ABEL BOTELHO
Amor crioulo
(VIDA ARGENTINA)
NOVELA
Ahi està, si, magnifica, opulenta,
La codiciada tierra...
GUIDO Y SPANO.
SEGUNDA EDIÇÃO
PORTO
LIVRARIA CHARDRON
DE LÉLO & IRMÃO, L.da--EDITORES
RUA DAS CARMELITAS, 144
Livraria Aillaud e Bertrand, Lisboa-Paris
1921
I
Naquela tarde mormacenta de fevereiro, João da Silveira embarcára em Lisboa, no "Almería", com róta à America do Sul. Considerava-se um sem-pátria, agora, na sua bôa e amorável terra, sôbre cujo manso e carinhoso seio não fumegavam senão escombros; terra perdida e maldita, pelo jacobinismo vermelho do 5 de Outubro abalada nos seus fundamentos e furtada criminosamente ao seu destino. Todo o ambiente tradicional em que havia sido criado, êste parasitário rebento do vélho regímen vira-o derruir de roda de si com estrondo. Crenças, privilégios, isenções, benesses e preferências, tôda essa contrafeita armadura de iniqùidade e obscurantismo que sustinha ainda de pé a combalida ficção monárquica, tudo rolára desfeito, num epilepsiado arranco, numa comoção formidável, enquanto invadia ferozmente o espaço em tôrno um caótico fumo de confusão e de treva... e a visão inquieta do futuro envôlta num tôrvo mistério, como um polvoréu de ruína.
Tudo lhe havia quitado descaroávelmente esta estúpida idéa da Rèpublica: os cincoenta mil reisitos que êle, mensalmente, ia ou mandava com tôda a pontualidade receber, a título dum amanuensado hipotético na Junta do Crédito Público; as bôas graças da sua apetecida noiva, a Laurita, filha dum acaudalado burguês e pelo pai abominávelmente educada, a qual agora, com o Afonso Costa no poleiro, já cantava tambêm de papo; e até, -- o seu pensamento hipócrita rematava, -- e até as nobres, as suavíssimas côres da bandeira de seus avós, êsse azul calmo e êsse branco ingénuo, símbolo irrefragável da alma nacional, ora via suplantadas por um vermelho de açougue e um verde de curral, duas tonalidades irreconciliáveis, duas côres ásperas, irritantes, heréticas, como punhais, como blasfémias.
Durante os primeiros meses da República, João da Silveira, como tantos outros, conspirou. Aquecia-lhe a alma êste vago "sebastianismo" solapado no íntimo de todo o bom português, acicatava-lhe o desejo a gulosa lembrança daqueles magros cobres orçamentais que, somados ao activo do seu escasso património, lhe serviam a governar sofrivelmente a vida. Assim, na sua ferina hostilidade contra o novo regímen, concorriam simultâneos a alma e o estômago, uma predilecção ancestral e um instinto devorista. E foi certamente esta dualidade antinómica de inspirações que, embora visando ambas o mesmo fim, cardou a sua actuação de conspirador de todo o carácter excessivo. Porque êste cauto Silveira firmou várias adesões e compromissos, fez nutrida propaganda verbal entre os rústicos, prontificou-se a recrutar gente, enviou mesmo algum dinheiro; mas sem arriscar-se nunca pessoalmente no campo da luta militante. Após a frustrada incursão de Chaves, não quis mais. Os seus 40 anos previsores e calculistas haviam grado em grado esmoitado, na gafa estrutura moral dêste malogrado d'Artagnan, o espírito de aventura. Vendeu a sua reputada vinha do Pinhão, arrendou a linda quinta da Folgosa com o solar «de sete capelas», seu fidalgo berço natal e residência muito em conta quando em apuros de dinheiro; à noiva escreveu «que a sua dignidade, em briga com o seu amor, o forçava àquele exílio doloroso»; e aí o temos agora dobrado com indolência sôbre a amura do "Almería" em marcha, vergado o busto, as mãos pendentes ao abandôno, evitando olhar o manso deslise da cidade donde sentia que lhe vinha um frio vento de repulsa, com as pálpebras froixas seguindo, em baixo, o rasgar da prôa pela limosa torrente caudal do rio, e os lábios vorazes vagamente encrespados na voluptuosa antevisão do Desconhecido.
Primogénito dos três filhos dos Silveiras Lôbo, de Mosteirô, o pequeno João fôra criado com tôdas as mimadas preferências e tôda a jactanciosa despreocupação dos antigos morgados. Todos os perniciosos desvíos lhe havia consentido o dissolvente meio familiar e êste odioso prejuízo educativo, todos: desde o achincalho, o abandôno burlão dos mestres, até ao abuso feudal das raparigas. Daí que, resultando uma organização inadaptável ao trabalho e um carácter voluntarioso e cego, o Silveira havia consumido o melhor da sua vida ou bambochando em saborosas sensualidades, ou luzindo em bárbaras pimponices, porêm um mísero hóspede sempre da pura emoção, sempre refractário às reacções da alquimia ideal do sentimento. Alto, forte, moreno, com uns negros olhos dominadores e uma estrutura apolínea, entretanto no seu belo rosto varonil espatinava-se a tinta de vulgaridade que imprime às fisionomias de hoje a dureza, a ausência do sentir. Pronto sempre e álerte ao galanteio, à volúpia, à brutalidade, ao prazer, nunca até àquele momento se sentira capaz duma paixão que o arrancasse a si mesmo, que montasse o seu egoísmo e as suas ambições tacanhas, que lhe pusesse asas na vontade e lhe espiritualizasse o desejo. Nutria um tédio altaneiro pelos aspectos triviais da vida, -- êste tédio que é o triste apanágio das almas sem vôo, dos corações vazios. Jàmais consentira intimidades e votava, pelo geral, aos homens um desdêm cortês, às coisas uma indiferença amável. Podia ser assim na medida do seu critério material, o mais feliz dos homens, de vida rolando e fluindo suavemente como um exercício de patinagem, se não tivera a furuncular-lhe, como uma fatalidade ancestral, a crôsta da alma empedernida, o culto ardoroso, despótico, incessante, bárbaro, da mulher. Era êste o flanco vulnerável do seu "eu", o único ponto em brecha naquele carácter dominador e altivo. Abstenção feita da condição, da raça e da moral, o alarmante "odor di femina", fôsse urbano ou rústico, fidalgo ou plebeu, negro, amarelo ou branco, amolecia-o. Posta em conflito com o perturbador mistério feminino, a sua melindrosa sensibilidade capitulava, cedendo a um vício de receptibidade extrema que se traduzia na falta absoluta de energia.
Nem por isso o nosso herói consentira nunca em descer aos atormentados abismos da paixão, ou se deixára enlear no labirinto vêsgo da loucura. Mal aflorava com o desdenhoso lábio o mel turvo do prazer, saltitando despreocupado dum amor a outro amor, -- epidérmicos todos, breves, fugazes, como frutos apenas mordidos e logo deitados fóra. Era de ordinário a vulgaridade do instinto que o dirigia, arrastando-o não raro a scenas ridículas; mas já tambêm, uma que outra vez, a virtude suprema da emoção, transfigurando-o, o erguera a desgarradas alucinações de artista. Nesses altos, raros momentos de libertação êle sofrera, numa atónita inconsciência, o puro domínio da Beleza. E agora mesmo, nesta sua voluntária demanda da Solidão, neste atoado caminhar para o Infinito, sem o amparo duma doce mulherita ao lado, o Silveira sentia o coração árido e triste como o ardido leito duma torrente sem água... Tremeu um instante, como no terror mortal de ir transpôr o vácuo, e sacudiu-o um confrangido alvorôço, uma como que compaixão de si mesmo, que o fez aprumar-se, esperto, na amurada, erguendo os inquietos olhos ao espaço, por onde lhe parecera ouvir bater um esparrôdo incerto de asas, e depois, com as pálpebras húmidas num ensopamento de ternura, querendo reter o perfil indeciso da cidade que lhe fugia, na magoada luz do crepúsculo, envôlta em lívidas musselinas de mistério.
Para onde ia êle? que ignorados destinos o aguardavam lá longe, nesse novo grande mundo, para êle um enigma, e onde tudo era colossal, -- o progresso e a barbárie, a miséria e a riqueza?... Interrogações que naturalmente lhe acudiam e vinham, freqùentes, cocegar-lhe a inculta mas viva inteligência. Vagamente sentia que o homem que viaja aumenta sempre e a cada momento enriquece a sua bagagem impressionista interior, a qual, bago a bago, se vai então enceleirando, como um precioso tesouro sentimental, no arcão das íntimas recordações, das lembranças carinhosas. Cada povo, cada ambiente, cada país, cada raça deixam aí a sua marca indelével, e essas pitorescas estratificações são outras tantas parcelas novas que veem somar-se à história da nossa vida, despertando-nos cordas inéditas no sentir ou alargando a latitude moral da experiência. Não eram estas coisas postas bem a claro nem sentidas nítidamente pela insuficiência mental de João da Silveira; nítidamente, contudo, êle sabia, -- isto sim! -- ser a América do Sul terra «de lindas mulheres»; e o relâmpago desta promessa acirrante fazia-lhe o passo leve, encrespava-lhe a medula e acendia-lhe o desejo. Depois, havia ainda que ver os seus sócios de viagem, havia que observar e indagar quem, quanta e que qualidade de gente vinha ali a bordo com êle. Sem que soubesse explicar-se bem porquê, tomava-o êste antecipado encanto dos conhecimentos adquiridos em viagem, breves contactos de almas volitando ligeiras entre os dois infinitos do céo e do mar, qualquer coisa de adorávelmente vago, de efémero e profundo ao mesmo tempo. São como que brisas do sentimento: se não prendem o coração tonificam a alma.
Os primeiros dois dias de viagem, té à Madeira, foram maus. Tempestade constante. Aquele primeiro mormaço ameaçador engrossára e fechára té disparar na trágica violência dum temporal desfeito. A chuva, a cerração, o mar revôlto e o sudoeste rijo, soprando contrário, atrasavam o barco e com êle jogavam perdidamente, sacudindo o transatlântico em rijas convulsões que reduziam a arrogância industrial do seu poderoso arcaboiço a proporções irrisórias. Nada estava seguro, pairava-se indeciso na comoção e na treva. De quando em quando, varria de lés a lés a embarcação uma ráfaga mais intensa, e tudo então a bordo dançava, estalava, tiritava e gemia, no estrangulamento brutal da garra do Desconhecido. Grupos descalços de marinheiros, trotando rápidos, faziam, aqui, ali, a sua aparição fantástica, cerrando escotilhas, aprontando escaleres, correndo presto a manobra. E agora, a intervalos, na opacidade da noite como tinta, acima do ranger do cavername do monstro e do rugir cavo das águas, por sôbre tôda essa brava orquestração da Morte roncava e erguia-se alarmante o grosso apitar da máquina em desespêro.
E era como se não houvesse viv'alma ali dentro. A ninguêm era permitido estacionar nos salões, no "bar" ou nas cobertas; mas de horas antes que perante a ameaçadora fúria do vendaval, poucos se sentiam em segurança, e daí que uns pelo enjôo, outros pelo terror, outros por méra prudência, tudo, na timorata demanda do seu beliche, fôra sucessivamente desertando. João da Silveira, tomado dum indefinível mal-estar, com a cabeça como chumbo, descera tambêm ao seu camarote, que era situado num dos extremos do barco, formando esquina, junto à prôa. Tinha uma ventanilha sôbre o mar e outra sôbre aquele ângulo avançado da coberta, descobrindo assim um trecho dessa renovação iníqua das galés, essa enorme grilheta ambulante, onde, sob um miserável tôldo, à intempérie, ao abandôno, no mais absoluto desamparo, na mais sórdida promiscuidade, num baralhamento ignóbil de idades, de sexos e de raças, rolando ao áspero sabor da tormenta, como lastro, como calhaus, como lôdo, como viva espuma, seguiam, empilhados a monte, os passageiros de 3.^a classe. Foi a primeira sorte de gente que, a bordo, se lhe antolhou ver mais de perto; tinha agora ali assim, ao alcance inevitável, próximo da atenção, misérias, tristezas, espantos, dores que até ao momento êle arredára sempre com dureza do seu coração, de ordinário avesso à piedade. Agora tinha que forçosamente senti-las, ouvia-lhes o singelo relato das suas penas e angústias, chegavam-lhe lamuriados protestos, tímidos gritos de rebelião, surdas frases doloridas; começava a interessá-lo o aspecto resignado, humilde, sofredor daquelas rôtas máscaras de agonia, vinha-lhe o fartum nauseabundo da comida que lhes serviam; e durante a sua primeira noite de mar, noite de pesadelo, noite de insónia, noite de incomportável pavor, em que a madorna do cansaço lhe era a cada momento posta em sobressalto pelo súbito martelar dos mais estranhos ruídos, -- o ferrolhar brusco de cremalheiras, silvos raspantes de cordagens, choques brancos de metais, ringidos como rasgões, estalidos como pragas, -- quem, neste poema de extermínio, dava ainda a nota mais sinistramente aguda, era essa atormentada frandulagem humana, quando, sôbre o convés encharcado rojados à mistura, os seus altos gemidos em súplica rasgavam ululantes o espaço, formando um concertante macabro com o alarído bárbaro da tormenta.
Quando o "Almería" conseguiu por fim fundear, frente à Madeira, a caligem persistente no céu, as grossas cordas de água e as vagas alterosas não permitiam fácil às pequenas embarcações acercarem-se do paquete, e furtavam arreliativamente à contemplação do Silveira a maravilha habitual dêsse scenário paradisíaco, -- o amoroso encanto da luz, a aragem perfumada do ambiente, a graça ingénua das construções, o azul translúcido das águas, a esmeraldina frescura, o contôrno sensual daquele monte atrevido de colinas salpicadas de claras harmonias, o deslumbramento sem par e a euritmía incomparável dêsse atrevido anfiteatro pagão, único no mundo, apenas agora entrevisto pelos claros farpados na neblina, como através um entremeio de renda. Entretanto, bôjo acima da pequena cidade flutuante, os vários "decks" começavam a animar-se; de tôda a parte surdiam lindos rostitos timoratos, cautelosos bustos, ou enérgicos perfís, duras e arrogantes linhas masculinas, incrédulos ainda, ávidos, curiosos, abertos numa cantante expressão de alívio ou movidos numa alegre inquirição de interêsse; miravam-se solícitos, acercavam-se efusivos e palreiros, formando vivos grupos de acaso, intromiscando-se, reconhecendo-se, beijando-se; no salão aparatoso da 1.^a classe, todo em "boiseries" e estofos, os compassos da orquestra espraiavam-se em molhadas ressonâncias; no extremo oposto, pela grossa atmosfera heteroclita do "bar", as rôlhas do Champagne saltavam, preludiando estúrdiamente o distanciar do perigo. Mas o Silveira, de fito sempre ao largo, não cessava de considerar o deslumbramento panorâmico da ilha; e então viu como de roda do grande barco, arfante ainda e a escorrer, sôbre a juba crespa e revôlta do mar, dezenas de lanchas bailavam doidamente, em riscos de, num choque mais violento, se estilhaçarem contra o colosso, na impossibilidade duma aproximação tranqùila. E notou que vinham atulhadas de emigrantes, outros tantos míseros foragidos como aqueles seus tristes vizinhos de bordo, uns centos mais de desgraçados que iam ser pasto da voragem insaciável dessas regiões intérminas onde fulgura o mito precário da riqueza; protéico enxurro humano, encarnação polimorfa da desgraça na demanda hipotética da fortuna. Eram carne votada à gleba, vítimas forçadas da iniqùidade económica, a quem nem por isso o duro mercantilismo reconhecia a importância do seu valor, como utilidade social. Eram lágrimas que vão trocar-se em pérolas, vidas heróicas que vão fundir-se em oiro, e que, não obstante, são tidas por nada por aqueles mesmos para quem o seu descraziante esfôrço é tudo. Eram almas tratadas como coisas, e que ali em baixo esperavam transidas, no mar em cólera, sob a chuva, que os içassem como fardos miúdos, como valores mercantís, como bagatelas, como bugiarías, como sucata, por uma corda. A operação era primitiva: atados em pequenos molhos por um grosso cabo, sem escolha, não importa como nem por onde, lá vão subindo em cachos, escorrendo água, atoadamente, morosamente, -- as mães com os filhitos a dôrso, chorando, agitando no espaço as mãos como vermes; os vélhos pendendo resignados na frouxidão da impotência; os moços ganhando distância em arrancadas simiescas, e todos numa ansiada alternância movendo os olhos pávidos entre a promissora segurança do navio, ao alto, e em baixo a fúria glauca do abismo.
Passada, porêm, a Madeira, o tempo amainára, e agora, enquanto a dupla hélice do "Almería" fazia o seu arroteio manso de espuma, pela imensidade movediça do oceano o espelhamento límpido do céu prolongava-se, águas adentro, em opalinas suavidades, em claridades duma transparência infinita. Como conseqùência, a bordo restabelecia-se a tranqùilidade e pelas diferentes cobertas a mancha buliçosa e a sonora chalra dos viajeiros alastravam, cruzavam-se, demandavam-se e cresciam numa algarada cantante de alegria. Á hora de comer, já noite, João da Silveira baixou, entre os primeiros, a ocupar o logar de acaso que lhe haviam indicado e êle aceitára dócilmente, no seu altaneiro desdêm por aquela camaradagem fortuita de gentes vindas não sabia bem donde e destinadas a desvanecer-se pronto, finda a viagem, no distanciamento vago da indiferença. Era o único logar que havia ainda vago, numa pequena mesa para cinco talheres. Sentou-se. Até àquele momento, mal havia tido ocasião de encarar os outros comensais, abotoados naturalmente na constrangida reserva em que se nos fecha de ordinário a expressão, à visinhança de estranhos; porêm, agora começava a vê-los sob um novo aspecto, voltava cada um aos seus gestos habituais, mutuavam-se olhares de confiante inquirição, saùdavam-se efusivos, seguros, contentes. Fizera-os comunicativos a simultânea vibração do perigo. Á direita tinha o Silveira um curioso espanhol, abundante, palreiro, grosso tipo de homem roçando pelos 50 anos, calvo, vermelhaço, grandes dentes ralos nos grossos lábios gretados e rôxos, a barba grisalha curta e mal cuidada. Vestia com vulgaridade, e na lapela usada do "smoking" ostentava a roseta de Isabel a Católica, sofrívelmente suja. Á esquerda ia um italiano, já entrado em anos tambêm, ponderado, gordote, a papugem flácida das olheiras denunciando um grande "viveur", a pele rosada e fina passada de cosméticos, um ar importante, as mãos muito cuidadas. Seguia depois um joven chileno, irrequieto, pomposo, farta cabeleira revôlta pastichando a indumenta cerebral dum génio, um colarinho mole inverosímil, os olhos negros e ardentes como carbúnculos, os dedos como que modelando incansavelmente no espaço abstrusas, incompreendidas formas, O quarto comensal era um puro "gentleman", de finas maneiras, olhar inteligente e doce, um riço buço incipiente sôbre a lisa cútis morena penujando, e uma linha geral atraente, correcta, comedida.
-- Rijo temporal, hein? -- comentava com vivacidade, sacudindo a cabeça, o espanhol, quando o Silveira tomou logar à mesa.
-- Foi de respeito! -- acentou pronto o chileno.
-- Não acha? -- tornou o primeiro interpelante, adiantando com intimativa o busto para o italiano, que se limitou a baixar a cabeça num tácito assentimento.
O joven brasileirito julgou oportuno corrigir:
-- Foi forte, sim... ah! mas não se compara com as borrascas da Biscaia ou da Mancha.
Ao que, num abundôso gesto de desaprovação, o espanhol, agitando o guardanapo:
-- Não, isso lá... O meu caro marinheiro, bem sei que é homem da profissão... desculpará, mas não estamos de acôrdo. Então, eu não sei? -- E em tom convincente para o grupo: -- Olhem que foi um passo... um passo "de ponersele à uno los dientes de vara y média"!
-- Mas, parece que não houve desastres a bordo? -- aventurou quáse maquinalmente o Silveira.
E logo o outro, tranquilizador, dogmático:
-- Ah! não senhor. Nada! Nem "desperfectos" nem doenças. É um grande barco êste. Acabo de o assegurar ao comandante, que deposita em mim tôda a confiança. Ah, lá isso... -- E, num risinho envaidecido, atestou: -- Amigos vélhos!
-- Contudo, aquela pobre gente da 3.^a classe...
O "soi-disant" íntimo do comandante teve um desprezível encolher de ombros:
-- Ah, sim, naturalmente... alguns "resfrios". Mas eu já por lá andei. Que o comandante, já digo, para estas coisas não quére outro... Pois não há nada, não... Vão tomar musgo e leite. "Una jugadita pasajera, no más".
O caso foi que a familiaridade banal desta aresta de diálogo determinou um começo de conciliação do Silveira com o ambiente. Êle passeava agora distraídamente os olhos pela trivialidade cosmopolita do recinto, -- êsse vasto quadrilongo sussurrante e refulgente, todo em branco e oiro, com os seus colunelos tarracos, os metais scintilantes das vigías dos flancos, o tilintído límpido dos cristais e loiças, e, -- constatava com orgulho, -- as lusas caravelas simbólicas pinturiladas com arrogância nos luxuosos vitrais do teto. Interessava-o o ambiente e atraíam-no as figuras. E com os seus eventuais companheiros de comida, agora, numa saborida mutuação de impressões, ia travando gradualmente conhecimento. -- O espanhol, dr. Contreras, era médico, pelos modos: um pobre diabo espalhafatoso e inofensivo... quando não exercia a profissão, e em quem a arrogância dispersiva da figura buscava caridosamente iludir a inércia tacanha do intelecto. Parece que o seu govêrno, para se descartar dum importuno e juntamente evitar ao país o aumento na cifra da mortalidade, o comissionára "in perpetuum" para seguir estudando as condições de sanidade a bordo dos grandes transatlânticos. Um pretexto inocente e a missão mais a carácter para êste pobre Esculápio "à rebours", cuja educação profissional cristalizára na terapêutica obnóxia dos purgantes e das sangrias. Norberto Mackenna, o joven chileno, era um pintor cubista que ao seu país tornava, após 4 anos de regalona vida em Paris, sectário "enragé" de Picasso e grande devorador de azeitonas. O moço brasileiro era o tenente da marinha Euclides Pereira, que ia matrimoniar-se a S. Paulo, de regresso tambêm duma viagem oficial de estudo. O italiano, finalmente, êsse dizia-se marquês e da mais alta estirpe. Descendia dos Colonna di Mafiori, e em lances sucessivos de azar desbaratára ao jôgo o melhor da sua fortuna. Esta maldita obsessão desfolhára e deixára totalmente a nu, de prosápia e de oiro, o seu frondoso e arcaico talo genealógico, abatido agora burguêsmente ao mercenário ofício de balcão. Porque o marquês ia a Buenos-Aires negociar em alfombras. E dizia estas displicentes coisas numa resignada bonomia, com clara singeleza, com altivez, quáse com brio, mirando as unhas; e imobilizava-se em atitudes de dignidade distraída ante a natural incidência da atenção alheia.
Com o brasileiro seguiu o Silveira, no ascensor, ao salão da 1.^a classe, pronto irmanados os dois nesta instintiva aproximação em que os prendiam identidades seculares de língua e de raça. Em cima, o recinto estava pleno da mais variada gente, e havia o confiante abandôno familiar dos estômagos contentes. Ás curiosas, inquirições do Silveira mal podia o tenente Euclides, tam hóspede ali como êle, cabalmente responder, limitando-se quáse a informá-lo sôbre o que sabia das famílias suas compatriotas. E é que estas não só abundavam ali, como tambêm, com a sua vivacidade despretenciosa e a sua bonachona loqùacidade, davam a nota dominante. Norte-americanos, e ingleses -- êles e elas, -- mal avançavam, um instante, pelas portas laterais, as cabeças arrogantes e logo partiam, por um momento desviados na sua desportiva tarefa de fazer indefinidamente o circuìto do barco, em largas e sólidas passadas. Havia chilridos, cantos, vôos, jogos inocentes de crianças; implicativos "snobs" que continuavam a imperturbável leitura trazida, sem intervalo, do comedor, forrados agora na apática moleza dum "fauteuil", cruzando as pernas; e ao lado duma aparatosa francesa, de cabelo duvidosamente loiro e traje não menos equívoco, um derrancado vélho sonoleava.
Mas o Silveira, que se dirigia a Buenos-Aires, buscava de preferência exemplares argentinos; queria verificar ali, em documentos vivos, flagrantes, se lhes assentava bem essa fama de galhardia, de distinção, de urbanidade e opulência, da beleza soberana nas mulheres e de enfatuado "estiramiento" nos homens, que fazia do nome argentino o giro dominador pelo mundo.
-- De argentinos, aqui a bordo... -- informou, circunvagando em tôrno a vista, o Euclides, hesitante, -- não é esta a época... Não dou conta senão duma família.
E apontava-lhe, em cauteloso grupo à parte, num dos tôpos do salão, um homem grosso e grisalho, todo de negro, a face totalmente escanhoada, com uma senhora idosa, vestida de negro tambêm, muitos anéis e colar de pérolas, sentada em meio das duas filhas. Poisavam singelamente, sem estudo, sem afectação, o ar abstracto, numa atitude natural de abandôno tranqùilo. As duas senhoritas principalmente parecia quererem delir-se numa suave atmosfera de simplicidade e renúncia que era a antítese formal de todo o propósito de exibição galante: contudo havia na sua linha geral, sobretudo duma delas, um não sei quê de espiritual selecção, de fino, de subtil, de espontâneamente belo e vagamente alado, que começava por fixar com agrado a atenção e gradualmente nos trazia à alma um superior encanto.
Seguia interessadamente o Silveira, por entre as volutas quiméricas do fumo do charuto, o exame desta esquiva e singular figura, quando, todo sorridente e afável, se aproximou dêle o marquês: «que perdoasse, se acaso o vinha molestar... mas queria apresentar-lhe um compatriota assaz distinto, fidalgo tambêm, como êle... não tanto... e como êle arruìnado». Amávelmente o Silveira acedeu, e daí a instantes sentia o efusivo apêrto de mão do conde Améglio di Paoli, espécie de emérito charlatão internacional, vivo, matreiro, na larga face a inalterável palidez dos cínicos, farta cabeleira negra, a mirada penetrante e fugaz, os gestos abundantes. «Duros golpes da fortuna, -- dizia, -- o haviam constrangido a demandar a América para ver se conseguia colocar aí meia dúzia das melhores telas da sua esplêndida galeria. Telas dos séculos XV a XVIII. Ricos pedaços da sua alma! Um sacrifício enorme... Não tivéra a coragem de o consumar na Europa, onde o extraordinário valor das suas colecções era aliás bem conhecido». Exprimia-se com abundância teatral de efeito, num atropêlo de frases mortificadas exteriorisando como que o pejo da sua precária situação; e tudo era desatar-se em atenções e lisonjas perante êsse «grande aristocrata português» em que a sua cabotina codícia farejava erradamente uma vítima. Luzia no "smoking" uma roseta vermelha e branca. Porêm, o Silveira achava-o plebeu, mórmente posto em confronto com o divino perfil, de Madona, da irlandesa que se lhe sentava ao lado. Era sua mulher. Num dado momento, a querer captar a confiança do Silveira, apresentou-a; depois, sempre nas suas prolixas aclarações e deferências, ia atropelando: «que levava aí assim... havia de ver! um pequeno mostruário de obras tôdas de mestres, que eram puras maravilhas. Vendê-las-ia mesmo perdendo, que remédio!... E que, em Itália, êle era assim um como que avaliador oficial de objectos de arte, pois fôra o inventor dum engenhoso processo de constatar a autenticidade dum quadro por meio da microfotografia. O único infalível! Não sabia?... Era um método ignorado, exclusivo seu, porêm a um tam nobre senhor, -- batendo-lhe amigávelmente no ombro, epilogava, -- não teria dúvida nenhuma em o fazer comparte do segrêdo».
O Silveira escutava-o numa indiferença cortês, distraídamente; enquanto o melhor da sua atenção se fundia com deslumbrada ternura na figura adorável da irlandesa, que lhe agradava enormemente, com o seu ar repousado e cândido, a linha puríssima das feições, o arranjo ático do cabelo castanho, o busto sóbriamente redondo, o gesto singelo e nobre. Daí que, nos breves claros de repouso que lhe consentia a chalra interesseira do marido, êle fez perante a diva o ensaio de algumas amabilidades discretas... deplorávelmente perdidas, -- logo êle desolado verificou, -- porque esta deliciosa filha de Erin não falava nem compreendia senão a língua do seu país natal, de que o nosso desapontado galã não percebia patavina.
Quando, pelas 11 horas, desceu à "cabine", o Silveira trazia vivo e palpitante no cérebro o baralhamento policromo e difuso de tôdas aquelas figuras, tôda essa efémera "kermesse" de notas de acaso, na aparência desconexas e de cujas cruas tintas, bruscas oposições e antitéticas formas, reçumava contudo um encanto especial, uma clara e singular harmonia. Enquanto se despia, êle notou que ali assim fóra, à sua ilharga, no triângulo aberto da prôa, havia tambêm alegria. Ali, a noite era quási total. Uma única pêra eléctrica, com reflector, esclarecia apenas o limitado espaço ao seu alcance, e a maior porção do recinto ficava sob o domínio impreciso de vagas sombras dançando sôbre montes de andrajos. No aplastamento próprio desta hora de repouso e sob o mesmo invariável tôldo negro, os grupos, sórdidos, compactos, alargavam-se e faziam monte sôbre rolos de cordas, sôbre as bagagens, sôbre mantas vélhas, troixas, sacos, sôbre esteiras; e a escassez da luz erguia em deformações de pesadelo, emprestava monstruosas ampliações de horror a êsse caprichoso arranjo de cansaço e de miséria. Mas havia ainda muita gente desperta; mesmo encostados à "cabine" do Silveira, dois rústicos italianos faziam pausadamente o interesseiro cálculo de quanto poderiam vir a forrar, em cada mês, dos seus hipotéticos salários; um francês, mais longe, trauteava "couplets" canalhas; e tôda a sorte de vozes, de idiomas, de murmúrios, gritos, expansões, risadas que eram lamentos, suspiros que eram bocejos, tôda a gama fruste da animalidade, tôdas as brutas explosões do instinto, se entrechocavam e faziam côro nesta exótica Babel flutuante, grosso concêrto bárbaro que afogava o marulho manso das águas e que ainda o sôpro galhofeiro dum "harmonium" vinha cobrir, a espaços, com a sua toada "chillona".
Acomodado já o Silveira entre os lençóis, pareceu-lhe distinguir o quebrado dedilhar duma guitarra, acompanhado duns acordes de violão... Apurou o ouvido, não havia dúvida... aí voltam êles, trinaditos, leves, como quem está afinando, êsses sons tam seus familiares, tam seus queridos. E agora são já os prelúdios dengues do "fado", um "fado" choradinho e autêntico como só a alma portuguesa, enamorada e fatalista, é capaz de bem sentir. Daí a momentos, em bom português, alguêm cantou:
"Das barbas do Afonso Costa
Mandei fazer um pincel
Para escovar as botinas
Do querido D. Manuel."
O Silveira saltou no leito, radiante, e ergueu meio busto, à espera de mais, ávidamente. Já não se sentia tam só. A ironia gaiata daquela trova fê-lo estremecer de vindicadora alegria. Esta descoberta inesperada espancava-lhe o sono, aclarava-lhe a alma. Oh, a justiceira voz do povo! O desdobramento do mote devia ser impagável. Vamos a ver que mais viría...
O ignorado trovador cantou ainda outras duas quadras, porêm já sem interêsse para o Silveira, porque gemiam lamechas trivialidades de amor. No entanto, o grato alvorôço daquela primeira impressão ficou. «Não era só êle...» comprazia-se em repetir no íntimo, vivamente sensibilizado por êste traço imprevisto de afinidade moral com gentes de condição tam abaixo da sua. Tinha ali assim, tam perto, analogias de sentir e fêveras de ódio como as dêle, e a súbita descoberta desta conformidade palpitante trazia-lhe confôrto. Inimigos tambêm do novo regímen... dando-lhe costas, maldizendo-o como êle. E mais eram do povo, pudéra!... do povo, sim... êsse pobre e sempre ingénuo povo português, de cuja hipócrita adulação os rèpublicanos haviam feito plataforma essencial de propaganda, e que depois do triunfo estavam agora burlando iníquamente. Ah, mas êles lhes diriam! Brava gente! E tinha-os ali seus visinhos... «Havia que conhecê-los, vê-los de perto. Bem...»
E adormeceu contente.
II
O dia seguinte amanheceu para o Silveira outra claridade. Esta inefável sensação de calma, de liberdade, de plena posse de si mesmo, que as viagens em nós despertam, fazia-lhe querer a vida e sacudia-o num alviçareiro estímulo interior. De tudo quanto o rodeava crescia para êle o interêsse. Livre, pelo momento, de preocupações sôbre o futuro e assediado por todo um mundo de sons, aspectos, côres, idéas e coisas novas, todo o seu encanto de viver se resumia na hora presente, e a alma dilatava-se-lhe num voluptuoso apaziguamento sem têrmo, como essa lisa toalha imensa de mar, sem perfídias e sem cóleras.
A corneta chamara para o primeiro almôço. Fóra, pelo espaço, havia sol, havia luz, e o tépido acariciamento da brisa casava-se numa euritmía perfeita com o manso ronronar das águas. Neste plácido ambiente de espuma e oiro, as silhuetas saltavam nítidas, as tonalidades ganhavam valor, sentia-se mais amigo e mais próximo, mais potente, mais cálido, mais fecundo, o divino alento criador da Natureza: e, perante o olhar extasiado do Silveira, todo o bigarrado movimento de bordo se esmaltava de tintas de relêvo, de cânticos pagãos, de brados genésicos, de inusitados brilhos, e os seus mesmos companheiros de embarque lhe pareciam os habitantes dum outro planeta, onde as paixões fôssem mais fortes e a vida mais consciente e mais intensa. Saíndo, na direcção do refeitório, para o longo corredor, veio-lhe a viva lembrança dos seus ignorados, dos seus humildes correligionários da passada noite, e ia a demandá-los, com piedosa atenção, através a gradeada porta da masmorra que ali assim perto os mantinha a distância, quando uma outra solicitação mais empolgadora e mais instante lhe rompeu da alma em alvorôço: a imagem fugidía e alada da joven argentina, entrevista tambêm na véspera, no salão. Mas, por azar, -- debalde o Silveira esperou! -- nem ela nem ninguêm da família baixou a comer.
Não havia então remédio senão confiar do acaso o providencial milagre de a ver aparecer. -- Mas quando? mas aonde?... -- E aí sóbe êle de golpe no ascensor e vem atravessar o salão e faz o giro afanoso do barco, mirando em tôdas as direcções, perquirindo os bizarros grupos distribuidos preguiceiramente ao longo das cobertas, no alinhamento marcial das cadeiras de repouso. Absorto nesta preocupação essencial, o resto marcava zero para êle, nada mais via ou pretendia, de nada queria saber. Acotovelava insensível os arremangados homens do "sport", cortava indiferente as interesseiras chalras de grossos burgueses, vestidos de fustão branco; por duas vezes houve que furtar-se, um pouco bruscamente, às louvaminheiras investidas do dr. Contreras, em termos de passar por malcriado; e por um triz não préga de bôrco sôbre o convés com uma barafustante paqueta baíana, magra, pequenina, ictérica, que comandava a poder de gritos e truanescas evoluções uma chusma de pequerruchos.
Por fim, essa adorável argentina ei-la que aí vem agora avançando... Vem só. Era alta, esguia, frágil e avançava leve e aérea, como um reflexo de si mesma, lembrando no porte e na frescura um dêsses longos, finos e erectos fustes da "palmeira imperial", com o vértice perenalmente verde. Seguia breve e alheadamente, com uma simplicidade não isenta de nobreza, e foi sentar-se junto da mãe, uma repousada e aparatosa senhora que nos parecia forte da robustez peculiar que circunda certas mulheres e que denota honestidade. E de hora em diante o Silveira, feliz por aquela segurança de tranqùila contemplação que emfim conseguia, já não abandonava mais o alvo querido do seu cuidado e atento ia e vinha, e desdobrava arteiras pausas, disfarces e rodeios, para poder, sem que fôsse notado, entregar-se a esta viva e desbordante análise que a sua alma se comprazia em prolongar, porque ela respondia à excitação misteriosa que dentro de nós faz chispar o maravilhoso reflexo interior da simpatia. -- Era curiosa, enternecedoramente curiosa, com efeito, esta linda desconhecida. Aparentava 20 anos, não mais. Farto cabelo castanho, "mousseux", sem brilho, descendo em bandós singelos a juntar-se sôbre a nuca; pequenina testa espiritual, em triângulo; os olhos castanhos tambêm, de leve desenho mongol, as sobrancelhas erguidas e lançadas sôltamente; o nariz projectado direito e um pouco longo, toda a face alongada por igual, perfil grego, traçado num como que afinamento idealista e ingénuo; o queixo pontuado finamente, os dentes brancos, muito iguais, e a bôca breve, os lábios finos mas expressivos, resumindo o que porventura havia de vida e de paixão nesta criatura reservada e tímida. Nenhuma espécie de atavios: nem espartilho, nem jóias. Apenas na base do pescoço, ático e longo como um mármore da Jónia, um colar de corais napolitanos. As suas mãos, de dedos brancos e finos como longos estames, e mais claras que o tom "mate" do rosto, eram o prolongamento lógico de tôda a figura, lembrando os tenros rebentos duma árvore de sonho. E, quando sorria, os olhos perdiam-se-lhe no vago, enquanto na filigrana húmida dos lábios perpassava um frémito breve de emoção.
Na alma ardente do Silveira rompêra agora o desejo veemente, irreprimível, de mutuar impressões com a linda desconhecida. -- Mas como consegui-lo, como chegar adonde a ela?... -- considerava com afinco, instalando-se-lhe na frente, numa atitude de estudado abandôno, os cotovelos sôbre a amurada. -- Tinha que haver uma apresentação, manobra táctica reconhecidamente difícil para o investimento cortês duma família como aquela, que êle não via comunicar-se com ninguêm, que ninguêm saùdava e que a ninguêm retinha, mantida mui deliberadamente no seu desprendido círculo de isolamento e indiferença. Assim, uma aproximação em condições favoráveis, segundo as regras do bom-tom, não era empresa vulgar. -- O Silveira, de lábio pregado, reconhecia-o, e esta descoroçoadora evidência, longe de o desalentar, mais o enardecia. -- Havia que buscar... -- Numa fêvera crescente de impaciência, planizava estratagemas, ideava hipóteses, amontoava projectos, que, mal esboçados ainda, todos logo fracassavam. Então, em alternâncias de dulcíssima pausa, como um bálsamo, o áspero aguilhão do seu cuidado amolecia na contemplação deliciada e atenta dêsse baluarte suave de isenção e de virtude. Mas logo, mais despótica, mais tenaz, a sua amoruda obsessão voltava, por cada um destes venusinos exames trazida a um enternecido exacerbamento que mais lhe acicatava a vontade e lhe acendia o desejo.
Um momento veio então em que o Silveira notou que, um pouco mais ao largo, à ilharga e um tanto recuado das duas argentinas, um joven glabro e calvo, com o engerido busto dobrado sôbre uma destas pequeninas mesas portáteis de bordo, escrevia nervosamente. As garatujas do lápis seguiam numa carreira febril, dir-se-ia ao atropêlo cálido da improvisação, enchendo fôlhas sobre fôlhas sôltas, que a aba loira dum grande "panamá" protegia da aragem dispersiva. E, sempre no mesmo propósito exibitivo e grotesco, a intervalos o iluminado escriba parava na empolgante labuta e imobilizava-se, como que colhido em pausas de transcendente laboração interior, com os olhos vagos postos ao alto e o lápis erguido digitalmente sôbre o lábio sibilino. Depois, num ímpeto criador, um estremeção simiesco o sacudia, e, com um risinho envaidecido, êle recomeçava inflamadamente a escrever. Ora, aconteceu afigurar-se ao Silveira que, numa destas estases de espiritual concepção, o biltre encarára particularmente a adorável argentina, a criatura esfíngica do seu sonho... pareceu-lhe mesmo que cambiára com ela um qualquer familiar sinal de inteligência. -- Talvez tivesse a sorte de a conhecer! Feliz até à insolência... Bem, mas então, nesse caso... havia que conhecê-lo a êle tambêm! -- E forte nesta idéa, feliz por êste relâmpago de aproximação salvadora, o Silveira estudava agora com agrado e analisava mais de espaço a espaço aquele que presumivelmente ia ser o auspicioso traço iniciai à sua fortuna. -- Era uma figura abortiva e grotesca, assim tortuoso, magrote, pequenino, com o seu bigodito loiro, raso à raíz dos lábios, com os seus olhos dum cobalto inexpressivo, com a cabeça tôda em tortumelos, romboidal, enorme, e, a partir do queixo para o coronal, aparada caricaturalmente em ponta, num dêsses estiramentos cucurbitáceos peculiares do Greco. E ainda o alongamento filiforme do pescoço sôbre a ladeira débil dos ombros mais acentuava o desliamento quebradiço e vacilante daquela estranha figura. Coisa curiosa: sôbre êste pescoço estriado, sôbre estas mãos nodosas, sôbre esta cabeça paradoxal que parecia recêm-saída dum cataclismo, não havia a epiderme rugosa e áspera que seria a condizer, antes se arredondava a macieza penujosa e clara duma pele de efébo, "mate", adoçando os contornos, com transparências de aguarela e velaturas de arminho; a pele virginal e doce dum adolescente; a qual, entretanto, pelo mais irritante dos contrastes, passava súbito a uma rubefacção herpetizada e adusta no revestimento crassoso das desertas grimpas do cránio luzidío.
Vestia um jaquetão negro de lustrina, colete e calça de flanella créme, sapatos brancos, peúgas rôxas, a camisa mole "ajourée", e a farta gravata de sêda negra caída e sôlta num desmanchado laço de artista. Um mixto de pedantismo e inconsciência, de garridice e desmazêlo. Propunha-se o Silveira abordá-lo, quando um pequeno incidente surgiu, a cortar-lhe o propósito e colocá-lo num passo difícil... Era o conde Améglio que passava, mais a mulher, e que apenas avistou o «grande fidalgo português e seu não menor amigo», logo de acercar-se-lhe, expansivo, sorridente, num afectuoso desbarato de gestos e mimadas atenções, pouco mesmo faltando para lhe acarinhar com a mão, familiarmente, o queixo. E assediava-o com perguntas, com propostas, ofertas, lembranças, solicitudes. -- Que fazia ali assim? porque não vinha com êles?... -- A adorável irlandesa, numa sublinha cativante, sorria tambêm. O Silveira tinha calafrios, colhido assim de improviso, de súbito posto à prova na duplicidade egoísta dos seus instintos. Gaguejava de embaraço, não acertava com uma posição, as palavras não lhe acudiam. Tomava-o uma espécie de embrutecedora raiva interior, ao ver-se assim entaliscado estúpidamente entre essas duas solicitações, qual delas mais viva e mais tenaz, do seu desejo. Ardia por fazer-se notar, por fazer-se admitir ao convívio da linda americana, cuja linha patrícia e esquiva tanto o intrigava; e muito lhe agradava por igual "Mrs." Edith, cujas bôas graças não queria perder, mas junto da qual tambêm não lhe convinha fazer demasiado ostentiva parada de atenções, neste momento. Defendia-se por monossílabos, numa grande instabilidade de movimentos, còrando como um colegial e mirando de escape, numa idiota solicitação de escusa, a bela argentina, que nem dava por êle. Por fim, ante a insistência pegajosa dos dois, cortou a dificuldade prometendo que breve iria, a estibórdo, ter com êles; e tornou a còrar mais forte quando o conde, já longe e ao dobrar a esquina do "deck", se voltou num gesto afável, acenando-lhe convidativo com a cabeça.
Daí a instantes, liberto do arreliativo pesadelo, acercou-se dissimulado do incansável rabiscador, o qual, no momento justo, arredára, num desvio brusco do antebraço, a grande aba do "panamá" protector de sôbre as tiritas de papel, que logo desparramaram ao acaso, como arvéloas, pelo espaço. E logo tambêm o Silveira, agarrando o pretexto, acudiu solícito, baixando-se e ajudando o desconcertado escritor a recolhê-las.
-- "Un millón de gracias, caballero".
-- De nada... -- obtemperou, amável, o Silveira; e com discreta atenção: -- São produções inéditas?
-- "Apuntes del natural", -- tornou singelamente o outro, sempre em espanhol, -- esquissos, impressos, simples notas do momento, fugazes como êste instante de vida em que voamos.
-- Deve ser interessante.
-- Não vale nada... -- derivou o iluminado anotador, num gesto desprendido. -- Um modo inofensivo de matar o tempo.
Convidou o Silveira a sentar-se e acercavase-lhe, solícito, insinuante. -- Sem dúvida era português? Pelo modo, pelo acento, via-se logo... Muito folgava! Êle era andaluz. Um pouco periodista e um pouco homem de negócios. -- Impingia-lhe o seu cartão de visita, impresso em tipo gasto e vulgar, modestamente. -- Ramón Alvarez, "tout court". -- Mas, sôbre a caligrafia tôrpe dos caracteres, um empenachado elmo luzia heráldicamente, mais tôrpe ainda. -- Êle era duma família da mais antiga linhagem, família de cronistas, de poetas, de galans... e tivera sempre um grande fraco pelas letras. Tinha dois livros em preparação, uma novela e um poema épo-histórico, e tambêm um drama prestes a ser pôsto em scena pela Maria Guerreiro. -- Oh, os intelectuais! -- exclamou o incompreendido escriba, desarticulando o busto, rolando os olhos em êxtase e, num bravo arranque de entusiasmo, atirando a enormidade paradoxal da cabeça sôbre a nuca. -- São a flor por excelência, a suprema exaltação da terra! -- Infelizmente, êle vivia... viviam os dois, que lhe perdoasse se tomava a liberdade de o dizer... mas lá como cá... viviam numa peste de países de analfabetos, onde por via de regra os pensadores, os génios, os grandes eleitos do talento e do saber, morriam de fome. De sorte que, assim, havia que ser-se ao mesmo tempo um pouco prático. -- Que remédio! -- com enfado soberano rematou. E iludia o seu prosaico mistér de caixeiro viajante num vago eufemismo, dizendo «que vinha à Argentina estudar o país».
-- E conhece argentinos? -- logo o Silveira indagou com calor.
D. Ramón meneou negativamente a cabeça.
-- Alguma das famílias que vão aqui a bordo?
-- Tampouco.
-- Nem aquelas senhoras, ali assim, à nossa direita?
Essas menos do que nenhuma. Alvarez não conhecia nem tinha ganas de conhecer. -- Muito cheias de prosápia. "No le gustaba". -- E franzia o nariz com displicência. Na irritação do desapontamento, o Silveira é que teve ganas de lhe bater... Entretanto, na sua abundosa loquela, o Alvarez insistia que nunca podéra aturar gente pretenciosa. Ele queria-se com gente alegre, comunicativa, franca, "sencilla", gente à moda do seu país, da sua terra... com pessoas que nos põem à vontade, no fraternal empenho de nos fazerem sentir que são nossos iguais, em vez de parecer que nos querem impôr uma humilhante adoração. -- Olhe! como aquilo.
E apontava, de olhar incendido, uma linda morenita, mui viva e coquetona, tôda de branco, que justo lhes passava na frente. Ia ladeada por dois outros tenros amorinhos, e as três realizavam o mais delicioso grupo etrusco, assim caminhando rítmicamente, sôltas e leves, as cintas enlaçadas, os bustos dançando, o cabelo ao vento.
-- "Què monada!" Aquilo, sim... Veja! Veja!
Dizendo, o desengonçado Ramón exagerava a sua abominável aparência fetal, ao erguer-se, todo dobrado, sôbre a mesa, para corresponder às provocadoras saùdações que, passando, a rapariga lhe fazia com a cabeça, com os olhos, com o leque, com as mãos, batendo forte o tacão, bolinando os quadrís lascivos. E quando a perturbadora visão se desvaneceu, êle, familiarmente:
-- Prometi-lhe um soneto e neste momento mesmo o terminava. Quere ver?
Procurou, com a pupila febril, nas tiras sôltas, e erguendo uma por fim entre os dedos trémulos, leu então, enfáticamente, com cabotina audácia, como sua, o puro decalque duma das líricas mais inferiores de Manuel Palácio. Contára antecipadamente o seu instinto com a iletrada ignorância do Silveira, o qual, tomando naturalmente por original a cadenciada toadilha, em marretadas de admiração vislumbrava agora nas insondáveis cavernas cerebrais do Alvarez tubérculos autênticos de génio. Porêm já êste, num lume de vaidade, colhendo presto a papelada:
-- O meu amigo perdoará... mas ocasiões destas não se podem perder. "La muchacha con seguridad" espera-me. Está impaciente... "Hay que aprovechar, por Dios!"
E, arredando brusco a mesa, partiu de abalada, pequenino e torcido sob a aba descomunal do "panamá", como um chaparro anémico.
Desapontado, o Silveira quedou-se uns segundos sentado ainda e imóvel, na sua atitude de irremediável lamecha, o busto abatido, as mãos pendendo tristes entre os joelhos. Depois, tendo enviado um derradeiro olhar de desconfortado apetite sôbre a espalda esquiva da linda argentina inabordável, ergueu-se e partiu tambêm, sacudidamente. Mal tinha dado a volta para estibordo, quando viu que a êle se dirigia o seu afável comensal, Euclides Pereira, ladeado por dois graves e idosos senhores, que deviam ser ingleses, a avaliar pelos cómicos desmanes em que êles buscavam amávelmente contrafazer a sua imperturbável e habitual tesura. O joven brasileiro apresentou: -- "The Right Honorable the Earl of Horrowby" -- "The Captain John Stayton". Este segundo tartamudeou umas curtas frases guturais, que o Silveira não percebeu, lardeadas de profusas reverências; e o tenente Euclides explicou então que vinham pedir-lhe a honra de consentir em fazer parte do grande "Sports and Entertainment Committee", e ao mesmo tempo convidá-lo a assistir à reùnião preparatória, que devia realizar-se, aquele dia mesmo, no salão de 1.^a -- "the Social Hall", -- ás 9 p. m. Erguido e dobrado numa atitude de nobre aquiescência, o Silveira agradeceu, no íntimo envaidecido. E como que sentindo-se crescer, importante, alegre, seguiu com afectada indolência direito ao conde Améglio, que de longe observára e compreendera a scena, e por isso o acolhia agora entre atencioso e mordaz, num risinho de conformidade patusca. -- Êle tinha adivinhado... muito bem! muito bem! Fizeram o que deviam fazer, era de esperar. -- E todo em aprovativas mesuras:
-- Sim senhor! muitos parabens.
-- "Very, praiseworthy", -- completou "Mrs." Edith, com o seu cândido sorriso. Mas, encolhendo, modesto, os ombros, o Silveira:
-- Uma simples amabilidade. Nem eu esperava. Que valor pode isto ter?
-- Ah, pois então não tem! Êles bem sabem a quem escolhem... -- acentuou, lisonjeiro, o conde, com ar convicto; e maliceiramente rematou: -- Olhe, a mim não me convidaram êles.
-- Mas, é que o devem convidar! -- corrigiu com amável intimativa o Silveira; e, num generoso assomo de importância: -- Se o conde quere, logo à noite lembro o seu nome.
-- Oh, não, não... por amor de Deus! Essas honras, aqui, não trazem senão incómodos e maçadas. Para o efeito, sou da plebe, prefiro que me considerem um anónimo, um zero. Não, não... Muito obrigado!
Trocaram depois uma meia dúzia de frases banais sôbre a monotonia da vida de bordo, a extensão fatigante da viagem, a vulgaridade chocante dos passageiros, a má comida, o calor, o belo tempo que fazia. O conde tinha no regaço um livro copioso, -- "L'Argentine telle qu'elle est", de Paulo Walle, -- cuja leitura recomendou ao seu amigo; mas a êste interessava-o mais a silhueta ateniense, o abandôno repousado e lânguido da irlandesa, -- sôbre a "armchair", frente à luz, estendida longamente, com os pèsitos brancos traçados fóra, no ar, deixando a divina modelação da perna a descoberto bastante acima do artêlho, com uma cadência suave e tranqùila na ondulação rítmica do seio, os braços em ansa, as mãos inertes em concha sob a nuca, e os grandes olhos de veludo mirando vago, ao longe, reflectindo não sei que molhado encanto, da ardósia fluida das águas, e parecendo seguir o vôo dalguma quimérica visão na claridade material do espaço.
O toque para o "lunch" veio cortar brusco êste primeiro ensaio de "flirt", com o qual a alma oblíqua do conde não parecia aliás preocupar-se... Em baixo, à mesa, a conversação arrastou-se monótona, cortada e dispersa, como se cada um daqueles cinco fortuìtos comensais trouxesse agora por distintas e opostas coisas dividida a atenção e solicitado o espírito. Apenas, com familiar insistência, se falou dos próximos festejos, sendo o Silveira e o tenente Euclides felicitados cordialmente por fazerem parte do grande "Committee" directivo; e tambêm o abstruso Mackenna se desatou num panegirismo entusiasta daquela aparatosa francesa cuja identificação moral e social trazia todos a bordo intrigados, graças à mirabolância equívoca das "toilettes", e à suporífera mansidão e à consciência não menos letárgica do presumido marido. -- Helena d'Ellery se chamava ela, já conseguira saber... mas, jurava! ainda havia de saber-lhe tambêm práticamente a biografia. -- O flácido marquês di Mafiori teve um risinho enigmático, imperceptível; ao passo que, na sua libidinosa querença, o outro:
-- É deliciosa! Tem o "chic", o aperitivo acre do escândalo. "Hay que gustarla!!"
E na gulosa antecipação dêsse defeso prazer sonhado atacava furiosamente o pires das azeitonas.
A interminável sucessão da tarde arrastou-a o Silveira enfastiadamente, em grande parte pelo braço solícito do tenente Euclides, que não se cansava de o apresentar às numerosas famílias suas compatriotas. E assim andaram deambulando amávelmente de grupo para grupo, sem que o Silveira conseguisse dominar a impaciência e vencer o tédio. As jovens brasileiritas, algumas bem interessantes, com as suas meigas expansões e a sua vivacidade ingénua não logravam entretanto cativar-lhe o espírito, enleado teimosamente naquele obsessivo empenho de se aproximar da argentina; os homens, êsses sem maior atenção, mal trocadas as primeiras saùdações, logo reatavam o interesseiro diálogo interrompido, não falavam senão em cotações da borracha e do café, perseguiam miragens de fortunas fabulosas, desfiavam cálculos que davam vertigens, denunciavam burlas que pediam galés, antecipavam quebras iminentes, todos ávidamente engrenados no travamento egoista e brutal dos negócios, a que durante tôda a sua vida o Silveira, por temperamento e por educação, se mantivera sempre altivamente alheio. Nada disto o satisfazia, nada o interessava, nem por momentos o prendia sequer. Então, num dos seus vagos e atoados giros de bordo, atingiu o Silveira o têrmo da coberta, à prôa, mesmo sôbre o amontoamento heteroclito e sórdido dos seus vizinhos da "cabine", em baixo, aquela pobre gente da 3.^a classe. No trecho luzidío e nu do convés que a projecção do grande tôldo "gris" deixava a descoberto, êle viu que vários bigarrados e mansos grupos subiam e desciam ao acaso, num constante vaivêm, pelo sujo rasgão duma espécie de negra fossa, a um canto, e vinham em cima amadornar-se, plácidos todos e delidos como um sol de outono, todos na mesma calma resignada e humilde, apagados, doces, tranqùilos. Os homens, pelo geral, em camisola e arremangados, a cabeça nua, alguns descalços, estremavam-se segundo as afinidades de raça, e fumavam, assobiavam, rilhavam fruta, falavam tímida, espaçadamente, como que narcotizados por aquele embalo monótono da vida que, durante dias e dias, havia de baloiçá-los entre a água e o céu. Muitos, num confiado abandôno animal, dormiam. As mulheres, acocoradas, remendavam-se, preparavam tisanas, amamentavam os filhitos de colo ou catavam os mais crescidos. Numa clareira de escasso prazer, ao centro, e de roda do mesmo incansável e folgazão "harmonium", passava numa tropeada cantante um círculo folião, dançando, -- cujas atitudes pagãs uma loira e delgada "touriste" ia esquissando a correr no seu "carnet", deliciadamente. E o Silveira fazia a aproximação mental desta suave chusma humana, na sua conformidade evangélica, na sua inconsciência fatalista, na sua plácida singeleza e passiva sujeição ao destino, com os gestos duros, a pupila metalizada, a frase breve e a sôfrega ardência dos seus insatisfeitos companheiros de 1.^a... e achava aqueles mais felizes.
Tocava o sol o ocaso, e o Silveira como que via agora, de roda de si, a uma outra luz, os homens e as coisas, cujos contornos se debuxavam numa agonia de tôda a sua vida exterior, acendidos em tons violentos num esfumaçado fundo de tristeza. Encarou numa instintiva interrogação o céu e surpreendeu, no seu desdobramento esfusiante, êsse maravilhoso e deslumbrante scenário cuja amplidão magnificente tanto lhe haviam encarecido. -- Era com efeito uma imensa, uma transcendente e apoteótica sarabanda de luz, que mais que aos olhos lhe falava à alma, e que em parte nenhuma como ali, em pleno oceano, podia abranger-se íntegra na sua avassaladora majestade, na sua incomparável beleza, tomando totalmente meio céu, descendo suavemente do frio azul mineral do zénite a um loiro cálido de paixão, para depois, à raíz do mar, inflamar-se em "sanguíneas" vigorosas, esbrasear-se em línguas de incêndio. Na difusão ofuscante desta auréola de sonho, as "walkirias" fantásticas de nuvens, encapeladas cêrca do horizonte, debruadas por aquela gama infinita de côres, facetadas nas mais atormentadas e imprevistas formas do relêvo, tinham movimento, tomavam volume, intenção, vida, alma, carácter, improvisavam grupos que eram símbolos, formavam cruas oposições, saltavam em rondas caprichosas; e por fim tôda essa manante claridade sideral despenhava-se, como um Niagara de oiro, macia, translúcida, impecável, sôbre a imensa alfombra rútila das águas. Aí, na linha molhada do horizonte, o mar era fogo líquido, e nesta enorme brasa, crespa e fluída, a granada quáse extinta do sol estrelava-se ainda para o alto num imenso leque de violeta e oiro, que a algodoada capela das nuvens contornava, e cujas últimas trepidações vinham, crepitantes e dispersas, morrer pelas silhuetas errantes, pelas escaiolas claras, pelas arestas vivas do navio arfando... ao passo que já, pelo diáfano e desbotado azul da metade oposta do céu, da penumbra vaga do oriente, o plácido véu da noite vinha subindo. -- Era tôda uma revelação esta soberba e inimaginável orquestração aérea de aspectos, de formas e de tintas; convertia num absurdo a impassibilidade tradicional do céu, fazia-nos crêr na clássica sublimidade da vida olímpica dos deuses, dava-nos como que a sensação viva do Infinito.
Seguia o Silveira desta hora doce e imensa a magia incomparável, quando sentiu um toque familiar no ombro, que o fez estremecer. Era o pomposo Norberto Mackenna, que com um gesto alto e desdenhoso:
-- Então, que faz aqui assim, tam só, meu caro?... Admirando o pôr do sol, não é verdade?
-- É lindo!
-- "Ya lo creo".
-- É maravilhoso!
Mas, num rebarbativo freio a êste entusiasmo ingénuo, o joven chileno:
-- Sim, é bonito, é... mórmente para quem o contempla pela primeira vez. Mas não nos podemos ficar por aqui! -- E ante a muda interrogação do Silveira, com infatuado ar, esclarecia: -- Ora! Nas minhas primeiras viagens, fartei-me de fixar colisões de côres como estas; mas não passavam de cópias servís, hoje não lhes atribuo importância nenhuma. -- Plantava-se com intimativo vigor diante do Silveira, que começava a imaginá-lo maluco. -- Porque isto de pintura, meu caro amigo, tem que progredir, como tudo o mais; tem que radicalmente mudar de processos, entende-me?... Os valores éticos e estéticos actuais são uma lástima... adstritos como ainda andam à passividade idiota e servil de gastas formas milenárias. Temos que fazer mais do que ficar-nos a objectivar interminavelmente as vélhas concepções convencionais da beleza e do amor. "Hay que poner patas arriba" a tôdas essas fórmulas mesquinhas. Oh, seguramente Picasso, Boccioni, Metzinger, Matisse, estão na razão! Há que derribar por completo, que arrancar pela raíz tôda essa floresta vazia e pedante do Passado. Pois se nós temos de roda de nós, flagrante, inexplorada, imensa, uma nova maneira de criar e de sentir... Temos que renovar ao mesmo tempo o instrumento e a música. -- E movendo desordenado a cabeça, os nervosos dedos arranhando inspiradamente o espaço, a grenha revôlta ao vento: -- Há que fixar o movimento, a velocidade, a conquista do espaço, o delírio da carreira, a embriaguez do vôo, as palpitações do éter e as vibrações anímicas, todo êste travamento volátil e febril da vida, tôdas as grandes conquistas arrancadas últimamente pelo génio humano à Natureza inerte e hostil... Não lhe parece?
-- Sim, acho que sim... -- aventurou maquinalmente o Silveira, que o escutava indiferente, sem perceber nada, como quem ouve chover.
Entretanto, diante do seu olhar deslumbrado e absorto, e como um eterno protesto à vacuìdade insolente daquelas palavras, continuava a desenrolar-se a beleza perenal dessa agonia de luz dulcíssima, salpicando de brilhos fugazes a capela rasteira das nuvens, que como que se abriam agora em magnólias, hortênsias, lótos, orquídeas e outras flores maravilhosas, semelhando um imenso fogo de artifício imobilizado, no seu fulvo esplendor e no seu rasgo alado.
Breves horas depois, no "Social Hall", a prefixada reùnião do "Committee" directivo de "sports" e festas decorreu serena e rápidamente. Para ganhar tempo e facilitar trabalho, o secretário leu um programa de diversões já préviamente elaborado, o qual foi aprovado sem discrepância. Procedendo-se em seguida à distribuìção das respectivas funções pelos membros do "Committee", João da Silveira veio a saber, com verdadeiro regosijo, que não lhe competia mais do que o encargo de fazer entre os seus compatriotas de bordo a "quête" voluntária para as despesas. -- E que não se aceitavam donativos superiores a uma libra. -- Por outro lado, a tarefa era-lhe um tanto ou quanto fastidiosa. De portugueses, a bordo, o Silveira não se dava conta de mais que alguns, poucos, pequenos proprietários e comerciantes, seguramente republiqueiros... bastava vê-los. Não lhe era nada agradável tratar com essa ordem de gente. Mas, em suma, por uma vez e como eram poucos, a coisa resultava fácil, afinal. Era um alívio!
Daí a pouco, sôbre uma das mesitas do "smoking-room", iniciava êle o seu trabalho, passando ao papel os nomes daqueles que já conhecia, quando súbito se lhe interpõe arreliativamente à luz a figura abundosa e afável do dr. Contreras. -- Não sabia se vinha "molestarlo"... -- Tinha um risinho solícito, de pretendente, ao explicar: -- Êle estava cêrca, ali assim, vendo jogar, quando deu conta dêle. -- E apontava uma mesa de "brigde", em que eram parceiros o Mafiori, o Mackenna, um inglês engelhado e esguio como um arenque sêco, e aquele misterioso e derrancado acólito de "M."^{me} d'Ellery, a qual, complacente, se lhe sentava ao lado, de perna traçada e fumando, num à vontade petulante. O Contreras continuou: -- Estava vendo jogar, por ver... Não que fôsse "aficionado". "Más bien le gustaba" tratar com as pessoas de verdadeira distinção. Oh, sem favor nenhum! Por isso tomára aquele atrevimento.
E levemente incrédulo, dobrando-se para o Silveira, com o olhar astuto:
-- "Es usted republicano"?
O Silveira teve um gesto solene de protesto. E servilmente o outro:
-- Ora! via-se logo... Podia lá lêr por semelhante cartilha "un caballero" tam distinto! Eu, que sou eu, p'r'aqui um pobre "come-meajas", e com republicanos tambêm nunca quis nada. "No parto buenas migas con ellos". Gente sem modos, sem educação... Nem a rèpública, meu caro sr., é para nós. -- Dogmáticamente confirmava, arregalando os olhos: -- Veja o que ela durou em Espanha! -- E, com dulcerosa expressão, batendo a espalda do Silveira: -- Pois, meu caro amigo, faço votos para que êsse grande dia da restauração lhes venha breve.
O Silveira poisára a pena e erguera uns grandes olhos de esperança para o generoso interlocutor, seguro senhor agora da sua grata simpatia, e que com abandôno familiar, sentando-se:
-- Diga-me, meu amigo... êle a rèpública portuguesa sempre suprimiu as condecorações?
-- Suprimiu tudo!
-- "Es lástima"... -- comentou, de pálpebra murcha, o Contreras; e depois duma pausa, coçando a barba, tímidamente: -- Eu muito gostava de ter uma condecoração portuguesa!
-- Sim? Pois deixe estar, que quando a coisa volte...
-- "De seguro", promete?
-- Alcanço-lhe uma... a Conceição, por exemplo. Palavra!
-- Ah, que agradecido eu lhe ficarei! -- lamuriou o Contreras, enternecido, de mãos erguidas. -- "En cambio" tambêm prometo fazer-lhe "un regalo, un regalo precioso"...
Achegou-se e com afável intimativa, muito em segrêdo: -- Dou-lhe uma das carabinas apreendidas aos monarquistas portugueses, de que me fez presente "el alcalde" de Vigo, grande amigo meu... É uma carabina autêntica de Toledo, como aquelas que os jornais disseram que o govêrno espanhol havia vendido para o Paraguay... -- Aqui ria grossamente, mostrando a rala devastação dos dentes: -- Para o Paraguay, hein... Não foi má "broma" essa!
E outra vez sério, e com um encarecimento hipócrita, premindo o pulso ao Silveira:
-- Uma preciosidade, uma verdadeira peça de museu... Era do Paiva Couceiro.
III
Na manhã seguinte, ao "lunch", já ao lado de cada talher, no comedor, havia a lista dos passageiros e do pessoal de bordo, em papel assetinado, impressa lindamente, e, junto, o Programa detalhado "of games and sports" para durante a viagem. A primeira sessão, -- jogos sôbre a tolda, -- realizar-se-ia já nessa mesma tarde. Por isso, o Silveira havia visto, logo de manhã, um grande quadro negro posto a prumo no "Social Hall", o qual era destinado à inscrição geral dos jogadores, e que em menos duma hora aparecia abundantemente garatujado de caligrafias exóticas, hieroglifando nomes bárbaros. Agora, no comedor, o Silveira demorava com particular agrado a atenção sôbre a beleza daquela composição tipográfica feita a bordo, e no íntimo rendia o seu mais admirativo preito à celeridade e à limpeza como tudo ali assim caminhava.
A seguir, e quando, postos de lado a Lista e Programa, desdobrava o guardanapo para principiar a comer, o Silveira notou que o tenente Euclides o mirava com uma expressão singular, entre alviçareira e irónica, alegremente. E como a insistência maliciosa dêste prazenteiro olhar se prolongasse, levemente intrigado êle então aventurou:
-- Como o nosso Euclides está hoje contente!
O brasileirito fez uma pausa de importância, e depois olhando-o fito, com um cocegante ar de mistério:
-- Tenho uma grande novidade a dar-lhe!
-- Coisa bôa?
-- Bem agradável, creio, lhe deve ser...
-- Homem, diga lá! desembuche, -- comandou, já tambêm interessado, o Contreras dando um murro na mesa.
Porêm, numa suave negativa de cabeça, o tenente Euclides:
-- Nada! O meu amigo perdoará... mas é assunto só p'r'os dois. Não pode ser...
O Silveira, razoávelmente intrigado, reptava-o a que falasse. Curioso por igual mas comedido, o nobre Mafiori, num protesto mudo de discreção, levou a mão ao peito, fazendo luzir as unhas. Porêm, a tudo resistiu a alviçareira e enigmática expressão do brasileiro, que se manteve impenetrável.
Por fim, quando em cima, no salão, o Silveira, devorado de impaciência, voltou a interpelá-lo, o bom Euclides aclarou:
-- Não sabe você?... Já sei quem é o nosso misterioso argentino!
-- De-veras!?... Falou com êle?
-- Sim! falei...
-- E com as filhas?
-- Tanto, não. Mas poderá você fazê-lo... Está aplanado o caminho.
-- Então? então?...
E ante os olhos interrogativamente abertos e a bôca espectante do Silveira, o amigo Euclides segredou-lhe então, por entre cautas miradas em tôrno, espaçadamente, -- que se tratava, não dum argentino de nascença, mas dum vélho escandinavo, o dr. Justus Wimeyer, há trinta anos estabelecido no formoso país Del Plata, para onde viera, moço ainda, exercer a advocacía, e onde fôra cumulativamente jornalista e pedagogo, sendo agora professor jubilado da Universidade de La Plata, grande proprietário no norte e homem de fortuna.
-- Como diabo soube você tantas coisas? -- exclamou, maravilhado, o Silveira, sacudindo a cabeça numa comoção de espanto.
-- Pelo comandante do vapor, que mo apresentou, -- o Euclides aclarou singelamente.
-- E que santo fez êsse milagre?
-- Milagre nenhum... É que o homem é um grande filólogo, pelos modos; conhecedor profundo da especialidade e tendo a mania da derivação scientífica das línguas. Quere obter certas indicações prosódicas e sintáxicas sôbre o português. Uma madureza como outra qualquer.
E, dizendo, Euclides Pereira ria bonachonamente. Mas, sôbre brasas, o Silveira:
-- E depois? e depois?...
Que, depois, -- continuou, aprazivelmente irónico, o brasileiro, -- depois, a pretexto de êle falar português, aquele celebrão, rompendo com a sua engomada reserva, pedira para ser-lhe apresentado. E vai então êle, para se descartar da estopada e simultâneamente fazer um serviço a um amigo, escusára-se, alegando a própria incompetência, e inculcára-o a êle, Silveira, como um chavão na matéria.
-- O quê!? -- bradou êste, num salto de pavor, mas no íntimo radiante.
-- Assim mesmo! -- confirmou jubilosamente o amigo. -- A estas horas você é considerado pelo homem como um verdadeiro achado. Que mais quere?... -- E levemente mordaz, batendo-lhe no ombro: -- Agora, veja lá como se porta. Olhe que eu disse que você era um grande professor.
-- Quere não que a fez fresca! -- lamuriou, atarantado, o Silveira, rascando a testa. -- Indicações prosódicas, sintáxicas... sei lá o que isso é! Estou bem aviado!
-- Ande, vamos!
Foram encontrar o dr. Wimeyer no mais discreto recanto do salão, frente a uma mesa, sentado gravemente. No seu invariável traje negro, e gordote, rosado, o sulco devastador das múltiplas rugas cortando em fundas ranhuras a descaída oval do rosto totalmente escanhoado, com o seu ar didáctico e tranqùilo êle parecia desfiar coisas transcendentes a dois desconhecidos, igualmente vélhos, que num religioso êxtase o escutavam.
Mal que viu aproximar-se o tenente Euclides com o amigo, o grave perorador interrompeu a douta parlenda e ergueu-se, a receber urbanamente os recêm-vindos. Houve uma ligeira tremura de aproximação feliz no seu primeiro apêrto de mão ao Silveira. E, depois de todos mútuamente apresentados, e convidados o Silveira e Euclides a sentarem-se, retomando a palavra, o dr. Wimeyer explanou com grave ar doutoral, num francês correctíssimo:
-- Eu estava expondo a êstes srs. a minha teoria sôbre a morfologia secular das línguas. É a química do pensamento. É uma coisa evidente, racional, matemática, infalível. Falta-lhe um novo Lavoisier a consagrar a sua axiomática divulgação pelo mundo... As línguas não são mais do que puros agregados... atómicos, por assim dizer. Creiam nisto... É das relativas combinações e reacções dos elementos radicais e fonéticos dumas e outras que deriva a seriação fatal do seu parcelamento.
-- Mas, como se explica então a formação caprichosa, arbitrária, de tantos idiomas e dialectos? -- aventurou, com timidez, um dos vélhos ouvintes.
-- Ora essa! São as migrações, são os embates dos povos, é a acção das latitudes, dos climas, -- aclarou o vélho pedagogo com decisão, a fria pupila azul momentâneamente acesa. -- Nada há aí de arbitrário. Tudo obedece ao jugo imutável de grandes leis de que ando perseguindo o segrêdo. São afinidades que se exteriorizam, são electrons étnicos que se expandem. E são êstes biológicos reagentes que lenta e fatalmente opéram o desdobramento das raízes primitivas em grupos progressivamente diferenciados, na "tessitura" incomovível dos quais se vão manifestando e impondo então modismos e qualidades peculiares, que lá residiam já no estado latente. Vejam, por exemplo, entre o sanscrito e o grego, entre o celta e o latim, entre o mosárabe e o português... -- E aqui, enviando uma terna olhada ao Silveira: -- É sôbre o que eu tenho que pedir bastante à sua amabilidade, meu confrade ilustre, meu nobre amigo.
O Silveira fez-se pálido e tartamudeou um vago assentimento.
Veio tirá-lo do embaraço uma cantante voz feminina, clara e virginal, que junto do dr. Wimeyer e no mais puro francês, aventurou com meiguice:
-- Poderias conceder-me um momento, papásinho?... -- E logo, um pouco perturbada e dobrando-se, ao notar a assistência: -- Ah, perdão... mas eu não queria desarranjá-los.
Perante a deslumbrante aparição, o Silveira pôs-se de salto em pé, aturdido, louco de prazer. As fontes latejavam-lhe, via tudo em branco... Mas já o encadernado professor estava de pé tambêm e cortêsmente solicitava vénia para ausentar-se. Apresentou com simplicidade à filha o Silveira, que, mudamente implorativo, se lhe interpusera no caminho. -- Era Iréne, a mais nova das duas... «A doutora da casa», -- sublinhou o pai com afável desvanecimento. E daí a instantes seguiam os três, fácilmente acamaradados, para a coberta de bombordo, onde o dr. Wimeyer, na sua experiência de vélho viajeiro e por ser êste o flanco menos batido do sol, havia sensatamente marcado cadeiras para a família. Aí estavam, reclinadas molemente numa atitude elegante de abandôno, a espôsa do professor, D. Catalina, e a filha mais vélha, Dolores, -- esta lendo uma qualquer Revista ilustrada, aquela imersa em repousada beatitude. Pai Wimeyer apresentou-lhes com um sorriso protector o Silveira, a quem fez mesmo depois sentar na sua cadeira, entre D. Catalina e Irene. -- Que sorte!... nem de propósito... -- E, trocadas algumas palavras a meia voz com a mulher, pronto voltou para o salão, a reatar a sua voluntária catequése interrompida.
O Silveira ficou então só e inteiro senhor do campo, na sua tam apetecida situação junto das três senhoras. Encareceu com lisonjeiro calor o seu inexprimível prazer de travar conhecimento com uma família "tout-à-fait distinguée" como aquela: assim lho haviam afirmado e via-se logo... Na mais amável solicitude, buscava pela louvaminha "à outrance" insinuar-se. E com um desvanecimento entre altaneiro e ingénuo, D. Catalina corroborava, explicava então, -- que era argentina, aparentada ainda com os Alvear, uma das raras famílias de aristocracia autêntica que podiam contar-se no seu embrionário, no seu mesclado país de "chacareiros" sem passado e adventícios sem escrúpulos. Regressavam duma viagem de recreio, de seis meses, pela Europa. -- E, a propósito, iam preguiçosamente arrastando êsse mais ou menos sabido travamento de vagos comentários, de estribilhos banais, tôda a sorte de frases feitas, sôbre os encantos de Paris, as maravilhas da Suíça, as preciosas coisas da Itália. Neste terreno fácil de consabidas baboseiras, o tacanho Silveira, que tinha viajado algo e não era de todo alheio ao francês, acompanhava as três senhoras lindamente. Mas, à medida que o diálogo aquecia, o espírito vivo e original de Irene estremava-se, tinha um critério seu, lampejava em pontos de vista pessoais, em contornos por vezes imprevistos. Discreteava com elevação sôbre coisas da arte e do espírito. Em tôda a Itália, nada a cativára tanto como Florença. -- Que ambiente divino! Ali tudo era fino, harmonioso, tocante, puramente lançado e superiormente belo.
-- É certo. Até as mulheres... -- arriscou, com instintivo acêrto, o Silveira.
-- É a cidade de mais deslumbrante e copiosa tradição espiritual. Da sua arte divina a mesma Natureza é tributária. É o coração do mundo! -- epilogou Irene com brio; e depois, voltando a fechar-se na sua tímida reserva habitual, singelamente: -- Mas tambêm, a propósito de arte, deixe-me dizer-lhe que admiro muito, que aprendi imenso neste rápido estudo da arte europeia, não há duvida. Oh, mas é uma arte demasiado sábia, uma arte tôda facturada e etiquetada de antemão, um curso forçado de "savoir-faire" em que os rasgos de génio são espontados como se castigam as diabruras dum menino mal educado. Falta-lhe a espontaneidade, que sómente o viço criador dos países novos poderá voltar a restituir-lhe.
-- O quê! tu crês na possivel afirmação duma arte americana, "ché"? -- acudiu a irmã de Irene, parando de lêr, num desdem incrédulo.
-- Tanto como creio em Deus! É uma questão de tempo.
O Silveira prometeu-se interiormente consultar sôbre o caso o Mackenna. E grado e grado a conversa do grupo tomava vida, côr, interêsse, e travava-se mais quente e familiar agora, no relativo isolamento em que os ia deixando a debandada geral; pois tudo correra a estibordo, a presenciar o primeiro número dos jogos sportivos. E é de saber que entre os mais entusiastas e ligeiros "aficionados" passou a pequenina e desmanchada figura de Ramón Alvarez, o qual, ao ver assim de súbito o Silveira já mano a mano com as três sechoras, teve um saltinho de angurú e fechou num piscar de olhos patusco a parópsia do seu espanto.
No pequenino grupo amigo de bombordo, depois de arte e de modas, falou-se na variedade, na magnificência e beleza da paisagem europeia, na doirada opulência da sua luz, nas carícias infinitas do mar, nas perspectivas majestosas da montanha. Mas tambêm aqui a longa e espiritual Irene discordou, e erguendo froixamente o braço, sempre na mesma toada modesta e simples:
-- Aí está outra coisa... Quanto a esplendores de paisagem, a deslumbramentos e pontos de vista inéditos, hão-de-me permitir que discorde; porêm tenho minhas restrições a fazer. -- E com a expressão sincera e calma, sob o olhar atento da assistência: -- Eu não sei... talvez seja por efeito de haver nascido num país horrivelmente chato e monótono, mas a verdade é que no meu conceito a Natureza, ao contrário dessa apregoada opulência, dessa mirabolante fecundidade e viva sucessão de aspectos que tôda a gente lhe atribui, é duma indigência manifesta de iniciativa e invenção, não consegue renovar mais que os mesmos invariáveis "coups de théâtre" e os mesmos cansados e gastos espectáculos, seja qual fôr a altitude ou o clima. Repete-se a cada passo.
D. Catalina, no íntimo desvanecida, julgou oportuno intervir:
-- Lá volta esta minha filha às suas originalidades... Por mais que o pai a corrija...
-- "Mamita!" original, eu?... quando exponho coisas que os outros podem observar por igual?
-- Os outros, não! -- objectou Dolores, com mal contido azedume: -- Eu pelo menos encontrei, e creio que encontraria sempre, o contraste mais formal entre os nevoeiros sujos de Londres, por exemplo, as imaculadas neves alpinas e as escarpas sangrantes da Sicília.
Mas, na mesma dogmática singeleza, Irene, de mão estendida, fechando com o polegar o indicador e abatendo as pálpebras:
-- Tudo a mesma coisa! No dia em que tu tenhas o coração destroçado, essa corôa alvíssima dos Alpes aparece-te suja como um trapo servido. O chamado esplendor do Mundo é tudo quanto há de mais convencional. Depende de nós... de nós exclusivamente. Êsse consagrado chavão do deslumbramento pagão das coisas não é, no fundo, mais que o espelho da nossa sensibilidade, o reflexo exterior dos nossos estados de alma. -- A irmã e a mãe sorriam, com um ar incrédulo; e ela, persuasivamente: -- É certo! Tal a sensibilidade no nosso íntimo braveja ou esplende, tal vemos de roda de nós a vida. São as mais das vezes as vibrações cantantes do nosso mundo interior que ao mundo exterior emprestam todo êsse decantado brilho objectivo. É um esplendor de empréstimo. Sem nós não valeria nada.
-- Está bem, está bem... -- comentou D. Catarina, prolongando um risinho irónico em que havia um mal reprimido brilho de vaidade.
De sua banda, o Silveira, de olhos muito abertos e não sabendo que contestar, limitava-se a assentir com vagos acenos de cabeça, idiotamente.
Assim, à medida que o diálogo ganhava interêsse, ia-o Irene esmaltando de notas originais, de impressões verídicas e frescas que ela extraía e desdobrava do íntimo, como um perfume que impregnasse o seu sangue, espontâneas, vivas, palpitantes, e que deixavam o Silveira imerso num atolondrado mutismo, por serem coisas impenetráveis à sua ignorância e inacessíveis ao seu critério. Entretanto, o seu temperamento sensual, agora, acobardava-se... sofria a influência transcendente e dominadora daquela nobre e espiritual figura. Irene inclinava-se de preferência para êle, naturalmente, e naturalmente ia desfiando os seus amáveis paradoxos, sempre com a mesma voz límpida e virginal, em frases breves como toques de pincel, vincadas pelo acento imperativo das inquietas mãos, incendidas no lume sideral das grandes pupilas sombrias. E era como se na espiritualização crescente das frases e dos conceitos a sua indumenta animal gradualmente se fundisse. Tôda a impressão de matéria desaparecia... os seus olhos eram reflexos de astros, os seus lábios eram tintas de emoção, os seus braços eram volutas de sonho; e um nimbo de harmonia dulcíssima emanava, como um fluído mágico, de todo o seu atenuado ser, simples e tranqùilo. Não obstante, junto dela o coração do Silveira, como se aspirasse um ramo de flores de aromas violentos, batia mais apressado.
Por fim, quando, passado algum tempo, as primeiras velaturas do crepúsculo começaram a abater sôbre o barco o seu véu de tristeza, D. Catalina ergueu-se, com as filhas, pedindo vénia para retirarem-se. -- Aproximava-se a hora de comer. -- Houve uma afectuosa saùdação de despedida, -- para Irene a última, -- e depois o Silveira, imóvel e em pé no mesmo logar à medida como ia vendo esta fina, longa e clara figura esfumar-se na luz fugacíssima da tarde e delir-se na distância, tinha a ilusão de que ela não era mais do que uma pura abstracção, imaterial, intangível, como êle se lembrava de ter uma vez lido de Pierrot, -- que nascera da projecção de um raio de luar sôbre um muro branco...
Essa noite levou-a deliciadamente o Silveira, embalado na casta volúpia dum vago e alado sonho, erguido nas espírulas de oiro dum alheamento alto e inefável. A ablução espiritual daquele curto diálogo com Irene afinára-lhe o sentir, infiltrára-se nas mais nobres e puras radículas do seu ser, e como que alimpára por momentos a sua alma fruste das escórias brutais do instinto. Na manhã seguinte, ao despertar, notou que o "Almeria" ralentára a marcha, e que lhe montava ao coração e lhe toldava o cérebro o que quer que fôsse de opressivo e cálido. Ganhava-o a depressiva molenta do aproximar dos trópicos. Pela ventanilha, mesmo da cama, olhou ao largo e viu que barrava cêrca o horizonte uma espécie de ciclópico muro negro. Era o arquipélago de Cabo-Verde, -- recordou. Lentamente, com uma delidora quebreira nos músculos dormentes, reagiu, ergueu-se. -- Em cima, na tolda, não havia sol, e a luz diluia-se em grisáceas e densas toalhas, dispersa como andava no peneiramento molhado da neblina, cortada como era por êsse formidável circuìto de montanhas áridas e a prumo, escalando sinistramente o espaço. Não se divisava em tôda esta imponente massa, de ruína e de sombra, uma nota clara, um cântico de luz, uma choupana, um rebanho, uma árvore, qualquer perdido "oasis" de frescura e de repouso. Era o repúdio formal da Natureza. Dentro dêste revôlto anfiteatro de maldição e de treva, o mar, fundo, plácido, dum tom uniforme de pêz com espelhamentos lívidos, parecia amortalhado, era como um lago dantesco estrangulado na convulsa paralização dum cataclismo. E tudo falava de desolação e de morte neste atormentado pórtico do Averno, nesta monstruosa cavalgata petrificada, paìsagem de pesadelo tôda em pontas ásperas e hostis, em escarpas que davam vertigens, em agulhas topetando o céu, em rampas escalavradas e adustas; terra de abominação onde a vida parára por completo... arestas sôbre arestas, abismos sob abismos... e cuja trágica insensibilidade o mar, com os seus mansos rolos, buscava em vão comover, mandando-lhe o acariciamento deslumbrante das suas franças de espuma.
Mal tinha o barco lançado ferro e já era simultâneamente invadido, a bombordo e a estibordo, por um duplo cordão de negros, -- puros bronzes vivos, -- ágeis, luzentes, hercúleos, a maior parte vestidos apenas dum pó ainda mais negro do que êles, e que trepavam lestos à amurada ou marinhavam pelas cordas como símeos, para deixar-se escorregar depois sôbre as várias cobertas, trejeiteando, garatujando, saltando e em risinhos duros, como de canibais, mostrando o impecável marfim dos dentes. Eram os carregadores de carvão que acudiam à faina. Porêm, seguidamente, da ensurdecedora algarada que subia do sem-número de pequeninas embarcações rodeando, em baixo, o vapor, um outro impúdico enxame de simiescos truões agora surdia, igualmente ágeis e negros, igualmente nus, mas êstes na maior parte ainda impúberes, limpos e de formas delgadas, desdobrando na sua exótica invasão adoráveis linhas de graça gentílica, -- e todos na vibrante impaciência de disputar pelo mergulho a caça das moedas que de bordo os passageiros lhes atiravam, por divertir-se. Uns da casca frágil dos botes, outros pelas enxárcias e mastaréus do vapor suspensos, toda esta coreia juvenil se agitava sôfrega, todos pediam clamando, cabriolando, encrespando a figura, erguendo os joelhos, batendo as mãos, desmanchadas nas mais inverosímeis atitudes, zurrando tôda a classe de ruídos bárbaros; depois, quando a tentadora rodelita de prata ou de oiro traçava o seu meteórico brilho pelo espaço, êles atiravam-se a nado, de braços em ponta, como flechas, havia um abundante chapinhar nas águas, e daí a segundos um dêles reaparecia, amostrando e apertando a codiciada moeda na ponta do focinho triunfante.
Com tôda a sua abominável selvajeria, o espectáculo tinha um impressionante sabor pagão a que o Silveira não pôde manter-se alheio. Seguiu-o por algum tempo com agrado, vibrando ao contagioso estímulo daquele torneio brutal de agilidade e de fôrça; e apenas, uma que outra vez, ao lembrar-se de Irene, olhava receoso em tôrno, tomado por ela dum instintivo pejo... no apreensivo temor de quanto o seu virginal recato por aquela impudente exibição animal se sentiria ofendido.
Nem ela, nem ninguêm dos Wimeyer apareceu, felizmente. O Silveira descortinou porêm, não sem uma certa surprêsa, gozando muito compadres aquele "sport" bárbaro, Helena d'Ellery e o Mafiori, ombro com ombro, e furtados discretamente ao besbelhoteiro rodeio das atenções no mais escuso ângulo da ré, em cima, sôbre a última coberta.
Um vélho negro, derreado e esquelético, se lhe acercou entretanto, ofertando produtos da indústria rudimentar do país: colares, anéis e broches de coral, saquitos de junco, bôlsas de sementes luzidías e duras como azeviche, grossas gargalheiras policromas tecidas de conchas, de corais, de pedras polidas, de caroços de plantas indígenas e gomas aromáticas. Exprimia-se com dificuldade, gaguejando e mascando, num galimatias gutural todo em monossílabos, adulteração burda do português, cortada, áspera, intraduzível. De roda, uns tantos mais mercadores mendigos, como êste, circulavam tambêm, oferecendo laranjas, bananas, côcos. E, vista assim de perto, a hirsuta e negra turba perdia aquela nativa selvajeria da sua primeira investida feroz ao vapor; buscavam suavemente comover a esquiva indiferença dos clientes, em gestos não isentos de docilidade, dobravam-se tímidos, humildes, e apenas se lhes traía a braveza inculta da condição no ávido dilatar das chatas narinas, na escrutadora dureza do olhar astuto.
Entretanto, por efeito do transbôrdo do carvão, ganhava mais e mais a imobilidade gorda do ar um pó negro finíssimo, imponderável, que tudo inquinava, que tudo afogava, que tudo invadia, e que levado na asa fuliginosa do seu irresistível poder emporcalhante, não havia brilho que êle não apagasse, não havia limpa claridade que êle não pontilhasse de sombra. Então o Silveira, que começava a ver o seu rico fatinho claro salpicado e mordido de minúsculas lâminas negras, como coleopteros daninhos, teve que renunciar a seguir aquela picante aproximação de Helena e do marquês, e resolveu deixar a tolda e internar-se no salão, seguindo o exemplo do maior número. Mas aí logo, do canto duma mesa, o pequenino Ramón Alvarez a chamá-lo em grandes gestos, com uma intimativa insistente, quáse aflita. -- Queria em primeiro logar felicitá-lo... Que bem dirigido assalto, que sorte fulminante! Estava um outro Júlio César... Maganão! -- Depois, ao notar a expressão de desagrado do Silveira, numa brusca reviravolta, com um tom insinuante e outra vez aflito: -- Que estava muito atrapalhado... Uma andaluza, que era um vivo demónio, pedira-lhe para escrever um pensamento no leque. E êle, embaraçado na escolha, não sabia bem por que decidir-se...
-- Tenho aqui tantas, tantas coisas!
E estrangulava nas mãos nodosas a cabeça descomunal, nesta hora crítica por fôrça ardendo em plena gestação de baboseiras.
Daí a umas horas, no "bar", juntavam-se os parceiros habituais do "bridge", faltando apenas o marquês, que num estranhável desmentido à sua habitual correcção, já ia tardando. Faltava tambêm "M."^{me} d'Ellery, e o seu imprescindível assessor, o vélho bonzo, fazia maçaneta com as mãos sôbre o paninho verde e franzia a bôca exangue, em mal reprimidos sinais de impaciência.
Então, manhosamente o Silveira tomou o Mackenna de parte, e por entre um risinho cheio de reticências, cujo significado exacto êste não podia apreender, perguntou-lhe «como ia a coisa?» E logo, todo jactancioso, o outro segredava-lhe que ia lindamente! era uma conquista segura...
O intrometido Contreras, que viera familiarmente imiscuir-se na conversa, tossicou, amolou, coçou as barbas, incrédulo. E, com ar ofendido, o chileno:
-- Parece que o amigo duvida?
-- É que o vejo tornar as coisas fáceis... Não se caminha assim. Devagar, devagar... Entre o pensar e o fazer, "hay que tomar el tranvia".
-- Se queria apostar?
Porêm o Silveira, que tinha dançando-lhe pícaramente diante dos olhos o inopinado grupo do tópe da ré, naquela manhã, encolheu os ombros numa ironia mansa:
-- Eu já não digo nada...
Havia agora cinco longos dias a passar antes que volvessem a avistar terra firme. Uma larguíssima sucessão de horas, sempre as mesmas, que seriam vividas inevitávelmente sôbre a cálida opressão daquela atmosfera pesada e espessa, que haviam de arrastar-se numa monotonia sem fim entre o proceloso encapotamento do céu e a opacidade revôlta das águas. Então, tôda esta grande família que o acaso improvisára ali, sôbre o piso encerado das várias pontes e cobertas, naturalmente, a iludir a anestesia morna do tédio, vinculava-se, cingia-se mais, buscava a cada momento pretextos novos de aproximação, lances de mútua intimidade; teciam-se correntes súbitas de simpatia, havia um efusivo desborde de galanteios, atenções, franquezas; concertavam-se negócios e associavam-se interêsses; -- como se no precário âmbito daquela enorme jaula ambulante êles constituissem um universo novo, como se dentro dêsse frágil circuìto de madeira e aço coubessem tôdas as suas preocupações, planos, sonhos, febres, ambições, desejos... o concêrto do seu futuro e a incógnita do seu destino. Contudo, sobrelevando a irresistível sugestão dêste acercamento crescente de relações e intimidades, o Silveira teve ocasião de notar que as senhoras Wimeyer, coerentes e imutáveis na sua linha de inviolada isenção, não se davam senão com êle.
"Mrs." Edith, que se havia despido sensivelmente da sua dignidade senhoril, andava agora tôda entregue à divertida seriação dos jogos. O ardente sôpro panteísta da desgarrada vida de bordo acendêra-lhe a repousada candura infantil em espontâneos ímpetos; e a cada passo ela vinha e interrogava com vivacidade o Silveira, na sua qualidade de membro do "Committee", sôbre horas, datas e mais circunstâncias e pormenores, que a redonda ignorância do interpelado tinha que deixar invariávelmente sem resposta. Ela reptava-o amavelmente, em graciosos chistes e coquetonas burlas, a que servia de intérprete a complacência cínica do marido. -- Estranhava realmente não o ver inscrito em nenhum dos números do Programa. Já não dizia, em suma, no "Passo entre as garrafas" ou na "Luta dos travesseiros", que requeriam predicados especiais de agilidade e de fôrça; mas em qualquer outra coisa... por exemplo, na "Corrida das batatas", tam fácil... ou então no "Combate dos galos". -- Ao desenho grotesco desta idea, tôda a patrícia figura da irlandesa estremeceu num júbilo: e arrebatadamente, batendo as mãos:
-- Ah, sim! sim! aí está... Queria vê-lo de galo... Seria tam interessante!
Redondamente, o Silveira, entre bisonho e indignado, escusou-se. Ela então, num procurado ar inocente e um fiosinho meigo de voz, cheio de promessas:
-- Bem, mas promete-me que vai ao menos inscrever-se no "Enfiar da agulha". É fino! é lindo!
E com um risinho provocador a erguer-lhe a púrpura sensual dos lábios: -- Que fôsse, que fôsse... que ela lhe procuraria a vitória.
Avizinhava-se a passagem do Equador, que seria celebrada a bordo por um grande baile de fantasia, antecipação muito a propósito do Carnaval, que vinha próximo, pois terça-feira gorda era já cinco dias depois da «passagem da linha», por alturas do Rio de Janeiro. Prometia vir a ser êste Baile o número mais brilhante do Programa das festas, e, dois dias antes, já a população feminina de bordo quáse se não preocupava de outra coisa. Haveria prémios, adjudicados por votação geral; e admitiam-se duas classes de trajes de disfarce, -- os improvisados a bordo e os trazidos já entre a bagagem. De família para família, de grupo para grupo, fantasistas, curiosas, insistentes, as interrogações cruzavam-se; porêm, naturalmente, cada um furtava-se, guardando absoluta reserva, e então as mais aventurosas hipóteses, as mais abstrusas e sôltas imaginações cresciam e batiam asas, como borboletas demandando a luz, de roda dêste fechado círculo de mistério. Boquejava-se apenas que o Alvarez preparava um número de sensação; que Pilarita Gomez, a desenvolta "morenucha" que êle cortejava, figuraria, a conselho seu, num "travesti" algo picante; "Mrs." Edith resistia inflexível às inquirições dulcerosas do Silveira, que apenas conseguiu registar a renovação freqùente das conferências dela com o cabeleireiro; e sabia-se que a petulante d'Ellery ostentaria um primoroso traje de odalisca. Por sinal que, como ela, uma noite, na pequenina tertúlia habitual do "bar", se lastimasse de que lhe faltava um adôrno a condizer, para a cabeça, logo todo solícito e importante o Mackenna prometteu arranjar-lhe uma linda peça a propósito, meio turbante, meio diadema, havia de ver... qualquer coisa de abracadabrante, de sumamente artístico e grandemente extraordinário. E o caso foi que, na manhã seguinte, êle aí vinha instalar-se afanoso a uma das mesas do salão, munido de tesoura, compasso, régua, esquadro e um frasco de cola, e sobraçando um volumoso fardo; e convertia abusivamente êste liso rincão do "Social Hall" em oficina, logo extraíndo dessa boceta de Pandora pelintra a mais desconcertante, a mais imprevista miuçalha, rodeando-se por um abundoso aparato de fôlhas de lata, de cartão, de vélhos retalhos de cachemiras, sêdas, veludos, de lantejoulas, sequins, rolos sujos de algodão e tiras de papel doirado. E dois dias pegados levou ali assim, riscando, talhando, cortando, ageitando, unindo, compondo prègas, chumaçando relevos... enquanto limpava açodado o suor e arredava a melena, nos intervalos de pausa benefica que raro lhe concedia a congeminação febril dos dedos; e sempre espargindo uma nuvem impertinente de ciscalhos, de trapos, de escórias fulvas, perante a admiração trocista dos passageiros e a muda indignação do "steward" da sala, chocado por esta suja infracção dos regulamentos.
Por fim, naquela «quinta-feira de compadres», logo na antemanhã, o amplo convés de bombordo sofria uma transformação completa. As cadeiras de repouso haviam sido recolhidas aos flancos, e agora a marinhagem fazia àquele largo recinto um emparedamento vistoso, colgando-lhe em tôrno bandeiras e flâmulas de tôdas as nações, sujeitas de alto a baixo por argolas e cordagens, batendo multicolores ao vento. Até aconteceu que, por um lapso aliás fácil de explicar, dada a mudança tam recente das instituìções portuguesas, a respectiva insígnia que aparecia desdobrada ao contôrno drapejante do improvisado salão, era ainda a bandeira monárquica. Não escapou êste inocente anacronismo ao Silveira, que, radiante mas cauto, se limitou a esfregar as mãos num raivoso júbilo, felicitando-se no íntimo por êste como que público e espontâneo desagravo que aos seus fidalgos brios o acaso, ali assim, vingadoramente lhe oferecia. Mas o pior foi que daí a instantes passaram tambêm dois outros compatriotas seus, -- um caixeiro da firma Brandão Gomes, de Espinho, e um agente da «Camisaria Confiança», do Pôrto -- adoradores incondicionais do Basílio Teles e antigos revolucionários do 31 de Janeiro, os quais, tomando por uma deliberada afronta internacional aquela inofensiva exibição da bandeira azul e branca, logo protestaram indignados e, de caminho passando palavra aos correligionários que iam encontrando, breve foram todos levar exibitivamente perante o Comissário de bordo a expressão do seu "veto" colectivo, em termos que o escandaloso símbolo teve de ser retirado. Enquanto a reparadora desmontagem se fazia, aqueles dois primeiros estrénuos zeladores da verdade histórica miravam de soslaio, trocistamente, o Silveira, com a pupila triunfante. E êste então, como não havia a nova bandeira rèpublicana a bordo, monogolava com tristeza: -- Afinal, aí se fica o meu pobre país sem representação! -- E depois, num soberano ar de desdêm, com um risinho perverso: -- Que realmente era como estava bem... que aquilo agora, com a rèpublica, não era nação, não era nada.
Fechado assim por essa improvisada cinta internacional o recinto, a mesma marinhagem com uma vivaz e alegre solicitude, festoava-o em abundância de renques de flores de papel, aplicava-lhe, a multiplicar a iluminação, pêras eléctricas policromas. Por último, o piso encerado foi passado a gis, para garantir a integridade corporal dos bailarinos. E durante todo o dia pode dizer-se que nesta parte reduzida do convés se resumiu o melhor da vida de bordo. Os que não trabalhavam, vinham ver. A certa altura, desceu mesmo a inspeccionar amávelmente o andamento dos preparativos, a sêcca figura esquiva do comandante. Tambêm os Wimeyer vieram, num rápido giro, ver todo aquele arranjo, ao que êles chamavam uma diversão "cursi", mantendo-se altivamente alheios. Ao almôço, no comedor, foi sensível a ausência das senhoras. E, fechados como se mantinham nas respectivas "cabines", uma bôa parte dos passageiros, no vivo empenho de ultimarem a tempo os seus disfarces, resultava assim que, por momentos, e a não ser a mancha arrogante de um ou outro contumaz grupo "sportivo", o dilatado "stand" do tombadilho aparecia deserto.
Ao anoitecer, mal a corneta deu o primeiro sinal para o jantar, logo o comedor foi assaltado e invadido com uma grossa presteza, como até àquela noite, em tôda a viagem, não havia memória. É que a direcção do "Committee" rogára aos senhores mascarados a fineza de descerem a comer, trajando já os seus disfarces; e assim os simples "mirones" davam-se pressa em ir ocupar os seus postos de observação, na ânsia natural de gozarem bem, desde o começo, a aparição picante das figuras. Daí a minutos, os primeiros máscaras, logo acolhidos com palmas, desciam leves os cinco envernizados degraus da escada. A seguir, outros e outros, aquecendo de passo o ambiente do salão, que estimulado por esta ronda bufona de côres estrídulas, de silhuetas, formas, gestos, símbolos e brilhos imprevistos, vibrava e estralava de notas alegres, de comentários patuscos, de aplausos, vaias, interjeições, pilhérias, burletas e volatas de risos. E é que havia de tudo nesse desfile bigarrado e inédito: traços ingénuos e arripios bárbaros, a trivialidade e o inédito, a brutalidade e a elegância. Ora, eram selvagens negruscos que vinham aos saltos, guinchando e rolando, e "boy-scouts", zuavos, marujos, "pierrots", fazendeiros, "gauchos", tangedores de gaita de foles; ora, insulsas meninas de bôas famílias, que, ao amparo discreto de consabidas e recatadas formas, vestiam apagadamente de "Fada", de "Noite", de "Minerva", de cigana ou ledora da "buena-dicha".
Na mesa do Silveira, só se mascarava o Mafiori, que não acabava de aparecer. Não aparecia tambêm, por igual, o Alvarez. A sua endiabrada Pilarita, numa "louche" figuração de "apache", estava lindamente, adorável de canalhismo galante e desinvôlta graça. "M."^{me} d'Ellery ostentava uma riquíssima túnica oriental, tôda oiros e sêdas, a cabeça sumia-se-lhe estrangulada no turbante birsamal do Mackenna, e vinha pelo braço passivo e solene do seu derreado protector, de laço branco e "frac", tendo na lapela uma palma de esmalte verde. Tambêm vinha em grande "toilette", com a espalda provocadoramente nua e altos tacões doirados, a jovem multimilionária Nora Scott, uma histérica mordida de zelos pela irredutível esquivança do Silveira. "Mrs." Edith foi das últimas a descer, tôda grave e senhoril, a par com a complacência orgulhosa do marido. Trajava um elegantíssimo "costume" Pompadour, que como que a aligeirava, lhe adelgaçava a redondeza helénica das formas e lhe punha asas na figura, -- e que era todo êle do mais puro bom-gôsto e do mais escrupuloso rigor, desde a maranha luxuriante do penteado, desde as miuditas flores e as prèguinhas leves da saia e "corset", até às leves "mouches" do rosto, à fina pinturilha do leque picado de oiro, e à ténue e espumosa renda do lenço minúsculo, amarrotado entre os dedos. -- Oh, que esplêndida! -- rompeu extático, sacudido de admirativa gula, o Silveira, mal que a viu aparecer e batendo palmas: -- Bravo! bravo! Aquilo sim!... -- E com a face congestionada, num cotovelão persuasivo ao Contreras: -- Há-de ter o primeiro prémio!
Quando, por fim, uma redonda e rija morenita apareceu, com o busto saltante envolto na bandeira brasileira, os seus compatriotas, postos súbito em pé, aclamaram-na num brado unísono, ao tempo que de todos os pontos da sala os aplausos estrugiam com delírio. E no atropelado desdobramento desta sôlta feira animal, o vasto recinto perdera o seu frio e composto aspecto habitual, na sua disciplinada ordenança um tolerante parêntesis folião se abrira. Por entre o estrilante chocalhar das loiças e talheres, a cada momento os comensais paravam de comer e os moços cessavam de servir, cortados e suspensos no contágio truanesco dêste concertante bárbaro, fustigado a espaços por frémitos de loucura. Pouco depois, em cima, ao compasso dum "two-step" sofrivelmente semsaborão, "a quêu" cabriolante dos máscaras, desfilando marcialmente, fez o circuìto do tarraco salão de baile. Apareceu então o Mafiori, que vinha soberbo, encadernado em mandarim. Porêm agora o grande êxito da noite foi para Ramón Alvarez, que ideára realmente uma improvisação feliz, -- montado em andas e rodeado por uma espécie de grande roca cilíndrica, feita em madeira leve e de cima a baixo encoberta por uma túnica de chita roçagante, à maneira dos santos de aldeia, na sua terra. Assim realizava um picaresco "gigantón", que êle animava procazmente, ao alto, com a autêntica enormidade da cabeça, prazenteira e afável oscilando, tôda em mesuras. E nenhuma sorte de máscara ou atenuador disfarce nesta estadeação impudente da figura. Apenas êle avivára a sépia e nankin a dura projecção das feições, e asperisára a poder de caio e zarcão a macieza juvenil da face, tornada assim a raíz lógica, natural, da adusta rubefacção do cránio. Era um prodígio de bom humor esta valente ampliação caricatural, êste autocomentário alegre à própria disformidade.
Entretanto, de roda, à parede drapejante das bandeiras viera cingido e compacto inscrever-se o muralhão dos curiosos. Grupos surrateiros conseguiam vir de fóra e insinuar-se, impávidos e de pé, avivados pelos rostitos frescos das "midinettes" da 2.^a classe, trazidas arteiramente pelos oficiais de bordo a gozar o espectáculo. O Silveira não teve descanço enquanto não abordou a irlandesa, para lhe enaltecer numa mímica eloqùente a impecável distinção da "toilette". E ela, infantilmente:
-- "You like"?
Êle, incendido e vibrante, confirmava, -- que sim, -- e sentindo um desvanecimento ingénuo em acompanhá-la, procurava fazer-se compreender, num desbarato exultante de admirativas olhadas, galanteios, vénias e lisonjas, que só cessaram quando o impróvido galã notou que as Wimeyer tinham vindo plácidamente tomar, num reservado cantinho, as suas cadeiras. Êle então desligou-se da irlandeza, e mudando de tática, forte no seu propósito de fazer triunfar aquela deliciosa figura, digna de fixar amorosamente as prodigiosas faculdades de realização dum Boucher ou dum Latour, tudo era chamar para ela as atenções, encarecer-lhe a propriedade impecável do disfarce, a beleza galante do arranjo, e onde quer que êle visse alguma pessoa do seu trato, na disposição de preencher a respectiva lista, -- fôsse embora um quáse desconhecido, -- aí corria logo a tentar persuadi-lo, a pressioná-lo com vivacidade, a suborná-lo pela lisonja, no implacável desígnio de fazer vingar o seu desejo.
Grado e grado, porêm, a pressão sufocante do ar, a aglomeração, o calor, o contágio erótico das danças, iam determinando na foliona turba um começo de enervamento que se exteriorizava em sensíveis mostras de enfado, em estases mórbidos de cansaço. Já os homens passavam os lenços pelo pescoço, arejavam o nariz, enxugavam a testa; as ventarolas e os leques andavam abundantes de mão em mão, sempre na sua palpitação tremulante de passaritos assustados; e aos compassos convidativos da orquestra a ronda flamante dos pares ia rareando. "M."^{me} d'Ellery tinha calor, afogada no largo e fulvo amplexo da sua rica túnica oriental, molestada sobretudo por essa desgraciosa bisarma que lhe oprimia a cabeça, -- uma obstrusa composição da qual, para mais, ela notava que todos em roda mais ou menos claramente se burlavam. Porque nesta criação infeliz o Mackenna, fiel aos seus ideais cubistas, realizara, não o canto harmonioso de curvas que seria a condizer com o voluptuoso coleamento e as lânguidas suavidades daquele traje magnífico de sensualidade e de sonho, mas uma desconforme tôrre de pesadelo, tôda em ásperas e duras linhas, em rasos planos, em projecções maciças, em cruas e vivas oposições, em ângulos que se penetravam, em pontas que se hostilizavam, em arestas que ofendiam a vista. Era a cabeça do Alvarez estilizada. Um retalho de pagode primitivo incrustado num ângulo da muralha da China. Por fim, num gesto de definitiva emancipação, a insofrida Ellery atirou com o molesto diadema para trás do piano, despiu a túnica, e provocadora e ardente, com a frescura roliça do busto bailando agora sob a branca blusa transparente, como lobrigasse perto o Alvarez, -- que tambêm se desembaraçara do rodapé de chita e das andas, ficando em mangas de camisa, -- travou-lhe súbito do braço e rompeu com êle num desenfreado "can-can", que foi um escândalo para a porção grave e burguesa da assistência.
As Wimeyer haviam-se retirado antes; propícia eventualidade que o Silveira aproveitou para ir valsar com a irlandeza. Depois, como o momento das votações se aproximava, ei-lo aí de volta na sua furiosa, na sua amoruda galopinagem, de grupo a grupo mendigando votos, captando adesões, forçando vontades. E o caso foi que logrou o apetecido êxito; o primeiro prémio para os trajes já de antemão preparados foi com efeito conferido a "Mrs." Edith, por maioria enorme. Dos homens, alcançaram naturalmente a primeira votação o Mafiori e o Alvarez. O prémio para o melhor disfarce feminino, improvisado a bordo, fê-lo adjudicar a colónia dos saxões e "yankees", por um sufrágio esmagador, a uma inglesa esnalgada e longa como uma chaminé de fábrica, a qual tivera a suculenta idéa de se mascarar, figurando uma espécie de cozinha ambulante, -- para o que se deu ao trabalho infantil de semear e pendurar pródigamente, doidamente, ao acaso, pela sua vestimenta servil, cortada em grossa sarapilheira, uma heteroclita profusão de caçarolas, tachos, cafeteiras, abanos, tenazes, pás, colheres, ramos de cebolas, toros de couves, mólhos de rabanetes, nabos e cenouras.
Entretanto, o Silveira, querendo tirar partido da situação, havia passado com "Mrs." Edith ao "restaurant" improvisado no convés de estibordo, para celebrar com ela, a "champagne", o seu triunfo. Breve apareceu porêm o conde a cortar-lhes a efusiva comunhão dos "toasts", ponderando -- que era tarde, tinha sono... e ela tambêm devia estar fatigada. -- Bebeu ainda uma taça de "champagne", brindando pelo Silveira, e, em grossos bocejos, despediu-se e partiu, amparado em pêso ao busto airoso e leve da mulher.
Os outros comensais, de momento ali, foram tambêm passo e passo desertando; de sorte que, em breves minutos, o Silveira surpreendia-se quáse só e como que restando o único assistente ainda aos últimos acordes da festa agonizante. Sem embargo, não se sentia em disposição de descer à "cabine". Aquecia-o uma instintiva febre de movimento; carecia do róce fresco do ar e do embalo manso das vagas, que lhe mitigassem a mordente excitação, derivada das múltìplas e opostas comoções da noite. Fazendo então o giro distraído do barco e erguendo ao alto a espertinada cabeça, fixou naturalmente o seu perdido olhar na imensidade calma do céu e da sua eterna abóbada constelada. Liberta por agora da forte evaporação do dia, a atmosfera alimpára e despojára-se do véu cendrado da neblina. Apenas a diafaneidade imponderável do éter se baloiçava entre as sombras vagas do mar e o vago luaceiro do Infinito. Eram sempre as mesmas constelações fulgurantes, a mesma pregaría de fogo, o mesmo brilho orgíaco, aqui semeado ao acaso por entre flócos de neve ardente, ali afirmando aladamente no espaço o seu fulgor solitário. Contudo, era êste um céu diferente do que êle estava habituado a ver na sua terra, era um céu menos povoado, menos esplendente, menos loução, e que por isso mesmo lhe parecia mais amplo, mais distante, mais solene, mais profundo. Não tam densos e brilhantes se desparramavam aqui, e distribuidos por outra forma, os pregos de oiro dessa incontável poalha sideral, esparsa pelo espaço. Seguramente era êste o cósmico scenário próprio, a divina cúpula de protecção adequada às ignoradas regiões aonde êle se dirigia, de mudas solidões intérminas e imensas extensões desertas.
Dentro, porêm, da relativa parcimónia e o discreto brilho dêsse caminho dos deuses, alguns sóis se afirmavam potencialmente em fulgurações vibrantes. Um dêles, principalmente, que bastante acima do horisonte se erguia tremulante, faíscando, ardendo... Um grande diamante azul, prodigioso altar tendido ao fogo entre os astros e mantido pelas vestais incoercíveis da Via Láctea, -- suspenso pomo de luz viva, como que prestes a desprender-se da abóbada celeste, atraído pela noite insondável do mar e ancioso por descer a traspassá-la com o dardo deslumbrante da sua claridade, para decifrar-lhe o mistério e desvendar-lhe os segredos.
IV
Com a atenção dispersa e a alma prendida nesta viva e inédita sucessão de impressões, dos últimos dias, o Silveira esquecera fácilmente os seus humildes vizinhos de bordo, e nunca mais a sua grata sensibilidade estremecera no interrogativo anseio de conhecer bem na essência, de palpar mais de perto, os sentimentos, opiniões, tristezas, projectos, angústias, condições e desígnios daquela corda fruste dos seus presumíveis correligionários, que ali assim seguiam, mesmo a seu lado, promíscuamente esmagados, baralhados, baldeados, delidos no empilhamento sórdido da desgraça. Agora, porêm, o vago amadornamento em que a temperatura tropical como que ensopava as vontades, e as tranqùilas solicitações que à batida brava dos vários jogos e diversões naturalmente se seguiam, déram azo a que na alma dolente do Silveira a imagem saùdosa da Pátria esfumadamente esvoaçasse, e, junto, a sacudisse o comovido cuidado pela sorte daqueles tantos ignorados irmãos seus, atirados, sabia Deus por que duros e encontrados azares, ao traiçoeiro baloiço da Fortuna.
Por isso, numa linda manhã serena e cálida, logo a seguir ao "lunch", ei-lo que transpõe a portinhola gradeada do termo do seu corredor, e se aventura curioso pela suja e triste coberta da prôa. -- O mesmo mesquinho e sórdido espectáculo de sempre. No seu passivo abandôno às ignotas flutuações do destino, aquela caravana compacta de obscuros ilotas da Dôr ia e vinha, anudava-se e distribuía-se em formações de acaso, era como um grosso formigueiro humano, incansávelmente montando e sumindo-se pelo negro óculo que dava ao porão, cavado a um canto, fundo e insondável como um abismo. -- Porêm a inesperada aparição do Silveira causou ali geral estranheza. A descida dêste importante, dêste flamante e feliz desconhecido, té as patentes e repulsivas angústias daquela densa colónia eventual do infortúnio, fazia que as suas desprotegidas camadas, dando-se um instintivo alarme, se repregassem, -- uns por uma vaga e hostil desconfiança, outros como que pelo pejo da própria miséria. E o Silveira ia passando, ia seguindo compassadamente, manso e afável, nos forçados torcicólos a que o obrigava o atravancamento pelintra do recinto; ia cruzando os grupos, com o ouvido colhendo, atento, os cortados trechos do diálogo, com o olhar mirando fito o desenho e o arranjo das figuras; e, por sentir-se ali o alvo admirativo das atenções, no íntimo contente. Até que, por fim, se acercou familiarmente dum reduzido círculo de rudes gentes do campo, quáse todos de pés nus, que se lhe afiguraram portugueses, pela linha, pelos trajes, pela expressão, pelos gestos tacanhos, pelo olhar ingénuo. Eram patrícios seus, com efeito. E êle então, protector, insinuante: -- Que era tambêm português e ia para Buenos-Aires. Muito estimava conhecê-los... E àqueles que seguiam por igual para a Argentina, muito prazer teria em vê-los e servi-los por lá...
-- "Agardecido", muito "agardecido", senhor! -- balbuciou, de lábios confusos, um meio ancião vestido de saragoça, rapado e calvo, descobrindo-se.
Dulcerosamente o Silveira completou:
-- Em fazer-lhes todo o bem que possa.
-- Ai, que palavras de anjo! que rico senhor! -- exclamou, com a voz molhada, uma trigueira e rude quarentona, de saia de fólhos, cabeção de morim branco e uns pequeninos olhos doces, perdidos na aspereza da face enrugada e curtida. E num cotovelão entusiasta ao companheiro: -- Ouviste?
Êste arrastou meladamente, dobrado numa mesura e parando de rilhar uma banana:
-- Não faltará ocasião.
Procurando gradualmente insinuar-se, o Silveira tornou:
-- Vêem então procurar fortuna?
-- Se aquilo por lá está tam mau... senhor!
-- Então? -- o Silveira logo comentou, com um risinho perverso: -- É o que vocês ganharam com a rèpública.
-- Eu cá nisso, senhor, não sei falar...
-- Êle a coisa já lá vinha detrás... -- aqui se permitiu arteiro observar, adiantando-se um rapagão amplo e forte, de calça de bombasina, camisola e grande chapéu cinzento, enquanto raspava um fósforo no quadril, para acender o cachimbo.
O Silveira teve uma azêda, imperceptível contracção dos labios.
-- Parece-te?
-- Sim, que isto é com'o outro que diz... -- retrucou, sempre no mesmo ar intencional e altivo, o marmanjão. -- Com rei ou com roque, nós cá, os pobres, ficamos sempre com'o o carrapato na lama.
E aspirava voluptuosamente as primeiras fumaças do tabaco ardendo.
O Silveira, despeitado, manteve uns segundos de arreliativo silêncio; mas logo, dominando-se:
-- Bem! pois, repito, naquilo em que eu os possa servir... Interessam-me todos muito. Já vêem que vim de propósito para conhecê-los. -- E num refinamento interesseiro da sua amável solicitude: -- Qual de vocemecês é o que canta tam bem o fado?
Houve de roda uma vibração unânime de envaidecimento alegre.
-- O guitarrista? Ah, isso há-de ser ali assim o Matias "gingão".
-- Matias! ó Matias!
-- "Adrega" aqui, demónio!
Dirigiam-se a um pobre rapaz, delgado, pequenino e doente, que junto dum outro grupo, de pernas cruzadas, no chão, estava vendo jogar as cartas; e que ao ouvir que chamavam pelo seu nome com tam empenhada intimativa, rolou moroso os olhos, primeiro, depois ergueu-se com dificuldade, indeciso, e veio por fim avançando, a cabeça nua, arremangado, descalço, derreado e inerte, preguiçosamente.
Acolheu-o o Silveira numa efusiva expansão de agrado, ameigando a voz, erguendo os braços.
-- Ora viva lá! meu caro Matias.
-- Em bem o diga e bem lhe vá tambêm, senhor, -- murmurou com humildade o recêm-vindo.
-- Algarvio?
-- De Fornos de Algodres, fidalgo.
-- E p'ra onde se dirige vocemecê? Argentina ou Brasil?
-- Com sua licença, vou-me até à Argentina, senhor.
-- Bem, muito bem! Palpita-me que ainda lá havemos de ser dois bons amigos. -- E ante o olhar oblíquo e a bôca de espanto do Matias, batendo-lhe afável no ombro: -- Eu queria felicitá-lo pela sua rica voz, por aquelas tam lindas trovas... cantadas realmente com uma intenção, com uma expressão, com um mimo e uma fé que querem dizer muito...
-- Nada, senhor.
-- Ora! não me diga você que as não escolhe, que não exprime nelas o seu verdadeiro, o seu íntimo sentir...
Mas simplóriamente o Matias, de braços pendentes, como um môno, encolhendo os ombros:
-- Eu não sinto coisa nenhuma.
-- Então, aquela "piada" ao Afonso Costa, na outra noite?
-- Sei lá! Aquilo é uma moda que anda lá na minha terra. Que seja essa ou que seja outra, que minga faz?
O Silveira estremeceu e os olhos chisparam-lhe furiosos, num repelão de contrariedade. Os demais sorriam.
-- O quê!? pois, verdade, você não liga maior sentido aos versos? não é contrário à rèpública?
-- Ó fidalgo, é que a minha pobre guitarra está um chanfalho vélho, e eu "mesmamente" de políticas nada entendo... -- E, estimulado pela olhada atrevida que o homem do cachimbo lhe mandava, o Matias acentuou com firmeza: -- E é como está certo, sim! Que essa gente graúda, com o devido respeito, faz tam pouco caso de nós, que ainda o menos que nós podemos fazer é pagar-lhe na mesma moeda.
Desconcertado, nervoso, o Silveira mendigava de roda, com o olhar imperioso e intranqùilo, uma simpatia, uma adesão, um qualquer desmentido a estas descabidas e arreliantes afirmações, tam longe da sua espectativa como fóra do seu desejo; e como fixasse com particular insistência um aldeão alto, espadaúdo e sêco, logo êste, singelamente, o destroçado chapéu de palha girando na concha das mãos calosas:
-- Eu cá, meu senhor, a minha política é ver se alcanço a juntar uns cobres com que possa depois viver tranqùilo no meu torrãosinho, mal'a mulher e os filhos. E já que me não fui à África, malhar nos pretos, resolvi deitar té ao Brasil, em cata da famosa árvore das patacas. O que a sorte quiser...
-- Quere então dizer que tambêm você se conforma com essa usurpação tôrpe da rèpública?
-- Se ela está, já agora deixá-la estar.
No íntimo vèxado por mais êste desengano, renitia entretanto o Silveira na sua raivosa inquirição. -- E você?... E tu?... E tu que dizes? -- Todos se fechavam porêm no seu invariável obstinamento humilde; e foi ainda o mocetão do cachimbo quem pôs termo ao inquérito, sentenciando implicativamente:
-- Está muito bem! O que é que se ganha agora com mudanças?
E atirava, arrogante, o chapéu para a nuca, as narinas e os lábios fumarando num regalo.
-- Súcia de palermas! -- não se pôde o Silveira conter que não exclamasse, na insofrida explosão do seu despeito. -- Por isso haveis de ser sempre os eternamente explorados. -- Deu de roda umas passadas curtas, arrepelou o bigode, coçou a nuca; e depois, conciliadoramente: -- Mas, em suma, não vale zangar... Sou aqui vosso vizinho, e amigo, repito, apesar de tudo. -- Deu dinheiro ao Matias para uma guitarra nova; depois, num largo gesto altaneiro, ao grupo: -- Bem! adeus! Ainda vos hei-de fazer abrir os olhos.
E desandou bruscamente, perante a indiferença burlona da assistência.
Daí a minutos, em cima, e amarfanhado numa das espêssas poltronas do "Social Hall", ruminava em desalento êste propagandista infeliz o imprevisto e burlesco insucesso do seu inquérito, quando se lhe dirigiram Euclides Pereira e o conde de Horrowby, que precisamente o andavam buscando. Tinha que descer com êles à "peluqueria", a escolherem as prendas para os prémios ganhos nos diferentes jogos, e cuja distribuìção solene estava marcada para antes do grande Concêrto final, naquela noite. Era uma diversão a propósito, à quebrantada pressão do seu desânimo. Não se fez rogar; e aí descem os três a internar-se na "cabine" inimaginável do barbeiro de bordo, -- um cubículo acanhado e abafadiço, batido àquela hora ardente pelo sol, com duas exíguas lucarnas apenas sôbre o mar, e que alêm do mobiliário e utensílios indispensáveis ao completo exercício da profissão, era todo riscado em prateleiras, e oprimido, atravancado, estrangulado, povoado de lés a lés, tomado de alto a baixo, por uma aluvião inverosímil de tôda a sorte de pequenos artigos para negócio, desde as jóias, as mil luxuosas bugigangas de perfumaria e "toilette", até às peças mais comuns de vestuário e adôrno, e um perfeito arsenal de brinquedos infantís. Havia espaço para tudo, menos para o ar, neste pequeno recinto aplastador que realizava um paradoxal desmentido à impenetrabilidade da matéria. Uma temperatura de fogo e um arranjo de "casa de prego".
A bonachona espôsa do conde chegou ao mesmo tempo. E logo o mestre-barbeiro, -- um francês ruivo e claro como um cacho da Champagne, -- a saltitar vivo e ligeiro em tôrno dela, pedindo indicações, apontando, mostrando, trazendo coisas. A cada nova oferta, que o meliante sabia alertemente encarecer, a bondadosa e imperturbável senhora, sossegadamente, examinava rejeitava ou escolhia, e solicitava gentilmente o parecer dos seus três colegas, que se limitavam a baixar num assentimento cortês a cabeça. Então, logo o esperto "figaro" apartava contente a mercadoria, anotava qualquer coisa no seu "carnet" e passava a impingir outro artigo. E assim monótona, infindável, secante se foi prolongando a tarefa, êste duelo picante de aplicação ferido entre a esperta indústria do barbeiro e a solicitude impávida da condessa, insensível ao calor, refractária à impaciência. Não assim o Silveira, que enjaulado naquela inacção e enervado pela temperatura asfixiante, mudava de posição a cada momento, tressuava, sentia tonturas, e ia buscar a incidência mais favorável do ventilador ou abanava-se com duas ventarolas ao mesmo tempo, increpando-se íntimamente por ter vindo. E neste abrasador suplício passou uma hora que lhe pareceu um século.
Por fim, à noite, realizou-se no "Social Hall" a solene distribuìção dos prémios, rodeada dum cerimonial quáse diria litúrgico, atenta a dignidade, a seriedade, a compostura, a "tenue" escrupulosa e as compenetradas atitudes por todos ali invariávelmente mantidas, desde as primeiras às ultimas figuras. O mostruário faíscante das prendas pompeava as suas gulosas tentações esparso em abundância sôbre uma grande mesa, colgada de veludo-cereja, no tôpo do salão, sôbre um estrado; à roda, exibia-se o grupo esfíngico dos membros do "Committee", de "frac" e laço branco, e a condessa de Horrowby, em grande "toilette", sentados todos gravemente. Posto em pé o conde de Horrowby e feito um grande silêncio, êle então, arqueando numa atenta "reverence" o peitilho reluzente, mordiscou por entre dentes "for the select assembly" um pequeno "speech", quáse inaudível, -- dobrado e pregado sempre no mesmo ademân cortês, inexpressivo e imóvel, os braços longos e hirtos, de punhos sôbre a mesa. A seguir, sentou-se, e simultâneamente, como que impelidos pela mesma mola, erguiam-se a condessa e o capitão Stayton; passando êste a chamar em voz alta os premiados, cada um dos quais, em traje de cerimonia tambem, avançava, franqueava em respeito o majestático recinto do estrado, colhia das palmoiras enormes da condessa a bugiaria que lhe fôra destinada, e retirava mudo e feliz, num vago atordoamento de prazer, ante as palmas convencionais e os "hurrahs" complacentes da assistência.
Seguiu-se o concêrto, cujo programa houvera, em bôa verdade, um certo embaraço para organizar. Não abundavam a bordo os "virtuosi" nem os amadores, tornando-se assim deveras árduo o problema de reùnir e combinar alguns números mais, alêm do chirroteio mercenário da orquestra. Prestou o Silveira na apertada emergência um assinalado serviço, pois conseguiu o concurso difícil das meninas Wimeyer, que condescenderam graciosamente em exibir-se, por uma atenção muito especial para com êle, executando Dolores ao violino uma melodia de Schumann, acompanhada ao piano pela irmã. Por isso lhes couberam a bem dizer as honras da noite; assim como ao Alvarez, que recitou uma desgrenhada elegia sentimental, -- "Corações famintos", -- composta, informava o Programa, expressamente para aquela noite; e tambêm a um vélho inglês, todo branco, de olhar menineiro e afável, que se distinguiu improvisando um humorístico monólogo todo obrigado a contracções faciais, trocadilhos ingénuos e risíveis infantilidades, com que os seus conacionais gozaram imensamente.
O "God save the King", pela orquestra, e por tôda a sala, de pé, escutado religiosamente, pôs o termo de rigor a esta escovada tertúlia da noite.
E foi a última diversão do Programa de festas. No dia seguinte ia começar o progressivo êxodo dos passageiros, atingida como seria então a costa das primeiras terras do Brasil. Foi, primeiro, Pernambuco, -- a lucilante Veneza tropical, -- luminosa e tranqùila emergindo, como uma evocação de balada, da brava fúria impotente das ondas, incansavelmente erguidas, roladas e desfeitas contra a ruiva muralha irredutível dos seus recifes; e prolongada depois suavemente, para léste, por uma fresca, macia e tenuíssima restinga de terra que pelo mar fóra se estirava indefinidamente em ponta, como uma imensa piroga verde, empenachada pela umbela grácil das palmeiras, salpicadas de chacaritas brancas. Foi, trinta horas depois, a esbelta Baía, -- o vélho empório tradicional do tempo das lusas descobertas, -- reclinada molemente sôbre uma luxuriante alfombra de mato e flores, esmagada de tôrres, pletórica de igrejas, e àquela hora matinal batida e incendiada em cheio pela carícia gloriosa do sol nascente. Tôda a clara cidade assim palpitava, fulgurava, ardia numa crepitação paroxísmica de côr que emprestava a êsse quente deslumbramento panorâmico o mais antitético relêvo, na crua passagem do verde espêsso e sombrio dos ásperos taludes, a seus pés tendidos, para a policromía bárbara dos trajes da multidão formigando ao longo dos cais e para as tintas berrantes saltando, ladeira acima, no anfiteatro loução da casaria.
Dois dias depois, -- justo em terça-feira gorda, -- já devia o "Almeria" lançar ferro na incomparável baía do Guanabara. Era um dos grandes acontecimentos da viagem. Reganhára agora uma inquiritiva animação a vida de bordo, onde todos mais ou menos expressivamente manifestam o seu interêsse, todos aguardavam com vivacidade crescente o recorte feérico e deslumbrante, na linha molhada do horizonte, dessa esplendorosa, dessa surpreendente e colossal orquestração de luz, de côr, de exuberância e de relêvo, que era Rio de Janeiro, a maravilha do mundo. Os nacionais tinham um legítimo sentimento de vaidade, os estranhos nutriam uma não menos legítima sofreguidão do inédito.
Entre os mais interessados e inquietos, era de notar a vibrante impaciência do joven Mackenna. Porêm certo que não era própriamente a antecipada visionação das pinturescas maravilhas do Rio que num alvorôço idealista lhe sacudia os nervos de artista; uma outra oculta determinante havia, mais prosaica, mais animal, a acender-lhe no olhar e a fazer-lhe correr nos gestos esta sôfrega palpitação de todo o seu ser, irrequieto e ávido. É que precisamente no Rio de Janeiro a formosa e esquiva "M."^{me} d'Ellery ia desembarcar; iam os dois ali separar-se, talvez para sempre, neste limite fatal posto ao seu ameno convívio; e assim êle tinha forçosamente que precipitar a solução ao seu assédio galante, nesse apertado prazo de dois dias. Com uma assiduidade, uma persistência incansável, com um calor por vezes audaz, nos últimos tempos o jactancioso galã fôra apertando gradualmente o seu amavioso cêrco, e segundo as mais ostensivas indicações, com o melhor êxito; porêm não obtivera ainda a rendição definitiva. Ao mesmo tempo, acontecia que o seu feitio demonstrativo e pomposo fizera com que êste singelo episódio de cortesanía banal désse bastante nas vistas. Havia um pequeno grupo de besbelhoteiros trocistas que o espiavam; e os mais íntimos a cada momento lhe disparavam chistes, o estimulavam com depreciativas alusões, celebravam antecipadamente o seu fracasso, assediavam-no de burlas molestas e sátiras importunas. Não havia pois um minuto a perder. Na prova, ruidosa e fulminante, do seu triunfo estavam igualmente empenhados a linha do seu amor-próprio e o fogo do seu desejo.
Foi o motivo pelo qual, na noite dêste domingo, o Mackenna impôs um implacável bloqueio sentimental aos domínios afectivos da francesa. Havia no convés de bombordo o costumado baile semanal; e o meliante tôda a noite dançou com ela, e nos intervalos levava-a ao "bar", a beber, e insinuava-lhe coisas cálidas e perversas, despedia-lhe frases imperativas, aventurava proposições equívocas, a tudo o que a ladina respondia com sorrisos que eram incitamentos, com evasivas que eram provocações, com abandonos que eram capitulações, com estremecimentos que eram promessas. Mas nada de lhe conceder a aquiescência nítida, formal, a uma entrevista. Exasperado então, mas sempre optimista e fátuo, o Mackenna deliberou recorrer ao assalto. Seria o supremo recurso salvador. E filosofava convicto: -- Serem tomadas à viva fôrça era, com efeito, o melhor prazer para estas taboletas avariadas duma menos que problemática virtude. Era o que aquela bêbeda queria... Era o mais seguro caminho. Mas tomá-la de surprêsa, com êxito, como?... Naquele meio acanhado e bulhento, sem a tácita anuência dela, era difícil. Só se fôsse de manhã... O derrancado Sganarello levantava-se tarde; os seus pêrros movimentos de tabético e a indolência filha do tédio retinham-no de ordinário na "cabine", até muito por êsse dia dentro; por êste lado estava seguro. Se êle então, nessa propícia hora matutina, pudésse surpreender Helena! mas surpreendê-la bem de-veras, apanhá-la de improviso, em condições morais e materiais de não poder oferecer-lhe maior resistência... -- Inflamado, enardecido, espremia a inventiva, planizava, rebuscava. E súbito, batendo na testa, com um relâmpago genial na noite ardente dos grandes olhos negros: -- Ah, aí está! No banho... -- Passou imediatamente ao "deck" da sua imaginada vítima; abordou com discreção o "steward", cuja cumplicidade concluiu por obter a trôco duma bôa gorgeta; e recolhendo depois à "cabine", todo o resto da noite levou embalado, aquecido na regalada antevisão do saboroso triunfo que para êle seguramente ia marcar o delicioso alvorecer do dia seguinte.
Na primeira manhã ei-lo logo a pé, lésto e pimpante, procedendo às habituais abluções, fazendo uma "toilette" minuciosa. Depois, mansamente, deixou a "cabine" e escoou-se para o corredor, tendo vestido um garrido "pijama" todo em borlas, alamares e viézes de sêda, a cabeça nua e a perfumada melena ondeando. Sem perda de tempo estava em cima, no "deck" de Helena, e aventurava-se afoito ao recinto dos banhos destinados ás senhoras. Aí trocou um breve e furtivo olhar com o "steward", que lhe fez um sinal afirmativo de cabeça; avançou ágil uns passos, relanceou em tôrno os olhos cautos, e tendo-se certificado de que ninguêm passava cêrca, arpoou o botão duma determinada porta com os dedos trémulos, entreabriu-a... e ia entrar de salto, quando de dentro estrugiu um grito de pavor, um argênteo e agudo grito feminino, ao passo que de dentro tambêm, acudia súbita e inesperadamente, ante a mirada atónita do Mackenna, o sobrecenho grave e a mão rosada do Mafiori, a cerrar a porta.
Foi a bordo um pequenino escândalo. Apesar da sua relativa presteza e moderado ruído, esta scena picante não passou de todo despercebida. Ao partir para a sua "donjuanêsca" investida, não se deu conta o Mackenna de que dois dos seus alegres espias, atraídos por não sei que divinatório instinto, o foram seguindo. E êstes, naturalmente, da esquina do exíguo corredor, mal assomando as cabeças, haviam saboreado o burlesco fracasso da desastrada aventura; ao tempo que, simultâneamente, das portas dos banhos contíguos alguns interrogativos bustos surdiam tambêm, ao aflitivo alarme daquele agudo brado feminino. Nem uns nem outros alcançaram contudo divisar a ponderada silhueta do Mafiori, dentro da "cabine", -- o que teria sido para a sua curiosidade doentia o cúmulo do regalo. Mas haviam visto o bastante para a nítida compreensão do sucedido. De sorte que, daí a minutos, já a notícia do truanesco sucesso havia feito o giro alegre de bordo, com fulminante rapidez solicitada ávidamente, de grupo para grupo, e logo passada e acolhida em acres segredinhos, vivas chamadas e perversas reticências. E de bôca em bôca, êste singelo episódio ia tomando vulto, agrandava, complicava-se; por último, já afiançavam a vingadora intervenção do marido, falava-se em vias de facto. Daqui, uma notoriedade bem pouco invejável para o desabusado Mackenna, que arrastava agora pelos recantos mais escusos a sua vaidade amarfanhada, como um sátiro batido, e já não sabia por fim onde meter-se, certo como era que por tôda a parte um malicioso interêsse acolhia a sua aparição, logo farto sublinhada de bisbisoteios de risos, facécias e burletas. As mulheres olhavam-no com piedade indulgente, os homens com humilhante mordacidade, não isenta de inveja. E agora a leve e adoidada "Pilarita", mais do que ninguêm intrigada e impaciente, querendo à fina fôrça saber "lo que pasara", batia os pésitos e golpeava com os punhos a pequena mesa onde abancava o Alvarez, o qual se mantinha impenetrável, enquanto zombeteiro e veloz anotava o episódio nos seus inseparáveis linguados, desorbitado em trejeitos loucos.
Nesta divertida manhã, à hora do almôço, nem "M."^{me} d'Ellery baixou ao comedor, nem o Mackenna. Entretanto à mesa dêste, o picaresco assalto matinal foi o têma obrigado da conversa, apreciado com jocosa vivacidade por todos, à excepção do Mafiori, que se manteve mudo, bonachão e plácido como nunca, nos intervalos de comer fazendo bolinhas de pão e mirando desvanecido as unhas.
Pouco tempo depois, em cima, e de pé contra um ângulo da amurada, reùniam-se em íntimo grupo o Silveira e o Contreras, com o tenente Euclides e mais dois amigos. Aí veio naturalmente à balha o caso-Mackenna.
-- "Picarón!" -- comentou ruidosamente o Contreras, desmanchado em grossas gargalhadas.
O brasileirito, vendo o magno acontecimento pelo seu cândido prisma de noivo, fulminava-o com sincera indignação, taxando de «imperdoável desafôro» um desacato assim, àquela hora do dia.
-- Eu acho imensa graça... É cá dos meus! -- acudiu, tolerante, o Silveira, esfregando as mãos de contente.
O conde Améglio, que chegára justo ao tempo de recolher as homílias ingénuas do brasileiro, rugiu então ameaçadoramente.
-- Havia de ser comigo.
Todos se voltaram, a encará-lo com fixidez espectante. E êle, num sobrecênho de arrogante desdêm:
-- Conheço de sobra os processos e os ardís dêsses pulhastras.
-- Ó conde... -- murmurou baixinho o Contreras, mirando cauteloso de roda e puxando-lhe do braço.
Améglio porêm, de olhar duro, alteando a voz, minaz e insensível ao aviso:
-- Mas conheço-lhes tambêm a grande cobardia essencial. Sei que êsses bandalhões não são fortes senão diante de saias.
-- Ah, sim?... -- interveio o Silveira, picado de interêsse, adiantando-se. -- Ó conde, amigo conde, se não é indiscreção, conte-nos lá...
-- Bem simples! Tenho mulher, sabem... Pois nunca hesitei um momento em lavar com sangue, no campo da honra, tentativas de ultraje semelhantes.
Era agora o Contreras que pávidamente, apurando o ouvido, se acercava; ao passo que o Silveira, positivamente desconcertado por esta súbita revelação, no conde, de inimaginados brios, inquiria, em dúvida:
-- Algum duelo?
-- Cinco. Nada menos de cinco.
-- De morte?
-- Não! nunca chegamos a tanto... -- aclarou o conde com moderada importância; e num assômo quixotesco, arredando as bandas do jaquetão e enfiando os polegares nos sovacos: -- Mas a todos tive a sorte de aplicar o merecido castigo.
O tenente Euclides voltou-se discretamente, a dissimular um risinho incrédulo. O Contreras afastou-se, manso e humilde, coçando compenetrado a cabeça. De sua banda, o Silveira rejubilava. Êle desconhecia o conde neste seu intempestivo disfarce cavalheiresco e brigão; aquelas teatrais bravatas de espadachim pareciam-lhe uma contrafacção absurda, não as tomava a sério, não cria nelas. -- Minotauro travestido de Othelo, podia lá ser! -- E contudo a pundonorosa explosão do conde estimulava-o. Ante a ameaça cocegante de perigo, um lume de reacção viril lhe afogueou o rosto ardente, e o seu carácter amorudo e ribaldo espertava, vibrava de belicosos ímpetos, latía de energias novas. -- Agora sim! é que êle ia afervorar nos seus pérfidos galanteios junto da irlandesa. Até à provocação! até ao escândalo! -- A ver se conseguia fornecer ao marido o pretexto para mais um lance de honra que lhe permitisse, porêm desta vez com sorte adversa, contar a meia dúzia.
A chegada ao Rio de Janeiro realizou-se infelizmente de noite. Um pouco de marejada e o vento contrário haviam ralentado a marcha do "Almeria", que assim, quando lançou ferro, da formosíssima capital brasileira apenas deixava entrever vagas formas de relêvo, manchando, amplas e azúis, a imensa téla diáfana da sua claridade deslumbrante. Muita gente desembarcava aqui; de sorte que, já horas antes, eram algo de inabordável as imediações do portaló, onde se acotovelavam e prensavam duramente, numa gerarquia bárbara, as famílias impacientes por chegar; e onde, tambêm, sôbre improvisadas alfombras de lona, se amontoavam, num grosso empilhamento inverosímil, fardos, malas, caixotes e baús de tôda a espécie, mantas, chapéus, paráguas, papagaios, cachorros, saguís, cêstos de flores e cabazes com fruta. Por tôda a parte havia câmbios cerimoniosos de cartões de visita, ou efusivos apertos de mão, amáveis oferecimentos, beijos, abraços, risos, tristezas, miradas saùdosas, lágrimas furtivas. Mas aos felizes que tocavam então o termo da viagem, havia que agregar ainda os que se propunham desembarcar como simples turistas, para verem alguma coisa, para gozarem, movendo-se um pouco, estas quantas horas de paragem benéfica do vapor ali; e sobretudo, sentindo-se dominados pela ardente baforada de loucura que lhes vinha de terra, para irem ali passar uma bôa noite "de garufa".
Apesar de bastante instado para baixar tambêm, o Silveira resolveu ficar. O tenente Euclides oferecera-se amavelmente a ser-lhe companhia e guia na cidade, mas por aquela noite sómente; -- êle bem devia compreender, -- a noiva esperava-o com ansiedade, e tinha que seguir no primeiro trem para S. Paulo, logo na manhã seguinte. Por igual os Wymeyer, tímidamente sondados, redarguiram, com mal contido desdêm, «que não desciam... que para quem, como êles, vinha da Europa, não valia a pena». Para mais, a colónia inglesa de bordo, ponderando muito sensatamente o horror de bérrata, confusão e desordem que devia ser, para um recêm-chegado, aquela noite de Entrudo, no Rio, resolvera, em vez de desembarcar, fretar antes um vaporsito onde passasse despreocupada e íntimamente, ela só, algumas horas, bordejando a baía, fazendo o suave e demorado contôrno daquela fantástica decoração, vogando plácidamente ao voluptuoso embalo daquele mar de sonho. Era uma idéa deliciosa. "Miss" Nora Scott convidára o Silveira para a encantadora excursão. Os Améglio iam tambêm. -- Que mais queria êle?... Para ver o Rio tinha o dia seguinte. -- Resolveu, pois, ficar; e, depois de jantar, sem fazer maior caso da estrepitosa festa carnavalesca que a criadagem de bordo organizára na ponte da 2.^a classe, tomou ao portaló e desceu ligeiro ao vaporsito, cuja silhueta coqueta se desenhava em baixo, convidativa e luzente, no regaço manso das águas trepidando, fumarando, bailando alegremente. Daí a minutos, punha-se em marcha, e sobre o seu minúsculo convés, escassamente alumiado, foi difícil nos primeiros momentos a identificação das figuras. A infeliz Nora Scott foi a primeira a fazer-se reconhecer pelo Silveira, abordando-o e abandonando-se-lhe com carinhos, incendida como ela vinha nos seus propósitos firmes de seducção, provocante, amorável, tôda tules e rendas. Porêm, ao primeiro pretexto decente, o Silveira afastou-se; e pronto aí estava êle já ao lado da sua apetecida irlandesa, trepados, muito amigos e compadres, os dois à mesma clara-bóia que dava luz às câmaras interiores, à falta de mais cómodo assento. O conde mantinha-se longe e a velatura crepuscular do ambiente era o mais discreto cúmplice, agora, a esta doce e inefável aproximação, sem testemunhas e sem peias. -- O ar estava tépido, tranqùilo e na sua morna quietação o crespo afago da brisa passava como a carícia dum leque de plumas. De roda, pelo caprichoso e largo desdobramento da cidade, as avenidas e os cais da beira-mar, iluminados profusamente, eram um colar faíscante de pedraria e oiro, riscavam rútilas e esplendorosas curvas. E não tinha fim, não tinha limite esta invasão delirante da claridade. As suas imensas linhas de fogo sinuosavam, penetravam-se, contrapunham-se, prolongavam-se, cortavam-se, profusas, ondeantes, e por fim seguiam sôltamente ao largo, pontilhando a vaga opacidade da tréva, densas, vivas e espertas sempre, embora grado a grado amortecidas e apequenando, na distância. Se o vapor se aproximava da terra, junto com os jorros da luz branca, que davam uma nítida visão fragmentária das coisas, vinha então o grosso éco da foliona febre da multidão, em lufadas alucinantes. -- "Mrs." Edith e o Silveira seguiam muito amigos e unidos, sentados sempre a par, -- e isolados no seu mútuo embevecimento, alheios ao tempo e ao logar, a favor da parcimoniosa luz postos a seguro de vistas importunas, -- gozavam juntos, mudamente, a infinita delícia daquela hora incomparável, admiravam enleados, pela borda sinuosa dos cais, aquela parada inflamada e ardente, essa corda, êsse rosário interminável de sóis, mais rubros, mais claros e mais firmes que os sóis do alto... esplendente barra de oiro cravada no dôrso glauco do mar por alfinetes de prata, aguada mágica de luz esparsa, no insondável mistério da noite subindo e indefinidamente alastrando, diluindo-se, esbatendo-se, perdendo-se, a dançar anamórfica pelo espaço.
A certa altura da noite começaram as libações. O estalar das primeiras rôlhas de cerveja e de "champagne" foi o apetecido sinal para o fácil repúdio das fórmulas coercivas da etiqueta. Gradualmente agora iam sendo postas de banda as peias, as convenções banais da cortesia, para deixarem um pouco de campo ao exercício livre do instinto. Muitas das senhoras então soltavam os "voiles" ou deslaçavam as blusas, afogueadas; os homens arremangavam-se. Num progressivo calor, e numa contagiosa e audaz alacridade, dentro de cada grupo os movimentos, os gestos abastardavam-se, e subia o diapasão delirante das saùdações e dos "hurrahs". Veio mais tarde o momento em que, por uma adaptação condizente ao epicúreo abandôno desta hora libertina, alguns deixavam-se resvalar das suas "cadeiras" e tamboretes para as tábuas rasas do convés, onde se quedavam molemente estirados, numa beatitude inerte, a cabeça pesada oscilando, o dorso contra a amurada. O Conde Améglio, esquecido da mulher e dando ao démo os seus brios postiços, divagava de grupo para grupo, abundante e palreiro, feliz, o olhar empanado e a taça vazia na ponta dos braços froixos, cambaleando. Havia uma única nota de excepção, um absurdo protesto passional, em todo este côro vibrante de alegria; era a longa figura trági-cómica da desgrenhada Nora, hirta e de pé, amparada ao mastro de pôpa, mirando com decisão o mar, num pendor teatral ao suicídio... Ao passo que não muito longe, o Silveira e a irlandesa, cada vez mais cingidos, trocavam, amorosos, as taças, afim de penetrarem-se mútuamente os segredos, e êle, não podendo, em linguagem compreensível para a sua amada, expressar tôda a veemência do fogo que lhe abrasava a alma, substituia com vantagem o calor sugestivo da frase pela eloqùência muda dos contactos.
Na manhã seguinte, sim, deu-se pressa o Silveira em demandar a terra. E ao avançar, curioso, os primeiros passos pelo liso empedrado do cais Pharoux, sentia-se bem, o coração dilatava-se-lhe, estimulado e contente ao reconhecer-se num ambiente amigo. Tudo ali, com efeito, lhe avivava impressões flagrantes, lhe evocava de Portugal a lembrança próxima e querida, tudo, -- desde a analogia cantante da linguagem aos traços e ademanes conhecidos das figuras, desde o tipo sóbrio e maciço das construções à brita miúda e ao desenho do mosaico dos passeios. Tomou um automóvel e mandou bater ao acaso, num giro de reconhecimento rápido às mais celebradas coisas da cidade. O "chauffeur" era português, tomou familiarmente assento ao lado dêle. A bôa disposição do ânimo fazia-o mais acessível, o simpatismo sugerente do meio tornára-o jovial, aquecia em frémitos de fraterna expansão a sua sensibilidade agradecida. Por isso, a cada momento, naquela vertiginosa abalada, o feliz viajante ia cortando os esclarecimentos fugazes do condutor por admirativas exclamações e brados entusiastas, quando não descia a indagações mais íntimas, inquirindo com afectuoso interêsse o "chauffeur" na sua filiação, antecedentes e condições morais e materiais de vida. -- «Se viera para a América havia muito tempo? Se estava contente? se tinha valido a pena?»
-- Alguma coisa se faz, meu amo... -- contestou afável, num risinho esperto, o interpelado.
-- E muita família lá em Portugal?
-- Mulher e três filhos. Quanta "mosca" posso forrar, p'ra lá vai inteirinha.
-- E saùdades da pátria, não tem?
-- Que pátria, senhor?... -- acudiu com amarga resignação o "chauffeur", olhando de espaço o Silveira. -- A gente, em vindo p'r'aqui assim, não temos mais pátria. Por cá chamam-nos "galegos"; se volvemos a Portugal, somos "brasileiros".
E encolheu os hombros com tristeza. Assim mano a mano chalrando, indagando e informando, mutuando fugazes impressões, colhendo notas inéditas, percorreram os dois o amplo coleamento áureo-verde da avenida Beira-mar, visitaram Botafogo, fizeram o rodeio dêsse retalho paradisíaco que são as praias do Leme, Copacabana e Ipanema, internaram-se pelo delicioso dédalo de sombras, palacetes, "parterres" e jardins do bairro das Laranjeiras, deitaram ainda ao Jardim Botânico, e foram por fim almoçar ao morro de Santa Teresa. Larga e formosíssima jornada. O Silveira estava encantado, aturdia-o a cálida vitalidade do ambiente, sentia-se bêbedo de magnificência, de luz, de côr, de movimento e de ruído. Feria-lhe com agrado a atenção o escrupuloso aceio das ruas, a variegada tinta das construções, o abundante luxo decorativo das árvores e das flores, e, por uma estranha anomalía dêste scenário mole de prazer, o tom sempre atarefado, o côrso afadigado e ligeiro da multidão, palpitando, tumultuando, fervendo numerosa e incessante, como uma grossa onda de renovação a correr, generosa e fecunda, por essa densa rêde de artérias da abundância e da fortuna. Bem mais porêm que a obra magnífica do homem o impressionou o esplêndido vigor da Natureza, -- as colossais dimensões e o atormentado aspecto dessa grande paìsagem eruptiva tôda em bruscas oposições e em arrancadas titânicas; prodigiosa armadura cujo torso arfante, rompida, aqui, ali, a sua espêssa crôsta verde, fôra atirado vertiginosamente a prumo, formando atrevidos minaretes naturais donde se abrangiam panoramas maravilhosos; estonteadora ronda de montanhas fechando zelosamente na concha dos seus flancos viridentes, como entre mãos de gigantes um brinquedo, o formigueiro policromo e frágil da casaria. Mas era demasiado grandioso e solene. Perante a melindrosa sensibilidade de europeu, do Silveira, tanta soma de majestade raiava já pela tristeza; sobrelevando à sua extática admiração por tam desconcertante e caprichosa exuberância, havia o que quere que fôsse de vagamente constritivo e grave, que o esmagava, que lhe pesava na alma, como um fatídico prenúncio de desgraça. Porque êle não encontrava aqui, nesta luz crua, nestes mamelões adustos, a vegetação suave e amiga, as delicadas e múltiplas nuanças, o brando afago, as acariciadoras sombras do torrão bemdito que lhe embalára a infância. Aqui, na sua fechada monotonia, a sombria capa verde do sólo áspero e convulso tinha um não sei quê de opressivo, de hostil, de trágico; na impenetrável noite do seu mato torcido e hirsuto pressentia-se tôda a sorte de quimeras ruins, de reptís, de feras, de monstros, espiando-nos. Era um Éden traiçoeiro... inadaptável seguramente à poesia dos contos de fadas, à simplicidade ingénua das bucólicas tangidas melancólicamente, na grave e dulcerosa paz dos campos, pelos contemplativos pastores da sua terra.
Horas depois, à noite, e quando outra vez a bordo, o temperamento vibrátil do Silveira ardia por expandir-se, debatia-se no vivo empenho de transmitir impressões aos companheiros. Os Améglio acolheram-no com frieza, fortemente ressentida como estava "Mrs." Edith por não haver ido com êles. Ramón Alvarez, envernizado e rubro como um tomate, tambêm pouco o atendeu: -- «não estava de acôrdo, ia morrendo assado... tinha achado uma estopada!» -- Voltando-se para o Mackenna, êste não o deixava falar, porque, no seu fátuo egoísmo, tudo era por sua vez encarecer-lhe os surpreendentes "motivos" que esquissára para um soberbo quadro simbolista. -- Havia de ver! -- Valeu-lhe por fim a sua grande amiga espiritual, a loura e tímida Irene, que com amável complacência o escutou longamente.
No dia seguinte tocavam em Santos; e enquanto o Silveira se debruçava atento sôbre o aparatoso e sólido desdobramento e o tráfego colossal do pôrto, -- bem comparável ao de Liverpool, lhe haviam dito, e via que com razão, -- aí de acercar-se-lhe o pai Wimeyer, que, sempre no antegôsto falaz do seu tam almejado inquérito gramatical, todo o oportuno ensejo aproveitava para lisonjeá-lo. E com familiaridade cativante, numa erudição muito a propósito: -- que êle, como bom português, devia sentir-se orgulhoso e contente, ali... vendo, e pisando podia dizer-se, terra da celebrada baía, pitoresca e tranqùila, onde, quatro séculos antes, aproára a primeira expedição enviada de Portugal para colonizar o Brasil; e que era ali a outrora ilha de "Enguáguassú", sabia bem... assim como foi dali que partiu breve para o interior, nesse tempo, trepando e transpondo épicamente a abrupta Serra do Mar, a expedição que havia de fundar a legendária "Piratininga", -- a encantadora S. Paulo de hoje. -- Confundido por esta exótica demonstração de tanto saber, o Silveira aplaudia, num risinho envaidecido; e quanto à embaraçosa iniciação dessa prometida sabatina gramatical, o aterrado argùente ia engenhosamente iludindo -- que já agora, por poucos dias, seria melhor, com outro descanço... em Buenos-Aires.
Bastantes passageiros mais desembarcaram aqui; gradas figuras da finança e da indústria, ricos fazendeiros do interior, caixeiros-viajantes, mulheres de prazer, artífices, obreiros, peões, representantes de empresas estrangeiras. Assim, aquele reduzido mundo que o berço reluzente do "Almeria" sôbre as águas baloiçava alegremente, ia em repetidas golfadas rareando; e ali dentro a vida fechára-se em pequenos círculos de discreta intimidade, cada vez mais singela, mais suave, mais familiar, à medida como o termo da viagem se acercava.
Amiudavam-se agora e edulcoravam-se, naturalmente, aqueles almos e fraternais colóquios de Irene com o Silveira, -- o que não era para êste, aliás, empresa fácil, apetecido alvo como êle se sentia, a cada momento, do "contrôle" implacável de "Mrs." Edith, ávida por igual da sua presença e ciosa do seu convívio. Ele porêm sabia, sempre que isso lhe convinha, desembaraçar-se dela, invocando déstramente os seus compromissos gramaticais para com o pai Wimeyer; depois, uma vez junto dêste, difícil lhe não era tambêm deixá-lo, na improvisada simulação de qualquer solícita "démarche" junto da filha; por fim, quando, de longe, a querençosa mirada de "Mrs." Edith lhe significava a impossibilidade formal de manter-se mais tempo, sem escândalo, junto da linda argentina, êle aí expressava pezaroso, perante esta, o seu inadiável dever de cumprir para com os Améglio uma qualquer obrigação de cortesia, e partia imediatamente. E assim neste divertido círculo vicioso de inofensivas invenções ia salvando com arte as dificuldades e preenchendo saborosamente as horas. O certo era que a doce freqùentação espiritual de Irene fornecia ao Silveira uma derivante deliciosa cada vez mais dominadora e mais atraente, aos desafíos sensuais da irlandesa. Não raro passavam agora horas seguidas sós os dois, já caminhando mui camaradas, par a par, a fazer uma e muitas vezes o giro completo do convés, discorrendo com interêsse juvenil sôbre coisas de nada, ligeiros, felizes, a frase sôlta e leve no ar cortante; já imobilizando-se sôbre um ponto ao acaso da amurada e aí, sonhadores e mansos, balbuciando a sua mútua emoção em termos vagos, imprecisos, como a dança incoerente dessas fugazes "libélulas" do mar, os peixes-voadores, que êles viam em baixo mergulhando e saltando atoadamente na imensidade azul das ondas. E momentos havia em que o espírito subtil de Irene, ao calor desta casta intimidade, se alava em sublimados conceitos, desatava-se em coisas transcendentes, soltava palavras raras e profundas. Uma que outra vez sucedia o temperamento másculo do Silveira aquecer e inflamar em arroubados ímpetos a sua alma enamorada... Porêm então, invariavelmente, a cada discreto ensaio de galanteio, a alma timorata e nobre de Irene fechava-se como em março um botão de rosa; se êle permitia, com um pouco mais de vivacidade, ao coração pronunciar-se, ela acolhia-se a um mutismo impenetrável, não perdia o ensejo de levemente lhe fazer sentir quanto a trivialidade mesquinha do amor à hora era insofrível para a sua sensibilidade e ofensiva para o seu orgulho. -- Queria ver nêle um amigo, nunca um adulador. -- Contrito e humilde, o Silveira resignava-se... e a figura melindrosa e isenta de Irene aparecia-lhe então como um dêstes tipos de virtude sólida e doce que nos reconciliam com a existência e nos fazem tomar em respeito a vida.
Em breves dias, uma linda manhã veio em que, no balanceio perpétuo do mar, a translucidez movediça das águas agora engrossava, -- embaciava-se, parecia coberta por uma bostelosa máscara de lama. Eram as infinitas aluviões terrunhosas do Plata, cuja foz incomensurável, avassaladora e ampla como um mar, a prôa arrogante do vapor atingia neste momento. Já por estibordo se descortinava a airosa silhueta do "Cêrro de Montevideo". -- Um outro nome bem português... -- voltava a observar-lhe o pai Wimeyer com amável solicitude. -- Corrupção de "monte vi eu", não era assim?... Perpetuava a primasia na descoberta e acusava sintáxicamente uma linda transposição, como tantas havia na formosa língua de Camões. Tinham muito que conversar... -- E batia-lhe no ombro afávelmente. Mas o Silveira mal o ouvia. Neste feliz momento, os seus brios patrióticos empolgavam-no, sobrelevando aos quiméricos terrores pela ameaça das doutas interrogações do pedagogo. O coração dilatava-se-lhe envaidecido, porque êle notava como durante a sua viagem, no decurso de todo êste largo roteiro abarcando dois hemisférios, desde a largada inicial das bôcas de luz e oiro, do Tejo, té à embocadura brumosa e intérmina do Plata, êle viera medindo, reconhecendo, verificando, palpando sempre, ininterrompido e eterno, o traço, a marca indelével dêsse temerário arranque das descobertas... viera seguindo as aladas fugas do sonhador espírito português, tivera a prova constante do seu génio marítimo afirmada e selada épicamente, cruzára o imperecível sulco aventureiro do seu caminho de glória. -- Que outro povo podia vangloriar-se dum prodígio igual?... -- Perante esta íntima evidência, sacudia a cabeça com arreganho e atirava uma depreciativa mirada de desdêm a essa humanidade inferior que o rodeava... a êle, senhor do Universo.
Passada a encantadora capital uruguaia, não restavam agora ao "Almeria" mais que oito escassas horas de viagem. Todos tinham pressa de chegar e afanosos seguravam o tempo, compondo, cerrando as malas, dando instruções aos "stewards", buscando e preparando a continuìdade das relações ocasionalmente entaboladas. -- Os Wimeyer ofereceram ao Silveira a sua casa de Buenos-Aires, "calle" Paraguay. O Mafiori a todos anunciava bem alto que ia hospedar-se no "Plaza-Hotel". Mas os mais, pelo geral, -- como o Mackenna e o Alvarez, -- não sabiam; iam confiados ao acaso ou haviam-se entregado ao solícito critério dalgum amigo. Os mesmos Améglio não haviam tambêm escolhido domicílio. Assim, para poderem depois vir a saber uns dos outros, concertaram reùnir-se ou enviar o seu "adresse" ao "Café da Paris", na noite seguinte. E ainda, da suja promiscuìdade da 3.^a classe, não deixou de vir humildemente o Matias, na companhia confortante de mais dois patrícios, a demandarem interesseiros o Silveira, confiados na sua espontânea promessa de protecção, para lhe pedirem numa lacrimosa lamúria que não os olvidasse, e desejando saber onde haviam de procurá-lo.
A cada momento, espontâneos, vivazes, por entre a atramochada barafunda das bagagens, formavam-se grupos e travavam-se furtivos diálogos, palpitando da inquieta indecisão daquele instante. Mas diálogos eram êstes que na sua impaciência mordente, no seu vôo fantasista, em vez de aproximarem os interlocutores, distanciavam-nos. Cada um íntimamente se perguntava -- que sorte iria ser a sua?... Aquelas quentes e efusivas palavras ninguêm as apreciava maiormente, ninguêm lhes dava inteira atenção, porque elas mesmas logo em cada um dêsses insatisfeitos espíritos sugeriam e despertavam, para alêm do seu significado real, outros planos, idéas, desejos, ambições e projectos que os levavam para muito longe... Porque é assim neste vertiginoso e dissolvente aturdimento que nós vivemos hoje a vida. Ninguêm se instala nela com permanência, -- nem nas casas que alugamos agora, já com o antecipado desígnio de as largar àmanhã, nem nas dedutivas evidências da nossa razão, nem na voz instintiva da nossa consciência, nas nossas paixões, apetites, ódios, amores, interêsses. Nada para nós é hoje santo, grande, estável, firme, definitivo. Mudamos com uma rapidez assustadora e uma lamentável inconsciência, de ocupação, de família, de ideal, de carácter. Nada há duradoiro. A febril obsessão de «edificar o futuro» furta-nos ao gôzo tranqùilo e salutar da hora presente. A glória duma invenção feliz, o lucrativo êxito dum negócio, o aplauso por uma obra benemérita, -- que foram o produto de longo e persistente labor, as mais das vezes, -- contudo, apenas conseguidos e já não nos satisfazem, não nos arrebatam, não nos empolgam; raro a compensadora embriaguez do seu triunfo nos senhoreia por completo a alma. Devora-nos o apetite inquietante, e sem repouso, de novos riscos, lances, emoções, aventuras novas. O torvelinho trágico da vida desliza e corre sôbre nós sem nos penetrar, como a água pelas penas dos cisnes. A nossa existência atropelada e incerta tem a "allure" constante duma carreira, é um "film" alucinativo e ardente, cuja precipitada mímica nem nos abonda à vontade, nem nos cumula o desejo. É uma hiperbólica e vertiginosa curva sem termo, cujos ramos ideais mergulham no Infinito. Assim, andamos incessantemente aos cotovelões à felicidade, sem saber vê-la, sem a apreciar, sem a sentir. Ao cabo, morremos sem haver vivido.
...Quando, seguramente, a base mais sólida, mais coerente e mais lógica para a plena posse do futuro, seria, à maneira antiga, organizarmos o presente com serenidade, tratarmos com esmerado carinho as fugitivas delícias de cada hora que passa, apreciarmos, em suma, e penetrarmo-nos bem do valor intrínseco de cada dia, -- como se o mundo fôsse a acabar nessa mesma noite.
V
Buenos-Aires, finalmente! O "Almeria" agora avançava à cautela, flanqueando devagar as sucessivas bóias distribuidas, como um rosário de lumes, ao longo do estreito canal que dragagens contínuas mantinham aberto, cavando um sinuoso sulco de lôdo na chata pastosidade daquele estuário imenso. Anoitecia. O céu conservava-se nublado, mas calmo, e nessa infinita tela "gris" o carvoamento confuso das linhas da costa adquiria transparência, tinha um encanto singular, banhava-o uma poética e vaga suavidade. Na bruma indecisa da noite já o Silveira podia descortinar, convidativa, avançando e crescendo do boleado mistério do horizonte, uma linha caprichosa de farolitos e de mastaréus, primeiro; depois uma complicada e imensa teia flutuante, a mais inextricável maranha de tôda a sorte de embarcações, trechos de docas, atributos náuticos, pontes-levadiças, guindastes, galpões, bandeiras; a seguir, a linha quebrada e geométrica, o viveiro apoplético das "azoteas", das tôrres, das cúpulas; das agulhas, terraços, chaminés e cornijas rendilhadas, marcando por uma extensão sem limites, no seu pululamento proteiforme, o contôrno manso da cidade; e logo, já nítidos, já no primeiro plano, os alinhados globos eléctricos, a calçada "embadornada" e os pantagruélicos armazéns marginais da terra firme. Aí a tinha agora, a célebre, a grande cidade de trabalho e de esperança, de pensamento e de acção, de labuta e de prazer, de maravilha e de sonho. A Terra da Promissão actual, o "Eldorado" mais em voga, o símbolo da abundância paroxísmica, do homem próspero na terra magnânima! A metrópole ideal da magnificência e da fortuna, da opulência e da belêza! Emfim... Buenos-Aires!
O ar, pesado e espêsso, impedia a visão clara, e era como se todo o espaço se houvesse diluido numa obliteradora meia-tinta, numa suja mucilagem que delia os contornos e comia o brilho às coisas; contudo, tanto quanto podia adivinhar-se das condições de desarolo e vida daquela planura intérmina, o âmbito dêste pôrto modelar era enorme e colossal o seu movimento. Um enxame, um delírio. Crescia grosso para o alto um como que resfolegar de opressão, a afirmação potente, a rebeldia sujeita de fortes energias represas, dessa floresta de chaminés fumarando, dêsse empilhamento marítimo de monstros de tôdas as idades, de máquinas de tôdas as formas, dimensões, feitios, côres, que latejavam e arfavam com veemência, ora premindo-se, ora evitando-se, em risco de se entrechocarem e que a limosa torrente do Plata no seu gigantesco dorso embalava brincando, docemente, por uma extensão sem termo e sem medida. Pela carcassa formidável dêste báratro de enormidades os homens, iluminados de escape, lidavam como formigas. Saltavam choques brunidos de metais do alto bôjo flamante dos grandes transatlânticos, havia roces de cremalheiras, roldanas, cordagens, quedas surdas de fardos, vozes agudas de comando, tangiam as sinetas de bordo, as sereias apitavam; na gorda pacificação do ar, saturado de maresia, sentia-se, a quando e quando, um chapinar de remos, batendo claro no intervalo dalgum trinado lamento de guitarra; e no fundo humilde de alcatroadas barcaças fumegavam, a um lume discreto, caldeiradas apetitosas. E agora já, com o avanço lento e crescente do paquete, aquele primeiro esfumado e negro bosquejo da cidade povoava-se, tomava volume, aclarava, definia-se a cada momento; aqui, alêm, bisbilhoteiras luzitas saltavam, riscando arruamentos, desvendando interiores, trémulas e brancas como estrêlas; ou eram os grandes rèclames luminosos que no seu relampaguear interesseiro chispavam súbito, como borboletas de fogo, estremando planos, talhando duras silhuetas na sombra e em manchas fortes como "gouaches" lambendo os panos do muro; esbatidamente. E agora tambêm, a favor da molhada ressonância que lhe emprestava a proximidade das águas, vinham acariciar o ouvido atento do Silveira as sonoras trepidações da vida urbana, -- o "tlim" nervoso dos tranvias, o lento arrasto das carroças, o pregão dos vendedores de diários, o buzinar dos automóveis, o trapejar das oficinas.
Atracado ao cais o "Almeria", e enquanto a marinhagem ajustava a "passerelle" para o desembarque, João da Silveira buscava com afã em baixo, na multidão apinhoada cêrca, sob a "marquise" monstro da aduana, a figura pequenina e viva do seu amigo Pedro Azeredo. -- Um convicto monárquico tambêm, igualmente fidalgo, da linhagem seis vezes secular dos Azeredos, senhores de Penamacôr e redondezas, alferes de cavalaria ao tempo da revolução, e que naturalmente, incompatível com o salafrário regímen da Rèpública, seis meses havia que viera para a Argentina, com licença ilimitada. -- Lá estava êle, -- via-o agora! -- plantado bem na frente, mesmo na orla do cais, e correndo a amurada com a mão em pala sôbre os olhos, ao alto erguidos. Soltaram um simultâneo brado de cordealidade alegre, ao reconhecerem-se; e o Silveira, tam pronto como pôde, desceu, rompendo em cunha a atropelada impaciência da grossa onda cosmopolita que jorrava de bordo. Um quente abraço, no cais, de efusiva ternura; logo o Silveira confia do corretor do hotel e tediosa revisão e entrega da bagagem; e breva saltam os dois para um automóvel, que, à indicação dada pelo Azeredo, partiu roncando.
-- Então, como vais tu?... -- rompeu êste, num claro riso, saltando e sacudindo a espalda ao amigo com a mão em leque, todo voltado para o recêm-vindo.
-- E tu, meu alma do diabo? -- acudiu vivaz o Silveira, fitando, confiado, o companheiro e premindo-lhe afável os joelhos.
-- Menos mal, meu vélho. Ganha-se "plata". Hei-de-te contar... -- E com desdenhosa arrogância, atirando o palhinha para a nuca: -- Bem melhor do que lá nessa pepineira de rèpública.
Mas o Silveira, que não cessava de mirar a um e outro lado, interessadamente:
-- Parece-me uma grande cidade, esta?
-- "Como no!"
-- E bela, caramba!
-- Grande, grande... -- corrigiu com sentencioso ademan o Azeredo. -- Sobretudo grande. Quanto a beleza, "hay que distinguir".
Com efeito, o Silveira achava tendido sôbre aquela vastidão sem termo um como que mortiço pano de melancolia... Escasso movimento e pouca luz. Seria por motivo talvez do enfado da viagem, mas parecia-lhe aquilo triste.
O automóvel deixára a larga avenida marginal e subia agora uma pequena rampa, empedrada a paralelipípedos, sulcada de "rails" e tomada a todo um lado por um maciço casarão banal, atijolado e de balcões em arcaria, de comesinho aspecto colonial, sem vôo, sem majestade.
O Azeredo aclarou:
-- Aqui tens a chamada Casa do Govêrno... "La Casa Rosada". Residência do Presidente e instalação de vários ministérios.
-- Não vale o nosso Terreiro do Paço, -- com impertinente fatuìdade o Silveira anotou.
-- Foi feito noutra época, noutras condições. Não se comparam.
Seguia-se uma grande praça rectangular, definida pelas cimalhas caprichosas de imponentes palácios barôcos, e num dos extremos, longitudinalmente cortando-se, à direita, uma colunata helénica de templo.
-- Ali é a Catedral, vês? -- ciceronava entretanto o Azeredo. -- Logo ao lado, a Municipalidade. Aqui à ilharga o "Banco de la Nación", a Bôlsa. Tens pois aqui assim, logo por entrada, o coração, o índice político do país, o centro burocrático da cidade.
O vasto recinto, tirante as ruas periféricas, estava quase totalmente tomado por uma caótica profusão de materiais em osso, via-se coberto por um pejamento heteroclito e informe de linhas abstrusas, bárbaras, de coisas duras, cortantes, agressivas, sujas, -- montes de saibro, caliça, areia, pilhas de beton, caixas de latão, barricas, vagonetes, vigas de ferro, cabrestantes, escadotes, carretas, arames em puas hostis, barracas de taipa, casotas de zinco, pastas de lama. E desta hirsuta barricada, ao centro, sôbre esta aluvião industrial monstruosa, de destroços de ruína e de tesas projecções suspensas, uma ingénua figurita, espécie de Palas, no vértice duma pirâmide de "confiture", débil e só no espaço, assomava com tristeza.
-- Tôda esta confusão é por causa das obras do ferrocarril subterrâneo, -- tornou o Azeredo, solícito. -- Como o "Metro" de Paris... Ou melhor! muito melhor! Ah, indubitávelmente é um grande melhoramento. -- E enquanto o automóvel rodava à esquerda, passada a Catedral: -- Eu queria levar-te pela Avenida de Maio, a principal artéria da cidade; mas creio que não será possível.
-- Tambêm anda em obras?
-- Tambêm... em parte. Mas não é por isso. É que estava defeso, e muito bem, estender hoje o "côrso" por aqui; mas, a despeito da proìbição municipal, a multidão agora à noite conseguiu invadir a Avenida e todo o campo é pouco para ela. Não ouves?...
Pelo ar gordo e parado montava e alastrava um grosso resbunar pagão, o relincho orgíaco da multidão em febre, avassalando, acanalhando o espaço, tomando e prostituindo tôdas as direcções, sobrepujando e sujando todos os ruídos. Havia um vago clamor sobrenadante, assobios, gritos, risadas, fanfúrrias desafinadas, canções estúrdias, e a espaços buzinava áspero pelo ar o trilo irritante das cornamusas de barro. Era a despedida foliona do Carnaval, retida com ardor, prolongada com delírio. Eram os últimos arrancos da bruta bambocha anual em que a essa fera travestida, que é o homem, se permite desdobrar à sôlta as suas inclinações e regressar à sua origem. Naquela noite dionisíaca, a pressão cálida do ambiente era engrossada pela onda impúdica dos desejos. Adivinhava-se a vulgaridade, a brutalidade, a volúpia sórdida, a fúria erótica, os grotescos desmandos do instinto plebeu, nesse asfixiante turbilhão animal, brigando, rugindo e tressuando. Como se por completo se houvessem delido tôda a luminosidade, todo o espiritual enlêvo, todo o fino ar, tôda a aristocrática leveza da magnífica cidade, paresiada neste momento por um espasmo vêsgo de loucura.
Na raíz mesmo da Avenida, ao fundo da praça, o automóvel teve que parar. Dois polícias a cavalo davam-se a pêrros para regular aquela desordem e facultar o trânsito aos veículos, positivamente bloqueados, na frente, pelo marulho compacto da multidão, nos flancos, pelo aprumo bisarmal dos prédios. Num ligeiro estremecimento de contrariedade, disse o Azeredo para o "chauffeur":
-- Bem, tome aí por Rivadavia e veja se pode dar a volta por Cerrito. Apeâmo-nos em seguida. -- E, com ar enfastiado, para o amigo: -- Aqui, o entrudo é o que tu vês: é uma coisa antipática, vulgar, uma festa do populacho.
Depois, quando o automóvel, desandando lentamente, conseguiu retomar caminho:
-- Mas que mania foi essa de hotel?
-- É o mais prático, meu filho.
-- Bem: se chegasses aqui só, absolutamente sem conhecimentos, de acôrdo. Mas tendo-me a mim... Instalavas-te na minha pensão. Eu até falei à dona da casa... Estarias mais cómodo e mais barato. Como em família.
-- São essas familiaridades que eu detesto, que eu temo, -- objectou num instintivo horror o Silveira.
-- Tonto! Ao contrário, é delicioso... -- insistiu o Azeredo; e, saltando sempre, com o seu riso escarninho: -- Há lá um matrimónio sério, provincianos "burgêssos", que convidam tôda a gente a jogar o quino. Quando não há "plata" p'ra gastar fora, compreendes, é excelente... Há mais duas francesas, muito reinadias, que tem a excentricidade de não receber visitas senão meia-noite passada. Há uma professora de "tango", um estudantito de medicina, um caixeiro da "Ciudad de Londres" ... e então uma "gaja" chilena, menino! -- aqui o Azeredo sublinhava o seu entusiasmo, mirando em alvo, com requebros lúbricos, -- uma viúva, "morenucha", gordota, com uns olhos assassinos que trespassam a gente!
-- Atiras-te?
-- Ela parece-me amável, isso é... Tem um filho que é um "pibe" insuportável... Outro dia, com uma seta, de papel, ia-me vasando um ôlho. Ah, mas pelas celestiais delícias que se adivinham na mãe, aturam-se bem as diabruras do filho.
Prudencialmente, ao cabo duma pausa, João da Silveira mascou:
-- Bem, tudo isso eu acho detestável... Quero estar independente, livre, absoluto senhor meu, entendes? -- E como fazendo um exame de consciência: -- Não que às vezes, sem querer, prendemo-nos, e é uma maçada depois para sacudir essas seresmas.
-- Ora! -- com um desdêm superior objectou o Azeredo. -- A gente defende-se... -- E voltando a insistir: -- Vê lá, meu vélho, se preferes, anda. Ainda estás a tempo.
-- Não, não... Prometo ir, mas de visita.
Uns minutos depois, junto a uma esquina, apeavam-se; e o Azeredo deixava o seu amigo no "Cecil Hotel", onde lhe tomára alojamento. E, ao despedir-se: -- que no dia seguinte não poderia vir logo de manhã, porque tinha o escritório; mas pela tarde, ás 4, viria buscá-lo para darem uma volta por Palermo e "fazer" em seguida a "calle" Florida.
-- Vê lá não te constranjas...
-- Qual! Se é o que eu faço habitualmente. É o "chic"... -- E com o ôlho ladino: -- "Noblesse oblige".
-- Bem, está direito. Depois jantas comigo.
Na manhã seguinte, o Silveira que dormira como um bispo, levantou-se bem cedo, banhou-se com deliciada pausa, e enquanto esperava o "desayuno", foi abrir os dois largos batentes da porta do seu quarto, rasgada em balcão sôbre a rua. Era no último andar do hotel, a uma altura onde chegavam já mortiças num adormecimento lânguido as pulsações fortes do exterior. -- Ele queria ver a cidade com ar de dia, no seu fresco aspecto matinal, no brio potente da sua vitalidade, erecta e liberta emfim das vagas figurações da sombra, daquele pesadelo de animalidade e desordem, da passada noite. -- Saíu ao ar livre e avançou o busto com avidez, a mirar a extensa, a plena toalha de movimento, de vida e de luz que lhe oferecia, em baixo, o traço imponente da Avenida de Maio. Era um golpe de vista bem digno duma grande metrópole, não havia dúvida, essa formosa e ampla linha correndo dum jacto, inflexívelmente, limpa e direita, da pirâmide rudimentar da Praça de Maio à esbelta cúpula monumental do Palácio do Congresso. E esbeltos eram por igual os opulentos prédios marginais, caprichosos, brincados de formas, atirados com arrogância para o espaço: Traziam-lhe reminiscências de Paris na sua "patine" cinzenta e monótona, nos seus rendados balcões floridos: e de Paris eram tambêm a atmosfera velada, o asfalto luzidío, o ar discreto, as filas de mesitas redondas acaparadas sob os tôldos dos "cafés" e "restaurants", a entestarem, numa disciplina idílica perfeita, com os renques de plátanos muito escovados, tosquiados com simetria e alinhados marcialmente ao longo dos passeios.
Contudo, abrangida daquela altura, a magnificente artéria resultava estreita em relação com o vôo possante, com as maciças dimensões da casaria; das franças das árvores, dos postes telefónicos, dos colunelos da luz eléctrica, de tôdas as arestas, de todos os ângulos, de tôdas as curvas e ressaltos daquela floresta arquitectónica, restos ignóbeis de serpentinas pendiam esfarrapados, tremulando ao vento; e aqui tambêm, a intervalos, tomando por vezes a extensão de quarteirões inteiros, voltava o Silveira a ver com desgôsto o mesmo pejamento industrial com que, durante o seu breve percurso, esbarrára na véspera, -- havia trechos largos de calçada esventrados de lés a lés, fundidos em abismos de tréva, rasgados e cavados em boqueirões hiantes, como chagas, que geométricas vedações de zinco ondulado debruavam, polvilhadas de purulências de cisco, escoradas por eczemas de barro, e de cujo negro ventre revôlto subia incessante um bater ciclópico de picaretas e ferragens, na mais irritante dissonância com a gritada fúria dos pregões, o compassado chouto das tipóias, todo êsse marulho vago das ruas. Pelo ladrilho pardo dos amplos passeios marginais farandunava uma peonagem atarefada e compacta, de tôdas as origens, de tôdas as idades, feitios, tamanhos, côres, -- o mostruário ofegante do universo, o resíduo aventureiro de tôdas as raças, sôbre cujo movediço plasma, salvando a onda banal dos jaquetões e dos chapéus de palha, se afirmavam, aqui e ali, exóticamente, figuritas nervosas e amarelas de "nipons", o tudesco sólido e arrogante, "képis", turbantes, chimarras, "ponchos"; grupos de homens espadaúdos e arremangados, de avental, a cabeça de boina e o grosso artelho nu sob o farto "calcetin branco"; tipos refeitos de mulheres de aspecto arisco, o rosto acobreado e extático, a saia muito farta tecida em tons berrantes, e descido o cabelo esfíngicamente, à frente das orelhas, em duas tranças negras. Correndo a parte central da Avenida que se mantinha viável, pelas suas porções livres, uma dupla fila de côches e automóveis subia, e outra descia, infindáveis, incessantes, sem claros e sem trégua, aglomerados e suspensos por vezes, em nódos de embaraço, ao cruzarem as ruas transversais, donde perpendicularmente golfavam a jôrro mais automóveis, mais côches, mais ciclistas, mais cavaleiros, mais pregões, tôda a ordem de obstáculos, na sua invasão resfolegante engrossados ainda pelo pesado tropear das galeras, dos "camions", das carroças e tranvias. E desta forte trepidação material e espêsso escoamento, o fluxo e refluxo interminável, era regulado, às esquinas, numa sorte de automatismo consciente, pelo bastão vigilante dos polícias.
O comedor do hotel era na "planta baja", furtado às vistas do público por brancas e discretas "brise-bise", mas invadido em cheio pelo marulho atroador da rua. Tudo isto estimulava mais e mais a espertinada atenção do Silveira, que, apenas findou de almoçar, subiu a tomar a bengala, o chapéu e as luvas; e num momento aí o temos no pequeno vestíbulo outra vez esperando que o porteiro lhe tomasse um "taxi", onde a asa pitoresca do movimento lhe acalmasse a actividade e lhe désse pasto ao interêsse. Não tinha fim determinado. Queria ir dar uma volta de aventura, ao acaso, puramente ao arbítrio do "chauffeur" e ao sabor do imprevisto. Mesmo que outra coisa podia êle querer, por agora, não conhecendo nada da cidade?... Apenas recomendou à silhueta automática do condutor, que, de mãos ao leme, sem olhar aguardava indiferente, -- que não queria estar a parar constantemente... e então que fôsse por onde houvesse menos confusão, menos movimento.
O vélho "auto" partiu logo, tomando a oeste, e pronto desembocou numa praça amplíssima, desbordante de luz, num aceio irrepreensível as suas largas avenidas de asfalto reluzente, e orlada apenas, como que provisóriamente, de casitas abarracadas e construções mesquinhas, na cimalha "tape à l'oeil" duma das quais, espécie de mercenário frontespício de instalação de feira, mugia a toada populacheira e aldeã dum realejo. A todo o fundo, desdobrava-se e crescia majestoso para o alto, no seu deslumbramento marmóreo, o Palácio monumental do Congresso, vaidoso e lindo no estadeamento olímpico das suas colunatas, nos seus astragalos e florões clássicos, nos seus génios de bronze, nos seus grupos alegóricos, na linha puríssima e alada da sua cúpula sem par, traçando suavemente, na mansa tela lilás do céu, uma grande parábola de arrogância e de sonho. Entretanto, e apesar da nobre e empolgante linha geral do seu conjunto, esta mole colossal, erguida ali, não suportava a vastidão da perspectiva, sentia-se esmagada pela imensidade absorvente do recinto. E êste aparecia-nos tambêm inexoravelmente tomado pela mesma grossa e incómoda farfalha industrial que, parecia, aqui avassalava tudo; por tôda a sorte de vedações, de máquinas, de materiais, de esboços de construção e montes de escórias. Uma como que subversão de terremoto se produzira, ao centro, protuberado horrivelmente de pequenos Atlas de ferro e aço, de Himalaias de cascabulho, de Jungfraus de lama. Apenas, neste estrangulamento de sórdidas durezas, algum triste e anémico trecho do relvado, mais resistente, conseguia oferecer ainda uma acariciadora mancha de frescura; e num dêsses perdidos oásis de plácida harmonia debuxava-se, solitário e nostálgico, o bronze do atlético "Penseur", de Rodin, na sua acefalía paradoxal, na sua absurda corpulência. O mesmo edifício do Congresso, que o Silveira deixára agora à sua esquerda, estava por concluir, com o poderoso flanco sem epiderme, amparado em andaimes, esperando o revestimento para as arestas descarnadas e o tijolo ennegrecido.
Internou-se a seguir o automóvel por uma rua espaçosa e clara, espécie de "boulevard", no seu arranjo cuidado e simétrico, na sua dupla fiada de árvores, no delírio policromo das taboletas, nas artísticas vidreiras, na sua vida sussurrante. Alongava-se a perder de vista, e na sua orla barulhenta as "étalages" comerciais e os tôldos dos "restaurants" sucediam-se e disputavam primazias em alternâncias coruscantes. No letreiro duma esquina, de corrida, o Silveira conseguiu lêr -- "Rivadavia"; e então recordou que esta era talvez a principal artéria "porteña", e decerto a mais extensa, a de maior tradição, como que a coluna vertebral da cidade. Depois, fortuìtamente e a intervalos, consoante o giro caprichoso do veículo, o Silveira deu-se conta de passar por uma rua Andes, cruzar aí com um grande edifício pesado e austero, meio hospital, meio academia; a seguir outros arruamentos, quáse iguais, todos com lacónicas designações, -- Córdoba, Triunvirato, Santa-Fé, Las Heras, Montevideo... por fim já nem tomava tento por onde ia e abandonava-se, alheadamente, à incerteza voluptuosa do desconhecido. Mas eram sempre as mesmas ruas infindáveis, riscadas a cordel, invariávelmente chatas e implacávelmente direitas. Em vão se buscava neste taboleiro de xadrez colossal, a adoçar-lhe a hirta algidez sem termo, o desafôgo verde e livre dum "square", o perfume sorridente dum jardim, um refúgio amigo de sombra, a carícia duma curva, o boleamento duma colina. De onde a onde, algumas tacanhas "plazuelas" se riscavam, é certo, porêm submetidas por igual à mesma implacável esquadria, como que incrustadas na massa barrenta dos prédios, e na sua tímida penumbra alimentando uma flora de claustro, recolhida e triste. E por tôda a parte tambêm, mais ou menos, o mesmo pejamento de coisas tôscas e informes, o mesmo prurido desconcertante de renovação: ou era a calçada, esburacada em longos trechos e o trânsito impossibilitado pela aglomeração impertinente de paralelipípedos, em monte, de tubagens em linha, de rolos de cabos, de maçaricos, paz, alviões, lanternas; ou eram os primeiros ensaios de "rascacielos", com seu rodapé de tapumes lambusados de cartazes irritantes e aprumando hirsutos no vácuo os seus esqueletos de tijolo e de ferro. -- Uma cidade colhida em gestação flagrante, sacudida num estremeção apoplético de vida, onde tudo estava por fazer, onde nada se concluíra ainda. No seu subsolo esfarrapado e arfante, sob a sua carapaça movediça e áspera como o dôrso dum monstro antediluviano, bravejava uma caudal fremente de energias, reacionava no mistério a química formidável dos interesses e a impetuosidade brutal dos instintos. Nada quieto, nada seguro, nada inerte. Havia um eterno ponto de interrogação suspenso sôbre o seu arranjo definitivo, não se atinava com o termo a esta sua cavalgada frenética na conquista delirante do progresso e da fortuna.
Em contraste aberto com os populosos aglomerados das grandes capitais europeias, aqui em Buenos-Aires as casas, de frente angosta e profundamente esticadas, não tinham, pelo geral, mais que o andar térreo. A lisura convidativa da "pampa", deserta e sem obstáculos, incitava a esta expansão libérrima, o que explica que Buenos-Aires abranja hoje uma área superior à de Londres. Alêm disso, como o valor da terra nas zonas de vida mais intensa sóbe vertiginosamente, por isso tambêm, na economia do seu lógico desdobramento, as sucessivas construções tendem a irradiar para a perifería, como os tentáculos dum aracnídeo colossal, neste seu denso rastejamento sem freio e sem medida. À proporção que se distanceiam do centro, as edificações apequenam-se, rustificam-se, vão gradualmente despindo o carácter urbano, solidarizam-se, confundem-se com a terra, e a sua construção é mais e mais simples, até descerem às combinações rudimentares do tijolo, da taipa e do adôbe. E não é fácil fixar o limite a êste encurralamento galopante para o Infinito.
O Silveira considerava com particular interêsse a fisionomia, tôda peculiar, das construções principais, -- essas altas bisarmas que rompiam desamparadamente, aprumadas e esguias, do rasteiro cordão habitual da casaria, e que assim desdobravam no espaço livremente os seus flancos, não impenetravelmente murados, ao modo de Lisboa, como tumbas, porêm abertos e entremostrando a trechos a sua estrutura intestina, no escalonamento paralelo dos vários andares sobrepostos, e, em cada andar, na sucessão linear dos compartimentos, cujas portadas se entreviam superando, muito alinhadas, a aresta do parapeito discreto dos "pasillos". Tambêm lhe chamou a atenção o decorativo luxo exterior, o rebuscado adôrno das fachadas. E êste vicio era geral; nos palácios mais opulentos como nas vivendas mais comesinhas, prevalecia e ressaltava inalterável uma indumenta excessiva da "pâtisserie" italiana; em todos havia, um gongorismo de ornatos desbordante, uma ânsia eruptiva de contornos, um espolinhamento doido de torcicólos barôcos, de emblemas, de florões, de amorinhos, cariátides e quimeras. As paredes mais modestas não dispensavam alguma máscara de fauno ou uma lira entre malmequeres e rosas; mas eram sempre capas e capas de redundâncias sobrepostas, era um atropelado derroche de cimentos e argamassas que retinham a luz, que arranhavam o gôsto e varriam tôda a sobriedade e pureza de linhas. Não havia arquitectura, mas apenas "albañilería".
Contudo, esta pesada obsessão do relêvo era vantajosamente resgatada pela nobre linha geral das construções, elançadas sempre e escalando a altura com brio, num soberbo arranque de abastança e de fôrça. As janelas não prescindiam, em geral, do confortável resguardo das persianas, de madeira ou de ferro, e adiantavam-se em amplos balcões rendados, muitos dêles picados garridamente de floritas rubras e com finas enrediças verdes colgando. Mas nem uma vaga silhueta de mulher neles vinha debruçar-se, ninguêm se via às janelas, cujas persianas impertinentes, inexoráveis, se mantinham, de alto a baixo, herméticamente cerradas. E as portas, estreitas, igualmente impenetráveis, sentinelas fieis da felicidade e do amor... Impossível surpreender a mais fugidía nuança da vida interior destas esquivas bocetas, furtadas tam melindrosamente ao róce brutal do mundo. Isto dava-lhes um tom singular, um ar recatado e discreto, o que quere que fôsse de aristocrático e isento, contrastando afinadoramente com o grosso industrialismo plebeu que lhes marulhava em tôrno. E um outro mundo se adivinhava, com efeito, tecendo o seu manso ambiente inefável adentro dêstes misteriosos ninhos da paz e da virtude. Como se o carácter argentino, carinhoso, manso e precavido, cavasse um deliberado abismo de meticulosa defesa entre a rude guerra aberta dos negócios e a macieza impenetrável do seu ninho! Como se a feição e o cálculo, numa trégua prudente do seu antagonismo, o levassem a lançar uma barreira irredutível entre as doçuras plácidas do "home" e os atrictos desgarradores do interêsse, entre o coração e a banca, entre o lar e a rua! Cá fóra um balcão, ali dentro um altar. -- Seria assim?... -- A verdade era que, com tôda a sua pacotilha ornamental, o seu aspecto provisório e o seu precário arranjo, a grande cidade voltava agora a oferecer e como que confirmava, ante a sensibilidade esperta do recêm-vindo, o mesmo inédito e especial encanto, a mesma poética e vaga suavidade daquele esquissado carvoamento das suas primeiras linhas na calma téla "gris" do céu, na passada noite... Um não sei quê de atraente e aprazível, de afávelmente acolhedor, de harmonioso, de limpo, de fidalgo, que êle, um hóspede de horas, não sabia ainda se atribuir à claridade essencial das almas, se ao respiro salutar das coisas.
E sentia-se bem, afinal. Tendo voltado ao hotel, e agora reclinado molemente numa poltrona modesta do seu quarto, o desabusado morgado de Mosteirô repassava mentalmente o seu expatriamento voluntário e iludia o tempo numa saborida evocação retrospectiva de gratas lembranças, de projectos, de sonhos, de scenas vividas, de prazeres, de desejos suspensos. Primeiro a Pátria; mas o intervalo ainda curto do seu distanciamento e o torvelinho de ineditismos ofuscantes que, desde a partida, o vinham assediando, não permitiam que o vinco nostálgico por enquanto se afirmasse na vibratilidade demasiado inquieta da sua alma; depois, aqueles tantos dias de bordo, essa deliciosa bambocha de pequeninas audácias, desilusões, surprêsas, "flirts", intrigas, tédios e ridículos de raiva que era brisas e de gozos que eram espuma, correra-lhe um pano de olvído sôbre o passado; entre o que êle fôra, e o que era, haviam marcado uma eternidade e cavado um infinito. -- De Portugal, agora, queria lá saber! -- Apenas recordava, num desdêm superior, -- que aquilo lá devia ser uma maçada, com os "carbonários" a ditarem a lei, os conventos feitos quarteis, os novos sem religião, os vélhos sem garantias, e uma mania de escolas por tôda a parte, tudo muito malcriado e ninguêm conhecido. A seguir, recordou vagamente os dois irmãos. -- O que fariam êles?... -- Ainda o mais vélho, o José, advogadote rábula e manhoso, saberia tirar proveito dos conflitos jurídicos que, com a Rèpública, eram agora bastos como os cogumelos depois da chuva; mas o Bernardo, o mais moço, um pateta feito agrónomo à fôrça de empenhos, um "come-santos" sempre metido por "lausperenes" e romarias, como se aguentaria, agora que o Afonso déra com os santos em terra?... -- Ora! não fôsse "tanso". -- Por fim, ao evocar a visagem chorona e os ademanes trágicos da noiva quando lêsse a sua carta de despedida, o lábio varonil ergueu-se-lhe num leve sorriso, entre comiserativo e trocista, e os olhos fátuos, erguidos ao teto, semicerraram-se, a seguir a indecisa imagem da pobre Laurita, que em espiralamentos caricaturaes êle via subir, envôlta na fumarada ténue do charuto, seguida pela ronda desolada e grotesca da família.
O derivativo patusco da viagem, isso sim... tinha sido bom a valer! -- E já de repente voltava a dançar-lhe, efémera e jovial, pela retina tôda a divertida sucessão de episódios que durante êsses deliciosos vinte dias haviam marcado um dos capítulos mais saborosos e interessantes da sua vida. De tudo um pouco êle havia logrado provar nesses adoráveis "instantâneos" breves, e fugazes como "fogos-fátuos", feitos de saltantes contradições e antíteses súbitas. De tudo, -- desde os trágicos pavores da tempestade té aos desmanes hilares do ridículo. -- Que rico tipo aquele pedinchão Contreras, com as suas intrujonas promessas e os seus apetites decorativos... e a cabeça e as piugas do Alvarez, as fanfarronadas postiças do conde, as doutas madurezas do Wimeyer... o Mackenna com a sua pomposa inépcia, o Mafiori com a sua astúcia mansa. E, das mulheres, quanto não valia essa esnalgada e insípida Nora, a querer teimosamente enredá-lo na tentação paradoxal dos decotes... e que apetite de formas, que rico amor, a irlandesa... e a formosura alada, o requintado espírito, a indecifrável isenção de Irene! Esta, sim, que dava que pensar... -- Por uma natural associação de idéas, o Silveira conjugou mentalmente a púdica absténção, o carácter retraído e tímido da linda argentina, com o ar recatado e discreto que êle de passagem surpreendera, por igual, na fisionomia atraente da cidade. E todo êste ambiente embocetado e austero, longe de o acobardar, estimulava-o, era um desafio picante ao seu génio enamorado e volteiro, acendia-lhe os brios varonís em tonadas ardentes de desejo. Na segura antevisão dos mais belos triunfos, dilatava guloso as pálpebras, movia numa pregustação sensual os lábios gordos. -- Ah, que o seu instinto adivinhára! Devia por ali assim vir a passar bem bons bocados...
E aplaudia-se de ter vindo.
Pouco depois das 4, fiel ao seu compromisso da véspera, chegou o Azeredo. A tarde estava um encanto. A luz esbatia-se suavemente na mole carícia do ar, húmido e tranqùilo. Tomaram pronto um "auto" os dois amigos e dirigiram-se ao parque famoso de Palermo, anunciado nobremente, ao começo da avenida Alvear, pelas faustosas decorações da "Recolêta", em cujo preguiçoso declive majestosas linhas arquitetónicas enquadram harmoniosamente rasos e amplos taboleiros verdes, mosqueados de tintas policromas, um precioso "bouquet" de frescos relvados, de minúsculos jardins, de bosquetes, sébes floridas e tosquiadas sombras. É aristocrático e é lindo. E a seguir, descendo sempre suavemente, a mesma sumptuosa e ampla artéria se continua, atirada com arrogância numa dilatada conquista de espaço, numa extensa projecção rectilínea sôbre cujo asfalto polido deslizam, rodam e se cruzam alegremente as equipagens luxuosas e os automóveis de preço. Definindo a todo o comprimento o eixo da bela avenida, acompanha-a e ergue-se a perder de vista, no seu fino recorte aéreo, uma floresta linear de esbeltas lâmpadas ornamentais, da renda brônzea dos braços tendo suspensos grandes pomos brancos, e a lavrada raíz mergulhando na macieza de esguias e escovadas "pelouses", picadas de estatuetas decorativas. Depois, naturalmente, e fiel aos consabidos dogmas triviais da estética urbana, o formoso côrso, deixando o largo aprumo inicial, passa a desdobrar-se e a colear em mesurados lacetes de roda do grande lago, ao qual por seu turno não faltam as casotas, pontes rústicas, lilipucinas cascatas, esguichos anémicos, barquinhos, grutas do estilo, e o gongórico "restaurant" de rigor. Agora, neste consagrado circuìto da moda, é de-veras embaraçante, pejorativa, enorme, a afluência de veículos, cuja marcha se torna grave e cheia de importância. Há um refinado propósito de ostentação, uma patente fúria exibitiva; a cada passo, neste afluir compacto da assistência, produzem-se engorgitamentos, empastes, nódos, que obrigam a paragens sucessivas; tudo servindo de pretexto amável à mutuação de sorrisos, acenos, agrados, câmbios de frases familiares entre as pessoas conhecidas. Há vida, há movimento, há opulência, há ruído; mas tudo cerimoniosamente espontado, sem espontaneidade e sem brio. De família para família, de curva para curva, a cada novo cruzamento neste mostruário ambulante de vaidades, as vêsgas miradas perscrutadoras, os desapontados gestos, a raivosa estupefacção, as bôcas sumidas de inveja, impõem-se ao brando rodar das equipagens e ao bisbisoteio da chalra sobrenadante. E em tam pomposa parada de atrelagens, alguns vélhos "fiacres" vão ainda derivando de escape, ao largo, num repúdio de instinto, humildemente, como que vèxados no seu anonimato de miséria.
Ao mesmo tempo, uma afluência enorme, desbordante e luzida por igual, circula e galreja a pé, bordejando abundante as "aceras laterais", taquinando com airosa presteza a areia fulva dos passeios. Com saltitante orgulho o Azeredo vai mostrando ali ao amigo uma que outra figura conhecida. O Silveira, todo na hora presente intercala com gulosa vivacidade as sôltas interrogações que lhe acodem a propósito, no impressivo relato da sua excursão da manhã. Nota com espanto como, aqui, adoráveis grupos de "señoritas" se permitem deambular, rir, volitar livremente, fóra do ôlho suspicaz das mamãs, desenvôltas, seguras, num confiado aprumo e em plena independência. Nota igualmente que os homens vestem em geral com desafectada elegância, e que as mulheres teem uma "allure" cheia de graça, uma linha de conjunto harmoniosa e fina. -- Mas a moldura que a Natureza oferece a êste palpitante quadro social é tristemente desataviada e mesquinha. A vegetação é pobre. Abunda a mancha verde-sujo dos "eucaliptus", formando por vezes tufos gigantescos, e avultam alguns maciços mais de chorões, de plátanos, de cedros, de salgueiros; porêm a maior extensão dêste chato parque embrionário, -- meio "square", meio pântano, -- é povoada por uma fruste vegetação arbustiva, sem brilho, froixa, mal cuidada; e há avenidas inteiras orladas por pobres palmeiras "dépaysées", o tronco anão, a folhagem esfarrapada e lívida, que na sua enfermiça invalidez são um eloqùente protesto mudo contra a incongruência edílica, arrefecem o ambiente e tornam a perspectiva dolorosa. E ainda é de notar que, para alêm dum reduzido perímetro, neste arremêdo incipiente do "Bois", o traçado pretencioso dos bons caminhos de rodado, das áleas luxuosas, se interrompe súbito a cada momento, cortado por tôda a sorte de obstáculos. Se em qualquer direcção o desprevenido turista pretende um pouco mais ao largo aventurar-se, logo aí lhe barra arreliativamente a marcha uma passagem de nível de ferro-carril, a armatura bisarmal de alguma grande construção em osso, ou os intransponíveis valeiramentos de charcos, barrancos e atoleiros de tôda a espécie. As rodas dos veículos afundam-se e peganham impotentes na revôlta viscosidade das argilas empapadas. Não há continuìdade nem segurança de trânsito nesta desarticulada rêde de aberturas. E debalde alongamos interrogativamente, a um e outro lado, a vista morosa e cansada. Por tôda essa monótona extensão de rústicas "parterres", a luz rasante do crepúsculo apenas faz agora saltar o estagnado espelho dos lameiros e aguaçais, que salpicam bastos, com as suas placas corrosivas, como pústulas, a inevitável sucessão das lamas de mato ruço e rasteiro estranguladas entre a via-férrea e o Plata, onde a luz falta e a humidade abunda.
Na volta, já noite fechada, o "boulevard" aparatoso de Callao flambeava de côr e regorgitava de vida. Outra das grandes e opulentas nervuras da cidade. Tudo brilha, tudo vibra, tudo reluz neste largo e inquieto diorama. Na mesma sombra há movimento. Sôbre o piso esmerado, de madeira em paralelipípedos, os numerosos veículos teem um rodar suave e acariciador, sem estrépitos e sem sobressaltos, como se corressem sôbre alfombras. Pelos largos passeios marginais, na onda ronronante da multidão, saltam vivas as arestas e as figuras cortam-se com violência, surpreendidas em flagrante e trazidas ao máximo relêvo pela modelação crua em que, do mesmo passo, as envolve o grande jôrro de luz branca, dos candelabros do alto, e as espadanas de luz doirada golfando dos "escaparátes" scintilantes.
O Silveira seguia interessadamente o inédito desdobrar desta cinta magnífica, com a alma tôda nos olhos e a ventoínheira cabeça passando, em súbitas e incansáveis alternâncias, dos florões repolhudos dos palácios à toalha esplendente da rua; quando, de repente, imperativo, nervoso, arpoando forte o braço ao amigo:
-- Ah, ó menino! pronto, pronto... ali! manda parar.
-- Aonde?
-- Ali! ali! -- insistiu, na mesma imperiosa querença, o Silveira.
E apontava um grande letreiro, projectado, à altura dum 2.^o andar, perpendicular sôbre a rua, onde em flamantes caractéres sucessivamente brancos e rubros, se lia -- *Idiomas Berlitz*.
Mas, incommovível e suspenso, o Azeredo, sem perceber:
-- Ora essa! e porquê? Estás doido?...
-- Não, filho! manda parar, já te disse... Preciso adestrar-me no inglês, p'ra me entender com uma criatura deliciosa que conheci a bordo. Se tu a visses!
Agora o Azeredo ria a perder, sacudindo esperto o busto, espalmando as mãos sôbre os joelhos.
-- Ah! ah! ah! Essa nem parece tua.
-- E então? -- retrucou, fazendo um mômo de sério, o Silveira, quáse ofendido.
-- Pois tu não vês?... Por mais "apurado" que quizesses andar, nunca lograrias arranhar algo, e bem pouco, do inglês, senão passados dois ou três meses.
-- Tanto tempo?
-- Seguramente. E entretanto a mulhersinha teria sabido arranjar... quem melhor a entendesse.
Cabisbaixo e um pouco triste, o Silveira ruminava mentalmente uma aquiescência. E com o ôlho ladino, o amigo:
-- Não me sejas zonzo, rapaz! Em matéria de amor as mulheres não querem saber de palavreado. Obras, obras... -- E com um desprezivel dar de ombros: -- Que diabo! nem pareces português.
O "auto" seguia sempre, mole e suavemente. Deixada para trás a falaciosa esperança dêsse letreiro redentor, já os dois amigos atingiam de novo a Praça do Congresso e seguiam ao longo de Rivadavia, a internar-se no chamado "centro" da cidade. -- Infindáveis ruas estreitas e banais, perpendicularmente enastradas, no seu hirto paralelismo e na sua esquadria inflexível riscadas sempre indefinidamente. A esta hora ruidosa e opressiva da noite, elas são como que meteóricas fendas lineares talhadas a prumo, num rectilíneo enfiamento sem termo, ao longo do ferro e o cimento "recocó" dos grandes quarteirões maciços. Não há um desafôgo, uma abertura, uma fuga de espaço livre ou um claro de benéfico repouso, neste atropelado escoamento de coisas bárbaras e difusas. Foram ruas bastantemente espaçosas e amplas, há quarenta anos, para suprirem então ao movimento de duzentos ou trezentos mil habitantes; porêm hoje, deplorávelmente adstringindo ainda o coração duma cidade cuja população quintuplicou, tornadas duma lamentável e nociva insuficiência. No seu estrangulamento arcaico chocam-se, cruzam-se e baralham-se delirantes tôda a casta de obstáculos e de ruídos. A cada momento há que parar. De quarteirão para quarteirão, a cada passo o moroso avanço é cortado por embaraçosas suspensões, em inalteráveis sucessões de minutos que parecem séculos. Enfastiado e impaciente, o Silveira propôs ao amigo apearem-se. -- Não podia aturar mais aquela maçada! A pé sempre girariam melhor. -- Mas nem por isso a mudança de instrumento locomotor lhe trouxe a ambicionada largueza de movimentos. Pior agora, talvez... Pelos passeios laterais, mancos e exiguos, mal podem caminhar duas pessoas a par; e ainda há que seguir com invariável aprumo e a maior cautela, afim de evitar o róce brusco dalgum dêsses tilintantes e monstruosos "tramways" que teimosos e incessantes lhes passam, com estrepitoso fragor, rasos mesmo pela aresta, em risco de nos levarem um braço ou estriçarem uma perna.
Debalde no cruzamento das ruas a polícia, numerosa e atenta, faz cabalísticas manobras com o seu bastão providencial, no honesto esfôrço de regular os detalhes da circulação. Resulta sempre uma empresa árdua, por vezes heróica, a ordenada canalização da túrbida torrente, do atrito cosmopolita dessas grossas "mangas" humanas, jorrando em sujas golfadas por um afunilado labirinto a sua hipertrófica exuberância. Bem queria, uma por outra vez, o Silveira deter-se um pouco, a analisar uma figura, a sondar uma perspectiva, a anotar um pormenor, a observar as "montras"... breve reconhecia ser, ali, tam singelo acto um cometimento defeso à maior destreza humana; e tinha que arrancar brusco e retomar caminho, entalado, enovelado entre os cotovelões nervosos do amigo e a congestiva onda da multidão que o levava por diante. Depois, se êle por acaso, inadvertido, voltava a abandonar a sua posição de equilíbrio periclitante para contornar o arreliativo tapume dalgum prédio em obras, para dar o passo a uma dama, para alcançar o amigo, para atravessar a rua, logo de chamá-lo à brutal realidade, -- e por vezes simultâneamente, -- a busina dum "auto", as campaínhas das bicicletas ou o timbre estridente de mais um grande "tramway", cuja massa atravancadora, farfalhante, enorme lhe cortava súbito a frente, ringindo, pesadamente, com a esmagadora fúria dum mastodonte a abrir caminho pela selva.
O Silveira sentia-se enervado, aturdido. Aquele caminhar fatigante à fôrça de opressivo, o grosso marulho sobrenadante, a profusa luz dos cafés, dos teatros, "tiendas" e "cinemas", entontecia-o. Entretanto, prendia-lhe a atenção a "étalage" caprichosa e berrante das numerosas lojas de engraxador, -- peculiares de Buenos-Aires, -- com as suas estravagantes decorações, o seu afanoso saracoteio, e o imprescindível fonógrafo, ao fundo, sob o relogio, entre arbustos anémicos e hilariantes cartazes, roncando alegremente. Mas nem aí lhe era permitido o gôzo inocente dum pouco de exame tranqùilo; porque, se um instante êle parava à porta dum dêstes interesseiros especímens da fantasia napolitana, logo de assalto, à altura do ouvido, lhe rompia o tímpano, fazendo-o estremecer e fugir, a estentórica voz do pregoeiro, tam nasalada e estrídula como as vibrações do fonógrafo do fundo, para a rua a sibilar clamorosamente:
-- "Gay ass"...
-- "Gay asiento, cabayero!"
Teriam os dois caminhado assim pouco mais dum quilómetro, quando muito prazenteiro o Azeredo, sustando o passo ao amigo:
-- Cá estamos em Florida. Uff! Aqui não há trânsito de veículos a esta hora. É tudo para o belo "flirting"... -- E todo aos saltinhos, tomando-lhe do braço: -- Anda ver o "chic", meu rapaz!
O mesmo alinhamento angosto e banal das demais ruas em tôrno, cujo inflexível e cerrado travamento forma o clássico sistema vascular desta parte da cidade. A mesma congestiva afluência, o mesmo côrso embaraçoso e difícil, o mesmo movimento, o mesmo ruído tambêm; mas tudo isto aqui constituido apenas pela dissonância de vozes, o afanoso giro e o formigueiro sussurrante da multidão a pé, que, livre do tropêço aplastante dos veículos, em plena alegria e em plena expansão, revoluteia, aflúi, chalra, insinua-se, resvala e afirma-se prepotente, tomando à vontade a rua tôda, as suas impressivas silhuetas saltando nítidas e as sombras mordendo em vincos de agua-forte a espelhada fluìdez do asfalto reluzente. É a hora elegante, a hora preferida. Sente-se e sôa brando o peganho abundante das passadas, ao longo dêste grande salão a céu aberto. Ao alto, pela noite nevoenta do céu, superando o estrangulado limite dos prédios, recortam-se, penduram-se, cruzam-se e dançam em profusão tôda a sorte de rèclames e adornos luminosos, formando por vezes, de lado a lado, caprichosos viadutos, ou suspensos em esplendentes rosários que entornam a sua luz gloriosa sôbre o boleamento arquejante e febríl desta grande feira gentílica. Em baixo, a sucessão dos estabelecimentos luxuosos é interminável: é uma dupla feira, magnífica, deslumbrante, de grandes "magasins" de modas, livrarias, floreiros, "bibelotages", "tea-rooms", "étalages" industriais, armazêns de música, adoráveis pequenos salões artísticos, rijos mostruários de artigos de "sport" que prendem um momento a atenção dos homens, cristais de ourivezarias faiscantes que incendem em pecaminosas tentações o perdido olhar das raparigas. -- Qualquer coisa como a "Rue de la Paix" ou "Bond Street", porêm com mais ímpeto, mais côr, uma vida mais compacta e mais intensa, e sobretudo com uma percentagem muito superior de mulheres bonitas.
É ver a harmoniosa graça com que elas caminham, no seu passo miudito e firme, airosas, leves, naturalmente distintas, requintados exemplares da espécie, felizes pelo segrêdo dêste seu donaire especial, feito de nobreza, de doçura, de confiança e de vaidade. Os homens marcham com uma tonada, uma segurança e um garbo igual, pisando ademais como senhores, no convicto orgulho de si mesmos, incompatíveis, vê-se, com o instinto da economia, altaneiros e certos na generosidade sem fim do seu torrão bemdito. E todo o mundo anda ligeiro. Claro que no corriqueiro programa dêste obrigado passeio elegante, de cada dia, a melhor e mais grata função é consagrada ao galanteio feminino. À pinturilada porta da confeitaria "L'Aiglon" estacionavam grupos de "mirones", a cada momento renovados, tam de-pressa sumidos no grosso embate da onda, como logo refeitos galhardamente; por tôda a parte se disparam frases amáveis e se despedem olhares gulosos ao venusino apetite das lindas "señoritas" que por entre o deslumbramento mágico das lojas desfilam incessantes, -- mais claras que as luzes, mais adoráveis que os "bibelots", de maior preço que as jóias; mas tudo isto é expedito, fugaz e feito com sôlta decisão varonil, em breves pausas de cavalheiresca excepção abertas na febre geral do movimento, deixando a perder de vista e afundando num abismo de ridículo a pasmaceira lamecha habitual da nossa Rua Áurea e do Chiado.
-- Que tal achas, "ché"?! -- indagou o Azeredo vivamente.
E com os olhos extraviados de júbilo, o Silveira:
-- É encantador, é divino! Esta é a minha terra!
Assim fizeram os dois o percurso total da formosa rua, desde as aristocráticas instalações de Harrods, passando pela arte postiça da "London Gallery", a arcaria pedante do "Jockey-Club", a branca portada do "Charpentier", as "montras" suculentas da "Rotîsserie Sportsman", té ao grosso amontoamento burguês dos armazens de Gath & Chaves. Ao cabo, já sôbre a Avenida de Maio, o Azeredo assinalou trocista à curiosidade ávida do amigo a chamada "esquina de los otarios", -- pascácia aresta de voluntário suplício onde o amor pelintra dos caixeiros e amanuenses vem baboso e marruaz aguardar a saída das costureiras. E aqui nêste estrepitoso cruzamento de duas das suas principais artérias, atinge o máximo da intensidade e da côr a agitação resfolegante da cidade. Dêsse compacto torvelinho, da baralhada onda de tôda essa grossa turba em delírio, ergue-se em quentes lufadas e toma e embebeda o ar uma clamorosa ressonância, que é a evidenciação triunfante do bem-estar físico, da fecunda actividade, da pletóra de fortuna e de riqueza desta moderna Cartago, -- a vontade feita moeda, um dos grandes fócos da capacidade potencial do homem sôbre a terra, portentoso centro de atracção, empório colossal do trabalho fascinante e criador, caldeado na protéica ardência das mais válidas esperanças e as energias mais potentes das raças de todo o mundo.
VI
Bem disposto e ávido por continuar o seu interessante exame objectivo da cidade, o Silveira no dia seguinte ergueu-se cedo e desceu pronto a rua. Andadas não mais de três "cuadras", ei-lo de novo na Praça do Congresso. Dez horas da manhã. Fazia um dêstes claros, suaves e incomparáveis dias de outono de Buenos-Aires, em que do céu alto e límpido, de pura safíra desce uma luz de oiro vélho a acariciar tranqùilamente as coisas. Os raros relvados do centro da praça, com a sua rociada lanugem verde, formavam apetitosos ninhos, e a airosa cúpula do Parlamento, ao fundo, cortava-se na frescura opalína do ar em figuras de aguarela. -- Mas agora o Silveira notou que logo ao primeiro ângulo do vasto recinto, à sua esquerda, -- junto á base duma estátua que era a consagração ornitológica dalguma grada personagem, de matacões e labita, desta as abas dançantes brigando simbólicamente com as asas duma águia, -- um joven de lunetas e gravata branca, desbarbado como um "clergyman", trepado a um banco, acenava e arengava com entusiasmo a um hipotético auditório que não vinha.
Atraídos pelo colchete dos seus dedos suplicantes e pelos seus brados convictos, acodem primeiro alguns rotos "canillitas", vendedores de jornais; vários cocheiros e "chauffeurs" em repouso vão depois até êle preguiçosamente arrastando-se; véem ainda, estimulados por êste comovedor desbarato de eloqùência no vácuo, os poucos desocupados que pelos bancos próximos amadornavam a sua indolência. Curioso e atento, o Silveira acercou-se tambêm. -- Discreteava sobre política êste improvisado apóstolo da rua. Falava em civismo, em liberdade, em igualdade, em consciência, no sagrado exercício do sufrágio, nas inauferíveis regalías do povo. Figurava enfáticamente o concurso às urnas como a «benéfica corrente arterial» da vida colectiva, como a maior conquista e o mais grato dever moderno. A sua persuasiva parlenda rola sempre sôbre a mesma idéa, torturadamente exibida num laborioso acrobatismo de logares-comuns; dir-se-ia que êle prolonga deliberadamente o seu exórdio, a dar tempo a que a assembleia cresça. Agora há já mulheres tambêm entre os ouvintes. E o glabro orador então aquece, afervora no entusiasmo. Imagina-se compreendido e ala-se em conceitos galantes, em primores de frases, desbrida-se em raptos de baixa lisonja sôbre as reivindicações feministas e a sublime missão social da mulher. Gesticula como um energúmeno, os desmanes da inspiração e o tom da voz sobem de ponto, já com jupitereanas fulminações contra os abusos de caudilhismo, a influência despótica da riqueza e a corrupção sistemática dos «grandes satrapas» do poder, -- inofensivas objurgações abrangidas entretanto pela alçada coerciva da polícia. -- Porêm o Silveira acha êste mandado charlatão político menos interessante que os seus pitorescos competidores "callejeros", os barafustantes pregoeiros de pomadas e elixires maravilhosos. E o assunto não o prende maiormente. Afasta-se com tédio.
Segue então percorrendo a pé a esplêndida rua Callao, num regalado vagar, saborosamente. Fareja com libidinoso apetite as morenas crioulitas que passam, em cabelo; esmiuça com a vista maravilhada e cativa tôda essa opulenta sucessão de "magasins" elegantes, luzidas "étalages", soberbos hoteis e palácios sumptuosos. Mas eis que, ao desembocar na praça Rodriguez Peña, -- oh! fastidiosa surprêsa! -- "mutatis mutandis", ele aí vem encontrar repetida a mesma scena de há pouco. Igualmente aqui um veemente e fogoso orador bólsa sôbre um auditório escasso e mesclado, por igual, a mesma encomendada torrente de diatribes e proclamas. Com a diferença que êste é trigueiro e barbado, de aspecto façanhudo, tem um "taxiauto" por pedestal, e à sua ilharga flameja com triunfante arrogância uma bandeira partidária. O pior foi que numa das mais impetuosas fugas da sua inflamada homília, um polícia aproxima-se, intervêm, exige-lhe a apresentação da licença; o interpelado titubeia, estaca, empalidece, busca em vão um papel salvador nas algibeiras... e por fim lança mão resoluta ao leme do "auto", vôa e desaparece, entre os bonachões aplausos e as casquinadas trocistas dos assistentes.
O Silveira lembrou-se então de ter lido, ou lhe terem dito, que naquele momento a luta eleitoral "battait son plein" na grande capital "porteña". Estava-se em pleno período eleiçoeiro, para a renovação parcial de senadores e deputados. Os socialistas, na impetuosidade juvenil da sua formação, tinham perante os vélhos partidos arreganhos nunca vistos. Êstes respondiam com uma animação e um calor igual. Daí a encarniçada vivacidade da luta, e a dispersiva abundância de tôdas essas arrebatadas prédicas de moral política, cuja copiosa fúria palreira o Silveira ligou naturalmente à profusão berrante de cartazes com muitos pontos de exclamação, e de anodínas efígies de bons burgueses, aspirantes a pais da pátria, que êle via por tôda a parte colados às paredes, -- sôbre todos batendo o "record" da flamância e do réclame o busto implicante dum já maduro candidato a senador, de grande flor na lapela, no redondo carão sensual uns olhitos muito vivos e o grisalho bigode erguido.
Assim se explicava essa divertida e basta erupção de relâmpagos de civismo, por conta própria ou encomenda alheia, um pouco à maneira inglesa. Porêm nada disto podia maiormente interessar quem, como o Silveira, se expatriára de vontade, muito de indústria para furtar-se ao galimatías político e não mais ser parte nem presenciar, sequer, as sujas dissenções e as chinfrineiras brigas em que se esfacelava a sua querida terra. Tambêm, pelo momento, êle começava a sentir que já conhecia demasiado, para um hóspede de horas, como êle, os aspectos exteriores, o ambiente vulgar e comum de Buenos-Aires. -- Isto só não lhe bastava, não era nada. Queria ir mais alêm... -- Mordia-o o desejo veemente, picava-o o apetite agudo de transpôr essas portitas de sacristia, de franquear essa freirática barreira de inexoráveis persianas com que êle esbarrava por tôda a parte, tendidas herméticamente; queria, em suma, desvendar um pouco o pensamento, a alma da encantadora grande cidade que êle escolhera para refúgio, surpreendê-la nos castos mistérios do "hogar", conhecer-lhe as características morais, penetrar-lhe a vida íntima, -- o que êle de antemão sabia, pelo Azeredo, «ser algo difícil».
Entretanto nessa tarde, para aproveitar o tempo, e, como bom táctico do galanteio, para não perder o contacto com as áticas perfeições e as claras promessas de "Mrs." Edith, decidiu ir de visita aos Di Paoli. Tinha-os ali assim cêrca do hotel, na mesma Praça do Congresso. Uma modesta pensão que lhes haviam agenciado, em casa duma «distinta camarada de arte», -- explicára-lhe o conde pomposamente. Era um simples rés-do-chão, como tôdas as antigas casas de Buenos-Aires, com a porta e a seguir duas janelas. No humbral da porta havia um singelo "placard" de metal brunido, onde em negros caractéres se lia: «Lady Cowpel, miniaturista". Entrava-se, subiam-se três pequenos degraus, e passada uma estreita porta envidraçada, tinha-se o invariável e minúsculo vestíbulo, estiradamente continuado por um álgido corredor descoberto, que uma longa fieira de discretas portas flanqueava, e que era alto, fechado ao fundo por uma esguia charola de dois andares. -- Uma mocita de touca e avental branco acudiu à entrada do Silveira, a inquirir:
-- "Qué desea, señor?"
Os Améglio haviam tomado o primeiro compartimento, logo à direita, -- o melhor da casa, -- correspondente às duas únicas janelas dando sôbre a rua. A esperta "mucamita" adiantou-se e foi golpear à porta, melindrosamente blindada de persianas fixas de madeira, como tôdas as mais. O mesmo conde veio abrir; e logo com expansiva alegria, ao dar com os olhos no amigo:
-- Ah, o meu caro Silveira! Que bela surpresa! -- Abriu convidativo a tôda a largura o batente da porta: -- Entre, entre... queira entrar.
O Silveira hesitou, ao ver o conde em mangas de camisa, e do mesmo passo surpreendendo num relance a atravancada desordem do aposento.
-- Venho talvez incomodar...
-- Quê! Incomodar?... De modo nenhum. Pelo contrário! Entre... Fez muito bem! -- E para o interior, num altear imperativo da voz, anunciou afávelmente: -- Edith! o snr. João da Silveira.
O recêm-vindo arriscou então alguns tímidos passos no baralhado pejamento do recinto. Era uma vasta peça, alta e triste, forrada a papel vulgar, esfarpado a trechos e comido junto ao teto por eczemas de humidade. Sôbre a lisura de bistre do soalho encerado, arrastavam-se um pouco por tôda a parte as maletas, as caixas de chapéus, os sacos de viagem, e havia pulverulências lineares de terra e lixo definindo geométricamente o bôjo de grossos caixotes de pinho, intactos uns e outros já eventrados, com as desprendidas tampas postas ao alto e eriçadas de grandes prégos, hostís e recurvos como garras.
Em meio da sala o conde, sempre convidativo e afável, e depois de haver cerrado a porta, apressou-se a explicar:
-- Não repare neste desarranjo, meu amigo. Eu estava desenfardando e arrumando p'r'aí assim de qualquer forma os meus ricos quadros. Parece que não sofreram com a viagem.
-- E são muitos?
-- Ao contrário. Mas valem pela qualidade. Um tesouro! -- E num convencional arrebite de vaidade: -- Oh, que deslumbrante exposição eu vou fazer aqui!
Passou a mão nervosa pelas negras ondas do cabelo, moveu o tórax numa leve opressão de cansaço, e mesureiro, abundante, sempre inalterávelmente pálido, apontou desvanecido ao irracional exame do Silveira a atramochada distribuìção das suas telas, umas já penduradas, outras ainda provisóriamente postas de espalda contra o rodapé surramposo da parede. E tambêm junto a esta um petisito obreiro, arremangado e trepado a um escadós de tesoura, como que aguardava ordens, inexpressivo, imóvel, de braços pendentes e o pesado martelo da mão suspenso.
O Silveira julgou oportuno convidar polidamente:
-- Bem, mas porque não continua?... Eu não quero que façam cerimónia comigo.
-- Cerimónia, nenhuma. É muito amável... É que estou um pouco cansado, -- obtemperou naturalmente o conde, enfiando o seu leve jaquetão cinzento. Fez um sinal ao mocito da escada, que desceu e saíu em seguida; e tranqùilamente, sentando-se, acendendo um cigarro: -- Temos muito tempo.
Neste momento abria-se uma espécie de envidraçada porta de alcova, no mais escuso recanto da casa, e por ela fazia a sua apetecida aparição essa sonhada delícia de "Mrs." Edith, singelamente vestida, -- uma saia corrida de fina sarja negra, blusa branca de "liberty", -- e o mesmo liso penteado em bandós à Cléo, o mesmo divino perfil de Madona, o mesmo ar repousado e ingénuo, a mesma ateniense modelação das formas. Avançou sorridente ao Silveira, saùdaram-se familiarmente, como dois bons amigos. Logo ela recolheu pronto a mão, perturbada e esquiva ao beijo demasiado expressivo do seu admirador; e tudo era depois circunvagar, perante êle, os confrangidos olhos pela sala, e enconchar e alargar e mover com vivacidade os braços, em adoráveis gestos de escusa.
O marido solícitamente interveio: -- que o seu nobre amigo já sabia... desculpava tudo. E para o Silveira continuou, desabusado e simples, aclarando:
-- Obtivémos por muito favor esta pequena instalação, que está longe de ser decente... e muito mais longe de ser barata. Imagine: esta sala e dois pequenos quartos, interiores, escuros, nada mais... quinhentos pesos por mês. E a sêco. Uma barbaridade! Temos que ir comer ao "restaurant" Santini, que nos fica a cinco "cuadras", na "calle" Paraná. -- Aqui a condessa fêz notar com repulsivo enfado, que, demais, tôdas as manhãs a laboriosa preparação dos banhos e abluções «era uma tragédia». E no mesmo tom o Améglio confirmava: -- Uma roubalheira! uma maçada! Conheço Londres, Viena, Berlim, S. Petersburgo... pois, senhores, já vejo que não há como Buenos-Aires para fundir dinheiro!
-- Não é nada tranqùilizador êsse anúncio para mim.
-- Aqui o pretexto para tam alta renda é que as peças estão mobiladas. Mobiladas! -- comentou o conde, com uma desdenhosa mirada em tôrno, encolhendo os ombros. -- Mas de que maneira!
Não se recomendava com efeito o mercenário recheio da vélha sala nem pelo confôrto nem pelo aceio. De reposteiros, cortinas ou alfombras, não havia vestígio. Ao meio da principal parede, um aparatoso e ratado grande contador japonês, ainda com preciosas incrustações de laca e marfim, mal amparava a poder de cunhas e remendos a sua ruina claudicante. Havia mais uma meia dúzia de desparelhadas cadeiras, tamboretes e "fauteuils", com o estôfo esfiampado e sujo; uma "étagère" banal com conchas e búzios, um piano; e ao centro uma mesa redonda, coberta por um coçado e lustroso pano franjado, de lanujem verde, agora ciscado abominávelmente de pequenas ferramentas.
Com um novo lastimoso dar de ombros, tornou o conde para o Silveira:
-- Nem uma chávena de chá lhe podemos oferecer!
-- "To morrow"... -- acudiu a mulher com adorável carinho.
E muito solícito o conde, interpretando:
-- Àmanhan... Oh, àmanhã, certamente, com o maior prazer! -- E obsequiosamente lembrava: -- O que podemos agora é preparar-lhe um "punch". Vai feito?
O Silveira recusou delicadamente. -- Por modo nenhum! bastava-lhe gozar a sua amável companhia. -- "Mrs." Edith ofereceu-lhe "bonbons", atalhando assim gentilmente o previsto fluxo de consabidas frases lisonjeiras que de seguro ia seguir-se. E levemente ruborizado, o Silveira, a derivar, com os lábios melados da guloseima e do desejo:
-- Diga-me, conde... e a sua exposição onde a vai fazer?
-- Ainda não sei... Sei apenas, isso sim! que vou "épater" tôda esta gente -- rematou com a mais segura ufania, atirando fóra o cigarro, os olhos muito brilhantes.
E posto súbito em pé, tomando com decisão o braço ao amigo:
-- Isto é um mostruário de puras maravilhas. Veja, veja... venha ver! Comecemos por o que está já aqui assim à vista. Aqui tem mesmo na sua frente um Hobbena, o maior paisagista holandês depois de Ruysdaelf; a seguir, um Corot, o grande psicólogo da paisagem; e agora em figura, note! um dêsses graves e aristocráticos retratos de Gainsboroug, que se pagam hoje a peso de oiro; outro, do seu émulo e contemporâneo Reynolds; ali, um belo estudo de Salomon Konink; mais alêm, vá anotando sempre! uma cabeça de Ticiano, de quem o Tintoreto dizia «que pintava com carne moída». E por último, -- plantava-se com intimativa diante do Silveira boquiaberto, -- por último, nada menos que um Velasquez! um genuino Velasquez, ouviu?... o maior, o mais assombroso pintor de todos os tempos. -- A seguir, indicando pelo soalho os caixotes intactos: -- Fóra o que está ainda p'r'aí assim... -- E sempre na mesma teatral fatuìdade, dando um giro triunfante pela sala: -- Não lhe dizia eu!?... É realmente uma dôr de alma ter de desfazer-me de coisas tam raras e tam belas... oh, mas ao menos encontro lenitivo na idéa de que o meu sacrifício há de dar brado! e de que ficará memorável na grata lembrança dêstes bons "porteños" a maravilhosa selecção de obras-primas cuja aquisição eu venho facilitar-lhes... um relicário de Arte como êles não viram nunca, como não teem nada que nem de longe se pareça sequér!
"Mrs." Edith, que depois de cautelosa inspecção acabára por sentar-se no menos avariado dos tamboretes, seguia esta flamante parada estética, sorrindo vagamente, numa complacência tranqùila. E do fundo do seu obtuso espanto o Silveira, para o marido:
-- Devem ser telas muito caras?
-- Seguramente.
-- Próprias talvez melhor para Museus.
-- Ah, não... aqui todavia há riquíssimas colecções particulares. Duas ou três, pelo menos. Eu estou bem "renseigné"... Sei como hei-de manobrar. -- E ladinamente, piscando o ôlho: -- A coisa é segura!
Perante tanta soma de glória e de fortuna, uma instintiva dúvida chispou na pétrea ignorância do Silveira, que aventurou tímidamente:
-- E, perdoe o meu amigo, são bem autênticos?
Um claro riso triunfal aqueceu a cínica face do charlatão.
-- Ora eis aí precisamente a garantia do meu êxito, a chave do meu segrêdo! É o caso daquela minha invenção... Eis o ponto onde eu queria chegar.
Convidou o amigo a sentar-se, sentou-se defronte, e sentencioso, pausado, dobrando à frente o busto, os cotovelos sôbre os joelhos:
-- Oiça... O amigo sabe que tem sido sempre um problema difícil poder constatar-se com segurança a paternidade dum quadro, especialmente dos antigos, recorrendo apenas aos meios indutivos e dedutivos até agora em uso. Vamos a ver... -- Contava pelos dedos. -- A análise química das côres empregadas não basta: primeiro, porque os discípulos dos grandes mestres ficam usando, geralmente, as mesmas pastas e as mesmas tintas, o que já estabelece confusão; segundo, porque, alêm disso, as melhores ou piores condições de conservação duma tela, a humidade, o calor, as tropelias dos vários retocadores e técnicos, e mil outros malefícios, chegam muitas vezes a pô-la em estado de não ser possível emitir uma opinião segura sôbre a sua idade e procedência. Bem, mas poderá então recorrer-se, dir-me hão, ao exame e confronto do estilo, da maneira do artista. Ora aqui igualmente o bom critério falha, falto de apoio sério, porque não só, para cada artista, essas variantes no processo pictural se produzem de ordinário caprichosamente, senão que ainda, quantas vezes! os adeptos e os continuadores duma escola acabam por apaixonar-se pelas características de execução do chefe e vão até assimilá-las maravilhosamente. Aí tem o meu amigo Perugino e Rafael: dois temperamentos artísticos de bem diversa índole, não é certo? E contudo, comparados em algumas das suas melhores obras, parecem idênticos.
Contrariado e aborrecido por êste giro erudito do diálogo, o Silveira esboçou um gesto de impaciência e mandou uma implorativa mirada a "Mrs." Edith, que folheava uma revista ilustrada, distraídamente. O conde prosseguiu:
-- Há ainda a considerar os testemunhos da época, os chamados documentos históricos, dum grande auxílio, seguramente. Mas tambêm êstes só por si não bastam. Porque é por igual freqùente deparar-se uma ou outra tela atribuida a qualquer dos grandes mestres da pintura, sob cujo nome tal ou tal quadro foi inscrito nos Catálogos, e afinal vir a averiguar-se que êle para semelhante obra não contribuira mais do que com a idéa e déra a firma, tudo o mais tendo sido feito por algum dos seus discípulos. Olhe, aí tem: o famoso "Retrato do Rabbino", durante muito atribuido a Rembrandt, porque em tudo correspondia à "maneira" consagrada dêste genial pintor, hoje é catalogado como obra de Salomon Konink. E quantos exemplos mais!
Agora, sim, a condessa, condoída da mortificada expressão e a confrangida atitude do Silveira, tossicou, ergueu-se e veio de novo oferecer-lhe "bonbons", piedosamente. Enquanto, palreiro e implacável, sempre sentado o marido:
-- Esta deplorável deficiência de elementos de "contrôle" dá como resultado que a gente percorre os principais Museus da Europa e aí vai encontrar, ainda hoje, muitas das suas melhores obras registadas e inscritas sobre designações deficientes ou imprecisas. A célebre "Visitação" e a "Ressurreição", do Museu de Berlim, ainda hoje se não sabe a que primacial pincel atribui-las. O mesmo acontece com duas "Madonas", um "São Lourenço", um quadro do "Gólgota", um "Retrato de Guerreiro" e vários outros, todos peças de subido valor, no Museu de Budapesth. O Catálogo contenta-se em nos dizer que são «da Escola italiana». E semelhantemente em todos os grandes museus do mundo. Pois bem! amigo Silveira... -- acentuou com jubiloso orgulho, abaritonando a voz, aprumando o busto, -- para preencher tam lamentáveis lacunas achei eu o processo! "Eureka!" É a minha grande descoberta, a minha glória, o meu segrêdo. Todos cá virão ter... é infalível! E quere saber onde pela primeira vez ficou irrefragávelmente provada a eficácia, a importância, a utilidade mundial do meu invento?... Foi em Londres, na "National Gallery". Conhece?... Há ali um grande quadro, "The Old Grey Hunter", que andava catalogado como obra original de Paul Potter. Porêm, recentemente, o dr. Bredius formulára a êsse respeito dúvidas ponderosas, inclinando-se a atribuí-lo antes ao belga Verboeckoeven. Grande polémica nos jornais e revistas da especialidade, socorrendo-se cada um dos contendores às suas melhores razões e argumentos, numa renhida discussão sem fim... e sem resultado. Vai eu, que me achava então em Londres, aproveitei... a ocasião era formidável!... propus-lhe "crânement" resolver a dificuldade, pôr a limpo a questão, aplicando o meu processo microfotográfico. Acolheram-me a princípio com um scepticismo incrédulo, mas acederam por fim. E sabe o que aconteceu?... -- E arrebatadamente, erguendo-se, num fogoso ímpeto de vaidade: -- Provou-se, mas provou-se por uma forma insofismável, entende? que o quadro fôra realmente executado por Potter... porêm Verboeckoeven pintára o cavalo.
No manso rosto complacente de "Mrs." Edith, e ante a estupefacção alarve do Silveira, perpassou o comentário burlão dum sorriso. Enquanto doutoralmente o Améglio, em pé diante do amigo:
-- Porque êste meu processo não só nos dá a segurança absoluta de saber se um quadro é antigo ou moderno, mas qual artista, moderno ou antigo, foi o seu autor. -- Sacudiu a cabeça e ergueu as mãos com encarecimento. -- O que então se nos revela é portentoso! Tenho aí provas... hei-de-lhe mostrar. -- E agora modestamente, encolhendo os ombros: -- E contudo é um processo bem simples e ao alcance de qualquer que tenha uma certa prática de fotografia. -- Voltou a sentar-se, e com dogmatismo pedante, feita uma pausa de importância: -- A questão é esta: cada artista, quando pinta, e considerado êste acto sob o ponto de vista puramente "mecânico", poisa as tintas na tábua ou na tela "inconscientemente", tem um toque digital invariável, traça inadvertidamente uma grafia peculiar, que as centenas de pontas do seu pincel vão de improviso riscando, numa impressiva obediência ao automatismo nervoso, e naturalmente rítmico, da sua mão. É um movimento irreflectido, instantâneo, um rasto imperceptível, que ao mesmo artista escapa, que o seu espírito não dirige, que o seu ôlho não alcança... e contudo ficará marcando por uma forma incontrovertida, eterna, insofismável, a genuína autenticidade da sua obra. Qualquer coisa, -- entende? -- como o reconhecimento duma assinatura por um perito calígrafo, visto que a pena pode considerar-se como um pincel de duas pontas. O certo é que os trabalhos de qualquer pintor, -- quere sejam as tentativas indecisas da primeira mocidade, quere os documentos fortes da idade madura, quere ainda as já cançadas produções da sua última maneira, -- quando submetidos à prova microfotográfica, e basta ampliá-la oito a dez vezes, revelam todos um traço, um toque, uma característica idêntica. Em cada uma dessas minúsculas análises se apura sempre, invariávelmente, que as sêdas do pincel, uma por uma, vão deixando um fino sulco, ora retilíneo, ora quebrado, ora curvo, ora mixto, afectando infinitas formas, porêm "idêntico" sempre quando se trata do mesmo artista, e diverso se se comparam artistas diferentes. -- E novamente posto em pé, sem pausa, sem piedade, no seu monopólio sem tréguas da enfriada atenção do Silveira, que debalde ensaiava um derivativo inocente da fugitiva contemplação da irlandesa: -- Que me diz a isto, hein?
-- Eu acho maravilhoso! -- acudiu compenetradamente o Silveira, na sua ingénua credulidade; e erguendo-se tambêm: -- Deve dar-lhe um dinheiral!
-- Dinheiro e fama.
-- Não precisava deixar a Europa. Tinha a sua fortuna feita.
-- Alguma coisa se fez já por lá... Porêm a divulgação de benefícios dêstes deve estender-se e apregoar-se bem por todo o mundo. Havia que trazê-la a estas improvisadas organizações sociais da América. -- Esfregava as mãos de contente: -- Vou acabar com a perniciosa oligarquia, com a daninha praga dêsses falsos «peritos de arte», verdadeiros criminosos, que por tôdas as grandes cidades enxameiam e manobram impunemente! E, aqui em Buenos-Aires, conto limpar as galerias particulares de todos os falsos mamarrachos que uma cabotinagem sem escrúpulos tem sabido impingir-lhes, a pêso de oiro, como obras primas. Vai ver! vai ver!
-- Uma tarefa benemérita...
-- E lucrativa, pode dizer sem escrúpulos.
E os negros olhos ladinos do conde tinham a metalizada expressão duma voraz confiança, ao atribuir-se por êste modo, com o mais audaz desplante, o primado da invenção e o exclusivo da aplicação dum processo que, ao tempo, estava sendo praticado com êxito notável por Laurie nos Museus inglêses e por Thionville nas Pinacotécas da Bélgica e França.
Por fim o Silveira anunciou que ia retirar-se, desapontado galã, ante o fracasso formal da sua visita. E solícitamente o conde:
-- Então já?...
-- São horas.
-- Bem, mas volta àmanhã, não é assim? Queremos muito vê-lo aqui.
-- "Without fault, to-morrow", -- instou numa sublinha amável a condessa.
-- Teremos já então a casa um pouco em ordem e as télas tôdas à vista, -- tornou afável o marido; e persuasivamente, quáse ao ouvido, batendo-lhe no ombro: -- Tenho aí um pequeno Boucher e um Bastien Lepage que lhe devem convir... Há-de gostar.
O Silveira sentiu frio na espinha e tomou pronto o chapéu, para despedir-se. Crescia-lhe agora na alma, contra a gananciosa estratégia dêste charlatão sem igual, um vivo movimento hostil, de tédio e de repulsa. Pensou vagamente em não voltar... Porêm quando, ao receber as ordens da condessa, sentiu nos lábios a carícia do veludo tépido daquela mão pequenina, todos os seus apetites ribaldos espertaram e o reganharam num instante. Rejubilou, aqueceu... e saíu, leve e ufano, todo já no fantasioso encanto das delícias da tarde seguinte.
Era uma quinta-feira, dia habitual de "carreras". Um passeio ao Hipódromo estava indicado. Para poder obsequiosamente acompanhar o amigo, o Azeredo obtivera permissão de faltar nessa tarde ao escritório. À hora própria, tendo antes apalavrado um "taxis", seguiram alegremente para Palermo os dois, e em breve se incorporavam e deliam na grossa e luzida "queue" interminável, de peões de tôdas as classes e matizes, de veículos de todos os preços, de meios de condução de tôda a espécie, que, naquele desapoderado côrso à favorita diversão "bonaerense", de tôda a parte afluiam e acudiam avassaladoramente, bolsando gente a monte do estribo plebeu dos "tramways", atirando de golpe as portinholas dos "wagons" na via-férrea, fazendo pomposamente buzinar e rodar a sua opulência pelo brunido asfalto das avenidas.
Considerava o Silveira com estranheza tam nutrida e animada concorrência a um dia de semana, um dia de trabalho. O Azeredo explicou-lhe: -- que todo o mundo ali jogava, moços e vélhos, pobres e ricos, enfermos e sãos, mortos e vivos... as mulheres e as crianças. Era a tintineira geral. Quem não podia dar-se ao luxo de vir a Palermo, fazia obra pelos palpites alviçareiros das gazetas. É que o jôgo, a alicantina, a exploração, a fraude, o interêsse, a indústria da burla e o recurso ao azar, eram o vício, a paixão, o móbil dominante, o despótico nervo propulsor da vida da grande cidade. Os que não apostavam nas carreiras especulavam em terras, jogavam nas loterias ou na Bôlsa. E ainda havia os que tudo isto sabiam muito bem fazer, ao mesmo tempo. Da coisa mais inocente nos surdia um "estafador", das mesmas pedras da calçada nos tomava de assalto, a cada passo, um ladrão ou um agiota. -- E abrindo depreciativamente os braços, rematou:
-- Uma grande banca ao ar livre, uma batota ao abrigo das leis, é o que é tudo isto.
-- E tu?... -- indagou o Silveira, num despreocupado sorriso.
-- Ah, eu das corridas gosto. Bem vês... sou de cavalaria. Aos domingos sou infalível.
Cruzavam ao tempo a aparatosa "grille" de bronze, da entrada, e penetravam no largo e luminoso desafôgo do "stand", que, com as suas luxuosas tribunas, rústicos palanques, pequeninos rondós, "pelouses" e minaretes, recordou ao Silveira Longchamps, porêm mais pobre de paìsagem e com menos perspectiva. E, de roda, em pintalgados grupos sôbre a escovada areia sôltamente ondeando e farandunando, a mesma concorrência habitual a êstes logares, em tôdas as grandes cidades; os homens, grandes, fortes, serenos, trajando com severa elegância, o tipo do espanhol com vontade, no inteiro domínio de si mesmos; as mulheres, desgarraditas e leves, numa harmonia de conjunto impecável aquatintadas finamente, a airosa silhueta cingida com meticuloso escrúpulo ao córte dos figurinos parisienses, mas sem afectação, numa "tenue" de bom-tom, num "virtuosismo" ponderado e honesto, a que faltava aqui a nota "criarde" das "demi-mondaines" lançando o estouvado pregão das últimas extravagâncias.
Era um pouco tarde. Já os primeiros números do Programa haviam passado, e estava-se num intervalo. Havia um grosso embate mundano junto aos vários "guichets" dos côbros e vendas. Cortava a suavidade pacífica do ar o zangarreio áspero, burlão, de dois aeroplanos. Cêrca do recinto da pesagem, um rijo mocetão trigueiro, desbarbado, gordote, -- de gôrra, "veston" de presilha e polainas, -- ao defrontar com o Azeredo exclamou familiarmente:
-- Ó amigo Azeredo, "como le va"?
-- Bem, "gracias"! meu caro Jorge. E "Usted"? -- acudiu, com um cordeal apêrto de mão, o interpelado. E seguidamente, apontando ao lado o Silveira: -- Permite-me que lhe apresente o meu querido compatriota e amigo João da Silveira? -- E logo para êste, com insinuante expressão, completava: -- O sr. Jorge Saavedra, argentino, cavalheiro muito distinto, um dos meus melhores amigos.
-- "Ah, tanto gusto"... -- mastigou entretanto Jorge, numa sublinha indiferente àquele "shakehands" banal a um desconhecido. Mas, tomado de súbita simpatia ao encarar melhor a figura aberta e varonil do Silveira, tornou com interêsse: -- E há muito que se encontra em Buenos-Aires?
-- Recêm-chegado apenas... há dias.
-- E que impressões tem do meu país? Agrada-lhe?
-- Enormemente! Uma linda cidade e um povo cultíssimo. Deve ser encantadora aqui a vida.
O Saavedra sorriu, num jubiloso estremecimento de vaidade. Enquanto, tocando-lhe na espalda, o Azeredo:
-- E os seus favoritos hoje?... Agora, no "handicap"?
-- Não corre nenhum produto de marca... "ché", cá dos meus. Não me interessa.
-- Bem, e a seguir, no clássico "Montevideo"?
-- Oh, bem fácil... A vitória seguramente vai ser de "Packoy".
-- Tambêm vou por êle, sim. Linda estampa, elasticidade, nervos, magnífico sangue...
-- E montado por Arturi. Não há que duvidar! Dá três quilos de vantagem; é porque está bem seguro da vitória.
Caminhavam agora de manso os três, marginando a pista e sem maior interêsse pela corrida, pronta e fácilmente acamaradados. Jorge Saavedra desfazia-se, a um e outro lado, galanteador, afável, em rebuscados cumprimentos, protectoras miradas e acenos abundantes. Os olhos espertos do Silveira perdiam-se nas côres berrantes dos "jockeys", na vivacidade marulhenta do recinto, na perturbadora abundância de deliciosas figuras femininas. O Azeredo rejubilava, irrequieto, vivo, sempre aos saltinhos; e com familiar confiança tornou para o Saavedra:
-- Diga-me, amigo Jorge, e para o clássico "Chevalier" que aposta fez?
-- Isso nem se pergunta! Vou por "Canora".
-- Como "Canora"!? É vontade de perder "plata"... Eu aposto por "Chaica".
-- "Chaica?"... -- atalhou por sua vez o Saavedra, parando, com um rir trocista. -- Só por "broma", "vamos"... "Es una cabuleadora".
-- É filha de "Pearl Rivel"! -- redarguiu com intimativa o Azeredo, formalizado. -- Ora essa! Cumpridora a mais não poder ser. A sua primeira prova foi a primeira vitória. Não se lembra? não viu que "performance" mais distinta?... No tréno desta manhã sei eu que fez os 700^m em 41''.
-- Não importa! não importa! -- objectou Jorge, reatando a andar, implicativamente. -- "Canora" é filha de "Old Man" e procede do "haras San Jacinto", é bom não esquecer. É voluntariosa, por vezes, tem um jôgo irregular, é certo. Oh, mas não há aí uma competidora com "más clase" e melhor estampa!
-- No domingo perdeu.
-- Por meia cabeça, sómente.
-- Pois hoje perderá por cabeça e meia.
-- "Ya lo veremos", -- pontualizou o Saavedra com arrogância. E de repente, esperto e firme, agitando imperioso o braço: -- O "Montevideo", agora! Atenção! Se "levantan las cintas"... A partida! a partida!
Os seis pôtros da escolhida "équipe" para o clássico "Montevideo" haviam largado, com efeito, a tôda a rédea, imponderáveis, distensos, o pescoço em flecha, disparada a garupa, os jarretes flamejantes fazendo voar a terra. Com simultâneo gáudio do Saavedra e do Azeredo, "Packoy" iniciou galhardamente a direcção do movimento e nesse posto de honra se aguentou e cumpriu, durante os primeiros 600^{m}; porêm depois, de tranco a tranco marcando cada vez mais curto, inexplicávelmente, foi-se deixando levar de vencida por forma que, ao desembocarem na grande recta final, o seu distanciamento era já sensível. Entretanto, "Grey-Eyes", um enxuto e ágil potrito castanho que se estreava nesta corrida, atacando por fóra, ganhava o posto dianteiro, que manteve até final, vitorioso "leader", ao passo que "Packoy" apenas em quarto logar alcançou a méta.
O Azeredo barafustava e erguia os punhos cerrados, em ganas contra o "jockey" duma arremetida justiceira, furioso, saltitando. Enquanto, numa concordante explosão de cólera, o Saavedra:
-- Por culpa daquele "imbécil" de Arturi! Sempre com a mania de conter as montadas, a reservar-lhes o maior esfôrço, para efeitos teatrais, no momento decisivo. E depois dá destas "planchas"! Iam tam bem... O que êle precisava!
E golpeou desapontado com o chicote a sébe florida da vedação, deslocando-se em largas e violentas passadas, o ôlho minaz, as narinas aflantes.
Trouxe-lhe uma compensadora desforra a corrida seguinte, que resultou um verdadeiro "match" entre "Chaica" e "Canora", a sua ardente favorita, a qual por mais de meio corpo atingiu primeiro o disco. Porêm desta vez Jorge, delicado e comedido, não querendo ferir os machucados brios do Azeredo como prático do "turf", celebrou com moderado entusiasmo o seu triunfo.
Faltavam ainda duas corridas; porêm o Silveira de relógio na mão, tomado dum vago embaraço, arriscou -- que não podia demorar-se. O Azeredo, que estava ao facto do compromisso galante por êle tomado na véspera, desculpou-o. Mas, sinceramente penalizado, o Saavedra, dando preguiçoso a mão a êste fulminante captador da sua simpatia:
-- Retira já?... "Qué lastima!"
-- Eu é que sinto imenso ver-me forçado a privar-me, assim de repente, de tam amável companhia. Mas... o Azeredo sabe...
-- É certo, é... Precisa deixar-nos -- confirmou pronto o amigo; e súbito com um jubiloso relâmpago na pupila insinuante: -- Mas eu tenho uma idéa, amigos! Podemos comer hoje os três juntos. É uma compensação. -- Premiu afávelmente o braço de Jorge: -- "Tiene Usted compromiso"?
-- Não... para hoje, não...
-- Óptimo! Considere-se então convidado, hein?
-- "Convenido".
-- Às 8, no "Petit Salon". -- E com vivacidade, para o Silveira: -- Tu espera-me no hotel. Vou-te buscar.
Saùdando ligeiramente, o Silveira partiu logo. Pouco depois das 5 horas estava em casa dos Di Paoli, tendo antes comprado, na passagem por Callao, um fino ramo de "muguet", a flor predilecta da condessa. Fez retinir fortemente o botão eléctrico. Ia decidido a «atirar-se de vez», a arriscar um resoluto golpe de audácia que pronto lhe assegurasse o triunfo definitivo. -- E que auspiciosos prenúncios para o seu intento! "Mrs." Edith estava só, e um verdadeiro apetite, arranjada lindamente. Pela abundância cálida do cabelo uns toques déstros de ferro haviam passado, ondeando-o ao de leve; não menos déstras pinceladas de "kohl" haviam engrossado a linha sensual dos cílios, haviam como que incendido num voluptuoso fogo latente a macerada sombra das olheiras; e daquela plástica impecável os movimentos rítmicos podiam íntegros surpreender-se e adivinhar-se, pelas indiscretas lisuras e os denunciadores refegos do precioso "kimono" de sêda "grenat" que os cingia apenas, sôltamente, deixando por inteiro a nu os antebraços e a alvura do colo deslumbrante, que nas suas linhas de contacto com a sêda adquiria reflexos duma rosada e fluida transparência, como se fôra carne feita de pérolas moídas.
Foi um verdadeiro "coup de foudre" para o Silveira a inopinada fortuna desta situação e o supernal encanto desta figura. Beijou a mão da condessa e entregou-lhe o ramo, tremendo ligeiramente, sem palavra ferir, a língua sêca e os lábios frios. Ela correspondeu deixando fugaz entrever, num sorriso discreto, a rociada frescura dos dentitos brancos. Agradeceu o mimo da lembrança em carinhosas palavras, para a rasa insuficiência linguista do Silveira arreliadoramente intraduzíveis. A seguir, muito naturalmente, prendeu sôbre o coração dois dêsses cachos de minúsculas caçoletas perfumadas, e sem perturbações nem pressas, o olhar vago e repousado, sempre tranqùila, foi acomodar os restantes com atento esmero numa enfusita de vélha faiança, que trouxe da alcova. -- Veio ao tempo a "mucama", trazendo numa bandeja o chá e dois pratitos mais, um com "sandwiches", outro com bolos secos, sofrivelmente sédiços. Dispôs em silêncio o serviço sôbre o pano coçado da mesa e rodou num instante.
Na mente escandecida do Silveira o desejo, o ardor e a fúria erótica subiam de ponto. A sua incorrigível fatuìdade, os numerosos e fáceis triunfos que ilustravam a sua larga fôlha de conquistador, debruavam-lhe das falaciosas côres dum prisma demasiado optimista a singularidade algo problemática da situação; faziam-lhe tomar por claros propósitos de sedução, por um convite formal ao galanteio, o que não passava talvez dum ardiloso laço feminino. Pelo momento, a condessa convidára-o simplesmente a sentar-se e servia-lhe o chá, com adorável intimidade, era certo, num abandôno insinuante, avançando para êle o braço nu, enquanto as amplas prégas do "kimono", dobrado à frente, desnudavam por igual, em perturbadores relances, a rósea maravilha do colo erguido em suaves ondas de pecado. E tentava explicar-lhe: -- O conde não estava... não poderia talvez vir senão tarde. -- Quando o Silveira tal chegou a compreender, sentiu nas orelhas um calor de evidência, e na noite ardente das pupilas relampeou-lhe um cântico de vitória... Mas aqui o seu grande embaraço! Queria mostrar-se um galã à altura, dominador seguro dêste lance de favor; urgia que iniciasse verbalmente o seu ataque; porêm como?... se êstes soberbões ingleses faziam gala em não manejar outra língua senão a sua! Como em nenhum idioma os dois podiam claramente entender-se, as suas abortadas tentativas de diálogo resultavam assim um desbarato de palavras, confuso e estéril, um titubeio divertido e por vezes cómico, um atabalhoado duelo de absurdos, desfechando sempre na mesma burlesca e formal impotência, cortado de suspensões, sublinhado a risadas. Havia que suprir a deficiência da frase pela abundância e a vivacidade do gesto, muitas vezes. E lascarinamente o Silveira aproveitava para desbordar-se em atrevidas manobras digitais, para arriscar sorrateiros toques sugestivos e ensaiar, como filhas do acaso, aproximações lascivas, -- que "Mrs." Edith acolhia entretanto com inalterável singeleza, como que sem dar-se conta, desprevenidamente, abotoada numa cega inconsciência infantil e numa frialdade desesperante.
Esta atitude inverosímil da condessa desconcertava o Silveira, punha-o doido de despeito, de raiva e de desejo. -- Que demónio! Voltava a esbarrar com a mesma diva impassível, a mesma criatura calma, desentendida e ingénua do começo da viagem... Vão lá entender mulheres! Essa deliciosa, essa picante doidelas dos dias de Entrudo escapava-lhe outra vez! -- E no desnorteado furor que o aquecia, êle já descia a processos de mau gôsto, cometia imprudências, roçava-a ombro com ombro, apertava-lhe o pulso, tocava-lhe o pé debaixo da mesa. -- Então, súbitamente, e como que obedecendo a algum convencionado sinal, fez a sua inesperada aparição na salinha a dona da casa, Lady Cowper, sobraçando um paquetito. -- Alguns dos trabalhos das suas discípulas, que ela vinha obsequiosamente mostrar ao recêm-vindo. -- O Silveira teve ganas de lhe morder. Ela era uma quarentona repulsiva e obêsa, vestida de amarelo, pequena, ruiva, de olhos claros, marcada por abundantes sarapintas de bistre na face enlagostada. Mesureira, bajulando, adiantou-se a saùdar, com o seu sorriso verde de criatura falhada, e logo a sapuda concha das mãos sardentas a semear pela mesa uma parada de miúdas bugigangas. Eram rebuscadas miniaturitas, medalhas e iluminuras banais, camafeus, embrechados, pirogravuras e esmaltes, de péssimo desenho, duma execução vidriosa e dura como o aspecto paleolítico da professora. Esta porêm, importante e de pé, o ventre contra a mesa, não despegava de encarecer essas efémeras obritas de "virtuosismo" barato, mostrando-as com ufania, uma por uma. -- Que visse bem... aquele finíssimo esmalte "Luís XV"... êsse delicioso retratinho com moldura "Império"... "uma liseuse" para um livrinho de Horas... esta preciosa moldura gótica em cobre rebatido. E aqui... e agora... e isto mais. Verdadeiras peças de arte, havia de convir. O que não admirava, feitas como eram tôdas por meninas da primeira sociedade. -- Exprimia-se num mau castelhano, horrivelmente gutural, ora aspirado, ora cortante, como golpes de machado rasgando lenha. E passava sem cessar a aborrecida miuçalha às mãos do Silveira, que no propósito inocente de correr breve com a importuna, tomava fulo cada peça e logo a arrumava, após um exame sacudido, sumário, quáse agressivo.
Baldo estrategema, porêm, porquanto aquela empatadora inexorável tomava agora familiarmente assento ao lado dêle, e numa astuciosa derivante, erguendo a esborifada cabeça e passeando com admiração as pupilas deliquescentes pela sala:
-- Soberba colecção! não haja dúvida. Um verdadeiro museu. Fazia a minha fortuna... Já reparou bem, sr. Silveira? -- E num propósito de baixa adulação, com intimativa, alongando o braço: -- E que fino, que lindo o retrato da senhora condessa! Que não está favorecida...
Só agora o Silveira notou que, com efeito, uma aparatosa fileira de télas, em ricas molduras doiradas, remoçava e fazia viver dos brilhos da sua cantante policromia a tristura pelintra das paredes. A um canto havia, contrastando deplorávelmente, pela realização e pela factura, com todo êsse broslamento sábio de figuras, de planos e de tintas, um perfil a óleo da condessa.
Como já fazia escuro, "Mrs." Edith dirigiu-se ao prendedor eléctrico, a soltar a luz; no momento justo em que o marido entrava e vivaracho, alegre, atirando o chapéu, seguiu direito ao Silveira, a apertar-lhe a mão. E logo, dando-se conta do ponto onde curiosa a sua atenção incidia:
-- Aquilo é um modesto ensaio meu. Não vale nada.
-- O modêlo não podia ser melhor...
O conde baixou a cabeça e dobrou-se, num grato desvanecimento.
-- É que eu pinto tambêm um pouco, não sabia?... Tôdas as belas manifestações da arte teem em mim o mais insignificante dos seus cultores.
A seguir, desatou-se em prolixas e sabujonas desculpas por ter vindo assim em "retard", faltando, bem a seu pezar, a um compromisso para êle tam apreciável. E esfregando as mãos com ruído:
-- Mas estou contente! Parece-me que tenho já local para a exposição... e de graça. O salão dum compatriota meu, que é fotógrafo, na "calle" Viamonte, -- a fotografia mais elegante, mais "smart", mais "select" de Buenos-Aires.
Lady Cowper, sentindo agora a sua presença dispensável, havia deslizado ignoradamente. Entretanto o Améglio, com o olhar vivo e matreiro, em presunçosas atitudes tomando a sala tôda:
-- E então, agora, vê bem como são preciosas as minhas télas! Que grande lição estética eu venho trazer a esta gente, que colecção rara, que magnífico conjunto! -- Depois, cabotino, insinuante, travando confiado o braço do Silveira e pondo-o na frente dum pequeno "estudo" de paìsagem, onde uma figurita banal de aldeã se esboçava, perdida numa "aleluia" primaveril de papoilas e malmequeres: -- Aqui tem o seu Bastien Lepage.
-- O meu quê?...
-- O quadrito, sim, que lhe destino. Uma pequena maravilha, como vê... Note como ali assim a figura poisa singelamente e sem "ficelles" de destaque, tocada simplesmente, com o mesmo valor de todos os mais acessórios do quadro. Era, como sabe, a característica dominante dêste grande mestre naturalista. -- Encarecia sugestivo a expressão: -- Uma tentação, não é?... -- E suasivo, assentando-lhe a mão sôbre o ombro: -- Que me diz?
Cabisbaixo e mudo, vergado ao pêso do fulmíneo ataque, o Silveira interrogou numa mirada suplicante "Mrs." Edith, cujos olhos doces esboçaram uma solicitação de anuência, irresistível... E êle então, pávido e submisso:
-- Bem... mas por quanto?
-- Oh, meu caro amigo! Isso é uma questão puramente secundária. Entre nós, já vê... Qualquer coisa... Nem vale a pena falar... Se as coisas me correrem bem, terei até muito prazer em lhe fazer presente dêle.
-- Não, mas eu é que não quero...
-- Depois! depois!
Súbito, numa bem marcada simulação de desinteresse, o conde sentou-se ao piano, e sôltamente:
-- Quere ouvir uma valsa que improvisei esta manhã? Vou tambêm dedicar-lha.
E, com um ar boémio impagável, bamboando o busto, os olhos em branco e a cabeça sôbre a nuca, fazia gemer numa batida monótona de compassos triviais as cordas desafinadas.
Nos nervos em sobressalto do Silveira corria o mesmo frio arrepio da véspera, agora mais áspero, mais persistente... subsistindo ainda e vibratilizando-o, minutos depois, já rua fóra, junto com o exaspêro íntimo pela sua passividade, a sua indecisão, o seu acobardamento estúpido ante aquele descarado assalto à integridade da sua algibeira.
Numa vergonha instintiva, absteve-se de contar o humilhante episódio ao Azeredo, que pouco antes das 8 veio demandá-lo ao hotel, conforme se combinára. Saíram logo depois, a pé, a tomar a "calle" Esmeralda, e por esta se internaram até ao ponto onde uns mocitos de libré encarnada lidavam à porta dum grande barracão, murado de espelhos.
-- É aqui, meu vélho. Espera um instante.
Dizendo, o Azeredo entrou ligeiro e atento, a buscar se acaso o Saavedra já estaria, e a marcar uma mesa; enquanto cá fóra o Silveira seguia alheadamente o taquinar miudito das "muchachas" que entravam para o "cinema" defronte.
O Saavedra apareceu por fim, às 8 e meia. -- Vinha um pouco em atraso... mas era muito bôa hora, "verdad"? -- Acolhido pelo festivo aplauso dos dois amigos, e num momento estavam todos à mesa. Jorge vestia agora um "jaqué" negro irrepreensível, fechando por um só botão e extremamente cintado, colete de bandas brancas, folgado e muito aberto, uma linda pérola a prender o nó esguio da gravata, calça raiada de fantasia e bota de polimento. Foi êle o investido das graves funções da escolha do "menu". -- "Petits canapés" de "caviar" para "hors d'oeuvre", uma rica "croûte au pot", filetes de linguado com môlho de ostras, depois uma "entrada", espargos, e por fim um prato crioulo, o coireáceo "churrasco", especialidade da casa. -- A questão das bebidas foi árdua, pouco menos de insolúvel. O Silveira lembrou tímidamente o "Colares", que não constava da lista, não havia; então Jorge patrióticamente insistiu que provassem "Trapiche": porêm o Azeredo opôs-se, com um depreciativo distender do lábio, e optou-se afinal por um qualquer "Borgonha" de duvidosa procedência.
Jorge iniciou a comida com apetite, e agitava-se petulante, ufano, folgazão, todo ainda no vibrante estímulo das emoções hípicas da tarde.
-- Oh, aquela impagável "Canora!" que "preciosura!" Viram bem?... Correu os 1:400 metros em 1',22. É verdadeiramente o "record" mundial da velocidade, jámais registado nos anais do "turf". Eu esperava muito dela, mas não tanto, palavra! Vale o seu pêso de oiro.
-- De quantos quilates? -- amolou, trocista, o Azeredo.
-- Oiro português, antigo... do tempo dos vossos Brasís, -- soube ripostar pronto o Saavedra, numa lisonjeira evocação que os dois acolheram com um quebrado sorriso. E sempre contente: -- O certo é que esta vitória não só exaltou os meus brios, como trouxe a mais agradável compensação aos meus desastres anteriores. Porque, meus caros amigos... -- E numa aberta de intimidade, abatendo a voz, dobrado sôbre a mesa: -- Nestas duas semanas últimas de "carreras" saíram-me da algibeira ao redor de três mil pesos. "Un clavo"... Mas a papá direi que perdi trezentos. -- Depois, atencioso e outra vez natural, para o Silveira: -- E em Portugal há "aficionamiento" pelo "sport" hípico?
-- Um pouco...
-- Bastante! bastante! -- acudiu o Azeredo, num saltinho convicto. -- Há muito bons calções. Tem agora havido, no hipódromo de Palhavã, uns concursos internacionais muito brilhantes.
-- Ah, eu recordo-me de ter visto no "Palace Théâtre", -- obtemperou Jorge, complacente, atacando a sopa, -- um "film" intitulado "Os Centauros portugueses", que era realmente admirável.
-- Sim! sim! trabalhos da nossa escola de Cavalaria.
-- Que "raids"! que saltos... que segurança, que destreza! Não se pode exigir mais.
-- E pode o amigo dizê-lo sem favor. Superior aos italianos! -- jactancioso o Azeredo rematou.
E serviu cordialmente vinho ao Saavedra, que, daí a momentos:
-- Eu p'r'a semana volto ao campo. Tenho tôda a família lá, aqui já tratei do que tinha a tratar, e papá não abona mais "plata". -- Encarou numa penhorante afabilidade o Azeredo: -- O amigo, já sei, não pode vir... "qué lastima"! -- E para o Silveira, abruptamente: -- Porque não vem comigo?
Ante a inesperada oferta, os olhos ladinos do Azeredo dilataram-se de espanto, quáse incrédulos, e o deslumbrado Silveira aprumou-se, num estremecimento de grata surprêsa. Com sincera espontaneidade Jorge insistiu:
-- Venha! Digo-lhe isto de vontade.
-- Muitíssimo agradecido.
-- Não conhece ainda papá nem a minha família. Mas não importa! Fóra da cidade não há protocolo nem cerimónias. E eu posso levar as pessoas que me apeteça. Tenho carta branca, "ché"... faço o que quero.
-- Vai, vai, meu rapaz! -- estimulou, crepitante de júbilo, o Azeredo.
-- Bem vê, Buenos-Aires neste tempo é detestável! -- tornava entretanto, com enfatuado ar, o Saavedra. -- Não há ninguem, morre-se de tédio. As famílias com quem se pode tratar, "la gente bien", está tudo fóra... veraneiam pelas "estancias", como nós, pelo Tigre, Montevideo e Mar del Plata. Bastantes deitam té à Europa. E quem não tem "mosca", "ché"... para dar-se qualquer dêstes inocentes regalos, encurrala-se herméticamente em casa.
-- Pouco mais ou menos como em tôdas as grandes cidades.
-- "Si pues"... Porêm o sr. escolheu realmente para a sua digressão à America uma época aborrecida. Não há "recibos", festas, não ha "Colón"... "Nada ni nadie". "Que va uno á hacer"?... -- Encolhia os ombros com enfado; e a seguir, alegre, fanfarrão, abanando promissoramente a cabeça: -- Mais tarde, no inverno, sim! é a grande animação... teatros, bailes "farras", "clubs"... -- Franzia brèjeiro os olhos: -- E há então por'í assim umas "tertulias" de concorrência mesclada, que são deliciosas... onde "uno afila" à vontade e onde não faltam "mujeres guapas" entre as quais se pode mesmo, manobrando com discrição, "sacar una bolita"...
Passava junto dos três, neste momento, um curioso tipo de vélho precoce, -- desbarbado, pequeno, os lábios sensuais, longo nariz rebatido, na préga froixa das pálpebras a marca lívida das vigílias. O Saavedra premiu-lhe familiar o antebraço:
-- Meu caro Belisário, como vais tu?... Senta-te um pouco. Queres comer?
-- Ainda agora eu almocei...
E com um arrastado ar "blasé", sem mesmo olhar os convivas, molemente, afastou-se, dandinando. Jorge aclarou:
-- É Belisário Ruíz, grande amigo meu... um incorrigível "guarango", um "picaro redomado". Aparece lá pela "estancia", algumas vezes.
Depois, na mesma cativante afabilidade para o Silveira, reatando:
-- Espero que se resolva e me dê o prazer de acompanhar-me. -- Que eu nada mais posso oferecer-lhe, lá baixo, que uma casa de campo modesta e mais modesta ainda a companhia. Papá, mamã e "mi hermana mayor"... "Nadie más"... Que eu tenho uma outra irmã, casada; porêm vive em Paris. Tem um filho, de 16 anos, que é um rico amor de sobrinho. São os encantos de papá... Mas, já digo, estão longe. Aqui na "estancia" o amigo sentir-se há um pouco só... porêm o que lhe vai faltar em atracções de convívio caseiro, sobrar-lhe há em hospitaleira franqueza, em pitoresco, em inédito, em sol, em liberdade.
-- Estou positivamente encantado...
-- Mamã é uma santa.
-- É certo, -- corroborou com amável convicção o Azeredo.
-- Passa os dias pelos "ranchos" da redondeza, a mitigar dores e adoçar misérias... Agora minha rabugenta irmã, a pobre Célia -- tornou Jorge com uma afectuosidade tolerante, -- essa aparece pouco e anda sempre de mau humor, porque lhe faltam as igrejas. -- Depois, com mal contida ternura: -- Resta papá... Êste é um caturra adorável, um moralista, um filósofo, um sonhador... mas à moda antiga. E então que morre por conversar! Em êle apanhando uma vítima a geito, nunca mais acaba. Um "latero" muito sofrível, já o sr. fica sabendo... Mas há que desculpá-lo: é homem doutra época, conhece a história com'os seus dedos, foi contemporâneo de tôdas as grandes figuras da nossa brilhante renovação social e intelectual, de há quarenta anos. De sorte que, assim, na sua ronceira opinião, tudo o actual é mau... não há nada como os homens, os sentimentos, os costumes e as coisas do seu tempo. Até a nossa mesma casa aqui em Buenos-Aires, há-de ver... é como que uma flagrante exumação do passado. Escura, desconfortável, triste, cheia de coisas vélhas... parece um túmulo.
E imediatamente, a desvanecer a impressão de enfriamento que por ventura a sinceridade juvenil da sua exposição houvera feito alastrar no simpatismo espectante do amigo:
-- Agora tambêm devo dizer-lhe: se acaso a minha prima Maria Mercedes se resolve a aparecer, como prometeu, então tudo aquilo toma outra vida, outra animação... é como a passagem da noite ao dia, torna-se a "estancia" um paraíso.
-- Com efeito!
-- Ela é uma criatura preciosa, rara, singular! dito por todos... deslumbrante como uma deusa e perigosa como um demónio.
-- Não tenho a honra de a conhecer, -- acudiu ladino o Azeredo; e todo vibrante, num gesto cómico de defesa: -- Nem quero!
Jorge sorriu; e com intimativa crescente, comprazendo-se na sua galante e calorosa apologia:
-- P'ra mim não, que temos demasiada intimidade, mas p'r'a grande maioria dos homens esta minha prima é o que se pode dizer uma verdadeira tentação. -- E insinuante, jovial, quáse orgulhoso, detalhava: -- Viúva, rica, com 25 anos e sem filhos, fresca, novinha em fôlha; pode dizer-se... apetitosa; e numa terra como os srs. dizem que é esta nossa, de mulheres bonitas, passando por ser das mais formosas. Imaginem! "una monada".
O Silveira escutava, silencioso e cabisbaixo, sob a tirania voluptuosa dos sentidos. Jorge completou:
-- Depois, ilustrada, viva, inteligente. Que ditos finos, que conceitos subtís, que mordacidade, que espírito, que respostas a tempo! E o que aquilo vai buscar p'ra têma de conversa! Só ouvindo-a... Aqui há uns dias, o dr. Farmin Gonzáles, um dos nossos homens de mais "verve" e maior prestígio intelectual, quis medir fôrças com ela. Pois, senhores! a fôlhas tantas declarava-se vencido.
-- Nessa contingência me não verei eu... juro! -- tornou o Azeredo, no seu gesto gaiato.
De sua banda o Silveira, estimulado, baboso, aventurou:
-- Deve ter muitos admiradores?
-- Seguramente! São aos centos. Como por exemplo, êste "imbécil" Belisário. Porêm, ela "no les lleva el apunte, ché"... Não há um que se possa gabar! É mais indomável e arisca que uma "potranca perdedora". Terá ocasião de ver...
Servia o moço, ao tempo, o clássico "churrasco", -- uma pantagruélica montanha, cebácea e sangrante, de carnes laceradas em bruto, de gorduras, ossos, tendões, coirama chamuscada e encorreadas fêveras. Numa instintiva náusea, o Silveira arredou a travessa, desviando os olhos.
-- Deus me livre! Isto é alimento para estômagos blindados.
-- Tudo vai do hábito... -- compôs o Azeredo docemente.
Ao passo que Jorge, com um ademan desdenhoso e implicante, voraz, servindo-se com abundância:
-- Eu acho delicioso!
E uns breves minutos mais passaram os três amigos nesta charla despreocupada e alegre, espontânea exteriorização da mútua simpatia, da íntima conformidade de sentir que tam auspiciosamente parecia ligá-los, e que a esticada munificência do Azeredo quis que fôsse selada a "Champagne". À despedida, depois, por seu turno Jorge intimou que voltassem a reùnir-se, domingo próximo, no Hipódromo. -- E que nessa noite comeriam com êle no "grill-room do Plaza".
-- Será a despedida. Retiro terça ou quarta-feira; porêm não descanso sem colhêr a certeza de que não irei sòzinho...
E, na solicitação gentil duma anuência, cravava os olhos expressivos no Silveira, que, gulosamente, com a perturbadora visão dessa misteriosa prima a incender-lhe a fantasia e a arranhar-lhe o desejo:
-- Estou quáse resolvido...
No domingo seguinte, pela tarde, ao entrar o Azeredo, no hotel, pelo quarto do Silveira, encontrou-o de mau humor. Amadornado no "fauteuil", junto à janela, lia distraídamente um jornal, que atirou longe, mal sentiu o amigo, num movimento brusco e fransindo a testa.
-- Que tens, amigo João, que é isso?...
-- Nada...
-- Não... algo tens que te contraria ou aborrece.
O Silveira permanecia bisonhamente mudo. Até que, a novas instâncias do amigo, e com mal contido despeito, num sacudido gesto de desgôsto:
-- É que, francamente, não compreendo esta gente!
O Azeredo sentou-se-lhe defronte, e meio curioso, meio trocista:
-- Que mal te fizeram?... conta lá.
-- Por várias vezes te tenho falado no meu delicioso convívio a bordo com os Wimeyer, sabes?... Eu ingénuamente supus que se tratava duma espontânea e lial amizade, que nos ligaria o que quere que fôsse de sincero, de íntimo, de cordeal, não é verdade?... alguma coisa mais do que essas mentidas e efémeras relações contraídas em viagem, e que, uma vez terminada esta, logo esquecem, como se largam as malas. Pois imagina tu que ontem, como era natural, fui visitá-los. Vem-me à porta uma criadita espevitada e com cara de fastío, que me recebe desconfiada, arisca, quáse hostil, mal amostrando a cabeça pela porta entreaberta. Depois, apenas eu declino o meu nome e anuncio ao que ia, retruca-me logo com uma grande secatura: -- As senhoras não recebem. -- E, zás! tam pronto colheu na mão os meus cartões de visita, sem dar mais cavaco, dá-me com a porta na cara.
O Azeredo torcia-se em esgares trocistas e ria, ria, gaiatamente.
-- Ah! ah! É então por isso tanta arrelía?
-- Tu ris?...
-- Sem dúvida.
-- Achas pouco?
-- Acho que não tens motivo nenhum para tam saloia indignação, e que o que te aconteceu é tudo quanto há de mais natural. -- E doutoralmente explanou: -- Pois então tu pensas que isto aqui assim é como lá na nossa "parvónia", onde estamos sempre de braços abertos para acolher quanto importuno se lembre de nos ir moer a paciência e estragar as horas?... Annh! aqui fia mais fino... Aqui tudo anda cerimoniosamente regulado, pautado e medido; as relações e os negócios, os ódios e as afeições, o sentimento e o interêsse.
-- Um pouco como em tôda a parte.
-- Aqui mais do que em parte nenhuma... Cultiva-se a sociabilidade a distância. Famílias que se dizem íntimas, vêem-se duas vezes por ano. Olha, sabes que mais? tens que comprar um livrinho que aí há, de marroquim azul e fôlhas doiradas, -- custa-te dez pesos, o equivalente a quatro escudos, -- barato não é... mas, alma piedosa como tu és, deves dá-los por muito bem empregados, porque essa "massa" destina-se ao custeio duma obra pia qualquer, privativa função do "high-life": a Associação "del Divino Rostro". É uma coisa do tom. -- E, reatando: -- Ora nessa espécie de mundano florilégio tu vais encontrar, metódicamente distribuidos por ordem alfabética e púdicamente apartados segundo os sexos, todos os nomes, sobrenomes, apelidos, moradas, e a direcção telefónica mail'a indicação dos dias de receber, das famílias que se prézam, tôda a graúda gente. É um código inviolável, sabes? um índice de elegância, um complicado e melindroso calendário social, cujas efemérides são infalíveis... São dogmas, são escrituras. Por isso o seu conhecimento, o seu uso se torna imprescindível "à los muchachos distinguidos" como tu. -- Ao ameno afago destas leves humoradas, o rosto cenhudo do Silveira desanuviára; e prazenteiro e cáustico, o amigo: -- Já sabes pois que fóra de tais prazos rituais da etiqueta, nenhuma dessas meticulosas figuras é acessível. Não são criaturas reais, são abstracções, são símbolos... sobretudo agora. De sorte que, realmente, demandá-los nos dias dos seus convencionais eclipses, conforme tu fizeste, é um triste documento de plebeismo, uma "gaffe" imperdoável.
-- Quéro lá saber! -- atalhou de ímpeto o Silveira, num sobranceiro dar de ombros, mas no íntimo vèxado, erguendo-se.
-- Que remédio tens tu! se quiseres tratar com gente limpa, -- contestou, numa ironia amável, o amigo; e rápidamente, tendo consultado o relógio, erguendo-se tambêm: -- Vamos, que são horas.
Depois, já fóra no "hall" os dois, e enquanto esperavam o descensor:
-- Tu deves mas é aproveitar e ir até ao campo. Repara bem que êste convite do Saavedra foi um rasgo positivamente imprevisto, raro, excepcional... eu ainda não quero crêr. És um burro de sorte! Porque não está nada isto no carácter argentino. São amáveis e hospitaleiros êstes bons "porteños", é certo... porêm morosos sempre e difíceis na exteriorização do seu agrado. -- Bateu-lhe no ombro com entusiasmo: -- Caíste-lhe em graça, não há duvida!
-- Sei lá...
-- E depois, êstes Saavedras são das poucas famílias autênticas de antiga linhagem, que, com os Vicente Lopez, os Lastra, os Alvear ou os Acosta, ainda aí figuram e manteem as nobres tradições do vélho tempo colonial. São óptimas relações, já vês... e a melhor chave pr'a te franquear no inverno o ingresso à bôa sociedade, como desejas.
Atingiam, em baixo, a rua; e então o Silveira com os lábios crêspos e uma vaga onda lúbrica a empanar-lhe o esmalte dominador dos olhos, aventurou docemente:
-- Aquela prima...
-- Aí está! P'ra mais, com o lascivo apetite da prima já a aquecer-te os miolos... E mais, quem sabe? talvez que a ela lhe quadres. Marcha! marcha, homem! Que mais queres?
O Silveira atirou-se de golpe, apreensivo, sonhador, para o fôfo recanto do "taxi" que haviam tomado, e enquanto faziam o caminho de Palermo, poucas palavras trocou com o amigo. Ia alheadamente escrutando os indecisos aspectos morais da sua situação. Repugnava-lhe aquela fria subalternisação, aquele anonimato estéril do presente; vinham vagamente acariciar-lhe a fantasia miragens promissoras do futuro. -- A coisa afinal estava bem clara: essa ideal Irene aparecia-lhe uma criatura inabordável... a amizade desbordante dos Améglio não passava do verniz caviloso duma descarada exploração. E dos mais... disse! Nem conhecimentos, nem apetites. Que demónio fazia êle então com tal gente, ali assim?... Seria perder o seu rico tempo. Pouco menos que um achincalho. Soberanamente ridículo... Não era p'r'o seu feitio! -- Assim, quando os três, já noite feita, regressaram do Hipódromo, estava justo que o Silveira acompanharia Jorge à "estancia Amália". Belisário Ruiz tambêm por lá devia aparecer. Lialmente, o Azeredo lamentava não poder «fazer parte do rancho», e aplaudia-se de haver sido o espontâneo e gostoso interventor daquelas duas abertas simpatias juvenís. E numa efusiva e sincera mutuação de impressões, os três foram seguindo, chalrando à compita, deblaterando anecdotas, concertando planos, visionando fortunas, soprando projectos irisados dos cambiantes esplendores da mocidade.
Passada porêm a avenida Santa Fé, o "auto" teve que ralentar súbito a marcha, e qualquer coisa de anormalmente pejorativo e tumultuário lhes travou com fôrça a atenção.
É que na sua frente, agora, uma formidável e pesada barreira, uma barricada estrepitosa e farfalhante, se fechava, de "tramways", de cavaleiros, ciclistas, coches e "autos"; de meios de condução de tôda a casta, cada um vibrante e álerte na ância de adiantar-se aos demais, e o seu arrastado travamento paralisando o trânsito, tomando de lés a lés a rua tôda. Não era sómente a luzida afluência dos que de Palermo regressavam, como êles; era algo mais que o grosso movimento domingueiro, habitual da rua: era qualquer coisa de deliberadamente chocarreiro, de impetuoso, de trocista, de hilare e audaz ao mesmo tempo, cujo atropelado escoamento se fazia com dificuldade e de cuja turbulenta acumulação expluiam risos, motejos, apupos, estraladas fulvas de ridículo.
Quando, a poder de paciência e tempo, os três amigos conseguiram atingir a praça Rodriguez Peña, tiveram por fim a noção clara da grotesca realidade. -- O amplo recinto estava tomado e abarbado literalmente pela multidão, que, parada e compacta, desbordando a areia rubra das alamedas, pendurada das árvores em cachos, posta em pinha sôbre as tenras "pelouses" machucadas, escutava e recolhia em êxtase a torrentuosa eloqùência dos vários oradores fantochando de riba dos bancos a sua mímica redentora.
Jorge avançou, impaciente, a cabeça, despediu o seu inquiritivo olhar ao largo, e logo, retraíndo-se novamente e com mal contido desdêm:
-- Negócio de eleições... logo vi. É um comício dos radicais.
Ao mesmo tempo, porêm, e fazendo o ruidoso circuìto da praça, uma "queue" por igual cerrada de veículos se lhe enrolava em tôrno, atulhados por uma turbamulta de rapazolas que, chinfrineiros, implicantes, chasqueando, assobiando, berrando, buscavam por meio dum alarido infernal amesquinhar e abafar as iluminadas vozes cívicas dos apóstolos do centro.
-- Êstes são os socialistas, -- tornou aclarando Jorge; e num crescente mau humor: -- O alargamento do sufrágio deu nisto!
De roda crescia tambêm naturalmente a onda dos "mirones", atraídos pelo inéditismo do espectáculo. Porque parecia uma esporádica prolongação do Entrudo, formava o mais canalhesco e adorável dos contrastes, esta palinódia colossal, -- a solene gravidade e a impertérrita coragem dos meetingueiros fieis, parados e atentos tomando em massa o vasto recinto, com a algareira sublinha daquele rodeio impudente dos contrários, afogando-os numa implacável cinta de arruaças, de burlonas apóstrofes, vaias, chistes plebeus e guisalhadas de troca. E nenhum dos dois bravos campos se dava por intimidado ou vencido, nenhum queria ceder. Nesta inofensiva e gritada briga mantinham-se testarudamente rivais; os de fora na sua truanesca assuada, os de dentro na sua caturra perseverança.
O Silveira e o Azeredo seguiam a scena sorridentes, num maligno regalo; ao passo que Jorge, sem perder a sua linha de pretenso aristocrata, enfastiado e severo:
-- Parece um bando de "patoteros"! Súcia de "gringos"... A culpa é da polícia.
VII
Ás 7 horas precisas da manhã, o Silveira entrava na estação "Constitución", com um moço carregando as suas duas ligeiras maletas de "touriste" e uma chapeleira de coiro; e em vão demandava agora, pelo imenso e sombrio "hall", a presença do seu amigo Jorge, que chegou nos últimos momentos, correndo açodado à bilheteira e logo tomando de assalto um dos "wagons" de 1.^a, já de portinholas cerradas, justo ao tempo em que o silvo da locomotiva arquejante dava o sinal de partida. Cómodamente instalados os dois num compartimento que ia vazio, pronto acendiam os cigarros e, baixando a vidraça, seguiam despreocupadamente o manso e bucólico deslise da paìsagem, na fina aquatinta daquela deliciosa manhã, clara e tranqùila. Primeiro, o complicado e barôco bracejar, o espreguiçamento indefinido do arrabalde da cidade, -- "tiendas", "conventillos", fábricas, riachos, poços, jardins, "azoteas" sôbre monturos, caliças entre arvoredos, -- tudo isto cortado a cada instante pela paragem barulhenta nas estações, tudo riscado de vagos esboços de alinhamentos de ruas, abertas no sólo virgem, e que, longe a longe, raro marcavam apenas, como afoitas vedetas, umas fieiras de casitas sôltas, cada vez mais raras, mais sumárias e mais humildes. Depois, no progressivo despovoamento da planura, vinham os altos tufos desgarrados de eucaliptus, dominantes e protectores como guardiães do deserto, vinham os penachos sussurrantes dos álamos e dos salgueiros, os bosquetes, os telheiros, os "ranchos", os sarçais, as lomas de areia; e, contidas na utilitária rêde de inúmeras vedações de arame, as primeiras manadas de gado pastando suavemente. A pastosidade atascadiça do terreno e a vizinhança do mar empapavam de humidade o espaço; a relva fumegava, e as esfumadas tintas do ambiente esbatiam-se numa mortiça e branda deliqùescência, feita de calma e de frescura; passada porêm a estação "Ferrari", a linha férrea internava-se, inflectindo marcadamente ao sul, e então o ar ia alimpando, aquecendo, já as linhas eram mais firmes, os contornos definiam-se, e por fim uma enxuta "aleluia" matinal realçava e doirava, a perder de vista, aquela rústica pacificação dos homens e das coisas.
O trem seguia sempre pelas suas implacáveis e vibrantes talas de aço, ferralhando, arfando... Ante a gostosa complacência e a interessada atenção do Silveira, o seu amigo, que conhecia naturalmente a região a palmos, ia de espaço apontando panoramas e desfiando pormenores, fazia o cadastro pitoresco do país, obsequiosamente. Até que, andadas assim cêrca de 2 e meia horas, atingiam a encantadora cidadesita de Chascomús. Aqui havia que deixar o trem de ferro para empreenderem caminho a oeste, hora e meia de auto até à "estancia Amália", o apetecido termo da viagem. Jorge Saavedra julgou oportuno aproveitar esta mudança para fazerem, antes de seguir adiante, o circuito rápido da linda povoação, marginando a melancólica lagôa que a rodeia por oeste e pelo sul, depois passando frente ao "Club de regatas", ao "Hospital de São Vicente de Paulo", dando a volta da "Praça Municipal", e tornando por fim à beira da lagôa, em piedosa visita ao desmantelado «cemitério vélho», dentro de cuja rocalha carcomida, e por entre a parada fúnebre de ciprestes, destacava a mancha ratada e lívida duma alvenaria simbólica.
Com um sobrecenho comovido e grave, o Saavedra explicou:
-- É o moimento à memória dos chamados «bravos do sul», que aqui sucumbiram na famosa jornada de 7 de novembro de 1839, paladinos sublimes do engrandecimento pátrio, pela libertação da sua estremecida terra batendo-se como leões, dando de barato em holocausto a vida.
-- Contra quem lutavam êles?
-- Era um grande movimento insurrecional organizado contra o tirano Rosas, sabe?... Uma das páginas épicas da nossa história, quáse desconhecida, entretanto, apesar de haver sido escrita com sangue autêntico de heróis.
-- E tiveram por cá muito tempo de guerra civil?
-- Uns quinze anos, nada menos! "Una barbaridad". Felizmente, já não é do meu tempo... Mas êste santo movimento emancipador, aqui, foi a brava seqùência do célebre "pronunciamiento" de Dolores, cinco dias antes. Tenho-o ouvido contar a papá centos de vezes. Diz êle que êste comovente episódio é dos que mais nos engrandecem, mais nos honram... e que deve ser magnificado como o precursor imortal dos dias gloriosos de Caseros. -- E com progressivo e varonil entusiasmo: -- Pelos modos, os revolucionários vieram por'í acima capitaneados por Castelli e concentrados primeiro em Dolores, o berço humilde dêste movimento redentor, como lhe disse. E havia um entusiasmo doido! tinha-se o triunfo como certo, contava-se com que as fôrças do temido caudilho Granada se passassem aos revoltosos, esperava-se o refôrço prestigioso de Lavalle, -- que sei eu?... A gente de Rosas saltou-lhes ao encontro, mas cá os bravos do sul repeliram-na, apesar de constituir a vanguarda inimiga a famosa cavalaria de Catriel, uma indiada temível! Quando de repente... não sei bem como aquilo foi, parece que houve traição dum capitão... O certo é que, seguros já os revolucionários da vitória, de repente as coisas mudam, a gente de Rosas encurrála-os contra a lagôa, êles resistem, e um a um vão caíndo, raros tendo escapado à morte. Uma coisa bela! -- Agora Jorge fremia de raiva, e indignadamente: -- Pois, a seguir, êsses brutais vencedores, dignos servos do tirano, todo o dia levaram chacinando, degolando, lanceando a torto e a direito, por essas ruas. Inocentes, vélhos, mulheres, crianças, tudo a eito! Uma vertigem de canibais, macabra, horrível... E foi como ficou assegurado por catorze anos mais o domínio feroz do ditador!
Mas o automóvel deixára a calçada e breve reganhava o campo, internando-se, salteiro e ofegante, no majestoso encanto da solidão, investindo com o desconhecido. Pela carreteira mole e insegura, no seu rodar silencioso, aventurosamente se ia deixando envolver e perder-se no problema insondável da imensidade. Porque à sua ilharga e na sua frente, alargando, crescendo, agrandando sempre, inexorável, monótono, desdobrava agora a sua toalha de fertilidade inexgotável o maior celeiro do mundo, -- inestimável manancial de produção e tesouro de abundância em que os nativos firmam a sua imprevidência, os colonos a sua esperança, os mercadores a sua codícia e os milionários a sua riqueza. Começava o desdobramento da interminável "steppe" argentina, a lendária "pampa", essa famosa e imensa planura verde, dum verde característico e próprio, um verde que à fôrça de carregado e sombrio, é quáse azul; assim como, ao alto, o azul da abóbada celeste, a poder de claridade e leveza, é quáse branco; assim como, na sua fecundade palpitante, é quáse negro o sulco rasgado na crôsta húmida da terra. E não há suspensões, córtes, paragens, não há derivação nem termo, nesta avassaladora invasão do Infinito. Por essa divina manhã de outono e sôbre a suave pradaria sem fim, paira a carícia inefável duma poesia dulcíssima... e da luz a diáfana pureza esbate e aparta em cristalinas nuanças a tonalidade cambiante das coisas; aqui, em rústicos e tenros "bouquets", as floritas púrpura da luzerna; logo, o verde gordo dos pastos, mosqueado da manchita grisácea ou bistre dos mansos gados, ruminando; mais alêm, definido pela lacrimosa fita dos "sauces", o colear rumorejante e claro das ribeiras; ou a nódoa triste dos currais, dos "ranchos", das "taperas", dos celeiros; ou a imobilizada ondulação das dunas de areia, com a epiderme rugosa e árida estriada pelo vento; ou ainda a ponta lívida das míseras e frágeis "carpas" dos colonos, grupadas como as tendas dos "beduinos" no deserto. De raro em raro, sôbre a esmagadora rasoira da solidão virgulando ténues e mal perceptíveis, como infusórios, as "cuadrillas" minúsculas de peões cingem-se à terra e incessantes moirejam, como formigas, -- uns colhendo o milho em sacos, outros acamando o rastolho, outros, mais previdentes, já rastreando, arando... E sôbre a gleba recêm-revôlta, nos ávidos mamilos dessa fresca terra virgem, a bênção gloriosa do sol, como querendo antecipar-se à fecunda labuta do homem, cái e entorna-se, palhetada, coruscante, em pródigas sementeiras de oiro.
No último limite da percepção visual, tam ao largo como pode alcançar a nossa vista cansada e extática, o esmalte pálido do céu e a linha fôsca do horizonte tocam-se, mas não se confundem. São dois antagonismos, são dois infinitos, duas grandes interrogações, tangentes mas opostas, raiando e barrando a tôda a volta a imensidade do espaço, como os dois batentes da incorruptível porta do Mistério. Ao mesmo tempo acontece que, na chata uniformidade dêste solo raso e sombrio, os mínimos acidentes topográficos, os contornos mais insignificantes, um ligeiro médano, uma leve saliência, qualquer ínfimo relêvo, como se projectam inteiros na despejada tela do horizonte, e pela sua mesma raridade, ganham assim valor, crescem, avolumam, assumem dimensões gigantes, e alçam-se e aprumam-se bruscamente, caprichosos, enormes, como solitários ilhéus no berço cavo das ondas. Tal imponente e vago mamelão que ao longe nos aparecia como um punhado ciclópico de rochedos, à medida como depois, fazendo caminho, dêle nos acercamos, vai apequenando, minguando, a aproximação desbasta-o, come-o a realidade, as suas linhas reduzem-se... a termos que, quando lhe passamos perto, temos que verificar por fim, desencantados e tristes, que essa miragem hiperbólica da solidão não era mais que uma modesta mêda de palha ou de feno, uma casota humilde, um pôço, um "hangar" ou um monte de estrume. Por igual, o ligeiro arcaboiço em ferro das bombas elevadoras de água, com o seu aéreo penacho rodiziando ao vento, figura-se-nos a maciça evocação dalguma lôbrega tôrre feudal, rasgada em seteiras, cingida em barbacãs, coroada de ameias. Há pequenas "estancias" que parecem cidades, toiças de mato que parecem florestas, simples lomas que parecem montanhas. E por vezes, sôbre o esfumado pedestal dalguma dessas perdidas cumieiras distantes, vinca-se e agranda súbito, monstruosa e negra na claridade sideral do ambiente, qualquer coisa como a mégalítica renovação de algum lendário animal sagrado, e que não é mais entretanto do que a pacífica silhueta dum cavalo ou dum toiro imóvel e sonhador na muda passividade do deserto.
O silêncio é vasto, esmagador e solene como um crépe de olvido, como uma mortalha de sombra... apenas de longe em longe picada pela microscópica nota estrilante, encarnada ou azul, de algum raro saiote feminino. Nesta melancólica extensão sem fim, ténues nuvens grisáceas se desenrolam por vezes e vão correndo... é o penacho arquejante duma locomotiva, é a poeira erguida por uma tropeada abundante de vacas ou de cavalos; mas tudo isto sempre fugaz, miudito e distante, como imponderável, sem importância e sem ruído. E sôbre o domínio infinito da solidão paira um fundo imanente de tristeza. Há tímidos lamentos pelo ar, e os sulcos abertos pelo arado são como as crêspas vibrações duma resignada angústia, duma dôr enfreada e humilde... que é a dôr da própria terra. Porque esta é a terra maravilhosa das bárbaras lendas "gauchas", terra de promissão, de paz e amor; terra de humildade e de sacrifício, a terra fatalista, a terra paciente, a terra mártir, -- retalhada primeiro pelo aço dos conquistadores, que, empapada de sangue indígena, havia de mais tarde florir na assoberbante iniquidade dos latifúndios; hoje com não menos avassaladora impudência assolada e batida em tôdas as direcções e sentidos, pisoteada pela bota surramposa de tôda a sorte de colonos, violada pela torpe especulação material de tôdas as raças.
A pródiga, a inexgotável, a doce e lendária "pampa"...
Um momento veio em que, à direita e muito ao largo, sôbre uma ligeira ondulação como que assoprada na frialdade jacente da planura eterna, começou a definir-se, a crescer e a afirmar-se potente, na claridade vítrea do céu, uma ampla construção, tarraca e singela, hospitaleira a sorrir entre o arvoredo.
E logo Jorge, convidativo e alegre, alongando o braço:
-- Lá está a nossa casa. Pronto vamos chegar. Bem situada, não acha?... Alcança-se a grandes distâncias. E ademais é fácil de reconhecer, por aquele grosso penacho verde-negro que se lhe ergue um pouco à frente, não vê?
-- Sim... Distingo perfeitamente.
-- É um vélho "ombú", não sei quantas vezes secular... um dos raros exemplares que por'í ainda restam desses abomináveis veteranos do deserto.
O Silveira aprumava-se e movia-se a cada instante, buscando concretar impressões, progressivamente interessado; enquanto ao lado dele, Jorge, preguiceiro, indolente, com a sua ligeira ponta de fatuìdade, ia explicando:
-- E, sabe o meu amigo? há muito que vamos já caminhando por terras nossas. Tudo isto em volta. Ao redor de seis mil hectares. Não é nada... Mas, em suma, p'ra passatempo chega bem. -- E regaladamente, estirando-se mais, tirando o chapéu e com a mão suave acamando o cabelo negro e corredío: -- Papá poderia já ter alargado a propriedade, mas não quere. Está contente com o que tem. É que êstes campos p'ra cria de gado são o que há de melhor, porque dão magnífica luzerna; e são igualmente imelhoráveis para tôda a casta de produção agrícola. Tambêm, por isso, reservâmos apenas uma terça parte para nós, e o mais anda tudo p'r'aí assim repartido por essa malta de "gringos". O pior é que nem todos são pontuais na renda, há que ser-se duro com êles. Porêm dão vida a estas redondezas e precisamos dos seus braços no fim de contas. Formam uma família já bem numerosa... e por vezes bem incómoda.
Com efeito, para onde quere que o Silveira alongasse, cativado, a vista, invariávelmente ia encontrar, aquecendo o ambiente e salpicando de pitoresco o espaço, a nota viva, rude, impressiva, da utilitária obra do homem: a um lado, sempre a mesma basta e complicada rêde das vedações de arame a dividir os "potreros" travadas e geométricas como os alvéolos duma colmeia, disciplinados cárceres ao ar livre por onde os contemplativos rebanhos arrastam mansamente a sua vida vegetativa e incerta; ao outro, por igual a mesma intensiva e estreita parcelação da terra, aqui riscada em hortas, vicejando em pomares, vergada ao pêso das colheitas, ali eriçada ainda do rastolho, ou já limpa, revolvida, fresca e fumante, esperando as sementeiras novas. E por tôda a parte tambêm, ao acaso semeadas e dispersas, como tubérculos, rugosas e negras como concreções de "tophus" bretoejando na uniformidade epidérmica daquele sólo gordo e húmido, destacam as casotas sumárias dos colonos, míseras choças de barro amassado com palha e feno, tendo cavado na frente um pequeno pôço e à ilharga o inseparável forno, -- redondo êste, enorme, dominador, como um zimbório, muito liso e claro.
Atingiam agora os dois amigos a gradaria singela de ferro que circunscrevia um tôsco e reduzido esbôço de jardim, frente à almejada "estancia". Então o Silveira pôde notar de relance: esta era um grande edifício quadrangular, de modesta elevação e linhas simples, apenas um andar sôbre o térreo, e tudo em alvenaria escaiolada a côr de ervilha. Numerosas portas, tôdas de córte igual, ofereciam acesso ao andar térreo, à altura de cuja cornija uma espécie de farta cobertura de "hangar", em zinco ondulado, avançava e corria a tôda a volta, protectoramente tendida sôbre o amplo "pasillo", ladrilhado a mosaico e vindo à sua frente apoiar-se em colunas. Depois, transposto o largo portão do jardim, francamente aberto, e dados alguns passos mais, Jorge e o seu hóspede deixavam a espaldas a atormentada silhueta do vélho "ombú"; e agora, já junto à casa, a projecção aérea do "hangar" mascarava-lhes a visão do andar superior, e tinham ali ao seu alcance, em baixo, transposto apenas um degrau, o piso sombreado e confortável daquela espécie de garrida galeria andaluza, adornada por vélhos lampiões de cobre, enrediças, gaiolas de canários, faianças com plantas, cadeiras de "hamaca" e mesitas de vêrga.
Pai Saavedra estava com o "mayordomo", no seu escritório, -- informou o "mucamo" que acudiu solícito à entrada dos recêm-vindos. Era a primeira casa à direita do vestíbulo. Jorge pediu vénia por um momento ao amigo e entrou. O tempo suficiente para o Silveira, continuando o seu sucinto exame, notar a ática singeleza e o escrupuloso aceio do pequenino átrio, luminoso, arejado, o brunido soalho em pedra mosqueado de miuditos arabescos, e do estuque cinzento das paredes pendendo em simétrico arranjo cabides, petrechos de caça e armas gentílicas. A face oposta à entrada era tomada tôda por um grande vitral colorido, ocasionalmente aberto, e desvendando assim o risonho "patio" que no seu interior os sossegados muros da rústica habitação enquadravam ciosamente, -- apenas com uma furtada aberta, ao fundo, para a vaga imensidão do campo. Devia ser a cozinha a casa que aí, interrompido o circuìto, formava ângulo, porque à sua porta uma mulher estava pelando aves, sôbre um balseiro fumegante. E não longe, junto ao pôço de gancho e roldana, um peão, arremangado e de lenço ao pescoço, brunia metais de arreios, com um balde entre os joelhos.
Mas já Jorge voltava, risonho, ligeiro, no momento justo em que tambêm o "mucamo" e um outro peão entravam do jardim, conduzindo as malas.
-- Papá está só e morto por vê-lo, amigo. "Pase! pase!"
E daí a instantes o Silveira colhia o efusivo apêrto de mão dum bom vélho afável, rosado, pequenino, que com uma voz enternecida e confiada lhe dava as bôas vindas.
-- Imenso gôsto em conhecê-lo... Que honra, que prazer nos dá! Que bem que fez em vir!
-- O prazer, o encanto é todo meu. Estou imensamente reconhecido...
-- Como, reconhecido?... Qual! "Qué esperanza"... Pelo contrário, a nossa gratidão é que é infinita p'ra todos quantos teem a complacente bondade de vir alegrar esta nossa solidão aqui. E quanto ao meu amigo, já sabe... recomendado por Jorge, considere-se da família.
-- Isso é dos livros! -- exclamou Jorge jovialmente, num aprovativo acêno da cabeça.
E o pai com a mais desafectada naturalidade para o Silveira, simples, insinuante:
-- Perdoe-me se o fiz esperar... "Este"... estava aqui caturrando com o meu "mayordomo". Coisas fastidiosas por vezes, mas inevitáveis... coisas práticas. Contas atrasadas que p'r'aí andam... E àmanhã é dia de abater gado.
-- É cá p'r'o consumo da "estancia", -- acudiu obsequioso Jorge, interrompendo. -- Dois dias por semana.
-- É certo, -- mansamente o pai confirmou. -- Um serviço corriqueiro, trivial. Pois êstes "capatazes" são uns "atorrantes" e vingam-se, sempre que podem, da sua condição subalterna, sacrificando, p'ra nos fazerem dano, os melhores exemplares, ou então mandando abater rêses nocivas, enfêrmas. O demónio! Há que andar sempre em cima dêles. "Mucho ojo!"
-- E um bom "rebenque", não seria pior... -- completou Jorge, ameaçador, com um gesto expressivo.
Calmo porêm e bonachão, o pai corrigiu suavemente:
-- Cala-te! Não digas barbaridades. -- Depois, amável e voltado para o Silveira, derivando: -- Bem, mas isto não são coisas p'r'o nosso querido hóspede. Vamos ao que lhe interessa. A minha senhora não sei se está... minha filha Célia tampouco. Queria apresentá-lo... Porque, -- e num mimalheiro sorriso, indicando Jorge -- com êste "gran bribón" mais, somos aqui tôda a família.
E carinhosamente Jorge, abraçando o pai sôbre os ombros, com uma liberdade e uma irreverência chocantes para os rígidos preconceitos educacionais dum europeu como o Silveira, ripostou:
-- "Qué rico tipo!"
Os miuditos olhos garços do bom vélho molharam-se de ternura; e outra vez voltado para o hóspede, com a mesma acolhedora expressão, bondadoso, aberto:
-- Em suma, daqui a um momento juntamo-nos todos à mesa. Vai ver: pouco e ruim... mas sabemos ser amigos, de todo o coração e co'a melhor vontade.
O vélho Saavedra dizia estas coisas com uma familiaridade calorosa e espontânea, com uma simpleza tocante. Era uma figura interessante e invulgar. Vestia todo de negro, tinha um ralo bigodito em escôva, a barbicha grisalha, aparada e têsa por igual, contornava-lhe a face de orelha a orelha, e à volta do imaculado colarinho sem goma enrodilhava-se um farto lenço de setim, como há sessenta anos, negro por igual e retido à frente por um nó com duas pontas. Dois fundos vincos entre os cilios, a clara testa repregada e vibrátil, o cránio mal guarnecido de longas e sedosas cãs, amplo e redondo, denunciavam o homem de pensamento e de sonho, um recto entendimento alumiado por uma ingénua alma. Flagrante espelho desta, os seus pequeninos olhos húmidos, dum verde atenuado e translúcido, eram fontes de doçura, palpitavam duma mobilidade inquieta, mantinham ainda essa fácil emotividade que é o apanágio das crianças. Vibrava pronto, ao sensitivo rodeio das impressões. Os seus lábios eram ungidos de bondade, e tinha o gesto acanhado e infantil das criaturas que menosprezam o mundo, que evitam o convívio social e deliberadamente se mantêem esquivas ao atrito deletério dos homens e das coisas. -- Assim entrevisto na meia-tinta austera daquela casa mobilada parcamente, êste doce e pequenino vélho aparecia aos deliciados olhos do Silveira como uma encantadora quimera, um absurdo, uma anómala figura perdida... como algum anacrónico painel já lambido da "patine" veneranda do passado. Era o vivo e adorável "pendant" dêsse outro óleo de franco e rude batalhador que êle agora descobria sôbre a maciça secretária de roble, tomando a parede.
Então Jorge, que lhe surpreendeu o movimento, adiantou-se a explicar:
-- É meu bisavô, o criador desta "estancia".
-- Um andaluz inteligente e trabalhador, -- acudiu o pai quáse ao mesmo tempo, -- mas pobre como Job, que veio p'r'aí assim sem um centavo.
-- Felizmente, vejo, -- o Silveira julgou oportuno observar, -- aqui a fortuna sorriu-lhe.
-- Ah, não há dúvida... e êle bem o merecia, -- acudiu com desvanecimento o vélho. Depois, espontâneo sempre e afável: -- Mas enquanto se não almoça, venha vendo a nossa casa. -- Abriu a pequena porta à direita, e, tendo antes feito passar o Silveira: -- Aqui tem... "este"... a nossa biblioteca.
Um severo e discreto compartimento, recebendo luz apenas do "hangar" exterior e totalmente vestido em volta por uma alta cinta de estantes de carvalho, em cujas prateleiras bambas um milhar de sonolentos volumes se alinhava gravemente. Do escasso trecho de parede sôbre uma das portas pendia uma litografia detestável de Domingo Sarmiento. Sôbre a estirada mesa de leitura havia desparramadas algumas pequenas estantes de dobradiça e um grande e aparatoso tinteiro, coroado por um Napoleão de bronze com um termómetro no tórax e um relógio no ventre.
Entretanto o bom vélho, complacente e palreiro:
-- Não passa dum gabinete de leitura modesto, uma tentativa, um esbôço, um ensaio, como vê... Mas há aí de tudo um pouco: filosofia, literatura, jurisprudência, viagens. O agradável e o útil. E as melhores "Revistas" e alguns livros portuguezes. De sorte que, já sabe, quando esteja aborrecido de nós ou lhe apeteça isolar-se, é êste o cantinho que lhe convêm. Os livros é que nunca nos pregam "lata"; a gente larga-os sem cerimónia, quando muito bem quere. E ainda são os nossos melhores amigos.
Mas aqui Jorge interveio, e com vivacidade:
-- Papá, lembra-te de que o nosso hóspede há-de querer lavar-se, mudar de roupa...
-- Ah, sim... "este"... perdão! Vamos então levá-lo ao seu quarto. Fica-lhe aqui já, no seguimento para o interior. Aí à direita é o meu arquivo.
Abriu outra porta, à esquerda, e entrou com os dois amigos numa ampla peça, fresca e clara, tendida de cassas e "cretonnes" e mobilada a pinho de Flandres, com duas janelas abrindo para o campo e, fronteira, uma porta sôbre o "patio" interior.
-- Veja se lhe agrada.
-- Oh, sr. Saavedra...
-- Tem que se contentar, melhor não lhe podemos oferecer. Mas, veja... comunicação directa com a biblioteca, e ali a seguir, "toilette", banho e mais serviço. Creio que aqui assim na "planta baja" sempre fica mais em liberdade e mais cómodo. Mesmo nós no "piso alto", que dispõe de menos espaço, não temos senão os quartos da família. Quere dizer, há uma única excepção: os aposentos dessa endiabrada "Miquêtas"... que, a bem dizer, família é tambêm. -- E batendo com as mãos em concha e sorrindo, na lisonjeira evocação duma pessoa querida: -- É o benjamin da casa. O que ela faz... o que aquilo diz, imagina e inventa! Um vivo demónio!
E logo Jorge no mesmo admirativo tom para o Silveira:
-- É a prima Maria Mercedes. Não lhe dizia eu?...
Pouco depois do meio-dia, a grande sineta do pátio tangia para o almôço. Tendo acabado de ajustar a gravata e enfiar os anéis, e dada uma última casquilha mirada ao espelho, o Silveira abriu a porta do seu quarto e transpôs compassadamente os geométricos canteiros, debruados de buxo e salpicados de japoneiras, "aucubas", "pitcarnias", cravos, rosas e malmequeres, seguindo diagonalmente em direcção ao pôço, a cortar caminho para atingir o comedor, que lhe ficava no recanto em frente, a entestar com a cozinha. Dentro estavam já Toríbio Saavedra e a mulher, que recebeu o Silveira carinhosamente. -- Era uma grande senhora adiposa e obêsa, um monolito ambulante, o crasso busto sumido na montanha enxundiosa dos quadris, os braços maciços e curtos, as mãos como palmoiras. Tinha uns longos lábios froixos, a face pendente, e o assetinado fulgor dos olhos castanhos perdia-se afogado na papugem abundante das olheiras. Tôda de negro, como o marido, com o volumoso espaldão dos ombros resguardado por uma capota ligeira de veludo. O seu ar era repousado e lânguido como o das criaturas que se sentem instaladas na vida cómodamente, sem alternativas, angústias, apetites, preocupações nem ódios. O seu aspecto desprendido e plácido apenas estava desmentido por um antitético resíduo de vélhos e irredutíveis coquetismos no colar de grossas pérolas que em vão tentava remoçar-lhe as pelhancosas estrias do pescoço, bem como na origem, claramente industrial, do loiro inalterável do cabelo.
Tomou ela a cabeceira da mesa, ao passo que, cerimonioso e lento, o Silveira entendeu dever manter-se a distância, apoiando maquinalmente as mãos sôbre o espaldar da cadeira que aí lhe correspondia, como no íntimo desígnio de quedar-se ali. Mas súbito, sorridente e num piedoso alarme, a dona da casa:
-- Ah, não, não meu caro sr.... aí não! Êsse é o logar da "Miquêtas". Conservamos-lho sempre... como se ela esteja. Queira tomar assento aqui.
E indicou-lhe o logar de honra, à sua direita, que o Silveira acudiu a ocupar, pressurosamente. Entrou neste momento, do pátio, Célia, -- uma joven de aspecto bisonho e triste, o busto dobrado, os olhos baixos, flácida, delgada, ictérica. Vestia blusa branca e uma singela saia de côr indecisa, e da mesma indecisa e mortiça côr tinha a epiderme, os olhos, os lábios e o cabelo, lambido como um penteado de colegial e repuxado à nuca. Quando lhe apresentaram o Silveira, dobrou-se mais, baixando as pálpebras, cortejou a distância, sem lhe estender a mão e sentou-se logo à esquerda da mãe diante dêle.
Entretanto pai Saavedra vinha tomar logar ao lado do hóspede, e desdobrando o guardanapo com ímpeto, alegre, menineiro:
-- Vamos a isto, que são horas!
Uma criadita começou servindo carnes frias; e para o Silveira, muito atenta, D. Teresa:
-- Não lhe podemos aqui oferecer grandes mimos culinários... tem que desculpar... porêm um bom "puchero", isso sim! como certamente não come na cidade.
Imediatamente o vélho Saavedra lhe pedia para avançar o copo, e vertia nêle com afectuosa solenidade um vélho Jerez «como não havia de encontrar muito». Só de casa tinha quarenta anos. E de passo explanou-se falando sôbre as apregoadas excelências e virtudes do Madeira -- que êle apenas conhecia vagamente... um vinho de reputação mundial e ali na Argentina quáse desconhecido.
-- Ah, é um vinho precioso, divino! -- exclamou o Silveira com orgulho, dealbando os olhos. -- P'ra mim é superior ao Jerez... ao mesmo Pôrto. É mais aromático, mais gordo, mais suave.
E prometeu presenteá-los com uma porção de garrafas, que ia já no primeiro correio pedir a um seu amigo.
-- E de doce não gosta? -- tornou solícita e voltando-se para êle, D. Teresa, entre duas garfadas.
-- Bastante.
-- Pois nesse particular é que poderemos ser-lhe agradáveis. Em doces de cozinha especialmente... -- E com mimada ufania, apontando a filha: -- Aqui tem uma especialista.
-- Não digas isso, "mamita"! -- gaguejou Célia ariscamente, retraíndo-se e como querendo anular-se sob a mesa.
Mas, sem dar tento de ouvi-la, sempre no mesmo tom mimalheiro a mãe a insistir:
-- Quando está de maré faz um "dulce de leche", uns "huevos quimbos", como não é possível imaginar melhor. -- E ante a modesta esquivança da filha: -- "Verdad!" -- Depois, mirando-a amorávelmente: -- Quem te não fez freira!
Mas agora D. Toríbio, que não cessava de, a curtos intervalos, olhar com impaciência a porta em frente dêle, murmurou contrariado:
-- Que haverá passado a êsse Jorge, que não aparece?
Grande algarada entretanto no exterior. A terra estremecia ligeiramente, como sacudida pelas atenuadas vibrações dalgum terremoto distante, e de envolta com a trémula comoção dêsse largo abalo, montava, crescia e espirulava grossa pelo ar uma difusa e vaga ressonância, que parecia feita de vozes humanas, saltos, roncos, mugidos, tropeadas brutas de animais, e choques bruscos de ferragens.
Poucos minutos depois, entrou finalmente Jorge ao comedor, e vivo e cortês, enquanto se sentava ao lado da irmã:
-- Peço perdão se venho em atraso... Demorei-me a ver passar essa "tropilla que se va al rodeo". Não ouvem?...
-- Ouvimos, ouvimos, sim... -- contestou D. Toríbio, já tranqùilo. -- E então?...
-- Não sei... vi só de relance. Porêm tenho o ôlho bem experimentado... havia ali grandes falhas.
-- Estás sempre imaginando o pior.
-- Muito roubada ia, papá... podes crêr! Por exemplo, das nossas "vaquillonas" Shorthorn não vi nem meia! E eu sei donde nos vem o dano...
-- Bem, bem... -- conciliadora a mãe rematou. -- Senta-te e come. Seja que não seja, não é ocasião agora p'ra nos azedarmos com retaliações e suspeitas; estamos à mesa.
Terminada a frugal refeição, Jorge opinou irem tomar o café ao ar livre. Breve vinham buscar logar fóra, naquele aconchegado e tranqùilo recanto ao abrigo do ressalto da "azotea", entre o pequeno pôço e a cozinha. Meia dúzia de cadeiras de vêrga de ferro, pintadas a verde, rodeavam uma tôsca mesa de eucaliptus, em volta da qual os cinco se sentaram indiferentemente. O Silveira, porêm, para melhor poder observar o recinto, postára-se de costas junto à parede; e então pôde notar que, à sua ilharga e um pouco arredada, uma outra cadeira havia, porêm esta mais confortável, ampla e de aparatoso espaldar com a cabeceira acolxoada, e tendo mais, na protectora concha dos braços, duas almofadas de setineta azul guarnecidas com renda de bilros, molemente adormecidas.
-- É a cadeira da nossa "Miquêtas"... -- murmurou D. Teresa com meiguice -- Todo aquele preparo, veja... Chamamos-lhe a menina das almofadas. É uma comodista!
Pairava um suave e acariciador ambiente, uma lisa atmosfera de sonho, de calma e de beatitude. Aquele quadradito horto, fechado por espêssas e mudas paredes, matizado de flores quietas e tristes, parecia a remota e nostálgica evocação dalgum claustro, furtando o espírito à realidade, transportando-o a um outro mundo... Nessa embaladora hora de sésta, a majestade do silêncio amigo apenas era cortada pelos vagos sussurros tilintantes que vinham da cópa e da cozinha. E, oposta a esta, via agora o Silveira a caixa da escada para o andar superior, o qual, em cima, acanhadito e modesto se desenhava, mas tomando apenas parte da casa, pouco mais do que a frente. Rodeava-o a tôda a volta uma garrida varanda, de grades de madeira, em profusão festoada de arbustos, e vestida e enredada de trepadeiras, por entre cuja engalanada opulência as floritas maceradas da "balsamina", embebedando o ar, rompiam abundantes, e onde alegre e crepitante saltava a mancha escarlate das "estrelas federales", grandes como girasóis, com os seus estames de oiro, e as longas pétalas aveludadas e sangrantes como tiras de púrpura.
Então com repousada familiaridade D. Teresa aventurou:
-- Que tal encontra o nosso refúgio?
-- Delicioso, minha senhora. A mim parece-me completo.
Mas logo Célia, com uma mansidão em certo modo implicante, tomando a chávena da bandeja que a serva lhe oferecia:
-- Ah, isso é que não! Peço desculpa, mas não estou conforme. P'ra completo falta-lhe alguma coisa.
-- Vossa excelência dirá...
-- Pois então não salta aos olhos? Esta casa, tal como é, quero-lhe muito... é claro. Mas nem por isso deixo de convir que ela não passa duma acumulação semsabor de enojosas coisas materiais. Nada que nos fale à alma, que nos aqueça o coração, que nos eleve o espírito... Não há uma nota de ídeal, um qualquer "motivo" religioso... um painel, uma cruz, uma capela.
-- Onde vês tu por'í capelas ? - observou D. Toríbio, sorrindo burlonamente.
-- Ó papá! por tôda a parte... menos aqui. Não vês aí, a não mais de oitenta quadras, na "colónia Esperanza"? E na "estancia" das Argerich, e na das Moreno?... Dize antes que não queres.
-- Tem paciência, minha filha, mas eu sou um grande cultor do passado: o que quero é conservar íntegro e singelo, tal como recebi, êsse nosso ninho. P'ra que deturpá-lo agora com enxertos?
-- Meu pai, que profanação!
-- Profanação seria desfigurarmos com excrescências dispensáveis a amiga pureza tradicional de coisas com que fomos criados.
-- E de muito mau gôsto, -- sublinhou Jorge com impertinência, traçando as pernas.
-- Todavia teem-se farto de construir p'r'aí assim tôdas essas bisarmas de "cabañas", depósitos, armazêns e celeiros.
-- É lá ao largo, filha. E são coisas precisas.
-- A religião não o é menos, -- acudiu pronto Célia; e como que logo arrependida dêste súbito ímpeto de vivacidade, suasiva e mansa reatou: -- Pois então, por exemplo, aqui ao fundo e do lado de lá, formando esquina, uma simples ermidita não ficava tam bem?
-- Cortava o trânsito.
-- Ainda ficava espaço bastante. Sr. Silveira, que lhe parece?
Colhido de golpe por esta interrogação, que era uma evidente demanda de auxílio, o Silveira titubeou um instante; mas logo, afável e galante, recobrando-se:
-- Eu em assunto de tamanha transcendência não sei, realmente... não queria atrever-me a emitir opinião. Parece-me entretanto que se poderia... sem nada quitar ao carácter desta adorável construção...
-- Como? como?... -- fez Célia, muito interessada, adiantando-se e abandonando a chávena sôbre a mesa.
-- Fazer um pouco como na Europa... lá pelas nossas terras. O traço da conciliação seria talvez erigir por'í assim um retábulo em azulejo, figurando a divindade de sua maior devoção, e que saltasse, nada mais, da esquina dum muro ou embutido na parede.
-- É certo!
-- E então com uma lampadasinha à frente, tôda a noite acêsa, até teria um certo "cachet".
-- Como compreendeu bem o meu pensamento! -- exclamou Célia, erguendo as mãos em êxtase, enternecidamente, os olhos húmidos, e a um e outro lado movendo-se com presteza, alegre, triunfante: -- Valeu, papá?... "Mamita", ouviste?... -- E batendo palmas: -- Seria lindo!
Depois, vibrando ainda na exultante comoção e notando a tímida bandada de avesitas que manso e manso de roda dela vinham abatendo-se:
-- Ai, que já me esquecia das minhas inocentes amiguinhas! Dispensem-me, sim?
Atravessando o pátio, subiu num relance ao primeiro andar; e daí a instantes esta apagada e ascética figura reaparecia ao alto momentâneamente aquecida e chegando a parecer formosa, no enquadramento rústico da varanda, donde o seu braço amorável começou espargindo bagoadas de arroz e punhados de milho sôbre a graciosa farândola de "chuños", viuvitas, tarambolas, flamingos e pombas, que pedinchonas e ávidas se abatiam sôbre o terreiro, patitando, volitando, ruflando...
Havia que organizar o programa da tarde. Mas de repente o céu encapotára e o vento forte de oeste presagiava tormenta. Sinalou D. Toríbio o fenómeno com desgôsto, bordando lástimas sôbre aquela tremenda instabilidade do clima regional, em que não havia nunca que ter confiança, «nem mesmo no outono, a melhor quadra do ano». Assim, embora Jorge tivesse até já mandado aparelhar dois cavalos para uma saltada ao campo, foi julgado como de mais prudente aviso não saírem e entreter o resto do dia num exame mais detido à "estancia".
Tomados os chapéus, e tendo pedido vénia às senhoras, D. Toríbio e os dois jovens encaminharam-se então à suave atracção do campo, tomando aquela aberta posterior do pátio e dando o flanco à cozinha. E logo aí havia a notar, entestando com esta diagonalmente, uma espécie de longo e raso aqueduto, em tijolo, que disparava depois rectilíneo e rasteiro pela lisa planura sem termo, até ir mergulhar e perder-se por fim num fechado penacho de eucaliptus, longe, muito longe, já no esfumaçamento vago da distância. -- Era o encanamento que trazia a água para toda a sorte de usos domésticos. O vélho pôço do pátio para pouco mais servia do que para regas... estava condenado.
Depois a seguir prolongava-se paralelamente, a um e outro lado, uma dupla fita de leves, sàdias, frescas e arrogantes construções, dando a nota actual, porêm mantidas tôdas, no mesmo enfiamento das paredes da casa primitiva. Eram a carapaça industrial da "estancia", o seu fecundo traço de união com o utilitário credo do presente, os maravilhosos instrumentos, ali, desta subjugante caudal de energias duma nova raça, que são o segrêdo do portentoso milagre da prosperidade argentina. Era o hino fulvo da riqueza, o "allegreto vivace" da abundância. À esquerda, sorriam os rubros tôldos e as alvenarias deslumbrantes das cavalariças, estábulos e curralões para gado, erguiam-se as afusadas "torricellas" e mirantes da fábrica de lacticínios, das várias "cabañas", "tambos" e celeiros. Vinham de dentro perfumadas, tépidas emanações de feno e de amôjo, um genésico alento, um ar criador, um bafo gordo e tenro acusando o protéico germinar da vida. Quando os três passavam, do brunido tejadilho dum "haras" surdiu e avançou para êles, coquetona, mimalheira, familiar, uma linda e enxuta cabeça de cavalo castanho. Jorge acudiu desvanecido:
-- É o meu rico "Emir"... um autêntico meio-sangue, um corredor de primeira. Que dizes, "mi valiente"?
E do lindo animal acariciou o focinho brincalhão, vibrátil, em curtas pancaditas, suavemente.
Passando ao lado fronteiro, aí as instalações novas, nas suas apagadas côres, na sua arquitectura sumária e rude, tinham o que quere que fôsse de mais poderoso e mais severo. Singelos e amplos armazêns, por vezes simples "hangars" cobertos de zinco e telha de Marselha, eram contudo o centro propulsor, a potente fonte dinâmica de tôda aquela parada enorme de trabalho. Ali se alinhavam por dezenas as carretas de mão, os grandes "camions", as zôrras e as locomotoras, brunidas, scintilantes; depois havia os grandes aparelhos geradores da energia eléctrica, duas máquinas "desgranadoras" para descascar o milho, uma "esquiladora" para a tosquia de lãs, três "trilladoras" para apartar o trigo, a luzerna e o linho; e, a seguir, os intermináveis depósitos dos produtos habituais do país, -- o milho em pirâmides colossais, o trigo empilhado em sacos, a luzerna e o linho acamados sôbre a lisa sucessão dos mostradores, esperando a secagem definitiva. -- O vélho Saavedra, passando orgulhoso em revista êste formidável organismo industrial, parecia remoçado, ia acumulando detalhes, multiplicava as instruções, fazia pôr a seu tempo cada peça em movimento; extasiava-se e como que se identificava com tôda aquela batida vibrante de luz e de ruídos, com o engrenar suave das rodagens, a galopada arfante dos metais, o alucinado sôpro das turbinas. E então, fatigado a espaços mas não vencido, parava e encolhia os ombros, sorridente:
-- Isto já não são coisas pr'a mim... Mas, que remédio! se êste meu filho de nada quere saber...
-- Eu nunca, papá, poderia substituir-te capazmente, -- advertiu Jorge, num parêntesis hipócrita de modéstia.
Mas logo o pai com carinhoso desdêm:
-- Vós, os rapazes de hoje, não valeis nada!
Porêm a atenção do Silveira fatigava-se e ao seu carácter volteiro e indócil êste rígido e automático aparato industrial interessava-o mediocremente.
Às 5 horas, outra vez no mesmo aconchegado recanto do pátio, reùniam-se a tomar "mate". Desta vez, por uma atenção especial para com o novo hóspede, a tradicional bebida foi servida, não na lisa concha habitual, porêm numa antiga cabacita de prata, vélha não mais de cincoenta anos, modesta data que entretanto, perante o ingénuo critério dêste país nascente, assumia fóros dum raro valor arqueológico. Foi a preciosa peça trazida da "étagère" envidraçada do salão, onde em religioso recato era conservada com outros mimos mais e saùdosas relíquias de família. Era duma cinzeladura rudimentar. O seu redondito bôjo assentava sôbre um tripé de cabeças de grifos estilizadas, e ostentava no anverso, emergindo triunfal dum entrelaçamento gordo de folhagens, o suave escudo argentino. -- Depois de cuidadosamente escaldada, D. Tereza verteu-lhe pelo afunilado gargalo a rica infusão do "mate" a ferver, introduziu-lhe uma cânula tambêm de prata com o fundo em crivo, -- a clássica "bombilla", -- e logo de oferecer obsequiosamente o inédito aparelho ao Silveira, que, na sua titubeante inexperiência de sucção da "bombilla", queimou a língua, apressando-se a passar o bárbaro instrumento à dona da casa. Os circunstantes sorriram ao observar o cómico efeito, por demais esperado, da desastrada iniciação do recêm-vindo. Mas logo se repuseram. E agora a preciosa tacita foi passando de mão em mão, e lábios após lábios foram sucessivamente abocando sem escrúpulo o mesmo tubo aspirador como quem se desobriga dum rito sagrado, num recolhimento quáse solene, num inalterável silêncio, de longe e apenas vagamente cortado pelo mugido das vacas e o balar dos cordeiritos que vinham dos curralões distantes.
A seguir, por uma natural expansão neste ambiente de pacificação cordeal que a familiar cerimónia desdobrára, a bisarmal D. Teresa deu conta do seu piedoso giro de manhã. E naquele bondadoso ar habitual, repousado e manso, convictamente impôs ao marido:
-- Já outro dia to disse, tem paciência... mas há que perdoar a renda a êsse pobre Juan Valério. Que desgraçada gente! Se tu visses...
-- Mais outro? -- balbuciou o vélho Saavedra com fastio.
-- Êle está com um antraz, tolhido, roído de febre... bem sabes.
-- Então não lho queimaram? -- atalhou Jorge, numa ligeira impaciência.
-- Sim, porêm já tarde, infelizmente! Parece que não escapa. Que vai a pobre da mulher fazer?
-- Tem os filhos.
-- Que filhos? Não blasfémes. O mais vélho, depois daquele desastre na via-férrea, ficou sem uma perna. E nem um centavo lhe deram de indemnização. A filha desarvorou com "uno tal por cual"... O mais moço foi de conscrito.
-- Há-de voltar.
-- E enquanto não volta? -- acudiu Célia com carinho.
Seguiu-se uma breve pausa de embaraço. D. Toríbio, agora silencioso, bamboava o busto hesitante, e os seus pequeninos olhos verdes adoçavam, molhavam-se de ternura. Por fim, com maligno sarcasmo, Jorge:
-- Bem, bem, "mamita"... perdôa-me que te diga... mas o certo é que estamos aqui à mercê da ganância de todo o "gaucho vividor". Por êste andar, daqui a pouco seremos nós que teremos que pedir por esmola aos nossos colonos que nos dêem algo com que viver!
E levantou-se sacudidamente.
Um novo silêncio se abriu, arreliativo, apremiante, o qual Jorge aproveitou para senhorear-se do Silveira e levá-lo consigo, atravessando pronto o pátio e logo alcançando a desafogada galeria da entrada, onde êle se atirou aborrecido para uma cadeira de "hamaca" e acendeu um cigarro. Das nuvens grisáceas e rasteiras caíam os primeiros salpicos de água, e o joven Saavedra lamentou que o tempo os "embromase" por aquela forma, impedindo-os de sair, logo no dia da chegada. Lamentou-se igualmente da insuportável monotonia e da extensão sem termo, ali, das noites. Bocejou e alongou preguiceiramente os braços, numa mole distensão de tédio. Mas logo, insinuante, gaiato, aprumando-se e assentando familiar a palma da mão sôbre a coxa do amigo: -- Que não lhe désse cuidado! êle sabia bem como e aonde amenizar um pouco a coisa... Os vélhos recolhiam cedo, ficavam os dois em liberdade; e então nada os impedia de irem por'í onde melhor quadrasse... Tambêm havia meio de "farrear" pelo campo, correndo essa "chinería" em roda. -- E, como antecipado aperitivo, já o inflamado mocetão deblaterava e fazia correr a visão de vários episódios patuscos, ante o ôlho lúbrico do amigo.
À noite, sôbre o jantar, passou o pequeno grupo ao salão de "recibo", -- o primeiro compartimento à esquerda do vestíbulo, na frente da casa. -- Uma arcaica mobília estofada, envôlta em protectoras lonas; fogão de aparatoso friso em escaiola, simulando mármore, com relógio e castiçaes de prata; fronteiro, sôbre o sofá, um grande espelho com a moldura ratada; quadritos a missanga pelas paredes, e, sôbre dois singelos tremós doirados, vasos barôcos de antiga porcelana, com flores de cera sob redomas de vidro. -- Logo de entrada o vélho Saavedra, correndo a um armário e com os olhitos codiciosos, invitou para uma partida de xadrez o Silveira, que declinou com mal dissimulado horror a iminente estopada. Entretanto, D. Teresa vinha abater-se em pêso sôbre o queixoso sofá, que se enrugou, gemendo; e chamava para o "fauteuil" ao lado o hóspede, a interrogá-lo sôbre coisas de Portugal. Da mesma forma, Célia, jucundamente posto agora de parte o seu aspecto bisonho e arisco, tomada de súbita e grata simpatia por êste galhardo advogado, ao almôço, do seu desejo, interpelava-o com piedoso interêsse sôbre os lindos templos que lá devia haver, na sua terra... e preciosíssimas alfaias religiosas, relíquias autênticas, oiros, pratas, pedrarias, magníficos tesouros. -- Desvanecido e importante, o Silveira fazia acenos aprovativos de cabeça: falou na custódia dos Jerónimos, nos retábulos da Madre de Deus, nos paramentos de Mafra, nas riquezas de S. Roque. E íntimamente maravilhava-se daquela sua esporádica explosão de patriótica sciência.
Por seu turno então D. Toríbio, espontâneo, afável, acudindo gostoso à deixa:
-- Ah, não há dúvida, Lisboa é uma linda cidade, e é um admirável povo, o português!
O Silveira soergueu-se e dobrou-se numa lambida mesura. E o bravo pai Saavedra, confirmando:
-- É certo! Os senhores, sonhadores e plácidos como são, teem um grande espírito de iniciativa. Eu sou insuspeito. "Este"... Veja o meu amigo... Eu descendo de espanhóis, tenho algo dêsse sangue impetuoso e ardente da terra que é o símbolo vivo da bravura, o berço esplendente da alegria, da arte e da beleza. Sou um admirador incondicional e formo ainda um rebento distante dessa formidável, cavalheiresca e valente Espanha, pátria do amor, filha do sol, senhora do mar, "nodriza de mundos"! Contudo sou o primeiro a reconhecer, e tenho o maior prazer em dar disso público testemunho, que o progresso social da nação lusitana leva bem um século de dianteira ao dos outros povos ibéricos.
-- Demasiada amabilidade...
-- Quere ver?... Max Nordau tem razão... Ainda durante dois séculos o "muezzin" havia de continuar a evocar os crentes maometanos em Sevilha, em Granada, em Córdoba, quando já o vosso Afonso III repelira dos Algarves o último rei moiro. Meio século antes que Colombo, de país para país correndo, como um mendigo, obtivesse dos reis católicos as caravelas com que veio descobrir a América, já o Infante D. Henrique descobrira as costas de África té muito alêm do Equador. Muito antes que Carlos V levasse a bandeira espanhola para alêm do Mediterrâneo, Portugal conquistava Ceuta. Pombal expulsou de Portugal os jesuítas, quando ainda em Espanha luziriam sinistras por muito tempo as fogueiras dos "autos de fé". Portugal foi dos primeiros países a repudiar a pena de morte, a abolir a escravatura; e últimamente, renegando os vélhos dogmas centralistas de tôda essa Europa rígida e feudal, adiantou-se a formar com a Suíça e a França uma valente trilogia democrática. Não é tudo isto verdade?... Aqui tem, meu caro amigo... "este"... porque eu tanto os aprecio e admiro!
Não foi muito do agrado do Silveira êste fecho revolucionário da apologética parlenda; contudo, como réplica obrigada, espraiou-se êle então em lisongeiros encarecimentos bordados sôbre a formidável exuberância e o vertiginoso progresso «da admirável nação argentina». Entretanto, êsse bom "calavera" de Jorge aproveitára o giro erudito da palestra para escapulir-se. E aí estava agora Célia de novo a contas com o pai, litigiando a favor da sua litúrgica birra. -- Que tinha um nome demasiado profano a "estancia". Era até um repto de orgulho feito ao céu. Forçoso baptizá-la. -- O pai torcia-se contrariado, desfiava perante a piedosa querença da filha todo um rosário de ponderosas objecções, mastigava, opunha-se.
-- Não, filha, que idéa! Bem vês, não pode ser. Sabes que êste grande nome, "Amália", justamente consagrado aqui como em tôda a rèpública, não é o caso dum nome banal, não é uma designação anodina, arbitrária, familiar, pueril, não! Tem a sua santidade tambêm... é um símbolo de dedicação e heroísmo, evoca uma das páginas mais impressionantes da nossa história.
Porêm já mãe e filha, sem darem maior tento à resistência formalista do bom vélho, com cuja doce aquiescência, contavam, afinal, tudo era discutirem agora e esmiuçarem meticulosamente qual dos cerúleos habitantes deveria como futuro patrono da "estancia" merecer-lhes a preferência. E tinham dúvidas, hesitações, receios. -- Talvez a adorável "Virgen del Pilar", duma lenda tam popular e tam poética... Contudo, a "Virgen del Carmen" tinha mais tradição crioula. Ou então seria melhor "San Lorenzo", protector das bôas colheitas. E porque não "Santa Bárbara", advogada contra as tormentas?
Ao que, trocista e afável, o bom vélho Saavedra:
-- "Este"... já agora, p'ra que ninguêm lá no céu fique descontente, chamem-lhe -- "De todos los Santos".
Por fim, a cortar cérce a dificuldade, os três foram unânimes em convir que a "Miquêtas" decidiria.
E sôbre êste ditame conciliador a patriarcal "tertulia" fechou, por aquela noite. D. Teresa ergueu-se pesadamente, com austera gravidade obtemperando -- que já eram as dez passadas... havia que despertar cedo, ali: ela para os seus pobres, o marido para a "peonada" do campo. -- Depois, já fóra, no vestíbulo, e como última das solícitas indicações com que a bondadosa senhora despediu o Silveira, aconselhou com carinho -- que, em suma, a estação já ia avançada... mas em todo o caso, pelo sim, pelo não, que não se esquecesse de cerrar o mosquiteiro.
Neste acolhedor ambiente de límpida cordealidade e benéfico repouso foram decorrendo para o Silveira deliciosamente os dias. Ali êle encontrava uma íntima e perfeita conformidade entre a amiga efusão das almas e o afago tranqùilo das coisas. Embalavam-no na mesma onda de beatitude e carinho, o sorriso afável das figuras e a placidez infinita da paìsagem, -- aqui tam diversa das fragoeiras e montanhosas agruras dos cêrros da sua terra. Tinha uma vida leve, encantadora, fácil, vida de confiança e olvido. E todo êste suave meio, abundante em agrados e repassado de inédito, trazia ao seu ser moral e físico um salutar estímulo.
Assim, logo em cada antemanhã, aí estava êle a cavalo e partia, de ordinário com Jorge, ou com o "mayordomo", a surpreender na sua complexidade pitoresca, na sua poesia sádia e rústica, a labuta áspera do campo. Pelas manhãs limpas e claras, ainda mal o oriente aquecia da carícia auroral do sol, e já êle seguia com algum "capataz" a verificar o estado dos "alambrados", a revizar e contar o gado. Assistia ao apartar das rêses, aprendia a ferrar, a castrar, a "carnear", a "investir", a atirar o laço. Muita vez então êle estacava, e, com mal contida inveja, quedava-se em admirativa contemplação perante a nobre silhueta dalgum "paisano" montado que passava arrogante e viril a aprumar-se e a crescer na lisura uniforme da planície. Encontrava realmente belas, impressivas, soberbas de linha, de ímpeto e de carácter, cada uma destas rudes e íntegras figuras, curtidas pelo ar, tisnadas pelo sol, -- mescla de oiro e bronze, e como o mesmo bronze duras e indobráveis, -- envaginadas toscamente na sua singela blusa e na "bombacha" ou enfiando o "poncho"; ao pescoço, com um nó à frente, o indispensável lenço enrolado; protectoramente a cabeça envôlta nas grandes abas do clássico "chambergo"; do cinturão, sôbre os rins, o inseparável "cuchillo" colgado, e o laço e as "boleadoras" na garupa; as retêsas botas coladas e firmes sôbre os aparatosos estribos, de tábua ou de coiro, profusamente rendados de guarnições de prata. E então, naturalmente, ao vêl-lo assim contemplativo e atento, Jorge orgulhava-se e compartia daquela admiração complacente do amigo. Logo, comprazia-se na exaltada apologia dêsses centauros errantes da planura, completava-lhes a fisionomia moral, enaltecia a sua bravura, a sua generosidade, a sua altivez, o seu desprendimento, o seu desprêzo estóico pelo dinheiro, a sua resignada submissão ao destino. Galopando eram um turbilhão, parados eram estátuas. E acumulava pormenores, desfiava anecdotas. -- Jàmais consentem "que les pisen el poncho". Eram de sua natureza altercadores e brigões, cultivando apaixonadamente, como um "sport", tôdas as várias formas da luta, porêm nunca a sua lisa alma abrigava o rancor e poucos baixavam ao crime. Cada um dêstes bravos senhores do deserto poderá dar um herói, raro um facínora. Uma vez vencedor desinteressa-se pronto do vencido, que desdenhoso se limita, quando muito, a marcar com o estigma cortante dalgum "tajo en el rostro", um simples "barbijo".
Mas, breve, com o glorioso avançar do dia apertava o calor, e então quáse certo era irem os dois amigos demandar por um instante o confortável refúgio de algum dêsses humildes "ranchos" dos colonos agrícolas, sumaríssimas construções de palha e barro, tímidas e míseras palhoças que abrigavam sob o teto, raso e intonso, uma vida tam elementar como as suas paredes eram primitivas. Ausência quáse total de mobília, reduzida a alguns polidos cránios de vaca servindo de assento, e a raros catres ou esteiras sôltas sôbre a terra nua. A alimentação parca e simples, por igual: carne, pão, "mate", açúcar, e mais um pouco de arroz nos dias de festa. Um campo rudimentar de acção e um reduzido vôo de desejos. O miudito espaço fechado por estas ingénuas tócas à flor da terra, parecia entretanto naqueles depressivos momentos, ao quebrantado ânimo dos dois jovens, um delicioso rincão do Paraíso. No que ia tambêm um pouco de sugestivo encómio feito convictamente pelo colono ao próprio ninho.
-- Passa-se aqui melhor que na cidade, senhores... O "rancho" é fresco no verão e quente no inverno.
Na Argentina corre geralmente despreciada e ignorada a obra, sôbre tôdas fecunda, do colono, do emigrante, mercê do anonimato iníquo a que a relega ainda a persistência tenaz da tradição romântica do "gaucho". E contudo, aqui, as flutuações na produção da terra dependem essencialmente e são inseparáveis das vicissitudes da vida do colono estrangeiro, progressivamente vinculado pelo mortificado plasma do próprio suor à mesma terra. E é em primeiro termo à beneficiosa influência e ao pastoso esfôrço dessas protéicas aluviões humanas que êste privilegiado torrão, de flancos sangrantes, deve a maravilha da sua abundância e o milagre da sua riqueza.
Pela tarde, depois de uma breve sésta, novo giro. E, nesta vagabundagem de acaso dos dois amigos, vinham a ser estases de obrigado repouso as várias "pulperias" (casas de venda) com que êles deparavam no caminho, umas rodeadas de meia dúzia de casotas mais, outras singelas e sós aflorando tímidamente, como incrustadas na monotonia imensa da paìsagem. A "pulperia" participa simultâneamente do carácter de taberna, centro de reùnião, estação postal e loja de comércio, -- um comércio sem especialização e sem limite, extravagante e imundo "bric-à-brac" de objectos para todos os usos, de utensílios para tôdas as necessidades, de produtos de todos os países, de farrapos de tôdas as épocas. Na primeira casa dêste género em que o Silveira entrou, surpreendeu-o a confusa variedade, a atropelada profusão e o baralhamento infinito das coisas disparatadas e antitéticas que dêste caótico mostruário formavam o recheio. A um canto, ao lado do mostrador e tomando tôda a parede, havia um desordenado empilhamento de atributos hípicos, -- cabeçadas, rédeas, freios, selins, açoites, -- crestados já uns pelo uso, novinhos em fôlha os outros. Ao lado oposto, era uma bárbara inundação de ferragens de tôda a sorte, de cilindros e novelos de fio de ferro, de fusis e petrechos de caça, ferraduras, martelos, cravos, navalhas, facalhões, tesouras, tudo isto alternado com prateleiras cheias de produtos de drogaria e especialidades farmacêuticas. Ou eram fieiras de lâmpadas de petróleo suspensas sôbre sacos de milho, feijão e arroz; ou ainda, um pouco alêm, os mais tôrpes especimens de calçado vélho pendurados à mistura com résteas de alhos e mólhos de cebolas; ou a tentadora bateria de cervejas, do "brandy", do "whisky", dos licores, nos seus frascos rutilantes; ou, emfim, as cabacitas de "mate" e as peças de algodão de côres berrantes, infalível engôdo às predilecções louçãs das raparigas.
Abancavam os dois amigos a alguma das mesas livres e pediam cerveja, flanqueados de cêrca por outras mesas, de roda das quais pacíficos grupos, de gente rude e simples, bebiam "cana", jogavam as cartas ou concertavam transacções comerciais, dilatadamente. De quando em quando, algum novo freguês entrava, saùdava com gravidade, despedia um vago olhar em tôrno, depois ia sentar-se e ficava-se indefinidamente silencioso, esquecido, quáse imóvel, enrolando o cigarro, antes que exteriorizasse a sua intenção ou manifestasse o seu desejo. Porque o "gaucho" nunca tem pressa. Habituado como êle anda a medir o tempo segundo a declinação do sol, assim perante o seu modo desprendido e calmo de encarar a vida, uma hora a mais ou a menos não conta uma apreciável diferença. A "pulperia" é, para êste dominador lendário da "pampa" argentina, mais que um vicioso centro de atracção: é um inviolável asilo de meditação e de repouso. Casa-se íntimamente com a sua inata altivez, com a sua natureza indolente e agreste, a soberana e apartada independência, o calmo e tépido ambiente dêstes baratos "oasis" industriais, onde êle em pleno olvido dormita e sonha, enquanto, fóra, por essa extensão sem fim, dardeja fogo o gládio em brasa do sol ou fustiga o ar a asa revôlta da tormenta.
Por vezes havia na taberna um guitarrista; e então os preguiceiros "gauchos" desentorpeciam, chalravam mais alto e bebiam mais forte, estimulados pelo zangarreio mole e sensual dos "tristes", "vidalitas" e outras corridas árias crioulas. E tambêm, a espaços, uma que outra vaca ou bezerro, metendo a cabeça, vinham mugir familiarmente à porta; enquanto os gafanhotos e as borboletas a cada momento entram e sáem volitando, zombeteiros e livres, num como que desdêm trocista por êsse mesquinho produto da indústria humana que se permitira a ousadia de vir ali ridículamente enxertar-se na majestade soberana do deserto.
Porêm para o feitio mulherengo e ribaldo do Silveira, as mais saboridas horas nesta folgada digressão campestre, eram sem dúvida as noites. Inalterávelmente Jorge, com o seu faro infalível de vélho garanhão regional e fiel às baixas solicitações do seu instinto, conduzia então o amigo às estações galantes da redondeza, a essas abscônditas e errantes "pulperias" do amor, asquerosas e imundas "madrigueras", cheias de mugre, o ar afrontoso e envenenado, crasso de emanações carnais, nublado de fumo de tabaco, onde sôstros e descompostos grupos de chinas da ínfima espécie se deslocavam nas lúbricas contorsões de algum acanalhado "tango arrabalero", e no mais tôrpe delírio de gestos e visagens porfiavam em inflamar o apetite mórbido dos visitantes, desmanchadas em bailuchos desonestos, abertas em risos que davam tristeza, dobradas em carícias que infundiam asco, sôltas em requebros que faziam mêdo. O Silveira não descia a misturar-se na agitação insalubre do torvelinho; porêm mentalmente embebedava-se na contemplação desta dionisíaca paródia, comprazia-se no exame de tam ignóbil espectáculo. A exsudante coreia animal enardecia-o. Ao passo que o seu amigo Jorge, menos isento e mais frascário, por vezes se emborrachava a perder, apostado no clássico "tomo y obligo" e confundido com a ronda esborifada e bestial do mulherio.
Por fim, andados uns dias mais, o Silveira, reputando-se um esperto conhecedor já da região, emancipou-se. Agradava-lhe agora de preferência, uma ou outra vez, sair êle só e aventurar-se em soltos rumbos pelos dilatados panoramas da redondeza. As fragoeiras qualidades do seu génio requeriam esta expansão libérrima. O aguilhão vago da incerteza era um estímulo mais a acicatar-lhe o vivo apetite do inédito, neste seu investimento solitário do Desconhecido. -- Assim aconteceu que, uma tarde, depois de haver gozado algumas horas andando às inculcas, sòzinho e à tôa, pelos campos, quando pensou em regressar à "estancia", pela primeira vez hesitou na direcção a seguir e começou a dar-se conta, com arreliador desagrado, de que pisava um país ignorado, alheio, hostil... compreendeu que se havia perdido. A sua ilusória presunção de infalível batedor do campo atraiçoára-o. Não sabia onde estava. Debalde interrogava e buscava ansioso profundar o mudo enigma do espaço. Na inquieta demanda do rumo perdido, ensaiava ao acaso veredas e trilhos novos ou fazia longas e fatigantes caminhadas, que, como num circuìto infernal, o traziam invariávelmente ao mesmo ponto de partida. Já a noite vinha próxima e os pontos de referência conhecidos falhavam-lhe. Olhava ao largo e respondia-lhe o desdêm burlão da imensidade. O mesmo dócil animal que êle montava, parecia tomado tambêm, -- caso raro, -- duma indecisão, duma ignorância, dum receio igual, e a cada momento estacava, fitando as orelhas, e num interrogativo ruflar, nervoso e álerte, alongava as narinas fumegantes. -- E não aparecia viv'alma! -- Teriam que ficar p'r'aí assim, Deus sabe como, aonde e por quanto tempo... Nem um ente vivo que os encaminhasse! não apontava um sinal, não alvejava uma casa. Não surdia por acaso algum dêsses vélhos e graves "rastreadores" que, -- êle ouvia contar, -- seria capaz de metê-lo a direito, descobrindo e estremando-lhe o decalque do passo da montada no piso batido e poeirento da planura. Nem tampouco se fazia o milagre de êle encontrar um dêsses subtís "baquianos", inverosímeis topógrafos, que sabem o curso de todos os mananciais, conhecem os vaus de tôdas as ribeiras e são peritos em discernir, um por um, entre milhares de caminhos...
Então, na sua insistente e miúda inquirição do ambiente, o Silveira notou súbito, e ali bem perto, uma sébe de arbustos bravos para lá da qual havia seguramente alguêm. Sim, porque, não obstante a calma paradisíaca do ar, as suas fôlhas tinham róces metálicos, e os ramos abanavam, estalidavam, dobravam-se e erguiam-se em choques rumorejantes. Dirigiu para ali o cavalo e breve distinguiu através da folhagem as indecisas linhas dum grupo: duas figuras, mas evidentemente em briga, porque, ao seu impulso, a trama verde da precária vedação tinha deslocações violentas, crispava-se em bruscos sacudimentos, e de envolta com a sua arrepelada flutuação vinha o resfolegar opressivo e anelante de pessoas que lutam ardidamente... Curioso, o Silveira apeou-se de golpe e deu volta. E viu que um sujo e intonso labroste estrangulava nos braços brutais o corpito espavorido e vibrátil duma joven aldeã, que se debatia exasperadamente, e que aquele animal queria à viva fôrça sujeitar ao cevo do seu desejo.
O coração do Silveira teve uma retracção de generosa angústia, um lume vingador lhe passou diante dos olhos e atirou-se, de salto, contra o cobardíssimo sátiro, aplicando-lhe bruscamente um formidável murro contra a nuca, e logo, cingido cerce com êle, afogando-lhe o pescoço com as mãos tirantes, duras, implacáveis como duas tenalhas de aço. Subjugado pela inopinada e valente agressão, o imundo labrego não teve mais remédio senão deslaçar os braços, largando a presa; e queria voltar-se e defrontar duramente o adversário; porêm antes, cedendo ao garrote aniquilador da asfixia, cambaleou e tombou desfalecido na mesma terra revôlta pela sua bestial investida. Dominador e soberbo, com o revólver pronto assestado, o Silveira ameaçou:
-- Se te mexes, cão! faço-te saltar os miolos.
O contricto matulão, estendido e inerte, esboçou um esgar implorativo, sem palavra ferir, erguendo os braços suplicantes.
Aproveitou o Silveira êste favorável instante para lançar um olhar de piedoso interêsse sôbre essa ignorada flor da selva que êle providencialmente acabava de salvar, a sua pequena desconhecida. E logo o vencido rústico, surpreendendo a momentânea distracção, saltava lésto em pé e pronto a arremeter como um toiro, lívido de raiva, com uns olhos de morte, contra o seu garboso rival, brandindo o traiçoeiro "cuchillo" no braço homicida. Porêm acudiu a tempo, de sua banda, a rapariga, alcançando-o animosa pela espalda e pendurando-se-lhe do braço em pêso, a segurar-lhe o pulso. Foi um momento, o bastante para o Silveira, de revólver sempre assestado, retomar o seu ascendente e obrigar o meliante a largar o ferro. E vá de zurzi-lo depois com o chicote desapiedadamente, cobrindo-o de impropérios, fazendo-o rodopiar sôbre os rins, arregoando-lhe a face, varejando-lhe os quadrís, e cortando-lhe os joelhos. E o confuso marmanjo, outra vez de braços ao alto, não fazia agora mais que recuar, recuar passivamente... té desaparecer por fim na sombra, derreado, aturdido, cego e vagamente ameaçador, rugindo.
Podia agora enfim o Silveira contemplar mais em sossêgo a curiosa figurinha que tinha ali assim a seu lado, retraída e tímida, tôda tremulante e magoada ainda da repelente luta de há pouco. A estúpida scena fôra tam breve que a êle nem déra mais tempo que para fixar-se bem nos gestos e atitudes do seu caviloso contendor. Da indefêsa vítima dêste não chegára a lograr formar-se uma noção definida e clara. Agora, sim... Era uma linda e adorável "morenucha", pouco mais de nubil, delgadita e enxuta, dum moreno de bom tom, um moreno atenuado e lânguido, apenas mais vigorosamente mordido na macieza tostada da nuca, no nankin macerado das olheiras. Calçava uma espécie de tôscas alpercatas brancas e grosseiras meias negras, de lã; sôbre a saia, muito curta, negra e rústica por igual, e em cujos tupidos refêgos a estreiteza anadioménica dos quadrís se perdia inteiramente, abatia-se a fímbria sôlta duma blusa clara, de riscado; e pela colina apolínea dos ombros, firmes e redondos, uma floresta de fartos cabelos negros, naturalmente ondeados, desparramava-se em desalinho. O fresco e apetitoso dasabrochar duma esplêndida flor do campo. Tinha uma expressão singular, entre menineira e selvática, uma como frescura moral de clara fonte. A mais pura linha de contôrno ovalava o seu rosto cheio e singelo, côr de trigo maduro, animado por uma bôca que era um alçapão de desejos, aquecido por uns deliciosos olhos negros, cheios de fogo, olhos que se não fossem tam puros seriam a perdição da sua alma. E a cálida veemência do temperamento, as demasias do sentir latente, a flama espirrante da sua vida interior, denunciava-as bem a tinta mate da epiderme, -- essa côr hepatizada e ardente das loucas depositárias da paixão.
Com paternal carinho o Silveira, adiantando-se, preguntou-lhe -- como tinha sido aquilo? que se havia passado? -- E ela, cândidamente, com um pêso de vergonhoso embaraço a velar-lhe as palavras e a abater-lhe as pálpebras:
-- "Yo andaba buscando una tropilla de cabras que se me ha extraviado, cuando ese gringo"...
-- Pobresita!
A esta sincera exteriorização de piedosa ternura não teve a suave rapariga uma palavra de comentário... porêm a comoção empanou-lhe os olhos e um sôpro de enternecida gratidão lhe fundiu a alma.
-- Como te chamas? -- familiar o Silveira tornou.
-- "Luisa, servidora de Usted".
-- E então agora vais p'r'á tua casa?
-- "Si, pues".
-- Muito distante?
-- "Sesenta cuadras, no más".
-- Se queres, eu te acompanho.
-- "Bueno, señor".
Numa instintiva e afável confiança, ela avançou dois passos, o Silveira tomou-lhe a mão esquiva, e os dois acercaram-se então do cavalo, a que o dono tomou a rédea. E queria que a pequena montasse, e cortêsmente insistia, para furtá-la à fadiga molesta de tam longa caminhada. Porêm a gentil rapariga, tenazmente, escusava-se. -- "Que no, qué esperanza!" -- E por seu turno, desprendida e solícita, teimava em que êle é que tinha de aproveitar a montada. Era o natural... Um senhor da cidade, tam fino, tam delicado! -- Por fim, a rodear amigávelmente a dificuldade, resolveram por mútuo acôrdo seguirem, já agora, ambos a pé. -- Passariam trabalhos iguais... assim, nem um nem outro teriam que dizer. -- E foi como alegremente iniciaram então a penosa jornada, pronta e infantilmente acamaradados, com o cavalo à mão e marchando a par e passo os dois, -- ela mocanqueira e feliz por tam fidalga companhia, vaidoso êle e arrogante por ver-se o depositário ocasional daquele tesouro, -- mano e mano divagando, mansos e graves, na luz indecisa do crepúsculo, pela orla sinuosa dos caminhos.
Nesta hora recolhida e melancólica, já o sol baixava a rasar a purpurina fímbria do horizonte, envolto numa conflagração de nuvens que o toucavam, redondas e infladas, como o penacho dum elmo rutilante. E o seu estirado reflexo incendia o imenso lençol pampeano em fulvas reverberações, como um vasto clarão de incêndio, no mais puro e mordente contraste com a leveza espelhada do céu, infinitamente calmo, fundo e diáfano, cuspido apenas ao alto de breves nuvens policromas. -- Andando sempre, amavelmente o Silveira ensaiava, a curtos intervalos, travar diálogo e entabolar conversa, a fazer um pouco o conhecimento da sua misteriosa companheira. Luísa porêm tinha dificuldade em compreendê-lo, fazia-o a miúdo repetir as frases; e apenas se ela consentia depois em deixar escapar alguns raros, intervalados, curtos e soltos monossílabos, como gotas de água reçumando num subterrâneo. E a seguir logo ela recaía no mesmo mutismo concentrado e apático, fechava-se na sua invariável reserva, na sua tímida esquivança, marchando silenciosa e humilde, ao lado do seu generoso amigo, com a repousada majestade da paìsagem nua do deserto.
Contudo, a poder de paciência e mimo, o Silveira conseguiu inteirar-se de que ela vivia separada e longe do pai e da mãe, por contendas de família; e que trabalhava a jornal, mais um irmão, na fazenda dum dos mais acaudalados chacareiros da redondeza. Igualmente conseguiu torná-la sabedora do motivo da acidental aparição dêle por ali. E então era de ver como a graciosa "morochita" vivamente se interessava. -- Ah, a estancia "Amália"?... Conhecia muito bem: «una ricura! Qué buena señora" a D. Teresa! "Señorita" Célia, "una santa"... Por sorte, era p'r'os mesmos lados da sua chácara. Não havia dúvida, ela lhe ensinaria... E tudo mais que êle quisesse... Não havia por'li assim rincão nem caminho que ela no "supiera al dedillo". Conhecia-os com'os os seus dedos. -- E, dizendo, tornava-se comunicativa, e afogueada, risonha, saltitava de prazer, tôda na vibração exultante de poder ser útil a êste bravo e loução desconhecido a quem ela devia mais que a vida.
Porêm, súbito, a atraente campesina estremeceu, e, dando um salto, atirou-se contra o flanco protector do amigo.
-- "La lechuza! la lechuza!" -- murmurou com supersticioso terror a timorata rapariga.
E apontava um pequeno ponto escuro sôbre um poste telegráfico, à ilharga do caminho.
Ergueu o Silveira, alarmado, na mesma direcção os olhos e pôde distinguir uma pequena ave, de côr àquela hora indecisa, e que lhe pareceu um pouco mais volumosa que os tordos que êle sabia tam bem caçar, na sua terra; porêm com uma grande cabeça chata, solene e doutoral, vagamente humana, e poisado com uma gravidade que lhe dava o mais estranho ar, uma bizarra mescla de ridículo e de mistério. Confrangida e de cabeça baixa, apertando os braços, a pobre Luísa entaramelava, -- que aquilo era uma ave má, agoireira, sinistra! Mal ia aos que "la lechuza" fitava assim... como a ela estava fazendo agora! Era o mais temido avejão do campo, o mensageiro da fatalidade, um prenúncio certo de desgraça. -- Animoso e incrédulo, o Silveira buscava tranqùilizá-la. -- Que não désse fé a essas estúpidas crendices dos vélhos tempos. Quem cria agora em agoiros?... Tonterias! Era um pobre animal inofensivo e simples, como tantos outros. -- Luísa porêm convictamente protestava. -- Que não! todos os dias se estava a ver... Ainda não havia muito tempo que um tio dela caíra e morrêra afogado num pôço, por ir perdido a querer furtar-se à perseguição duma aventesma destas, por uma noite assim... E a amásia última do patrão? E a filhinha do sr. juiz de paz?... Não havia nada peor! Tinha a sua vida cortada...
E, num mixto de ansiedade e horror, de quando em quando ela indagava a presença, pelo espaço, dessa azarenta mancha indecisa... a qual por seu turno, de poste para poste, de bouça para bouça, surda e fantástica, avoejando, implacávelmente os ia seguindo sempre, -- na sua grande cabeça redonda, invariávelmente sôbre os dois apontada e fixa, luzindo ameaçadores e preságos dois pontos fosforecentes.
Sentindo contra o seu flanco a palpitação do corpinho fresco e tremulante da rapariga, o Silveira aquecia. Dirigia-lhe palavras de carinho, cingia-a pelos ombros, afagava-lhe paternalmente o cabelo. Neste delicado momento, senhoreava-o uma ácida perturbação, desdobrava-se-lhe a alma numa inquietante duplicação de sentimentos, participando a um tempo da piedade e do orgulho, da vaidade e do desejo. Quando considerava a justa oportunidade, o êxito feliz da sua cavalheiresca aventura, isento e honesto o coração alargava-se-lhe; e, ao mesmo tempo, por todo o seu ser em alvoroço despertava uma sensação de terna e estranha voluptuosidade, -- o apetite vago de possuir a sua linda e frágil tutelada para continuar a protegê-la...
Assim foram longamente caminhando, na progressiva invasão da tréva e do silêncio, minúsculos e sós os dois na imensidade, alumiados já pelo sonambulismo errante das estrêlas. Por aquela agonia dulcíssima de tarde, o crepúsculo da luz e o crepúsculo da tradição fundiam-se. Era o charro e vazio esbatimento, era a definitiva eliminação de todo êsse mundo de encantadoras e imaginosas ficções que, antes, volitando irisadas e leves, como borboletas, esmaltavam de poesia a esfumada atmosfera dêste país fantasista e ingénuo, -- hoje irremissívelmente dispersas, trituradas e desfeitas pelo industrialismo feroz da hora presente. Não mais serenatas, encantamentos, fadas, demónios surdindo dos poços, virgens penteando-se ao luar, bruxas alucinando donzelas, sereias a adormecer gigantes... No repouso letárgico da planura, o único ruído perceptível era por acaso o rouco soluço de alguma locomotiva, raspando ao longe. E neste apaziguamento sem termo, na absoluta desolação desta soledade infinita, a monotonia sem fim da "pampa" alastrava como uma imensa mortalha, -- era um mar morto num país de olvido.
Haviam atingido o ponto obrigado da separação, o teimo fatal à deliciosa e imprevista caminhada. Foi quando gravemente o Silveira estacou frente à sua linda sócia de jornada, e tomando-lhe as duas mãos, encarando-a bem nos olhos, suasivo e meigo:
-- Então, muito cansada?
-- "No... aunque fuera doble del camino", -- murmurou Luísa docemente.
-- Espero que nos tornaremos a ver...
-- "Quien sabe?" -- devagar ela suspirou, furtando os olhos, com um peganho vago de tristeza.
E dos dois as mãos trémulas e frias deslaçaram-se, houve um mútuo breve acêno de despedida e voltaram-se costas, num eloqùente mutismo, seguindo cada qual o seu caminho.
O Silveira, porêm, tam pronto deu no seu novo rumo os primeiros passos e sentiu que lhe faltava o que quere que fôsse... e contra o seu querer não despegava de pensar, apiedado, quente, com uma devoção enternecida, na misteriosa aparição dessa adorável e paradoxal criatura, tam sobranceira ao mal, tam pura em meio de tanto lôdo, tam segura da sua imunidade, tam resoluta diante do perigo. Quis vê-la uma vez mais.... parou, voltou-se. Mas, impelida por idêntico desejo, ela voltára-se tambêm... E nesta simultânea permuta de olhares, confusa ao ver-se surpreendida, a alvorotada criança deu logo rápida a espalda e disparou, correndo.
VIII
Longe, na "estancia", a extraordinária demora do Silveira tinha tôda a família Saavedra em cuidado. Já eram as 9 horas passadas e ninguêm pensava em comer, polarizada e anciosa como todos tinham a atenção no pávido receio de que ao seu simpático hóspede houvesse sucedido alguma coisa... A conjurar os maus fados, a mística Célia não cessava de marmotar íntimamente rosários sôbre rosários de intercessoras preces. E já o irmão havia feito convocar uma dúzia de peões, para que montassem pronto a cavalo e batessem de roda os caminhos, quando finalmente, açodado e ofegante, o Silveira apareceu. Entre fatigado e confuso, desfazendo-se em implorativas frases, em instantes justificações, em escusas humildes, contou então à mesa a sua romanesca aventura. O pequeno círculo amigo escutava-o num pique de intêresse crescente, que subiu de ponto té assumir os contornos duma enternecida piedade, quando êle, tendo anotado por uma sacudida mímica a rápida e sumária exposição da luta, se comprazia depois, turbado e quente, na sentida descrição da sua pequena protegida. Então os aplausos choveram claros, abundantes, envolvendo o destemido galã no mais propício ambiente de favor, de agrado, de entusiasmo. -- Uma acção de cavalheiro! Parecia mandado pela Providência ali... Fôra lindo! -- E com uns grandes olhos pezarosos, as duas senhoras: -- Pobre "chica"! essa... andar assim exposta... E é como muitos males acontecem... por'mor da necessidade, tantas vezes! -- Sómente Jorge, fátuo e incrédulo, punha neste ingénuo círculo a nota discordante. -- "Qué chica"! que perigos, que necessidades! "Pura parada, zonceras, bromas" ... Fôra um caso trivial aquilo. Êle estava farto de conhecer essas falsas virtudes do campo: eram umas sabidonas, umas impostoras, umas ratas sábias da moralidade, réles virgens de contrabando. -- E como, santamente indignada, a irmã protestasse, com arrogante scepticismo, num risinho chocarreiro o impertérrito censor desafiava: -- Mandassem-na p'ra êle, que logo a desmascararia!
No dia seguinte, de manhã, correio. Pai Saavedra aguardava com impaciência os jornais, que deviam já trazer o resultado das eleições em Buenos-Aires. Confirmava-se a vitória dos socialistas. E desgostado o bom vélho, depois de lêr os nomes dos novos deputados e a crescida cifra que haviam alcançado no sufrágio popular, disse para o filho e o hóspede, enquanto depunha as lunetas, abanando a cabeça com tristeza:
-- Acho um mau sintoma... Isto é um contrasenso, um absurdo, fértil em resultados negativos que breve vão dar o seu pernicioso fruto, hão-de ver... Não faz sentido, não se compreende: uma sociedade minada pelo socialismo e tôda regida ainda por leis góticas e romanas.
Esperava tambêm notícias da família, de Paris, que havia já tempos que não vinham. E numa piedosa tristeza, encolhendo os ombros:
-- Aquele meu neto! Só escreve quando precisa de dinheiro.
Igualmente o Silveira havia recebido correspondência da Europa, e que de Buenos-Aires obsequiosamente lhe remeteu o Azeredo. Primeiro, largas notícias dos seus primos de Tourais, informando-o que aquilo por'li ia mal... o Douro estava descontente. O vinho todo nas adegas, os preços arrastados e mesmo assim ninguêm comprava. Efeito em bôa parte da protecção escandalosa que o govêrno da Rèpública continuava dispensando aos vinhos do sul, que pelo Pôrto e Gaia entravam descaradamente. E que os lavradores estavam furiosos, os jornaleiros com fome, os povos na miséria. A continuarem assim as coisas, muito sangue ia correr! Falava-se em revolução, e, em último caso, o Norte saberia bem emancipar-se políticamente dêsses soberbos e egoístas mandões de Lisboa! -- Todo êste inflamado rol de ameaças o Silveira leu breve e distraídamente, sem dar ao assunto maior atenção, como se se tratasse de remotas coisas passadas nalgum país desconhecido. Tinha agora uma carta do seu irmão Bernardo. Lamuriava a sua falta de trabalho, a ignorância rotineira dos lavradores, a descrença e a impiedade corrompendo tudo... e pedia-lhe dinheiro. Soltou-a das mãos com indiferença. A seguir, outra carta. E êle conhecia bem esta letrinha tortuosa e miúda, traslado flagrante do carácter mimalheiro e vibrátil da sua olvidada noiva. -- Umas dúzias de linhas lacrimosas, desgrenhadas, lúgubres... bagoadas de nénias e lamentos, amargas recriminações líricamente contornando, como lianas de queixumes, todo um florilégio veemente de paixão. E exprobrava ao seu ingrato prometido essa evasiva hipócrita da «sua dignidade em briga com o seu amor»... e que tal amor por ela nunca êle sentira... por isso que o verdadeiro amor é um sentimento exclusivo, dominador absoluto, que com nenhum outro se compara, de nenhum pode aceitar limitações nem sofrer competências. Vinham ainda solenes protestos duma vida tôda de isolamento, de abstenção e renúncia, té que o seu amado voltasse. Aludia-se vagamente ao suicídio... -- Porêm, ainda na mesma alheada e fria disposição de ânimo, a atenção do Silveira correu ligeira sôbre a enternecida página, desviando logo a vista indiferente e arrojando-a ao lado com tédio.
Agora, um exemplar de "La Razón", de Buenos-Aires, com um longo artigo marcado a lápis azul e um bilhetito dentro. Era daquele seu peripatético sócio de viagem, o Ramón Alvarez, que com desbordante ufania lhe noticiava estar contratado para escrever nesse diário umas crónicas literárias semanais que firmaria com o seu pseudónimo de guerra, -- "Carrasco Bossa". E sessenta "nacionaes" por cada uma. Bem bom! Aí ia a primeira. -- O Silveira nem uma linha leu sequér; e vá de tomar por fim a última carta, -- esta sim! que o fez dobrar-se, nuns grandes olhos espectantes, e foi logo aberta com o maior interêsse. Vinha de Espanha, tinha o carimbo de Orense. Era um dos seus amigos da fracassada conspirata monárquica a participar-lhe -- que as coisas iam bem agora... ali trabalhava-se mais à vontade, as autoridades faziam a vista grossa, êles tinham armamento, dinheiro, quantidade de gente instruida. Desta vez seria a valer! E que estava por pouco êsse pesadelo tôrpe da Rèpública! -- E na sua confiada antevisão do termo breve do seu exílio, do advento vingador do seu triunfo, o Silveira lia e relia com demorado calor o sugerente papel acariciado entre os dedos, e um frémito de incontido júbilo vinha bailar-lhe na aresta dos lábios trémulos.
Mas seguramente aquele era o dia das novidades, porque à hora do "mate" um inesperado telegrama chegou, dirigido a D. Teresa. -- Era Maria Mercedes que anunciava a sua visita, para a manhã seguinte. -- Foi todo um gáudio, um encanto, um alvorôço, uma festa. Ao mágico influxo da prazenteira notícia, a arrastada e monótona vida habitual da "estancia" ganhou alento, alma, calor, transfigurou-se. Já um sôpro de cordial eflúvio vibratilizava o ambiente, e as fisionomias tinham um outro ar, as coisas brilhavam duma claridade nova. E tôda a tarde, depois, para êsses reservados aposentos do andar superior um carinhoso movimento convergiu, de solícitos mimos, previsões, atenções, cuidados. Os serviçaes arrumavam, espanavam, varriam, traziam lençóis e toalhas, faziam as camas; Célia foi incansável na condução de flores, em sábias instruções ao pessoal da cozinha; e de sua banda os dois Saavedras, pai e filho, à porfia volviam a desfiar, cada um por seu modo, os singulares atributos e as adoráveis perfeições da nova hóspeda, perante a picante emoção crescente do Silveira. À noite discutiu-se quem havia de ir à estação recebê-la. Célia e Jorge estavam indicados; porêm o Silveira desejaria acompanhá-los tambêm, e a dúvida era se teria logar. Porque a "Miquêtas" trazia seguramente a inseparável Dorita mail'a "niñera": eram assim ao todo seis pessoas, e o auto não comportava mais que cinco. Contudo, a momentânea dificuldade compôs-se pela desprendida insistência de Jorge -- em que seguiria ao lado do "chauffeur".
Na manhã seguinte, à hora justa do horário, o trem de ferro parava em Chascomús. E na obscura mancha "gris" dos raros viandantes que saltaram, vá de recortar-se, num forte e eurítmico destaque, a esbelta silhuêta duma mulher redondita e grande, os olhos negros, loira, aparatosa, avançando com lentidão, de cabeça erguida e sorriso aberto, na flexuosa molenta dos movimentos revelando todo um contôrno de divindade pagã, e ora amplificada em ademanes de raínha, ora quebrada em mimalhices de criança. Vestia um singelo traje "tailleur", de miudito xadrez preto e branco, gorro de fazenda e côr igual, um tenuíssimo véu de "foulard", preso em duas largas pontas sob a nuca, e luva e sapato branco. Trazia ao cólo um delicioso cãosito, de focinho afusado, os olhos como contas de azeviche e o friorento corpinho por completo forrado no esplêndido "manchon" natural do seu longo pêlo, côr de rato. Seguia-a uma criadita delgada e joven, vestida de negro, com uma menina dos seus 10 anos, pálida e frágil, pela mão.
Logo Célia e Jorge correram direitos a saùdá-la, e depois das primeiras acolhedoras demonstrações fizeram-lhe a apresentação amável do Silveira que Maria Mercedes acolheu com distraída indiferença. Poucos minutos andados, instalavam-se todos no auto; no logar de honra, é de saber, a formosa viúva, com um banquinho puxado aos pés e logo uma fôfa almofada trazida para sob a espalda; depois, ao lado, a pequena Dorita e Célia; e na frente, de costas ao "chauffeur", a "niñera" mail'o Silveira, que gentilmente Jorge obrigou a tomar assento junto e "vis-à-vis" da sua tam encomiada prima. Breve, e uma vez o auto em marcha, o diálogo abriu-se, animado e impressivo, todo neste cortado e ávido travamento de monossílabos em girândolas, curtas frases sibilantes, simultâneas e bruscas exclamações, atoadas perguntas sem resposta e relâmpagos de inquirições em suspenso, que caracterizam, de ordinário o primeiro contacto afectivo de pessoas íntimas, há muito separadas pelo tempo ou a distância. Maria Mercedes, naturalmente, dirigia-se de preferência a Célia e quando muito, uma que outra vez, ao primo, não se dando conta absolutamente para nada da presença do Silveira, que frente a ela seguia apagado e mudo, numa vaga humilhação, o rosto invariávelmente paresiado numa lôrpa expressão de convencional agrado.
Vieram primeiro solícitas indagações sôbre a preciosa saúde dos tios Saavedras; e como corria o tempo na "estancia", a peonada, as flores, a vizinhança, as colheitas. Depois, a maligna coscovilhice habitual sôbre o mundo imenso das amigas. Uma viperina reportagem verbal que fazia o regalo do feitio burlão de Jorge e com que os mesmos piedosos escrúpulos da irmã gostosamente se acomodavam. -- Trazia-lhes um grande "bouquet" de novidades, um punhado de revelações inéditas, imprevistas... Incrível! no breve espaço de dois meses, que de coisas entre trágicas e patuscas, se haviam passado. E que imaginassem... A Pilarita Flores, sempre era certo! rompera o casamento... um compromisso tam antigo... e tam a fundo. E depois do que se dizia! Agora o noivo, furioso, ia-se fartando de dar à língua e o mal não era senão p'ra ela. O puro do escândalo! Porêm outra melhor: aquela sonsa da Marta Wilkinson, a casada, sabiam?... sempre afinal deixou o marido. Tendo um filhito de seis anos! onde é que se viu isto? E tudo p'ra juntar-se com êsse "farabute" de Sottardo... ordinário, feio, pobre, um réles aventureiro. Fugiram p'r'a Europa, crê-se; enquanto o marido, deixando o filhito à avó, se foi p'ra Córdoba esconder a vergonha. Porêm tam descarados os dois, que, antes de abalarem, ainda estiveram no "Hotel Majestic" uns quinze dias, sem recato, sem mêdo, sem pudor nenhum, fazendo público alarde da sua revoltante mancebia... Mas pelos modos aquela gentinha Wilkinson era uma bem triste família! A outra irmã de Marta, a mais nova, a morfinómana, lá estava no sanatório de Rivadávia... Apenas dezanove anos e doida de todo!
-- Uma família "cursi!" -- sentenceou Jorge com enfado.
E a prima, seguindo árdidamente o seu implacável relatório, acrescentava, -- que sempre se confirmavam as escapadas furtivas da mulher do Santelmo Martinez à "garçonnière" do Avellanoso. E que, pelos modos, no "hogar" sem mácula dos Perez se descobrira "recién" um par de ilegitimos "polluelos"...
-- Perdida gente! -- lastimou Célia num compungido suspiro, baixando com beata compunção os olhos.
-- Agora quanto a pequenas notas de ridículo, -- continuou a viúva, mudando de tom, num ar mais ligeiro e mais facêto, -- tenho tambêm uma cabazada cheia. Ai! se fôsse a desfiá-las tôdas... Basta só que vos diga: essa impostora da Anita Castex há mais dum ano que não paga à modista, porêm manda p'ra lá as amigas tôdas; as tolêtas das Molinas, apertadas pelo côbro de contas que lhes vieram da Europa, tiveram que vender o melhor das jóias e da mobília; o mais assim. -- E ao cabo dêste regalado "raid" pelos meandrosos domínios da má-lingua, a aparatosa viúva balbuciou com ar enjoado: -- Mas, em suma, sejamos tolerantes, deixar lá... -- E logo, num imperceptível bocejo, com uma adorável depressão de fadiga: -- Mas, ó meu Deus! esta horrível caminhada não tem fim. Sinto-me fatigada, sabem?
-- Como fatigada, "ché?" -- levemente trocista acudiu Jorge, -- por uma viagem tam curta? Uma criatura que anda sempre dum lado p'r'o outro...
-- Tambêm é verdade, sim, viajo muito. -- E com um requebrado suspiro: -- Ainda é a melhor maneira de iludir a triste vacuìdade da minha vida.
Durante tôda essa deliciada sarabanda de sociais mexericos, continuára a marcar zero para a assistência aquele anonimato humilhante do Silveira. Debalde êle a quando a quando demandava, a que lhe désse importância e valor, o generoso amparo da inocência, nalgum implorativo olhar despedido com um sorriso a Dorita, a qual, tôda ouvidos às perversas revelações da viúva, invariávelmente lhe voltava o rosto enfastiado. Lembrou-se o pobre então, como último recurso, da bondade infinita dos cães... e tratava, com timidez, de interessar em seu favor a enternecida atenção do lindo animalito ali enovelado diante dêle, mirando-o com familiaridade, pedindo-lhe a patita, esboçando no ar com a mão em concha vagos gestos de carinho.
Bateu certo, desta vez, porque Maria Mercedes, sensível a êsse timorato ensaio de irracional galanteio, já condescendia em envolver a figura suplicante do Silveira no amavioso círculo da sua atenção e dos seus conceitos. E coquetona e lânguida, um pouco teatral, continuava:
-- Pareço alegre, muita vez... é certo. Das minhas "abrumadoras" crises de desânimo desperto súbito, e esqueço-me de mim mesma a inventar movimento, a organizar festas, diversões, prazeres... Oh, mas tudo puro engano! Não são coisas que brotem cá de dentro. É a maneira mundana de me aturdir... de iludir êste afrontoso tédio do meu viver, entre sentimentos que me enganam e pensamentos que me aborrecem.
E agora, num atencioso e directo relancear de olhos ao Silveira, com familiar singeleza:
-- Mas eu sou uma criatura feita de contradições... não faça caso do que eu digo.
Porêm o extático Silveira nem a ouvira, todo preso e incendido na devoradora contemplação daqueles grandes e divinos olhos, que êle agora pela primeira vez surpreendeu em tôda a plenitude dos seus belos traços fulgurantes... uns olhos clássicamente distanciados, negros, profundos, e que eram como um ardente céu estival: com relâmpagos e sem nuvens.
Ao tempo, do assento da frente, Jorge debruçava-se, torcendo a espalda, para a prima, e ligeiramente irónico, apontando o cãosito:
-- E que nova raridade é essa agora?
-- Ah, e bem raridade, "ya lo creo"! -- logo a viúva contestou, fazendo de agastada. -- "No lo diga Usted por broma.". -- E com intimativa: -- É um autêntico "Pomeranian". Talvez não haja mais quatro em todo o mundo! -- Passou a mão caridosamente pelo felpudo cêrro do animalito. -- Meu querido "Riddle, verdad"?... -- Depois outra vez para Jorge, naturalmente: -- Comprei-o agora, há meses, na minha passagem por Boston.
-- Muito caro?
-- Cinco mil "dollars".
-- Que coragem!
-- Ah, mas fui prática... -- apressou-se em aclarar com ladina expressão Maria Mercedes. -- A emprêsa que mo vendeu, segurou-me ao mesmo tempo a vida dêle em igual quantia, por dez anos.
E já ela novamente, com amável atenção para o Silveira:
-- E, diga-me, meu caro, há quanto tempo se encontra na Argentina?
-- Há apenas dias.
-- E que impressões tem?
-- Oh, as melhores do mundo, minha senhora! É um país encantador.
-- Cale-se! cale-se!
-- E porque hei-de eu calar-me, se digo a verdade?... se eu não vejo por tôda a parte senão a mais deslumbradora e magnífica expansão de cultura, de actividade, de progresso, de abundância e de beleza?
-- Mau! mau! -- tornou graciosa a viúva a atalhar, erguendo o braço com enfado, fransindo o nariz com tédio. -- Aí temos nós que escutar uma vez mais êsse hipócrita e estafado "cliché" de quantos génios de exportação, eméritos vividores e fracassados sociólogos, nos visitam.
-- São espécies zoológicas a que eu me orgulho de não pertencer.
-- Faço-lhe essa justiça. Mas por isso mesmo lhe peço que, pelo amor de Deus! não me continue nesse tom incondicionalmente bajulador, que, à força de falso e gasto, em vez de nos desvanecer, nos irrita e nos desgosta... Busque antes ver as coisas como elas são realmente. Fale-nos da pobreza da nossa paìsagem, da monotonia e solidão do nosso campo, do nosso feitio desbaratador e indolente, da nossa vaidade insolente de "parvenus", da nossa penúria de inventiva, a nossa fatuìdade, a nossa ignorância... a mal alinhavada "pastiche" da civilização europeia a que em última análise se reduz tudo isto.
-- Como? como?... -- acudiu Jorge, voltando-se brusco, num vivo rebate de orgulho, visivelmente contrariado.
-- Parece-me severo em demasia o quadro, -- urbanamente entendeu o Silveira dever contestar. -- O que aí vai, minha senhora!
-- Ó prima! isso tambêm agora... -- ao mesmo tempo protestava Célia com indignação.
Porêm de sua banda a viúva, serêna, imperturbável, e seguindo na solícita catequese do Silveira:
-- É que eu desejo que venhamos a ser dois bons amigos, e p'ra isso, condição imprescindível, terá que ser sempre franco comigo, há-de ter opiniões suas, pintar-me os homens e as coisas sinceramente. Terá que ser, sobretudo, original... Não lhe quero ouvir baboseiras.
Semierguido e dobrado numa vénia galante, exultante de prazer, com o seu mais fino sorriso o Silveira aventurou:
-- Original?... Numa coisa seguramente eu não poderei sê-lo, minha senhora...
-- E então?
-- Na incondicional admiração por si.
Visívelmente lisonjeada, Maria Mercedes cambiou com a prima um expressivo olhar de agrado; enquanto, num risinho mordaz, o irmão:
-- Sempre galantes êstes portugueses.
-- Aprenda, aprenda...
-- Ora! vélhos modismos piégas de há cem anos... -- logo o moço argentino ripostou com desdêm; e com desenvolta petulância rematou: -- E qual a mulher que os merece?
Nesta sôlta e frívola chalra foram rápido consumindo o tempo; a termos que já em breve, como de improviso, vinha cortar-se-lhes na frente, próxima e amiga na infinita rasoira semsabor do horizonte, a torcida e rugosa carcassa do vélho "ombu" da "estancia". Pronto o auto parava junto ao gasto portão da entrada, onde, comovidamente acudindo, os dois vélhos Saavedras fizeram à sua hóspeda dilectíssima a mais efusiva e carinhosa acolhida. Não faltaram cá fóra os curiosos; bem como dentro, ao longo do jardim e seguindo pelo vestíbulo e pelo "patio", o grosso dos serventuários e peões da casa, alviçareiros e contentes, cerimoniosamente alinhados. E por todo êsse alvoroçado cortejo Maria Mercedes passou num arrastamento de importância, meiga e solene, devagar, entornando graças, dadivando sorrisos, naquele seu ar a um tempo menineiro e senhoril, com aquele precioso dom de atracção a distância de que ela tinha o segrêdo.
Todo o almôço foi um encanto; e no seguimento festivo da tarde, depois, aí vinha uma incessante, interminável romaria de bons "paisanos" dos arredores, por onde correra boato da chegada da sua «grande e formosa amiga», e que enternecidamente lhe traziam a homenagem das suas saùdações humildes, concretamente afirmadas por adoráveis oferendas de "pan dulce", ovos, mel, "biscochuelos", cabritos, leitões, aves e flores. Sôbre o comer, à noite, naquele repousado salão da frente, recobrou desusada animação a familiar tertúlia. Nem D. Toríbio pensou no derivativo soporífero do xadrez, nem tam pouco ao filho acudiu o emancipador recurso de alguma das insalubres "juergas" nocturnas. Todos se sentiam bem, deliciadamente presos na atraente e dominadora presença de Maria Mercedes, a qual para o jantar fizera grande "toilette", -- com a farta e ondeada maranha do seu cabelo fulvo contornando-lhe a primor as têmporas, e contra a nuca aplicada e erguida em roscas petulantes; e aberto no mais indiscreto decote o ligeiro corpinho, de musselina negra com vidrilhos, que deixava livre o colo, os braços e as espáduas, sôbre cuja redonda nudez uma levíssima "écharpe" sôlta, e negra tambêm, movida ao artificioso capricho das mãos da viúva, realizava sua tentadora gimnástica de pecado... ao embevecido Silveira permitindo surpreender, nos deslumbradores claros dessa mímica perversa, a fluida solidez dos músculos escorregando, como numa baínha de sêda, sob a quente alvura da pele, suavemente... E quando não era a carícia ateniense do gesto, era a graça mórbida das atitudes, era a iluminada vivacidade da expressão, o enigmático ninho de promessas da bôca suculenta, a espiritual malícia dos olhos grandes e profundos, despedindo misteriosas flechas de fogo, que, quando as pálpebras baixavam, parecia que se partiam na aresta sensual das longas pestanas negras.
A pouco de entrarem no salão, a linda e aparatosa viúva, sentindo-se o alvo comovente das atenções, com marcada complacência arrastou uns poucos passos lânguidos, teatralmente, poisando de importância; e logo de arrojar-se com indolência sôbre um "fauteuil", e num ar mimalheiro e infantil, a cabeça froixa, os olhos vagos, achegando ao flanco as almofadas:
-- Ai, mas que bem que eu me sinto aqui! entre pessoas sinceramente amigas, sem fingimentos, sem peias... e sem cuidados. Como eu vou poder descansar!
-- Ah! ah! Mas descansar de quê?... -- cascalhou Jorge familiarmente.
-- Com a vida que levas... -- ainda a irmã dêste comentou, sorrindo.
-- O quê? vocês pensam que eu na cidade não faço nada?
-- Claro! Uma perfeita "haragana".
-- Pois enganam-se! Às 7 da manhã já eu estou a pé. -- E ante o sorriso incrédulo da assistência confirmou com ardor: -- Palavra de honra! Apesar de ter confiança na "ama de llaves", passo logo revista à casa tôda. Depois, às 8, vem a massagista; ás 9 a cabeleireira e a manicura; às 10 tenho o "desayuno" e cuido um pouco da "nena". A seguir, até ao almôço, encosto-me um pouco, isso sim... É uma grande regra de higiene: conserva o bom parecer e evita a magreza. Mas durante o resto do dia, naturalmente, depois, é o meu procurador, quantidade de coisas da beneficência e uma séca de voltas, compras e visitas. De sorte que assim à noite, quando acabo de comer, sinto-me fatigada... e aí pelas 10 ou 10 e meia, quáse invariávelmente, deito-me. Já vêem...
-- Com efeito! -- encareceu D. Teresa com agrado.
-- Deito-me logo, é certo. Embora às vezes tenha convidados, que todavia ficam e me desculpam. -- E na espontânea demanda do infalível testemunho da sua inocente afilhadita, que acabava de entrar, Maria Mercedes rematou: -- Dorita, não é verdade?
A precoce e débil criança dobrou numa ponderosa afirmação a cabeça; e a seguir, abandonando a boneca sôbre uma cadeira, avançou vagarosamente a acercar-se da viúva, a cujo lado, tomando-lhe com ternura a mão, se enovelou, já com um ar composto e grave de pessoa adulta, -- o seu rosto sério e os pequeninos olhos claros, muito abertos, revelando tôda a acuìdade mordente da atenção para apreender e quanto possível assimilar, no enunciado e na intenção, o desenho sinuoso do diálogo.
Entretanto, com burlona ironia tornou Jorge:
-- Pois aqui, querida primita, já sabes... há tambêm que trabalhar.
-- Pronto! -- rompeu, saltando de ímpeto, a viúva. -- Teem programa?
-- Esperávamos por ti, -- aclarou D. Teresa.
-- O teu "veredictum" é essencial, -- completou pai Saavedra com ternura.
-- Bem, pois vamos então a ver... Já pensaram em algo?
De roda abriu-se um claro de silêncio hesitante, e houve um tiroteio mudo de olhares de incerteza. Apenas Célia ousou então docemente insinuar:
-- Há aí um assunto, de magna importância, quanto a mim... Porêm todos me "hacen burla", "me pelean", opõem-se...
E aquela esquiva e insípida figura desfiou com vivacidade crescente, perante a atenção tolerante da prima, tôda essa magoada história do seu desgôsto pelo industrialismo, a irreligiosidade, a chateza, a afrontosa materialidade pagã que pesava sôbre a "estancia"; e como era vivo, alado e ardente o seu desejo de ver por fim êste adorado ninho da família posto sob a invocação duma santa padroeira qualquer, ao místico abrigo tutelar da divindade. E ainda, por último, esboçou e enalteceu, como o seu único apoio, a poética idéa do Silveira.
-- Ah, mas eu acho óptimo! -- acudiu com palpitante animação Maria Mercedes, avançando o busto com graça e juntando e batendo as mãos, crêspos de decisão os lábios, os grandes olhos faiscando. -- É certo, sim... Abundo no pensamento do sr. Silveira. Excelente, não há dúvida... Tens razão, Célia! Tens-me a teu lado.
Num perturbador lume de vaidade, logo o Silveira, dobrado em afável reverência:
-- Sinto-me deveras ufano por essa sua espontânea conformidade de pensar, minha senhora.
-- Ah, mas não vá desvanecer-se demasiado, meu caro amigo! A minha conformidade não é completa. Um ponto há em que eu peço licença para divergir...
-- E então?
-- É nessa coisa gasta e trivial de azulejos pelas paredes e retábulos pelas esquinas, -- no seu expressivo fransir do nariz respondeu morosa a viúva: -- Nada, nada... temos muito melhor! -- E ante a suspensa atenção do pequeno grupo, sacudindo iluminada a cabeça, batendo com fôrça no joelho: -- A santa imagem propiciatória dêste logar hemos de a colocar lá fóra, no jardim, debaixo do vélho "ombú".
Um eloqùente alarme de protesto, um calafrio de indignado horror, acolheu a herética audácia da proposta.
-- Ó "Miquêtas", por favor! -- censurou, a primeira, D. Tereza.
-- Uma árvore condenada, ôca, podrida, inútil... -- comentou o filho com asco. -- Um símbolo de mau agoiro.
-- Por isso mesmo!
-- A que extremos o prurido da originalidade arrasta por vezes esta minha bôa sobrinha! -- com o seu ar mais bonacheirão interveio, sorridente, D. Toríbio, e conciliadoramente: -- "Este"... Pois tu não conheces o vélho adágio crioulo: «rancho con ombú acaba en tapera?"... Sabes muito bem que a "gauchada" odeia, por tradição e por instinto, quantos raros exemplares por'í ainda acaso existem dêste torturado e solitário representante da nossa grande flora secular. Êles teem o "ombú" por uma árvore presága, abominável, a cuja sombra sinistra parecem germinar e medrar a ruína, a desgraça e tantas vezes o crime.
-- Uma crendice estúpida.
-- Que em todo o caso existe. Quantas dessas vélhas árvores o nosso "paisano" pode impunemente alcançar, sabes que as abate logo a machado.
-- E fazem muito bem! -- implicativo tornou Jorge. -- Se é lenha que nem para o fogo lhes serve!
-- Essa antiga sentinela do nosso jardim deve seguramente a vida ao seu resguardo, -- continuou afávelmente D. Toríbio; e com suasiva mansidão para a sobrinha: -- De sorte que... "este"... já vês, se nós vamos agora a pretender nobilitar, a deificar em certo modo, pela tua peregrina idéa, êsse precário foragido do deserto, muito possível é que então a bruta peonada dos arredores, conseqùente no seu ódio medular, seja capaz de, por extensão, tomar tambêm em aversão toda a "estancia". Vê lá...
-- Certo, certo... -- cabecearam Célia e a mãe, num passivo assentimento.
Porêm, serena e insensível, sem se desconcertar, no mesmo convicto ardor teimou a viúva:
-- Pelo contrário!... Essa pobre gente pensa mal? é vítima inconsciente de íniquos preconceitos e crendices absurdas? Pois o nosso dever é ensiná-los, educá-los, esclarecê-los... varrer-lhes o intelecto e aclarar-lhes a consciência.
-- Estás bem aviada!
-- Claro que sim! Temos a santa obrigação de abrir-lhes os olhos, de fazer-lhes bem sentir tôda a cega extensão da sua ignorância e o bárbaro desvio do seu êrro.
-- Querem lá saber!
-- Em vez de ser um tema de abominação, o vélho "ombú" argentino merece bem ser antes um objecto de carinho. Há que reabilitar êsse veterano simpático do nosso campo, essa relíquia veneranda do passado, testemunha muda e inocente de tanto sucesso lendário...
-- Eu logo vi... -- atalhou Jorge com o seu incorrigível ar trocista. -- Está sabido. Todos os "ombús" são lendáríos.
-- Quando não são históricos! -- corrigiu pronto, com firme severidade, a viúva. E posta súbito em pé, sempre com a mesma incisiva veemência levando de vencida a já froixa resistência do auditório: -- Ora imaginem! Improvisa-se uma peanha, em cima um nicho a carácter, instala-se dentro o santo ou a santa... e aí temos nós o pretexto para uma interessante festa nocturna. Verão o efeito. Cai aí tudo... vai ser lindo!
E como de roda todos, vagamente sorrindo, se fechassem num silêncio que era uma aquiescência, ela comandou com alegria:
-- Bem! bem! está combinado. Daqui não há que sair. Amanhã veremos os detalhes... -- E rematou com decisão, segura já do seu triunfo: -- Meus caros amigos, não há tempo a perder! porque a minha demora aqui vai ser curta.
Uma aluvião de subitâneos protestos choveu da assistência, entre os quais era de notar a calorosa insistência do Silveira. -- Que não! não podia ser! tinha por fôrça que demorar-se. Adorada por todos como ela era ali assim! O contrário seria uma crueldade, seria um crime. Nada! não a deixariam partir... -- Mas a despeito de todo êste adulador incenso, a mimada viúva, com bem dissimulado desgôsto, aventurou -- que, emfim, era forçoso... A estação ia adiantada, e ela tinha ainda forçosamente que visitar Córdoba, Montevideo, Bahia-Blanca, Mar del Plata. -- E bruscamente, passando a recostar-se numa convidativa e ampla "dormeuse", frente a uma janela aberta, e agitando a mão com angústia, queixou-se de que sentia imenso calor e tinha sêde... queria beber alguma coisa.
Logo de roda o pequeno círculo em solícito movimento. Dorita partiu a correr, a buscar um leque; Jorge improvisou uma ventarola de papel; pai Saavedra foi estabelecer corrente de ar, abrindo a porta, enquanto o Silveira abria tambêm mais a janela; e D. Teresa e a filha, açodadas e inquietas, batiam, acamavam o estôfo da "dormeuse", ageitavam a cabeceira, arredavam as almofadas. Depois, mal o criado de mesa entrava, trazendo uma bandeja com refrescos, e já era a imediata presença da "niñera" que a insatisfeita viúva imperiosamente reclamava, para que lhe trouxesse o seu "little Riddle", que ela sôfregamente aninhou no colo, deliciada a coçar-lhe a nuca e a dar-lhe guloseimas.
Ainda a conversa se prolongou por um tempo mais, bordada sôbre coisas vazias de interêsse, a termos que por fim Maria Mercedes, erguendo-se e aconchegando a "écharpe", pediu licença para retirar-se, com Dorita, dizendo agora que sentia frio. Todos obsequiosamente a acompanharam, ao longo do "patio", té à porta da escada para o andar superior. E aí, na carinhosa cauda das despedidas, ela disse afectuosamente ao Silveira, estendendo o braço:
-- Então, bons amigos, não é assim?
-- E aliados! -- confirmou êle, radiante, beijando aquela mão divina.
E, tôda a noite, êste autêntico produto da singela e bronca região duriense quáse não dormiu. A impressão vincada por Maria Mercedes no seu temperamento cálido, na sua apoucada inteligência, no seu impetuoso e límpido carácter, marcára fundo bastante para espancar-lhe o sono e atear numa viva espertina a arrastada sucessão das horas. Não o fascinára sómente o deslumbrador cortejo dos encantos físicos da recêm-vinda, mas tambêm, e de preferência, a linha sinuosa e complexa do seu perfil moral. Organismo rico de sangue e pobre de nervos, afeito às aventuras fáceis, esperto e fanfarrão batedor na caça dos simples amores campesinos, o impressivo desenho desta figura requintada e esfíngica desnorteava-o. Até àquele momento êle não lidára, mais ou menos, senão com mulheres dum córte definido, compreensíveis, sinceras, claras como o azul matutino do céu e a água cantante das ribeiras. Ainda agora aqueles seus dois últimos conhecimentos, durante a viagem, -- a esquiva Irene dentro do seu espiritual alheamento, a provocante "Mrs." Edith embiocada na sua sábia impostura, -- mostraram contudo logo o que eram, foram sempre lisas, coerentes, lógicas consigo mesmas. Porêm Maria Mercedes, não! Era uma criatura embricada, enigmática, temível... estava a ver. Cheia de mimalhices, caprichos, alternâncias, brusquerias, entusiasmos, tédios. Um diabólico e indecifrável novelo, um problema estonteante. Queria investir com ela e tinha-lhe mêdo! Era um abismo de seduções e um torvelinho de mistério, que ora lhe inflamava o instinto ora lhe acobardava o desejo. E -- coisa interessante, rara tambêm e para êle inexplicável, -- a cada momento, a cortar suavemente a angustiosa dúvida do seu querer, nos mais agudos instantes desta sua obstinada devassa interior e pelo mais adorável dos contrastes, vinha e debuxava-se-lhe na vaga penumbra do aposento, sobrepondo-se à turbadora imagem da viúva, em claros benéficos de repouso, a figura mansa e rústica da sua confiada amiguita da antevéspera, Luísa, a linda morenita, na mesma apostura silenciosa e humilde, na mesma inércia contemplativa, na mesma frescura moral de clara fonte, iluminada de ternura ingénua... e na amaviosa concha do seu olhar, cheio de fogo latente, envolvendo-o, calmando-o, dominando-o... mercê dêsse irresistível poder das mulheres suaves e tristes, quando rogam mansamente.
Na rápida sucessão dos dias, depois, não perdia o nosso atolambado galã o mínimo ensejo em que acercar-se pudésse da viúva, a procurar tornar-se insinuante, familiar, prendê-la ao seu convívio. E buscava ardilosamente captar-lhe a atenção, na impossibilidade manifesta de lhe falar ao desejo. Ao mesmo tempo arriscava tôda a sorte de tímidas, de insidiosas inquirições sôbre o problema mordente do seu passado. -- Uma mulher assim devia ter crónica! -- A cada momento esboçava interrogações e bordava conjecturas sôbre os ignorados antecedentes, sem dúvida invulgares, daquela vida. Preocupava-o árdidamente o mistério desta estrangeira nascida tam longe dêle, e cuja existência, -- estava-se a ver, -- teria porventura sido demasiado vaga e errante para que êle jámais pudésse bem conhecê-la.
Algumas vezes D. Tereza veladamente lhe insinuára, -- que a sua pobre "Miquêtas" não fôra nada feliz com o casamento. O deslumbrado Silveira não queria crêr... Jorge, o seu confidente natural, discretamente e de pausa lhe ia tambêm relatando um que outro pormenor, avançando um detalhe, sublinhando uma anecdota; e, na crédula cegueira da sua admiração lamecha, cada nova revelação sempre o Silveira aproveitava para desatar-se em hiperbólicas fantasias, cuja asa de oiro logo o amigo prosaicamente lhe cortava, por um episódio trivial ou um comentário trocista. Foi assim que, uma tarde, sentados os dois naquele aconchegado rincão do "patio", junto ao comedor, -- e porque, incorrigível, o Silveira voltasse ao seu panegírico optimista sôbre as sublimadas perfeições dessa criatura de deslumbramento e de sonho, que merecia mais que um trono... um altar, -- ainda uma vez com inflexível frialdade tornou a frisar-lhe o amigo: -- que todavia ela não era, nem fôra nunca, feliz. E que poderia bem tê-lo sido... com as paixões loucas que inspirou, com os belos pretendentes que teve! Pelo desespêro uns levados ao suicídio, outros à loucura, outros à ruina. Ele já sabia. E que afinal...
-- Afinal... -- recalcou o Silveira com ardor, -- sempre teria sabido escolher um marido digno dela. Se é que semelhante prodígio era possível!
-- Que prodígio! Nada disso! Pelo contrário... Muito mais vélho... "camorrista", devasso e jogador. Comparado com ela, um perfeito estafermo!
-- Bem! mas ao menos morreu... Está livre dêle!
-- Morreu... E por que forma? -- balbuciou Jorge, fazendo uns olhos de piedade, com uma cáustica expressão de enfado. E por fim, ante a suspensa e mortificada atenção do amigo: -- Em casa duma amante... duma apoplexia.
O Silveira fez-se pálido, corrido por um frio interior de nôjo e de revolta. Porêm Maria Mercedes, que passava na ocasião e aprendera esta pequena aresta de diálogo, acercou-se, mansa e familiar, dos dois amigos, e com uma adorável resignação, quáse infantilmente:
-- Ah, mas por'mor de Deus! Meu caro amigo, não me lastime. Eu relativamente estimei... Poupou-me o desgôsto de o ver morrer. -- E logo com desenfastiada naturalidade, derivando: -- Mas dispensem-me, sim?... Vou escrever p'r'a capital, quero ainda aproveitar o correio de hoje. Vou mandar uma carta cheia de minuciosas instruções a êsse santeiro de "calle" Suipacha, sabem?... É a encomendar-lhe uma grande imagem da nossa futura padroeira, a Senhora da Conceição. Escolhi bem, não lhes parece?... Ela é o santo símbolo da fecundidade e da pureza, e portanto o mais condizente escudo e o mais fiel espelho desta mansão exemplar da abundância e da virtude.
E, feita uma ligeira vénia, ei-la que retoma a andar, naquele seu estudado ademan de requebrada e ondeante majestade, a fugidía asa dum sorriso a encrespar-lhe os grandes olhos côr da noite e a adejar nos lábios nacarinos.
-- Divinal mulher! -- murmurou, posto em cómico êxtase, o Silveira. -- Como diabo foi ela tomar um animal dêsses p'ra marido!?
-- Sei lá! -- redarguiu Jorge, num risinho scéptico. -- Coisas de mulheres... Ela diz que foi por amor ao paradoxo e umas tantas "pavadas" por êste teor. Mas não! quanto a mim, foi pura questão de vaidade. "Se le ha puesto entre cojas" dominar, moralizar, regenerar êsse salafrário. "Pero se ha embromado".
-- Com o que nada perdeu, no fim de contas.
-- Ah, não seguramente! Ao contrário, com mais êsse pequeno escândalo o seu nome não fez senão ganhar em fascinação, em poder, em comovido interêsse e mundanal prestígio.
Abroquelada na sua individualidade melindrosa e rebelde, Maria Mercedes nem a todos os preceitos se amoldava daquele salutar e primitivo viver da "estancia". Não lhe importavam passeios, temia as caminhadas, envolvia no mesmo abandôno de fastidiento desdêm a barulhenta bisarma das instalações industriais e o manadio disperso da riqueza pecuária. Substancialmente, a rude movimentação, o giro áspero e forte da vida do campo, repugnavam-lhe. No seu temperamento subtilizado e mórbido essas cruas batidas de ar e de luz feriam reacções bruscas, violentas, quáse dolorosas. Despertava, erguia-se cedo; porêm de ordinário, antes do meio-dia, ninguêm conseguia vê-la fóra do quarto, sucedendo-lhe repetir amiúde «que de manhã não era mulher p'ra nada». Antes daquela hora apenas condescendia em sair dêsse inviolável reduto, quando muito, a "niñera", a arejar o "Riddle" e a passear Dorita. Maria Mercedes apenas uma vez acedeu a dar um passeio matinal, a cavalo, na companhia de Jorge e do Silveira. Mas baldadamente êste depois, em várias dulcerosas investidas, tentou persuadi-la a que lhe fizesse a fineza de repetir, e desta vez com êle só, o sacrifício... todo na saborida antevisão dum aventuroso idílio. Nada alcançou. Fôra uma façanha sem exemplo.
Pelas tardes, sim, era a bela viúva a primeira na actividade, no bom-humor, na alegria. Fazia largos e piedosos percursos, então de ordinário companheira inseparável e gostosa de D. Tereza no seu esmolátorio desporte pelas redondezas. E em seguida, às noites, no salão, -- aonde sempre acudia uma ou outra família vizinha, -- era ainda ela o prestigioso centro das atenções, o fulcro espiritual do diálogo, neste môrno e sossegado ambiente, sentindo-se na posse plena dos seus nervos e em todo o facetado fulgor do seu espírito.
Ao cabo duma semana, por uma nublada manhã, pesada e ardente, chegou Belisário Ruiz. Exceptuando por parte de Célia, teve sua consabida recepção de agrado. Maria Mercedes acolheu-o com afabilidade e festejava-o, judiava-o, apurava-o muito, mercê desta liberdade inocente que a intimidade nos traz e um largo conhecimento. De sua banda porêm o Silveira entristeceu e alarmou-se, por uma apreensiva retracção do instinto. -- Ganharam então em colorido e interêsse as familiares tertúlias da noite, agora de ordinário bordadas sôbre assuntos mundanos, em que a desabusada "verve do recêm-vindo", no seu arrastado ar "blasé", intercalava amiúde a nota picaresca ou o comentário equívoco. Era sem fim o rol que, a propósito, este pândego contumaz se comprazia em desfiar, de casos escuros, anecdotas picantes e grotescas aventuras, fruto da própria experiência umas, outras colhidas naquele seu fácil e sôlto passo pela vida fóra. Então não raro aconteceu, quando o diálogo assumia um cariz algo "verde", a meticulosa Célia erguer-se e sair, dissimuladamente. E uma noite pai Saavedra, bonachão alegre, no seu adorável espanto infantil, exclamou para Belisário, batendo galhofeiro os braços, os pequeninos olhos verdes húmidos de riso:
-- Mas que coisas com que êste homem nos vem! "Chacotón"! Onde demónio vai você saber tudo isso?
-- Aí teem! -- acudiu com intimativa a viúva, súbito erguida da sua apostura indolente. -- É o que se ganha com as viagens. Êste senhor tem viajado muito, como eu. Faz bem... O que a gente vê, ouve, sente, adivinha, ausculta e aprende!... São um grande e divertido ensinamento. -- E num suspiro lânguido, recumbida e mole novamente: -- Quem me déra ir já por'í fóra outra vez!
O Silveira esboçou um convicto e mudo assentimento; e carinhosamente D. Toríbio:
-- Sempre viajar! sempre viajar! Nunca te fartas...
-- Que querem? sou assim... É da baralhada essência do meu sangue. Imaginem; minha mãe era uruguaiana, minha avó italiana, meu avô alemão, meu bisavô norte-americano... Com uma ascendência assim, que outra coisa poderia eu ser senão uma incorrigível vagabunda?
-- Deves ter amor à tua terra.
-- A minha terra?... Sei lá qual é!
-- Não digas isso! -- acudiu a gorda e maciça D. Teresa, estremecendo e erguendo com horror as grossas palmoiras à tinta industrial do cabelo.
Porêm a viúva, quente, imperturbável:
-- Ah, isso é que eu digo, minha querida tia! perdoa-me... Porque não há razão nenhuma, porque eu não sinto o menor movimento de alma, nem conheço qualquer forte fundamento exterior que me leve a prender-me ao torrão onde acidentalmente nasci.
-- Deves querer mais do que tudo à tua pátria -- severo reprimendou Jorge.
-- Lá vem, lá vem o consagrado chavão! a linda e convencional mentira! -- pronto a viúva contestou num alto desdêm burlão; e a seguir, fransindo o nariz, doutoralmente: -- Isso de pátria é uma antiga invenção dos ambiciosos e dos déspotas, para por meio dela escravizarem ainda mais a récua desprezível dos humildes; para fazê-los pelo coração tributários dos seus domínios, e cegos no deslumbramento dessa patranha sublime, jungi-los e arrastá-los então irracionalmente, como máquinas, no carro devastador das suas conquistas, aos grandes actos de heroísmo colectivo e anónimo, à abnegação, à intrepidez, ao sacrifício, à morte. Sempre assim foi... Neste ponto a estratégia dos grandes mandões é invariável assim como a passiva estupidez dos que lhes obedecem é infinita.
-- Estás-te excedendo, filha! -- atalhou com sincera indignação D. Toríbio. -- Nem pareces argentina!
-- Não sei o que pareço, nem me importa! O que eu sei, o que eu sinto muito bem, é que a noção de pátria é uma concepção tacanha e absurda. Os mais, num blóco unânime, protestavam; e ela, com vivacidade persuadente: -- Pois se a terra, na origem, na essência e no destino, é tôda igual! Então os senhores não vêem que tudo quanto há de perdurável e transcendente neste mundo, as grandes invenções, os grandes ideais, os grandes sentimentos, são de carácter universal? Pois não é certo, que para que uma obra da literatura ou da arte alcance a consagração eterna, ela há-de romper o âmbito estreito do regionalismo e alar-se à objetivação sintética de algum dos grandes movimentos comuns a tôda a humanidade?
-- Diz muito bem, minha senhora! -- apoiou com irónica veemência o pequenino e glabro Belisário. -- A pátria de cada um é onde melhor se encontre e melhor possa governar a vida. -- E logo, com um ar ligeiro e brincão, a desfazer a chocante heresia do conceito: -- Eu cá, por temperamento e por inclinação... seria turco.
A seguir, volveu a informar-se com mais detalhe das diversões que havia planeadas. Queria, em suma, saber o que a esperta inventiva de tam preclara gente havia concertado para colmar um pouco o tedioso vácuo da prosaica vida do campo. Falaram-lhe na projectada festa ao "ombú"; na benta iniciação da "estancia": achou plebeu, pueril, ingénuo. Para o dia seguinte havia uma "doma de potros", aguardada com impaciência pelo Silveira; porêm seguramente as senhoras não iriam. Maria Mercedes não se conformava, não podia suportar esse espectáculo, que ela reputava em extremo repugnante e bárbaro, bestial. Redondamente opunha-se. Belisário pediu licença para discordar, -- pois, pelo contrário, essa primeira brusca e sábia investida do homem com o irracional era a mais linda lição de coragem, de inteligência, de destreza e de fôrça; era um belo torneio para cujo completo realce, como em Espanha nas toiradas, se tornava indispensável a presença e o aplauso da mulher, que é a suprema encarnação da beleza. E a poder de dulcerosas instâncias, de ardilosas lisonjas e vivas frases sugerentes, o meliante conseguiu o assinalado triunfo de conquistar a aquiescência difícil da viúva, a qual por fim, reptada a que declarasse formalmente se estava, ou não, disposta a acompanhá-los, prometeu que sim!
No dia seguinte, às primeiras horas da tarde, a alegre caravana em movimento. Houve que fazer uma longa hora de caminho, sob a pantalha de oiro do sol, delidos na rasa imensidão implacável da planura. Pela angosta e rudimentar carreteira, ou triturando aquela imensa alfombra verde, o auto seguia tombeando e oscilando, numa cautelosa marcha de incerteza, moderadamente, erguendo rolos de poeira ofegante, ladeado pelas donairosas figuras do Silveira e Jorge, que galopavam à estribeira. E agora alcançavam uma larga mancha de terreno pastoso e lamacento, onde, a um lado, se aglomerava uma encantadora mólhada de eqùídeos, bravos, garbosos, finos, com o ar surprêso e selvagem, a sua insofrida dispersão contida pelo disciplinário esfôrço de meia dúzia de "gauchos" montados, ásperos e duros de roda circulando. Um outro grupo interessante se notava, de bruta peonada, de chinerio nativo, de carripanas, cavaleiros, de rotos, mulheres e crianças, todos num empilhamento do interêsse contornando daquela arena de acaso o piso brando e revôlto, o vago e amplo recinto. Fóra, na lisa nudez da campina e a pequena distância, uma bôa fogueira ardia, chispando estabaredas. Preparava-se nesta improvisada cozinha rústica o clássico e delicioso acepipe de "asado con cuero". À míngua de lenha, o fogo era alimentado por tôda a sorte de detritos orgânicos: destroços de mobília, fôlhas sêcas, farrapos, palha, ossos. Pelo espiralado intervalo entre duas línguas de lume apercebia-se uma caveira oblonga, na rubra ardência do braseiro luzindo a sua álgida alvura, macabramente. E naquele justo momento um vélho peão surdia, ajoujado ao pêso duma perna de cavalo, já em parte putrefeita, e que ao ser arrojada ao fogo, dêsse calcinado monte de impurezas fez erguer uma labareda de fumo gordo, negro e nauseante.
Na parte reservada do recinto, havia sido batida à pressa uma tôsca bancada de honra, destinada aos recêm-vindos. Mas dêste primitivo instrumento de relativa comodidade apenas Belisário e o vélho Saavedra se utilizaram. As senhoras preferiram manter-se furtadamente a distância, empalancadas no seu auto. Jorge e o Silveira haviam-se logo apeado, e acercaram-se ligeiros da manada. -- E já agora a um sinal dado, um galhardo mocetão no mesmo sentido avança, e, despedindo certeiro o laço, colhe pelo pescoço e arrasta até meio do terreiro um dos pobres animais, que daí a instantes, enfurecido e trémulo de espanto, sente tambêm, por meio de novas voltas de laço, irremissivelmente presos em nós de cordas os quatro membros. Então, um simples esticão dado às prisões, sacudido e forte, rompe com o precário equilíbrio da vítima, que tomba em pêso sôbre o sólo, em risco de se lhe deslocarem as articulações ou partirem os ossos. E aí se precipitam logo sôbre o assombrado pôtro, que, louco de terror, se debate froixamente, quatro espertos matulões, a segurá-lo e a enleá-lo mais forte, por meio de consabidas travas, té que o imobilizam por completo. Outros lhe sucedem neste anacrónico e despiedado exercício, e que, ajoelhando e abatendo-se contra o indefeso quadrúpede, encapuzam-lhe a cabeça, passam-lhe o bridão e aplicam-lhe num momento a sela ("el recado") cilhada déstramente. Já não há receio agora de que o abatido animal possa escapar-se; a complicada rêde de cordagens desembrulha-se, escorrega, afroixa e deslaça mansamente; e o pôtro pode, emfim, cego e aturdido, erguer-se, mal conseguindo firmar os pés naquele terreno falso e mole, adrede escolhido, e com as duas mãos, à cautela, tomadas ainda por uma última laçada. E quando o peão destinado a montá-lo intervêm, num pulo salta para a sela, a derradeira prisão desata-se, e êle aí larga a montada na sua frente a correr e a coucear desapoderadamente, colado e cingido com ela como um centauro, tendido o busto em flecha, os olhos em fogo, e incansável e duro o braço fazendo rodopiar o "rebenque" em círculos de ameaça. Flanqueiam-no, a enquadrar a corrida, dois outros cavaleiros brandindo tambêm chicotes. E os três aventuram-se nessa desenfreada carreira buzinando uma gritaria doida, descompostos em pragas, urros, vociferações, soltando uivos de bêstas-feras, que põem o pêlo em pé aos atónitos poldros da manada e que a rôta chusma dos assistentes acompanha, delirando, num concertante infernal, num alto côro selvagem. Corridas assim umas centenas de metros, o estupefacto cavalo estava cansado. Tolhido de assombro e de pavor, apequenava, submetia-se. E estacava a intervalos, colhido todo numa atitude de abandôno e doçura que tímidamente exteriorizava a sua veemente solicitação de, emfim, parar... Trazido então ao ponto de partida e renovada a brutal carreira, já êle pronta e resignadamente obedece, abdica da vontade e está rendido à discrição do algoz.
Entretanto o Silveira, que seguira êste bárbaro entremez com empolgador interêsse, movia-se nervosamente e dava rebarbativas mostras de impaciência, de desagrado, quáse de indignação, as quais pela estranheza alarmaram a atenção de Jorge. Aquele, porêm, rasgadamente explicou-lhe, -- que achava excessivo, desnecessário, estúpido! Animais nobres e inteligentes como aqueles não se tratavam assim. Não podia ver semelhante coisa! -- E enquanto o amigo, com um risinho azêdo, procurava aplacá-lo, foi o segundo pôtro trazido ao castigo. Este porêm, altaneiro e vibrátil, saíu mais rebelde: só ao cabo de quatro corridas se deu por vencido. Veio depois o terceiro, que teve que ser logo retirado da arena, porque, abatido sôbre o lôdo desastradamente, rompeu um quadril. O Silveira não teve mais mão em si. Avançou com decisão e reclamou alto que lhe permitissem domar êle o pôtro a seguir. -- Havia uma outra maneira de fazer aquilo, mais suave, mais racional, mais humana. Iam ver! -- De roda foi um espanto. Pela grossa corda do populacho passou uma oscilação de pasmo e de surprêsa; havia burdas interrogações em suspenso, esboçavam-se atitudes de achincalho, de desdêm, de irritante desafio, de malícia perversa, e a sua bronca expressão abria-se em risinhos alvarmente incrédulos. Belisário pôs-se de salto em pé. Pai Saavedra protestava, em repetidos gestos de negação, agitando com veemência os braços. Da apartada altura do seu reduto, D. Teresa impava ofegante, Célia e Maria Mercedes taparam o rosto com os leques, aflitivamente. Apenas Jorge, por um simpatismo viril, apoiou a atrevida solicitação do amigo.
E foi o bastante. -- O quarto paciente veio então, e, em meio da ansiedade geral, os peões da manobra permaneciam quietos e a distância, esperando instruções, de olhos fitos no Silveira, o qual lhes ordenou que, mantendo por enquanto o prisioneiro enlaçado, apenas, mais, lhe prendessem as mãos. A seguir, êle mesmo se acercou e investiu, entre duro e afável, com o animal, que todo ruflando de temor, assombrado e arisco, reagia a patadas. Ágil e precavido, porêm, o Silveira furtava-se a tempo e logo voltava, numa polarização empolgante de todo o seu ser, a defrontar-se com êsse trecho vivo de natureza em bruto; olhava-o firme, rodeava-o e cingia-o, déstro, incansável, ameaçando, bradando, rojando-se, saltitando; envolvia-o num mágico círculo de dominadora astúcia, ora atraíndo-o por interjeições familiares, ora de escape afagando-lhe o pescoço, ora tocando-lhe a garupa com o chicote levemente. Feito assim um pouco o conhecimento com a sua indómita montada, foi êle ainda quem lhe vendou os olhos, o enfreou e lhe atirou pronto a sela para sôbre os rins, afivelada num relance. Novos afagos agora, mais permitidos, mais claros, mais seguros; em seguida faz sinal à peonada que solte as prisões; e num intrépido salto ei-lo arçonado sólidamente contra o espavorido dôrso do animal em fúria. Há então uns breves, absorventes minutos de ansiedade e de luta: é a consumada maestria, a serenidade, a destreza, a forte musculatura e a vontade indomável do cavaleiro, em decisivo duelo com o desordenado furor do ginete, que, sob a pressão exasperante daquela formidável tenalha de aço, se dispersa em esforços inúteis, encabrita-se, escouceia, escarva, atira upas, sacode a espinha, curveteia, bufa, geme e tressua, inelutávelmente. Depois, quando o Silveira teve o seu domínio eqùestre por assegurado, despediu tambêm o pôtro a galope, mas não cega e irracionalmente, como os dois anteriores, antes forçando-o a seguir, no mesmo andamento sempre, em dadas direcções, manejando-o e dominando-o a seu bel-prazer, obrigando-o até ao cansaço... e assim conseguindo por fim trazê-lo a fazer o vitorioso circuìto do terreiro, ante a estarrecida imobilidade da assistência. Então, tranqùilamente, apeou-se e abandonou as rédeas ao cavalo, que, sem o mínimo assômo já de emancipação ou de revolta, pelo contrário, deu em seguir espontâneamente na esteira do seu hábil domador, manso e humilde como um podengo, os flancos molhados, estirado e murcho o pescoço, e o focinho arquejante a acariciar-lhe a espalda, que ia deixando mosqueada de baba sanguinolenta.
A tôda a volta estrondeou uma tropeada de aplausos delirantes, que o Silveira, altaneiro e frio, -- e enquanto, tirado o "chambergo", enxugava o suor, -- agradeceu escassamente. Correu a abraçá-lo com admirativa efusão o reduzido grupo dos amigos. E, como lídimo arauto da multidão, um veterano "gaucho" se adiantou gravemente, batendo os esporões farfalhantes, de rosetas como sóis, e depois duma rotunda saùdação estendeu-lhe com solenidade aos pés o "poncho", por esta rústica homenagem fiel intérprete da consagração indígena ao seu triunfo. Neste fremente e alto côro apoteótico Maria Mercedes sómente fez excepção. Quando, na quente raçaga ainda das últimas ovações, o Silveira demandava com ingénuo alvorôço o seu aplauso, ela acolheu-o com reserva e festejou-o parcamente; e insensível a tanto prestígio, num deliberado propósito de afastamento, de frialdade, de indiferença, todo o resto da tarde, depois, e ainda ao jantar, e pela noite adiante, foi para o burlado vencedor, de poucas horas antes, dum cerimonioso alheamento e duma secatura implacável, naquele seu ar distraído e enfadado mantendo-o a inexorável distância... Ao passo que, com uma "coquetuela" vulgar, se desentranhava em atenções, galanteios, donaires, mímicas de sedução e adoráveis preferências para com o atónito Belisário, que, exultante e feliz, na inverosímil radiação do seu espanto, tinha a préga lívida das pálpebras aquecida por um riso desvanecido e amiúde passava ufano pela calva precoce os dedos trémulos.
Na breve e jocunda sucessão dos dias, depois, foi preocupação dominante a preparação dêsse festivo programa para o baptismo religioso da "estancia". Maria Mercedes era a incontestada Egéria do movimento. Tomada de iluminado e impressivo entusiasmo pela realização da sua grande idéa simbólica, tudo ela ardida e metódicamente concertava, planizava, distribuía, tudo ordenava e impunha, no inflexível dogmatismo derivante do seu prestígio, com uma impetuosa tenacidade que fazia o seu próprio espanto e era o acendrado regosijo do séquito amigo. Invariávelmente ela agora, com uma pontualidade burocrática, logo às primeiras horas da manhã descia ao seu escritório de ocasião, instalado na biblioteca, e aí, mais ou menos, trabalhava indefêssamente o dia inteiro. Sob a sua imediata inspiração, em grandes fôlhas de cartolina, Belisário riscava escalas, fazia alçados, córtes, projecções, esquissava planos. De funções mais modestas, o Silveira secretariava, anotava o rol das despesas, expedia as requisições, fazia a correspondência. Jorge comunicava as ordens e distribuía o serviço directamente pela famulagem, e era a pessoa indigitada para trasladar-se à capital, dada a hipótese de alguma missão de confiança. Por sua banda pai Saavedra, atenta a relativa invalidez própria da idade, e bem assim a mulher e a filha, tinham a incumbência de fazer da estranha e inusitada festa, pelo bronco populacho dos arredores, uma elucidativa e suave propaganda. E ao auspicioso gesto e sob o alado impulso dessa fada irresistível, todos trabalhavam com ardor, acêrto, decisão e entusiasmo igual. E era de ver como esta imprevista intromissão de trabalho ligeiro e jovial na grossa labuta habitual da "estancia", longe de destoar, por inecessária e fútil, em vez de lhe trazer qualquer ralento dispersivo, antes ao contrário com ela se enquadrava idealmente, e como que insuflava um protector alento de consagração espiritual a todo êsse utilitário e rasteiro desparramar de produção e de vida.
Ficou assente que, na manhã do santo dia aprazado, -- um domingo, -- se procederia à bênção da imagem votiva da Virgem, padroeira futura da "estancia"; pela tarde seria a sua condução processional té ao estilisado nicho erguido ao abrigo da umbela majestosa do venerando "ombú"; à noite, iluminações, fogos de artifício, arraial e grande concurso cosmopolita de canções e danças populares, com prémios em dinheiro, instrumentos agrícolas, "registo", "verónicas", viandas e guloseimas. A primeira notícia da sagração da "estancia" tropeçou naturalmente num ambiente hostil, quando começou de circular pela redondeza. Contra a sua realização o cego rotineirismo e os atávicos preconceitos dos naturais ergueram-se em alvorôço, por um supersticioso alarme sacudidos no seu torpôr de séculos. -- Que peregrina idéa era esta agora de trazer santos de igreja p'r'ali? e pô-los, p'ra mais, ao abrigo dessa odiosa árvore de desgraça e de ruína? Era uma heresia, um absurdo, um desafio sacrílego ao Céu. Podia redundar em azar p'ra todo o campo em roda... Era uma iniqùidade mais dêsses abominados senhores do vélho tempo, que não podendo já privá-los da liberdade, vinham afrontosos a derrumbar-lhes as crenças. Seria uma calamidade. -- Era assim como às tardes pelas "pulperias", nas recolhidas horas da sésta, à roda vinolenta do balcão e de mesa para mesa, de grupo para grupo cortando a cada instante o giro vago da conversa, chispavam vivas e inflamadas, quáse unânimes, as frases de acre censura, os votos de protesto, os conclamas de revolta. E tambêm pela calada cúmplice da noite, no ignorado mistério de alguma "tapera" distante, maus elementos campesinos havia que, incitados pelos raros "montoneros" e "churriadores", corriam a reùnir-se em clandestinas conspiratas, e ferozes e estúpidos, o pulso peludo apertando o "machete" vingador, aí tramavam desforços violentos, represálias subversivas; por fim, concordes em que uma solução radical seria assaltarem de golpe o jardim da "estancia" e abater pela raíz, destroçar, fazer em fanicos o fatídico e arrogante "ombú"... redonda, rasamente.
À medida porêm que, na "estancia" metamorfoseada como por encanto, as linhas ornamentais se erguiam e no ar doirado se debuxava o anúncio jovial da próxima festa, paralelamente, todo aquele fermento de rebelião latente se apagava e se sumia. Vinham os bravios conspiradores da véspera, e, ante a evidência promissora do facto, grado a grado capitulavam, imobilizados primeiro numa paspalhice alvar, curiosos e interessados a seguir, e por fim levados de vencida nessa onda estonteante de alegria. A realidade sugerente do prazer tinha nas suas almas rudimentares e famintas maior efeito que a catequese teórica dos Saavedras. O certo foi que, por virtude do capricho inventivo de Maria Mercedes, a patriarcal "estancia" agora perdera todo o seu ordenado e pacato aspecto antigo. A cada momento ali um afadigado enxame de obreiros voluteava incessante, não só fóra, pelas imediações, formigando em manchas de atento e aplicado ardor, como tambêm, do gradeado a dentro, pisoteando os tenros canteiros do jardim, revolvendo do "patio" a lisa areia, invadindo os quartos, encostando escadas, verrumando, parafusando, martelando, encavalados pelas paredes, debruçados da "azotea". Esta sua dispersiva ânsia de movimento a cada passo era cortada pelo pejamento inerte duma abundante farfalha industrial: tubagens, cordas, arames, pás, alviões, pêras eléctricas, chumbo em blóco, ferros em brasa, metais luzentes, destroçadas rumas de barricas e caixas de lata estripadas. Sobrelevando aos prosaicos ruídos habituais do recinto, de tôda esta batida sonora soltava-se o ritmo sadio e folgazão dum como cântico de vitória. E do mesmo passo a mãe-terra aparecia tôda fendida e revôlta, cortada em tôdas as direcções por uma anastomose de sulcos ridentes e húmidos, aberta com prodigalidade em ruturas serpeantes, -- o que fazia o infantil regalo de Dorita, todo o dia rojada sôbre a frescura plástica do sólo, embodegada e suja, a «fazer casitas».
Para a limpa execução dêsse trabalho delicado e novo, tinham vindo da cidade carpinteiros, sambladores, polidores, torneiros, electricistas. E a favor do tempo se foi a garrida e abundante decoração gradualmente definindo. -- Uma cerrada fieira de lâmpadas contornava nas suas linhas essenciais a arquitectura sóbria da residência, correndo em dupla fita ao longo da cornija, cingida aos relevos terminais do "hangar", marinhando em hélice pelas colunas. Uma espelhada cinta idêntica de vidros coloridos rodeava por inteiro o gradeamento alto do jardim, e pelo interior dêste, depois, em caprichosa profusão seguia a circuìtar e a derramar-se em lacetes numerosos, riscando troncos de árvores, desenhando globos, estrêlas, rendados, franjas, vestindo e pintalgando o ripado fresco dessoutra floresta de gongóricas pirâmides que em farta sementeira se escalonavam pelo recinto. Havia mais, ali, de árvore para árvore, de poste para poste lançados com elegância, grossos festões de buxo e sanefas berrantes de papel de côr; e na inefável palpitação do ar batia uma alacre trepidação, compacta e esplendente, de emblemas religiosos, de laços, flores, "pompons" e bandeiras. Fóra, pela intérmina expansão do campo, alinhavam-se extensas fiadas de tarimas tôscas, feitas em madeira clara e resinosa, adrede improvisadas para que à epicúrea onda da multidão elas pudéssem ser, cumulativamente, fácil estendal para a comida e cómoda estância de repouso. E no ponto culminante, ao alto, protegida pela enramalhada concha, tôda em torcicólos gigantes, dessa atormentada árvore secular, já nos últimos dias luzia suas inéditas galas um lindo nicho baldaquinado, em equilíbrio sôbre um alto lenho prismático, tombado ligeiramente, à moda veneziana, e entalhado em duro roble, com porta de cristal e um rico lampadário de bronze à frente suspenso.
Esse aprazado domingo amanheceu, por sorte, um encanto. No azul puro e diáfano do céu, peneirado duma subtil poalha de oiro que era como uma alvorada de bênçãos, apenas alguns farrapitos de nuvens, brancas e altas como asas de anjos, erravam levemente... E desde as primeiras horas que, algarreira e abundante, a multidão começou afluíndo, todos em salteiros grupos endomingados, -- "con sus trapitos de cristianar", -- fundidos no guloso ímpeto do mesmo apetite místico e folião, porêm distanciados pelo traço diorâmico dos costumes e pelo desenho ideal das crenças. Vinham em alegres volatas, em chireantes golfadas, em cordas de riso uns após outros vitoriando, cantando e dançando, como se nesse dia de glória a amplidão ridente da planura se vestisse duma grande e viva alfombra cosmopolita, realçada em matizes de tôdas as latitudes, de todos os países, de tôdas as religiões, de tôdas as raças. Assim decorreram entre festivas e ingénuas pompas as anunciadas cerimónias do dia, cingidas no atropelado abraço de tôda essa grossa onde espectante. A bênção comovedora da Santa e a sua processional trasladação, depois, àquele improvisado altar da selva, foram, a um tempo, duas maviosas sinfonias de movimento e de côr, e duas tocantes demonstrações de lisa fé e piedoso entusiasmo. A vitoriosa culminação da festa estava porêm reservada para mais tarde, quando, ao cerrar da noite, aqueles quantos milhares de pequeninos globos, serpeando como vermes de fogo, saltando, faíscando aqui e ali, errantes e vagos como pirilampos, começaram de acender de roda a sua aleluia policróma. Um outro dia apontava agora, suave e discreto, não cortado já na prosaica nitidez das evidenciadoras flamas do astro-rei, porêm pela atenuada sarabanda dessa infinidade de minúsculos sóis arredondado em claridades de sonho, sôlto e ideal campo aberto, agora, às fugas da imaginação, aos arroubos do amor e aos vôos da poesia. Era todo o vasto e bigarrado recinto dos seus fundos de sombra jorrando esplendentes fontes de luz, palpitando e ardendo numa estonteadora profusão de lumes caprichosos, que definem linhas arquitecturais, que festoam silhuetas de árvores, que espirram para o espaço, que da relva rompem ou no ar se baloiçam em largas figurações de fantasia, e em que o uso das novas lâmpadas de fio metálico multiculôr dá motivo às mais deliciosas projecções de côr, às nuanças mais fantásticas e imprevistas. E por sôbre tôda essa orquestração lampejante é ainda e sempre a carcassa mégaloide do vélho "ombú" que mais destaca e mais realça, todo inflamado em recamos de gala, casquilho, remoçado agora e como que ufano do seu destino, iluminando afável e protector a passividade muda do deserto, -- o polipo colossal das raízes, que poderosas esgarçam a terra, mosqueado de tijelinhas de côr, como tentáculos luminosos, no amplo seio amostrando com orgulho e abrigando com carinhos de avoengo o nicho tremeluzente, e pelo atormentado e largo bracejar da ramaria o múltiplo rosário das lâmpadas pingendo, facetadas, límpidas, fulgurantes como lágrimas de alegria.
Entretanto pela ampla e redonda extensão que êste luaceiro de festa abrangia, apinhada e confusa a ronda do populacho crescia, amontoava-se... o vago marulho da sua agitação fanfurriava em ritmos bárbaros, vibrava em cânticos, era avivado em singelas dolências pela sublinha sensual das tocatas e descantes... e a quando em quando, sob a estralada esfusiante dos fogos de artifício, à flor dêsse revôlto mar, reverberava então cá em baixo, em pinceladas goyescas, por instantes, a floresta alvar das suas cabeças em delírio. -- Fazia aprazívelmente o Silveira o interessado circuìto do recinto, quando súbito, na compacta maré montante de figuras que do exterior vinham ávidas colar-se à grade do jardim, lhe pareceu distinguir um rosto seu conhecido. Irresistivelmente, adiantou-se... e, com efeito! era Luísa, a linda e fresca morenita, que na sua adorável rusticidade ali viera poisar, e que enlevada e imóvel, por um alheamento de indizível beatitude os sentidos presos e a atenção suspensa, no perfil garboso e enérgico do seu bravo defensor cravava encantada os grandes olhos negros.
Então o Silveira, entre lisonjeado e surprêso, com uma doçura cantante na expressão aproximou-se.
-- Ó Luísa! A minha querida amiguita tambêm por aqui?... Como vais tu?
Por única resposta, ela teve um breve sorriso de êxtase a encrespar-lhe os lábios, e logo, còrando ligeiramente, baixou os olhos. O Silveira tornou:
-- Que bôa idéa tiveste! Mas que fazes aí assim? porque não entras?
Sem articular palavra, sem se mover, Luísa manteve a mesma atitude retraída e humilde.
-- Anda! -- carinhoso e afável o Silveira insistiu. -- Não queres comer?... não vens dançar?
Luísa movia a cabeça negativamente, fechada sempre na mesma inércia contemplativa, sem romper o seu mutismo.
-- P'ra que vieste então?
Ela agora por fim, com voluptuosa pausa volvendo a abrir as brumas pálpebras, e na cálida demanda do seu galhardo interlocutor o fogo latente do olhar chispando, numa velada ternura balbuciou, singelamente:
-- "Para verlo"...
O Silveira sorriu e num estremeção de vaidade, medíocremente sensível à tímida e incontida expansão da rapariga, insinuou a mão pelos ferros e acariciou-lhe ao de leve a face tostada e redonda.
E partiu a seguir, por que em cima, junto à residência, uma salva de morteiros anunciava o início do concurso coreográfico, e êle fazia parte do júri. Então a pintalgada e densa coluna das várias músicas e bailados que insofrida se achava a postos, começou montando a "ladeira" suave do jardim para ir marcialmente desfilar e luzir seus méritos frente ao estrado posto a meio da galeria, -- ante a mirada crítica de Maria Mercedes, tôda de branco, -- e seguindo num grosso e infindável coleamento, apartados por castas, distintos pelas côres, opostos pelos ritmos, todos cantando, vibrando, saltitando, numa grande coreia dionisíaca que era a encantadora revivescência de algum atrevido "fresco" pagão, na espontânea impetuosidade e na vida instintiva do seu movimento afirmando a irmanação genésica do homem com a Natureza, das almas com as coisas. Foi primeiro o "tango", êsse gracioso hino da lascívia, impregnado de malícia picaresca, uma dança de perdição feita de lânguidos requebros, a um tempo trágicos e sensuais, exprimindo líricamente a conjunção fatal do amor e da morte; depois as corriqueiras "vidalitas", acompanhadas a viola e tamboril, crónica leve e sugerente de façanhas guerreiras, de zombeteiros chismes e cómicas aventuras; a seguir, os "tristes", lembrando os nossos "fados", gemendo um ritmo atormentado e dolorido, quáse religioso, que dá a vaga sensação do mistério, da solidão, do infinito; as "jotas" e "sevillanas" no seu saracotear febricitante, a "tarantela" no seu académico balanceio, o "trepák" no seu simbolismo ingénuo; e o desenvôlto "gato", o mesurado "pericón"; as "baturras", "soleares", "farandolas", "chulas", "fandangos"... e quantos mais. -- Durante horas seguidas, assim na calma benéfica da noite, sob o jôrro delirante dos aplausos e na sua estúrdia ronda aquecendo a fria majestade do deserto, se agitou dançando tôda essa corda guizalhante de rústicas melopeias. E quando já os primeiros alvores da manhã clareavam o horizonte, ainda, na debandada final, a sua interminável cola sonora se via impetuosa e louçã, desparramada a rabejar pelos caminhos.
IX
Um escasso dia volvido apenas sôbre a festa, Belisário regressou à metrópole. Seguiu-o no intervalo de mais um dia o Silveira, cuja existência ali, depois do seu assinalado triunfo hípico, nas últimas semanas, decorrera tôda batida em alternâncias de cruel incerteza, assaltada de imprevistas dúvidas, cortada em antíteses absurdas, numa espectativa mortificante. As flutuações coquetas, incessantes, da sua «bôa amiga» Maria Mercedes, cujas típicas excelências tam vivamente haviam sacudido o seu temperamento de fogo e vincado o seu carácter mulherengo; êsse jôgo caprichoso e perverso entre a frialdade e a exaltação, entre o espanto e o desdêm, entre o enfado e o carinho, desconcertavam-no. Inelutávelmente, corrido de vaga humilhação, êle reconhecia em Belisário um primaz competidor. Por sôbre aquele aspecto derrancado e turvo, a despeito do podrido descalabro dêsse físico todo escórias e ruína, o Silveira, forte embora da sua virilidade radiosa e exuberante, achava-lhe superioridades: era déstro no diálogo, fino e leve, bem falante, brandia a ironia como um florete, vestia com mais elegância. Por isso a sua obrigada e constante freqùentação, ali, com êsse émulo temido, e frente a frente os dois do ídolo do seu comum cuidado, tornava-se-lhe uma coisa irritante, molesta, dolorosa, por vezes intolerável. Contudo, retirar antes dêle seria uma deserção, uma cobardia. Foi suportando... Logo porêm que o afastamento voluntário do rival arredou a emergência dessa hipótese deprimente, o Silveira abalou tambêm, na sua incontida ânsia de emancipar-se duma situação por demais incómoda, violenta, e, perante a pungente ampliação do seu despeito... porventura ridicula.
Tendo chegado a Buenos-Aires ao entardecer, acolheu-se logo ao hotel, jantou e nessa noite não saíu. Apreensivo e triste, sentia uma grande necessidade de isolamento... e cedo se encerrou no quarto e abandonou-se à tortura voluptuosa das suas íntimas cogitações, cujas mórbidas volutas o surdo embalo dos vagos rumores da Avenida, em baixo, favorecia. Na manhã seguinte ergueu-se tarde. Aquele destemperado vibrar dos nervos impunha-lhe agora um preguiceiro e salutar repouso. Porêm, apenas terminado o almôço, picou-o um vivo apetite de expansão, de arejo, de movimento; precisava desabafar... queria falar, mexer-se, descompôr alguêm, ver caras conhecidas. Acendeu pronto o cigarro, tomou o chapéu e saíu logo, em demanda do amigo Azeredo, que mudára de pensão e residia agora ali perto do hotel, na "calle Libertad", a não mais de quatro "cuadras". -- Era um pequeno prédio antigo, sem porteiro e sem ascensor. O Silveira teve que subir uma extensa escada de mármore, em caracól, quáse às escuras, e encontrou-se súbito num modesto e exíguo "hall", pavimentado a baldosas negras e verdes, guarnecido por uma vélha mobília de vêrga, globos de vidro estanhado, missangas, "crochets", enredadeiras e vasitos com plantas. Veio-lhe ao encontro o dono da casa, um aparatoso andaluz, de alentada envergadura, loiro e obêso, o "pijama" e calça de riscado vestidos sumáriamente sôbre a pele, e os felpudos pés nus mal contidos nas babuchas.
-- O sr. Azeredo ainda estava à mesa. "Quiere Usted pasar"?...
Acedendo curioso ao afável convite, o Silveira seguiu o solícito introdutor ao longo dum corredor tristonho e esguio, com anteparo de zinco sôbre o saguão, e ao cabo entrou no comedor, uma crepuscular peça oblonga, tomada quáse totalmente pela mesa, em tôrno da qual, havendo cessado de comer, os seus seis convivas, guardanapos depostos e arredadas as cadeiras, em amena chalra, num baralhamento pelintra, familiarmente se esqueciam. O Azeredo, mal que viu o amigo, ergueu-se de salto a abraçou-o efusivamente.
-- Oh, João! meu grande vadio... Finalmente! Cuidei que te ficavas por lá... -- E numa palmada cordeal sôbre o ombro, indicando a cadeira que, ao lado dêle, a "mucama" havia pronto achegado: -- Senta-te... Que magnífico que vens!
Em seguida, com aquele seu invariável ar salteiro e risonho, o Azeredo fez em globo a apresentação do amigo aos outros comensais, com uma sublinha especial, é de saber, perante a dona da casa, à direita da qual êle tinha o honroso privilégio de sentar-se, -- e que era uma grossa e bem fornida vasca, quadrada, ruiva, de epiderme branda e leitosa, viúva havia ano e meio, e todavia agora ligada maritalmente ao andaluz... por conveniências domésticas. À direita do Azeredo sentava-se uma joven corista do "Avenida", miudita, clara e franzina como um mimo de bazar, os olhos maquilhados fortemente, esborifado o cabelo, e na morbidez cansada da expressão saltando em contraste provocador o narizito petulante. O nariz era tambêm a única feição acentuadamente vincada, nessoutra vaga e estirada figura espectral que tinha logar à mesa em frente dêle, à esquerda da dona da casa, -- um incompreendido violinista de café-concerto, a pele como pergaminho, os músculos como arame, rechupado, lívido, transparente. Mais à esquerda, havia um acomodatício e bronco pintor de taboletas. Finalmente, com depreciativo orgulho posta, e sentada como por demais, entre êstes dois últimos, aparecia uma gorda e casquilha quarentona, com o ar presunçoso e taful, pastosa, feia, arrogante, que era a mais insensata e hilariante personificação do burlesco; vestia uma curiosa bata ornitológica, tôda carregada de passamanarias, vidrilhos, contas e plumagens, bigarrada em côres de papagaio, em tons berrantes; a testa era rudimentar, e uns desastrados laivos de água oxigenada sarapintavam cómicamente a maranha abstrusa do cabelo pegajoso e sujo; pela fartura pendente do colo moreno havia por igual, às dedadas, a lambugem clara dos cosméticos; e à raíz da face opada rasgavam-se uns grandes olhos brilhantes mas apáticos, na sua vítrea imobilidade reflectindo uma fixidez obtusa de sáurio, uma credulidade estúpida.
O Silveira compreendeu num relance que esta presumida e grotesca marafona era naquele momento o centro burlão das atenções e o tema desopilante da conversa. Com efeito, não tardou que o amigo lhe não dissesse, apontando com solenidade a exibitiva carcassa em frente, numa irónica reverência:
-- Chegas na melhor ocasião. Tenho o prazer e a honra de te apresentar a "señorita" Calliope Cernadas, uma joven e distinta cantora, próxima debutante no "Colón"... -- E com um patente ar zombeteiro, num gesto de solícito apoio aos circunstantes, acentuou: -- Em plena primavera da vida, como vês... Vinte e cinco anos, "no mas". Um flamante embrião de artista e um coração inabordável! Não é certo?...
De roda houve um bem simulado cabeceamento de convicta anuência, enquanto a embaída vítima trejeiteava desvanecidos requebros, em meio do côro hilariante da assistência. E para ela agora com a mesma urbana solenidade, o Azeredo, indicando o amigo:
-- O meu amigo e patrício João da Silveira, solteiro, rico, poeta... O homem que lhe convêm... Um grande fidalgo e um grande enamorado.
No mais caricato arremêdo de êxtase, a enxundiosa Calliope revoluteava a apática inexpressão dos olhos, mordia o lenço, parodiava atitudes infantís e motêtes ingénuos. Entretanto, na sua apologética parlenda o Azeredo tornou:
-- Uma voz de oiro!
-- Dito por todos os mestres, -- confirmou Calliope com fatuìdade.
-- Cinco anos de Conservatório e dez de lições particulares.
A inocente visada teve um salto de despeito. E a seu lado o violinista, coçando deliciado a nuca, piscando um ôlho:
-- Não se pode dizer um talento muito espontâneo...
Porêm, vagamente apiedado, o Silveira:
-- Deve ter começado de muito criança.
-- Era tudo fôrça da vocação... -- aclarou o Azeredo, no mesmo tom escarninho: -- Quando largou o "biberon", já solfejava.
Em volta da mesa, agora, o riso estalou sem rebuço. E o avantajado andaluz, que acendera o cachimbo, fazia, mudo, sorridente e matreiro, o giro atento da casa.
Mas de repente o Azeredo, consultando o relógio, ergueu-se. -- Eram horas de voltar ao escritório: -- E saíu rápido, com o amigo, conduzindo-o familiarmente ao seu quarto singelo e claro, com varanda sôbre a rua. Ainda podiam quedar-se uns minutos. Acendeu o cigarro e sentou-se, na préga trocista dos lábios apagando-se-lhe as derradeiras vibrações por êsse jôgo desopilante com a "señorita" Cernadas. O Silveira perguntou-lhe -- que "bolha" fôra aquela de mudar de pensão? E com ar enfadado, sucudindo os ombros, o Azeredo explicou:
-- Aquilo lá era uma maçada, menino! Imagina: a tal viúva chilena dava-me uma sorte completa... e que rica mulher! impetuosa, louca, insaciável! Porêm o lamecha do caixeirola, perdidamente embeiçado por ela e sem sorte, tudo era voltar-se contra mim, dardejava-me olhares de desafio... um riso! fazia-me arremessos... E à sua arisca Dulcineia escrevia então umas cartas lacrimosas e tétricas, tresandando bafio romântico, nas quais havia desgrenhados apelos ao refúgio amargo da morte, e por entre cujos rábidos arrancos tremeluziam ameaças de vingança.
-- Que te importava a ti?
-- Não, mas é que ao mesmo tempo essa pobre rapariga "tanguista", que era uma triste lambisgoia, dizia-se apaixonada por mim e daí seringava-me a todo o momento, metia-me bilhetinhos pelo buraco da fechadura, espiava-me, com scenas de ciúmes... Uma carraça, uma cataplasma, um tédio! Uma noite, comeu as cabeças tôdas duma caixa de fósforos e foi naquela casa um reboliço... vomitórios, fricções, prantos, desmaios... tivemos que levá-la à Assistência.
-- És o terror das pensões baratas.
-- De sorte que eu então, p'ra evitar uma dupla tragédia, tive um iluminado rasgo de prudente decisão e raspei-me. E aqui, estou bem. E uma casa "reinadía"... O diabo da patroa joga como uma danada nas carreiras, e de cada vez que ganha, é um deboche de "champagne" com os hóspedes e as amigas. -- E logo num tom de desafectada cordealidade, todo dobrado para o amigo: -- E tu por lá, meu maganão?...
O Silveira desfiou regaladamente a narrativa entusiasta e louçã da sua breve estada no campo, -- a imensidade lendária da "pampa", a luz, a côr, a paìsagem, o inéditismo claro dos aspectos, a rude singeleza dos costumes. Espraiou-se em gratas referências ao hospitaleiro carinho dos Saavedras, enaltecendo de preferência, em enternecidas frases, essa doce e encantadora figura de D. Teresa, na sua aberta simplicidade, na sua bondade inverosímil.
Com um risinho misterioso, o Azeredo aventurou:
-- Sim, sim... Ainda tu não sabes quanto ela é de boa!
-- Então?...
-- É uma sogra rara, única, paradoxal.
-- Como assim?
-- Sabes que ela tem uma filha casada, agora em Paris, a qual lhes deu já um netito, êsse "guapo muchacho", o Eduardo, que é a exclusiva adoração do avô. Ora o pai do pequeno é um perdulário, um sem vergonha, um sensualão, um estroinaço impenitente. Pois esta D. Teresa, na sua louca dedicação pela filha, tem a santa ingenuidade de assegurar uma mesada ao genro só p'ra que êle, com as suas "calaveradas", não dê desgostos à mulher.
-- É bôa! Era uma sogra assim que me servia.
-- Não haverá duas na terra.
A seguir, o Silveira, depois duma pausa, -- e como quem tímidamente retarda o defrontar com uma dificuldade, ou voluptuosamente dilata a fruìção dum prazer, -- referiu-se a Maria Mercedes, pastichou-lhe em tintas de vivo entusiasmo o deslumbramento da beleza física, apontou em vagas e trémulas linhas de incerteza a complicação desconcertante do seu perfil moral. E nesta empolgante análise retrospectiva, a despeito do tom deliberadamente ligeiro dos seus conceitos, a cada momento a comoção traía-o. Inadvertido e quente, descobria-se. Um sôpro de íntimo incêndio trazia-lhe a alma aos lábios, ao ensaiar a turbadora evocação dêsses formidáveis episódios, dessas horas atormentadas e profundas, relâmpagos de enlêvo, eternidades de dôr, delícias dum instante.
O Azeredo, dando-se grado a grado conta da situação, escutava-o em silêncio, num crescendo de apiedada estranheza, com aborrecimento, com quesília, com desgôsto. E por fim, tomando o chapéu para sair, com a bôca severa e os cílios graves, aconselhou:
-- Tem-me conta com essa "gaja"... Começa por te derreter os miolos e acaba por te fundir a algibeira.
-- É rica.
-- Não importa. A esta gente aqui está-lhes na massa do sangue: «estafarem" o seu e o alheio.
Voltaram naturalmente a juntar-se naquela tarde os dois amigos. Jantaram na "Rôtisserie Sporstman", e foram ao teatro "San Martin", desemborrar um pouco os nervos na contemplação da mímica petulante e lúbrica da Pastora Império. No dia seguinte, esperto e ligeiro, deu-se pressa o Silveira em ir fazer o giro matinal de Palermo, onde já sob a claridade molhada do ar, na renovação da temporada elegante, um cordão de deliciosas silhuetas dandinava pela orla escovada das "pelouses", e a envernizada frescura do asfalto se emplumava do trotar garboso das amazonas. Sentia-se bem... Reganhava-o o sugestivo encanto da vida ampla e fácil da cidade. Naquele doce ambiente de agrados e belezas o seu estimulado ser tinha um aprumo salutar... a vontade tomava raízes, a sua galharda juventude frondejava em ímpetos, sentia o pensamento inerte, embevecida a alma, o coração cativo. -- Buenos-Aires, bem se dizia... era o Paris da América, seguramente! -- Vinha-lhe o dulceroso apetite de quedar-se esquecidamente ali, nesse adorável ninho da felicidade, essa esplendorosa sucursal do Paraíso, deslumbrante e imensa caravançara onde à compita, vinha estrelar-se o escol das civilizações, onde émulos se davam cita os génios de tôdas as raças, o melhor dos progressos, das grandes conquistas morais e materiais de todo o mundo... ali, o privilegiado solar da fortuna, da abundância e da harmonia, a terra das mulheres de lindas bôcas, de rostos de linhas puras e suaves, tendidas com nobreza.
Duma das vezes, ao desembocar na "Avenida das Palmeiras", cêrca do lago, pareceu-lhe distinguir na sua frente, entre o pintalgado baralhamento da quádrupla fita de veículos, uma figura sua conhecida. Era com efeito o grosso e ponderado Mafiori, que descia dum aparatoso "Peugeot", e mal que reconheceu o Silveira, veio logo adonde a êle, importante mas afável, a oferecer-lhe as duas mãos e a perguntar-lhe -- como ia. Cortês e solícito por igual, pediu-lhe tambêm o Silveira informações dos seus negócios. O marquês estava remoçado, parecia feliz. Os olhos flácidos tinham mais brilho, a vasta e epilada testa desanuviára, e tôda a face rosada e redonda florescia, erguida pela saúde ou dilatada pelo prazer. Às interessadas perguntas do amigo, êle sorriu. -- Bem! muito bem! -- E com a sua fidalga e resignada bonomia aclarou, encolhendo os ombros, -- que aquela forçada abdicação dos seus fóros nobiliárquicos trouxéra-lhe sorte, afinal. Estava fazendo bastante negócio. Fizera uma bôa venda aos Spantuzzi, outra aos Ribolto, estava alcatifando de novo a casa tôda dos Arriola, -- um palácio! -- e tinha uma grande encomenda para o "Jockey-Club".
E sempre com dignidade, uma ligeira sublinha de irónico desdêm a encrespar-lhe os lábios:
-- A esta hora, já as venerandas ossadas dos meus maiores hão-de haver estremecido, várias vezes, de indignado horror, nos seus ricos mausoléus lavrados. Uma indignação de mau gôsto, no fim de contas... Porque outra coisa não há a fazer nesta terra, que com todo o seu exibitivo pedantismo não passa duma mercearia colossal. Tudo mais ou menos se negoceia aqui: é uma questão de rótulo. O segrêdo está na arte de embair o freguês a encarecer a fazenda.
Depois, num gesto de paternal incitamento:
-- Porque não faz o mesmo, meu amigo...?
Súbito, como na onda vaga da multidão descortinasse algo que o interessava, despediu-se de improviso, embrulhando banais desculpas e rematando amável:
-- Eu continuo no "Plaza". Venha um dia almoçar comigo.
E êle que segue dissimuladamente na peugada duma mulher grande e loira, de idade à primeira vista inclassificável, artista lírica em disponibilidade ou "demi-mondaine" em decadência.
Certo foi que a prática significação daquele seu conselho calou suasiva e funda no ânimo inconsistente do Silveira. -- Seria realmente uma coisa acertada, sensata, oportuna, tentar um negóciosito. Porque não?... Já várias vezes êle o havia pensado: fazer como tôda a gente. Êle trouxéra consigo uns contitos de réis, p'r'ó que désse e viésse... e porque não procurar engrossá-los? de preferência a desbaratá-los p'r'aí estúpidamente, em aventuras banais com mulheres ou jogando à tôa na roleta e nas carreiras?... E, ainda, mais a dura preocupação dos interêsses monetários poderia ser quiçá um derivativo salutar, e ter a virtude de pelo seu áureo deslumbramento dissipar moles inclinações piégas e furtá-lo a exaltações perigosas, como essa agora da diabólica "Miquêtas"... Vá feito! Era o caminho a seguir.
Desta forma, o Silveira, sensível ao contágio do mercantilismo ambiente, perdido, como tantos outros, na embriagadora miragem dum engrandecimento rápido e retumbante, nos dias subseqùentes dava-se com afinco à leitura dos anúncios comerciais dos diários, concorria aos leilões, era um assíduo freqùentador das "vitrines" dos corretores, onde em taboletas relumbrantes de emissões de títulos, vendas de lotes de terras e quejandas alicantinas, se acenava aos incautos com fortunas fabulosas. A intervalos, as venusinas predilecções do seu carácter reganhavam o natural ascendente, e êle então pensava em visitar os Wimeyer, que contudo ainda não haviam regressado do campo. Queria tambêm voltar a ver os Améglio; porêm aquela cavilosa duplicidade de "Mrs." Edith irritava-o... Era porêm evidente que, por momentos, a branca crôsta da sua alma metalizava-se. Já jogava em fundos e entrára com capital para a fundação duma "Sociedade Internacional de Seguros". Êle era o primeiro a fazer troça de si mesmo, desconhecia-se... e com familiar abandôno comentava, perante o Azeredo:
-- Tem graça! eu tam influido agora com negócios... coisa que não é nada o meu feitio.
E meio incrédulo, o amigo:
-- Não te dura muito!
Contudo, o Azeredo, vagamente scéptico mas no fundo de acôrdo, entendia que sim, que fazia muito bem! porêm tinha que precaver-se e ter muito ôlho contra essa imensa praga de "estafadores" e meliantes... Ao mais pintado êles faziam o "conto do vigario", a cada instante! Por isso, que não tratasse senão com gente bem conhecida. Havia de apresentá-lo no "Club Progresso", onde teria ocasião de relacionar-se com importantes financeiros e industriais, com grandes e autênticos "terratenientes", com fazendeiros honestos e firmas garantidas.
Entretanto, tôdas as manhãs, com uma pontualidade de amanuense, o endurecido Silveira subia a "Avenida de Mayo" para ir ver as cotações da Bôlsa e em seguida fazer, por "San Martin e Reconquista", o interessado giro do bairro clássico dos negócios, dando-se a acariciadora ilusão de ser já um grande capitalista ou proprietário. E ao mesmo tempo alguêm havia que, com solícita antecedência e uma pontualidade igual, em face mesmo do seu hotel, da esquina oposta da Avenida, em plena rua, aguardava em suspenso a sua aparição e espiava afincadamente a realização quotidiana dêste acto banal da sua vida exterior. -- Uma simples e adorável rapariga do campo, verdadeiro diamante em bruto, miudita, morena, bem calçada mas vestindo pobremente, com o ar um pouco estranho, desageitada, esquiva, em cabelo. Tinha férvidamente posta a vida, o apetite, o desejo, na enternecida fixidez dos grandes olhos negros, incansavelmente apontados ao portão espelhento do hotel; e, fechada no exclusivismo da sua mordente inquirição, como que buscava anular-se para tudo o mais, tímida e pequena ante o roce brutal da multidão, furtando-se aos galanteios, repelindo, assustada e arisca, as propostas equívocas dos que passavam. Depois, quando a aprumada figura do Silveira assomava à porta e saía, passeio fóra, a caminhar distraídamente, a sua encantadora e ignorada espia vibrava ao imperceptível estímulo dum inefável júbilo interior e seguia-lhe humilde na peugada, durante uma ou duas "cuadras", paralelamente; e por fim, quando se perdia ao longe, na atropelada onda do movimento, aquele desprevenido alvo do seu cuidado, ela por seu turno, à primeira esquina, dobrava e desaparecia tambêm num relance.
Mais de uma semana, com inalterável precisão, dia por dia, se prolongou e repetiu êste jôgo inocente para o inadvertido ânimo do Silveira absolutamente despercebido. Té que, duma vez, como êle tivesse que dirigir-se à "calle" Vitória, apenas saíu do hotel cortou direito a Avenida e veio assim a cruzar-se, quáse ombro com ombro, com a interessante figurita anónima que o espiava, e que na sua deliciada confusão, ao primeiro instante, queria evitá-lo, eliminar-se, fugir... Impossível deixar de notá-la. E logo súbito, numa expansão de grata surprêsa, reconhecendo-a:
-- Ó Luísa! tu aqui?...
Tolhida numa vergonha, a gentil rapariga torceu as mãos, baixou os olhos, enquanto a frescura virginal da face tôda se conflagrava em tintas de incêndio.
Abrindo acolhedor os braços, o Silveira interrogou:
-- Então? deixaste a "chacra" onde trabalhavas?
-- "No me pagaban".
-- E teu irmão?
-- "Me pegaba".
-- Pobrezita! bem digo eu... -- bondadoso o Silveira tornou; e com apiedado interêsse, a seguir: -- Fugiste então e vieste p'ra Buenos-Aires governar a vida?
Numa tácita aquiescência, muda e indecisa, Luísa sorria vagamente.
-- E gostas? -- indagou o Silveira, muito afável; e como a sua linda desconhecida abanasse afirmativamente a cabeça, com o vago sorriso de há um momento aquecido agora por uma adorável expressão convicta: -- E porquê?
Luísa teve uns segundos de comovido silêncio e por fim, dobrando humilde o busto, com as abatidas pálpebras seguindo, em baixo, o movimento dos pés, que em taramelados giros raspavam trémulos na orla do passeio, murmurou:
-- "Porque aqui estoy mas cerca de Usted"...
Pelos arrepiados nervos do Silveira uma branda emoção correu, mixto fundente de orgulho e de prazer, de fatuidade e de ternura. Sentiu-se quebrado, preso... Atingiu-o em cheio na alma a ingénua confissão, a doçura sentimental da rapariga. Naquela tarde havia uma reùnião de acionistas da tal "Sociedade Internacional de Seguros", e êle ia agora à "calle" Vitória para ter uma conferência prévia com um dos membros da Comissão Directiva, pois sobravam razões para desconfiar que semelhante "Sociedade" não passava duma audaz mistificação, duma burla descaradíssima, na qual êle via já infelizmente a arder o seu rico dinheiro! Porêm, num pronto, a aparição de Luísa, ante a inefável magia daquelas palavritas de oiro, vencido pela singela eloqùência duma confissão tam espontânea e tam formal, tôda a sua grande preocupação financeira, -- uma preocupação de enxêrto, -- se lhe varreu do sentido... Ao mesmo tempo, numa tristeza de instinto, fitava com demora a sua passiva interlocutora, olhava-a bem, considerava a sua rudeza inata, o exotismo da sua figura, a miséria do seu arranjo... e sentia-se vèxado; via-se que não podia decentemente quedar-se ali assim muito tempo, às claras, nesse comprometedor "tête-à-tête" num logar tam público, nem tampouco acompanhar com ela. Mas tambêm, -- que demónio! -- esquivar-se agora e deixá-la, retribuir êsse infantil abandono com a indiferença, seria a maior das ingratidões, uma desumanidade, uma cobardia. Por isso êle, de repente, cedendo a um cavalheiresco impulso interior e todo dobrado para Luísa, olhando-a com carinho:
-- Já almoçaste? queres comer?
Por seu turno, Luísa, sem ousar encará-lo, as mãos juntas erguidas aos lábios e confrangendo o busto, tartamudeou uns monossílabos de embaraço. E o Silveira então, adivinhando-a, tomou-lhe do braço, e com afectuosa decisão, familiarmente:
-- Anda daí!
Internou-se com ela em Vitória, mandou-a seguir rua abaixo, na sua frente, um pouco a distância, em direcção ao Congresso; e aí dobraram rápido para Entre Rios, onde entraram num "bar-restaurant" de ínfima classe, velhacouto barato de "menesterosos", rufiões, cocheiros, "chauffeurs", caixeiros sem patrão e "redobloneros" sem clientela.
Abancaram os dois a uma das mesas mais interiores, numa discreta penumbra, e, à aproximação solícita do moço, dobrado em interrogativa atitude depois de haver passado maquinalmente o guardanato sôbre a tábua encardida, o Silveira insistiu com a suave morenita p'ra que dissesse -- o que queria tomar. E ela, numa deliciosa hesitação, com a face incendida e os olhos húmidos, sem acabar de ageitar-se na cadeira, não atinava igualmente com o que havia de escolher. -- Não queria comer. Passára-lhe a vontade... -- Contudo, após uma laboriosa inquirição pela hipertrófica lista dos ágapes em giro, decidiu-se afinal por um chocolate "liviano" e "sandwiches". Êle pediu um "Bilz". E com familiar naturalidade, num singelo abandôno, algareira, feliz, Luísa foi então contando: -- Ela não andava por'li assim tam perdida como o seu "querido nenito" imaginava. Já estivera por duas outras vezes em Buenos-Aires; a última, quando foi do centenário. Tinha mesmo aqui uma irmã... E que lá no campo moíam-na com trabalho e ainda em cima não lhe pagavam. Guilherme, o irmão, era um desalmado, um bruto. Ela arrastava assim uma vida de negra, era certo... mas, em suma, como não sabia o que era mundo e não alcançava a mais, ia-se conformando... A vélha adivinha de Castelli lá dizia: que cada um nasce com o seu destino já talhado. Que lhe havia de fazer?... Porêm que depois, de repente, nessa terrível tarde que afinal se volveu p'ra ela numa aurora, ao vê-lo surgir tam milagrosamente e salvá-la, sentiu que se lhe abrira qualquer coisa dentro da alma! como ela não sabia explicar... via e abrangia agora as coisas por uma outra forma, compreendia como podia "quererse" a alguêm... e que a sua verdadeira existência começara naquele momento, que não mais poderia quedar-se ali onde a querida imagem do seu rico protector, lhe aparecia a todo o momento, infiltrada de saùdade, reclamando-a com império.
Premindo-lhe a mão com doçura, o Silveira interrogou:
-- Mas que te importa a ti?...
E ela, num profundo acento, gravemente:
-- "Nada mas me importa en el mundo!"
A seguir, por entre as freqùentes olhadas oblíquas da freguesia equívoca do "bar", intrigada pelo estranho "accouplement" daquele rico "mozalbete" com uma tam ordinária "piba", Luísa continuou desfiando, -- que, resolvida a partir, fôra a socorrer-se com aquela santa senhora, D. Teresa, a qual lhe deu algum dinheiro e uma carta de recomendação para êsse "gran comercio de imagenes" que havia na "calle" Suipacha, onde a admitiram como caixeira. Tinha graça! todo o dia agora a lidar com santos, ela que nunca se havia confessado nem comungado na sua vida.
-- Conféssas-te agora a mim.
-- "Es que el señor es mi santo preferido. El señor y San Antonio".
-- Mas então, estando aí empregada, como é que?...
-- "A las once salgo á almorzar. Y yo iba en una carrera y luego me ponia en acecho, ya sabe, frente mismo á su hotel. Por suerte algunas veces mi amor tardaba en salir... Y yo entonces, despues de verlo y seguido un rato, como ya no tenia tiempo, volvia apurada á la tienda, sin comer".
-- Que disparate!
-- "Es la cosa mas natural... Y no se me importa: soy de poco comer".
-- E aqui onde vives?
-- "En la calle Tucumán, en una pensión muy cómoda e barata, dirijida por una espécie de monjas, que ese buen santero de Suipacha me indicó. La casa es solo para señoras y señoritas. Tengo un lindo cuarto, con el piso encerado y la camita blanca. Tratan muy bien à la gente. Pero tiene una cosa fastidiosa: no se permitem visitas y despues de las nueve de la noche ya nadie puede salir".
-- Se precisares de alguma coisa...
E com crescente animação Luísa, num progressivo abandôno de todo o seu ser confiado e vibrante:
-- "Preciso, si... preciso verlo, oirlo, tenerlo algunos momentos cerca de mi, asi, bien cerquita! Sus ojos me llenan el corazon de sol, su simple presencia me infunde valor. Preciso tanto de ella como del aire y de la luz, para vivir... e con ella me contento, toda vez que no puedo aspirar á su cariño. Lejos de Usted es como yo ya no podria vivir! Porque ahora es una cosa tan diferente... Si el señor vise como yo, allá afuera, vivia solita y triste, sin afectos, sin amparo, sin una pisca de alegria!... Por eso necesito que se me convierta en un dulce y leal amigo de siempre, mi generoso protector dun instante. Que cargosa le voy a ser!... No se acuerda el señor de aquella noche en que la siniestra lechuza nos seguia todo el camino?... Nos ligó en la vida y en la muerte. Es la suerte ya vê... Y yo confio en ella y á ella me entrego, y estoy contenta. Porque decia mi abuelita, que Dios tenga en su gloria, que cuando la felicidad se pone delante de nosotros á abrirnos un camino, es como la desgracia, -- es por mucho tiempo".
Vagamente apreensivo, num frio e convencional sorriso, o Silveira murmurou:
-- Bem, está bem...
Luísa agora mudára de expressão, e com adorável infantilidade, tristemente, olhando-se com desprêzo:
-- "Lo peor es que yo, verdaderamente, en esta facha, me averguenzo... si, reconozco, tengo que confessar que no soy digna de Usted!" -- Mas logo, numa coqueteria ingénua, recobrando-se: -- "Ah! pero tambien yo sé vestirme como las señoritas de la ciudad. Y tengo com qué, gracias al Señor!"
-- Não tens um chapéu?
-- "Como no! Y una linda blusa de seda, pollera con pliegues y cordon de oro". -- Atirava com decisão o guardanapo: -- "Vá a ver!"
O Silveira expandiu-se num claro riso, entre trocista e incrédulo; e após uma pausa, voltando a afagar-lhe com carinho a mão sôbre a mesa, suavemente:
-- Mas, dize-me: então, sério, sério, não te lembra o campo?
-- "Que me voy a acordar?"
-- Não deixaste por lá nenhuma inclinação? não tens saùdades?
-- "Inclinación?... Acaso sé lo que es eso!"
-- Era natural...
-- "Nadie! nadie!" -- E com um sincero calor, beijando os dois indicadores postos em cruz: -- "Juro! por esta... Yo naci sin una flor en el alma. Yo andaba por ahi como una pelota lanzada al acaso, sin paradero, sin hogar, sin destino. Quien hacia caso de mi"?... -- Depois, comovidamente, com os antebraços ao alto, as mãos postas em súplica e as pupilas ardentes num amoroso enlêvo despedidas ao busto atónito do Silveira: -- "Ahora, si! es que yo creo haber finalmente encontrado mi familia, mi mundo... ahora es que yo compreendo la razón y el fin de mi vida. Que feliz soy! Cuanto le debo!"
Súbito, como no seu enlevado giro os alarmados olhos de Luísa se fixassem no grande mostrador circular do relógio da sala, a timorata rapariga estremeceu, e como quem desperta dum sonho:
-- "Ah! pero que tarde es!... Que disculpa voy á dar en la tienda, valgame Dios?" -- E pondo-se de salto em pé, apressurada, inquieta: -- "Disculpe-me, si?... Es forzoso. Voy á tomar el tranvia".
Arredou a cadeira de golpe, e enquanto o Silveira pagava, sem uma palavra de despedida mais, sem um agradecimento banal, sem mesmo esperar por êle, partiu precipitadamente.
O Silveira ficou ainda, uns minutos, como avergado ao pêso dum inconfessável cuidado. Acendeu um cigarro, saíu morosamente... e longamente depois, penseroso, inerte, foi subindo a pé a praça do Congresso. -- Em que viria aquilo a dar?... ia vagamente contrariado, porque sentia que demasiado o preocupava aquele trivial episódio "callejero". Increpava-se da sua debilidade. O saboroso desenlace desta aventura picante seduzia-o, fazia-lhe negaças ao desejo; mas simultâneamente, perante a turbadora ameaça do contubernal convívio com essa criatura delicada e simples, o seu epicúrio egoísmo revoltava-se. E como quem padece dum mal secreto, como se premeditasse algum delituoso plano ou houvesse cometido alguma acção indigna, guardou-se de contar qualquer coisa ao Azeredo.
Curioso foi que à hora habitual, na manhã seguinte, -- e embora não houvessem feito nenhum acôrdo prévio, -- lá estavam os dois outra vez cada um no seu posto; dando-se até o caso singular de ser o Silveira quem apareceu primeiro. Pronto êle havia baixado ao salãosinho de leitura do hotel e daí, sem mesmo pensar em almoçar, recostado com indolência num "fauteuil", junto à janela, seguia espiando em disfarce a aparição, na esquina defronte, da sua linda e suave companheira. -- Nada tinham combinado, mas de seguro que ela havia de vir! -- E, forte nesta acariciadora evidência, a curtos intervalos êle não despegava de apontar os olhos codiciosos ao outro lado da rua. Muito não tardou que a sua femieira impaciência não fôsse satisfeita. E então, mal que o insofrido galã viu em frente, debuxar-se no torvelinho vago da multidão a fina silhueta apetecida, ergueu-se, tomou o chapéu, correu à porta... num momento estava junto dela. -- Vinha outra, com efeito, naquela manhã, conforme anunciára. Já parecia alguêm... Cómicamente travestida em "señorita", trajava uma singela blusa em "soyau" crême, decotada, com largo cabeção à Tudor, segundo a moda; uma saia negra em sino, muito curta, com sobre-saia "plissée", da mesma côr; bota de pelica e verniz, e meia branca; ao colo um ténue fio de oiro; na cabeça um barato chapéusito "panier", de palha castanha, rebatido sôbre os olhos e atrás em sôlta curva erguido sôbre a mòlhada luzidía do cabelo, pregado à nuca; e umas luvas triviais de algodão branco, pospontadas de negro, sujeitavam a rústica aspereza das mãos, donde pendia uma bolsinha de sêda.
Entalada nesta convencional, e para ela quáse inédita, indumenta urbana, Luísa aparecia desfigurada. Era uma autocaricatura. Era como uma estiolada flor trazida do campo. Na sua improvisada encadernação havia o que quere que fôsse de contrafeito e exótico, que a desfavorecia. Ela mesmo não se sentia à vontade... os movimentos eram hirtos, a expressão estranha, não sabia que fazer dos braços. Estava adorável de embaraço e de ridículo. Mas a tudo sobrelevava sem esfôrço o contôrno picante da sua figura, e dessa contrafacção irrisória zombava triunfal a sua mocidade recendente, a sua palidez fresca de flor, a sua graça nativa, a sua confiança ingénua, o seu viço exuberante.
Saùdaram-se por um cordeal apêrto de mão, e de roda dela o Silveira tudo era mirá-la de gôsto e aplaudi-la, complacente e risonho festejando-a por aquele milagre de metamorfose tam sedutora como imprevista. Achava-a encantadora. Porque de todo aquele ingénuo esfôrço ressaltava a exclusiva, a ardente preocupação de interessá-lo; todo êsse preparo coquete era um discreto convite, um desafio evidente, que o enardecia... Do mesmo passo, a confusa e tímida criança, no íntimo lisonjeada, pedia mimadamente -- "que no le hiciese burla"...-e trejeiteava umas infantís e humildes expressões que, eram a demanda subtil do seu agrado.
Contudo o Silveira encontrou-a triste. Mantinha-se inconcebivelmeute perplexa, muda, cabisbaixa. O que quere que fôsse de penoso e molesto lhe ensombrava a expressão, lhe pesava nos lábios e abatia o vôo sonhador das pálpebras. Interrogou-a com insistente carinho e ela sempre no mesmo silêncio embaraçoso e difícil; té que por fim, por muito instada, balbuciou a custo: -- que ao entrar na loja, na véspera, como chegasse uma hora mais tarde, não quiserem saber de razões nem desculpas. Pagaram-lhe e despediram-na.
Tomado dum indominável frio egoísta, o Silveira exclamou:
-- E agora?...
-- "Ahora que sé yo?" -- murmurou Luísa mansamente; e na sua resignação fatalista, encolhendo os ombros: -- "Busco otra casa".
Insensivelmente haviam retomado a andar, rua abaixo, agora já sem esquivanças, sem hesitações nem dúvidas, mano a mano, como dois iguais, como dois bons amigos. Mas seguiam sem palavra ferir, silenciosos e graves, a par um do outro e distanciados pela interposição dêsse arreliador problema económico, filosofando em comum sôbre a dura incerteza do futuro. Porêm, súbito, um outro problema bem mais grave formularam as exigências fisiológicas do Silveira, -- a necessidade de almoçar. E êste era de solução imperativa, imediata. Fez sinal ao primeiro "taxi" fechado que passou, empurrou para dentro a rapariga e, de mão à portinhola e pé no estribo, ordenou ao "chauffeur" que tomasse em direcção ao arrabalde, aí para Flores ou Olivos, e que aterrasse nalgum pequeno "restaurant", aceado e cómodo, onde pudesse almoçar-se bem e a bom recato.
E nesse acomodatício bucolismo de fóra de portas foi onde gozaram o seu primeiro idílio, -- breves, fugazes horas de paz e de enlêvo, vividas ao acalentador abrigo dos muros dum exíguo "patio" colgado de trepadeiras, em cujas sombras transparentes os raios do sol vinham quebrar-se, dançando, como sarabandas de beijos, como boquitas de oiro. Gradualmente aquecendo, o Silveira, profissional emérito nas práticas da sedução, envolvia-a em cariciosas espírulas de encantamento e de sonho, acenava-lhe com promessas, espertava-lhe desejos, insinuava-lhe desvarios, dizia-lhe coisas audazes e perversas que a deslumbrada criança recolhia inteiras, num embevecimento ingénuo, com os grandes e lindos olhos muito abertos, que pareciam escutar. Depois Luísa tambêm, no progressivo alento da confiança e pelo eflúvio excitante da comida, tornava-se ligeira, expansiva, fácil, tagarela, e com a sua vozita límpida e vibrátil, titilando como uma luz ao vento, fazia o enternecido relato do seu passado, da sua vida de desamparo e miséria... e como agora sempre o seu pensamento rodava incessante em volta do seu rico amor... desnudava as mais íntimas prégas do seu sentir, punha da mais comovedora evidência a intacta virgindade da sua carne e a nívea pureza da sua alma. Ao cabo, no regresso, quando dentro do auto os dois outra vez, êle cingiu-lhe a cintura, puxou-a a si, beijou-a sôfregamente... e ela abandonava-se, poisando-lhe em delíquio a cabeça contra o peito, encolhidita, humilde, gozando o prazer inefável de sentir-se pequena junto ao homem que adorava.
Nos dias subseqùentes, é de saber, a embriagadora scena a repetir-se. Um e outro tinham o dia todo por seu: nem ela nutria agora maior empenho em buscar nova colocação, nem tampouco êle se interessava demasiado pelos negócios. Narcotizava-os a tirania mole do instinto, embalava-os, adormecia-os uma preguiceira onda de prazer. E assim, numa despótica e mútua sedução, dias pós dias, foram indominávelmente consumindo o tempo e pelo seu amoroso exclusivismo enchendo as horas, num delicioso deambular de acaso, alheios ao mundo, perdidos pelas tascas dos bairros suburbanos, delidos nas orvalhadas sombras do Tigre, extraviados na quietude vaga e balsâmica do campo. E êste delicioso parêntesis de sonho engrinaldava-o Luísa com um chancear cristalino e alegre, intervalado de carícias tam espontâneas e tam ardentes, que o inflamado Silveira não sabia por vezes a que sobreùmanas fôrças socorrer-se para enfrear a violência do desejo. Eram as consabidas étapas duma capitulação moral, gostosa, inevitável, em que a alucinada criança ia deixando a pedaços o pudor, -- essa epiderme da alma, -- como antes, pelo campo, a fímbria da rústica saia esgarçada nas balsas dos caminhos.
Debalde prudencialmente o Azeredo, já ao tempo conhecedor da situação, buscava conter e dissuadir o amigo. Fazia-lhe ver, dêsse resvalo inobre em que se obstinava, as responsabilidades, os contras, os alçapões, os tédios... porventura os perigos. -- Que precisão tinha êle? com tanta mulher por'í e noutras condições, e mais educadas, mais lindas, melhores, seguramente! -- A nada porêm cedia a libidinosa querença do Silveira. Se êle a princípio hesitára, agora, mercê da garra mansa do convívio, o domínio, o gôzo, a plena posse de Luísa tornára-se para êle uma idéa obsidiante. Pressentia-lhe o aroma e o sabor dos frutos silvestres. Como um cacho ruivo de medronhos, embebedava-o o apetite acirrante de mais esta aventura, tanto na sua tradição como do seu agrado. Por fim, lógicamente, amaram-se na cumplicidade mercenária duma "casa amueblada". E logo nessa noite o Silveira, quando a sós, no hotel, com a reflexiva calma do seu leito, sentiu correr-lhe a espinha um frio de vaga e presága angústia. Inexplicavelmente, e uma vez dissipado agora, com a posse, o encanto, o devassado mistério dessa criatura confiada e simples, uma sorte de áspero cuidado espancava-lhe o sono... remordia-o um amargo e apiedado sentimento, para êle desconhecido. Tinha supersticiosas apreensões e vinha-lhe uma tristeza. Quereria retrogradar, increpava-se, arrependia-se... No desfecho tam plausível e tam humano dêsse vulgar lance de amor, a sua consciência em alarme futurava qualquer coisa encaminhada a fazer sangrar a sua alma e a pesar no seu destino.
X
Mais ou menos o mesmo severo aspecto revestiram, no dia seguinte e quando inteirado do sucedido, os repreensivos comentários do Azeredo, que duramente increpou o amigo. -- Afinal havia caído na mesma estupidez de sempre! E p'ra quê, no fim de contas?... Porque não soubera reprimir-se, atalhar o mal a tempo, furtar-se, desertar, reagir? E que tivesse vergonha! pois aquela premeditada violência era sempre no fundo uma acção indigna.
Depois, com uma doçura amável a cantar-lhe na expressão, sensatamente ponderava:
-- Sim, porque essa pobre rapariga agora não te larga... tens que ampará-la no novo caminho que lhe fizeste. Pendura-se-te da vontade, enrosca-se-te ao desejo. E é bem feito! E vai tu, com o teu bom génio, com êsse feitio brando e sensualão, deixas-te gradualmente prender, apiédas-te, habituas-te, condescendes... e acabarás por descer a essa equívoca situação tam do agrado de todo o bom português: a mancebia.
-- Não é mulher p'r'a mim,
-- P'r'os homens fracos e lascivos como tu, tôdas as mulheres estão à altura. -- E num gesto nobre e viril, sacudindo os ombros: -- Porque não fazes como eu?... Tentações dessas prefiro que venham adonde a mim. Fica-se sempre bem... Foi o meu caso com a chilena. O verdadeiro prazer deve ter asas, ser leve como uma pena e fácil como os frutos maduros. Até por uma questão de egoísmo. Pois tu não vês? que diabo!... perante a epicúrea gula dos nossos sentidos, o convidativo saber da mulher feita vale mais que o espanto semsabor da virgindade.
Confundido e vèxado, o Silveira concedia -- que sim... o seu amigo tinha razão. São destas coisas que acontecem. Já tinha que ser... -- Mas logo, com desdenhosa arrogância, recobrando-se: -- O que não valia a pena era dar ao caso maior importância. O que melhormente agora ali o interessava era ganhar "plata". O mais, queria lá saber! -- Aproveitando jubiloso a derivante, logo o Azeredo lhe disse que ainda na véspera, no "Club Progresso", o comendador Niatello com todo o interêsse lhe perguntára por êle.
-- Tem estranhado a tua ausência e com razão. Nunca mais apareceste!
O Silveira prometeu que iria naquela noite sem falta. E com efeito, cêrca das 10 horas, aí entravam os dois a portada banal do "Club", na "Avenida de Mayo". Transporta a modesta escalinata, em mármore branco e mosaico, e atravessado em cima um esguio vestíbulo envidraçado, cortaram logo para o primeiro salão, à direita, uma grande e bem esquadrada peça participando do simultâneo carácter de centro de conversação, "fumoir", biblioteca e sala de leitura. O teto, alto e distante, era todo artezonado em bastos e simétricos caixotões de estuque lavrado, com abundância de oiros e relêvos; pelo amplo lençol das paredes, forradas duma espécie de brocado verde, de lã, com filetitos de oiro, penduravam-se aparatosas taboletas emoldurando recompensas industriais, oleografias, espelhos, a lista impressa dos sócios e o plano policromo da cidade; em baixo, sôbre o envernizado "parquet", havia uma mesa enorme, pejada de jornais e revistas, e disseminavam-se em profusão as cadeiras, poltronas, sofás, "causeuses" e "fauteuils" de tôda a espécie, obrigado refúgio à modorrenta inércia dum avultado número de assistentes, dos quais alguns, raros, em traje de "soirée" ou "smoking", porêm a maior parte encadernados no comodismo plebeu do jaquetão, e todos com arrastado vagar discorrendo sôbre triviais casos mundanos ou tricas vulgares de negócios.
Junto a uma janela abancava, com três sócios mais, o comendador Niatello, um quinquagenário reforçado e grande, de queixo querençoso, de olhos ladinos, saltando com dominador relêvo da abaçanada flacidez da larga face curtida e negrusca, inteiramente escanhoada. Mal que êle descortinou os dois amigos, logo de chamá-los de longe com protectores acenos familiares, afectuosamente. E à sua aproximação ergueu-se e adiantou-se a acolhê-los, numa solícita cortesia, convidando-os logo a tomar "asiento" e apresentando-os sorridente aos três companheiros. -- Todos vélhos. Vicente Alvear, descendente duma antiga família colonial e herdeiro duma grossa fortuna, era ainda uma bela figura marcial, com a sôlta elegância de movimentos que nos dá uma vida fácil. Recêm-chegára da Europa, dizia as coisas mais triviais com solene entono, tinha um certo "aplomb" fidalgo, e o seu rosto liso, afável e atraente iluminava-se da espelhada abundância e frescura do bigode e cabelo, totalmente brancos. Não assim José Piétronero, que desbarbado, esguio, pequenino, era a mais completa e flagrante realização dum dêstes grilhetas eternos do trabalho, vestindo pobremente, com a arisca silhueta repregada sôbre si mesma, os olhitos cavilosos, a face rechupada e o chinó grisalho, recurvo o dorso como um cifrão, as mãos crispadas como garras. Finalmente, Pedro Urquiza era o mais galhardo e mocetão dos três. Grosso, moreno, gordote, a cara opada e macia, o cabelo lustrado de óleos, as mãos moles e brunidas, era bem um tipo de puro e contumás "porteño", no córte arrogante do busto, no desempêno viril dos gestos, na linha imperativa da bôca, entre voraz e insolente, na dura expressão do olhar, entre altaneiro e cínico. Trajava com afectação, de calça excessivamente curta, polainas, grande pérola na gravata e um cravo branco no olhal do jaquetão cintado.
Foi êle quem imediatamente reatou conversa. Fazia a apologética enumeração das fabulosas riquezas naturais do país, postas agora a claro: os jazigos petrolíferos de Comodoro Rivadavia, as hulheiras de Chubut, os incontáveis tesouros em minério da cordilheira. Tanta maravilha por'í assim a explorar! tanta coisa misteriosa, ignorada, inédita, imprevista! No mundo não havia melhor.
-- Parece-lhe então que todo êsse sul da Rèpública?... -- indagou ingénuamente Vicente Alvear, avançando o busto com interêsse...
-- É o nosso futuro Potosi, não há dúvida! Bem vê, o norte para a exploração intensiva é ainda demasiado selvagem, o centro está dando o mais que pode dar... de sorte que é para essas caudais de abundância do sul que deve de preferência voltar-se a nossa atenção e canalizar-se o nosso dinheiro.
-- Parece que essa obra do carvão de Chubut "es un cuento", -- mascou o cauto Piétronero com frieza, fransindo desconfiado os olhos e apertando os braços.
-- Como, "un cuento"!?
-- Sim... eu li algures a opinião do engenheiro Rivoretto, um informe oficial, que diz que são jazigos demasiado recentes.
-- Pelo contrário, -- acudiu o Alvear com entusiasmo, -- na Europa corre que é um carvão que pode competir com o melhor de Cardiff.
-- Poderá... daqui a mil anos.
-- Tudo isso são abomináveis maquinações e intrigas de tanto invejoso, tanto malfadado empatador que p'r'aí abunda! -- contestou indignado Pedro Urquiza. E com persuadente intimativa: -- Não tenham dúvida: o valor das hulheiras de Chubut, mas o valor actual, imediato, é enorme. Depois, há ainda os mananciais do Neuquem, há tôda essa imensa e feraz Patagónia... -- E num ardor de patriótica exaltação, pondo-se em pé, com os lábios imperiosos, com uns olhos de vidente: -- Ah, creiam, meus amigos! por tudo, até pela raça, é no sul que repousa o engrandecimento, é do sul que há-de avassaladoramente romper e impôr-se o grande futuro da Rèpública. E o dever de todos nós é, desde já! não só acompanhar, mas estimular êsse portentoso fenómeno natural com as nossas melhores reservas de actividade, de inteligência e de numerário. -- Rodeou o grupo em duas passadas nervosas, e por fim, abatendo a mão sôbre o engerido ombro do Piétronero: -- Você que diz?
Este teve um instintivo estremecimento, e naquele gesto tam seu, de como quem defende a algibeira, encolhendo os braços todo dobrado:
-- Eu não sou ambicioso... não digo nada.
-- Duvida? tem receio?
-- Não sei, não sei... Aquilo que tenho custou-me tanto a ajuntar!...
-- Não diga isso! Um homem como você, dos do bom tempo, quando inesperadamente se acordava rico... Um felizão, que apanhou fortunas de mão beijada...
-- Sim... porêm o meu amigo não atenta agora, com as reviravoltas da crise, em quantos títulos eu tenho comprometidos... não toma em conta a imensidade de terrenos que eu comprei a 30 pesos o hectare, e que neste momento não valem 5... Ninguêm mos quere!
-- São injustificadas apreensões. Lá virá seu tempo.
-- Virtualmente estou pobre.
Uma girândola de incrédulos risos acolheu êste lamento hipócrita. E a seguir num generoso arranque de confiança, o Alvear:
-- Pois eu cá, não! eu estou meio tentado. O dinheiro que os meus me legaram, p'ra que o quero eu? senão p'ra pô-lo ao serviço do meu país, ajudando-o e engrandecendo-me?... Que essas novas empresas consigam do govêrno, pelo menos, o apoio moral, e o meu capital disponível estará com elas.
-- Bravo! meu nobre amigo. Muito bem! -- exclamou com festiva arrogância o grosso Urquiza, dobrado com esfôrço, sobre a espalda do amigo. E logo para o Silveira, que, sentado ao lado, seguia num vago deslumbramento o giro tintinabulante do diálogo: -- E que diz a isto o nosso simpático estrangeiro?
Aqui interveio o ladino comendador, até então silencioso, e que com dulcerosa expressão, envolvendo protector o Silveira na chispa traficante do olhar, astutamente:
-- Ah, o meu joven amigo não precisa aventurar-se tam longe p'ra fazer fortuna. Tem um pouco mais perto, já sabe... os meus terrenos da província de Cordoba. Não é verdade?
Maquinalmente, o Silveira sorriu; enquanto o Azeredo fransia a testa com desgôsto, o negrusco aliciador continuava:
-- Pode ali fazer uma rica exploração agrícola em larga escala. É o mais simples e o mais seguro.
-- Eu gosto muito do campo.
-- Aí tem! Que melhor oportunidade que a que eu lhe ofereço agora? E olhe que poucos lotes me restam já... Um terreno privilegiado, não imagina! Ainda não viu a exposição dos produtos dessa minha terra, aqui em Florida?... Faz o assombro de tôda a gente. Vá ver, vá... e eu tenho a antecipada certeza que de lá o meu amigo correrá ao meu escritório.
-- Haveria logar para tudo... -- magnânimo o Urquiza aventurou.
-- Nada! nada! "Qué esperanza"... Creia, amigo Silveira, nenhum negócio como êste meu. Garanto-lhe que, em dois anos, tem o valor do seu capital quintuplicado. Quere ver?
E, dizendo, o acobreado Niatello sacava duma pasta e desdobrava aparatosamente sôbre a mesa uma grande planta policróma, enquanto de roda os três vélhos cambiavam entre si um imperceptível olhar escarninho, e o Azeredo impaciente beliscava o braço ao Silveira.
-- Bem! vou ao meu assalto de florete, -- anunciou, num sêco gesto de despedida, o Urquiza. E para o Silveira, com especial predilecção: -- Tive imenso prazer em conhecê-lo, pode crêr... "Calle" Lavalle, 1391, inteiramente ao seu dispôr. E fóra disso, pelas tardes, encontra-me sempre invariávelmente fazendo a "calle" Florida, no "Jockey Club" ou aí pela livraria "Mendeski", pelo "Wictomb", à porta do "Lacloche" ou no "Rumplmeyer".
Seguiu, breve e altaneiro, para o interior da casa, tomando-lhe o exemplo, a poucos minutos passados, Vicente Alvear e o Piétronero, que deixaram o comendador a desdobrar à vontade a sua estratégia de sedução perante os dois portugueses. Assentou êle em pêso a negra mão convincente sôbre uma larga fôlha de papel-tela, onde tentadoramente se estrelava uma grande mancha trapezoidal, escaqueada por um labirinto de pequeninos rectângulos, brancos, amarelos, azúis e verdes, que uma floresta de traços negros definia, e carimbados a algarismos vermelhos. A toalha esfíngica da fortuna.
-- Isto aqui é o melhor que pode haver, notem os srs. bem! Província de Cordoba, departamento de Iulumba. Dôze horas de ferro-carril; é um passeio. O lote que eu lhe ofereço é êste, o n.^o 13, um número de sorte, um verdadeiro "regalo". Veja: são cêrca de oito mil hectares, terrenos absolutamente virgens, a dois passos da linha férrea, abundantes carreteiras, e em condições topográficas excepcionalmente favoráveis, entre a montanha e o rio.
-- Há-de ser caro...
-- Quê, caro? objectou com a mais teatral isenção o comendador. -- O meu amigo não me conhece... De tanta soma de terras aqui vendidas já eu tirei um lucro bastante compensador; de sorte que agora êste resto, -- que não é um refugo, senão um mimo, -- ceder-lho hei por nada, quáse de graça.
-- E como é que tanta preciosidade -- arriscou com impertinência o Azeredo, -- se conservou até agora assim baldia, estéril, ignorada, inútil?
-- E um fenómeno vulgar em tôda esta imensidade.
-- Bem, mas em todo o caso este meu amigo, sem ver, sem se informar melhor... não pode assim de golpe comprometer-se...
-- E porque não vão lá primeiro, certificar-se? Eu até estimo.
-- Desnecessário! -- atalhou, num rasgo de quente decisão, o Silveira. -- Está posta de parte, por descabida entre nós, a questão de confiança. -- Depois a meia voz, para o Azeredo: -- Talvez convenha, hein? -- E na hipnose ingénua do oiro, erguendo-se: -- Olhe, meu caro comendador, eu não resolvo nada de pronto; no entanto peço-lhe que me reserve o lote, que me dê um prazo.
-- Só sendo muito curto, já vê...
-- Eu àmanhã sem falta vou ver a sua exposição, e em seguida, em qualquer hipótese, passarei pelo seu escritório.
E com um efusivo apêrto de mão despediu-se e afastou-se, com o Azeredo, enquanto o comendador dobrava e guardava, num jubiloso vagar, o seu trapaceiro "dossier", com a segurança ardilosa do triunfo a bailar-lhe no olhar astuto.
Não muitos metros andados na direcção dos bilhares, chamou a atenção dos dois amigos, quáse travando-lhes o passo, um grupo atónito e compacto que em extátíca suspensão escutava o verbo suasivo e ardente dum invisível charlatão, sob o domínio empolgante da sua embaìdora parlenda desdobrando cifras e barafustando enganos.
-- É um assunto que eu pensei maduramente, meus senhores! -- pregoava êle na sua ardorosa invocação, convictamente. -- É uma grande empresa, um negócio estupendo!
Cá de fóra e de longe, o Silveira não podia distinguir a figura do industrioso perorador; mas pareceu-lhe reconhecer aquela voz sacudida e vibrante, de timbre metálico, saltando no silêncio espectante de em tôrno como um jôrro de moedas batidas sôbre o balcão. Ergueu-se então em bicos de pés... e, com efeito! era o seu abortivo Ramón Alvarez quem com tam compenetrada fúria encarecia as maravilhas dalgum inédito elixir da sua lavra. E que de repente, ao vê-lo:
-- Oh, meu caro Silveira! Que feliz, que providencial acaso! Quanto estimo! "Pase", "pase", venha ouvir... Como chega a propósito!
E tam pronto fez praça ao amigo, logo êle, para não perder o calor sugestivo do momento, rompeu clamoroso outra vez:
-- Trata-se nem mais nem menos que da construção dum grande, um alado, um colossal e gigantesco pára-sol sôbre tôda a praça de Mayo.
Os paresiados rostos dos circunstantes fulguraram num rasgo de admiração alarve. E êle, impudente, imperturbável:
-- Os senhores compreendem bem a minha idéa, o meu fim essencial: oferecer um pouco de comodidade ao grosso publico, furtar às inclemências do calor e ao rigor das intempéries tôda a imensa aluvião humana que de sol a sol febrilmente circula e se agita nessa túmida aorta da cidade. Mas de passo eu quero reùnir ao útil o agradável, quero adornar de atractivos, rodear de fartas e lindas diversões, essa benéfica estância de repouso. Será um ponto de reùnião forçado, uma obrigada estação de prazer, "chic", estética, elegante. Haverá por exemplo ali assim, logo em baixo, tôda a sorte de "tiendas", "restaurants", bazares, "garages" de automóveis, que sei eu?... Depois, em cima, envolvendo o grande suporte central, e suspenso, teremos um vasto salão de concertos; dos extremos de cada vareta, ao largo de tôda essa perifería, eu farei igualmente suspender quantidade de teatrinhos, cinemas, "bars", estufas, e por fim, no afusado remate do vértice, rendado e fino como uma agulha de catedral, erguer-se há um lindo "belvedére" e flutuará um balão cativo.
-- Encantador, grandioso, realmente!
-- É uma idéa bem americana!
-- Parecer-lhes há estranha, à primeira vista... -- ponderou o grotesco Alvarez, sorridente, pendulando a fenomenal cabeça com modestia. -- E no entanto nada de mais exequível, de mais oportuno, de mais simples, de mais a propósito.
Mas por entre o côro basbaque dos aplausos algumas birrentas dúvidas surdiam.
-- Acho um plano em demasia arrojado.
-- Impraticável talvez...
-- Como, impraticável? -- de salto o Alvarez acudiu, com o frio cobalto dos olhos súbito incendido. -- Ao contrário, hoje, com o ferro e o cimento, é tudo quanto há de mais fácil.
-- A mim parece-me a renovação da cómica façanha do "homem das botas"... com a diferença que esta não custou dinheiro, -- disse em surdina para o Silveira o Azeredo.
-- E a forma prática de o realizar? -- interpelou um ouvinte mais rebelde.
-- A municipalidade consentirá? Já obteve a concessão do exclusivo?
-- Ainda não... porêm tenho a promessa formal do "édecan" da Presidência. -- Um crédulo cabeceamento de aplauso acolheu esta animadora notícia. -- O lucro vai ser imediato, enorme, colossal! -- tornou dogmático o Alvarez; e após uma ardilosa pausa, abrindo familiar os braços, singelamente: -- Agora o que há, é que estas coisas, sem dinheiro, sem muito capital... Eu só não posso... Pensei numa sociedade por acções, de cem pesos, cobráveis em duas prestações. Está ao alcance de tôdas as bolsas. Uma coisa de nada! Aqueles dos srs. que me queiram acompanhar...
Entretanto, nas fôlhas do providencial "carnet" que um solícito "corredor" ia fazendo adrede circular pela assistência, choviam abundantes as adesões e as rubricas dos subscritores. O Silveira inscreveu-se com cem acções, levado na rútila asa dos seus sonhos de fortuna.
Na manhã seguinte, tomado de plutonómica impaciência, êle aí ia visitar, em "calle" Florida, o tam apregoado mostruário agrícola do comendador. A distância de mais de meia "cuadra", já êle distinguiu um grosso grupo de mirones, na sua curiosa inquirição colados com avidez à montra, tomando o passeio e daí alastrando ainda em arrelienta cauda pela rua. Tanta soma de interêsse foi para o hipnotizado Silveira mais um estímulo. Estugou o passo, e, breve, a poder de firmeza e de decisão, pedindo vénia, acotovelando, rompendo, atropelando, logrou alcançar o posto de exame desejado. -- Um perfeito deslumbramento! Distribuida com arte e colmando superabundante a vidreira, havia a mais tentadora profusão de bulbos, de sementes, de frutos, leguminosas e gramíneas de toda a sorte e tudo sôltamente luxuriando em côres sadías e brunidas, em túmidas e aveludadas curvas, em farturas reçumantes, escarolados cofres da abundância, gordos, frescos, viçosos, grandes como êle nunca vira igual! Alguns eram duma corpulência descomunal, verdadeiros prodígios da Natureza.
Havia ali batatas grandes como melões, melões que pareciam abóboras, abóboras que eram como as tôrres da Senhora dos Remédios ou do Bom Jesus, na sua terra. Seguramente, na última exposição promovida pelo Vilarinho de S. Romão no Palácio de Cristal, e que tam falada foi, não aparecera nada capaz de se comparar com isto. Era uma possança paradisíaca que metia positivamente num chinelo os afamados feijões e as couves de S. Cosme, os pêssegos do Varosa ou os calombros de Lamego. Que portentosa produção e que privilegiada terra!
Nem todos pareciam, entretanto, manter esta corrente ingénua de sentir, no heterogéneo grupo da assistência. Um que outro dito mordaz passava dissimulado ou esfusiava escarninho; alguns rodavam num propósito manifesto de troça, assobiando; e mesmo junto à orelha do indignado Silveira, alguêm houve que, fransindo o nariz, com implicativo acento exclamou:
-- Hum! A mim parece-me isto um "conto do vigário".
O Silveira sentiu ganas de contraditar a blasfémia; e sobranceiro a êste deletério contágio, como um decisivo gesto do seu protesto pessoal a tanta soma de imbecilidade e ingratidão, súbitamente, deixou por seu turno a vidreira e seguiu na pressurosa demanda do comendador, -- não fôsse algum mais diligente e esperto antecipar-se-lhe! -- e adquiriu para si o famoso lote n.^o 13. Oito mil hectares de terra virgem, a dez pesos o hectare. Um ovo por um rial. Um negócio de mão cheia.
Descontado êste dinheiro, mais o capital que arriscára na "Sociedade Internacional de Seguros", e o custo das cem acções, do dia anterior, não lhe restava já do seu parco património, feitas bem as contas, mais do que com que viver, e bem escassamente, quando muito, por um ano... Oh, mas que importava isso, se dentro em poucos meses, seguramente, êle dos seus esplêndidos negócios ia colhêr rios de dinheiro! -- Bem bom! bem bom! -- dizia-se, esfregando as mãos, sorridente. -- É um dito êste bem certo: que há males que veem por bem... Afinal, em bôa hora viera. Ia "fazer a América", veriam! Ainda havia de mandar depois as brôas ao Afonso Costa. E que esmagadora lição êle infligia à Laurita!
Arrastado na falaz miragem dêste sonho magnificente, tôda a tarde o Silveira levou, desocupado e frívolo, em prazenteiros "flirts" pela cidade. Começára o delicioso mês de maio, o opulento batedor da "season", arrepiado dos primeiros frios e com as suas plácidas manhãs envôltas vagamente, como por uma peliça cara, nas peroladas franjas da neblina. Apetecia o confôrto caseiro e lembrava, gratamente, o sôpro morno dos "calentadores", o efusivo calor das recepções mundanas, o tépido e sensual ambiente das veladas, dos concertos, dos bailes, dos teatros. Haviam-se inaugurado já os selectos "tés" dominicais do Plaza, e os aristocráticos cartazes com o "elenco" do "Colón" tenorinavam líricas tentações pelas esquinas. Ao longo da Avenida de Mayo, limpa já de ruturas, porêm ciscada a trechos pela chuva outoniça da folhagem dos seus plátanos, várias brigadas de obreiros lidavam regulamentarmente, desdobrando tubagens, firmando plintos, marchetando escudos, aprumando postes, bandeiras, mastaréus, pendurando sanefas de lumes e articulando pórticos de ripado, para as próximas iluminações das festas da Independência. E tornavam a aparecer as equipagens de preço, e pelas ourivezarias e casas de modas cruzavam, em vagarosa importância, as grandes figuras conhecidas. Era "la gente bien" da grande cidade que, de novo, condescendia em mostrar-se, era um novo ciclo da sua ostentosa vida social a definir-se. Opulências, brilhos, vertigens, intrigas, caprichos, loucuras, traições, amores... Era a lampejante renovação de mais um dêsses embriagadores remolinhos de fortuna, de engano e de prazer em que o aturdido Silveira estava disposto agora a deixar-se envolver, pronta e avassaladoramente.
Ora, justo no dia seguinte, primeira terça-feira do mês, os Wimeyer recebiam. Às 6 da tarde, lá estava pontualmente o Silveira à portita discreta e esguia dêsse modesto rés-do-chão da "calle" Paraguay. Desta vez a criada, sem hesitar, abriu logo o batente da porta envidraçada, dando afável o passo ao visitante, que se encontrou num escuro e enfadonho "hall", de teto envidraçado, onde êle poisou o chapéu e a bengala, passando logo, à esquerda, ao salãosinho da frente, que dava para a rua. Aí, sôbre um coçado sofá, no logar de cerimónia, espapavam-se duas assaz ponderáveis matronas, amplas e obêsas, de negro, com muitos bandós e pérolas, atendidas solícitamente pela dona da casa. E não havia mais senão, um pouco à parte, junto ao piano fechado prudencialmente, duas raparigas vestidas de claro, ambas dum córte igual, em pé e com o exíguo ventre em abandôno à frente, os ombros ladeiros, -- cuja frívola atenção Irene e Dolores buscavam maquinalmente prender, mostrando-lhes num convencional agrado um jornal de modas, que as duas delambidas olhavam como por demais, de pálpebras froixas, o longo narizito afilando enjoado no rosto impertinente.
Fez naturalmente sensação a imprevista entrada do Silveira, cortando assim de improviso a sorna frialdade do pequeno círculo feminino. D. Catalina festejou-o muito, dando-lhe com marcada alegria as bôas-vindas, e logo, com o seu ar repousado e lânguido de sempre, apresentando-o às duas bisarmais amigas. A seguir, o Silveira dirigiu-se a cortejar o apartado grupo das quatro jovens, que lhe acenavam com sorrisos; e então, ao defrontar-se com Irene, estremeceu e sentiu que lhe banhava a espinha um frio de estranheza. Olhava, olhava e não queria crêr... Estava mais alta, mais dura e mais forte, engrossára deplorávelmente. Parecia-lhe outra, desagradava-lhe, desconhecia-a... Já D. Catalina o chamava afectuosamente, ageitando-lhe cadeira a seu lado, e o desencantado Silveira não conseguia confortar-se do seu desgôsto nem repôr-se do seu espanto. Sofria a mais amarga e dolorosa decepção! Que era feito então dessa alada e fugidía figura de há dois meses antes? que lance cruel do azar ou que tirania estúpida de raça lhe haviam assim desfeito o encanto ideal dessa visão bemdita, durante a viagem?... Êle estava a ver! perdera a sua linha fidalga, aquele soberbo ar de "palmeira imperial", na sua aérea esbeltez, na sua altívola frescura... Tinha agora uns ombros quadrados e roliços, um pulso de cavador, uma anca rotundamente animal, espatinados os seios, a pele ardída, as feições empastadas e sob o queixo fazia refêgos. Como fôra aquilo, em tam pouco tempo?!
Entretanto, D. Catalina, sem poder dar-se conta desta arreliadora surprêsa do Silveira, carinhosamente interpelava-o: -- Como tinha êle passado durante todo aquele tempo? E Buenos-Aires que lhe parecia? -- Impaciente e distraído, o Silveira arrastava quaisquer vagas banalidades. E logo mui dulcerosa a mãe Wimeyer: -- Que êles é que nunca poderiam esquecer tam bom amigo. Falavam nêle todos os dias... E que haviam recêm-chegado. Dolores estivera com o pai em Salta. Irene, não! essa era mais "regalona", acompanhára a mãe no Tigre.
-- Nunca o vimos por lá... -- aqui acudiu naturalmente Irene. -- Todos os dias à espera!
Com o ar humilde e contrito, quáse vèxado, o Silveira balbuciou -- que, com efeito, confessava o seu pecado... mas nunca tinha ido ao Tigre.
-- Como!? E ainda o diz? -- reprimendou, a fazer de agastada, a doutoral mãe de Irene. -- Não podemos perdoar-lhe semelhante falta! A nossa melhor estância de verão... Nem a Suíça... Dito por todos!
-- O Tigre é lindo! -- acudiu com ênfase uma das paparretas de junto do piano, aproximando-se.
-- A minha filha deu-se muito bem por lá... -- tornou D. Catalina. -- Erguia-se muito cedo, todo o dia ao ar livre... pescava, montava a cavalo, remava muito. Não vê como lhe fez bem?
Neste preciso momento, Irene aproximava-se do Silveira e vinha oferecer-lhe uma chávena de chá, còrando ligeiramente, com a sua habitual singeleza. E posta assim, natural e simples, diante dêle, revelava numa irrecusável eloqùência êsse subito e passivo avatar burguês da sua figura.
Não era nada já a esquiva e patrícia silhueta ideal do "Almeria"; antes, entre tantos, um rebarbativo exemplar mais de fêmea prolífica e segura. Tomando enguiçado da bandejita a chávena, o Silveira não podia no íntimo perdoar-lhe... Os seus olhos agora repeliam-na, o seu coração repudiava-a. Perdera para êle todo o interêsse. Sentia-se roubado.
Contudo, atencioso e galante por instinto, dos lábios frios ia deixando, com importante pausa e um pouco à tôa, escapar seus lisonjeiros comentários sôbre a sociedade e a vida "porteña", frisando a tempo a sua impressão e déstramente sublinhando de admirativas frases o tiroteio vago de perguntas com que o pequeno círculo feminino o assediava, -- tôdas agora em interessado grupo rodeando-o, e as raparigas já com desabusada familiaridade depois que souberam que êle não era casado.
Foi quando pai Wimeyer entrou, e ao divisar o Silveira, os seus olhitos claros chisparam num guloso raio de alegria. Vinha invariávelmente todo de negro, e sempre rosado, gordote, apesar de bastante mais avelhentado. E logo, com o seu ar didático e afável, adiantando-se:
-- Oh, o nosso bom e simpático português por cá! Finalmente... Já me tardava. Quanto gôsto eu tenho!
O Silveira teve um mudo calafrio de terror; e, num aberto desvanecimento, D. Catalina para o marido:
-- Diz que gosta imenso de Buenos-Aires.
-- Promete radicar-se na Argentina, -- acrescentou Irene.
E dogmaticamente o dr. Justus:
-- É o que deve fazer! Em estando mais vinculado aqui, verá como se sente bem. A Argentina é um país cativante, remunerador. Tem o meu exemplo.
-- E então que pode encontrar por'í uma linda noiva... -- lisonjeira interveio uma das arcáicas bisarmas do sofá, em pancaditas suaves de regalo sôbre o ventre.
-- Encontra com certeza! -- a mãe Wimeyer sublinhou, num risinho inteligente.
-- E em todo o caso -- tornou com dulcerosa intimativa o dr. Justus -- as nossas prometidas lições que não esqueçam.
-- Quando vossa excelência quiser... -- balbuciou o Silveira com esfôrço, ante a estopante ameaça empalidecendo.
-- Não creia que a ideia inicial seja minha. Não. Tem até graça... sugeriu-ma um vélho compatriota seu, filho da India, o dr. Gomes, que eu em Lisboa conheci casualmente. Que homem talentoso, raro, profundo, subtil! Era uma figura estranha e insinuante, com os seus agudos olhos de vidente, as suas atitudes estáticas de "fakir", a sua cútis de bronze oxidado, a sua longa barba messiânica. Habitávamos a mesma pensão, e aí sôbre coisas da alma e do espírito nós caturrávamos longamente. E vai êle então, que era um tuberculoso irremissível, ao morrer legou-me um precioso manuscrito garatujado de números, fórmulas, símbolos e chavetas complicadas, que era a embrionária génese do seu plano. Uma teoria genial! Tenho que pô-la a claro.
-- Pois sim... -- atalhou benevolente a mãe Wimeyer, -- porêm, deves compreender que o sr. Silveira terá coisas mais agradáveis que o interessem. Na sua idade...
-- Ainda um rapaz... -- protectora reforçou a dama suave do regalo.
-- Há tempo p'ra tudo. Não é certo?
-- Como não? -- maquinalmente o Silveira aquiesceu.
E como neste momento uma das grossas figuras do sofá se erguesse para sair, êle despediu-se tambêm, com a promessa de voltar pronto, e deu-se pressa em alcançar a rua. Ansiava por ver-se a salvo... dali bem longe. Ia na resoluta disposição de tam cedo não voltar. Desta aziaga mansão de desencanto e horror concorriam simultâneamente a distanciá-lo -- a birra pedagógica do pai e o engrossamento prosaico da filha.
Chegado ao hotel, o Silveira encontrou um cartão do conde Améglio, com duas linhas amáveis reclamando a sua presença. -- Pedia-lhe que passasse pelo local da sua exposição, "calle" Viamonte, e iriam depois a casa os dois tomar chá, com a condessa. -- A primeira impressão foi de encantado alvorôço. Num sugestivo instante, o seu insatisfeito apetite evocou, reviu e enroscou-se à deliciosa imagem da irlandesa, fazendo-lhe saltar nos nervos chispas lúbricas de desejo. Porêm, ao mesmo tempo quáse, chamavam-no ao telefone. Era Jorge Saavedra que lhe anunciava o regresso, dêle e da família, do campo, rogando-lhe por igual que aparecesse, se, antes, êle mesmo não fôsse visitá-lo. -- Finalmente... Ainda bem! -- Nova e mais deliciosa impressão lhe fez correr, pelos sentidos em alarme, a grata e inesperada notícia. -- Sim! porque a volta dos Saavedras significava que teria vindo tambêm Maria Mercedes. E êle morria por tornar a vê-la... oh, a esta de preferência a tudo o mais! Era um vivo e complicado demónio que, pela fórma mais adorávelmente despótica, se lhe instalára na vontade e lhe monopolizára a existência. Pois êle poderia lá viver sem ela, ali, próximos e familiares os dois dentro da mesma cidade, sob o mesmo azul carinhoso, no mesmo ambiente perturbador, ao mesmo contacto amigo! E, depois, tinha contas que ajustar com ela... Havia uma deprimente situação que liquidar entre os seus brios varonis e essa criatura enigmática e divina. Assim duplamente lho impunham o seu coração machucado e o seu amor-próprio ferido.
Na tarde seguinte, querendo iniciar a sua galante digressão pelo mais fácil, tomou o Silveira um auto e rodou para Viamonte, onde entrou num pequenino salão térreo, decorado com ricos móveis Renascença, pelas paredes verdoengas um profuso mostruário de telas de preço, porêm de gente deplorávelmente vazio. Na desconfortante solidão daquela fracassada armadilha artística apenas, lenta e merencóreamente, se movia o dono da casa, -- uma baça figura loira, de olhos claros de porcelana, barbicha em ponta e lunetas, e o cabotino Améglio, astutamente cingido ao crítico de arte de "La Nación", a quem com loquaz intimativa, num atropelado desbarato de grossos gestos e frases feitas, buscava alarvemente encaminhar a atenção e subornar o critério. E depois que êste partiu, o mesmo conde, agora absolutamente só com o Silveira, e no íntimo vèxado por aquela evidenciação patente do seu rotundo insucesso, contudo assumia atitudes de importância, e num desvanecido ar superior, os olhos negligentes na face cínica, passando a mão pelo cabelo, atribuía, fátuo e altaneiro, o facto a um mesquinho concurso de causas bem inferiores ao seu alto propósito. E enumerava com desdêm, -- o pouco adiantado da estação, a crise, a incultura geral, o retraímento invejoso dos artistas, a hostilidade surda da imprensa.
Passado pouco tempo, e ninguem havendo a atender, os dois retiraram e dirigiram-se ao pensionato pelintra que os Di Paoli ocupavam, na Praça do Congresso. Aí, das paredes roçadas e encardidas, quáse totalmente nuas, apenas agora pendiam, destacando sôbre uma medíocre miuçalha industrial, uma pequena paìsagem de realce e o bárbaro retrato da condessa. Esta acolheu o Silveira naturalmente, com um risinho afável mas sem calor, sem a mínima demonstração expansiva, com uma frieza exasperante, fechada outra vez naquela expressão calma, alheada e infantil que a bordo, era para o insofrido galã o maior encanto e o melhor estímulo. Falaram ligeiramente sôbre uma quantidade de coisas indiferentes e banais, o Silveira fez o pitoresco relato da sua estada no campo; e por fim, como o diálogo voltasse naturalmente a recair sôbre a digressão artística do conde e o seu resultado económico, êste num abandôno de familiar confiança, manifestou ao amigo, -- que, devia dizer-lhe com franqueza, as coisas não lhe corriam nada bem... Estava por completo desalentado, não tinha vendido nada! Parecia-lhe aquilo um país de pedantes e impostores. -- E numa autorevelação inconsciente: -- Tudo puro charlatanismo. "Parada", "parada", conforme êles diziam... porêm no fundo nada de quantioso, de firme, de sólido. Queria êle saber?... Êsse belo Corot que êle ali havia visto, mandára-o, a pedido do milionário Spantuzzi, o célebre coleccionador, a casa dêle, para o estudar devagar, para se inteirar melhor, para ver... -- Cruzava indignado os braços. -- Isto havia dois meses. O tempo fôra passando... Era pr'a considerá-lo vendido, não era verdade?... Pois que agora lhe devolvera o quadro, com uma carta muito sêca, dizendo que afinal Corot não era dos pintores da sua predilecção, e que já tinha três, e que por isso resolvera não comprar...
Abria numa irritação os braços, e sacudindo a cabeça com dignidade e erguendo-se, acremente:
-- E tudo o mais assim! Há três meses, apenas, em Buenos-Aires e já gastei quinze mil francos. E lucros nenhuns... Um pavor! Em má hora vim aqui... Que tremenda desilusão! Vou retirar breve seguramente.
Deplorando-o com sinceridade o Silveira, e num instintivo terror aproximando a sua sorte da do conde, tentava confortá-lo. Porêm, súbito, êste, aplacado, risonho e com afável singeleza, a mão interesseira estendida à parede:
-- O seu quadrito ali está... P'ra onde quere que lho mande?
O Silveira estremeceu. Nem êle se lembrava já... E contudo hão havia meio, agora, de furtar-se decorosamente àquela polida insinuação, que para o seu carácter valia uma intimação formal. Que enormidade iria êle cobrar-lhe? Alguns dois ou três mil pêsos, estava a ver... Um rombo muito sofrível no seu já tam reduzido capital, um saque não previsto que lhe desequilibrava o orçamento. E é que não havia remédio!... Numa retracção íntima de terror, êle increpava-se duramente pela sua imbecilidade, dava ao diabo o azarento acaso dêste conhecimento... Porêm, breve, a sua proverbial imprevisão a fazer-lhe bailar no espírito aquela suculenta miragem das abóboras e dos melões do lote n.^o 13. Providencial compensação! Que importava o resto?... Ele poderia bem, já agora, ajudar êste pobre diabo e burlar-se da condessa... que a sua brilhante e áurea desforra estava certa, depois. Questão de tempo... deixar correr!
E com marcada sobranceria, ao despedir-se, recomendou então ao conde, sem discutir o preço, que lhe mandasse o quadrito ao hotel, com a conta, no dia seguinte.
Queria ainda naquela tarde encontrar-se com Jorge. Baldado empenho porêm, pelo momento; pois que, tendo chegado ao hotel e telefonado sucessivamente para casa dêle, para o "Circulo de Armas", para o "Jockey-Club" e para o "Plaza", de parte nenhuma lhe davam notícia dêle nem sabiam dizer-lhe onde porventura se poderia encontrar. -- Estaria p'r'aí talvez na sessão "vermouth" dalgum teatro barato. Mas qual?... Fôssem lá saber! -- Ficaria o encontro então para a noite, sôbre o jantar. Disposto pacientemente a esperar, o Silveira correu a coluna de anúncios dos espectáculos, na "Prensa" e viu que naquela noite havia no "Palace Théâtre" uma função em benefício de "La Caja Dotal de Obreras", pia instituìção patrocinada pelas damas da primeira sociedade. Lá estaria certo o rapaz. E possívelmente Maria Mercedes...
Alentado por êste desejo e enardecido por esta esperança, logo que acabou de comer, o Silveira saíu. Mal havia dado porêm, confiado e quente, os primeiros passos, e logo à esquina da "cuadra" seguinte, ei-lo que se defronta súbito com Luísa... a qual buscou simular um encontro de acaso, mas que, tímida e inexorável, mais uma vez o estava dali espiando, seguramente.
O Silveira teve um claro sacudimento de arrelia, e brusco e hostíl, plantado com dureza frente à sua adorável e simples amiguita, fitando-a com império:
-- Que fazes tu aqui!? que quere isto dizer?... -- E como a atónita rapariga se mantivesse muda, numa compungida atitude de assombro, os olhos baixos, a fria prega dos lábios transida de amargura, êle na mesma clara dureza tomou: -- Não são horas e mais que horas de recolheres a casa? Como vais agora entrar?
Luísa ergueu para o seu áspero censor os grandes olhos, repassados de piedade, e após uns segundos de embaraço, naturalmente:
-- "Yo cambié de domicilio".
-- O quê!? Deixaste essa bôa casa de Tucumán? Que fizeste tu por lá?
-- "Yo nada, señor".
-- Puseram-te na rua?
Ao golpe achincalhante da interpelação, a pobre Luísa fez-se branca, torceu-se numa contorsão aflitiva, e logo, reagindo, a protestar com suavidade, as mãos trémulas em magoada cruz sôbre o peito:
-- "Nada tienen que reprocharme alli, se lo juro! Al contrario, las buenas madres eran bien amigas mias".
-- Nesse caso, então?...
Nova pausa, de eloqùente silêncio agora, e logo ela, còrando, a segredar docemente:
-- "Es que yo no podia pasar asi todas las noches, sin verlo"...
-- Com efeito! -- exclamou o Silveira, numa fatuìdade sorridente.
-- "La culpa es toda suya, ya vé"...
Insensível porêm o Silveira à voluntária e total abdicação desta alma:
-- De sorte que te encontras agora aqui assim à tuna, sem uma ocupação, sem família, sem casa nem abrigo?
-- "Yo no le pido nada".
-- Pois, meu rico amor, se vinhas co'a idéa de entreter a noite comigo, perdeste o teu tempo. -- E como a desconfortada rapariga o envolvesse numa fundente expressão de carinho e ensaiasse um tímido gesto suplicante: -- Não! não! Vou com pressa. Tenho um compromisso. Palavra!
-- "Que compromiso mayor que el nuestro?"
-- És tôla!
E no mesmo instante o Silveira, duro sempre e insensível, jogado ao ímpeto do seu cobarde egoísmo, voltou costas e seguiu caminho, deixando a sua amantesita infeliz pregada e fria como uma estátua, os lábios lívidos, tolhida de dôr e de vergonha, imobilizada de pasmo e de tristeza.
Cortando logo para Corrientes, o arreliado Silveira caminhava rápido e, a intervalos, voltava-se, a inquirir se porventura, e a despeito da sua formal negativa, êle não seria seguido. Enfastiou-o de-véras o episódio. Incendeu-o num furor pueril, que lhe punha asas nos pés, a insistência piégas da rapariga. -- Tam longe êle estava agora de semelhante coisa! -- Três dias havia que não sabia dela, buscando insensivelmente furtar-se e fechar impunemente o ciclo de mais esta fugaz aventura com o sêlo cómodo do olvido. -- Por que era uma maçada, no fim de contas, a peganhice infantil dessa seresma! Bôa rapariga, não havia dúvida... Mas tambêm as môças que êle, na sua terra, tivera a sorte de arrastar a uma torpêza igual, eram bôas como esta... e mais dóceis, mais razoáveis. Sabiam medir distâncias, compreendiam a situação. A breve trecho, eram elas as primeiras a anular-se... voltavam ao que eram e não o importunavam mais, conformavam-se sem lamúrias e deixavam-no em descanso. Ao passo que agora esta carraça... Em má hora lhe tinha acudido! -- E a biltraria recôndita do seu ânimo fortalecia-se. Erguia a cabeça com jubiloso arreganho e caminhava mais apressado. Porêm a espaços, não obstante, se num claro de grata recordação a sua alma evocava a cândida imagem de Luísa, crescia-lhe súbito no íntimo uma onda de condoída ternura, que o envolvia, que o abrandava, que o fazia arrepender-se e parar no caminho. E êle revia então, em todo o seu incondicional abandôno, em tôda a sua rústica simpleza, essa esplêndida flôr do campo, a tinta ardente da sua epiderme, o alçapão de desejos que era a sua bôca, o lume de paixão espirrante dos seus olhos cheios de fogo... e pensava. -- Talvez que esta sentisse mais e melhor que as outras... Valeria mais que tôdas!
Esta quáse palpável evidência perturbava-o. Já perdia a noção exacta do rumo que levava. Entrou no vestíbulo do "Royal", tomando-o por o "Palace Théâtre"; e por êste passou desgarradamente, uma e duas vezes, antes de reconhecê-lo. Pesava-lhe na alma essa obsidiante luta interior entre o apiedado alarme da sua consciência e a farta repulsão do seu desejo...
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- TextGrid Repository (2023). Portuguese ELTeC Novel Corpus (ELTeC-por). Amor crioulo: Edição para o ELTeC. Amor crioulo: Edição para o ELTeC. European Literary Text Collection (ELTeC). ELTeC conversion. https://hdl.handle.net/21.T11991/0000-001D-451A-7