevejo-a...
-- Porque eu sou o representante do Caramurú, o primeiro colono portuguez, que no Brazil se estabeleceu, como elle é o representante da monarchia que ao descobrir a Terra de Santa Cruz, tomou o encargo de a civilisar e engrandecer... Antes de tudo, está esse dever a cumprir... A historia nos fará justiça mais tarde... Por agora, só devemos contar com o sacrificio que faz todo aquelle que, embora conscio de que bem procede, sabe que será mal visto...
Acabando de assim dizer, o Caramurú ficou tristemente concentrado. Margarida, abraçando-o carinhosamente, disse-lhe:
-- Consola-te com a ideia de que, uma vez cumprida essa ultima parte da tua missão de liberal sincero, terás na Villa Velha, fundada pelo teu glorioso antepassado, e em mim, como descendente d'essa formosa Paraguaçú que tanto o amou, uma outra patria e o amor da familia para te compensarem.
-- Sim! Será essa ideia que ha de tornar menos doloroso o adeus que vou dizer ao Minho em que nasci.
D'ahi a dias, quando a côrte partiu, D. João VI despediu-se do principe seu filho com umas palavras equivalentes, na significação, ás do Caramurú a sua esposa:
-- Bem vejo que o Brazil não tardará a separar-se de Portugal, -- disse o rei, quasi em segredo, a D. Pedro; dando-lhe o ultimo abraço, e concluiu: -- N'esse caso, se não puderes conservar-me a corôa, guarda-a para ti e não a deixes cahir em mãos de aventureiros.
FIM DA PARTE SEGUNDA
EPILOGO
Nas margens do Ypiranga
As previsões do Caramurú não só foram confirmadas pelos factos, mas a realidade passou ainda além d'ellas, dilacerando-lhe positivamente o coração, na amargurada e espinhosa tarefa que o principe o encarregára de cumprir em Portugal.
Emquanto os politicos de Portugal o viam com máus olhos, os deputados brazileiros enviados ás côrtes constituintes
mostravam-se desgostados com elle, por não fazer triumphar junto de D. João VI, as reclamações que o principe D. Pedro lhe dirigia, para serem dadas ao Brazil as garantias que pedia, e d'esta maneira conjurar a separação imminente.
As côrtes, porém, ao passo que recusavam todas as propostas dos deputados brazileiros, iam mostrando accentuada má vontade contra o principe, que, aliaz, nas suas cartas para o rei seu pae, mostrava sempre absoluta fidelidade, e, só forçado pelos acontecimentos, e pelas hostilidades dos liberaes portuguezes, veiu a transigir com o movimento separatista do Brazil.
Foram particularmente angustiosos para o Caramurú os dias em que assistiu ás agitadas sessões em que se discutiu a constituição, nas quaes Borges Carneiro, Moura, Ferreira Borges e outros oradores notaveis do partido revolucionario de 1820, travaram pugna acirrada com os representantes brazileiros, Bueno, Vergueiro e Antonio Carlos de Andrade e Silva, que defendeu calorosamente seu irmão José Bonifacio, agora retirado no Rio de Janeiro, das aceusações feitas á sua vida politica quando exercera o cargo de inspector da segurança no Porto. Antonio Carlos, com os olhos fitos no Caramurú, que, da galeria; lhe agradecia commovido a defeza do seu amigo e do principe D. Pedro, acabou sustentando solemnemente que o Brazil não se queria separar de Portugal, preferia a união sincera dos dois estados, mas reclamava a liberdade inteira, e havia de conseguil-a, apezar de todos pezares!
Mais dolorosa para elle do que a sessão em que os deputados brazileiros declararam não assignarem a constituição e se retiraram da camara, escrevendo depois Antonio Carlos e Costa Aguiar o seu protesto em Falmouth, só foi a despedida ao seu querido Minho.
Prestes a retirar para o Brazil, comprehendendo que o preço da sua dedicação sincera e desinteressada aos principios liberaes, seria talvez o exilio na America por todo o resto da sua vida, o Caramurú quiz rever os sitios em que passára a infancia, d'onde partira havia tantos annos, no cumprimento da sua tradicção de familia, a educar-se em Paris, seguindo depois para o Brazil, com a aprendizagem liberal feita na França revolucionaria. Percorreu ancioso essa mesma estrada que, prolongando-se pelas formosas margens do Lima, ia a Santa Martha e Deuchriste, parou n'esse angulo do caminho, historico na vida do seu famoso antepassado, o primeiro Diogo Alvares que se estabelecera em Santa Cruz, quando ao regressar da viagem com o navegador florentino Americo Vespucio, fôra á pressa chamado por D. João Telles, e d'ahi percebera as luzes dos cirios que acompanhavam o enterro da sua noiva, a virtuosa D. Anna!
Apertou-se-lhe o coração com essa lembrança das desventuras que, no passado como no presente, parecia serem a recompensa mandada pelo destino aos actos de dedicação e sacrificio prestados pelos do seu sangue á pátria. Passou adiante, esporeando o cavallo, como a fugir a um sonho máu, e d'ahi a pouco, o espectaculo que tinha ante si levava ainda a maior auge a sua amargura: o antigo solar dos Caramurús achava se convertido em um montão de ruinas! Passará por elle a onda destruidora da invasão franceza, que deixára assignalada com o destroço das balas e do incendio, uma especie de ironica saudação, de odio e irreverencia, á morada do fidalgo portuguez, que pondo de parte os preconceitos de raça, se convertera aos principios da França liberal.
-- Triste sina a da liberdade! que por toda a parte só póde ser implantada á custa de mortes e ruinas! Nem tu escapaste! adorado solar dos meus antepassados!
Assim disse o Caramurú, com as lagrimas a correrem-lhe pelas faces; e passados momentos de triste contemplação, arrancou-se d'alli, indo embarcar a Vianna, com destino ao Rio de Janeiro.
Não encontrou lá D. Pedro, que fôra a S. Paulo, n'essa peregrinação de apaziguamento das insurreições que se iam suecedendo em todas as provincias do Brazil, á medida que se conheciam os factos passados nas constituintes de Lisboa.
A princeza, com quem Margarida, que apenas tivera o tempo de abraçar, ficára, encarregou-o de ser o portador d'uns despachos vindos de Portugal, e que, em razão dos successos já conhecidos, deviam ser de excepcional importancia.
Chegado a S. Paulo, soube que o principe se achava nas margens do formoso rio Ypiranga, e para ali partiu, á redea solta.
Foi encontrar o futuro imperador rodeado por um grupo de amigos dedicados, e consolando-se das amarguras que lhe iam na alma, com a contemplação d'aquella maravilhosa paizagem da America, n'esse convivio da grandiosa natureza, joia do reino que o destino lhe offerecia, ao par que acontecimentos politicos lhe dilaceravam o coração de filho.
Aquelle cavalleiro, approximando-se em vertiginosa carreira, attrahiu as attençoes do principe e dos que o acompanhavam.
-- Diogo Alvares! Chegaste emfim! -- exclamou D. Pedro, no momento em que o Caramurú, atirando-se abaixo do cavallo, se lhe lançava aos pés dizendo:
-- Melhor fôra, não voltar jámais! do que ser portador de tristes novas!...
-- Estou preparado para tudo! -- respondeu o principe, rompendo com mão trémula o sello real do despacho.
Fez-se um silencio de morte, emquanto o futuro imperador, empallidecendo, percorria com os olhos o fatal papel. Leu-o segunda vez, e então, as lagrimas rebentaram-lhe dos olhos. Por algum tempo não pôde articular palavra; depois, a custo disse aos que o cercavam:
-- E' a primeira vez que el-rei meu pae me trata com tamanha dureza, duvidando da minha lealdade! N'estes seus decretos, annulla a convocação dos procuradores das provincias brazileiras; exige a responsabilidade dos ministros por mim nomeados; da junta de S. Paulo, e dos signatarios da representação de Janeiro, e ordena-me completa submissão ás deliberações das côrtes de Lisboa...
Dizendo isto, entre abatido e colerico, o principe ficou estudando a impressão produzida nos que o rodeavam.
Na indignação que em todos os rostos transpareceu, leu elle os decretos do destino a seguir, ao passo que o seu animo varonil, feito para mandar e não para obedecer, para a lucta e não para o desanimo, para a liberdade e não para a servidão, reagia contra a dôr e a submissão filiaes.
N'um movimento arrebatado e convulso, tirou o chapéo, e arrancando o laço portuguez arrojou-o ao chão, bradando:
-- Independencia! ou morte!
O Caramurú, instinctivamente, ia levantar o laço, mas um brado geral de enthusiastica approvação repetiu o grito do principe!
Só elle ficou silencioso, e com voz tremula, acercando-se de D. Pedro, e beijando-lhe a mão, disse:
-- Permitta vossa alteza que me retire a Villa Velha, onde me chama o socego da familia. O Brazil declara-se independente! A minha missão terminou.
D. Pedro abraçou-o sem dizer palavra. Em todos que o cercavam não houve um protesto, mas antes signaes de approvação, quando José Bonifácio, tomando-lhe o passo, lhe disse abrindo-lhe os braços:
-- Liberaes como ambos somos, abracemos nos quaes irmãos, n'este momento solemne em que a Providencia decreta a independencia da minha patria, como irmãos devem ser para sempre Portugal e Brazil!
Pouco tempo depois d'este dia memoravel, o Caramurú seguia a cavallo com Margarida o caminho das suas propriedades de Villa Velha, em que ia residir.
-- Ao approximar-me da nossa casa da Bahia, lembra-me, Margarida! o triste estado em que a invasão franceza deixou o meu pobre solar de Deuchriste... Mal as dissenções entre brazileiros e portuguezes se acalmem, irei ao Minho fazel-o reedificar...
-- E terás para isso um magnifico architecto, que te recommendo...
-- Quem? esse artista italiano que em Lisboa se me apresentou com uma recommendação tua para lá o deixar ir passar algum tempo?
-- Exactamente...
-- Mas que mania era aquella do homem? Deuchriste estava longe de ser um modelo, um typo, de arte architectonica.
-- Mas não deixava de ser: um solar caracteristico do Minho...
-- Lá isso era! e dos mais bellos, como a paizagem que o rodeava... Que saudades tenho d'esses sitios distantes da patria...
-- D'alguma fórma as attenuaremos, -- respondeu Margarida, sorrindo mysteriosamente.
A estrada seguia entre maravilhosa vegetação, da esquerda, e da direita, sobre altas penedias sobranceiras ao littoral...
-- Olha, lá estão os negros recifes da costa, em que naufragou o primeiro Caramurú, que se estabeleceu em Villa Velha!... Estamos proximos... D'aquella volta da estrada, a que vamos chegar, e que me lembra o ponto sobranceiro ao Lima de que se avista Santa Martha e depois Dcuchriste, já veremos a nossa casa...
-- E se a não encontrasses? ou se a encontrasses arruinada, como a do Minho? que dirias?...
-- Ah! seria demasiado rigor da sorte!... Nem brincando quero pensar em tal...
-- Pois não brinquemos, e prepara te para isso muito a sério. Não quiz dar-te mais cedo essa desagradavel noticia.
O Caramurú, entre inquieto e intrigado, fitava Margarida. N'aquelle momento, porém, chegavam á volta da estrada, e Diogo Alvares recebia tal commoção, que fazia estacar subitamente o cavallo.
-- Mas endoideci?! ou estou sonhando?! -- exclamou elle, voltando alternadamente os olhos da paizagem para a esposa.
-- Nem endoideceste, nem sonhas! Eu é que commetti uma loucura pretendendo transplantar para aqui o teu adorado Minho...
-- E conseguiste-o, Margarida! Parece que tiveste ao teu dispôr a vara magica de um verdadeiro genio.
Na dedicação do seu amor pelo Caramurú, a esposa, lendo nas suas cartas a dôr que lhe causara a ruina do solar de Deuchriste, encarregara um architecto italiano de o vêr e reconstituir, e depois fizera edificar esse castello minhoto em Villa Velha.
-- Só o que não consegui, foi obter em pouco mais d'um anno, carvalheiras e castanheiros como os do Minho... Mas lá estão plantados... Elles crescerão.
-- Sim! -- respondeu-lhe commovido o Caramurú, apertando-lhe a mão -- como n'este canto d'um Minho brazileiro, hão de crescer os nossos filhos!
Appendix A
Os extraordinarios successos da vida do Caramurú, o fidalgo minhoto Diogo Alvares, que, junto á Bahia, naufragou em 1503, e ali se estabeleceu, são contados por Southey na sua Historia do Brasil.
Southey -- Historia do Brazil, V. I.°, pag. 57. -- «Os chefes dos selvagens se reputavam felizes acceitando-lhes elle as filhas para mulheres. Fixou Diogo a sua residencia no logar onde depois se ergueu Villa Velha e bem depressa viu crescer em torno de si tão numerosa progenie como a d'um antigo patriarcha. As melhores familias da Bahia vão entroncar n'elle a sua origem.»
Southey -- Historia do Brazil, V. I.º, pag. 31.
Southey-- Historia do Brazil, vol. I, pag. 53.
Toque que n'aqueile tempo convidava os habitantes a entrarem em suas casas, em razão da pousa segurança das ruas durante a noite.
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