O ENGEITADO

ROMANCE CHRISTÃO;

COMPOSTO

POR

IGNACIO PIZARRO DE M. SARMENTO

Fidalgo Cavalleiro da Casa de S. M. F.,

Commendador de Santa Marinha de Lis-

boa, da Ordem de Christo, Morgado de

Bóbeda, etc. etc.

I.

-1846-

PORTO

Typographia Commercial

Ás veneráveis filhas DE S. VICENTE de PAULA AS IRMANS DA CARIDADE Dedicatoria.

Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens , para que vejam vossas boas obras , e glorifiquem a vosso pay que está nos céos. Matheus Cap. 5. vers. 16.

Não é para excitar vosso caritativo zelo a favor da infeliz classe dos engeitados , que eu tomo a liberdade de vos dedicar esta minha obra ; não careceis vós de humanos estimulos, para preencher a missão augusta do sublime sacerdocio de que vossa piedade vos revestiu : em qualquer parte que os ais do desgraçado se podem ouvir , lá ides vós, anjos de consolação , levar os soccorros, que vossa inesgotavel caridade encontra sempre para aliviar seus malles infinitos. Porém vós sois poucas , para acudir a tantos infelizes que suspiram no meio deste valle de lagrimas , em que a dôr é o apanagio do homem , depois do seu primeiro crime. E foi tal nossa desventura que por pouco esteve a apagar-se essa lampada sagrada da luz da caridade ! O maternal coração de nossa Piedosa Rainha ouviu os lamentos de seus filhos , e verdadeiramente Christan , conheceu que a melhor maneira de protegê-los , era proteger-vos.

Bem vindas , sejais vós , humildes filhas de Jesuz Christo !

Abençoadas sejam vossas fadigas nesta nossa terra portuguesa !

E Deus vos dê a recompensa eterna, que tem preparada para seus escolhidos , dizendo-vos : « Vinde bem-ditas de meu Pay, possui o reyno que vos eitá apparelhado desde o principio do mundo ; porque tive fome , e destes-me de comer ; tive sede , destes-me de beber ; fui perigrino , e recolhestes-me ; estava nú, e vestistes-me ; enfermei, e visitastes-me ; estive na prisão , e viestes a mim. Então vós lhe respondereis , dizendo : Senhor , quando te vimos faminto , e te sustentámos ; ou sedento , e te dêmos de beber ? Quando te vimos perigrino , e te recolhemos ; ou nú , e te vestimos ? E quando te vimos enfermo , ou na prizão, e te visitámos ? E respondendo-vos o Rey dos cêos , vos dirá : Em verdade vos digo que tudo quanto fizestes a um destes meus minimos irmaons , a mim proprio o fizestes.»

Esse galardão é o unico a que aspirais, confiando nas divinas promessas do Redemptor , consignadas no Evangelho de S. Matheus Cap. 25, Vers. 34 , 35 , 36 ,37 , 38 ,39 e 40.

Não careceis pois de minha humilde offerenda ; eu porém careço de vosso amparo e protecção. Escudada com vosso favor irá minha obra a coberto das tempestades do mundo , ao porto do meu dezejo. Os coraçoens sensiveis abrigarão meu trabalho contra os vendavais da indifferença ; e os echos dos ais desses infelizes , que eu quiz proteger , entrarão , levados por vós , nas habitaçoens do rico , onde vós sois respeitadas ; e nas humildes mansoens dos desvalidos , onde vós sois accolhidas como enviadas do Altissimo.

Tambem eu como vós creio e confio nas consoladoras promessas do Homem-Deus : "Vinde a mim todos os que estais cansados , e carregados , e eu vos farei descançar." S. Matheus Cap. 1 1 . vers. 28. "Pedi , e dar-vos-ham ; buscai, e achareis ; batei , e abrir-vos-ham : porque qualquer que pede , recebe ; o que busca , acha ; e ao que bate, se lhe abrirá. "S. Matheus Cap. 7. vers. 7. e 8.

Peço , porque creio ; busco , porque espero ; e bato á porta de vossa caridada , que se me abrirá por certo , conforme o preceito divino do Evangelho.

Assim eu podesse entornar o balsamo da caridade sobre esses corações descridos , que desconhecem o magnetismo sagrado da fé , que não avaliam as consolaçoens divinas da esperança , nem o suave perfume da caridade !

Se de cada um delles eu podesse fazer um jornaleiro que trabalhasse na vinha do Senhor !... Que fructo abundantissimo de protecção colheriam os infelices , se para elles se applicassem essas migalhas cahidas das mezas dos poderosos , e de que elles não fazem caso ! ... Que alivio tão grande não seria para tantos malles e mizerias , a compaixão generosa , que sacrificasse o mais minimo dos caprisos sociaes , em favor da indigencia desses filhos dilectos de Jesuz-Christo , dos quaes dice : "E qualquer que somente der um pucaro de agoa fria a um destes mininos , não perderá seu galardão." S. Matheus , Cap. 10 , vers. 28.

Oh ! Se eu podesse convencê-los de que "Não ajuntassem thezouros cá na terra , onde a traça , e a ferrugem tudo gasta , onde os ladroem minam , e roubam ; mas que ajuntassem thezouros no céo !" S. Matheus Cap. 6. vers 19,e 20.

Se a beneficio dessa classe mizerrima eu podesse dispertar as sympathias de todas as classes, lembrando-lhes este preceito: "E qualquer que um minino como este receber em meu nome , a mim proprio me recebe ; e qualquer que escandalizar a um destes pequeninos , que em mim creem , melhor lhe fôra que uma mó de atafona se lhe pendurasse ao pescoço , e fosse lançado ao fundo do mar !" S. Matheus Cap. J8. vers. 5 , e 6.

Se eu podera em fim melhorar a sorte dos Engeitados , pondo-os debaixo da immediata protecção da caridade christan, infinito seria o premio ; o maior de todos a que aspiro.

Em vossas oraçoens rogai a Deus por aquelle que acompanhando-vos na fé , e na esperança , respeita em vós o symbolo da caridade.

Ignacio Puzarro e Moraes Sarmento

O ENGEITADO

Prologo

"Estavam junto á cruz de Jesuz , sua may; e a irman de sua may Maria de Cleofas , e Maria Magdalena. E como visse Jesuz a may , e ao discipulo que amava , que alli estavam , dice a sua may , Mulher , eis ahi o teu filho.

Depois dice ao Discipulo : Eis ahi a tua may"

Evangelho de S. Joaõ, Cap. 19, v. 25, 26, e 27.

No estado actual da sociedade ninguem lê um livro scientifico , se esse livro não é ferramenta necessaria de sua profissão social ; todos porém leem um romance. Sob suas agradaveis formas se teem tratado todas as questões maximas ; desde a Astronomia , e suas leis sublimes até á giria dos salteadores; desde a descripção desses fachos luminosos que alumiam o universo , atá esses brandões que tisnam a sociedade com seu fogo infernal de crimes , devassidão , e mizeria; tudo tem sido objecto , e quasi é o fim unico dos romances que ultimamente se tem publicado. Como Attila , invadiu o imperio das sciencias e o das artes, podendo como elle chamar-se o flagello de Deus ; porque , como o barbaro invasor do imperio romano , não respeita culto , templo , classe , sexo , idade , que tudo cahe debaixo de seu terrivel montante.

O romance , como a torrente de um rio caudal , que a beneficio de todos corre pelos campos regando-os , e facilitando em suas agoas caminho prompto na sua navegação ; o romance pela amenidade de seu estilo fertilisa a intelligencia , e abre os caminhos da communicação intellectual , pondo ao alcance de todos , essa navegação facil e amena no vastissimo oceano das maximas questões da vida moral , e social.

Revestido com esses trages vai peregrinar o mundo o Engeitado.

O Engeitado é o heroe unico do meu romance , se tal nome pode caber ao minucioso quadro da vida real e positiva desses mizeraveis proscriptos pelas leys da sociedade , e accolhidos por ella , para , depois de os haver salvo do infanticidio , os abandonar á depravação , e ao crime , consequencias infalliveis da mizeria ! ...

O Engeitado será um pallido reflexo desse dezenho original de todas as mizerias concentradas sobre a innocente existencia de tantos infelices que tem gemido , gemem , e gemerão ainda em todos os tempos, ena todas as nações , em todos os climas , constituindo uma parte , cada vez maior , dessas populações que nascem a vivem , e desapparecem , chamadas nações.

Traçando o esboço desse quadro horrivel de mizerias , que vemos a cada passo, sem attentarmos nellas ; repercutindo os assumidos desses desventurados que só conhecem a existencia pelo amargo fel de sua taça envenenada , e a cujos ais saca indifferentes os chamados felices cá da terra ; traçando um retrato , se não perfeito, ao menos similhante , dessas victimas cujos suspiros morrem abafados entre o ruido dos prazeres de seus algozes que as immolam despiedados... creio ter satisfeito a um dever social, imposto pelo coração.

E se apontando os malles , por ventura poder conseguir remedio para alguns delles, mais que pago me darei do meu trabalho ; orgulhoso de qualquer melhoramento na sorte desses infelices , terei no alivio de seus malles a recompensa mais bella , a única a que eu sei aspirar.

Todas as fazes da vida, todas as suas antitheses , todas as virtudes , todos os crimes della sobrenadarão no pelago incommensuravel da indifferença , como tripulação e mercancia que só acha porto franco quando importada debaixo da bandeira multicolor do romance. Mas o piloto , que mareia esse navio ; mas a mercancia que constitue sua preciosa carga ; mas o dono dessa riqueza infinita de martyrios , não sam entidades imaginarias. É o Engeitado personalisando todos aquelles que o amor maternal sacrificou ás conveniencias sociaes ; é o Engeitado que representa todos os soffrimentos físicos e moraes de todos os engeitados do mundo ; é o Engeitado , que na sua vida de abândôno , representa e personaliza esse abandono , que começa nos umbraes da existencia , e se estende além das portas do sepulchro ! ...

"Não careço pois dos nexos da fabula para esta terrivel epopeia , basta a realidade para o enlace e desenlace desse drama de soffrimento eterno e intensissimo.

Verdadeiro Judeu Errante, o Engeitado , caminha, caminha, caminha, por essa estrada de infortunio, chamando a todos irmãos repcllindo-o todos , mas sem crime , como Ashuero , que lhe estampasse o ferrete da maldição na testa , não tem ao menos como elle a consolação do remorso : como elle não tem a confiança na mizericordia divina , porque a sociedade o privou dessa crença , negando-lhe os primeiros rudimentos delia. Essa familia vastissima que não morre nunca , essa infancia de seus membros que não acaba nunca , essa mocidade eivada , essa velhice prematura pelo continuo soffrer , constituem a fabula real , o nexo verdadeiro dessa epopeia , desse drama da mizeria social de uma classe digna das mais sérias investigações dos moralistas, dos mais solicitos cuidados dos legisladores , das mais caritativas attenções dos philantropos.

Se, ao ler o transumpto dessas actas , não falsificadas pela pertenção do archivista dellas, o coração comprimido pela dor reagir contra essas terriveis leys que fazem o destino de tantos milhares de infelices , symbolisados no Engeitado , culpa não será do chronista de seus infortunios ; para cada um delles poderia apontar documentos irrefragaveis que os comprovassem de uma ma neira irrecusavel , se tanto fosse preciso.

A unidade d'acção , a unidade do protogonista concentrarão o interesse, nesse in dividuo , o Engeitado ; nessa acção , a sua vida de soffrimentos anteriores á existencia , congenitos com ella ; e esse protogonista , e essa acção , é a sua vida , sam o heróe , e o poema, e não só de Portugal, mas da Europa ; não só da Europa , mas desse mundo que se diz civilisado , e que sacrifica a essas leys da civilisação os infelices fructos dos crimes della ! ...

Entregue todo ao sublime pensamento que me dirige a penna , buscarei na realidade dos factos as inspirações d'um coração sensivel ao espectaculo da miseria alheia ; e se eu podér transcrever na lingoagem do sentimento essas inspirações taes quaes impressionaram minha alma , fazendo que meus leitores sintam como eu senti , soffram como eu soffri , seguindo passo a passo esse longo caminho da vida do Engeitado , em cada uma de suas acções , em cada um de seus pensamentos , em cada uma de suas dores , e em cada um dos suspiros que as exprime.... se eu poder conseguir que cada um delles verta uma lagrima sobre a sorte mesquinha do Engeitado , certo estou de meu triunfo ; não litterario ; não o careço eu ; mas philantropico , esse carece o meu coração ; e essa porção immensa de desgraçados verá melhorar seu destino , achando na piedade geral o amor materno ; e na protecção da Ley , se não o carinho paternal , ao menos abrigo e amparo , subsistencia e educação ; presente supportavel , e futuro risonho d'esperanças.

O virtuoso S. Vicente de Paula soube inspirar á França de Luiz 13, os sentimentos da piedade de sua alma para com esses infelices ; a elle se devem ps primeiros estabelecimentos erigidos a favor dos expostos , e a Europa inteira seguiu o nobre exemplo da França , adoptando o principio sublime do sacerdote francez.

Todas as classes rivalizaram em prestar soccorros a esses até alli abandonados ; porém essa piedade que respira em todas as leys que regulam a creação dos expostos , arrefeceu , esfriou , e gelou-se ao cabo. É um ramo de serviço publico em que a ley se cumpre pela forma e não pelo espirito della; as municipalidades a cujo cargo está este ramo , attendem á letra da ley , sem curarem de sua piedosa intenção ; e a ley cumpre-se, ou julga-se cumprida todas as vezes que se paga ás amas a creação dessa especie d'animal domestico que ellas reputam commercio igual a qualquer outro que tem por objecto a criação de gados!!...

A desmoralisação da sociedade moderna, consequencia necessaria do vicio de suas leys , e peculiares circunstancias , augmentando de uma maneira espantosa o numero d'engeitados , augmentou a indifferença daquelles que podiam curar esses malles.

Não será aqui , em um prologo , já longo em demasia , que eu indicarei as causas dessa desmoralisação , designando os vicios das leys ; nem aqui explicarei a causa dessa indifferença barbara para com essa porção tão grande de nossos concidadãos ; de nossos proprios irmãos !! ...

Aqui direi sómente que não é para proteger o crime das mays e pays desnaturados que expoem seus filhos , que eu emprehendi esta obra , superior talvez ás minhas forças : que não é para aristocratizar o vicio que eu reclamo a protecção publica das leys , e a solicitude de todas as almas sensíveis , e beneficas ; mas para chamar a attenção de todos os que pensam , excitar a piedade de todos os que sentem , ou sam capazes de sentir os malles alheios , acerca de um objecto digno de sua attenção e piedade.

Vivamente possuido do pensamento sagrado do Evangelho , reputo o Engeitado como o discipulo querido que chorava no Golgotha aos pés do Redemptor crucificado , o abandono em que ficava apoz a morte de seu divino Mestre , que como a filho o tratára sempre : e quizera que o Engeitado ouvisse as palavras consoladoras que Jesus Christo disse ao discipulo amado , mostrando-lhe a sua may:

«Não chores ; vês ahi tua may.»

Quizera que a sociedade fosse essa may carinhosa desse infeliz , como a may de Deus o fôra de S. João Evangelista. Quizera que essa may extremosa achasse, em cada filho seu , quem lhe pagasse essa divida d'amor infinito.

Permitte a ley a prostituição estabelecendo regulamentos legaes d'immoralidade e devassidão ; desce ás miudezas mais torpes da crápula oom o fim de attenuar o mal , que julga impossivel extirpar da sociedade ; e a ley assiste , por assim dizer , a cada um desses crimes moraes , que ella auctorisa a titulo de policia social ! ! ... Porque não hade a ley seguir passo a passo as consequencias desses crimes ? ! ...

Cuida ella ter satisfeito ao que deve , castigando o infanticidio com severas penas? Cuida ella ter cumprido seu nobre fim , estabellecendo asylos d'expostos para prevenir esses infanticidios ? Cuida ella ter prehenchido o desiderandum social , votando subsidios avultados para a dotação desses asylos ? Cuida ella em fim estar desobrigada para com a sociedade , entregando sua administração, fiscalisação , e regimen ás municipalidades, ás Juntas Geraes , e aos Conselhos de Districto ? !...

Não... de certo não... Sua missão não está cumprida. A pena applicada ao infanticidio não remediou o crime já perpetrado... O Estabellecimento dos asylos para os expostos, se por ventura evitou o infanticidio físico , não preveniu o infanticidio moral... Os subsidios votados para a sustentação desses asylos , não tiráram da miseria os infelices que quiz proteger , estabellecendo-os... O regimen e administração municipal, a fiscalisação provincial não remediou esses malles infinitos da numerosa e infeliz classe dos engeitados !! ...

«Não chores , vés ahi tua may.» Será a fraze de consolo que eu direi ao Engeitado ; e essa fraze tão poetica , tão divina , proferida no alto da Cruz pelo Homem-Deus , para enxugar as lagrimas do discipulo abandonado, transcripta por elle na historia da Paixão de seu Divino Mestre , essas palavras sacrosantas acharão echo piedoso ; ellas repercutirão esse divino preceito com a força da trombeta do Anjo do Senhor ; e os muros da Jericó moderna — a indiferença — cahirão por terra , para sobre suas ruinas renascer a sagrada Sion para esses até aqui errantes e proscriptos...

A essas almas frias e geladas que disfarçam a torpesa de seu egoismo sob o veo da ignorancia dos malles que não querem ver , para não sacrificar nenhum de seus gozos ao remedio delles ; a esses direi eu "Vês ahi o teu filho !" "Vês ahi o teu irmão !"

E se avante elles passarem sem attentar nesse filho , nesse irmão , cujos innocentes braços se erguem descarnados pedindo-lhe piedade , pedindo-lhe compaixão , pedindo-lhe o sobejo de sua mesa que elles abandonam aos caens... se esse desalmado passar avante sem olhar para elle com piedade , negando-lhe sem compaixão as migalhas inuteis de sua meza... a esses direi eu: "Aquelle que desprezar esses mininos não entrará no reino do Ceo." Esta é a sentença da Eterno , estabellecida no Evangelho contra os duros de coração , que não ouvem esses lamentos , e afastam de si os innocentes que Jesuz Christo adoptou , e nos ordenou que adoptassemos como irmãos.

E a essas que as leys sociaes forçaram a trahir o mais sagrado dos deveres da natureza... a essas direi as palavras de consolação que Jesuz Christo dirigiu a sua afflicta may que o via expirante sobre o Lenho da Redempção "Não chores, vês ahi o teu filho."

E as lagrimas dessa may terão alivio; os beijos do Engeitado enxugarão as faces dessa , que verá em cada um delles um filho seu muito amado, que julgara perdido, e que torna a encontrar passado muito tempo.

E porque a minha obra é portugueza , e porque o auctor é quasi desconhecido , neste genero de composições , deixará o Engeitado de merecer a benevolencia de meus concidadãos ?

Espero-a... conto com ella como de direito adquirida pela nobreza da intenção com que foi escripta.

Imperfeita, sem mais atavio que o dezejo franco e leal de chamar a attenção so bre este objecto , não peço favor para ella : mas peço-o para a classe que eu quiz proteger , symbolisando-a no heroe deste romance = o Engeitado.

Chaves 13 de Novembro de 1845.

I. P. M. S.

Illm. Snrs. Editores do Engeitado.

Tenho a satisfação de receber a Carta de v. ss. de 24 do corrente , que é uma prova mais da boa disposição de v. ss. a meu respeito , e a favor de meus ensaios litterarios.

Surprehende-me de certo , como a v. ss. , a leitura do §. do Periodico dos Pobres dessa Cidade, de 21 do corrente , em que debaixo da epigrafe — noticias locaes — e sob o titulo — desapontamento — se extracta a noticia do Constitucional de Pariz , que annuncia a proxima publicação de um novo romance de mr. Eugenio Sue , intitulado — Martin o Engeitado , ou Memorias de um Escudeiro.

Ha mais de dous mezes que a v. ss. remetti o prologo de meu romance que, por uma coincidencia extraordinaria , tem quasi o mesmo titulo — o Engeitado ; — e por certo não sou eu o culpado de não estar publicado o programma, e prologo ; por isso não sou eu tambem o culpado de que o publico me não dê a gloria de ter escolhido — o Engeitado — para assumpto de um meu romance , ao mesmo tempo que mr. Eugenio Sue o escolhia a tantas leguas de distancia. A v. ss. cumpre reivindicar essa gloria para um seu natural ; e asseguro a v. ss. que essa nova , ao mesmo tempo que me surprehendeu , me enche de orgulho.

Na minha alma vibrou uma corda de sentimento e dôr por a desgraçada sorte dos engeitados, e uma corda igual vibrava ao mesmo tempo na alma do illustre author do Judeu Errante !

Póde haver para minha alma titulo mais agradavel do que o de — sentir como mr. Eugenio Sue ?

Bem longe estou eu de seus brilhantes talentos ; bem mais longe, ainda estou eu de seus variadissimos conhecimentos litterarios , Scientificos , e sociaes; porém não me acovarda minha pequenez ; tenho alma ; e coração : alma que sabe sentir infinito ; coração , que recebe como proprias todas essas dores alheias que passam desapercebidas nesse mundo indifferente , ou egoista... E só com esse cabedal ; pobre de sciencia , riquissimo desse thesouro d'alheios martyrios , vou entrar em combate com o maior genio da moderna litteratura romantica !

Elle com todas as galas da philosophia, com todos os donaires de campeão sempre vencedor nas lides do genio , com todos os laureis de seus passados triumphos , com as sympathias de todos os espectadores , que fazem votos por sua victoria... E eu? ...com o Evangelho.... com essa arma combaterei só... E com ella se não vencer... não serei vencido... as lagrimas do Engeitado serão brilhantes preciosissimos , que eu engastarei em meu coração , depois de carbonisados pelo remorso da may que o abandonou á miseria e ao crime... Não terei meu nome entre os dos homens de letras.., mas ficará humilde entre os das desconhecidas = irmãs da caridade — a ellas dedico minha obra.

Se apoz o que deixo dito , á pressa escripto, v. ss. não temem que a minha obra seja indigna do assumpto , e de meu illustre competidor , queiram v. ss. publicar o prologo do meu — Engeitado — em todos os jornaes dessa Cidade , com o extracto desta carta : porque se apoz esta coincidencia eu me recusasse a continuar o meu trabalho começado, certo v. ss. e meus amigos, já sabedores de meu projecto , me taxariam de covarde.

Caso porém v. ss. julguem que, nesta mesma lucta com o gigante da litteratura do dia , o pobre campeão portuguez hirá deslustrar a sua patria , prejudicar a bella causa que defende , a do Evangelho contra a philosophia , a da caridade contra a philantropia philosophica ; se v. ss. julgam em fim que na nossa terra nem ao menos v. ss. cobrirão as despezas da edição de meu Engeitado — nesse caso digo , que rasguem v. ss. o meu trabalho , e ficar-me-ha a consolação de que não fui eu o que desamparei meu posto.

Mr. Eugenio Sue tem diante de si uma patria , e o mundo inteiro ; porque é francez , e sua linguagem é a de todos os paizes; mr. Eugenio Sue tem o magni nominis umbra ; mr. Eugenio Sue tem a recompensa certa de gloria , riquezas , e consideração. E eu ?... pobre Portugal!! que me dás tu ?... Desgostos ; até d'aquelles a quem generoso offereci o pobre cabedal que possuia ! ...

Que importa ? esta é a nossa sorte ... assim como é fado do poeta — soffrer.

Sou como devo — De v. ss. — amigo attento venerador e obrigadissimo criado.

Ignacio Pizarro de Moraes Sarmento.

Chaves 27 de Janeiro de 1848.

INTRODUCÇÃO.

Or sus , mesdames , voyez si vous voulez délaisser d votre tour ces petits innocents dont vous elles devenues les mères selon la grâce , après qu' ils ont été abandonnés par leurs mères selon la nature.

Allocução de S. Vicente de Paula a uma reunião de caridade , no reynado de Luiz 13.

Antes de entrar na historia do heroe do nosso romance , julgamos que devemos esboçar primeiro a historia dos engeitados. A simples leitura dos factos, contados pelos mais illustres escriptores , bastará a demonstrar quanto as leys divinas da caridade evangellica sam superiores ás leys meramente civis, cuja inefficacia vemos a cada momento.

Inspirado pelo sentimento de compaixão proprio de qualquer alma sensivel , emprehendemos escrever esta obra , cujo fim é melhorar a sorte desses infelices ; consultámos os melhores livros , examinámos os factos ; e mais confiados em nosso coração , do que em nossas proprias forças, começámos o nosso trabalho.

Uma coincidencia , por extremo honrosa para nós , fez que , ao mesmo tempo que nós lançavamos ao papel o resultado de nossos estudos e observaçoens , um dos genios mais fecundos da França moderna , fizesse annunciar a publicação de uma obra semelhante !

Mr. Eugene Sue em Pariz , sentia como nós em Chaves , um dos mais remotos cantos de Portugal , a necessidade de chamar a attenção publica e particular sobre essa classe infinita de seres desgraçados , abandonados pello crime , ou pella mizeria á publica solicitude.

Já na carta por nós dirigida aos editores desta obra explicámos os motivos que fizeram prosseguir-nos em nosso trabalho. Respeitando , quanto devemos , a nobreza das intençoens de Mr. Eugene Sue; conhecendo pela leitura de suas obras seu rarissimo talento , e seus vastissimos conhecimentos, nem por isso nossa alma se acovardou. Avaliando sua futura publicação pellas suas antecedentes, persuadimos-nos que o seu Martin, o Engeitado, ou Memorias de um Escudeiro, seria tratado pelo lado filosofico , da mesma forma que o havia feito nos Mysterios de Pariz , e no Judeu Errante ; e como o pensamento de nossa obra fosse tratar esta grande questão social debaixo do ponto de vista da influencia benefica da caridade cristã, julgámos que sendo commum o fim a que ambos nos propunhamos , eram todavia differentes os meios que empregavamos , e que por isso não deviamos abrir mão de nossa empreza litteraria.

A isto accresceu , nós o confessamos , o estimulo de uma nobre emulação, em que entra em não pequena parte o amor proprio nacional.

Desigual é por certo a lucta em que vamos empenhar-nos ; é porém tão generosa a alma de nosso competidor , que de antemão estamos certos de sua benevolencia para com o lidador novel , e portuguez.

Depois desta explicação que julgamds necessaria , vamos entrar na materia que faz objecto desta introducção — a historia dos engeitados.

Em todos os tempos a desmoralisação, e a mizeria fizeram calar as vozes da natureza ; e muitas desgraçadas mays foram impellidas a affastar de seu seio esses tenros innocentinhos , que a vergonha ou a pobreza impediam de alimentar.

Os povos antigos reconheciam nesse abandono uma quebra da primeira das leys da natureza ; e se não vemos nesses codigos antigas leys penaes contra um facto tão horrivel , é porque desde a mais remota antiguidade os povos tomaram sobre si a educação desses desgraçados , cujas mays os expunham nos mercados , templos , encruzilhadas dos caminhos , fontes , e margens mais concorridas dos rios ou do mar. Era como uma transacção da natureza com a humanidade; em que esta vencia aquella.

Todos sabem que entre os egypcios era costume expôr os recem-nascidos em pequenos berços á prova de agoa , nas margens do Nilo ; para que podessem fluctuar , até que alguem acertasse a recolhê-los ; e por esta engenhosa maneira empregada pela may de Moizés poude ella salvar aquelle , que ao de pois foi o libertador , guia , e legislador do povo de Israel , então captivo no Egypto , sob o dominio dos Pharaós.

Ainda hoje na China os pays atam uma cabaça ao pescoço das crianças que querem expôr , e que lançam aos rios ; por este modo boiando , muitas dellas sam colhidas , e salvas de uma morte aliás certa ; havendo para esse fim diversas pessoas encarregadas pelo governo, ás quaes incumbe esta especie de policia.

A exposição dos recem-nascidos é por certo muito anterior ao estabellecimento das casas para elles destinadas pela ley , ou pela caridade. Em Athenas eram expostos junto de um edifício publico chamado Cynosarguso; em Roma eram junto de uma columna que estava perto do mercado dos legumes ; e que talvez por isso , tomasse o nome de Lactaria.

Parece com tudo incontestavel que os athenienses , e romanos tiveram estabelecimentos publicos , onde , á custa do estado, eram admittidos os expostos , quando ninguem vinha reclama-los : sendo propriedade daquelles que os recolheram , e educaram.

Como para castigar a barbaridade dos pays que abandonavam seus filhos , uma ley do imperador Constantino os inhabilitou de reclama-los, ainda quando se obrigassem a pagar as despezas de sua educação.

Em 529 Justiniano designa as casas dos expostos debaixo do nome de Brephotrophia ; porém não temos desses estabellecimentos noçoens bastantes. O que é certo, é que sendo reputados propriedade do estado estes infelices, eram vendidos como escravos , cujo tráfico legal inspirou a S. Justino , o filoso foi essas admiraveis palavras de sua primeira apologia , dirigida ao imperador : Expoem as crianças em vosso imperio. E ha quem eduque essas crianças , para prostitui-las. Não se encontram por todas as naçoens senão desses minino destinados aos misteres mais execrandos , e que nutrem como rebanhos de gados; vós recebeis um tributo dessas crianças; e aquelles que abusam desses pequenos innocentes , além do crime que contra Deus commettem, podem por acaso abusar de seus proprios filhos...

Eis ahi quaes eram os estabellecimentos que a politica havia erigido a favor dos engeitados !

Talvez o respeito pela legislação estabellecida , ou motivos de prudencia, de sabedoria e de interesse pelos bons costumes, retardassem a epoca em que a caridade christan veio servir de may a essas desgraçadas victimas da mizeria ou do vicio.

Se attendermos a algumas legendas, e ás capitulares de Carlos Magno , parece que na meia idade já em França havia asylos para os expostos.

A mais antiga instituição a favor dos engeitados , sobre que ha dados positivos , é a que existia em Tréves no sexto seculo. Della se falla na vida de S. Gour, comtemporaneo de Childeberto. Tambem na vida de S. Mainbeuf se fulla do hospicio que elle tinha mandado construir em Angers no anno de 634. A historia faz menção depois, pelo anno de 787 , do que em Milão fundara o archipreste chamado Datheus.

Em 1010 Oliveiro de la Trau , ou de la Crau , outros dizem o conde Guido , fundou em Montpellier o hospicio do Espirito Santo , onde os freires do hospital deviam soccorrer os pobres , e educar os engeitados, e orfaons abandonados.

Pariz teve um hospicio do mesmo genero em 1362 , que era sustentado por uma confraria chamada do Espirito Santo , confirmada pelo papa Urbano 2.o. Parece comtudo que este era mais especialmente destinado para os orfaons; ou que não era obrigado a admittir os engeitados.

Estas fundações devidas á caridade de alguns fieis, eram pouco numerosas ; sendo especialmente destinadas para as cidades em que se achavam collocadas. Pôde pois dizer-se que até os fins do seculo 17 não havia na Europa estabelecimento algum publico para soccorro das mulheres de parto , e para as crianças abandonadas. Parece mesmo que a opinião publica repellia em França instituiçoens desse genero.

Cada cidade , e cada senhor de terras obrava a este respeito conforme as inspirações de sua caridade e riqueza.

Em Pariz expunham as creanças em uma concha de marmore , collocada para este fim ás portas das egrejas ; e não faltava quem se encarregasse do pequeno numero desses infelices , que não excediam a duzentos , ou trezentos por anno.

No anno de 1680 acharam os engeitados um asylo , e cuidados particulares em uma casa de Pariz ; na da piedosa viuva , a Senhora Legrás. A authoridade publica para alli mandou todas as creanças expostas ; mas horriveis abusos se introduziram neste refugio da desgraça : a caridade o tinha aberto, um trafico infame obrigou a fechá-lo.

Quatro annos depois a deploravel sorte das creanças abandonadas tocou profundamente a alma sensivel de um virtuoso ecclesiastico , que a egreja conta no numero de seus santos. S. Vicente de Paula é o nome desse venerando sacerdote.

É tal a influencia de suas virtudes ; sam taes as consequencias de sua benefica missão na terra que julgamos sagrado pagamento de uma vida commum a toda a humanidade , publicar em resumo a sua biografia.

De pays humildes nasceu S. Vicente de Paula em a diocese de Acqs, a 24 de Abril de 1576 , na cidade de Poy. Empregado em seus tenros annos na guarda do pequeno rebanho de seus pays ; sua penetração e intelligencia se manifestou por tal forma que elles o mandaram para Tolosa. Tendo alli acabado seus estudos foi em 1600 ellevado ao sacerdocio. Indo a Marselha receber uma modica herança , quando voltava embarcado para Narboune foi captivo pellos turcos que aprezaram o navio. Escravo em Tunes de tres differentes senhores , teve a fortuna de converter o ultimo , que era um renegado saboiano. Tendo fugido ambos em um pequeno barco , tiveram a felicidade de aportar em Agoas-mortas no anno de 1607. O vice-legado de Avinhão , Pedro Montorio , sabendo seu merecimento o conduziu comsigo para Roma. A particular estima com que fallava do joven sacerdote francez , o deu a conhecer a um ministro de Henrique 4.o que o encarregou em 1608 de uma missão importante junto deste principe. Luiz 13 recompensou depois este serviço com a abbadia de S. Leonarde de Cahulme. Tendo sido algum tempo capellão da rainha Margarida de Valois , retirou-se ao depois para junto de Berulle , seu confessor , que na qualidade de mestre o fez entrar em casa de Manoel de Gondy , general das galés. A piedade da may de seus educandos lhe inspirou o dezejo de fundar uma congregação de sacerdotes , que fossem fazer missoens pelas aldêas! Em 1619 obteve o lugar de capellão mór das galés. O ministerio de zelo , e caridade que neste emprego exercitou , foi longo tempo celebre em Marselha, onde já era conhecido por suas bellas acçoens. Tendo visto um pobre forçado inconsolavel por ter deixado sua mulher e seus filhos na mais extrema mizeria, S. Vicente de Paula offereceu-se para substitui-lo ; e o que certamente custará a acreditar , foi aceita a substituição. Este homem virtuoso foi encadeado com as braças do forçado , e seus pés inchados todo o resto de seus dias foram o testimunho honroso dos ferros que elles tinham trasido. S. Francisco de Sales , que não conhecia na egreja Sacerdote mais digno do que elle , nomeou-o em 1620 superior das freiras da Visitação. Depois da morte da senhora de Gondy , retirou-se ao collegio dos — Bons Enfants — de que era principal , e de donde não sahia senão para fazer missoens com alguns sacerdotes que tinha associado a seu trabalho. Alguns annos depois acceitou a casa de S. Lazaro , que ficou sendo cabeça de sua congregação. Sua vida foi um tecido de boas obras. Estabelleceu missoens em todas as partes de França , assim como em Italia , Escocia , Barberia , Madagascar , &c. Instituiu retiros espirituaes gratuitos ; estabellecimentos para os engeitados , a quem por um discurso de poucas palavras , as que servem de epigrafe a esta introducção , proporcionou uma renda annual de 40:000 libras , producto da caridade de suas piedosas ouvintes. Fundou a instituição das irmans da caridade para o serviço delles , e dos doentes pobres. Não é isto mais que um esboço dos serviços que elle fez á egreja e á humanidade. Os hospitaes de Bicetre , da Salpetriere, da Piedade; os de Marselha para os forçados ; da Raynha Santa para os perigrinos ; o do Santo Nome de Jesuz para os velhos , devem-lhe na maior parte o que sam. Em tempos os mais difficeis enviou para Lorena mais de dous milhoens em dinheiro , e demais soccorros. Antes dos hospicios dos engeitados vendiam-se estas innocentes crianças , a 20 soldos cada uma, e davam-as por caridade , diziam elles, ás mulheres doentes , que delles careciam para elles lhes tirarem o leite corrompido. S. Vicente de Paula deu ao principio os meios necessarios para a criação de doze destes infelices : vem depressa a sua caridade soccorreu todos aquelles que se achavam expostos ás portas das egrejas : faltando-lhe porám os meios para suprir as despezas que diariamente cresciam , convocou uma reunião extraordinaria de senhoras caritativas. Fez collocar na egreja um grande numero destas desgraçadas creanças ; este espectaculo, e uma allocução tão breve , como pathetica arrancou lagrimas de compaixão a todo o auditorio : na mesma egreja , no mesmo dia, no mesmo instante se fundou e dotou o hospital dos engeitados. Durante dez annos que elle esteve á testa do conselho de consciencia sob a regencia de Anna de Áustria , que governou a França na minoridade de seu filho Luiz 14, não propoz para os benefícios ecclesiasticos senão os que mais dignos eram de alcança-los. Acabrunhado de annos, fadigas e mortificaçoens , acabou S. Vicente de Paula sua gloriosa vida a 27 de Setembro de 1660. Foi beatificado por Benedicto 13 a 13 de Agosto de 17-29: e canonisado por Clemente 12 em 16 de Junho de 1737. Quem quizer conhecer mais particularmente a vida de S. Vicente de Paula, pode consultar a que Collet publicou em 2 vol. in 4.o. Para o fim a que nos propomos parece-nos ter ditto quanto é bastante.

Prosigamos agora a historia dos engeitados interrompida um momento pella biografia de seu piedoso protector.

O chanceller d'Aligre , sua esposa Isabel Lhuilier, e a já citada senhora Legrás, ajudaram com seus meios o zêlo do virtuoso S. Vicente de Paula. Um apoio augusto veio desenvolver em maior escala os trabalhos do venerando sacerdote, e de seus respeitaveis discipulos. Luiz 13 , não menos generoso que seu ministro , consignou quarenta mil libras de renda , sobre seus dominios de Gonesse , para a erecção de uma casa para onde deviam ser transferidas as creanças ; e logo depois deu o palacio real de Bicetre para nelle serem recebidos os engeitados. A insalubridade desta casa fez que fossem mudados para o arrabalde de S. Lazaro, e dalli para a rua de Nossa Senhora , onde chamavam a Margarida. Desde então é que data a fundação verdadeira do hospicio dos engeitados. Regulamentos especiaes fixaram sua organização ; e o mais sabio de todos foi aquelle que entregou ás irmans da caridade, instituidas por S. Vicente de Paula, e ás almas piedosas , o cuidado especial destas creanças desvalidas. Até á idade de seis annos entregues aos cuidados de boas e sadias amas, eram educadas no campo , de donde voltavam para Pariz findo esse prazo , e na casa para ellas destinada tratavam de sua educação. Na idade de dez a doze annos destinavam-as a um officio qualquer ; apprendido o qual, na idade de dezaseis annos recebiam como ultimo soccorro o direito de livremente exercerem a proffissão que haviam escolhido.

O exemplo da cidade de Pariz foi seguido pellas demais cidades principaes de França : a caridade de S. Vicente de Paula, e de suas admiraveis filhas estendeu-se tambem a todas as provincias.

Em Hespanha é certo que S. Thomaz de Villa-nova em 1460 , excitado pella ardente caridade que em toda a sua vida empregou cm beneficio dos pobres , assignalou sua beneficencia em favor dos engeitados com o mais solicito disvelo.

Em Italia, pellos meados do seculo 13, alguns marinheiros que pescavam no Tibre, tiraram em suas redes muitos corpos de creanças recem-nascidas , que alli tinham sido lançadas para occultar seu nascimento. Em 1212 o papa Innocencio 3.o movido de compaixão pella terrivel nova deste successo, consagrou immediatamente no hospital do Espirito Santo , que elle então fazia concertar, um local para nelle se receberem seiscentos engeitados : cujo hospicio tomou o nome de Conservatorio de la Ruota , porque ruota indica a roda onde se expunham os engeitados , pella mesma forma que entre nós é costume. Desde 1321 elles foram admittidos no magnifico hospital dos Innocentes em Florença , fundado em 1316.

Veneza possue um semelhante. Só porém em 1750 é que Napoles teve uma casa destinada para os orfaons e engeitados , conhecida plelo nome de Albergo dei Poveri , mandada construir por Carlos 3.o.

Julga-se que desde o anno de 1274 a cidade de Einbeck , em Hanover , possue um hospicio para os engeitados. Desde 1596 a cidade de Amsterdam tem um azylo publico para estes desgraçados.

Em Inglaterra , ainda no começo do seculo 18, em 1713, o sabio Addison reclamava em vão nas suas folhas diarias um azylo para os engeitados : o primeiro hospício que lhes foi destinado data de 1739.

Stocolmo , e Berlin só em meio do seculo 18 tiveram azylos publicos para os engeitados ; erigidos por sociedades particulares , e pella generosidade de alguns ricos, que sustentam á sua custa estes estabellecimentos , sem que o estado concorra para isso, A imperatriz Catharina 2.a de Russia , foi a primeira que em 1763 instituiu um hospicio commum para as mulheres gravidas, e creanças abandonadas.

O hospital dos expostos de Hamburgo data de 1795.

Em 1780 não tinha Vienna ainda uma casa para os engeitados, quando José 2.o lhe destinou , assim como ás mulheres pejadas, um azylo particular , no grande e magnifico hospital que elle então mandava construir, e para o qual serviu em parte de modelo o maravilhoso estabellecimento destinado em Roma para as mulheres de parto. É digna de notar-se a previdencia daquelle esclarecido monarcha. Quiz , e ordenou que a casa destinada para as mulheres de parto fosse disposta , de maneira que alli podessem ir , sem ser vistas , por uma das portas que deita para fora da cidade. Por meio desta sabia precaução , toda a mulher pobre , toda a infeliz seduzida alli pôde appresentar-se coberta com um véo, e debaixo de um nome supposto , com tanto que seu verdadeiro nome seja consignado em um bilhete fechado e lacrado , que lhe é fielmente restituido , e sempre intacto no momento de sua sahida. Este bilhete nunca é aberto senão no caso da morte della , o que alli é mui raro. A toda a hora do dia ou da noite as infelices sam recebidas naquelle hospicio. Depois de seu parto ellas podem lá deixar seus filhos, dando apenas vinte e quatro florins por sua admissão ; ou podem levá-los , com a constante certeza de que o segredo de sua honra nem foi esquadrinhado , nem será descoberto.

Na Turquia todo o engeitado é havido como musulmano , e livre ; e se ninguem delle se encarrega , pertence ao estado , a cuja custa é nutrido e educado.

Não sabemos que em Portugal houvesse legislação alguma especial a este respeito antes do reynado dos Fillipes de Hespanha , que por sessenta annos nos dominaram. A caridade particular era sufficiente para acudir á desventura dessas victimas desgracadas da mizeria ou do crime. Reynando Fillipe 3.°, mandou que todas as Mizericordias do reyno tivessem um regulamento , e compromisso egual ao que decretou para a irmandade da casa da Mizericordia da cidade de Lisboa ; cujo alvará é datado de 19 de Maio de 1618; onde no cap. 33 se lê assim = De como se hade acudir aos meninos desamparados. §. I.o Ainda que a casa da Misericordia se não custuma encarregar dos meninos engeitados assi por no Hospital de todos os Santos terem seu ordinario amparo, como por sua criação pedir espaço de annos , e pelo conseguinte esmola certa , que até agora não está applicada por algum defunto a esta obra, todavia nunca se deu por desobrigada de acodir ao desemparo das crianças de pouca idade , cujas mãys morrem , ou adoecem , de maneira que não podem ter cuidado delles. §. 2.o Achando-se alguns meninos desta calidade , constando de seu desemparo , o Provedor, e mais Irmãos da mesa os mandarão acabar de criar, tomando-lhe amas , em quanto forem de pouca idade , e despois de crecidos lhes darão ordem conveniente, para que nem por falta de criação venhão a ser prejudiciaes á Republica , nem por falta de occupação fiquem expostos aos males que a ociosidade custuma a causar. §. 3.o Avendo alguma pessoa virtuosa , que se queira encarregar da criação , e amparo de algum destes meninos , a casa lho largará , porque não deve tomar a seu cargo , senão aquelles que não tiverem , nem outro remedio , nem outra sustentação. =

Á margem deste capitulo está impressa na edição de 1704 a seguinte nota = Por acento no livro 3 dos Acordãos foi. 157 , se deu nova forma para a criação dos engeitados. = Não nos foi possivel ver esta citação , que talvez fôra impossivel verificar no cartorio respectivo , pelo que soffreram com o terremoto todos os archivos de Lisboa.

Pello decorrer dos tempos , crescendo prodigiosamente o numero dos expostos , foi mister entregá-los aos cuidados das municipalidades , que actualmente os teem a cargo ; havendo em cada uma delias uma roda , e casa destinada a recebê-los.

É tal porém o estado de abandono destes infelices ; é tão defficiente a ley que os protege , que julgamos fazer grande serviço á humanidade , e á nossa patria em particular, suscitando esta gravissima questão até aqui esquecida , ou antes abafada pello ruido das questoens politicas.

Até á idade de sete annos estam em Portugal os enfeitados a cargo das camaras municipaes ; findo esse curtissimo prazo , em que nem a educação fisica, nem a moral, nem a social estam completas , esses desvalidos que a ley salvou do infanticidio, ficam sugeitos á ley geral dos Orfaons ; e a ley querendo protegê-los, abandonou-os ao mais completo desamparo. Pella ordenação do reyno , e pellas leys orfanologicas posteriores devem elles ser adjudicados em hasta publica áquelle que mais der pellos seus serviços!... Naquella tenra idade em que elles carecem dos carinhos de uma may , dos exemplos de um pay , dos estimulos de um irmão ; naquella idade em que nenhum delles é capaz de ganhar para seu sustento , vestido , e habitação ; naquella idade tão sugeita ainda a essas innumeraveis doenças , que dizimam a maxima parte desses infelices; nessa idade quem quererá encarregar-se de uma dessas criancinhas , eivadas pella miseria , com a obrigação de sustenta-las , vesti-las , trata-las em suas doenças , dando ainda por cima de tudo isto uma retribuição pecuniaria , que vai ser absorvida nesse vortice legal chamado cofre dos orfaons ? ! ...

E tanto isto é certo que poucos , pouquissimos serão os engeitados a quem esta ley se applique. Nem possivel era applicá-la. Fôra mister que cada uma das municipalidades fizesse lavrar um termo de entrega de cada um dos engeitados que cumprisse os sete annos ; para cada um delles fôra necessario que o poder judicial nomeasse um tutor, um sub-tutor , e quatro membros de conselho de familia , assistido pello delegado do procurador regio , ou pello curador geral dos orfaons de quem fazem as vezes , para tratar dos interesses de cada um desses desvalidos ! E fôra isso possivel ?

Essa impossibilidade pois é um dos maiores malles a que estam sugeitos os engeitados. As municipalidades apenas elles cumprem a idade fatal — os sete annos — dam-lhes baixa em seu livro negro ; e o poder judicial não os inscreve no seu , porque ainda que a ley a isso obrigue, a impossibilidade absoluta de cumpri-la tira a responsabilidade , que nunca lhe foi exigida.

A parte economica deste importantissimo ramo do serviço publico tem sido por muitas e differentes vezes tratada pellas juntas geraes de districto do reyno ; tem-se attendido á commodidade dos contribuintes; tem-se discutido real a real as verbas de receita e de despeza ; tem-se , ora augmentado , ora supprimido o numero das rodas de engeitados : porém , com mágoa o dizemos, ainda até o dia de hoje se não tratou da questão social , cuja solução emprehendemos.

A questão pecuniaria tem sido , e é ventilada nesta epocha positiva , em que o dinheiro é o Baal a que a maxima parte sacrifica ; dalli vem esse culto de idolatria pella sciencia das riquezas ; dahi procede essa mania litteraria pelo estudo da Economia Politica , cujo fim mais ellevado ampliou a Chrematistica, dando-lhe uma direcção mais nobre, porque considerou a riqueza em seus tres differentes estados , convem a saber , producção, distribuição , e consumo.

Espiritos sublimes vieram ultimamente quebrar as douradas barreiras do Egoismo social , formando uma nova eschola de Economia Politica; o illustre Sismonde de Sismondi caminhou á frente dessa pequena falange sagrada , que considerou a riqueza social não só em relação á producção , distribuição , e consumo , mas em attenção ao maximo bem do maximo numero. A parte de seus Estudos Sociaes, que elle chama , Estudos sobre Economia Politica , é o documento mais honroso de seus vastissimos talentos , e da nobreza de sua alma.

Porém o que em nosso humilde conceito leva a palma , é o illustre Visconde de Ville-Neuve-Bargemont , que considerou a questão das riquezas sociaes , pello lado inverso de todos os seus antecessores ; a sua Economia Politica Chrislan , ou Indagaçoens sobre a natureza, e causas do pauperismo em França e na Europa , e sobre os meios de aluna-lo , e preveni-lo , é a obra mais rica e preciosa que neste genero se tem escripto. Não trata elle da criação das riquezas, mas dos meios de extincção, e alivio da pobreza.

Quizeramos nós que, á similhança do illustre Visconde de Villa- Neuve-Bargemont, por um pouco attendessemos não só á questão economica da infeliz, classe dos engeitados -, mas tambem á questão moral , social, e christan , para habilitar esses desgraçados á partilha dos bens sociaes , moraes, e christaons.

Ha deffeitos na legislação , que é necessario emendar ; ha preconceitos sociaes , que é mister combater. Narrando a mizeranda historia de Um engeitado , faremos por levar a convicção destas verdades ao mais intimo de todos os coraçoens ; contando a terrivel chronica de seus martyrios fisicos e moraes, faremos quanto em nós couber por demonstrar a insufficiencia , ou estôrvo das leys ; o embaraço e mal que lbes fazem essas opinioens falsas , que derivando delias , com ellas terão a necessaria modificação.

O exame da legislação especial dos diversos povos , servirá de illustração para a grande solução do problema social da existencia desses milhares de victimas innocentes do erro ou mizeria alheia : e ainda quando fique por extremo longa esta introducção , nem porisso deixaremos de substanciar aqui as diversas disposiçowis delia , seguindo quanto podermos sua ordem chronologica , que será como um grande cosmorama , em que appresentemos o quadro do progresso das ideias moraes , cujo triumfo completo esperamos da benefica influencia do christianismo.

É tal a sublime eloquencia do author da Economia Politica Christan, já citado , que julgamos dever substituir seu nobre entusiasmo , ás nossas debeis forças litterarias , para consignarmos aqui a historia da legislação sobre os expostos.

"De todos os sentimentos de que o homem é susceptivel , o mais natural e o mais doce é o amor dos pays para com seus filhos, nos quaes deve elle reviver um dia. É uma consequencia da ley suprema que preside á conservação do universo , e que se encontra mesmo nas criaturas privadas de intelligencia; pois é certo que os animaes os mais feroses, nunca abandonam sua prole senão quando ella está em estado de não carecer dos seus cuidados. Mas entre os homens este sentimento , como todas as affecções moraes e generosas , altera-se pello contacto das paixoens e dos vicios , pella degradação da intelligencia e do coração..."

"Assim , como já antecedentemente o dicemos , em todos os tempos, e em todos os paizes do mundo , se viram recem-nascidos serem victimas de costumes crueis, de praticas as mais barbaras, e da mais insensata superstição. Excepto entre os hebreus , egypcios , e thebanos, a legislação antiga concedia um poder absoluto , e até o direito de vida e morte aos pays sobre seus filhos , mesmo adultos. Este direito foi por muito tempo exercido já pella morte da creança , já pella exposição della. Os historiadores, os poetas gregos e romanos, e até 0s filosofos da antiguidade, estam de accordo em considerar como licitos , ou toleraveis os crimes de infanticidio , aborto, e exposição dos recem-nascidos. Somente os magistrados tratavam de conservar as creanças expostas , declarando-as propriedade daquelles que as tivessem educado ; ou sustentando á custa do estado aquellas de que ninguem tinha querido encarregar-se."

"Ao christianismo estava reservado introduzir nas instituiçoens , nas leys , e nos costumes os principios de humanidade e de justiça , que fazem um dever do sentimento da ternura paternal , que punem a infracção deste dever , ou que substituem por uma tutella conservadora , esse abandono voluntario dos direitos e deveres da paternidade."

"Desde seu começo trabalhou a egreja quanto poude para combater as maximas da politica pagan a respeito dos recem-nascidos, e para fazer desapparecer do codigo das naçoens christans , a legislação barbara que authorisava o aborto , a exposição, e o infanticidio."

"Depois da promulgação dessa ley o infanticidio propriamente ditto foi rarissimo. Não aconteceu assim com a exposição , que continuou a ser mui frequente , porque em certa forma parecia authorisada pello edito de Constantino , pello qual os engeitados ficavam escravos daquelles que os tomavam a seu cargo."

"Era sem duvida para subtrahi-los á morte que este imperador os entregava á escravidão. Suas humanas intençoens estam expressadas em outro edito , no qual ordena ás cidades de Italia e de Africa soccorrer os pays que declarassem não poder suprir os gastos de educação de seus filhos. Conforme este edito os filhos deviam ficar na casa paterna , e alli ser educados ; porem esta ley não produziu effeito algum geral ou permanente. Suas promessas eram magnificas em demazia , seus meios de execução insuflicientes. Mais serviu para fazer conhecer a extensão da mizeria publica , do que para aliviá-la; todavia os engeitados achavam na caridade dos christaons soccorro mais efficaz. Grande numero era salvo , baptisado , sustentado e educado á custa do thesouro publico de cada egréja. É o que ainda hoje fazem , tanto quanto poderti , nossos missionarios na China."

"As leys dos povos que invadiram o imperio romano , acerca dos engeitados , foram selladas com os principios do christianismo , que nesta epocha se propagava por toda a parte. De todos os povos barbaros, um só imitou os romanos , authorisando o infanticidio no momento em que a creariça acabava de nascêr : eram os Frisoens 4 dos quaes a maior parte ainda eram afferrados ao culto pâgao e a seus antigos costumes."

"No imperio do Occidente e os engeitados subtrahidos á morte , Hão o fófani ao captiveiro. Carlos Magno que tinha equiparado ao homicidio o infanticidio, declarou os engeitados escravos daquelles que os educassem. Só concedia dez dias de prazo a suas familias , para reclamá-los. Seguindo assim o exemplo de Constantino , quiz como elle, sem duvida , conservar-lhes a vida e a liberdade ; porque na sua capitulai - de 802 , exhortando todos os seus vassallos á caridade, lembra-lhes estas palavras do Evangelho — Qualquer que a um minino receber em meu nome, a mim proprio me recebe* — S. Matheus, Cap. 18, vers. 5."

"No imperio do Oriente , Justiniano , que prohibiu a exposição , deU aos engeitados liberdade inteira. Os progressos do christianismo conseguiram em fim estender esta liberdade a toda a christãndade."

"Uma ley de Justiniano nos dá a prova de que em seu tempo existiam já hospicios para os enfeitados ; assim como as capitulares de Carlos Magno provam igual existencia no imperio do Occidente. O espirito da religião christan tinha levado seus fructos ás duas extremidades da Europa."

"Durante longo periodo só a caridade christan se occupou da conservação das creanças abandonadas. Em 1452 uma ley ordenou a todos os senhores de alta justiça de França , que se encarregassem da sustentação das creanças achadas em sua jurisdicção. Esta obrigação abrangia o rey nos lugares de que era donatario. Por isso os seus procuradores , nos circulos destes dominios , e os procuradores fiscaes nos dominios dos outros senhores donatarios , tiveram grande cuidado, quando appareceu a ordenança de Henrique 2.o , em exigir das mulheres pejadas declarações de gravidez , que collocavam debaixo da protecção da ley , a vida da creança que havia de nascer; á qual se dava então mais importancia do que á honra da may , já tão compromettida."

"Já em 1362 se tinha formado em Pariz uma confraria , com authorisação do Bispo, para soccorrer as creanças pobres. Esta associação, approvada pello delfim regente , fundou no anno seguinte o hospital do Espirito Santo a favor das creanças abandonadas. Pello decorrer dos tempos , querendo os magistrados que alli fossem recebidos os engeitados , por carta patente de 1445 se decidiu — que o fim daquella fundação era unicamente para recolher creanças pobres, nascidas de legitimo matrimonio."

"Francisco I.o fundou em 1538 um hospital para os filhos que ficassem dos pobres que morressem no Hotel-Dieu. Estas creanças chamavam-se Enfants-Dieu, e depois Enfants-Bovges. Em 1541 permittiu que alli fossem recebidos os meninos orfaons pobres e indigentes do districto de Pariz."

"Quanto ás creanças achadas e desconhecidas , authorisava este principe o pedido de esmolas para ellas destinadas ; recolhendo-as então em uma pequena casa chamada — La Couche — Havia á entrada da egreja de Nossa Senhora uma enxerga chamada — La Creche — aonde as irmans hospitaleiras expunham algumas creanças ás horas dos officios divinos , e a favor das quaes solicita vam dons , e esmolas. Mas aquella casa não podia conter senão um pequeno numero de creanças , e era apenas sufficiente para as da cidade. Como havia então differentes senhores que tinham o direito de alta justiça em Pariz , recusavam a entrada desta casa ás creanças que tinham sido achadas no districto dessas justiças , conforme a disposição do edito de 1442. Todavia tendo parecido barbara a execução desta ley , em 1532 fintaram-se os senhores de Pariz , e admittiram-se todas as creanças achadas na cidade, em um estabelecimento um pouco mais vasto. Mas a modicidade da taxa , e o esquecimento de toda a moral , fructo primeiro das guerras de religião, foram bem depressa causa de que este ramo de serviço publico cahisse na desordem mais espantosa. Entre as maons de subalternos avidos , as creanças foram objecto de um trafico escandaloso. Vendiam-as a barqueiros, a mendigos, e como dizem as memorias daquelle tempo, a magicos; o preço corrente eram vinte soldos !"

"Henrique 2.o para fazer cessar estas deploraveis desordens , publicou a celebre ordenança de 1556 que obrigava todas as mulheres pejadas a declarar sua gravidez e seu parto , diante de testimunhas dignas de confiança , debaixo de penas severas ; mas esta medida longe de conseguir o seu fim , deu logar em sua applicação a multiplicados , e afflictivos abusos."

"Sabe-se que a gloria de fazer triunfar por fim a humanidade na legislação relativa aos expostos , pertence em França , a S. Vicente de Paula. Sua elloquencia , e seu credito na corte obtiveram para os engeitados um asylo decente e seguro; conseguiu , se destinassem para sua manutenção rendimentos consideraveis em bens de raiz , em rendas sobre os dominios e arrendamentos , e em impostos sobre os proprietarios e senhores de Pariz e circumvizinhanças. Desde este momento a legislação tomou a respeito destes desgraçados , um caracter de tutella e de paternidade completo , e deffinitivo. O principio de sua adopção pello estado foi reconhecido , e não podia d'ora avante ser modificado senão nas formas de sua applicação. A união da caridade christan e da jurisprudencia , consumou-se a respeito delles."

"A humanidade devia sem duvida applaudir. Desgraçadamente este progresso não era acompanhado de um melhoramento analogo nos costumes publicos , e no desenvolvimento dos principios religiosos. As instituições do caritativo S. Vicente de Paula não tardaram muito em dar á immoralidade uma especie de premio ; porque a mizeria viciosa se apressou a desnaturalisa-los. Parece que de ha muito Carlos 7 havia previsto esse funesto resultado quando se oppoz á admissão dos filhos illegitimos no hospital do Espirito Santo."

"Nos primeiros tempos que se seguiram ao estabellecimento do hospital dos expostos em 1670 , o numero das creanças, que alli eram aprezentadas e recebidas , era pouco consideravel. No primeiro anno não se contaram mais do que 312: dez annos depois montava o numero a 890 , e no fim do seculo 17 subiam a 1:1OO. Este numero continuou a crescer em uma progressão rapida. No anno de 1740 , foi de 8:150; em 1750 foi de 3:789 ; em 1760 foi de 5:032 ; e em 1770 foi de 6:918. Este augmento , é verdade , provinha em grande parte da admissão dos engeitados das provincias no hospital de Pariz. Levavam-os para a capital, e abandonavam-os ás portas das egrejas, expostos a morrerem de frio e de inanição , em tanto que não eram recolhidos pellos archeiros do hospital."

"O parlamento viu-se então obrigado a suscitar as antigas leys ; ordenou que os senhores de alta justiça de fóra de Pariz , seriam obrigados a satisfazer a despeza do sustento e manutenção das creanças filhas de pay e may desconhecidos , que se achassem expostos na extensão de suas terras ; prohibindo a todos os almocreves , e conductores de terra ou de agoa conduzirem creança alguma para Pariz, sem terem feito escrever os nomes, sobrenomes, e moradas das pessoas a quem a creança devia ser entregue , sob pena de castigo corporal , e de cem libras de multa. O numero dos expostos nas terras dos donatarios era apenas sensivel; sobre tudo nas cidades é que seu numero era grande. Assim pouca efficacia tiveram estas precauçoens ; o numero das creanças expostas não diminuiu ; obteve-se a prova que muitos delles provinham de laços legitimos ; deforma que os azylos instituidos em sua origem para prevenir os crimes a que o receio da vergonha podia induzir uma may allucinada, successiva mente se tornaram depositos favoraveis á criminosa indifferença dos pays."

"Os encargos publicos se augmentaram assim por tal forma em Pariz , e nas grandes cidades do reyno, que a despeza com a sustentação dessa infinidade de creanças , ficou fóra de proporção com os meios destinados para esse fim , e com a medida de cuidados e de attençoens de que uma administração publica é susceptivel. Era com effeito difficil que os hospitaes podessem segurar a primeira subsistencia a essa quantidade de creanças , entregues a seus cuidados , quando a maior parte das mays renunciavam o meio de nutri-las, que a natureza pôz em seu seio, negando-lhes essa protecção maternal que cousa alguma pode substituir. Luiz 16 commovido por este estado de cousas , tratou dos meios de remedia-lo."

"A resolução do conselho de 10 de Janeiro de 1779 emprega estes termos = As perigosas consequencias de semelhantes abusos não poderam escapar á attenção de sua magestade; que examinando em sua sabedoria quaes seriam as precauções que deviam tomar-se para pôr freio a esta depravação ; e querendo outrosim evitar , se é possivel , o empregar a este respeito a severidade das leys ; houve por bem começar por ordenar que os curas , e todos aquelles que tem direito de exhortação sobre o povo , redobrem seu zêlo para oppor a este pernicioso escandalo os preceitos da religião , e os soccorros da caridade , com o fim de conseguir , tanto quanto nelles cabe , desviá-lo desses crimes occultos , que as leys não podem castigar senão por via de indagaçoens rigorosas. Luiz 16 tinha conhecido que era acordando os princípios da religião e da caridade , o meio unico de oppor uma barreira ao esquecimento dos deveres mais sagrados da sociedade e da natureza. Porém a immoralidade tinha feito demasiados progressos para que esta voz tão santa e pura fosse ouvida."

"As medidas de policia ordenadas no decreto atraz citado limitavam-se a mandar levar ao hospital mais vizinho , e nunca a Pariz, spb pena de cem libras de multa , as creanças achadas nas provincias. A força publica tinha ordem egressa de impedir a importação desta especie de contrabando na capital. O rey promettia prover ao defficit que aos hospitaes resultaria deste augmento de despezas , por via de consignaçoens sobre o thesouro , e seus dominips particulares. Porém não obstante promessas tão solemnes , os hospitaes e as cidades adiavam lucro mais certo , e mais immediato em se desonerarem das creanças expostas em seus districtos ; e por isso secretamente favoreciam a conducção dellas para Pariz. Não só a despeza , se não tambem os cuidados , e fiscalisação lhes mettia medo. Por outro lado , os meios absorvidos pellos enfeitados faziam falta aos pobres mantidos pellos hospicios. Em fim um prejuizo difficil de extinguir , por isso que nascia de motivos respeitaveis, inspirava repugnancia contra essas desgraçadas creaturas. Vê-se , pellos registos do hospital geral de Pariz , que os parochos olhavam com dor e pezar os engeitados , dados a aleitar a amas de suas parochias. Era natural que ecclesiasticos , vigias-natos dos bons costumes , temessem os effeitos que estas provas vivas da immoralidade , e que a imagem de uma especie de protecção concedida ao vicio , podiam produzir nos campos."

"Todos estes motivos impediram o governo de attingir ao fim a que se propunha."

"Necker não se illudia sobre as tristes consequencias que deviam ser o resultado da desmoralisação popular. = O que seria verdadeiramente perigoso , diz elle , fôra a corrupção dos costumes nos campos , e o abandono desnaturado das creanças nesses lugares de azylo , onde a morte faz tantos estragos. Será esse talvez um dos malles do futuro ; e já se enxergam os indicios de um criminoso affrouxamento. O abuso cresce de dia em dia , e seus progressos embaraçarão o governo para o diante ; porque o remedio é difficil , não empregando senão paliativos ; e os extremos não seriam approvados , senão quando a desordem chegasse a um excesso tal que ferisse todas as vistas. = "

"Nesta epocha transportavam para Paris cada anno duas mil creanças , enviadas de differentes lugares como uma mercadoria. Estas creanças morriam na proporção de noventa por cem , durante a jornada , ou poucos dias depois de sua chegada."

"Então cresceu a opinião de que o augmento progressivo do numero dos engeitados provinha das instituiçoens creadas a seu favor."

"Dizia-se que os pobres se acostumaram insensivelmente a considerar os hospitaes de expostos , como casas publicas em que o governo reconheceu era justo nutrir e sustentar seus filhos. É força confessar que este argumento não era falto de certa apparencia de verdade. Tal é com effeito a fraqueza de todas as instituiçoens humanas, em que o mal anda sempre a par do bem ! Mas respondia-se com razão ; pois porque se veem pobres ás portas dos hospicios , demandistas ás portas dos juizes , dever-se-hiam por isso supprirmir os hospicios e os tribunaes ? Os progressos da exposição eram talvez favorecidos a alguns respeitos pellas instituições de S. Vicente de Paula ; porém com mais certeza eram a expressão de uma immoralidade e mizeria profundas ; dignas de excitar no mais alto gráo a attenção dos estadistas , e dos filósofos. Em outras epochas de mizeria e desmoralisação eguaes abusos se manifestaram. O quadro espantoso que pinta um bispo de Pariz, acerca do que nesta capital se passava em 1362 , relativamente ás creanças expostas , justificaria sufficientemente, se tal fosse preciso, a caridade de S. Vicente de Paula da exprobração de haver contribuido para a horrivel mortalidade, que reynava entre as creanças transportadas para o hospicio geral de Pariz."

"O que é certo , é que a obrigação imposta aos hospicios de receber os engeitados , augmentando consideravelmente suas despezas , não podiam deixar de soffrer os outros pobres admittidos nestes estabelecimentos , a necessaria consequencia de privaçoens , occasionadas pello novo emprego dado aos rendimentos dessas casas de caridade. A esta causa se attribuiu a exposição dos filhos legitimos. Eis aqui a opinião enunciada a este respeito na tribuna da assemblea legislativa de França em 1792."

"= Ha nada mais impolitico , e mais injusto que esta applicação exclusiva dos soccorros publicos para os engeitados ? Os hospicios abrem-se só para elles , e fecham-se para os filhos dos pobres ! Distincção immoral que determina os pobres a separar-se para sempre de seus filhos , e a lançá-los nos braços da assistencia publica para não os expor a soffrer com elles todos os horrores da necessidade. É verdadeiramente a este abandôno dos pobres que se deve attribuir a multiplicação excessiva dos filhos legitimos abandonados ; é esse cruel abandono que constrange seus desgraçados pays , por um excesso de amor por esses tristes fructos de uma fecundidade que deploram , a fechar seu coração ao mais doce de todos os sentimentos ; mas esse sentimento triunfa ainda do proprio vicio dessa instituição. As mays, que abandonam seus filhos , misturam-se com as amas estranhas , e vam aos hospicios escolher entre todos aquelle , a quem deram a vida ; e cheias de alegria e ternura o levam para a sua cabana. Tanto lhes tinha custado separar-se de seu filho , que por uma engenhosa piedade o amor maternal poude illudir a parcimonia cruel do governo. = "

"Esta opinião revelava o facto incontestavel da mizeria publica , mas não denunciava sua verdadeira origem. Não era a crueldade e parcimonia do governo que se devia deplorar. Admittir ou estabellecer , que o estado deve dar subsistencia a todos os pobres indistinctamente , é um erro. O mal está na tibieza dos principios da caridade christan entre os ricos , e no esquecimento da virtude e da religião entre os indigentes ; sam estas as causas geradoras , e perpetuas da mjzeria publica; a maior parte das vezes despresadas, e desconhecidas dos axiomas da politica moderna; que todavia o futuro se encarrega de patentear , ou cedo ou tarde"

"Não mencionaremos todos os regulamentos successivamente estabellecidos para o sustento e manutenção dos expostos. No começo da revolução , o regimen delles variava conforme as localidades. Nas cidades consideraveis o hospital principal era quem estava encarregado deste serviço, e applicava-lhe os cuidados e a economia que uma administração mais ou menos esclarecida podia imaginar. O governo limitava-se a proteger e inspeccionar directamente o hospital geral de Pariz. Em geral as creanças eram entregues ás amas de leite ou seccas, e encarregadas á vigilante solicitude dos parochos. Todos os annos as irmans da caridade , ou outras pessoas commissionadas para este fim, faziam a inspecção destas creanças , percorrendo as cidades, villas , e aldeias , onde ellas estavam collocadas ; vizitavam-as , examinavam as amas ; fazendo relatorio de tudo á mesa do hospital."

"Na idade de dezaseis annos , aquelles rapazes que o hospital não tinha podido enviar para colegios de educação liberal , eram mandados apprender officios mechanicos. Os mestres de officios não podiam exigir mais que dous annos , além dos ordinariamente estabellecidos para o ensino de cada mester. Relativamente ás raparigas , podiam exigir o seu serviço até á idade de vinte e cinco annos , as mestras que as ensinavam ; com tanto que ao expirar o contracto ellas lhes pagassem a quantia de duzentas a trezentas libras; conforme o tempo que tinham dado de serviço ; dando lhes além disso um enxoval completo."

"Toda e qualquer pessoa que em toda a extenção do reyno tivesse educado Um exposto podia apprezentá-lo na idade de dezaseis annos , na occasião do sorteio para o recrutamento militar , em substituição de um filho , irmão , ou sobrinho."

"Ao mesmo passo que Luiz 14 tratava de soccorrer os engeitados , provia ao recrutamento de seus exercitos , e povoação de suas colonias. Lê-se no preambulo do edito de Junho de 1670 , o seguinte : = Considerando quanto é proveitosa a conservação destas creanças , porque umas podem vir a ser soldados , e servir em nossas tropas ; e as outras podem ser artistas ou habitantes das colonias que estabellecemos para o commercio &c. ="

"Esta ideia tornou a suscitar-se depois ; e Mr. J. B. Say julga que os engeitados pertencem ao estado, podendo empregá-los no serviço do exercito e da marinha. O conde de Sainte-Foi propunha , em um ensaio sobre administração publica , impresso em 1787 , a creação de estabellecimentos provinciaes , que ao mesmo tempo fossem hospicios para velhos , orfaons , indigentes , e engeitados : destinando estes ultimos para o serviço dos trabalhos publicos."

"Os administradores dos hospitaes eram os tutores legaes das creanças entregues a seus cuidados. Em Lyão os engeitados ficavam toda a vida debaixo da authoridade paternal destes administradores, conforme o direito escripto ; de forma que se , depois de terem adquirido alguns bens da fortuna , elles morriam sem posteridade , o hospital era seu legal herdeiro ; porque eram considerados como seus filhos adoptivos."

"A assemblea constituinte poucas mudanças fez na forma dos soccorros dados aos expostos. Somente uma ley de 10 de Outubro de 1790, declarou que os senhores de alta justiça ficavam aliviados do cuidado e manutenção delles , nos districtos de seus senhorios; e diversos decretos ordenaram o pagamento adiantado por trimestres , feito pello thesouro , aos hospitaes ; habilitando-os assim com os meios necessarios para as despezas dos engeitados. Era com effeito justo, que quando os direitos feudaes iam ser abolidos , os senhores donatarios fossem aliviados da obrigação de sustentarem os expostos encontrados nos districtos de suas jurisdiçoens supprimidas ; e cujo numero não podia , por diminuto , ser oneroso aos hospicios."

"A commissão de soccorros da assemblea constituinte, dividiu em duas classes as creanças a quem devia prestá-los ; primeira, a dos filhos de pays indigentes e cazados ; segunda os procedentes de unioens illegitinias do vicio , ou do erro , e fraqueza. Para os primeiros , propunha soccorros dados em seus domicilios ; quanto aos outros deveria estabellecer-se um hospicio em cada districto administrativo = Por esta forma , dizia o relator da com missão, se prevenirão delictos, que tanto mais se carece impedir, quanto seria penoso ter de puni-los ; sendo aliás mui difficil e perigoso descobri-los. Uma rapariga , que ao pensar nas consequencias que um só erro pode imprimir em sua reputação uma mancha indelevel , não será may desnaturada , se pôde encobrir esse erro, longe, do sitio que foi testimunha secreta de sua falta. A ideia de um crime que elle espera ficará occulto , e muito mais fácil de supportar, que a de uma fraqueza que todos sabem. Haverá menos creanças abandonadas, quando os filhos dos pobres forem soccorrídos nos proprios domicilios de seus pays. Diminuirá o numero desses, que o receio horrivel de não poder satisfazer as suas primeiras necessidades , obrigava seus pays a abandoná-los. Os cuidados do amor materno serão prestados assim aos filhos que é permittido confessar como proprios. ="

"Para tirar os engeitados do estado de abjecção em que até alli tinham estado, propuseram dar-lhes o nome de filhos da patria. Esta proposição foi adoptada pela convenção de 1793. Em fim , para completar em seu favor a obra da beneficencia publica , pediu-se uma ley = que unindo os homens pello laço mais forte , a adopção , emendasse a seu respeito o abandono da natureza ; e que fecundando por uma ficção feliz um casamento esteril , désse filhos áquelles que não tinham a ventura de tê-los proprios , e pays áquellas creanças , a quem a mizeria ou a vergonha tinha privado dos seus. = A assemblea legislativa dissolveu-se sem ter delliberado sobre este assumpto."

"Já de facto e de direito estava abolida a ley que obrigava a declarar a gravidez, e a pesquizar os pays desses infelices."

"A convenção tinha decretado soccorros a favor das mays e viuvas pobres com filhos de tenra infancia. Fez uma applicação especial delles a favor das mays não casadas. A respeito destas , o apparato que se deu a esta esmola , fez considerá-la como a apologia daquellas que , não sendo casadas, davam cidadaons ao estado ! Os imitadores dos tribunaes romanos , em sua ignorante , e asquerosa immoralidade , não pensavam que, a castidade das damas romanas , tinha sido o mais firme apoio dessa republica , que elles quizeram tomar para modelo !"

"O pudor impediu as mulheres pobres, mas honestas , que se achavam no caso previsto pella ley , que se presentassem a reclamar esses soccorros. O vicio unicamente se aproveitou delles , com um desfaçamento e um cynismo, de que só ha exemplo nessa epocha de vergonha e de terror. Tambem se concederam soccorros ás pessoas que se tinham encarregado de creanças abandonadas : não podia porém exceder a quantia de oitenta libras annuaes por cada creança, a indemnidade que havia direito a reclamar pello sustento e educação de cada uma delas. Passando da idade de dez annos , tirava-se o terço a este soccorro ; que acabava completamente quando a creança tinha attingido os doze annos."

"Não obstante estas medidas pouco diminuiu o numero dos expostos ; e a espolliação dos hospitaes , junta ao descredito do papel-moeda, tornaram sua sorte cada dia mais deploravel.""Não obstante estas medidas pouco diminuiu o numero dos expostos ; e a espolliação dos hospitaes , junta ao descredito do papel-moeda, tornaram sua sorte cada dia mais deploravel.

"O serviço deste ramo tinha cahido no mais completo abandôno , quando a ley de 17 de Dezembro de 1796 veio dar-lhe , senão os meios pecuniarios de que tinha urgente necessidade, ao menos regras proprias a preparar um futuro mais feliz."

"Esta ley ordenava que as creanças recem-nascidas abandonadas fossem recebidas gratuitamente em todos os hospicios ; que o thesouro publico supriria a falta de meios destinados para esta despeza ; que as creanças ficariam até á maioridade , ou sua emancipação debaixo da tutella dos maires , e que os adjunctos desta magistratura formariam o conselho de tutella. Todo e qualquer que levasse um engeitado a qualquer outra parte que não fosse ao hospicio civil mais visinho, soffreria a pena de um mez de detenção."

"O governo era encarregado de determinar a forma porque estas creanças deviam ser sustentadas e educadas. O regulamento de 20 de Março de 1797 estabelleceu essas providencias : ordenando que o defficit , dos meios dados pello governo , fosse satisfeito pellos cofres dos hospicios. Não estando porém ainda os hospitaes de posse de seus bens não vendidos , nem tendo ainda recebido os bens nacionaes que deviam indemnisa-los de suas propriedades alienadas em nome da nação , não poderam pagar ás amas , e estas vieram trazer-lhes os engeitaéos que criavam, e cuja criação lhes não pagavam. Em vão se expediram circulares a favor delles , suscitando a execução da ley relativa á adopção. Com dificuldade eram admittidos como criados , quando estavam em circunstancias e idade de fazerem algum serviço ; ninguem estava disposto a contrahir a obrigação , que só pôde provir de uma inspiração , que no affecto e caridade tem sua origem."

"As administraçoens dos hospitaes, que não eram ainda ajudadas pellas irmans hospitaleiras , cahiram em um tal desalento , que a maior parte das vezes degenerou em culpado descuido ; e este habito de desleixo só lenta e difficilmente cedeu á exactidão com que o governo pagou regularmente todas as despezas. Muitos hospicios pequenos abandonaram completamente as creanças entregues a seus cuidados. Desde que chegavam á idade de doze annos deixavam-as , por assim dizer , arbitros de sua sorte. Alugavam seus serviços , se tinham inclinação ao trabalho , ou davam-se ao ocio , e á devassidão , fazendo-se vagamundos e bandoleiros. Ninguem tomava interesse por elles ; nem se informavam sequer de sua existencia !"

"O decreto de 18 de Janeiro de 1811, fez uma reforma completa a este respeito , regulando ao mesmo tempo o modo , e a applicação da assistencia devida aos engeitados , ás creanças abandonadas , e aos orfaons pobres ; restituindo-lhes a protecção das irmans hospitaleiras. Conforme as disposiçoens deste decreto , sam considerados como engeitados todas as creanças que nascidas de pay e may desconhecidos , foram achados expostos em qualquer parte , ou ás portas dos hospicios destinados para recebe-las. Estabelleceu que houvesse em cada districto — arrondissement — um hospicio encarregado deste serviço jyno qual ordenou que houvessem registos bos quaes sc lançasse cuidadosa , e diariamente a entrada, o sexo, e a idade apparente das creanças ; descrevendo-se tambem Os signaes naturaes que podessem servir para reconhece-los."

"Creanças abandonadas sam aquellas que, nascidas de pay ou may conhecidos, ainda que educadas por elles , ou por outras pessoas na sua falta, sam abandonadas sem que se saiba a paragem de seu pay ou may, ou sem que possa recorrer-se a elles."

"Orfaons sam aquelles , que não tendo pay nem may , carecem de todos os meios de existencia."

"Estas tres classes de creanças devem ser admittidas em os hospicios á custa dos estabellecimentos de caridade, das municipalidades e dos districtos administrativos."

"A' porta de cada hospicio destinado para recolher os engeitados deve haver uma roda , ou especie de armario redoudo , que gira sobre um eixo , collocado na espessura da parede , e com uma sineta ao lado. Aquelle que se determina a abandonar um filho á caridade publica , depoe-o nessa roda , e toca a sineta. Uma irman hospitaleira , especialmente encarregada desse serviço , e constantemente de guarda , acorre logo , e recolhe a creança , sem poder mesmo aperceber a pessoa que o trouxe."

"Os recem-nascidos devem , tanto quanto for possivel, ser entregues a amas camponezas. Até então sam nutridos no hospício por amas que alli residem para esse fim ; e na falta dellas pellos outros meios usualmente empregados ; as creanças que sam dadas para fóra, recebem um enxoval , e ficam com as amas de leite ou criadeiras até á idade de seis annos. Para evitar que não sejam trocadas ou substituidas , poem-lhes um cordão de seda , cujas extremidades estam selladas com chumbo. Na idade de seis annos , e até aos doze , sam as creanças entregues a cultivadores ou artistas , mediante uma penção. Aquelles que não acharam emprego , os estropeados , e doentes ficam no hospicio , e devem ser occupados em trabalhos proprios de sua idade e fôrças."

"Cumprindo os doze annos os rapazes válidos sam postos como apprendizes em casa de lavradores ou de mestres de officios ; as raparigas em casa de costureiras , e outras artistas , ou nas fabricas e manufacturas. Nos contractos desta ordem nunca se estipula quantia de dinheiro a favor do mestre ou apprendiz , mas garantem-se áquelle os serviços gratuitos deste , até uma idade que não póde exceder vinte e cinco annos ; e ao apprendiz asseguram-se sustento , habitação , vestido , e ensino. Se o apprendiz é chamado pella ley ao serviço das armas , suas obrigaçoens acabam para com seu mestre."

"Conforme o decreto de 18 de Janeiro de 1811, os engeitados eram postos á disposição do ministerio da guerra. Já antecedentemente tinham recrutado os mais robustos , debaixo do nome de — pupillos da guarda. — Estas disposiçoens foram derrogadas pella ley de 10 de Março de 1818."

"Os engeitados e creanças abandonadas estam debaixo da tutella das commissoens administrativa» dos hospicios , até á sua maioridade ou emancipação ; tendo estas todos os direitos que aos pays , mays , ou tutores concede o codigo civil."

"Nenhuma creança deve sahir do hospicio sem saber ler , e escrever , contar , e sem ter recebido os principios da religião catholica."

"A despeza que importam os engeitados é feita pello producto dos centesimos departamentaes , e no caso de jnsufficiencia por uma deducaçâo feita sobre os rendimentos dos hospicios e municipalidades ; cuja importancia é fixada pello conselho geral , sob proposta do prefeito. Os hospicios sam obrigados a fornecer o enxoval. O termo medio da despeza annual de cada engeitado é de setenta e cinco , a oitenta e cinco francos (Que na nossa moeda , a razão de 160 reis por Cada franco, Tem a ser 12#000, a 13:600 reis.)

"Ao mesmo passo que estas disposiçoens administrativas eram postas em vigor , os codigos civil e penal firmavam a legislação ácerca do infanticidio , e exposição."

" = Todo o que tendo assistido a um parto , não fizer a declaração prescripta pello artigo 56 do codigo civil , e no prazo fixado pello artigo 55 do mesmo codigo , será punido com a pêna de prizão desde seis dias até seis mezes , e com a multa desde dezaseis até trezentos francos. (Artigo 346 do Codigo penal) ="

" = Todo o que achar um recem-nascido é obrigado a entregá-lo a um official do registo civil ; declarando todas as circunstancias do tempo e do logar em que o achou. O codigo penal impõe a pêna de seis dias até seis mezes de prizão , e a multa de dezaseis a duzentos francos , ao contraventor deste artigo. "

"= Aquelles que levarem a um hospicio uma creança de menos de sete annos cumpridos , que lhes tivesse sido confiada para della terem cuidado , ou para qualquer outro fim, serão punidos com a mesma pêna de prizão , e com a multa de dezaseis a cinzenta francos. Todavia nenhuma pena é imposta , se elles não eram obrigados a prover gratuitamente ao sustento e manutenção da creança , e se ninguem a isso tinha provido. ="

"= Aquelles que exposerem , ou abandonarem , em um logar solitario , uma creança de menos de sete annos de idade ; aquelles que tiverem dado ordem para assim ser exposta , se a ordem foi executada , por este simples facto serão condemnados á pena de prizão, desde dous mezes até dous annos, e a uma multa de dezaseis a duzentos francos. (Artigo 349 do codigo penal) ="

"= Aquelles que exposerem ou abandonarem , em um logar solitario , uma creança de menos de sete annos de idade completos , serão punidos com prizão , desde trez mezes a um anno , e com a multa de dezaseis a cem francos. =

"= E' qualificado infanticidio o assassinato de um recem-nascido. ( Artigo 300 do código penal) = "

" = Todo o criminoso de infanticidio será punido de morte. (Artigo 302) = "

" = E' prohibida a averiguação acerca da paternidade. (Artigo 340 do codigo civil)="

"= É admittida a indagação acerca da maternidade. (Artigo 341 , id.) ="

"Todas estas disposiçoena sam actualmente seguidas."

"Taes sam as variaçoens porque tem passado a legislação franceza ácerca dos engeitados e abandonados.

"Vê-se nestas differentes fazes o caracter dominante de cada epocha politica. A caridade de S. Vicente de Paula , e a intenção especial dé prevenir o infanticidio , presidiram á ultima reforma."

"Não póde deixar de reconhecer-se que, desde a applicação das medidas prescriptas pello decreto de 18 de Janeiro de 1811 , cada dia tem recebido novos melhoramentos a sorte das creanças abandonadas e engeitados , e todo o alivio que era possivel dar-lhes."

"O numero dos infanticidios devia diminuir necessariamente. Em 1829 apenas se contavam cem ou cento e vinte accusaçoens annuaes de crimes deste genero. A mortalidade dos engeitados é hoje muito menor. Em 1789 morriam oitenta por cento , no primeiro anno de sua idade , daquelles que eram trazidos ao hospício de Pariz ; não chegando actualmente a setenta e um. Na totalidade da França , esta mortalidade é de cincoenta e sete por cento ; mas é de notar que , não sendo a proporção mais que de 30 por cento em Pariz , e em todo o reyno relativa á mortalidade da infancia ordinaria , morrem em Pariz mais engeitados que filhos legitimos na proporção de 41 por cento, e na generalidade da França 27 por cento. A mortalidade dos engeitados é quasi outro tanto maior que a da infancia ordinaria. É no primeiro anno de sua vida que ha esta differença. Mr. Dupin , em sua memoria publicada em 1808 sobre o hospicio da maternidade , diz que a mortalidade dos engeitados é de 500 por 1:000 na primeira idade; de 87 por 1:000 na segunda idade; na terceira idade de 28 por 1:000 ; e de 13 por 1:000; na quarta idade. A primeira idade comprehende os doze primeiros mezes da vida de uma creança ; a segunda começa com o segundo anno e acaba com o sexto ; a terceira idade abrange desde os sete até os doze annos."

"Mas se a vida e a saude das creanças sam mais bem conservadas ; se os infanticidios sam mais raros, por outro lado a exposição tem crescido em uma proporção , que se deve attribuir conjunctamente aos progressos da mizeria e da immoralidade , e ás facilidades concedidas pella legislação moderna ás mays legitimas , ou illegitimas , que renunciam o comprimento dos deveres prescriptos pella natureza e pella religião."

"O incremento progressivo do numero dos engeitados nos hospicios é verdadeiramente espantoso."

"Quando em Pariz se estabeleceu o hospital geral em 1670 contavam-se 312 engeitados. Desde esta epocha até o fim daquelle seculo augmentou-se o numero até 2:000 ; que não cresceu durante os trinta primeiros annos do seculo 18. Porém desde 1720 até 1750 subiu até 4:000. Quinze annos depois em 1765 excedia a 5:000 ; desde então até 1780 chegou a 6, e 7:000 algumas vezes."

"Desde 1780 até á revolução , e alguns annos depois , variou de 5:000 a 5:800. Desde então até ao prezente desceu , e parece conservar-se entre 4, e 5:000."

"As grandes cidades do reyno seguiram a mesma progressão que a capital. Em 1789 o termo medio dos engeitados de Lyão variava entre 900 e 1:000 ; hoje o hospicio geral desta cidade sustenta mais de 7:000."

"E' necessario notar que uma parte dos engeitados existentes nos hospicios de Pariz, de Lyão, e de outras cidades consideraveis, sam-lhes trazidos das provincias vizinhas. Calcula-se na oitava parte o numero dos engeitados de Pariz."

"Em 1784 contavam-se 40:000 engeitados em toda a França. Eis aqui o augmento veridico desde essa epocha.

"Em 1798=51:000: em 1809=69:000 : em 1815=84:500: em 1816 = 87:700: em 1817=92:000 : em 1818=98.00 : em 1819= 99:300 : em 1820 = 102:100: em 1821 = 106:400 : em 1822 = 109:300 : em 1823 = 118:800: em 1824= 116:700: em 1825 = 119:900: em 1830= 125:000; e nos annos de 1831 , 1832 , e 1833 a progressão continuou de uma maneira ainda mais notavel."

"A proporção do numero dos engeitados e abandonados em relação com os nascimentos é , ha um seculo , desta forma. Em 1720= de 9,73 por 100: em 1780 = de 33,6 por 100 : em 1820 = de 22,88 por 100."

"Vê-se a proporção subir rapidamente nos derradeiros annos do reynado de Luiz 15, epocha de depravação geral ; ella diminuiu no tempo da convenção, epocha em que as mays não casadas eram estimadas e recompensadas ; augmentou de novo sob o governo imperial , epocha de guerras e licença militar ; ficou estacionaria durante a restauração, epocha de ordem e de melhoramento moral."

"Actualmente a proporção dos nascimentos illegitimos em relação aos legitimos é de 1 para 14."

"A despeza annual com a manutenção dos expostos era em França em 1829 de perto de 11,500:000 francos. Muitas precauçoens se tomaram , muitos meios se pozeram em pratica para alcançar diminuir um encargo tão oneroso para os hospicios e districtos , a maior parte de cujos recursos é por esta forma absorvida em prejuizo de outros ramos de serviço mais importantes. Persuadido que um grande numero de creanças assim postas nos hospicios por mays legitimas ou illegitimas , que como amas as tornavam a tomar depois , ou tinham a esperança de as tirar um dia , ordenou o governo em 1826 , que os engeitados fossem mudados de uns para outros districtos , para que , assim tirados de suas naturalidades , as mays com receio de os perderem de vista , fossem obrigadas a reclamá-los antes que esta transmigração tivesse logar. Esta medida produsiu effeitos notaveis em muitos districtos em que se applicou."

"Porém este remedio só podia ser momentaneo , e muitas vezes comminatorio. O numero dos expostos continuou a augmentar com a população, a immoralidade , e a mizeria. As juntas geraes dos districtos sam unanimei em solicitar meios mais efficazes de prevenir , ou diminuir este funesto flagello. Muitos pediram o restabellecimento das disposiçoens do edito de Henrique 2.o acerca das declaraçoens de gravidez. Pello decurso desta obra examinaremos quaes sam as modificaçoens que é possivel dar á legislação e ás medidas administrativas que dizem respeito aos engeitados. Terminaremos este capitulo chamando a attenção das authoridades acerca das fraudes diariamente praticadas para fazer admittir no numero dos expostos filhos legitimos , abandonados por mays desnaturadas , e algumas vezes até por payd abastados. Não reclamamos com menos empenho sua solicitude ácerca do comportamento dos agentes encarregados da vigilancia dos engeitados da capital , nos circulos vizinhos delia. Queixas graves se teem feito, e muitas vezes ácerca das exacçoens odiosas, transacçoens vergonhosas , e cubiça infame , que reclamam severo exame , e castigo."

Sigamos agora a historia da legislação a respeito dos engeitados , nos outros estados da Europa. E seja o mesmo illustre escriptor o nosso esclarecido guia.

"Só em 1739 teve Inglaterra o primeiro hospicio para engeitados , devido aos esforsos do virtuoso cidadão Thomaz Coran ; fundado em Londres para 400 creanças primeiramente ; porém na qual se achavam 1:000 em 1752. O parlamento inglez ordenou em 1756 , que este hospicio recebesse e educasse todas as creanças abandonadas que alli trouxessem ; e que iguaes estabellecimentos se fizessem em todos os condados."

"Em 1760 o numero dos engeitados no hospicio de Londres se avaliava em 6:000."

"Este augmento rapido fez que o parlamento modificasse o destino dos estabellecimentos destinados para os engeitados , e converteu-os em casas de orfaons. Por proposta de Jonas Hanway , filantropo notavel, ordenou que as parocliias entregassem todas as creanças de que ellas estivessem encarregadas a amas das aldeias ; a exposição foi severamente prohibida ; mas os filhos illegitimos cujo direito sagrado aos soccorros publicos tinha sido reconhecido foram admittidos , em certa idade , nas casas de trabalho. O hospital dos expostos de Londres, não obstante sua denominação , não recebe hoje engeitado algum ; nem mesmo aquelles que algumas vezes expoem á sua porta ; estes sam recolhidos , e postos nas casas dos orfaons , de donde ao depois sam mandados para as casas de trabalho."

"Dizem que estas medidds produsiram um feliz resultado. Conforme as indagaçoens de Mr. de Gouroff, desde 1819, a 1823 só em Londres se exposeram 151 creanças; sendo aliás sua população de 1:330:000 habitantes ; o numero de filhos illegitimos recebidos nas casas de trabalho no mesmo periodo não excedeu a 4:745 ; que vem a ser 923 o meio termo annual : sendo alem disso a quinta parte destas creanças sustentada á custa de seus pays. Para saber porém o numero de filhos illegitimos em Inglaterra fôra necessario saber quantos sam admittidos nas casas de orfaons ; quantos entregues ás amas ; quantos sustentados por suas mays ; quantos em fim a cargo da taxa dos pobres. Parece que se busca encobrir com uma especie de véo tudo quanto a este respeito se passa em Inglaterra ; substituindo uma ficção consoladora á terrivel realidade. Ha fundamento para acreditar que em Inglaterra a proporção dos filhos naturaes com os legitimos é de 1 para 12 : em tanto que em França é de 1 para 13 , ou 14."

"Os engeitados em Londres voltam das amas de leite para a casa dos orfaons na idade de cinco annos. Começam para elles então novos habitos. Dam-lhes os primeiros principios de uma instrucção elementar ensinam-lhes a fazer seus vestidos , assim como differentes trabalhos. Os mais velhos vestem os mais novos, cultivam a horta, e repartem entre si os diversos serviços da casa. As mininas sam empregadas na cosinha , na lavagem da roupa , e na feitura dos embrulhos para as creanças que estam nas amas. Na idade de quatorze annos poem-os a apprender um officio , e dam-lhes uma biblia com uma copia das oraçoens que se rezam no hospital ; uma segunda copia é entregue áquelle , ou áquella para cuja casa vai morar ; accrescentando-lhe este preambulo = Como é de grande importância educar os mininos em o temor de Deos , e na submissão a seus mestres, mestras, e superiores ; e como a oração é o melhor meio de conservar esta obediencia ás leys divinas e humanas ; sois advertidos que de vós se espera tereis cuidado que a criança que vos é confiada reze constantemente suas oraçoens pella manhan e á noite. Deveis ao mesmo tempo esforçar-vos em inspirar-lhe os sentimentos do dever que elle preenche , e para consegui-lo deveis fazer que elle reze suas oraçoens , lenta , seria , e solemnemente. Vigiareis tambem que elle assista nos dias de preceito ao officio divino , e que ahi se comporte com piedade e modestia. = "

"Quando as mininas se casam , dá-lhes a administração um enxoval , e 250 francos de dote."

"No resto de Inglaterra seguem-se quasi as mesmas disposiçoens. Não temos esclarecimentos acerca do numero geral dos expostos que existem no reyno unido. Sabe-se que em Irlanda existiam 920 cada anno no periodo de 1771 , até 1781 : de 1781 até 1783 a progressão tinha sido de 2:500 : em 1805 contavam-se 1:800. Parece que a mortalidade no hospital de Dublin era a mesma que em Pariz. As ventagens do systhema inglez serão para nós objecto de um exame que reservamos fazer no decurso desta obra. Basta-nos fazer notar agora que os esforços da caridade christan , pelo orgão de S. Vicente de Paula , penetram em Inglaterra ao cabo de cem annos , produzindo a assistencia completa e regular dos engeitados. O que caracterisa sobre tudo as instituiçoens deste modelo da beneficencia , não sam tanto os hospitaes dos expostos , (que não sam mais que um meio) como o reconhecimento de um principio longo tempo posposto. Assim pode dizer-se que se os engeitados em Inglaterra, em França , e na maior parte da Europa , acharam uma familia adoptiva , devem-o a um simples e virtuoso padre catholico , que na sua ardente caridade encontrou o poder dos milagres."

"Os estados protestantes tem adoptado em geral as medidas empregadas em Inglaterra. Na Prussia , no hospital dos orfaons de Hale , fundado pello respeitavel doutor Franck , tratam de cultivar quanto é possivel , as felizes disposiçoens , que mostram qualquer delles proprio para as artes ou sciencias."

"Em Moscou cada sexo , cada idade recebe uma educação propria. O ensino abrange tudo que um cidadão deve saber. A'quelle a quem a natureza tratou pouco favoravelmente dam-lhe os elementos simples do calculo e do dezenho , ensinando-lhe alguma das artes mechanicas , ou a horticultura , ficando assim habil para trabalhar em uma manufactura , ou em casa de um proprietario. Os conhecimentos superiores , os estudos de todas as especies sam reservados para aquelles , cujas felices disposiçoens merecem que sejam aproveitadas na universidade de Moscou , ou na academia das artes de Petersbourg ; os outros sam distribuidos pellas officinas do hospicio; Os estatutos desta casa sam notaveis pello espirito de verdadeira caridade que os dictou."

"Uma ley geral delles é de conservar em todos os coraçoens a alegria natural para a liberdade das funcçoens da alma. Todos aquelles que estam encarregados dos honrosos deveres de pays e mays para com estas ereanças , devem ter como objecto principal de seus cuidados , inspirar-lhes sensibilidade ; formar-lhes um bom coração ; dar-lhes costumes puros ; ellevar suas almas com a narração de acçoens nobres e generosas ; fazendo especialmente que ellas conheçam a utilidade da honra , e a necessidâde e proveito de ser homem de bem."

"Mas de todos estes estatutos o mais digno de elogio é o que declara livres as creanças recebidas no hospicio dos engeitados , sem que alguem possa reclamar contra esta liberdade." Em Holanda os expostos sam collocados nas colonias agricolas de indigentes."

"Em Lubeck , em Cassei , e em Nuremberg, os engeitados sam recolhidos com cuidado nos hospicios dos orfaons , e dados a criar aos cultivadores."

"Nos estados catholicos as instituiçoens sam analogas ás que existem em França a este respeito."

"A Belgica conservou a forma de organisação deste ramo de serviço , estabellecida durante sua reunião ao imperio francez. Ém 1829 contava dezoito hospicios de engeitados. Contam-se muitos hospicios para elles em Baviera , e Áustria. Já demos alguns esclarecimentos relativos ao hospital magnifica fundado em Vienna pello imperador José 2.o."

"A Toscana possue doze hospícios de engeitados , aonde estes infelices recebem com os cuidados mais carinhosos , os meios de suprir um dia , per si mesmos , á sua existencia. Em geral sam destinados ao serviço militar."

"O resto da Italia tem um grande numero de hospicios semelhantes. O do Espirito Santo em Roma, que em 1750 recebia 600 destes infelices , em 1810 admittia 1:000 e 1:200."

"O hospicio de Napoles = l'Albergo dei Poveri — presta cuidados , os mais bem dirigidos , aos orfaons e aos engeitados , que alli apprendem a ler , escrever , primeiros principios de arithmetica , dezenho e muzica ; tendo alem disso muitas e varias oflicinas , em que se contam uma manufactura de coral , uma imprensa , e uma fundição de typos. Os moços robustos sam destinados ao serviço das armas : aquelles todavia que em qualquer proffissão se distinguem , obteem escusa do serviço militar ; nem por isso deixam de ficar sugeitos ao regimen da casa , cuja guarda lhes é confiada. Todos os dias em horas regulares fazem exercicio nos pateos ao som de muzicas guerreiras."

"A Hespanha contem 69 hospicios para engeitados. Em 1788 , e 1789 não excediam em Madrid o numero de 908 ; hoje contam-se 1:100. Dam-lhes uma educação liberal; alguns delles sam destinados á vida ecclesiastica; e muitos de seus mais habeis doutores tem sabido desta desgraçada classe."

"Mr. Benoistonde Chateauneuf, na sua memoria sobre os engeitados diz — parece que em Hespanha a ley , tão benefica como na Russia, desfaz a vergonha de seu nascimento , considerando-os a todos como filhos de nobres , e como taes nobres tambem. Na ignorancia em que se está acerca de seus pays , julgou a ley dever suppor sua condição a que mais favoravel podia ser para as crianças ; e é sem duvida por isso que lhes dá uma educação distincta. Se este facto é certo , basta elle só para mostrar a differença de caracter e costumes que distingue estes dois estados situados nas duas extremidades da Europa. N'um , deu-se-lhes o que um povo escravo julga como o bem mais precioso — a liberdade ; — no outro , o que um povo altivo estima em mais — a nobreza. —"

"Antes da invasão de Napoleão em Hespanha , os engeitados eram criados nos hospicios por amas que alli assistiam , ou fóra por amas do campo. O preço destas era de 10 francos e 66 centimos mensaes, até á idade de vinte mezes ; e de 5 francos e 83 centimos , desde aquella idade até á de quatro annos ; epocha em que entravam para o hospicio , até á idade em que podiam ser postos como apprendizes am casa dos mestres de officios. As irmans hospitaleiras estavam encarregadas da inspecção destas creanças. Os bispos eram ao mesmo tempo chefes da administração , e bemfeitores dos hospitaes."

"A legislação da Turquia parece evidentemente tirada do christianismo ; não tendo nada mais a accrescentar áquillo que atraz deixamos ditto a seu respeito."

Fizemos todas as diligencias a nosso alcance para podermos dar a nossos leitores nesta introducção todas as noçoens necessarias acerca deste importante objecto em relação a Portugal ; a somma de factos particulares de que tivemos informação exacta ; muitos que nós mesmos presenceamos com dor vivissima , nos habilitaram o coração para sentir seus mallès , e para reclamar da piedade christan , do governo, das juntas geraes de districto , e das municipalidades , o remedio ou alivio delles.

E para que conheçam quanto tivemos a peito fornecer-lhes documentos officiaes, que demonstrassem a estatistisca dessas victimas innocentes do crime alheio ; para convencê-los da impossibilidade de satisfazer os seus e nossos dezejos a respeito deste importante assumpto , transcreveremos aqui para nossa justificação a carta que. o Exm.o Snr. Ministro e Secretario de Estado dos Negocios do Reyno teve a bondade de escrever-nos, em resposta áquella em que lhe pediamos o obsequio de fornecer-nos os dados estatisticos officiaes, ácerca do movimento dos expostos , com a classificação de seus sexos , destinos ulteriores , e despeza geral com sua creação : a carta é concebida nestes termos , que fielmente copiamos.

= Illm.o. Snr. Tenho presente a Carta que V. S.a me dirigio datada de 6 do corrente mez , e muito folgo de ver que V. S.a dedica uma parte dos seus talentos á confecção de uma obra tão interessante para a humanidade , qual a de inclinar as almas bemfazejas a favor da infeliz classe dos Expostos. — Este assumpto tem sempre merecido particular attenção ao Governo , porém as difficuldades que sempre se encontram na transição de um para outro systema , o cuidado que as Authoridades são obrigadas a dedicar primeiro que tudo aos objectos de segurança publica e Fazenda , as vicissitudes por que temos passado , e outras razões que não escapam á penetração de V. S.a , tem feito com que se não hajam podido dar a este ramo d'administração todos os melhoramentos de que carece. — Por estes motivos não está a respectiva Repartição habilitada para fornecer agora a V. S.a os dados estatisticos , que pede , relativos aos ultimos dez annos comprehendendo o movimento dos Expostos — sexos — destinos ulteriores — e despeza geral que se faz com a sua criação. Alguma cousa existe sobre isto, mas que não pôde formar um todo completo como V. S.a deseja ; e com quanto o Governo tenha instado por estes trabalhos , conheceo que na actualidade é muito difficil de consegui-los, visto que a attençâo dos Governadores Civis, Juntas Geraes , e Conselhos de Districto está toda concentrada na execução do novo systema tributario. Sou com toda a consideração — De V. S.a Amigo Criado obrigado — Conde de Thomar — Lisboa 18 de Fevereiro de 1846.=

Impossibilitados assim de poder comparar a historia dos factos , que se passam , e tem passado em Portugal , a respeito dos engeitados , já em relação ás suas differentes epochas , já em relação ás outras naçoens ; guiados unicamente por informaçoens particulares , e por nossas proprias observaçoens ; tomando por norte o sentimento de piedade e compaixão que esta infeliz classe deve inspirar a todas as almas christans , e sensiveis ; sendo nossa bússola o dezejo de ser-lhe util ; apontaremos as consideraçoens que julgamos devem acompanhar a historia de nossa patria legislação a seu respeito.

Pello alvará de Fillipe 3.o de 19 de Maio de 1618 que approvando o compromisso da irmandade da casa da Mizericordia de Lisboa , que atraz citamos , vê-se que já nessa epocha ao Hospital de Todos os Santos incumbia a obrigação de cuidar dos engeitados, que estavam especialmente a seu cargo ; sendo as Mizericordias como hospicios subsidiarios, como claramente se deprehende do Cap. 83 in princ. do mesmo compromisso. Não tendo porém achado nas differentes collecçoens que consultamos a ley regulamentar daquelle hospital , não podemos satisfazer a alheia e propria curiosidade.

Consultando o Repertorio das leys extra vagantes de Fernandes Thomaz , e o Diccionario Jurídico de Pereira e Sousa , achamos que a legislação a este respeito tem sido entre nós a seguinte :

Pello alvará de 29 de Agosto de 1654 ficam isemtos dos encargos da guerra os maridos das amas que criarem engeitados.

O alvará de 22 de Dezembro de 1695 fez extensiva esta isenção aos filhos das mesmas amas ; cujos privilegios lhes foram mandados guardar peito decreto de 31 de Março de 1787, e alvarás de 9 de Novembro de 1802 , e de 18 de Outubro de 1806 §§. 9, e 10.

Mandou-se assentar em todos os tribunaes uma propina para elles, pello decreto de 16 de Novembro de 1673. Assim como no contracto dos dizimos do ultramar , por carta regia de 18 de Novembro, e por decreto de 9 de Dezembro de 1673.

A mesa da criação delles ficou recebendo nas despezas do Conselho da Fazenda 730#000 reis annuaes ; como estabellece o Regimento de 29 de Dezembro de 1753 Cap. 1. §. 5.

Mandaram-se-lhes applicar as duas partes das condenaçoens dos que plantavam vinhas em terras prohibidas entregando-se para esse fim aos respectivos conselhos ; por alvara de 26 de Outubro de 1765 §. 4.

"Tendo a experiência mostrado os grandes inconvenientes que provinham da protecção dada por tantas leys á classe dos enfeitados ; como era o accumularem-se cada anno mais de 900 expostos , que pello tracto successivo , e duração perpetua excediam o numero de mais de 4:000" (formaes palavras do preambulo do alvará de 31 de Janeiro de 1775) se decretaram as seguintes disposiçoens :

No hospital delles em Lisboa seriam dados a criar até aos sete annos ; passados os quaes não se lhes contribuiria com mais cousa alguma. §.1.

Seriam entregues ás pessoas que os quizessem levar. E apprezentados ao juiz dos orfaons que lhes devia dar tutores. §.3.

Não venceriam soldada , senão dos doze annos por diante , e até ahi só se lhes daria educação , sustento , e vestido. §. 4.

Nos §§. 5 , e 6 estabellece a forma como devem ser entregues aos differentes juizes dos orfaons.

Passados os sete annos perdiam os privilegios de expostos , e ficavam conservando somente os dos outros orfaons. §. 7.

Deviam ser postos a apprender os officios para que tivessem inclinação ; havendo-se por emancipados aos 20 annos completos, sem embargo da ordenação em contrario. §.8.

Mandou-se pagar para elles em Lisboa mais 10 reis de conhecença por cada pessoa que recebesse sacramentos, por carta regia da mesma data.

Por outra carta regia do mesmo dia e anno se mandaram applicar para elles as assignaturas das petiçoens de aggravo, que para esse fim se dobraram, e o terço das sentenças.

Por ordem de 10 de Maio de 1783 , recommendada em outra de 6 de Dezembro de 1802 , se mandou estabellecer em cada cidade ou villa uma casa , e nella um logar aonde se possam expor as creanças , sem que se conheça , quem as leva ; destinando-se uma pessoa para as receber a toda a hora do dia e da noite , a qual dará logo parte ao magistrado da terra para as fazer baptizar , e criar por amas a custa do rendimento das camaras , ou dos cabeçoens das sisas , aonde este não chegar. Acabados os sete annos , acaba a criação , e os expostos sam repartidos pellos lavradores. Os provedores das comarcas sam os encarregados deste ramo , e os que vigiam na execução das ordens a este respeito , averiguando em correição por meio de uma revista geral , se os expostos sam bem tratados , proceden do a prizão contra os juizes ordinarios , e dando conta dos juizes de fóra que não cumprirem ; e devassando dos juizes e officiaes das vintenas. No fim de cada anno devem remetter á intendencia geral da policia um mappa dos expostos que morreram , e dos existentes , e declarando os juizes que cumpriram.

Estas parecem ser as ordens de que falia o alvará de 18 de Outubro de 1806 §. 7. quando determina que em todas as Mizericordias se eleja annualmente um mordomo dos expostos para requerer a favor delles , como procurador legal, a observancia das ordens , e providencias estabelecidas : fazendo recolher a roda qualquer engeitado que appareça desamparado á porta doe visinhos, sendo obrigado o juiz da vintena , ou qualquer outro official de justiça a entregá-lo a quem o alimente até entrar effectivamente na casa dos expostos. §. 8.

Pella ordem circular da policia de 22 de Maio de 1807 §. 8 se incumbe tambem esta obrigação aos corregedores das comarcas.

Já pello alvará de 9 de Março de 1787 se tinha mandado applicar aos de Lisboa a terça dos legados não cumpridos que dantes pertencia ao hospital real de S. José.

E era tal a solicitude da senhora D. Maria 1.a por esta classe infeliz , que por alvará de 12 de Fevereiro de 1783 , ordenou penas contra aquelles que alliciassem ou seduzissem as engeitadas.

Pello decreto numero 18 de 26 de Maio de 1832 , ficaram os juizes de paz de cada freguezia com todas as attribuiçoens orfanologicas , por isso os engeitados , pellas leys anteriores considerados como orfaons desde a idade de sete annos até aos vinte com pletos , passaram para debaixo de sua tutella legal ; a experiencia mostrou que desta innovação nenhum proveito tiraram esses infelices.

O codigo administrativo de 31 de Dezembro de 1836 art. 76 §. 6 incumbiu ás juntas geraes de districto designar as quotas com que os concelhos devem contribuir para a sustentação dos expostos , e os pontos em que as rodas devem estabellecer-se no districto.

E no artigo 81. §. 21 , ordena o mesmo codigo ás camaras municipaes , o cuidado na educação e criação dos exposto, estabellecendo o regimen que nas respectivas rodas e casas se deve guardar.

Ás juntas de parochia alli se incumbe no art. 97 §. 15, n.° 4, velar pellos expostos; já mandando pôr na roda os que apparecem de novo ; já fiscalisando seu bom tratamento em casa das amas, dando parte das faltas , que acharem , ás camaras municipaes dos concelhos , ás quaes está commettida a administração dos mesmos expostos.

No artigo 133 §. 6. do mesmo codigo se diz : = Aquelle que achar uma creança recem-nascida é obrigado a apprezenta-la ao administrador do concelho , ou ao regedor da parochia em que for encontrada, com todos os vestidos e effeitos com que a achar, e fará declaração do tempo , do logar , e de todas as circumstancias que occurreram quando a achou , de que se lavrará auto , em que tambem se declare a idade presumida da creança , sexo , e nome que se lhe der. Se no corpo da creança houver algum signal notavel será feita menção delle no auto da declaração. Este auto será registado no livro do registo das procuraçoens e autos, e por elle se fará o assento do nascimento no registo civil. =

No artigo 155 §. 10, incumbe ao regedor de parochia recolher quaesquer creanças que se encontrarem expostas ou abandona das no districto da parochia , mandando-as, em caso urgente , conduzir para a roda do concelho , provendo entretanto á sua sustentação e commodo transporte. Se porém algum vizinho da parochia quizer encarregarse da criação e educação gratuita da creança , sendo pessoa capaz de assim o praticar, o regedor lha entregará lavrando-se auto da entrega, que será assignado pella pessoa que a receber , e enviada a quem estiver incumbido da administração dos expostos.

A legislação portugueza tem sido tão cuidadosa desta infeliz classe , que deffiniu os seus direitos mui explicitamente.

Os engeitados sam reputados por legitimos ; pois na duvida se presume o mais favoravel. Alvará de 31 de Janeiro de 1775. §. 7. E por isso sam admissiveis a ordens , benefícios ecclesiasticos , honras , e officios publicos , sem differença alguma.

Presumiam-se por direito serem de limpo sangue , e sem mancha alguma , quando a legislação consentia , e fazia esta odiosa differença. Resolução da consulta do Desembargo do Paço de 24 de Abril de 1688.

Além das providencias do codigo administrativo , que atraz citamos , a legislação moderna extravagante, e suas disposiçoens sam as seguintes:

Por decreto de 6 de Maio de l833 foi nomeada uma commissão , para formar um regulamento geral de providencias para todo o reyno a respeito dos expostos.

Para a criação delles foi applicada a despeza que se fazia na festividade que se celebrava da igreja de S. Francisco de Lisboa. Resolução de 15 de Janeiro de 1834As providencias do decreto de 16 de Maio de 1832 , sobre o pagamento das amas dos expostos , foram mandadas observar pella, portaria de 17 de Junho de 1834.

O decreto de 11 de Agosto do mesmo anno , dissolvendo a mesa da irmandade da Santa Casa da Misericordia de Lisboa , ordenou que uma commissão especial fizesse as suas vezes.

O systema da distribuição dos expostos pellas freguezias , a cuidado das respectivas juntas , foi authorisado pella portaria de 20 de Novembro de 1835.

As rodas delles foram abolidas , dando-se a este respeito outras providencias pello alvará de 1 1 de Dezembro de 1 835 : que foi declarado pello decreto de 15 de Dezembro do mesmo anno.

Em seu auxilio providenciou-a circular de 12 de Janeiro de 1836; que foi declarada pella portaria de 5 de Fevereiro de 1836.

A respeito da sua creação providenciou o decreto de 19 de Setembro de 1836 ; assim como as portarias de 23 de Setembro do ditto anno, e de 7 de Julho de 1837.

As portarias de 12 de Abril de 1837, e 19 de Fevereiro de 1838, mandaram dar aos expostos maiores de sete annos o destino ordenado no alvará de 31 de Janeiro de 1775.

Pella portaria de 22 de Março de 1838 foi o administrador geral de Vizeu authorisado para estabellecer provisoriamente em cada concelho que não fosse cabeça de circulo , uma roda de depózito; para nella serem recolhidos os expostos , e logo levados á roda respectiva ; com outras providencias ; não obstante ser a creação das rodas delles da competencia das juntas geraes , como decretava o codigo administrativo de 31 de Dezembro de 1836.

A designação das quantias com que cada concelho hade concorrer para a manutenção delles, deve ser feita pellas juntas geraes do districto , e remettido o seu producto ao cofre das mesmas juntas na conformidade da ley do 1.o de Outubro de 1837 , do artigo 77. §. 6.o do codigo administrativo , e dos artigos 2, e 4 do decreto de 19 de Setembro de 1836 ; tudo isto recommendado na portaria de 14 de Março de 1838.

O cuidado da criação e sustentação delles se declarou não pertencer ás camaras municipaes , por decreto de 19 de Setembro de 1836 ; art. 77 , §. 6 do codigo administrativo; e portaria de 21 de Março de 1838.

A camara municipal do concelho de Abrantes por portaria de 6 de Abril de 1837, foi authorisada para pagar ás amas delles , das freguezias daquêlle concelho , que delle foram desanexadas.

A portaria de 2 de Maio de 1838 suscitou a execução da legislação a seu favor, assim como as de 4 de Julho da mesma data ; e a de 6 de Julho do mesmo anno , acerca da cidade do Porto.

Para sustentação dos de Leiria se mandou fazer um emprestimo , á camara , de 600:000 reis , do cofre das sizas da mesma cidade; por ordem de 2 de Maio de 1821.

Para pagamento das amas dos expostos de Tavira , se provindenciou pellas ordens de 9 de Outubro de 1821 e de 12 de Fevereiro de 1822.

A camara de Ouvar foi authorisada com meios extraordinarios para a sua sustentação, por carta de ley de 27 de Janeiro de 1823.

Para o mesmo fim foi a do Porto authorisada para contrahir um emprestimo , por carta de ley de 3 de Fevereiro do mesmo anno.

No artigo 5 da mesma ley se estabellecem multas contra as amas que por culpa sua deixão falecer os expostos que criavam. E o artigo 6 extingue os emolumentos que se pagavam por qualquer titulo para verificar o pagamento ás amas.

A circular de 9 de Outubro de 1839 lembra o destino que deve dar-se-lhes depois de completarem 7 annos de idade.

A portaria de 7 de Janeiro de 1840 ordena que na administração da roda dos expostos , não devem ser admittidos como taes os filhos de legitimo matrimonio de pays pobres.

As diversas juntas geraes de districto tem feito varios regulamentos a este respeito , como o codigo lhes incumbe , porem como não tem sido publicados não podemos dizer suas disposiçoens ; podendo asseverar que na maior parte tem sido mal executados.

O novo codigo administrativo , actualmente em vigor , transcreveu todas as sabias providencias do anterior , a este respeito ; que julgamos inutil repetir aqui.

É evidente que o fim de todas essas legislações , e estabellecimentos pios e legaes, de que temos fallado , tem dous objectos ; primeiro , prevenir o infanticidio ; segundo , proteger esses desgraçados que salvou da morte.

É facto constante que o numero dos infanticidios tem diminuido ; e ainda que se diga que sua actual proporção não é prova que abone a utilidade das instituiçoens que protegem as mays desnaturadas , ou illegitimas ; com tudo , na actual corrupção do seculo , as leys repressivas da exposição teriam fataes consequencias.

Tambem é certo que nos estados em que os principios de caridade de S. Vicente de Paula tem tido desenvolvimento, a sorte desses infelices é mais benigna ; assim como, que o augmento progressivo dessa classe não provem da pratica delles , mas é devido a muitas causas geraes , e especiaes , como a immoralidade , a irreligião, as guerras, as crizes industriaes , commerciaes , e agrarias, as guarniçoens militares , e a desproporção de fortunas , que resulta da accumulação da propriedade ; &c.

Parece-nos que a diminuição do numero de rodas de engeitados , dificultando a exposição , sem embaraça-la absolutamente , seria uma medida preventiva razoavel, acconselhada pella prudencia , e pella economia , e corroborada pella experiencia dos resultados felices que obteve em Inglaterra, e nos demais estados protestantes.

Julgamos que , collocando estes estabelecimentos debaixo da immediata protecção da caridade christan , proficuos resultados se obteriam ; não só quanto ao carinho e cuidados que elles alcançariam da piedosa assistencia das irmans da caridade , mas até quanto á moralidade que d'ahi proviria ; as amas lucrariam em bons costumes ; assim como as creanças , pello tracto com as virtuosas filhas de S. Vicente de Paula. Não menos proveitoso seria este methodo pello lado economico; por quanto ás sommas destina das pella ley , accresceria o producto dessas parcellas que a piedade religiosa lançaria no thesouro inexhaurivel da caridade.

Até á idade de sete annos , ao abrigo da protecção da ley , teem os engeitados uma sorte toleravel em Portugal ; dessa epocha em diante abandonados pello facto , ficam expostos a todos os inconvenientes da mizeria. É a favor do melhoramento de seu fado , desde essa epocha fatal , que nós reclamamos mais que tudo a protecção da ley, e da caridade christan.

Se a desventura os privou do primeiro bem social ; desse laço eterno que liga o homem ao homem , a geração á geração , pello vinculo sagrado da paternidade e da familia; se a ley é defficiewte para fazer que a sociedade adopte como seus esses filhos sem pay , esses innocentinhos sem may ; deverá continuar a subsistir entre nós essa legislação inexequível, barbara em suas disposiçoens protectoras , que corta esse mysterioso fio , que o amor , e o habito fiaram , prendendo o coração daquellas que os criaram áquelles a quem deram o leite ?!

Ainda que seja muita a desmoralisação ; ainda que o egoismo seja o typo fatal desta epocha descrida ; ainda que o amor do lucro seja na maxima parte o motivo que obriga a ir buscar á roda dos expostos os engeitados e, sabemos e temos presenceado muitos e muitos factos que honram a humanidade , e sam o testimunho consolador de que o germen das virtudes christans não está abafado em todos os coraçoens.

Para prova do que dicemos, citaremos alguns factos , que tem muitos semelhantes, acontecidos neste concelho de Chaves.= Decretou a Junta Geral de Districto de Villa Real , que se distribuissem os expostos pellas diversas rodas dos concelhos , na razão proporcional da população , e contribuição de cada um delles : foram mandados deste para outros aquelles que excediam a proporção decretada ; e indo algumas amas com os engeitados que criavam , inscrevê-los nas municipalidades respectivas ; exigindo alli que ellas entregassem as creanças, para serem dadas a outras residentes naquelles concelhos ; muitas dellas quizeram antes assignar termos de recepção das creanças , sem pagamento algum por sua creação , do que separar-se desses infelices , a quem já tinhamamor de may = Fizèmos todas as diligencias por saber se nesta generosidade ia encoberto o remorso de haverem exposto cavilosamente seus proprios filhos ; mas podemos afoitamente asseverar que só a virtude christan foi origem destes factos honrosos, que tanta satisfação produzem ao escriptor , narrando-os.

Ha outro exemplo neste concelho que prova muito mais ainda porque é por assim dizer o typo das ideas populares acerca do amor que as amas devem ter áquelles a quem deram o melhor de seu sangue ; não resistimos ao prazer de contá-lo. = A mulher de um soldado da guarnição desta praça criava um engeitado , desses que eram mandados entregar aos concelhos vizinhos ; chovia muito; distava bastante o logar onde devia ser entregue; e a ama não podia ir ella mesma inscrever no respectivo registo a creança que aleitava; mandou seu marido , que para isso pediu uma cavalgadura emprestada : na cabeça do concelho exigiram do soldado que , ou entregasse a creança , ou se obrigasse por termo a tomar conta delia gratuitamente ; voltou pois o soldado tendo auça : qual foi porém o resultado ? sua mulher , e todas as suas visinhas , lançando-lhe em rosto a sua barbaridade, e egoismo, forçaram-o a ir outra vez buscar a creança, e a assignar quantos termos exigissem. Assim o fez ; e a volta da creança foi celebrada como um triunfo. = Nunca a caridade christan o teve mais bello!

Que este amor , este vinculo sagrado prenda as almas bem formadas , não admira por certo ; o que na realidade faz admirar é que , até nas almas corrompidas pello crime, exista essa especie de magnetismo mysterioso : o facto seguinte o comprovará. = Uma mulher desgraçadamente celebre nos annaes criminaes da comarca de Chaves , que criava um engeitado , calculada e premeditadamente foi assassinar uma infeliz velha, degolando-a com uma navalha de barba ! Sua alma devia ser horrorosa ! e já eusanguentada devia estar nesses terriveis momentos que precederam seu extraordinario e espantoso crime ; todavia a criancinha chorou ; e aquelle peito endurecido palpitou de amor por ella... o seio onde a morte se meditava , commoveu-se a ponte de dar o alimento da vida a esse innocente que o pedia em sua lingoagem inarticulada... e deu-lhe de mamar ! ... e depois disso, como para protegê-lo contra as consequencias de seu crime , foi occultar sua canastra em que o deixava adormecido , sob a mizeravel cama em que ella talvez pensara longo tempo nos meios da execução de seu delicto !... Apenas elle perpetrado , colhida ella quasi em flagrante delicto , foi a criancinha encontrada dormindo ainda ! ... e não houve mulher que tivesse leite no seu seio que não quizesse adoptar essa innocente victima de tantos crimes alheios ! ... =

Applicar o principio sagrado de S. Vicente de Paula, que nos serve de epigrafe a esta introducçâo , fazendo germinar viçosamente essas palavras sacrosantas , dittas pello Redemptor expirando no Golgotha para a redempção do genero humano ; dar filhos, segundo o Evangelho, a quem os não tem segundo a natureza ; dar mays e pays áquelles a quem o crime ou a mizeria privou delles ; eis o fim sublime de minha obra ; eis o premio mais grato ao meu coração.

Defficiente vai ella ; pobres de talentos ; escassos de documentos , que desgraçadamente não existem colligidos , e que debalde pedimos a quem só podia dar-no-los, ahi vai a nossa obra correr mundo , desfavorecida de todos os atavios , e louçainhas que poderam abrilhanta-la :

Já com o nobre fim de melhorar a sorte dos operarios emprehendeu Mr. Eugene Sue uma obra neste genero— O Judeu Errante— Já o mesmo escriptor havia publicado outra em que tratava de chamar a attenção publica sobre a applicação da pena de morte, querendo provar a utilidade de sua substituição pella da cegueira , nos seus — Mysterios de Pariz — Não obstante a erudição e belleza dos seus escriptos; não obstante a elloquencia e amenidade delles , desajudado do primeiro vinculo social , o christinnismo , não poude conseguir o fim moral de suas obras: ficando-lhe apenas em seus escriptos um glorioso brazão de seus nobres dezejos, e um troféo honroso de seus talentos. Parece-nos que , no seu Judeu Errante, já vislumbrou o faxo luminoso que deve guia-lo em suas futuras publicaçoens do mesmo genero ; o padre Gabriel , o virtuoeo missionario evangellico fôra em suas habeis maons o invencivel instrumento de sua mais completa victoria. Talvez que sua ideia dominante , a de combater uma associação poderosa , que tão negras paginas tem em sua historia , fosse o motivo que o levasse a sacrificar tudo a esse pensamento.

Annunciando, conjunctamente comnosco, a publicação de uma obra semelhante á nossa ; orgulhosos por essa feliz e honrosa coincidencia , se receiamos pella futura comparação de nossos trabalhos , agouramos o mais feliz resultado de nossos communs disvéllos.

E se a algum homem , ou entidade individual dedicassemos este trabalho ; se não julgassemos que elle de direito pertencia ás irmans da caridade , que reputamos a expressão mais sublime das virtudes praticas do Evangelho ; se não procurassemos no apoio delias o mais firme sustentaculo para essas flexiveis vergonteas , açoitadas pello vento da desventura ; só a Mr. Eugene Sue dedicáramos a nossa obra , como áquelle que levou aos coraçoens , o conhecimento dos malles sociaes sob a forma da agradavel leitura de um romance; convencendo-os pello prazer de verem debuxados em suas paginas os quadros mais sublimes , ou mais terriveis das scenas da vida social e do coração.

Fraco testimunho é este , e talvez de nenhuma valia : comtudo é a expressão franca leal e verdadeira do que sentimos.

Já em 1841 ensaiamos descrever, sob o titulo de = Scenas da historia contemporanea = e debaixo das formas de mui singelo romance , o triste quadro da mizeria e morte de um infeliz egresso. Já então nesses pequenos artigos fizemos o parallelo da filantropia legal , cosa a caridade christan ; o tempo, e a experiencia tem confirmado em nosso coração as ideias que então emittimos , e que fazem a baze do alicerce desta nossa actual tentativa litteraria.

Se a classe dos egressos , que todos os dias diminuia , e diminue pella morte , ou pello destino legal, que os faz entrar no numero dos empregados effectivos do culto, mereceu por alguns momentos a sympathia publica , suscitada pello quadro real de seus padecimentos e abandono ; quanto mais não deve merecer essa classe que por desgraça cresce todos os dias de uma maneira espantosa , e cujos soffrimentos crescem na razão proporcional do numero dos infelices que a constituem ? ! ...

Uma era mais feliz se nos afigura antever; as questoens sociaes e administrativas não serão absorvidas pello egoismo politico. A aurora desse dia desejado por todos os que soffrem os proprios malles , e os alheios , já despontou no horisonte da nossa formosa terra portugueza. A maternal solicitude de Sua Magestade , a Raynha , mostrou-nos a estrella d'alva dessa esperança lizongeira. Convencida que o laço mystico da caridade era o vinculo maior do christianismo , e que este era o maior bem social ; houve por bem nomear Sua Alteza Real, a Serenissima Senhora Infante D. Isabel Maria, Protectora das Irmans da Caridade.

A protecção de SS. MM. e A. lhes deu já a poderosa coadjuvação das Senhoras mais distinctas de Portugal. Com prazer sabemos que as Exm.as Snr.as Duquezas de Palmella , e da Terceira , Condessa de Lavradio , e muitas outras fidalgas inscreveram seus respeitaveis nomes no livro dos bemfeitores das filhas de S. Vicente de Paula.

Concorrer , quanto em nós é possivel, para o cumplemento do nobre fim dos Augustos e poderosos jornaleiros sagrados, é nossa missão , quando emprehendemos , e publicamos o Engeitado.

CAPITULO I

ANTES DO BAILE.

Os sinos dos relogios das diversas torres das egrejas de Lisboa tinham successivamente dado oito horas ; e logo após cada um delles tangeu os melancolicos sons que pedem ao christão vivo uma lembrança , e uma oração pellos mortos : como sahidos das campas dos finados pareciam ais doloridos , que iam sumir-se na vasta planicie do Tejo , depois de se haverem quebrado nos echos das montanhas em que a populosa Lisboa está edificada.

A noute estava escura , e frigidissima ; as ruas da cidade estavam porém illuminadas ; e na abobeda celeste as estrellas como as pulseiras , brincos , mineis , e flores artificiaes , como se a tudo se tivesse passado revista anfe aquelle espelho , para consultar o que melhor ficaria á dona desses enfeites.

Em uma poltrona, cujas almofadeis eram bordadas de tapessaria de lans de cores vivissimas sobre assento escuro , com riquissimos dezenhos feitos á agulha , estava uma dama assentada diante do toucador ; porém não olhava para o espelho.

Os bem torneados e alvos braços, assim como seu lindo collo estavam nús. Apenas umas luvas de pellica branca guarnecidas de arminhos lhe cobriam as maons, e menos de meio braço; deixando ver no esquerdo uma manilha , como argola grossa de ouro polido ; e em ambos os cotovelos duas pequenas covinhas engraçadissimas.

Tinha o rosto apoiado na mão esquerda , e a direita estendida sobre o regaço fazia que seu vestido comprimido pello pêzo debuxasse o feitio delle , modêllo de perfeição. Parecia meditar profundamente. Ouviu bater as oito horas da noute na torre da egreja do convento da Estrella , e como sobresaltada dispertou desse lethargo em que parecia ter estado sepultada por muito tempo.

"Que horas são ?"

Perguntou preocupada.

"Acabam de dar oito, minha senhora."

"E meu pay ?"

"Já ha muito que mandou montar a carroagem , que está esperando ha mais de meia hora. Fui ver se já estava prompto , porém achei-o escrevendo ainda."

"Não é de certo para o correio que está escrevendo ; hoje é segunda feira ; partiu de tarde !"

"Isso não sei eu , minha senhora ; porém á boca da noute veio o seu procurador, e estiveram ambos fallando muito tempo no seu gabinete : depois que elle sahiu , não deixou seu pay ainda de estar revolvendo livros e papeis , e de escrever tão entretido que nem ao menos deu fé que eu alli entrara."

Este dialogo passava-se entre a dama e sua criada, no quarto do toucador que descrevemos.

A criada estava de pé ao lado de sua ama ; callada em quanto ella meditava ; tendo fallado só o necessario para responder a suas perguntas.

E a dama ficou outra vez pensativa.

Um silencio profundo reynava no quarto ; ouviu-se um longo suspirar de seu coração opprimido , como signal de impaciencia que atraiçoava o dezejo que tinha de occulta-la, porque respeitava como devia aquelle que assim a fazia esperar, e demorava sua ida para o baile aonde contava passar aquella noute ; e para o qual já de ha muito estava vestida, e prompta.

Podera servir para modêllo de um quadro que representasse a melancolia. Seu rosto era regular e formoso , alvo de neve com a rosada cor, e viço de quem não tem ainda vinte annos completos. Suas feiçoens eram mimosissimas ; o nariz nem grande nem porcellanas , cristaes , bustos , e outras infinitas ninharias, que sam o costumado ornato desses trastes nas casas dos poderosos. Uma secretária , sobre a qual havia uma polida estante envidraçada , cheia de livros , com as mais custosas encadernaçoes. Uma meza de costura , com seu saco de seda carmesi ; um bastidor de fórma nova e exquisita ; e sofás de tapessaria semelhante á das almofadas da poltrona completavam a mobilia do quarto.

Nas paredes cobertas de papeis côr de perola , com pequenos ramos soltos de botoens de rozas escarlates , e folhas verdes, e de ouro , só se viam tres quadros pendurados em cordoens de seda incarnada , com borlas nas pontas. O chão estava alcatifado com um rico tapete de lan aveludada , com debuxos verdes e carmesis. As cortinas das janellas penduradas em lanças com os ferros, e contas dourados, eram de cassa da índia bordada , e de seda escarlate , com franjas do mesmo. Era este aposento o lugar mais proprio para a habitação de um ente, que podia considerar-se um dos mais felices deste mundo.

Uma porta communicava com um pequeno quarto de cama , e outra com uma sala onde estava uma harpa , um piano forte , musicas as mais modernas , caixas de tintas, e mais objectos proprios , e necessarios para pintura , e dezenho ; sendo por aquella sala que se servia para o resto da casa. As janellas de toda esta parte do edificio deitavam sobre um bello jardim ; e dellas se avistava o Tejo , e todas as montanhas da outra banda do rio.

"Joanna ! vai vêr outra vez se meu pay acabou de escrever."

A camareira sahiu do quarto , deixando só a sua linda ama que, tendo ouvido as oito horas , se impacientava cada vez mais a cada instante que decorria esperando.

Deixar de dançar a primeira contradança, com um par a quem de ha muito está promettido esse favor , parecerá pequena contrariedade para quem não conhece o valor que tem essa promessa , e pedido antecipado ; mas quem sabe dar-lhe todo o valor de seus quilates , de certo avaliará o tormento que naquelle momento soffria a dama que acabámos de descrever.

Cançada de seu forçado repouso ergueuse da poltrona , e foi tirar com muito cuidado a camélia-pionia , que estava debaixo da manga de vidro na meza do fogão. Levou-a ao nariz , como para ver se podia achar-lhe o aroma , que a natureza negou a toda aquella formosa familia da aristocracia vegetal. E como a medo seus lindos labios se confundiram com as pétalas da flor : olhou para o espelho que tinha diante , e corou quasi envergonhada ; porque ao mesmo tempo ouviu o silencioso sonido desse furtivo beijo que as folhas da camélia receberam impassivas , e que não estampara nellas o seu coração , mas naquella pessoa que lha déra.

Como para fugir dalli foi buscar um alfinete a cima do toucador ; e sem querer olhar para o espelho , pregou a flor do lado esquerdo do peito ; mesmo sobre o lugar que as repetidas pulsaçoens do coração lhe indicavam que elle devia estar ; julgara que alli era o vaso mais proprio para aquella sua flor tão querida.

Para distrahir-se de suas ideias , passou em revista todos os moveis do quarto ; a vêr se achava em algum delles objecto que lhe desviasse o pensamento para cogitaçoens mais gratas ; ou que lhe fizessem parecer menos longo seu esperar. E seus lindos olhos fixaram-se nos quadros que pendiam da parede. O do meio , e maior que os lateraes, era uma pintura a olêo, em uma moldura dourada , representando uma formosa mulher em meio corpo , vestida de preto ; tão parecida com ella , que podéra dizer-se que era o seu retrato : era o de sua já fallecida may , que ella apenas conhecêra , tendo morrido quando sua fiiha contava cinco annos de idade.

Seu coração commoveu-se , e duas lagrimas foram a resposta muda a esse olhar que , por uma iilusão propria de todos os bons retratos , a seguia para toda a parte como para protegê-la , dizendo-lhe — amo-te tanto, minha filha, que até na campa vélo por ti ainda.

O quadro da direita era uma bella imagem de Nossa Senhora , em cobre, a olêo, com um minino Jesuz nos braços , e com a expressão de carinho que devia convir á mais terna , e á mais extremosa de todas as mays.

Era o quadro da esquerda uma gravura que representava S. Vicente de Paula no interior de uma egreja , na acção de solicitar a piedosa caridade de suas ouvintes a favor de muitas criancinhas que , ao collo de suas pobres amas , pareciam implorar a protecção do santo ; como daquelle por cuja intervenção alcançariam amparo para sua orfandade.

Havia tanta poesia naquelles quadros , que como habil artista sabia apreciar, que não poude supportar por mais tempo a sua analyse , sem que naquelle momento de sensibilidade deixasse de derramar lagrimas involuntarias ; dessas que dos olhos se desprendem , sem que elles as possam conter; e que sentimos só quando queimadas as faces, o seu salgado sabor vem dizer-nos que chorámos.

Tomando as palmatorias que estavam sobre o toucador , foi para a sala immediata ; e sentiu frio , porque aquella atmosfera não estava temperada pello calor do fogão, como a do quarto donde sabia. Porém antes quiz tremer com frio , do que ficar debaixo do pêzo das impressoens que alli recebêra .

Pondo as vélas sobre o piano , abriu-o ; e de sobre elle tomou um livro de muzica , que collocou sobre a estante ; não escolheu o que havia de tocar ; o acaso dirigiu suas lindas maons , e fez que o livro fosse uma collecção de cançoens , e a peça uma que tinha por titulo — O Engeitado.—

Uma nuvem negra lhe passou ante os olhos ; era uma borboleta preta que , adejando em torno das luzes, veio cahir sobre as alvas teclas do piano. Pegou nella com as pontas das luvas, para não suja-las nesse pó que serve de gála a esses formosos insectos. Quizéra restitui-la á vida ; porém estava queimada por essa luz que a seduzira! E foi pô-la, debaixo da manga de vidro que estava em cima da meza do fogão do quarto do toucador , de donde ha pouco tirara a camélia-pionia.

Ainda agora servira aquelle lugar para conservar a vida , e o viço a uma flor mimosa ; e poucos instantes depois servia de transparente mausoléo de uma borboleta morta !

Ella assim o pensou ; e contristada ainda mais por esta reflexão tão verdadeira, voltou para a outra sala ; e cantou em meia voz , acompanhando-se no piano , a canção, cuja muzica tinha em frente , e que dizia assim :

Á roda dos Engeitados
Vou contar teu destino;
D'alheia may os cuidados
Só terás ! . . pobre minino !..
Tua may foi seduzida !..
Ao depois abandonada!..
Tu começas tua vida...
A della ?.. ei-la acabada.
Era meu pay orgulhoso
Da filha que tanto amou !...
E ao morrer o desditoso
A filha amaldiçoou.
Só entregue á Providencia,
Ficas orfão, meu filhinho!...
Ó meu Deos ! a existencia
Protegei do innocentinho !...
Adeus ! ó meu filho caro !
Lá nos veremos nos céos...
Se te deixo ao desamparo,
Vou morrer... Adeus! Adeus!...

Os ultimos sons desse Adeus , que terminava a canção , foram suffocados por soluços, que lhe embargáram a voz ; e suas lagrimas corriam sem que as limpasse.

Com os olhos cravados na lithografia que adornava a canção , considerava tristemente a attitude em que o dezenhador debuxou a desesperação de uma may , ajoelhada ao pé de uma roda dos expostos , onde collocava seu filhinho ; e via esse innocente que ella beijava com frenesi , no momento de abandona-lo , com as maonsinhas agarradas á sua desventurada may , como pedindo-lhe que o não regeitasse de seu seio.

Não obstante a incorrecção do dezenho, havia nelle tanta verdade , que fazia mal a quem o examinava.

"Seu pay está prompto ; e á espera que V. Ex.a desça." Dice a criada que voltara , sem que ella a presentisse. E a alegria volveu ao rosto da linda dama. Das maons da criada recebeu o rico challe de Cachemira , em que se agasalhou ; e tomou o lenço de assoar , apertando-o no meio , deixando cahidas as quatro pontas guarnecidas de renda de França ; em uma das quaes se viam umas armas bordadas de branco.

Poucos instantes depois rodou na rua uma carroagem , que partia a todo o trote de dous fogosos cavallos russos , da raça de Alter.

CAPITULO II

NO BAILE.

o largo das Duas Egrejas começara uma longa fileira de carruagens, que ia terminar no largo do Carmo, junto ao portão de ferro do palacio do marquez de Torres Novas , occupado pello Club Lisbonense. Semelhante a uma irnmensa cobra que para mover-se enrola os anneis de sua cauda , e firmada nella segue de rôjo vagarosamente seu tortuoso caminho , e vai summir-se na larga fenda de um velho edifício desmoronado ; assim aquella cadeia de maquinas locomotivas ia successiva , e lentamente entrando pella porta unica que dá serventia ao pateo daquella sumptuosa casa. Desde a mais réles sege de aluguel , que todo o dia esteve com a bandeirinha arvorada na rua do Principe, ou no largo do Corpo Santo á espéra de seus raros freguezes , e que com privilegio de canastra deixa entrar o ar e chuva por todos os lados , até á magnifica carruagem de almofada , montada em mólas elasticas , com emblemas heraldicos nas polidas portinholas, fechadas hermeticamente , toda essa longa fileira que acabamos de descrever aguardava com impaciente resignação , que lhe chegasse a sua vez de despejar aquelles , que iam dentro desses esquifes , em que os vivos costumam ir alegres ao cemiterio do dinheiro, da saude, e da virtude ás vezes —os bailes.—

Dous frisoens russos , com as crinas entrançadas de fitas escarlates ; a trote rasgado fazendo ferir lume as pedras de basalto das calçadas ; e puxando uma elegante carruagem verde-mar , romperam a fileira das seges que , respeitando as leys de policia, pacificamente esperavam o seu turno. O boleeiro da praça , que a pouca distancia da porta esperava que o soldado da guarda municipal de cavalleria , alli de sentinella, lhe franqueasse a entrada , soltou uma imprecação quando a carruagem verde-mar lhe passou pello lado esquerdo , em risco de esmagá-lo ; e que entre os cocheiros é o maior insulto ; protestando vingar-se do attrevido que, além de lhe tirar a sua vez, lhe pastou pello lado da sella.

Os cavallos russos pararam debaixo do guardachuva da porta da escada principal daquella casa. O criado da trazeira desdobrou o estribo , e abriu a portinhola da direita. De dentro desceu um cavalheiro, todo vestido de preto , apoiando-se sobre o braço do criado ; e deu a mão a uma linda dama com grinalda de rosas amarellas na cabeça , e vestido transparente branco sobre outro de setim côr de cana , que após elle sahiu da carruagem , com a agilidade de uma corça ; deixando ver um lindo pé, com meias de seda branca, e çapato de setim preto , prezo por fitas entrançadas da mesma côr.

Abriram-se as portas de panno verde, que servem para resguardar o ar da escada ; e deram-lhes passagem para o vestibulo ; cerrando-se de per si, pella força das molas , que as obrigam a conservar-se fechadas.

O guarda-portão , com sua maça de prata na mão direita , e seu rico uniforme vestido , tangeu a sineta , dando-lhe tres corridas ; que sam o signal da chegada de uma dama , e servem de avizo aos directores de serviço , para virem esperá-la á porta da primeira sala.

O cavalheiro tomou o challe de Cachemira em que a dama vinha envolvida , e resguardada contra o frio ; e foi entregá-lo em uma das salas baixas , que estam ao lado , destinadas para guardar os objectos proprios das senhoras ; deixando na outra defronte o seu paletó , na que é reserverde , que communica com a de dança ; e o director voltou ao exercicio honroso, mas incommodo , de sua occupação , para o posto onde o não interrompido tanger da sineta o chamava a cada momento.

Já se tinha servido o chá , e estava-se acabando de dançar a primeira quadrilha na sala immediata ; porém as portas obstruidas pello concurso daquelles que queriam gozar do buliçoso espectaculo da dança , não davam logar a que Sofia pudesse saber, se alli estaria aquelle por cuja causa suspirara no seu quarto , quando presentira que não poderia cumprir sua promessa , de com elle dançar a primeira contradança , e quando, ao pegar na camelia-pionia, se envergonhara no momento em que a levára aos beiços.

Os sofás que cercam aquella sala estavam todos occupados pellas senhoras que antes della tinham entrado ; só estava livre o que fica entre as duas portas que com a sala de baile communicam , para onde o director a conduzira. Seu pay ficou perto della , olhando em torno a ver se encontrava alguma senhora cazada ou viuva de sua amizade , a quem encarregasse de Sofia durante o baile. Oh ! como elle lamentou a falta da sua querida Adelaide ! Protegeria sua adorada filha ! Nos actos todos da vida uma may é para sua filha um ente sagrado , um guia , um conselheiro, um amigo certo e seguro que lhe dirige os passos na carreira da existencia ; se tropeça, dá-lhe a mão , que a levanta ; e se cahe no precipicio, tira-a delle , e chora com ella a sua queda. Um pay não é assim ; obrigado a confiar a estranhos a cultura dessa planta tão mimosa , que qualquer aragem murcha ; obrigado a deixa-la aos cuidados de criadas , gue ou lisongeiam as paixoens, ou as fazenr nascer , para dellas se aproveitarem ; obrigado por suas occupaçoens a estar a maior parte do tempo longe de sua filha ; como evitar esses escolhos que só uma may conhece , que só uma may adivinha , que só uma may sabe evitar nessa longa e perigosa navegação da existencia , em cujos baixios e cachopos , vam sumir-se ou quebrar-se tantos oraçoens innocentes por falta de piloto amigo ; por não terem a protecção de uma may?!...

Não consiste a ventura nas riquezas , e saude do corpo ; um momento basta para que a pobreza e a doença venham substitui-las : no socêgo do coração é que ella existe; uma alma sadia e vigorosa com as forças da virtude , está tranquilla no meio da adversidade. Tinha elle dado a Sofia uma educação esmerada ; as lingoas vivas eram-lhe familiares ; pintava e dezenhava perfeitamente; tocava piano e harpa , e cantava primorosamente ; não havia genero de lavôr próprio de senhoras que não fizesse com mimo e facilidade ; tinha o genio meigo de uma alma por extremo sensivel; o coração mais terno e compassivo ; e alem de todos estes dotes e prendas , era rica , dia o amor proprio alheio , era estimulo de gloria para aquelle , que domasse aquella alma que fazia soffrer suas victimas , sem ter piedade dellas. Vestia com muito gosto um vestido transparente de cambraia finissima , sobre outro de setim côr de rosa , com laços de fita do mesmo , na forma de avental ; laços eguaes apanhavam as mangas curtas , que eram guarnecidas de renda estreita ; assim como a saia o era em toda a circumferencia , e na altura dos joelhos, de largas rendas de França , franzidas e pregadas em um circulo de setim da mesma côr. Trazia na cabeça uma mimoza flor côr de rosa , ellegantemente posta. Os cabellos pretos cahiam soltos, e annellados ao longo de suas faces , fazendo-as assim mais alvas. Um broxe de ouro grande e quadrado, com um camafeu de coral no centro, e brincos semelhantes , eram as unicas joias que trazia. Çapatos de setim preto ; e luvas de malha de seda preta , completavam seu adorno.

O observador attento pode talvez formar seguros juizos , estudando as cores dos trages, e combinando-as com o typo das feiçoens. Sofia trajava côr de cana , que a todas preferia ; Julia , pello contrario , côr de rosa viva, quasi escarlate ; Sofia era meiga; Julia egoistamente insensível.

A may de Julia poderia ter quarenta annos ; naquelle periodo da vida das mulheres, em que não podem ainda persuadir-se, que devem deixar a suas filhas ou sobrinhas as pertençoens de agradar aos homens. Amavel , condescendente ; de mais talvez , com sua filha ; disposta sempre a desculpar e perdoar aos outros ; julgava delles ter igual retribuição , que raras vezes se alcança. Devera ter sido mais formosa que sua filha quando da idade della ; podia dizer-se que era o ultimo dourado êlo que liga o presente ao passado. Quasi da idade de Augusto de Sandomil , tinha-o conhecido pouco depois que elle enviuvára , e sendo ella já tambem viuva , muito tempo nutriu a esperança de cazar com elle. Essas ideias porém de ha muito foram substituidas por outras, que o amor maternal justificava. Sofia tinha tudo quanto uma may pôde dezejar naquella que deve ser sua nora , e Emilia do Sardoal tinha um filho.

A muzica acabou de tocar a ultima contradança da primeira quadrilha ; as portas desobstruiram-se dos espectadores ; e os pares , uns foram assentar-se , outros seguiram passeando a correnteza das salas.

Dous mancebos pello braço um do outro vieram da sala de dança , e dirigiram-se para o sofá onde estavam as tres damas que já o leitor conhece. Feitos os cumprimentos usuaes , um delles offereceu o braço a Sofia e Julia , em tanto que o outro o offerecia á may desta ; e foram conduzi-las para um dos bancos do salão da dança.

"Já que não pude ter a ventura de dançar com V. Ex.a a passada contradança ; poderei eu ser tão feliz , que me não seja negada a primeira walsa ?"

"Com muito gôsto... e se não cumpri minha promessa , não foi por culpa minha..: meu pai teve que escrever... e quando chegámos , já se estava dançando."

Havia tanta ingenuidade naquella desculpa ; e quem a dava tinha soffrido tanto antes desse momento de justificação, que fôra de marmore aquelle a quem fallava, para não ama-la como se adora um anjo. Olhou para ella com a maior ternura ; e viu a camélia-pionia posta sobre o lado do coração ; a gratidão , e o orgulho de ser amado expressou-se no seu rosto , que era seductor.

Emilio de Almodovar era o nome do cavalheiro que tinha condusido Sofia pello braço, e com quem ella trocou essas poucas palavras , depois de haver tomado logar. Distincto por nascimento, educação, e extraordinaria riqueza , tinha a fisionomia mais amavel , as maneiras mais seductoras , e aquella flexibilidade de caracter propria do homem habituado a viver na melhor sociedade. Alto e bem feito de corpo , tinha o rosto um pouco trigueiro ; o nariz bem feito , posto que não muito pequeno ; olhos vivos e pretos ; cabellos finos e anellados ; barba espessa ; suissas grandes , passando por debaixo da barba , da mesma côr. Vestia-se com o luxo e ellegancia de um rapaz riquissimo. Casaca e calças pretas , do mais bello limUte ; collete branco de neve, do mais fino acolchoadinho ; manta de setim preta , com ramos de ouro ; e um solitario magnifico em um alfinete que a pregava ; chapeo chato debaixo do braço ; çapatos envernizados , com meias de seda lavradas de côr de ouro e preto : e luvas côr de cana — a côr favorita de Sofia —.

Este o retrato exterior do mancebo de vinte e cinco annos que amava Sofia de Sandomil. Este o amigo do irmão de Julia , a quem a may della chamara sobrinho , por essa poderosa razão de parentesco social— era millionario , e ella tinha uma filha solteira. —

O cavalheiro que conduzira pello braço a encantadora Julia , era seu irmão Francisco do Sardoal ; em tudo differente della , era branco e corado ; tinha os cabellos e suissas castanhos, assim como os olhos , em que a melancolia era a constante expressão ; a estatura sem ser alta , era mais que mediana ; as feiçoens tinham a regularidade das de sua may ; e havia em todas ellas tal harmonia , que poderia chamar-se formoso.

Pequeno é o intervallo que costuma mediar de quadrilha a quadrilha ; e não tardaram muitos minutos que se começasse a segunda. Francisco do Sardoal dançava com Sofia , e era seu vis-a-vis Emilio de Almodovar, que dançava com Julia sua irman.

Tem as contradanças francezas um certo caracter particular , que as dintingue das demais danças ; sam uma especie de passeio a compasso ao som da muzica , em que o que menos se faz é dançar ; servem mais para essa livre , e exclusiva conversação que se pôde travar em meio de uma sociedade numerosa , como isolado della ; é uma especie de solidão em que o coração pode expressar diante de todos , e sem que elles vejam , seus mais secretos dezejos ; o par que dança , e aquelle que fica defronte , constituem uma especie de pequena republica , no meio dessa oligarchia , chamada baile.

Emilio é o parceiro de Julia ; porém pode dizer-se que só dança com Sofia; nella tem concentradas todas as potencias de sua alma ; e muitas vezes se esqueceu , ou errou a figura da contradança olhando para ella. Julia, com aquelle tacto fino proprio de toda a mulher nova que conhece o valor de seus encantos , disfarçava o despeito de sua alma , ao ver que todas as attençoens de Emilio , dirigidas para Sofia, eram como uma offensa imperdoavel em todos, quanto mais em seu parceiro.

No entretanto Francisco do Sardoal estava para com Sofia na mesma proporção, que sua irman estava para o seu amigo ; sem com tudo deixar de ter para com ella as mais delicadas attençoens.

A segunda quadrilha acabou ; Sofia e Julia voltaram para junto de Emilia do Sardoal , que difficultosamente tinha podido guardar-lhes seus logares contra a invasão de senhoras que , vendo-os desoccupados, queriam apossar-se delles.

Serviu-se o primeiro refresco. Na caridade filosofica , ou antes filantropia , ha uma certa agiotagem interesseira, que exige o immediato pagamento delia , nos gôsoa sensuaes , de uma reprezentação dramatica, de um concerto , de um baile bem servido ; ou na vaidade satisfeita com a publicação dos nomes filantropicos em uma lista impressa com a quantia que subscreveu. É uma letra de cambio paga á vista ao portador. Oh! como elle differe da caridade christan ! ... Se a muitos desses se lhes pedisse uma esmola pello amor de Deus , para uma classe, uma familia , ou um individuo desgraçados, talvez que a resposta fosse = Sinto muito... Não estou em circunstancias agora... Os generos vendem-se tão mal... O commercio não dá nada... Os ordenados andam tão mal pagos... == Mas quem ha que recuse aceitar um bilhete para uma representação , um concerto, ou um baile de subscripção ? ! ...

Porém ainda assim é um bem , que essas almas frias deem essa esmola com juros descontados pello prazer ! Os infelices recebem o producto dessa letra negociada pello egoismo do coração ! Soccorrem-se os desgraçados , e ao cabo tão bello fim quasi faz perdoar esse positivismo do seculo actual ; em que tão pouca gente pensa , e de que todos , ou quasi todos sam victimas.

Retumbou na sala uma walsa de Strauss ; dessas em que o poeta-muzico allemão descreveu todo o delirio dos sentidos , e do coração ; alegre e estrepitosa no comêço ; que pouco a pouco diminuindo os sons parece imitar o cançasso de um longo caminho ; e que por fim como que acaba exhausta de forças e de vida , para depois começar de novo a repetir essa onomatopeia das paixoens e vida do homem.

Cada qual foi buscar sua parceira ; e Emilio de Almodovar não foi dos ultimos que , com Sofia de Sandomil , entrou para dentro do espaço marcado para a walsa por quatro escudeiros , que com fitas azues o designavam, tendo-as extendidas de lado a lado da sala.

E a walsa começou. Emilio e Sofia dançavam perfeitamente ; a mão esquerda della apoiava-se extendida sobre o braço direito delle ; que com a direita a segurava pella cintura ; na esquerda delle apoiava ella as pontas dos dedos da mão direita. Elle sentia as pulsaçoens todas de seu coração , que vinham quasi quebrar-se na mão, com que parecia abraça-la pella cintura ; e a esquerda delia tremia involuntariamente na mão direita delle. Parece uma especie de somnambulismo esse movimento circular da walsa; e o magnetismo produsido pelo equilibrio do calor e das respiraçoens con fundidas , que causa essa vertigem , essa quasi asfixia moral; maiormente quando, como Sofia e Emilio , o amor liga por laços mysticos esse par, que gira mudo em torno da sala, todo entregue a esse frenesi de movimento , e passos uniformes.

Cahiu ao chão a camélia que Sofia tinha ao peito , e desfolhou-se. Emilio affastou com o pé os restos della.

Julia walsava tambem ; mas só nesses pequenos intervallos em que Emilio e Sofia descançavam.

O despeito e a inveja ópprimiam seu coração ; o seu orgulho reagia contra a amizade ; a ventura de sua amiga era como um punhal que lhe attravessava o peito; porém sorria como se fôra venturosa ; e o cavalheiro com quem dançava julgava talvez que aquelle sorrizo era a explicita approvação da declaração de amor que lhe fazia !...

Francisco do Sardoal não walsára ; triste , encostado em o desvão de uma janella, só via quem com Emilio dançava naquelle momento. Tão opposto ao genio de sua irman , como differente na fisionomia, julgara um crime querer disputar a posse de uma mulher a um amigo que elle amava. Concentrando no peito suas affeiçoens e tormentos , sabia sentir e soffrer infinito. Capaz de todos os sacrificios nobres e sublimes, accreditava nas virtudes , porque as tinha. Sua alma ardente e apaixonada consumia-se no fogo intimo e intensissimo que a devorava. Na longa solidão das noutes sonhava na ventura dos homens ; e na sua propria ventura ao depois. A poezia era sua distracção unica ; em singellas trovas , não polidas pella lima da pertenção ; nessas trovas sahidas de alma virgem, traduzia as dores de sua alma , os martyrios de seu coração. A athmosfera de sua existencia era esse culto puro da imagem de um Deus na terra , desse anjo que elle considerava como a consolação , a companhia do homem neste valle de mizeria , e que elle julgara encontrar em Sofia. E melancolico assistiu a esse drama em que seu coração ia atrelado como victima ao carro triunfante de seu rival. Viu cahir ao chão a camelia que Sofia trazia ao peito ; viu profaná-la com o pé desse rival venturoso ... Oh ! se fôra elle o que com ella dançara , guardara esses restos preciosos como thesouro riquissimo ! ...

A walsa tinha-se acabado; e voltando Sofia e Julia para occupar seus primitivos logares junto de Emilia do Sardoal, não tendo podido esta guardar lhos , julgaram melhor ir dar uma volta pelas salas. Era uma especie de divertimento passar revista a essa infinidade de concorrentes a um baile de subscripção. Emilio de Almodovar deu o braço ás duas damas que acabavam de dançar ; e Francisco do Sardoal veio dar o seu a sua may , que por um gesto o chamara do desvão da janella em que se conservava ainda ; e lá foram todos cinco percorrer as salas do Club Lisbonense , rompendo a custo por entre a multidão de senhoras e cavalheiros , que no fim de cada dança vam correr essa via-sacra da curiosidade.

Fôra necessario o talento de observação de um La Bruyére , para classificar e deffinir todos os differentes caracteres das variadas pessoas que concorrem a um baile qualquer , quanto mais sendo de subscripção; que é como uma encyclopedia ambulante , onde não methodicamente estam colligidas todas as classes ; desde a maior opulencia , até á maior mizeria ; desde a mais alta cathegoria, até ao mais infimo degráo da escala social. Um vestido de enfeite , e um ornato na cabeça , sam ás vezes roubados á satisfaçao das primeiras necessidades , e talvez dos primeiros deveres ! Uma casaca e calças pretas encobrem tantas privaçoens de todo o genero ! ... Mas o mundo em geral não vê n'um baile, mais do que o que dá nos olhos ; a observação cança , incommóda , e ás vezes desespéra. Um baile de subscripção é uma sociedade anómala ; é a democracia aristocratisada pella filantropia ; ou ás avessas.

Foram os cinco percorrendo as salas do Club , magnificamente adornadas , e bem distribuidas ; seguindo desde a sala do baile até á livraria , e casa de leitura dos jornaes; depois pello corredor interno á sala dos bilhares , e d'alli ás outras que sam destinadas uma para o serviço do chá diario ; e as outras duas para as mezas de jogos de vasa; unicos alli permittidos. Quando chegaram á ultima destas, estiveram um momento junto á meza em que Augusto de Sandomil jogava o whist ; e tornaram pello corredor , que está no topo das escadas, para a sala de dança.

Durante este periodo tinham-se dançado [...]

CAPITULO III

DEPOIS DO BAILE

O tanger triste dos sinos da egreja de S. Roque annunciava que o arrebol da manhan não tardaria a despontar ; e os do Loreto , Incarnação , e Martyres successivamente , em sons gradualmente distantes , responderam como echos acordados pellas cançoens melancolicas de um pastor das serras do Gerez ; ao depois as garridas daquellas egrejas tocaram á missa das almas.

Os chamados felices cá na terra , poucas vezes ouvem esse saudar christão ao dia que começa ; ouvem raras vezes esse chamamento ao sacrificio , que recorda e [...]

Dous criados , com velas acoesas em castiçaes dourados, allumiavam aquella scena tristissima.

Uma formoza dama com seus longos cabellos castanhos em desordem , está assentada em um sofá , a um canto do quarto, alli pouco allumiado. Seus vestidos sam de baile; é um de gaze branco, sobre outro de setim côr de cana, guarnecido de rozas amarellas ; mas as rozas estam meias despregadas; o vestido de gaze está roto ; e o de setim amarrotado , e cheio de lama. Seus formosos olhos sam duas torrentes de lagrimas ; os suspiros entrecalados parecem querer quebrar as paredes de seu peito, que se vê arfando debaixo do chale de cachemira em que está envolvida. Cada suspiro que atraiçoa a resignação do doente , que jaz no leito na outra extremidade do quarto, fere o coração da linda dama , como se um punhal agudissimo lhe varára o peito.

Quanta inveja ella tem a esse mancebo que está á cabeceira do leito , que pode silencioso expressar uma amisade de quilates bem menores que os seus ! que pode subministrar a esses facultativos os objectos sagrados que ham de servir de curativo para esse doente tão querido ! Oh! como lamenta que o seu sexo embarace o seu amor de satisfazer a paixão mais nobre , mais pura, e mais sublime , — prestar disvelados soccorros a quem geme no leito da dôr. — E esse doente , a quem elle não pode prestá-los, é seu pay ; é Augusto de Sandomil aquelle cujos ais vam rasgar o peito de Sofia ! ...

A operação está acabada. Um dos facultativos , o mais velho , e para quem o outro tem toda a deferencia de discipulo respeitoso , prescreve o tratamento que deve empregar-se para com o doente ; e falla em voz baixa com o mancebo , que parece fazer as honras da casa, e estivera á cabeceira do leito em que jazia Augusto de Sandomil , durante todo o tempo que se gastára no longo processo de seu curativo.

Anciosa estava Sofia por perguntar a esses homens da arte pello estado de seu pay ; não ousava porém fazê-lo, porque tremia de ouvir a sentença fatal , que delle a privasse para sempre ; durante o breve dialogo do velho facultativo com o dono da casa, que ein voz baixa se travara, sua alma , e todos os seus sentidos , suspenderam suas faculdades para exercitar uma só — ouvir o que elles diziam ; saber sua opinião acerca do futuro resultado do desastre acontecido a seu pay. — Elles porém fallaram em voz tão submissa que não poude perceber-lhes.

O mancebo sahiu do quarto, levando na mão uma tira de papel , em que o facultativo formulara o remédio que devia dar-se ao doente , o que , para não incommoda-lo , pé ante pé , ia mandar buscar á mais proxima botica.

Naquelle momento Sofia , ainda mais bella com a expressão da dôr no rosto, com os olhos embaciados pellas lagrimas , parecia o anjo da tristeza chorando ás portas do Eden a queda do primeiro homem ; ou o anjo da guarda de Abel , chorando sobre a primeira victima da morte.

E o velho facultativo que sabia avaliar essas fracturas do coração de uma filha, que chora junto do leito de um pay moribundo , e que sabia que nos seus labios só estava o apparelho da grande cirurgia da alma, nessas consoladoras palavras — não tem perigo — chegando-se para junto della , viu suas lindas maons apertadas uma contra a outra , naquella sublime expressão , que por certo devia ter a may de Jesus no Golgotha , quando pedia a seu eterno espozo a vida de seu filho agonisante , pendente na cruz. E o coração do velho commoveu-se a ponto que seus olhos diceram em duas lagrimas , que elle tambem era pay , e que tinha uma filha , que um dia poderia soffrer tanto como Sofia naquelle momento. Com voz que a sensibilidade trahia, mas que a reflexão dominava, dice estas palavras em voz baixa para Sofia : "Esteja V. Ex.a socegada ; as fracturas sam de cuidado , mas não de perigo immediato".

E Sofia beijou-lhe a mão como a um ente que a salvara de um abysmo, e que, não tendo voz para fallar , por essa forma articulavam seus beiços o vocabulo mais expressivo da gratidão.

Nunca mais nobre pagamento recompensou o facultativo com quem esta scena se passava ; e o mais novo delles em religioso silencio gozava o prazer intimo da sensibilidade que produz a representação desses quadros do verdadeiro drama da vida; prazer que dóe ; gozo que fere tanto mais, quanto o protogonista é interessante , a acção nobre , e naturalmente representada por um actor que soffre na realidade. Nem um só momento entrou na sua alma a sombra dessa inveja mesquinha , que quer apropriar-se todo o galardão , ou ao menos ter parte nelle ; bem sabia elle que a gratidão de uma filha , concentrando a expressão della nesse vocabulo mudo , impresso na mão daquelle que fôra seu mestre , não o excluia a elle da parte que lhe tocava em seu reconhecimento ; como o companheiro de armas do guerreiro que é levado em triunfo, e para quem sam as honras destinadas, vai após elle silencioso , e recebe o reflexo da gloria de outrem , que lhe cabe igualmente ; assim o joven facultativo assistiu áquella interessante scena.

O mancebo que sahira , para mandar buscar o remedio receitado para Augusto de Sandomil , voltou naquelle momento ; e sem dizer nada a Sofia parou diante della, como aguardando que lhe fallasse primeiro; havia no rosto delle a expressão da obediencia , e abnegação mais completa ; a da escravidão da alma , que se compraz em seus ferros , e que julgara desventura a carta de alforria da indifferença , que o restituira á liberdade.

Os criados tinham sahido ; eram cinco as pessoas que estavam naquelle quarto, onde reynava o silencio mais profundo ; poderiam contar-se as respiraçoens : a de Augusto de Sandomil alta , mas difficil e entrecortada de ais abafados ; a de Sofia soluçando ; as dos dous facultativos , como suspendendo as suas , para na do doente estudarem o prognostico da molestia ; e a do mancebo que reflectia , como um espelho de sensaçoens , todas as systoles do coração de Sofia.

Expliquemos o que deu logar á catastrofe , cujos resultados estamos descrevendo. Lembrados estarão nossos leitores da imprecação do boleeiro da praça , quando a carruagem de Augusto de Sandomil lhe passou pella sella , junto ao portão de ferro do pateo do Club Lisbonense , tirando-lhe a vez de entrar que lhe competia ; de cuja duplicada desfeita jurara tomar vingança. Aguardara elle o ensejo proprio ; e foi adrêde collocar a sua sege atraz da carruagem verde-mar , para sahir logo após ella no fim do baile. Poucos passos tinham andado os cavallos russos de Augusto de Sandomil , quando uma sege á desfilada , passando pela mão , e tocando com a roda no cubo da da direita de sua carruagem , em o plano inclinado da calçada que vem das Portas de Santa Catharina , a fez voltar sobre a esquerda ; de cuja queda resultou um grave ferimento na cabeça , e a fractura de uma perna ao desgraçado pay de Sofia.

Cada classe tem uma especie de pundonor proprio ; e Augusto de Sandomil era a victima innocente do caprixo de um boleeiro da praça , que por aquella fórma , usada entre os de sua proffissão , tirava desforra de um boleeiro particular , de quem julgava ter recebido offensa.

Essa imprevista desgraça deu origem ao ruido , e gritos de mulher afflicta , de que fallámos no fim do capitulo antecedente.

A pouca distancia ia a sege de Emilio de Almodovar que, ouvindo o ruido da queda da carruagem , e conhecendo a voz de Sofia que pedia soccorro para seu pay, fez parar seu boleeiro , e foi immediatamente soccorre-los. A sua casa, estava perto dalli ; Augusto de Sandomil tinha perdido o uso dos sentidos com a dôr e abalo da queda ; era necessario prestar-lhe de prompto os auxilios de que carecia ; alagado no seu sangue, qne de uma larga ferida na cabeça lhe descorria ; e tendo a perna esquerda quebrada , era impossivel naquelle momento ser condusido a sua casa , sita em Buenos-Ayres , dalli mui distante ; começava a chover ; fazia um frio intensissimo ; e sem consultar mais que o seu coração , e a urgencia das circunstancias , fez logo conduzir para sua casa Augusto de Sandomil desmaiado ainda, e conduziu elle mesmo sua filha que , toda entregue ao sentimento do amor e interesse filial , não fez a mais pequena resistencia , nem curou saber quem lhe prestava tão officiosos serviços , porque todos elles eram em proveito de seu pay.

Mandou chamar os dous facultativos que mais proximos lhe ficavam , que por ventura acudiram logo ; em tanto que ajudado por Sofia , e por seus criados ministrava ao doente todos os cuidados que exigia sua triste situação. Era elle o mancebo que vimos á cabeceira da cama em que jazia Augusto de Sandomil ; e que descrevemos silencioso aguardando as ordens da senhora de seu coração.

Descançava , quanto é possivel descançar em tão criticos e dolorosos momentos, o infeliz Augusto de Sandomil ; a quem uma larga sangria dera grande alivio finda a operação da apposição dos apparelhos.

A arte tinha empregado todos os meios ao seu alcance , proprios de um primeiro curativo; e os facultativos sahiram , tendo prescripto o mais absoluto repouso do doente ; que por aquella forma ficava involuntaria e forçadamente installado em casa de Emilio de Almodôvar.

Sofia e Emilio ficaram sós; ella assentada no sofá ; elle de pé em frente delia.

Era o silencio dos dous o dialogo mais expressivo ; desses que nem o poeta sabe traduzir ; porque é travado na lingoagem mystica dessa bíblia polyglotta do coração , cujos vocabulos sabemos ler com os olhos, cuja significação podemos conhecer , porém cujos sons não podemos , nem sabemos articular com suas verdadeiras inflexoens ; coexistentes com o homem sam essas frazes mudas , que postas em lingoa vulgar perderiam a divina muzica de sua poezia.

Tão delicado como extremoso ; tão attento na acção, como cuidadoso em todas as circunstancias delia, tinha Emilio de Almodovar dado todas as ordens necessarias em semelhantes circunstancias ; não olvidan do nada que fosse necessario e util ao doente , ou que podesse ser agradavel a Sofia.

Por isso naquelle momento entrou Joanna , a camareira delia , que elle tinha mandado buscar para fazer companhia , e servir sua ama : e que por uma cautelosa prevenção lhe trazia vestidos proprios para mudar-se, e tudo mais que ella julgava poderia haver mister.

É tão agradavel expressar gratidão áquelle a quem amamos ! Um sorrizo tristissimo recompensou Emilio em demasia. E em curtas frazes lhe assegurou que tudo quanto naquella casa havia era della ; que o quarto immediato ao de seu pay , já lhe estava preparado como sua habitação em quanto a molestia delle reclamasse os seus cuidados e companhia ; e que respeitando como devia a delicadeza de seu sexo , e o critico de sua actual situação , a constituía dona absoluta de sua casa , indo elle dormir e comer á de um seu amigo, morador na visinhança ; sem que , não obstante, elle deixasse de ser , com ella , enfermeiro assiduo de seu pay.

Havia nos offerecimentos , solicita previsão , e mimosa delicadeza de Emilio uma elloquencia tão poderosa , que Sofia aceitou esse tratado com todas as suas amaveis e obsequiosas condiçoens. Elle ficava ao lado de seu pay , em tanto que ella devia ir mudar de vestuario ; porque além de incommodo e improprio o que tinha naquelle momento , estava todo roto e enlameado da queda da carruagem.

O quarto de vestir , e guarda-roupa de Emilio, como por encantamento estava transformado em quarto de cama de Sofia ; e, por uma attenção delicadissima, em uma marqueza ao Indo estava disposta uma pequena cama para a sua criada.

A serie de sensaçoens tão variada por que seu coração tinha passado naquellas poucas horas que tinham decorrido desde o tanger do sino, que annunciou as oito da noite antecedente, apresentou-se a Sofia como uma fantasmagoria horrivel , no momento em que sua criada a ajudava a mudar de vestuario. Esse tanger de sino pellas almas ; a camelia-pionia cahida e desfolhada quando dançára com Emilio; o retrato de sua may, cujos olhos a seguiam sempre no seu quarto do toucador ; a imagem de Nossa Senhora com seu divino filhinho nos braços; o quadro de S. Vicente de Paula ; a borboleta preta ; a canção do Engeitado ; a vinheta que a adornava ; todas as fazes do baile ; as conversaçoens das contradanças ; o delirio da walsa ; e finalmente a queda de seu pay , as dores que soffria , o receio de perdê-lo , tudo isto impressionava Sofia da maneira mais pungente. Só ao cabo , como que uma luz grata á sua alma despontou entre as trevas de sua tristeza — Emilio de Almodovar ; seu amor ; seus disvelos para com seu pay ; suas attençoens e delicadeza para com ella. — E tendo acabado de mudar de vestidos, voltou para junto de seu pay ; que presentindo-a ao pé do leito, abrindo os olhos lhe sorriu com esse angelico sorrizo que só os labios de um pay ou de uma may podem ter ; e estendeu-lhe a mão. Ella beijou-a com aquelle ardor vehemente , proprio do mais cendrado amor filial.

"Estou melhor, minha filha. Vai deitar-te. O Snr. Emilio de Almodovar contou-me tudo , porque não me lembro de nada desde o momento da queda. Sei que estamos em sua casa ; o que lhe devemos ; e tanto que até o desapossamos della. Vai deitar-te , minha filha... inda bem que ao menos tu não tiveste perigo. Eu quero descançar, e sabendo que tu estavas a pé, não o poderia de certo... Vai... Vai , minha Sofia."

Ella sem poder proferir palavra, que os prantos embargavam , beijou outra vez a mão de seu pay; e por uma desobediencia que todo o filho carinhoso teria naquelle momento , fingindo sahir do quarto , foi assentar-se no sofá que atraz descrevemos ; e que ficando do lado opposto áquelle para o qual seu pay tinha o rosto voltado, protegia o estratagema que seu coração empregara , para não confiar só a estranhos o cuidado de um ente tão querido. Emilio de Almodovar estava assentado [...]

edificios , cuja symetria não cansa os olhos com sua prosaica monotonia , tem um aspecto especial ; parece uma encantadora solidão povoada por entre venturosos ; as ruas quasi desertas imitam as de uma grande aldeia , cujos moradores estam occupados nos prazeres ou trabalhos do campo. E' como a imagem da felicidade intima do coração, traduzida por expressivo silencio , e pello mavioso sorriso , seu emblema verdadeiro , a fisionomia do bairro de Buenos-Ayres , vista no mappa topografico de quem estuda geografia moral ; essa geografia cujo globo terrestre é o homem ; cujo movimento e leys de rotação sam as suas paixoens e sentimentos ; cuja esfera armilar marca os circulos maximos e minimos que o ligam ao Creador , e ás creaturas.

Assentado ao pé de uma janella de uma das mais lindas casas de Buenos-Ayres, com vista para o Tejo , e para o lado fronteiro a Lisboa , estava um homem de meia idade em uma cadeira de espaldas , estufada , de molas , e coberta de marroquim escarlate , que chamam à Voltaire. Um longo roupão de casa o cobria todo ; tinha na cabeça um barrete de velludo preto bordado de froco de seda verde e roxa , semelhante no feitio aos que os gregos usam. Suas vistas estendiam-se por esse plaino do Tejo , cujas agoas , então brunidas pellos raios do sol , pareciam um espelho de ouro ; e seguia com os olhos ora a rapida carreira dos barcos de vapor , que entravam , sahiam , ou atravessavam o rio , deixando após elles uma longa esteira de fumo negro nos ares, e outra de escuma prateada na agoas; ora o deslizar dos barcos , e escaleres , corren do nessa planicie , impellidos pellos remos, como insectos que brincam á tôna d'agoa em pacifico lago de um jardim.

Muito tempo estivéra assim embebecido nesse gozo dos olhos , que absorve oa outros sentidos em uma doce embriaguez, quando os volveu para dentro do quarto em que estava ; e como cansado da luz brilhante do reflexo do sol nas agoas , em um formoso dia dos fins de Março , repousou-os com delicias em outro objecto mais caro ao seu coração.

A pouca distancia , em frente de outra janella do mesmo lado do quarto , estava assentada ao pé de uma meza uma dama lindissima , com um vestido de gorgorão côr de violeta , da fabrica do Rato, muito simples no feitio , mas ellegante no talho; era aberto no seio, que estava cuidadosa e modestamente coberto por uma camizinha de cambraia bordada com muito primor ; um cinto de seda ondeada da mesma côr lhe debuxava o corpo mais bem feito. Estava attentamente trabalhando no acabamento de uma flor artificial , feita de folhas de papel de arroz , como absorvida toda na perfeição de sua obra. E o homem que atraz descrevemos sorria intimamente, acompanhando cada um dos movimentos que ella fazia, ora escolhendo nos massos das [...]

quelle momento occupava ella todas as suas ideias; volvendo o pensamento pello passado considerava o abandono de sua tão amada filha , caso elle tivera sido victima de uma imprevista e desastrosa morte , de que estivera tão perto ; e ella orfan , só com parentes muito remotos , que nunca lhe perdoaram seu cazamento com Adelaide ; sem experiencia , e menor , e entregue á mercê de tutores estranhos ou inimigos della !... E o futuro se lhe antolhava tristissimo ! Não pensara até alli em cazar sua filha; não queria separar-se delia ; achava-a demasiado nova para agrilhoa-la por toda a vida com laços indissoluveis a um homem que , passado pouco tempo , a trataria como uma de suas mais valiosas herdades, utilisando-se de seus rendimentos , sem curar de donde lhe provinham. Não queria violentar seu coração ; não tinha visto que ella mostrasse preferencia a nenhum desses mancebos , que sendo de sua habitual sociedade , estavam em circunstancias de cazar com ella. E ainda que difficil de satisfazer seu dezejo na escolha de um noivo para Sofia, dous com tudo tinham todas as qualidades que o mais extremoso pay poderia appetecer no esposo de uma filha unica ; e eram, Francisco do Sardoal , que sem ser demasiadamente rico , o era bastante para conservar intacta sua independencia , e boa posição social , e para fazer sobresahir seu raro merecimento ; e Emilio de Almodovar, riquissimo , a quem devia as mais attenciosas finezas , não só durante sua doença com a mais generosa hospitalidade ; mas até depois da mudança para sua casa , com a solicitude da mais officiosa amizade.

Não escapara á penetração de um pay que ambos aquelles cavalheiros amavam sua filha ; reconhecia em Francisco do Sardoal qualidades moraes muito superiores ; porém não só Emilio era mais rico, e por isso em melhores circunstancias, segundo as ideias do dia , em que o contraste do merecimento é a quantia que cada qual tem de renda, era-lhe tão devedor, que julgava satisfazer ao mesmo tempo uma divida sagrada de gratidão, e assegurar um futuro brilhante para sua filha , dando-lha em cazaroento ; mas até reflectindo na differença com que Sofia o tratava , como querendo occultar seus sentimentos com receio de ser expansiva de mais em seu reconhecimento , pareceu-lhe que advinhára que os pensamentos de Sofia eram analogos aos seus , e que o coração della se anticipára em amar aquelle com quem dezejava uni-la para sempre.

Desde que para sua casa poude ser transferido , vinha todos os dias Emilio de Almodovar fazer-lhe companhia algumas horas; e desde então sua filha estava triste. Esta ultima reflexão fixou na ideia de Augusto de Sandomil a persuasão de que surprehendêra o occulto amor de Sofia ; e só ficou imaginando a forma de preencher com dignidade de pay o seu mais grato dever— preparar a ventura de sua filha.-

A flor estava acabada ; e Sofia volveu-a de todos os lados como para ver se alguma cousa lhe faltava para sua completa perfeição; não tinha dezenho, molde, ou flor, que lhe servisse de modelo ; parecia com tudo consultar na memoria se era bem semelhante á que tinha no pensamento , e que quizera imitar com essas folhas de papel de arroz. Era seu pay tão venturoso considerando tão innocente aquella scena muda , de que elle era o unico espectador ! ...

"Está acabada a tua obra : não é assim ? minha Sofia !"

Como se fora colhida em flagrante delicto , Sofia córou , ouvindo essas poucas palavras dittas por seu pay com a maior ternura. Nem ousou erguer os olhos para elle , como atterrada ; pensando que tinha sido surprehendido o seu pensamento por essas palavras que ouvira, e cujo som feriu sua alma , como se um raio lhe asfixiara o coração.

"Que tens , Sofia ? !"

E o convalescente ia já a erguer-se apoiado nas molêtas que tinha encostadas atraz da cadeira ao canto da janella, angustiado pella expressão que vira no rosto de Sofia ; e ainda mais por esse silencio espasmodico , que elle julgara accidente nervoso, tão communs nas pessoas novas, por extremo brancas e sensiveis.

Sofia , como se de repente acordasse de um pezadêlo pello ruido que o movimento de seu pay fizera , vendo o seu projecto, correu para elle , e foi abraça-lo , escondendo seu lindo rosto no seio della , que sem proferir palavra, a beijava na testa , sem querer perguntar-lhe a razão daquelle seu caprixo de sensibilidade , com receio de augmenta-lo.

"Estavas tão absorvida em teu trabalho, que te fez mal tanta attenção."

"Não é nada , meu pay !... Estava distraída."

O rosto de Sofia ficou pálido outra vez ; mais palido ainda parecia , por ter corado por alguns instantes. Dominando porém sua repentina emoção , foi buscar , e appresentou a seu pay a flor que acabara de fazer.

Era uma camelia-pionia perfeitissima.

"Ninguem dirá ser contrafeita. Pêna é que o pó e a traça estraguem tão depressa estes trabalhos de papel de arroz ! Deves guardar esta camelia com muito cuidado ; fôra lastima perder-se."

Como approveitando o conselho que seu pay lhe dava , correu Sofia para o quarto immediato , que era o do seu toucador , e debaixo da manga do vidro , que estava em cima da meza de marmore do fogão , foi pôr essa camelia-pionia que ella fizera como retrato o mais parecido daquella que levara ao baile do Club Lisbonense. E viu ainda alli a borboleta preta ! ... Pegou nella religiosamente , e collocou-a no centro das petalas da flor artificial , pregando-a com um alfinete , como se alli estivera pousada. Seus olhos estavam sêccos ; parecia que o ardor da febre intima que a devorava lhe queimava as lagrimas antes de alli chegarem. Olhou para o retrato de sua may , e julgou que a via chorar ! ... Eram suas proprias lagrimas , que então corriam fio a fio , as que assim illudiram seus olhos naquelle momento. Consultára aquelle retrato , cujo olhar a seguia sempre , como se nelle podéra ler o prognostico de seu futuro ; a essas lagrimas que pensára ver naquelles olhos que tão meigamente a olhavam sempre , responderam suas lagrimas com soluços misturadas.

Sentiu ruido na salla do piano , em que seu pay ficara ; eram passos de alguem entrando. Ouviu uma voz, conheceu-a , e limpou as lagrimas; como receiando que seus olhos trahissem a sua dôr , foi consultar seu espelho; e só quando julgou que não a denunciariam , é que tornou a voltar para junto de seu pay , que em voz alta e alegre conversáva com a pessoa que chegara.

CAPITULO V

OS AMANTES.

Como é feliz essa primeira quadra de nossa existencia , em que podêmos sem receio expressar o que sentimos ! . . em que um ai , ou um sorrizo traduzem fielmente nossas dores e prazeres ! . . em que a esse ai vemos solicita accudir uma carinhosa may para indagar-lhe a causa ! . . em que a esse innocente sorrizo vemos responder os sorrizos daquelles que nos sam mais caros ! ... Como é triste ao depois esse longo periodo de constrangimento a que somos obrigados todo o resto de nossa vida ! . . E' necessario que cada uma de nossas mais simples acçoens seja pezada na infiel balança das conveniencias sociaes, sôb pêna de sermos victimas de um sorrizo involuntario e inoffensivo , ou de uma expressão de dôr, que mal soubemos conter !

No drama real da existencia, somos actores , a quem a sorte distribue a esmo os diversos papeis que havemos de representar no vastissimo theatro do mundo ; nosso caracter natural e verdadeiro desapparece sob os andrajos , ou ouropeis de que nos reveste o inexoravel emprezario , chamado destino ; e nesse terrivel palco , onde somos protogonistas , ou comparsas , recebemos os applausos , ou os apupos , não conforme o que somos , mas segundo o que parecemos na scena ! ... O vulgo , ávido de espectaculos que o fascinem , julga-nos sem criterio pellas caprixosas leys de suas paixoens , injustas sempre.

E nós que tantos sacrifícios fazemos para merecer os applausos dos homens ; nós que, para evitar seus motejos , commettemos as mais arriscadas emprezas ; nós em fim, que tanto tememos seu apaixonado julgamento , somos cégos , que não vemos nossas acçoens ; somos surdos, que não ouvimos os clamores de nossos remorsos ; somos insensiveis , e iudifferentes á sentença imparcial desse juiz incorruptivel, a quem dadivas não peitam, a quem falsas testimunhas não illudem ; a quem o nome do accusado, e de seus protectores não fazem torcer as eternas leys de sua justiça immutavel !...

A sciencia da vida estuda-se como necessaria ; cada qual forceja por desempenhar o papel que ha de representar ante os homens, com a perfeição de que é susceptivel ; porém a sciencia da morte , essa que dá ao homem a vida eterna , despreza-se como inutil ! ... E' quasi um crime fallar nella ; porque se confundem os divinos preceito do Evangelho, com os abusos de um fanatismo interesseiro ; e o edifício augusto da crença de nossos avós é solapado em seus alicerces pello egoismo da eschola sceptica chamada filosofica ! ... O christianismo, essa crença consoladora dos desgraçados, é-lhes roubada arteiramente , pellos monopolistas das venturas deste mundo ; como se lhes pezasse deixar aos infelices o bordão da fé, que os ajuda a perigrinar pellos espinhosos e escarpados caminhos da vida ; como se , proprietarios exclusivos da luz da felicidade , quizessem tirar-lhes o gôzo dessa aurora boreal , que lhes allumia o triste occaso do dia anuviado de sua existencia amargurada, privando-os do faxo da esperança de um repouso eterno , após tão longo caminhar neste valle de lagrimas e mizerias ! ...

Na embriaguez da ventura , cercado de todas as commodidades da vida, esquece o homem no seu egoismo , que ha uma cadeira mystica e sagrada que o liga a todos os desditosos ; porém elles , privados de tudo quauto é necessario á existencia , não podem olvidar que a sua desventura é um êlo mais que os prende ao Pay commum de todos os seres ; e que é um titulo imprescreptivel que lhes dá direito aos thesouros da caridade.

Quando porém a desventura despenha nos abysmos da desgraça , esse que descrido não pensou nos malles alheios; quando trahido por todos se vê mendigando o alimento das consolaçoens , que é o pão da alma; quando repellido por todos se vê solitario em meio de um oceano incommensuravel , combatido por todas as tempestades , a ponto de soçobrar sobre os cachopos da indifferença humana , então ergue os olhos ao céo , e clama com voz afflicta = Mizericordia , meu Deus !! =

E que fôra delle se essa mão divina e poderosissima o não salvasse do abysmo cavado pellas maons dos homens ? ... Amaldiçoando os authores de seus dias , iria arrojar-se ao tumulo , como leito de impassiva existencia , como sorvedouro eterno de seus malles.

Eis ahi o legado fatal dessa filosofia tão gabada pelos felices cá da terra ! ...

Mas se os desgraçados antes de irem, cegos, quebrar nos cantos de uma louza essa existencia que lhes é pezada , quizessem saldar as contas da partilha social , quem poderia suspender-lhe os passos , nessa carreira de torrente volcanica , cujo esfriar é a morte ? !

Oh ! pello vosso próprio interesse , deixai aos infelices o sustento do coração; embora lhes não deis , nem os sobejos de vossa meza ! Descridos , não lhes tireis sua crença ; juntai vossos thesouros na terra , que elles juntam os delles nos céos ; alli não temeis vós que a concorrencia de seus tão diversos capitães possa impecer-vos ! . .

Sofia de Sandomil enxugára as suas tão formosas lagrimas , e consultára em seu espelho se os seus olhos denunciariam as magoas de sua alma , áquelle cuja voz conhecera , e que na salla immediata conversava alegre com seu pay : e bem amargas sentiu as terriveis reflexoens que acabamos de fazer ; porque ainda que educada nos preceitos do christianismo , não tinha tido uma may que lhe fizesse comprehender a divina poesia de suas consolaçoens; praticava os deveres do culto externo , sem avaliar todavia a sublimidade do culto intimo do coração , que liga o mortal , e ainda mais o desvalido , áquelle que é fonte inexgotavel de amor. Demasiado feliz até então , não conhecera nunca a necessidade desse balsamo augusto , que sara , ou cura as grandes feridas da alma. Tinha a consciencia da dôr, porque soffria , e muito; porém não sabia procurar ainda, nem applicar esse remedio infallivel , ás chagas de seu coração. Preza ás ideias da terra, só considerava os pezares , e prazeres do mundo , como o actor de quem fallamos no principio deste capitulo , moralisando os felices mas curtos momentos de sua infançia, em relação ao resto de sua existencia.

Havia porém no seu coração essa ne [...]

Quem fez aquella tão simples pergunta , que é a fraze ordinaria de um cumprimento banal, bem viu no rosto pallido de Sofia , que sua resposta era dictada pello habito, e não pella verdade. E sorriu intimamente com barbaro prazer. Era, como todos os homens , egoista; seu coração , como o de todos elles , folgava de ver o espectaculo desses martyrios occultos de que era causa : esse quadro de soffrimento intensissimo era para seu orgulho o incenso mais lizongeiro.

"Não é tão bem como eu dezejára."

Dice Augusto de Sandomil, alludindo á differença que notava no génio e feiçoens de sua filha ; e que attribuia , parte aos incommodos que seu desastre lhe causara, parte ao amor que elle julgava ter descoberto ella nutria secretamente por esse, que tão generosa e delicadamente o hospedara. Não se enganava elle ; sabia a verdade ; porém toda ? Não.

Fixo na ideia de satisfazer os dezejos de Sofia , dando-lhe por esposo aquelle que preferira a todos os outros para genro; e querendo, com o orgulho de pay, fazer conhecer todas as prendas de sua filha , para que avaliasse melhor o preciso thesouro de que podia dispor , esse para quem o destinava ; voltando-se para o cavalheiro que tinha saudado Sofia , dice-lhe :

"Talvez, Senhor Emilio de Almodovar , nunca V. S.a ouvisse tocar harpa a minha filha ?"

"Por certo não ; e muito feliz me julgaria se podesse gozar agora essa ventura."

"Ha tanto tempo que não toquei , que mal podera fazê-lo agora. Fora talvez impossivel , porque deve estar com muitas cordas quebradas."

Com esta observação ultima julgava Sofia poder evitar esse martyrio mais , o de patentear seus talentos, quando só queria occultar sua dôr.

"Embora as cordas estejam quebradas ; não será esse o motivo que me prive de um prazer para mim de tanto preço. Ainda que mal, eu saberei afiná-la, e substituir-lhe cordas."

E sem mais detença , foi ao canto da sala buscar a harpa, que tirou de dentro da caixa aonde estava guardada. Só uma corda lhe faltava , ou antes a que estalára podia servir ainda ; o que Emilio de Almodovar fez em poucos momentos.

"Se V. Ex.a quizesse ter a bondade de consentir que a afinasse pello seu piano..."

E Sofia , vendo que não podia deixar de satisfazer o seu pedido , foi para junto do piano , que elle já tinha aberto ; prestando-se com reservada amabilidade á exigencia mui delicada de Emilio de Almodovar. Nem tardou muito que a harpa ficasse perfeitamente afinada; porque extremamente apaixonado pella musica , conhecia e tocava muitos instrumentos.

"Se V. Ex.a julga que estará mal afinada , queira V. Ex.a desculpar-me."

CAPITULO VI

AS CONFIDENCIAS.

"Como minha may , incommodada de saude desde a noute do baile do Club Lisbonense, não tem podido sahir , não quiz demorar mais minha visita ; agora que ella está melhor pedi a meu irmão que me acompanhasse , para ter o gosto de abraçar-te , e dar-te os parabens pello feliz restabelecimento de teu pay, não só da minha parte , mas da della , que te manda mil desculpas de sua involuntaria falta : tendo nós tido cuidado de mandar saber todos os dias de pessoas a quem tanto estimamos."

Fôra Julia do Sardoal quem assim fallára , ao entrar com seu irmão na salla em que se passou a scena que descrevemos no capitulo antecedente.

Sofia e Augusto de Sandomil agradeceram a Julia e Francisco do Sardoal sua visita , e cumprimentos , com a mais urbana amabilidade.

Augusto de Sandomil contou todas as circunstancias mais minuciosas de seu desastre , como o velho guerreiro costuma contar a historia das batalhas a que assistiu ; e encareceu , como devia, as finezas e obsequios que de Emilio de Almodovar recebera , durante sua longa doença , e mui generosa hospitalidade.

Emilio de Almodovar recusou com modestia os seus elogios , dizendo que qualquer outro faria o mesmo a respeito de um desconhecido quanto mais a favor de uma pessoa amiga, e de quem houvesse recebido em sua caza as mais obsequiosas distincçoens.

Francisco do Sardoal , silencioso , invejava a sorte desse que podéra prestar tão valiosos serviços ao pay de Sofia ; e conhecia no rosto de Emilio o prazer que lhe dava o secreto orgulho de os haver prestado.

Nos tempos dessa antiga cavallaria, tão illustre em grandes feitos , e tão escarnecida ao depois por esses incapazes de fazê-los , ou ao menos de avaliá-los , era a belleza o premio do valor, adquirido á força de gentilezas de armas : se nesse tempo vivera Francisco do Sardoal de certo não cedêra á seu competidor a posse da encantadora Sofia , sem primeiro ter disputado , no campo e na estacada , com a lança , a espada e a adaga , a pé e a cavallo , esse thesouro de encantos. Nos saráos , nas justas , e torneios trajaria as suas cores e divisas.; e só a morte poderia roubar-lhe a esperança de ver coroado seu amor ; porém agora devia callar e soffrer ; porque não é o mais extremado cavalleiro , é o mais habil seductor o que alcança a victoria nos combates da formosura.

Só a custo , e por obedecer a sua may , acompanhára sua irman a casa de Sofia, cuja vista augmentava , se era possivel , a intensidade de seu amor; longe della , entregue á sua melancolia , podia suspirar sem receio ; mas na sua presença era forçado a disfarçar o que soffria , para não representar esse papel ridiculo que tanto temem fazer os actores reaes da vida, suspirar inutilmente. A pallidez de Sofia , o rosto alegre de Emilio eram desenganos, crueis e fataes , que lhe dissipavam as derradeiras illusoens de sua esperança. Ella amava o seu rival que , sabendb-o , gozava ante elle o prazer ineffavel do triunfo.

Naquella pequena salla havia dous homens que amavam a mesma mulher ; e duas mulheres que amavam o mesmo homem. Francisco do Sardoal sacrificava seu amor á ventura de Sofia ; porém Julia tudo sacrificára , menos seu orgulhoso amor. Elle cedia o campo sem combate a um rival mais venturoso ; ella disputaria , até junto dos altares , a essa que ella chamava sua amiga a mão de Emilio de Almodovar; embora o seu coração pertencesse a outra.

A melancolia de Francisco do Sardoal, propria de seu caracter serio , encobria o que dentro de sua alma se passava ; da mesma forma que a natural jovialidade de Julia occultava os mysterios de seus pensamentos.

Quem conhece porém essas tão differentes fazes do coração ? O que tem gozado , e soffrido muito ; o que na solidão triste das noutes , e dos dias mais tristes do que ellas , consulta ante o espelho concavo das saudades , esses quadros tristes , ou alegres de sua passada existencia, como o viajante consulta o album em que traçou a historia de suas sensaçoens durante uma longa perigrinação. E que é a vida ? Uma viagem penosa , em que a um bello dia se seguem dias e dias tempestuosos ; em que a uma estrada plana e facil de caminhar se seguem despenhadeiro e precipicios em que o berço é o ponto da partida , a campa o pôrto do repouso , para aquelle que além della só vê trevas , sem que uma luz consoladora lhe bruxuleie ao longe um outro mais deliz de descanço eterno !

"Ha tanto tempo que te não via , que me parece voltar de um longo desterro ... Tinha tantas saudades tuas , que dezejo matá-las todas; e porisso te peço hoje de jantar."

"Com o maior prazer , minha boa Julia."

"E eu espero que estes senhores me farão o mesmo obsequio , para ser completa a nossa satisfação."

"Quando sahi de minha casa já fiz tenção de cá jantar hoje." Tornou Emilio de Almodovar a Augusto de Sandomil , para fazer conhecer a Sofia que só por sua causa aceitava o convite de seu pay , com franqueza propria de quem por tanto tempo os havia hospedado.

"É com verdadeiro pezar que perco tanta ventura ; minha may está só, devo fazer-lhe companhia , visto que minha irman não vai jantar com ella. Julia! A que horas queres que venha buscar-te?"

"Ás nove."

"Tão cêdo!" Dice a innocente Sofia.

"Tens razão ; quando elle quizer : quanto mais tarde vier menos tempo gozará tua amavel companhia."

E Francisco do Sardoal sahiu dâ sala com o coração esmagado por essa fraze— tão cêdo ! — que nos labios de Sofia expressava a mais gelada indifferença , considerando-o só como o irmão , ou antes um criado grave que tinha acompanhado sua amiga , e que á noute voltaria buscá-la.

Julia tirou seu lindo chapeo de seda côr de rosa , sua côr favorita , deixando ver seus lindos cabellos perfeitamente anellados. Trajava um vestido de gros de Napies côr de bronze , com o qual parecia mais bella ; e na presença della e de Sofia, muitos hesitariam na escolha.

A harpa estava do mesmo logar em que Sofia a deixara , quando acabou de tocar ; o piano estava aberto ; e Julia não quiz perder o ensejo de um combate leal, antes de empregar outros meios de conquistar o coração desse homem que tinha acabado de ouvir tocar Sofia.

De proposito foi para o pé da harpa, como para examiná-la ; mas o seu verdadeiro fim era para que lhe pedissem que tocasse ; assim foi ; Augusto e Sofia instaram com ella , que cedeu por fim de uma amavel resistencia , pondo por condição tocar um duo, em que sua amiga a acompanhasse no piano. Havia nesta sua capitulação o pensamento reservado , de fazer sobre-sahir os seus talentos á custa da posição mui secundaria , não só das vozes do piano, mas do acompanhamento obrigado que devia fazer-lhe sua amiga.

Emilio de Almodovar, como se não comprehendesse, ou não quizesse comprehender sua tatica feminina , aproximou-se do piano , attento unicamente em voltar as folhas da musica , que estava diante de Sofia. E Julia tinha de parar ás vezes para ella mesma fazer esse serviço; occultando o secreto despeito de se ver esquecida a ponto de lhe faltarem até com esse tributo ordinario de amabilidade , que os homens bem educados pagam ás damas as mais indifferentes para elles , quando sabendo musica , como Emilio de Almodovar , estam ao lado dellas no momento em que tocam uma peça , cuja musica teem defronte em uma estante. E mordia os beiços com raiva , sem que perdesse de vista um só momento o exacto desempenho dessa peça , que Emilio não ouvia , porque encostado ao piano alli parecia prezo pella força de um iman poderosissimo.

"Perfeitamente ! Senhora D. Julia." Exclamou Augusto de Sandomil.

"Muito bem, minhas senhoras." Dice Emilio , como acordado pella voz do pay de Sofia.

Julia para disfarçar sua colera , aceitou o beijo que Sofia acabava de dar-lhe com a maior candura ; e correu para o quarto do toucador della , com a confiança que dá a amizade , entre duas pessoas de sua idade e sexo , habituadas a longa convivencia.

Emilio de Almodovar foi para junto de Augusto de Sandomil ; e tendo meditado alguns momentos sobre a gravidade daquillo que ia dizer ; dirigiu-lhe estas palavras :

"Poderia eu fallar um momento com V. S.a em particular ?"

"E porque não ? Se V. S.a quer, vamos para o meu gabinete."

"Será melhor."

E Augusto de Sandomil apoiado no braço de Emilio de Almodovar , e em uma de suas moletas , com elle sahiu da sala.

Deixemos por alguns instantes o pay e o amante de Sofia , para devassarmos o que se passa no quarto de seu toucador , onde entrára após sua amiga.

"Não fazes ideia dos martyrios que elle soffre por teu respeito ! ... Se és minha verdadeira amiga , poem termo a seus tormentos ; aliás verei definhado morrer por tua causa esse irmão que eu estimo tanto."

Julia apertava nas suas as maons de Sofia , em quanto lhe dizia estas palavras no tom mais supplicante e meigo; e Sofia absorta contemplava-a como admirada daquella tão estranha declaração , e ainda mais estranho pedido.

"Teu pay de certo não recusará uma união que é tão rasoarel ; esse é o maior empenho de minha may e o meu , porque o amamos como elle merece. Se alguem podéra perder , fora eu ; porque sendo a nossa casa toda vinculada , em maior dependencia ficaria ; mas estou certa que , tendo-te por cunhada , em vez de um irmão amigo , terei dous que disputarão entre si qual me dará mais provas de amizade.

Sofia surprehendida , não podia responder-lhe ; os discursos de Julia explicavam a melancolica reserva de Francisco do Sardoal , cujas boas qualidades respeitava ; e teve pena de ser causa involuntaria de seus malles , que sua irman lhe pintava com as cores mais vivas da eloquencia de uma amizade fraternal entusiastica , expressada por uma alma ardente , e uma imaginação vivissima , que tem o maximo interesse em convencer.

Se o sacrifício de seu irmão lhe conviesse, empregaria ella para completa-lo a mesma lingoagem apaixonada que naquelle momento empregâra para conseguir sua ventura. O seu fim unico era desviar Emilio de Sofia ; e este meio era por certo o melhor de todos.

A lealdade de Sofia tinha a luctar com o refalsado caracter de sua amiga ; a sua docilidade tinha a combater com a perseverança mais tenaz do genio mais orgulhoso. Era batalha bem desegual !

"O que me dizes surprehende-me ! Mas que culpa tenho eu de não poder amar teu irmão ? Conheço que a mulher que elle honrar com sua escolha ha de ser feliz , porque a cercará de todas as affeiçoens mais ternas e delicadas. Sei que meu pay estimaria muito este enlace de nossas familias. Avalio a bondade de tua may , e tua constante amizade... porém , por quem és, minha Julia , não tornes a fallar-me em tal... Não imagines o mal que fazes a meu pobre coração..."

Era esta ultima fraze a que Julia esperára ouvir para servir-se della como de uma arma invencivel. Conhecia o coração de sua amiga ; calculava a extensão de sua generosidade pella intensão de seu egoismo ; e das virtudes alheias queria tirar o proveito a beneficio de suas infernaes combinaçoens.

"Como assim o exiges , nunca mais te fallarei em assumpto que pode magoar o teu coração , cujos segredos respeito , sem querer indagar... visto que não mereço [...]

O ente venturoso está cercado de uma atmosféra de luz , que lhe circumda o rosto de uma aureola de felicidade expansiva , que parece querer communicar a todos os seres que o rodeiam. A alegria é o thuribulo mysterioso em que ardem os suavissimos perfumes , que arrobam a alma , embriagando-a de delicias.

Retrato imperfeito do Eden , em que nossos primeiros pays foram felices antes de sua desobediencia , porque nos foges tu deante os olhos quando queremos contemplarte ? Porque no momento em que queremos debuxar-te , desappareces envolto nas nuvens da saudade , ó transumpto mui querido ? Nesses tão rapidos instantes em que fascinados por tua formosura podemos enxergarte, mal vimos tuas feiçoens mimosas; estampadas em nossa alma ficaram ellas, como a imagem traçada em lamina tenuissima de prata pellos raios do sol atravez o daguerreotypo , ante o qual passou ave Agoureira que lhe descompôz as formas , quebrando esses buris de ouro , que o genio do homem roubou ao astro do dia, para desenhar com elles.

Felicidade ! Quem poderá descrever-te ? O venturoso ? Não ; sua ventura o faz cego , que nào vê ; todo embebecido em goza-la. O infeliz ? Não ; como traçar as feiçoens de um ente que elle não viu nunca?

ou se o viu , fugiu-lhe , deixando-o nas trevas da tristeza , que lhe sepultam a alma na profunda escuridão do desespero ? O indifferente ? Não , que os não ha no mundo ; todos correm apôs ella ; todos querem fixála ; poucos porem a encontram cá na terra, e nenhum a fixou nunca. Oh ! que seria delles se uma fé innata em todos elles lhes não desse a esperança de encontrá-la ao cabo , alem da campa , nessa bem-aventurança que elles não concebem , mas dezejam como derradeiro alimento do coração ? !

As lagrimas da melancolia , as rugas da tristeza , pôde qualquer debuxá-las ; porque as lagrimas queimam as faces, a tristeza sulca o rosto , deixando impressoens profundas e duradouras. Os soluços comprimem o coração , os ais dilatam-o ; e podem contar-se as suas systoles, e diastoles pello numero das dores agudissimas que o feriram. Um por um podemos enumerar os graons negros que cahem da ampulheta da existencia na copa do passado ; as rarissimas areias de ouro , que marcam os momentaneos instantes de felicidade , brilha ao cahir nessa ampulheta, mus somem-se e perdem-se logo , sepultadas debaixo das outras negras que sem interrupção por cima lhe vam cahindo. A morte vem quebrar essa ampulheta , e os graons negros e dourados que a encheram , cahem na terra do sepulchro ! As maons dos anjos alli virão estremar , entre essas areias , aquellas que marcaram na existencia do finado os actos de virtude, os pensamentos nobres e generosos , os grandes sacrifícios em favor da humanidade , para levá-las ante o throno [...]

As joias que acabava de examinar eram presente digno de tão bella desposada ; e ainda que todas riquissimas , nenhuma dellas lizongeára tão agradavelmente a sua alma , como a manilha em que estava o retrato de seu futuro esposo.

É necessario voltarmos um pouco atraz para explicar a maneira por que Sofia conseguiu esses momentos de ventura , após a confidencia que, no capitulo antecedente, dicemos lhe fizera Julia do Sardoal.

A vinda inopinada da aia de Sofia , para annunciar que o jantar estava na meza , interrompeu o dialogo , felizmente no momento em que Julia poderia talvez abusar, ou da generosidade de Sofia , ou do segredo mais reservado de seu coração. Nesse intervallo tinha Emilio de Almodovar feito a Augusto de Sandomil a declaração de que amava sua filha apaixonadamente , e que para ser venturoso só lhe faltava que lh'a concedesse como esposa. Ao entrarem na sala as duas damas , Augusto de Sandomil, com a franqueza de cavalheiro incapaz de occultar o que dentro de sua alma se passava , e muito mais ainda incapaz de traição ; não querendo demorar um momento nova que tão grata devia ser para sua filha , e para aquella que julgava sua amiga verdadeira , tomou a mão de Sofia e a de Emilio de Almodovar dizendo para este : "Estou persuadido que minha filha não carece de minha authoridade de pay para aceitar com muita satisfacção a honra que V. S.a quiz fazer-lhe , e fazer-me, pedindo-a para esposa."

O que Julia acabara de dizer-lhe, a presença della que ouvia seu pay naquelle momento , e que via o silencioso prazer com que Emilio aguardava sua resposta ; tudo Sofia esqueceu nesse instante solemne e não esperado , para dar logar á expansão do prazer mais vivo , traduzido pellas mais formosas lagrimas , e por um beijo de reconhecimento o mais puro , impresso na mão de seu pay, que julgára ser para ella o anjo que a conduzia á bemaventurança, após soffrimentos infinitos.

Julia do Sardoal surprehendida , ou antes prevenida em meio do seu plano de infernal maldade , sentiu todo o despeito do amor e orgulho offendidos ; a raiva deu a seu coração as forças do desespero ; seu rosto denunciaria a perversidade de sua alma , e o negrume de seus projectos , se alguem naquelle momento reparasse na expressão de sua fisionomia ; porem a scena que se passava era demasiado interessante para os outros , e desapercebida passou a palidez , e tremor convulsivo dos beiços de Julia, podendo ella dominar sua emoção a ponto que , quando nella attentaram , tinha já dado ao seu semblante a expansão da alegria que uma amiga verdadeira teria no rosto , testimunhando o quadro do prazer de sua amiga mais querida.

Sofia , ao encontrar os olhos delia , sentiu os innocentes remorsos de adquirir sua ventura á custa da de sua amiga ; e correu a lançar-se nos braços della , derramando copioso pranto, como para pedir-lhe perdão de sua felicidade. E Julia apertou-a contra o seio com a ternura do tigre que abraça a sua preza antes de succar-lhe o sangue.

Emilio de Almodovar , que talvez conhecesse o secreto despeito de Julia , teve o barbaro prazer de augmentá-lo , tratando sua prima com tanta amabilidade, quanta indifferença lhe havia mostrado em quanto ella tocara harpa.

Francisco do Sardoal voltara cêdo buscar sua irman que, pretextando uma leve indisposição , sahiu logo , para na solidão do seu quarto poder derramar lagrimas precursoras de vingança; para poder meditála na solidão da noute , e forjá-la, nas vi vissimas fragoas de sua desesperação. E a innocente Sofia , enganada pellas apparencias de sua refalsada amiga , tranquilla e docemente repousava no berço da esperança , aguardando o dia já marcado para seu mui proximo cazamento.

As escripturas estavam feitas , e assignadas ; rivalizando em generosidade Augusto de Sandomil com Emilio de Almodovar, no dote e arrhas , nos vestidos , enfeites , e joias. Cercada das affeiçoens mais ternas , adorada pellos entes mais caros ao seu coração , não trocára Sofia a sua ventura pella dos anjos. Não sabia ella quanto sam transitorias as felicidades deste mundo!...

Passava os dias contando os momentos que faltavam ainda para aquelle em que, ante a presença de Deus, receberia a fé de seu esposo ; e as longas vigílias das noutes, projectos de ventura não interrompida , as faziam parecer sonhos agradaveis, cujo acordar eram sonhos mais agradaveis ainda.

Sua ventura se communicava a todos quantos a cercavam ; todos os seus criados e criadas tinham recebido della e de seu pay presentes , segundo sua cathegoria ; e Joanna, a aia de Sofia , tinha sido a mais generosamente favorecida. Ha todavia caracteres tão interesseiros , que sam insaciaveis ; ha caracteres tão vis e tão baixos, para quem a gratidão só é meio de alcançar mais favores ; e para quem o ouro é seducção irresistivel , porque com elle julgam comprar para a velhice uma independencia certa , que nunca poderam ter , vivendo sempre na completa dependencia da domesticidade. Nelles a amisade é servilismo torpe , que vendem a quem mais dér por essa apparencia do sentimento mais nobre e duradouro ; a modestia , é hypocrisia , sob cuja capa de refalsadas virtudes disfarçam os sordidos andrajos de sua alma ; e o desinteresse , é cobiça que cresce com os donativos que indevidamente recebem. Tal era Joanna, a camareira de Sofia.

Por uma delicada attenção , que facilmente comprehende quem está affeito a viver na alta sociedade , tinha Emilio de Almodovàr trazido as joias de sua desposada ; porém por esse mesmo motivo as entregára a seu pay , para que , depois de as ter approvado , as entregasse a Sofia, que só devia usa-las no dia de seu casamento ; e porisso nós vimos a impressão que lhe fizera a recepção da manilha , e o prazer que teve ao contemplar o retrato. Não era por certo a riqueza das joias , nem o primor com que estavam trabalhadas que lizongeava seu coração ; era sim a maneira por que tinha adivinhado seu mais grato dezejo — o de ter o seu retrato em uma pulseira. — Uma medalha de trazer ao peito não satisfaria seus olhos a cada momento , como trazendo no braço essa algema, em que podia ver com mais facilidade o transumpto daquelle que a captivára por toda a eternidade.

Mal pensava ella que naquelle instante em que se julgava a sós contemplando esse retrato , alguem mais tinha entrado no seu quarto, surprehendendo-lhe assim a silenciosa expressão com que mostrara á copia todo o amor com que amava o original ! ...

Um leve ruido fez que voltasse a cabeça para o lado da porta; o rubor do pêjo assomou ás suas faces ; era seu pay , e Emilio de Almodovar , que sem ella os sentir, presencearam a scena que atraz descrevemos.

Nas maons de seu pay , occultou seu rosto lindo ; entanto que um beijo , dado nas suas por Emilio de Almodovar , lhe agradecia diante delle o beijo que elle vira dar em seu retrato.

Ha situaçoens taes na vida que o descrevê-las fora tirar-lhes toda a poezia dellas ; e seguramente esta que esboçámos é dessa natureza.

"Um criado da Snr.a D. Emilia do Sardoal , veio trazer esta carta para a Snr.a D. Sofia."

Isto dice Joanna ao entrar no quarto, e entregando uma carta a Sofia.

"Podes lê-la, minha filha ; o Snr. Emilio de Almodovar dá licença."

E Sofia maquinalmente abriu a carta , para disfarçar a emoção que a surpreza lhe tinha causado.

Seu pay quiz examinar as joias em quanto Sofia lesse ; e Emilio , sem descravar os olhos della , viu com pasmo que suas maons tremiam , que seu rosto empalidecia , e que seus olhos se turvavam ao mesmo passo que ia lendo aquella carta , que um secreto presentimento lhe dizia seria fatal para elle.

Sofia , sem acabar a leitura , ia para rasgar aquella carta de máo agouro ; porém , vendo que seria uma desattenção grosseira , guardou-a no seio , que agitado denunciava a impressão profunda que aquella carta lhe causára , mas que queria occultar cuidadosamente , como se dependesse a sua felicidade dos segredos que ella continha.

Emilio sentiu como um dezejo invencivel de pedir-lhe aquella carta, que ella acabava de guardar; porém fôra injurioso para ella , e pouco delicado para elle, um tão estranho pedido.

Joanna , que esperava a resposta de sua ama, perguntou-lhe se o criado de D. Emilia do Sardoal devia esperar que ella escrevesse.

"Não ; eu lhe mandarei a resposta."

E seu amante mais surprehendido ficou do tom de voz com que Sofia pronunciou aquellas palavras.

Que mysterio será o dessa carta?

CAPITULO VIII

AS CARTAS.

Em cima de uma papeleira ardia em um gabinete uma luz trémula , que vacilava agitada pello ar cortado com o movimento que fazia um homem passeando de um para outro lado, como absorto em cogitaçoens profundas. A alcatifa avelludada que cobria o pavimento abafava o ruido de seus passos ; e o pavoroso silencio da noute só era interrompido pelloa suspiros intercadentes que partiam de seu peito , e pello aziago uivar dos caens que sem dono percorrem as ruas de Lisboa , por essas horas mortas que precedem a madrugada.

Semelhante ao lobo prezo em gaiola estreita , guarnecida de varoens de ferro , que no continuo caminhar exhaure as forças e a vida , para ver se pôde libertar—se da prizão em que o encerraram , assim elle naquelle pequeno recinto passeava ha longas horas buscando na ideia a maneira de quebrar as cadeias que o prendiam , e de alcançar a liberdade de sua alma captiva pello amor , e aguilhoada pello ciúme , ou antes excitada pella terrivel consideração de ver trahidos os protestos mais solemnes , falseadas as provas mais evidentes, quebrados os laços mais fortes para o coração.

Seus olhos ressequidos por essa dor que não tem lagrimas em que possa diluir seu fel amargo, faiscavam chammas , ateadas na sua alma pello attrito do mais acerado amor, no mais silicioso desprezo para com o ente que o produzia. A mão esquerda pendia-Ihe em crispaçoens convulsas e involunta rias , como querendo despedaçar um objecto que , sem forças para resistir-lhe , se deixa va esmagar sob seus dedos musculosos. Com a direita apertava o peito , mesmo sobre o logar do coração ; tinha rasgado sua camiza de cambraia de linho , para de mais perto poder soffocar lhe as pulsaçoens febris que o agitavam. O sangue descorria das feridas que fizera com suas proprias unhas, como querendo dilacera-lo ; e o sorrizo dos condemnados ao martyrio eterno assomou a seus labios por sentir alivio á dôr com um soffrimento novo, o da sensação desagradavel do sangue , que , arrefecendo , se coagulara sobre o seu peito.

Seus longos cabellos pretos estavam em desordem ; o seu vestuario em desalinho. Um suor frio e copioso lhe inundava o rosto pallido e desfigurado como se a cholera o tivesse tocado com suas azas pestilentes ; as caimbras do cançasso tolhiam seus passos , assim como costuma acontecer aos naufragos quando após longo nadar conhecem que sam inuteis seus exforços para chegar á praia desejada , e perdidas as esperanças derradeiras se deixam ir á tona da agua despedaçar nos rochedos , assim elle foi assentar-se junto á papeleira aberta onde ardia essa luz amortecida e quasi gasta.

A vela de stearina côr de rosa dava aos objectos que alumiava uma côr ensanguentada , que augmentava a agitação daquelle que os via naquelle momento. Uma pequena caixa de marroquim verde muito chata , e duas cartas , que pareciam amarrotadas por continua leitura attrahiam suas vistas , fixando-as de uma maneira terrivel. Uma e mil vezes leu essas cartas fataes ; uma e mil vezes abriu essa caixa de marroquim verde ; e como se quizesse duvidar ainda, uma e mil vezes passou a mão por cima dos olhos para affugentar delles essa illusão real que os fascinava. Não podendo porém resistir á evidencia daquelles documentos que tinha ante si , excitado pello furor que muito tempo concentrara para incitar-lhe as furias, de um salto se ergueu neste capitulo; elle o terá facilmente adivinhado ; falta porém informa-lo dos motivos que o levaram á situação violenta em que o temos descripto. Estam duas cartas e uma caixa de marroquim diante delle , e esses objectos foram os que excitaram todos os sentimentos com que tem luctado , e lucta neste momento.

Uma das cartas diz assim.

"Uma mão mais que amiga , e que nem ao menos conhece , ousa preveni-lo de que é atraiçoado pella maneira mais infame. Sofia de Sandomil tinha dado a Francisco do Sardoal direitos mais antigos, que a honra de um homem de bem não quererá disputar-lhe á face da egreja. Ella possue ainda o retrato de seu primeiro amante ; e a condescendente Joanna a troco de algumas moedas de ouro venderá os segredos mais occultos de sua ama. Hábil em toda a casta de seducçoens , pouco lhe custa em quanto é tempo evitar as consequencias de uma inconsideração desculpavel , quando não ha, como agora , quem previna a tempo. Sendo bem certo o dictado — Quem me aviza meu amigo é —"

A caixa de marroquim verde continha uma medalha de ouro lizo com o retrato de Francisco do Sardoal por um lado , e pello outro uma firma de ouro com um F e um S enlaçados, postos sobre um assento de trança de cabellos castanhos.

A outra carta era concebida nestes termos.

"Illm.a e Exm.a Snr.a Desfeitos por V. Ex.a os laços que tão docemente nos ligaram ; quebrada por V. Ex.a a cadeia mystica , e sagrada que nos unia tão ternamente , entreguei a minha irman todos os penhores , e cartas que de V. Ex.a tinha recebido ; respeitando quanto devo a santidade do juramento que V. Ex.a vai proferir ante os altares , só me atrevo a pedir-lhe queira fazer chegar á mão de minha may pella maneira que julgar mais conveniente , o retrato que , em dias mais ditosos , V. Ex.a quiz possuir. Passando do poder de V. Ex.a para o daquella que me deu o ser satisfaço ainda uma divida de amor; e ella me perdoará o tê-la amado menos do que amei , amo , e amarei em toda a parte que eu viva a V. Ex.a , de quem só por desventura posso assignar-me— Criado mais attento e respeitador — Francisco do Sardoal. — P. S. Quando V. Ex.a receber esta minha carta , se me não engano, não terá V. Ex.a duvida em satisfazer minha derradeira supplica."

A letra da carta anonima era visivelmente disfarçada. E por mais que Emilio de Almodovar consultasse comsigo mesmo quem poderia ser o author delia , não podia atinar em descubri-lo. Sua imaginação perdia-se no oceano de conjecturas , improvaveis todas , e impossiveis a maior parte dellas. Porem tinha diante de seus olhos, que o não enganavam , o retrato de Francisco do Sardoal ; desse amigo traidor e revia suppondo , o que ha pouco reputara seu melhor amigo , capaz das mais nefandas iniquidades , julgava-o incapaz de se esquivar covardemente a um repto de cavalheiros.

Pensando como a maior parte dos homens, ou antes como quasi todos, reputava sagradas , mais que todas , as leys do pundonor ; e assim como elle não hesitaria em aceitar um desafio , julgava que qualquer outro homem , que fosse cavalheiro , o aceitaria tambem. Na destreza do exercicio das armas , e na azarosa decisão dellas, consistia para elle uma das maiores garantias que a sociedade moderna conservou , tolerando-a , ao homem primitivo da natureza , que na força e habilidade de seu braço , no valor de seu coração tinha o seu proprio juiz , e o executor de sua sentença. Acreditava elle que as leys civis e criminaes tinham uma lacuna immensa em suas disposiçoens , e que essa falta na legislação social era preenchida pello codigo da natureza , escripto pellos cavalleiros da idade media com os ferros de suas lanças sobre seus broqueis heraldicos. A injuria que o homem do povo recebe do homem do povo, castiga-a o juiz correccional em audiencia publica; a injuria que o cavalheiro recebeu do cavalheiro deve castigá-la um tiro de pistola , uma estocada de florete , ou um golpe de espada , em um logar remoto , sem testemunhas, ou só com as necessarias para attestarem que o assassinato foi legal , e segundo as ordenaçoens estabellecidas entre os povos chamados civilisados ! Antithese perfeita da legislação publica das naçoens , e do codigo divino do christianismo , porque motivo o duello é considerado como um mal necessario , e impossivel de extirpar? Porque a maxima ley social é a moralidade ; porque a moralidade só pode conseguir-se por meio das virtudes particulares, que excluem os crimes occultos contra os quaes a ley civil não tem acção ; porque essas virtudes de todos e de cada um dos homens , só as pode produzir uma ley mystica que os obrigue e prenda em todos os actos da vida, em todos os pensamentos della ; e essa ley, o christianismo , desgraçadamente é aquella que mais tem sido depreciada , esquecida, se não desprezada na educação social dos povos modernos.

O perdão das injurias, que é o mais nobre attributo da caridade christan , porque é o esforço maior da virtude que obriga o forte a suspender sua vingança contra o fraco , o fraco a supportar a offensa do forte com a sublime resignação do soffrimento ; essa legislação de que nos deu exemplo assombroso o Redemptor, pedindo a seu Eterno Pay que perdoasse áquelles que o martyrisavam , e escarneciam, com affrontosas injurias , sendo a baze da ley evangellica , tendo aliás influido na legislação criminal dos povos christaons , abolindo a horrivel pêna de talião , não conseguiu ainda apagar de todo as disposiçoens pagam da vindicta social , e satisfação da vingança individual , sanccionadas em todos os seus codigos penaes. O juizo de Deos , essa fórma de provar a innocencia , e a justiça por via do combate , do fogo , ou da agoa , tinha por baze a fé viva e verdadeira de nossos avós ; os combates singulares , ou duellos do dia de hoje não sam outra cousa mais que a expressão do orgulho sustentado pella confiança que dá a força ou agilidade , em desprezo das leys divinas e humanas , em menoscabo das regras não escriptas , mas imprescriptiveis , do senso commum. Não pensava assim Emilio de Almodovar, cego com o despeito de se persuadir que era um crime imperdoavel em Sofia o ter amado outro homem , embora elle o tivesse supplantado em seu coração !

Não quizera deitar-se em toda a noute , consultando o que devia fazer ; tomada a resolução que dicemos aguardava o cumpleuiento delia ; qualquer que fosse o resultado do desafio , estava certo da impunidade vingando-se ; e caso succumbisse ? ... sua alma ; obsecada pello ciume , ou reputava certo seu triunfo , ou se perdia nas ambages infinitas do labyrintho da incredulidade.

Uma expressão de prazer deu fogo a seus olhos , amortecidos então por suas derradeiras cogitaçoens. Sentira os passos do criado que enviára , attravessando naquelle momento a sala immediata , e que devia trazer-lhe a resposta de Francisco do Sardoal.

CAPITULO IX

A RESPOSTA.

Eram dez horas da manhan quande Joanna entrou pella terceira vez no quarto de sua ama, que estava dormindo ainda em somno profundissimo. As cortinas de cassa branca estavam apanhadas e prezas por fitas de setim côr de canna ás quatro columnas de seu pequeno leito de acajú , tão polido como a mais bella tartaruga ; a colcha tambem de cassa branca , e bordada de pequenos ramos soltos , sobre outra de setim de Macáo , da côr das fitas que prendiam o cortinado , dezenhava as ellegantee formas da bella adormecida, da qual o lindo rosto se via em meio perfil , reclinado sobre uma branda almofada de pênnas, contrastando sua rosada côr com a alvura da bretanha da fronha da almofadinha em que repousava , e da dobra do lençol que fazia parte da moldura que guarnecia quadro tão formoso. Sua touca de dormir , singelamente enfeitada com as mais bellas rendas de Setubal , tinha cahido para um dos lados do travesseiro ; e a côr de seus cabellos castanhos atados todos em nó , fazia realçar mais sua belleza nessa posição, que podéra servir de modelo ao pintor que quizesse retratar o casto somno de uma virgem. A sua respiração era tão leve como a briza imperceptivel da mais formosa manhan da primavera ; e a não ser o regular movimento de seu peito dilatando-se e contrahindo—se , que agitava docemente as roupas , poderia dizer-se era uma bellissima estatua de cera que representava o dormir da innocencia.

Joanna esteve alguns momentos olhando para ella, com esse olhar sinistro da inveja, que não perdoa á ventura alheia o crime da felicidade. De quarenta annos de idade , e excessivamente feia , quizéra ter a juventude e formosura de Sofia ; na baixa condição de sua criada , accusava a sorte de injustiça , porque a condemnára a obedecer-lhe ; pobre , quizéra ser tão rica como ella ; forçada ao celibato por sua fealdade , e mais ainda pella aridez de sua alma , quizéra ter para esposo um homem que dominasse ; mais nobre, formoso e rico do que aquelle destinado para o futuro marido de sua ama. Quem visse porem a compostura de seu rosto , seu modesto ademan, sua imperturbavel seriedade , a exactidão com que executava as ordens de Sofia , e o cuidado com que prevenia os seus dezejos , não diria por certo que o egoismo mais torpe era o movel unico de todas as suas acçoens, e pensamentos. O mais habil fisionomista se enganaria ao examinar suas feiçoens amorphas ; o phrenologo mais dextro no exame da configuração de seu craneo se desenganaria de que as virtudes e os crimes não sam actos necessarios, dependentes só da organisação e disposição das proeminencias e cavidades delle ; tanto um como outro se veriam obrigados a confessar o grande principio da liberdade moral de que Deus dotou o homem , para com justiça poder pedir-lhe estreitas contas do uso dessa faculdade divina , que o distingue dos outros animaes , e constitue vicerey da natureza ; e proclamariam , com o sublime orgulho da humildade christan , a baze eterna do codigo constitucional da sabedoria , que assenta neste artigo unico— o temor de Deus. — Contra o seu costume dormia ainda Sofia áquellas horas, e seu prolongado somno favorecera demasiado o cumplemento da irresponsabilidade de Joanna, que tendo sahido de madrugada, podera voltar sem que sua ama suspeitasse que sua ausencia era uma prova de sua infidelidade. Inquieta , não pellos remorsos , mas pello receio de que sua traição fosse descuberta , entrara ás oito horas pella primeira vez em seu quarto , e ficou socegada vendo-a dormir profundamente ; voltara segunda e terceira vez, e achando-a no mesmo estado , poude friamente calcular o emprego que daria ás notas do banco , que na vespera havia recebido , como preço de sua traição , que julgava nunca seria descoberta ; não pensando que ha um Deus que não carece de espias para saber com exactidão cada uma de nossas acçoens mais occultaa , cada um de nossos pensamentos mais reservados !

Talvez muitos de nossos leitores, ao verem Sofia adormecida , quizessem encontrar aqui a descripção da scena de um lubrico acordar, iniciando-se em todos os mysterios do toucador ; não será a penna do románcista christão a que debuxe esses quadros , que a litteratura moderna se compraz em traçar caligraficamente , para seduzir os olhos , pervertendo o coração ; preferimos o interesse real da utilidade social , ao efemero triunfo de uma gloria litteraria adquirida á custa da moralidade. Antes queremos que os nossos trabalhos não sejam lidos , do que o pèjo assome ás faces da modestia , lendo-os.

A carta que na vespera tinha recebido Sofia da parte de D. Emilia do Sardoal , e que tanto excitara sua alma , não podendo occultar completamente a Emilio de Almodovar a alteração de sua fisionomia , era essa mesma carta que no capitulo antecedente vimos em poder delle justificando o ciume , e excitando-o á vingança contra quem a havia escripto , e contra quem era dirigida. Essa carta porem estava em cima da meza de Sofia , que julgava ser a unica pessoa que a lêra, e amarrotára ao metter no seio. Pouco depois de a haver recebido , e sob um pretexto qualquer , fôra guarda-la em uma gaveta, no seu quarto de dormir, aonde a tornou a achar quando, depois de almoço, foi busca-la para responder , não áquelle , cujo nome a assignáva , mas a Julia do Sardoal , a quem escreveu a seguinte carta :

"Minha querida Julia. Não posso descrever-te a surpreza e indignação que me causou a recepção e leitura dessa carta , cuja letra parece de teu irmão , e cujo nome está assignado nella. Nem posso capacitar-me que fosse elle quem a escrevesse , a não ser que um accesso de loucura lhe transtornasse a memoria , e alterasse o coração, fazendo-lhe crêr que uma amisade de irman o authorisava a suppor outros sentimentos, da minha partce , que não fossem os da estima mais respeitosa para com as suas bellas qualidades. O retrato delle é verdade que estava em meu poder , tendo-o tu trazido um dia para que eu dicesse a minha opinião, como artista, ácerca do merecimento da pintura; dizendo-me tu que elle t'o havia dado porque , tencionando viajar a Europa , queria deixar-te aquella prenda, para que quando voltasse podesses fazer a comparação da mudança que tivesse feito o seu rosto durante a sua ausencia. Esqueceu-te leva-lo outra vez naquelle dia ; e sendo-me estranho , bem mais que a ti, não admira por certo que me não lembrasse enviar-t'o, visto que o não reclamavas. Avalia pois , minha Julia , quanto me custaria lêr essa carta, que reputo injuriosa; e quanto mais me custará o escrever-te esta, incluindo-a , e o retrato de teu irmão ! Como fallar-te de minha felicidade seria abusar do teu e do meu coração , termino esta segurando-te , que o meu pezar unico é de não poder fazer a tua ventura, senão á custa de um sacrifício maior que o da vida ; sendo sempre a tua melhor amiga. — Sofia de Sandomil.

Acabando de escrever esta carta respirou mais desafogadamente , como aliviada de um trabalho penosissimo. As confidencias que Julia lhe fizera , e o que mais se passou nesse dia tão feliz para Sofia, collocavam-a para com sua amiga em uma posição difficil e melindroza , muito mais aggravada pella carta inexplicavel de seu irmão , a que forçadamente era obrigada a responder ; não tanto para justificar-se com Julia, que bem conhecia a verdade, como para enviar-lhe o retrato de Francisco do Sardoal , objecto para ella indifferente, que não queria , nem devia continuar a ter em sua mão.

Mais de uma vez examinou se a fórma da redacção poderia offender a susceptibilidade de Julia , e ficou persuadida que, tendo ella mostrado tanto valor , ou antes indifferença acerca de um objecto que muito mais devia interessá-la depois da confissão que lhe fizera , não estranharia que repellisse a injusta accusação de Francisco do Sardoal , a respeito da imaginaria retribuição de seu amor , e mais imaginario rompimento de laços, que nunca haviam existido.

Fechou a sua carta juntamente com o retrato e carta de Francisco do Sardoal, e chamou a sua aia para que mandasse um criado levá-la ao seu destino ; porém Joanna não veio ao chamamento de sua ama. Puchou pello cordão da campainha do seu quarto , tocou-a umas poucas de vezes , sem que ella apparecesse. A distancia do seu quarto á sala em que os creados graves costumavam comer era mui grande , persuadiu-se que não teria ouvido , e que ainda estariam a almoçar ; não era urgente que a sua carta fosse enviada meia hora mais cedo ou mais tarde; antes quiz esperar do que com a sua impaciencia interromper os curtos instantes de liberdade que mais apreciam os que sam obrigados a servir , e que em geral elles prolongam o mais que podem ; convencida como estava de que os criados devem tratar-se com bondade, não exigindo delles sacrifícios desnecessarios por caprixo, para que os façam voluntarios quando a necessidade os reclama. [...]

mento ; ficou pensando se ella teria mostrado dezejo de algum objecto ; porque sabia que seu pay quereria prevenir a Emilio de Almodovar na satisfação delle. Porém Joanna não viera , e Sofia perdendo em fim a paciencia resolveu-se a ir saber a causa de sua demora, e a da sahida da carroagem.

Tinha de atravessar muitas salas antes de chegar áquella em que os criados comiam , e para onde se dirigia em busca de Joanna ; ouvindo porém ruido de passos na direcção do quarto de seu pay, para alli se encaminhou , porque mais depressa podia saber se elle tinha sabido.

Qual seria a sua surpreza vendo seu pay completamente desfigurado , a quem Joanna sustentava a cabeça, borrifando-a com agoa fria , e a quem os demais criados cercavam em torno ao leito , ministrando-lhe cada um os soccorros que a cada qual lembrava poderiam fazer reanimá-lo da syncope em que repentinamente havia cahido ? !

CAPITULO X

A DESPEDIDA.

Ajoelhada junto á cabeceira do leito de seu pay , estava Sofia de Sandomil pallida como se a morte lhe tivesse cortado a hastea da existencia ; a cabeça pendia-lhe sobre o peito como flor queimada pello sol ardente da canicula ; e seus olhos tão lindos estavam embaciados pella dór que os fixava immoveis sobre um objecto que clles não podiam ver , mas que sua alma lhe representava com toda a verdade horrivel de um sonho real , cujo dispertar é mais horrivel ainda. Suas maons apertavam convulsivamente a direita de seu pay , que regelada parecia insensivel não derramando lagrimas sentidissimas pella prematura morte de seu adorado pay ; no entanto que os demais criados tratavam debaixo das ordens do mordomo , de dispor a mortalha , e as cousas necessarias para o funeral de Augusto de Sandomil.

Havia no rosto daquella criada uma expressão indeffinivel ; nem uma só palavra tinha proferido desde o accidente que occorrera tão inesperado , e que a todos consternara tanto. Todavia os suspiros , os soluços , e as lagrimas de sua ama faziam-lhe uma impressão que nós não sabemos traduzir. Era a lucta do crime e da virtude, da commiseração e da crueldade , da generosidade e do egoismo ; era enfim o remorso combatido pella avareza.

Tinha na mão um objecto que occultava debaixo do avental ; e calculava friamente durante os martyrios da dôr de sua ama , se deveria interrompê-los por outros de uma especie differente ; resolveu por fim esperar que Sofia buscasse o novo punhal que devia feri-la , e que ella tinha á mão, prompto para entregar-lho. Custará por certo a accreditar que haja uma alma tão damnada que veja impassivamente o quadro da desventura alheia sem commover-se á piedade ; e mais ainda custará a crêr que esse espectaculo não desarme o braço do ingrato que vai descarregar traidores golpes sobre o peito innocente de um infeliz a quem a gratidão devera proteger ! Desgraçadamente esses caracteres não sam raros ; e com facilidade os encontraremos se descobrirmos a mysteriosa capa que os rebuça , disfarçando-oa entre nós, em meio das diversas classes da sociedade- Não é pois Joanna um ente imaginario; é a personificação do egoismo individual ; é o typo real dos muitos seres dessa especie de monstros sociaes , cujas variedades sam infinitas , porque abrangem toda a grande familia humana , debaixo de todas as fazes que a civilisação lhe tem dado.

As ideias de Sofia de Sandomil confundiam desvairadas a lembrança indistincta , mas horrivel , da scena do passamento que presenceára com a recordação desse longo estado de syncope em que tivera suspensa a existencia ; estava em um accesso febril de delirio , que embargando-lhe a razão pnra pensar lucidamente , deixava livre o sentimento para soffrer intimamente as agudissimas dores da saudade , avivadas continuamente pello echo daquellas palavras derradeiras , que seu coração repetia, como repercutindo o ultimo suspiro de seu pay , que a chamava para dar-lhe a benção da despedida eterna. Não comprehendia ainda toda a extensão de seu infortunio ! ... Como o assombrado pello raio , tinha a sensação da dôr , porém suffocada por ella não conhecia ainda todos os estragos que elle causara , e cujos effeitos só o tempo , e novas dores lhe denunciariam em sua terrivel realidade.

Á sua isolação na terra, ao abandôno em sua orfandade tinha seu pay dado um companheiro e protector; e seu peito amante foi abrigar sua orfandade , concentrando todas as suas dores , na consolação unica dada pella natureza , e estabellecida no Evangelho , o amor conjugal ; Emilio de Almodovar, o esposo escolhido por seu coração , e approvado por seu pay era a sombra da palmeira a que , como o peregrino, se accolhia para fugir do sol ardente e mortifero da desesperação.

Os laços que a prendiam já , e aquelles que no dia seguinte á face dos altares deviam uni-la a elle para sempre; a ausencia absoluta de parentes que naquelle doloroso trance se encarregassem de prestar a seu pay as honras funebres , constituiam Emilio de Almodovar na rigorosa obrigação de fazer todos os officios do mais proximo parente do defuncto ; porisso Sofia de Sandomil ao dispertar desse lethargo de dôr em que jazia , proferiu o seu nome ; talvez persuadida que já sabedor da infausta nova da repentina morte de seu pay, teria acudido immediatamente , para dar as ordens convenientes em tão triste conjunctura.

E Joanna ficou silenciosa sem responder ao primeiro suspiro articulado , em que Sofia pronunciára o nome de seu amante, como o de um Deus cujo soccorro invoca o coração.

"Joanna ! ... Onde está o Snr. Emilio de Almodovar?!"

"Não sei , minha Senhora."

"Pois elle nâo veio ainda? ! ... Não saberá talvez... Vai já mandar chamá-lo..."

"Eu vou, minha Senhora. Ha porém mais de duas horas que elle aqui mandou esta carta para seu pay , que Deus haja ; e como V. Ex.a não estava em estado de a poder ler , porisso só agora a entrego a V.Ex.a."

Dizendo isto, entregou a Sofia a carta que tinha occulta debaixo do avental ; e sahiu do quarto de sua ama, dizendo-lhe que ia cumprir a ordem que lhe dera.

A necessidade de saber o motivo por que Emilio de Almodovar escrevera aquella carta a seu pay , quando todas as manhans vinha pessoalmente ; o dezejo de não retardar um momento a satisfação dessa curiosidade natural em qualquer outra occasião, e que era quazi forçada naquelle momento, fez que Sofia se erguesse do seu leito, onde a escuridão do quarto com as janellas fechadas lhe não permittia lê-la ; e foi ao immediato , o do seu toucador , para saber o contheudo della.

A carta tinha no sobre-escripto o nome de Augusto de Sandomil ; os seus olhos arrasados de lagrimas mal poderam ver que o lacre que a fechava era preto ; e sua mão tremeu convulsa ao quebrar o sêllo das armas de seu esposo.

A morte de seu pay auctorisava-a a devassar os segredos de suas cartas; esta consideração tão amarga , tirando-lhe as forças, fez que ajoelhasse em meio do quarta ante o retrato de sua may ; e a custo léu as palavras seguintes , escriptas pella letra de Emilio do Almodovar, cuja assignatura estava por baixo :

„ Illm.o Snr. Circunstancias que eu não podia prever , nem acreditar sem provas indubitaveis, me obrigam a declarar a V. S.a que o meu cazamento com sua filha é incompativel com a minha honra ; e que a de V. S.a e a della ficarão a cuberto escolhendo para genro aquelle que tinha direitos anteriores aos meus. A minha partida para o Alemtejo , que terá logar antes de V, S.a receber esta carta , e a minha demora indeffinida fóra da capital , facilitarão a V. S.a os meios de buscar um pretexto plausivel e honroso para a ruptura deste cazamento; aceitando eu a responsabilidade de todas as consequencias deste meu procedimento. Deus guarde a V. S.a. Lisboa 7 de Maio de 1840. — Emilio de Almodovar."

Sofia de Sandomil poude ler toda essa carta, porque cada uma de suas letras era um fogo abrazador que lhe enxugava as lagrimas ; porque cada uma de suas palavras era um martyrio novo que soffria , dando-lhe forças infinitas para soffrer ainda mais ! ... Porem quando acabou sua terrível leitura sentiu dentro em si um movimento como estranho; uma revolução se operou em toda a sua natureza ; pôz as maons; ergueu os olhos ressequidos pella desesperação ; e viu o quadro de S. Vicente de Paula...

Era may !...

E o filhinho que tinha dentro do seio acabava de ser engeitado por seu pay !...

FIM DO 1.o VOLUME.


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