ANTONIO DE ALBUQUERQUE
O Marquez da Bacalhôa
--- mais ce que commande a
ma parole, e gouverne ma pen-
sée, ce n'est pas votre conscien-
ce ou la leur: c'est la mienne; a
celui qui aime la verité d'un
amou digne d'elle, qu'impor-
te l'oposition de la terre en-
tière si, sur un point donné, la
terre entière se trompe ou
ment.
BAUDELAIRE
ROMANCE
EDITOR - ANTONIO DE ALBUQUERQUE
Imprimerie LIBERTÉ
BRUXELLES
1908
Tous droits réservés
I
Sob a luz serena da manhã de Agosto, filtrando-se vivamente por entre as espessas ramarias, o vasto quadrilongo arelvado do tennis apparece manchado de luz, como incrustações de oiro sobre esmalte verde claro.
Em torno, largos bancos de mármore, alvejando contra as sebes escuras de cedros e buxos, nas extremidades, altas redes de arame vestidas de trepadeiras.
No ultimo banco, dois vultos côr de rosa, com largos chapéus de palha enfeitados de myosotis, cabeças curvas, corpos unidos, têem attentamente um romance.
Dois adversários, um homem e uma rapariga batem-se furiosamente n'essa derradeira partida.
Ambos vestidos de branco, cabeça ao vento, saltam agilmente sobre a relva na febre de não perderem a bola que velozmente vôa d'um para o outro lado da rêde.
O silencio é apenas interrompido pela contagem dos pontos.
-- Marquez ! marquez ! por um triz que não apanhou com a bola na pinha hein!
Estas palavras solta-as a pequena Mercêdes, por entre um riso claro de troça, cortadas pela respiração ofegante e perdendo um ponto.
-- Vantagem, grita por sua vez o parceiro.
Mercêdes porem redobra de energia, e ganha por uma bola brilhantemente arremeçada, que apanha em cheio o corpo do marquez.
-- Que vergonha! clama ella victoriosa, na pança!
Este, encolhe os hombros com indifferença e é sacudido por um rizinho brando e complacente, que lhe sacode as banhas sebacias do corpo alentado e sadio.
A linguagem pittoresca da estouvada Mercêdes de Lima agrada-lhe, assim como tudo que d' ella dimana, toda a sua pessoa franzina e voluptuosa, um quasi nada canalha.
-- Vamos á ultima, á dos mestres, brada Mercêdes.
O marquez limpa o suor que lhe escorre sobre a fronte e põe-se novamente em posição.
As bolas voam ligeiras e o jogo prosegue novamente.
As duas leitoras estSo por tal forma absortas, que raramente se dignam conceder alguns segundos de attenção aos jogadores.
N'essas claras e frescas manhãs de verão, era para elle o mais são, imprevisto e alegre dos passatempos, a diária partida de tennis com Mercêdes. Esquecido de todos os seus deveres e encargos de homem politico, que aliaz detestava sinceramente, sentia-se n'esses momentos, joven, solteiro, livre, collegial em ferias, entregando-se ao jogo de corpo e alma, e mais que tudo, ao flart.
Essa creaturinha de desesete annos, com os seus grandes olhosn egros maliciosos, o fino oval do rosto moreno e setinoso, a pujança dos cabellos quasi negros, emoldurando-Ihe a cabecita ligeira e redonda, sedul-o dia a dia.
Mas são sobretudo os pequenos seios de Mercêdes, destacando-se erectos, contra a fina blusa de seda frouxa, que perturbam o seu olhar azul, vago e cançado de devasso incorregivel; os finos artelhos, que uma meia de seda branca aberta calçam, e os pés longos e estreitos, no elegante sapato de camurça e borracha.
Para os seus 40 annos já passados, toda essa mocidade e frescura, representava uma lisonja. Ao seu typo de loiro volumoso e nedio, apaixonava o o contraste moreno e esguio da pequena Mercêdes.
Assim era que, n'essas partidas quasi solitarias, no tennis privado do seu magnifico parque, esquecendo a marqueza, os amigos, os conselheiros avidos das migalhas da sua meza opulenta de grande senhor, se perdia voluptuosamente pela creança coquette e vaidosa, a qual parecia ter-lhe entregado sem calculo, todos os secretos thezouros da sua belleza e juventude.
No ombroso recinto, tudo era quietação e mysterio. Por entre os arvoredos, cujas ramagens verdes se balouçavam lentamente, apercebia-se em baixo, no ultimo plano do horizonte, a agua do mar, intensamente azul, palhetada de oiro, cortada de quando em quando pela vela latina d'alguma embarcação fugitiva. E em volta, a perder de vista, taboleiros opulentos de relva d'um verde esmeralda, arbustos floridos, macissos polychromos de tulipas, de roseiras de lilazes, agrupamentos de acácias floridas e as extremidades esguias dos abetos e cyprestes d'um verde escuro e triste. A claridade intensa, penetra a custo por entre a espessa folhagem que debroa de luz viva.
- Ready!...
- Play!...
Uma péla escapada á ráquette de Mercêdes, outra á do marquez, arremeaçada por esta traçoeiramente ao canto do taboleiro, e a ultima partida terminara por entre as piadinhas dã jogadora e os pulos difficeis do marquez que, fatigado pelo esforço, se deixara cahir sobre um banco, limpando o suor do rosto afogueado.
-- Duas, duas, que ganhei ... que vergonha!...
-- Porque eu quiz.
-- Qual! contestou Mercêdes, porque pesa muito.
-- Estás cada vez peior... uma peste...
e se não fossem estas lindas mãosinhas que adoro, mandava-te á fava. Tomara-lhe uma entre as suas, depondo n'ella um beijo avido e prolongado.
-- Olhe que vem gente, tenha cautella.
Mercêdes retirara a mão precipitadamente á vista d'um importuno que n'esse momento se aproximava.
O conselheiro, que horror! murmurou o marquez com physionomia contrahida.
-- E eu raspo-me, declarou Mercêdes levantando-se, até logo.
-- Na praia, sim?...
-- Sim, e partiu correndo lançando um adeus com a ponta dos dedos ao conselheiro, que se descobrira respeitoso, saudando-a.
Apesar da hora matinal, o conselheiro João Nunes dos Santos, vinha já vestido como se fora para assistir a alguma assemblêa ou reunião de responsabilidade: sobrecasaca preta e chapéu alto, o que contrastava singularmente com o elegante completo de flanella branca do marquez.
-- A estas horas ! balbuciou este com enfado.
-- Negocio urgente, não ha remedio. Descobrira-se cerimonioso e correcto, apertando a mão que este lhe estendera negligentemente.
-- Então que ha?
-- Crise politica...
-- Ora adeus...
-- É o que lhe digo. O Barcellos declarou-me não assignaria a nomeação do Vianinha, e o Veiga recusa-se a fazer os adeantamentos que são precisos.
-- Como assim?
-- Nem mais nem menos, encostaram-se á parede, e não ha quem os arranque de lá.
-- E tu? -- Eu vim logo saber o que deviamos fazer, sim o que determina.
-- Que peçam a demissão, que os leve o diabo, arranja outros. Dize-lhes que sou eu que quero, que não transijo, e caso elles repontem, demitte-os.
O marquez levantára-se colerico. Elle, que tudo mandava, e com tanta intelligencia preparara essa situação politica, propicia aos seus fins de ambicioso-egoista, não achava possível que dois sugeitos seus protegidos feitos ministros sem possuírem o menor valor pessoal, se revoltassem contra a sua vontade. E era sempre assim.
Quanto mais insignificantes mais intransigentes.
A sua immensa fortuna, o prestigio do seu grande nome fidalgo, guindára-o á posição excepcional que occupava no paiz.
Em campo de purpura, cinco flôres de liz de oiro, tendo por timbre a corôa ducal, e em torno a divisa dos seus nobres avós:
Avant tout Bourgogne. João Maria Honorato de Alard, filho do duque reinante de Borgonha, passara por Portugal no tempo do Conde D. Henrique, de volta da Palestina, onde combatera valorosamente os infieis em defeza da santa religião.
Ajudára este principe nas suas pelejas e conquistas contra os mouros. Bemquisto na côrte, esposara uma princeza filha d'um dos reis do Algarve convertida por amor á religião christã. Recebera mais tarde como dadiva real e premio dos seus innumeros serviços, o castello da Bacalhôa, com todas as terras pertencentes ao dito condado, honras e privilegios.
Fôra este grande guerreiro, o fundador e ascendente -- embora já bastante duvidoso -- do actual marquez. Condes até D. João IV e marquezes apoz a restauração. Asseverava-se porém que, D. João Manuel d'Alard, seu terceiro avô, fora um impotente averiguado, o que não impedira a marqueza, sua mulher, de dar vários representantes, machos e femeas, a seu nobre marido, admirado d'essa fecundidade tão extraordinária como imprevista, e perguntando a si próprio, com espanto, quem poderiam ser os paes d'esses robustos rebentões.
O castello da Bacalhôa, fora pois theatro de proezas devassas e inadmissiveis, não havendo hortellão, feitor, ou abegão, que não partilhasse do leito hospitaleiro da nobre castellã, a qual, como boa hespanhola, se não saciava com os peralvilhos efeminados da côrte.
Vê-se pois o quanto era duvidosa a origem do riquissimo e mui nobre marquez da Bacalhôa.
Elle era porém o arbitro dos destinos do seu paiz.
Dominando tudo, os cortezãos e os grandes dignitarios d'essa côrte decadente e sem prestigio, aviltada por mil baixezas, pocilga repugnante de intrigas e pequeninas infamias, charco onde o são morria asphyxiado, e apenas o leproso, o aleijão boiavam á superficie.
Formava ministerios, desfazia-os, creava deputados, pares, titulares, monopolios, abusos e infamias.
Tudo lhe convinha mediante a satisfação dos seus interesses particulares. Nada tôlo, consciente do meio em que vivia, conhecedor dos honoens e do paiz, absolutamente cortez e attrahente.
Um vicio comtudo o dominava, era a mentira.
Mentia por prazer, a todos e a si proprio, convencendo se até por vezes das proprias mentiras; mentindo não só nas mais futeis bagatellas, como até nos assumptos mais sérios e graves.
-- «Um bugiardo» dizia d'elle o conde di Rimini, ministro d'Italia.
A insubordinação inadmissivel dos seus dois ministros, parecia-lhe pois um attentado á sua auctoridade mais que real.
Levantára-se do banco, e dirigira-se para a villa acastellada, cujos torreões alvejavam por entre as folhas claras das faias e as ramarias escuras dos pinheiros, assente sobre uma collina, dominando toda a enseada.
-- Vamos almoçar, são quasi horas, e deixemos a politica para depois.
O conselheiro Nunes caminhava respeitosamente, tendo nos lábios um sorriso velhaco e hypocrita.
-- E depois, se não quizerem haverá por certo quem os substitua.
-- Hum! Não vejo, fez o Nunes.
-- Qual? Inventa-os se os não houver.
-- E a côrte? os pares, os deputados?
-- Ora adeus. Acaso não fazem elles o que eu quero?
-- Pois sim, não digo que não, mas é que as cousas mudaram ha um tempo para cá.
Os republicanos agitam-se, crescem, impacientam-se.
-- Uns imbecis, sem coragem nem confiança. Não vês como elles fogem deante da municipal. Depois, o que elles querem é viver dos jornaes, da réclame... Uma data de vaidosos, não passam d'isso, crê. Fallam, gritam, mas sem methodo, sem convicção nem fé. Não tenhas receio algum e faz o que te aconselho. Puz-te a faca e o queijo na mão, corta pois á vontade. Tira uns, põe outros, promette liberdade e vai-lhe ás costas.
Precisamos ter n'uma mão os imbecis e na outra os intelligentes. Energia é que é preciso ter mais que nunca. Não te exaltes, intruja-os serenamente e verás como vae tudo n'um sino... verás. N'este momento ao fundo da aléa por onde seguiam, cuidadosamente saibrada, coberta de sombra e frescura, apontou um vulto esvelto e esguio.
Caminhava para elles ligeiro, sorriso nos labios.
Vestia um completo alvadio de casimira ingleza muito fina, e o jaquetão aberto punha-lhe a descoberto a camisa de seda onde se destacava bordado a branco, um F e uma corôa de conde.
Apertou com effusão a mão do Marquez.
-- Bella partida de tennis, já sei, murmurou.
-- Jogamos trez, que ganhei. A Mercêdes está cada vez jogando peor.
-- E o conselheiro, optimo? não é assim?
-- Sem novidade, sem novidade... O senhor Conde é que parece remoçar de dia...
para dia...
-- Lisongeiro e sempre amavel.
-- Qual! Mas ainda agora reparo na tua linda gravata Manoel. É um amor, um verdadeiro amor de gravata.
O marquez sorriu satisfeito ao comprimento do amigo. A opinião d'elle em questões de moda, lisongeavam-o sempre.
-- Chegou-me hontem de Londres, trouxe-a o Negrão.
N'este momento, trez vultos femininos passaram adiante correndo -- Mercêdes e as irmãs mais novas.
-- Olá! olá! gritou-lhes o marquez.
Ellas porém não pararam; e apenas Mercêdes lhes atirou um fugitivo adeus
-- Que pecegas! disse o Conde.
O conselheiro encolheu os hombros com indifferença.
-- Não gosta de femeas, este, notou o marquez soltando uma gargalhada -- Nem de machos, contestou elle offendido.
Achavam-se junto ao patamar da villa.
II
Em torno da sumptuosa meza dos marquezes, coberta de flores e cristaes, onde, sobre a finissima toalha adamascada, as porcelanas azues e oiro da China, encimadas do symbolo heraldico, se casam alegremente aos tons vivos das flores raras e ao fulgor frio das pratas cinzeladas, os convivas conversavam alegremente n'um conforto rico e bem humorado.
Apenas a marqueza seguia indifferente a conversação, altiva e quasi agressiva, no meio d'essa sociedade de homens que lhe era antipathica pelo sexo.
O seu busto alto, pujante, dominava-os.
Vestia simplesmente e com mao gosto.
Era formosa sem simpathía, O seu olhar enverdeado era mais pespicaz que intelligente, o nariz fino, ligeiramente curvo, a bocca vermelha, carnuda, sensual, os dentes fortes em ponta, dentes de carnívoro.
O cabello farto, castanho claro, as sobrancelhas nitidamente desenhadas e sedosas, assim como as pestanas que por vezes lhe valiam para velar o brilho ardente do seu olhar penetrante.
Um traço fundamental, que desmentia a sua alta jerarchia, -- as mãos vermelhas e gosseiras presas a um pulso d'athleta Era porem uma creatura sadia e sensual, propria para o amor e para a maternidade, capaz d'inspirar desejos e sensualidades requintadas.
Pelos vitraes abertos da larga varanda-estufa, separada por um arco elegante da sala de jantar, desmaiava no horizonte longiquo, para alem dos pinheiros, dos cedros e abêtos que, em batalhão denso desciam a colina, a immensa bahia toda azul e oiro.
Os lacaios empoados, vestidos de sumptuosas librés carmesi, e agaloadas a prata, as rudes mãos escondidas por luvas de linho branco, circulavam em torno á meza, servindo silenciosamente.
-- Borgonha ...
Chateau-Juen 1867.
-- Rheno...
Uma atmosphera embalsamada de cravos, de rosas, e lilazes, misturava-se aos perfumes quentes das iguarias saborosas e ao agreste e fresco aroma dos campos em rejuvenescimento.
A marqueza ao terminar o almoço retirara-se seguida pela sua intima, a condessa da Freixosa; creatura opulenta e formosa, cujo typo voluptuoso e indolente nos fazia sonhar com as bellezas mysteriosas d'algum harem de Granada.
Todos os convivas se haviam levantado cerimoniosamente á sua sabida saudando-a profundamente, e a conversa recomeçara logo mais expansiva e franca, acerca de femeas, assumpto predilecto do marquez.
-- A pequena Mercêdes é um bom pente, e tenham vocês a certeza de que gosta cá do méco.
Toda a physionomia loira do marquez se cobriu de felicidade orgulhosa ao proferir estas palavras.
O Conde e o conselheiro trocaram um sorriso incredulo.
É que elles conheciam de longa data o seu vicio de gabarola eterno e conquistador.
Possuia todas as mulheres; nenhuma até então lhe tinha resistido.
-- Quando não vão pela sympathia, vão pela maça, e quando não vão pela maça perdem-se pela minha treta.
-- Letra miudinha! -- observou o conselheiro.
Riram alto.
Este porém, tinha por força que partir, e se ficára para o almoço, fora pela obstinação do marquez.
O automóvel, esperava-o junto ao patamar da villa.
-- Que devo finalmente fazer? Perguntou para o marquez, cujo rosto se ensombrou de tedio.
-- O que já te disse. Ou acceitam ou se demittem.
A politica era-lhe odiosa, enfastiava o O conselheiro por dever, ainda procurou demovel-o. Era grave a situação. Os animos andavam exaltados, havia questões de difficil resolução no parlamento, todos gritavam, envectivavam o governo, os tempos tinham mudado, os jornaes estavam cada vez mais insolentes.
-- Não passas d'um arára, e a tua energia e perspicácia parecem-me já sédissas.
O teu grande deffeito é não conhecel-os, acredita. Gritam, bravejam, mas não passam d'isso. Não teem quem os dirija, quem os domine. Dá-lhes umas féstinhas publicas de tempos a tempos, mostra-lhe a municipal em parada, promette-lhe reformas, augmentos de ordenados, liberdades, diz mal de mim e da côrte se preciso fôr, e verás como triumphas. São como creanças, gritam contra tudo e consolam-se com a menor insignificancia, - Ha porém alguem perigoso, com quem precisamos ter cuidado, advertiu o Nunes com seriedade.
-- E quem?
-- O coronel.
-- O Alvaro?
-- Esse mesmo.
-- Ora adeus. Esse inutilisa-se de repente.
-- Como?
-- Como aos outros. Faz-se-lhe o mesmo que ao Neves, por exemplo.
-- E dará resultado?
-- Ora se dá. É de carne e osso como todos. Além d'isso conheço-lhe um fraco.
-- Qual! fez curiosamente o conselheiro.
-- As mulheres, meu caro, esse que tu não comprehendes, por isso mesmo que o não tens. Conheço uma por quem elle se deitaria a um poço sem vacillar.
-- E quem é? perguntou curioso o conde, approximando o rosto do do marquez que sorria com bonhomia.
-- Chut... isso é segredo meu...
-- Então em chegando do Porto?
-- Metto-o cá em casa, e uma vez em meu poder, nunca mais nos porá medo. Ia ganhando terreno, não ha duvida, e podia ser-nos nefasto; assim é que, para os grandes males...
-- Grandes remedios! rematou o conde.
Óptima idéa, não acha, conselheiro?
-- Sim, não é má. Uma vez mettido cá, é um homem ao mar. A vaidade, a intriga, a calumnia e a inveja, põem-n'o immediatamente fora de combate. Mas se elle não acceita?
-- Ora adeus. Sempre tens ingenuidades.
Já conheceste alguem a quem não seduzisse um cargo de mordomo mór, camarista, estribeiro ou mestre de salla? Estás louco, ninguem resiste. Acaso resististe tu á vaidade de seres ministro, o primeiro do paiz, o que todo lo manda? Não, apezar da tua independencia. Só existe uma raça de homens á parte a quem as honrarias não seduzem, e esses não crescem cá no torrão.
-- Quaes?
-- Os patetas do passado, meu velho, como Racine e Molière, Shakspeare e Dante; e os do prezente, como Tolstoy e Kropotkine, Fournier e Ibsen.
O marquez soltou uma sonora gargalhada por entre a espessa fumarada do seu Aguia Imperial de dez tostões. Conhecia bem a sua terra e os seus patricios, e ninguem melhor que elle sabia tocar o complicado teclado da politica interna.
Era um maravilhoso producto do seu meio, possuidor dos mesmos vicios, descrença, cynismo, cobardia e indolencias.
Apenas um homem lhe ameaçara até então a tranquillidade invejavel em que vivia; -- o coronel D. Alvaro de Luna, creatura aparte, d'uma sinceridade e coragem fóra do vulgar, cuja honradez, patriotismo e rectidão o assustaram violentamente.
Habituado no meio vicioso e hypochrita em que vivia, a encontrar-se apenas com creaturas fracas, ambiciosas, d'um valor apenas aparente, sem caracter nem coragem, e a quem facilmente dominava, esse homem estranho, que parecia proceder d'um seculo remoto, apavorara-o! Nas rapidas conversas que com elle travara, intelligente como era, logo advinhara a pureza da sua alma de bronze á qual nenhum interesse ou cubiça seria capaz de desviar uma polegada sequer do caminho que lhe traçara a sua phantasia de sonhador de balada. Advinhara n'elle facilmente esse amor entranhado pela patria que constituia o seu grande culto de idealista guerreiro.
Comprehendera, como patriota, conscio da pavorosa decadência da sua terra, do baixo nivel intelectual dos que a governavam, da suar otineirice interesseira, sordida ambição e cynismo, jurara a si próprio, ainda que á custa da propria vida, arrancar d'esse marasmo estupido e traidor em que jasia mercê dos governantes, esse povo entre o qual nascera e a quem, amava mais que a si próprio, com uma adoração romântica de lenda, inspirada por tradicções valorosas e ousadas pelos grandes vultos dos Castros, dos Albuquerques, de todos os heroes cantados por Camões, tornado assim uma espécie de vulto QuichotesGo capaz de todas as temeridades e loucuras.
Era esse o homem temido pelo marquez o único capaz de pôr por terra todos os seus planos de ambicioso egoista. Chegara d'Africa, havia um mez, apoz uma campanha inolvidavel em que se cobrira de gloria.
Era n'esse momento critico o idolo do povo e do exercito, portanto um perigo para a realeza decrepita e desconceituada se contra ella um dia se voltasse.
Era pois mister aniquinal-o por uma vez.
O sol entrando a jorros pelas largas janellas, doirava as velhas tapecerias, as faianças raras e as baixelas de prata resplandecentes amontoadas sobre os pesados bufetes flamengos que se erguiam ao longo das paredes lateraes da vasta sala de jantar. As flores embalsamavam cada vez mais o ambiente, ao passo que desfaleciam nas taças lapidadas de crystal da Bohemia.
Tinham ido para a estufa, e commodamente recostados em cadeiras de palha, saboreavam o café nas pequeninas taças de Sévres. O conselheiro tevantara-se disposto a partir.
-- Voltas á noite? disse o marquèz.
-- Sem duvida.
-- Pois faz o que disse, e deixa correr o marfim.
Despediu-se. Em baixo o automóvel Peugeot, estremeceu todo n'um ruido rouco, entremeado de estalidos secos, evolucionou um momento, e partiu veloz pela longa avenida, deixando apoz nuvemsinhas cinzentas, nauseantes.
O marquez debruçára-se na janella junto do Conde, seguindo com a vista a caixa amarellada da berlinda, que se sumiu em breve n'uma volta da estrada, em direcção a Lisboa.
-- Este conselheiro está cada vez mais tanso e mais ordinário. Depois, com a mania de querer tudo endireitar, éra capaz, se não fosse eu, deitar tudo a perder. Ideias tem tantas como os outros, e a unica qualidade que possuia capaz, alguma energia, essa até já a vai perdendo. Ora adeus! e o marquez ao concluir, assobiou alegremente o toque annunciador da entrada do toiro na praça.
As toiradas eram um dos seus prazere-predilectos.
-- Vamos nós até á praia? murmurou.
-- É uma idéa! A manhã está linda e deve haver muita gente, retorquiu o Conde.
N'esse momento, dois cavalleiros que se dirigiam a galope para a villa estacaram de subito debaixo da varanda.
Saudaram o marquez affectuosamente e apearam-se.
O mais novo, era um lindo rapaz de 14 annos, esbelto, cujo rosto se parecia extraordinariamente ao do marquez. Uma gordura precoce porém prejudicava um pouco a sua elegância. Chamava-se Luiz e era o unico herdeiro dos marqúezes. O outro era um typo grosseiro e reforçado, physionomia estupida e carregada, mirada baixa e desconfiada. Era branco e rosado, com um grande bigode loiro que quasi lhe escondia os labios grossos e sensuaes.
Irmão mais novo do marquez, o Conde do Ribatejo, vivia principalmente das liberalidades do chefe da casa, visto a insignificancia do seu património.
-- D'onde diabo vem vocês? interrogou o marquez.
-- Do tennys do Sporting. Jogámos toda a manhã com os inglezes do cruzador, e o tio vem furioso, perdeu três partidas. Soltou uma alegre risada fixando o Ribatejo que franziu os sobrolhos.
-- Já almoçaram! interrogou o marquez.
-- Lá mesmo. Os officiaes tinham trazido de bordo um magnifico lunch.
-- Então que vieram fazer cá?
-- Primeiro beijar-te a ti e á minha mãe, tinha saudades, depois pedir-te licença para ir jantar a bordo do Dunkan com o tio.
-- E tu vaes tambem? -- Vou com o rapaz, que remédio, respondeu o Ribatejo cerrando os olhos á claridade viva do sol.
-- Pois vão e divirtam-se.
Penetraram na villa.
O marquez lançou uma ultima mirada admirativa ao explendor da larga paisagem e murmurou para o conde com melancholia:
-- Não ha terra mais linda nem mais socegada; deixar isto tudo, seria asneira. Agora toca a ir até á praia vêr as pêgas.
III
Quem era o Nunes, d'onde viera?
Como a maioria dos homens que ultimamente dirigiam o Estado, o Nunes não passava d'um imbecil, um pouco mais audaz, mais casmurro e esperto do que os outros, mas egualmente mais ignorante e perverso.
A sua principal caracteristica era uma vaidade ilimitada, chegando o seu disiquilibrio vaidoso a ponto de julgar-se encarregado pela Providencia, d'uma missão Messianica de regeneração e ordem.
Essa vaidade deslumbrara naturalmente o seu espirito acanhado de burguez da Certã, e a passagem pela Universidade, onde fôra reputado por todos como um mediocre, ensinara-lhe a velhecaria necessaria para, apesar d'essa mediocridade, trepaz surrateiramente pela ignobil escada da politica.
Uma grosseria nativa e uma avareza inqualificavel, tornavam-o antipathico á maioria dos companheiros. Essa mesma avareza, fôra a inspiradora da ardilosa manha com que mais tarde conseguira alcançar a mão d'uma riquissima herdeira, actualmente sua mulher.
O seu caracter, dissemos, era perverso e digno dos seus ascendentes pelo notorio desiquilibrio, malvadez, casos morbidos de epilepsia, de loucura e crime, que de longa data os vinha marcando como um stygma do mais fatal atavismo.
D'elle se contava como certo, o ter um dia recebido a tiros de revolver a um credor, sendo notoria, a sua predilecção favorita pelas caçadas nocturnas aos gatos, nas ruas de Coimbra ao sabbado, matando-os á mocada ou fazendo-os extripar por ferozes bulldogs.
Escolhia para socios d'essas digressões os companheiros mais robustos, para cometter sem perigo toda a casta de tropelias.
«Noites de despotismo!» Era a sua fraze habitual.
Já no collegio denotara os peores instintos e uma sordida avareza como virtude dominante.
Um dos seus passatempos favoritos, era aprisionar moscas e toureal-as barbaramente, cravando-lhes bicos de pennas em guisa de garrochas. A sua carteira de estudo era pois um vasto cemiterio das inofensivas victimas da sua barbaridade.
Durante as férias, ia pelos cantos da casa remexer o lixo em busca das pontas de cigarros e charutos lançados fora pelo pae e pelas visitas, e nem os escarradores imundos escapavam ás suas buscas minuciosas.
Quando de novo voltava para o collegio, trazia caixas de sabonetes replectas d'essa execravel mistura de tabaco, vendendo-o depois por bom preço aos condiscipulos mais viciosos. Era impossivel arrancar-lhe o menor credito ou diminuição nos preços.
Aparentava perante os padres a mais fervorosa piedade pela religião, sendo presidente dos Filhos de Maria confrade do Coração de Jesus e esbirro secreto dos perfeitos.
Assim foi crescendo em hypocrisia, falta de franqueza e deslealdade que mais tarde deviam marcar profundamente o seu caracter como politico.
Era bem um fructo amadurecido e saboroso das estufas jesuiticas.
A sua elevação ao poder como presidente do conselho, devera-a exclusivamente á intriga, á sua rabulice de orador hypocrita e á protecção da Companhia de Jesus que não cessára de o aproveitar, servida por elle mysteriosamente nos seus complicados assumptos:
primeiro como advogado, mais tarde como deputado e prezentemente como ministro omnipotente. Nunca nos seus discursos violentos e epilépticos, esquecera de citar a Divina Providencia, inspiradora dos seus actos e machinações politicas: -- Ad gloria Deum majora -- a cabalistica divisa jesuitica.
Com velhacaria provocára na Camara a discussão das sommas enormes illegalmente entregues ao marquez da Bacalhôa, apavorando assim o gordo senhor que immediatamente o chamára ao seu palácio. Era essa a occasião por elle esperada anciosamente.
Contra as invectivas iracundas do patrão, respondeu elle desculpando se com manha, mas frisando admiravelmente a situação e acabando por convencel-o de que só elle poderia ser o poderoso pára-raios contra essa formidável tempestade ameaçadora da realeza.
Fôra um pretexto para expulsar da camará os deputados republicanos, amordaçar a imprensa, dissolver -- caso fosse necessário -- a própria camara e proclamar a dictadura.
Dentro d'ella, tudo era possivel. Consolidava-se o poder real, justificavam-se os adeantamentos, e fazia-se mais até, augmentava-se a lista civil, visto provar-se que as sommas adiantadas haviam sido fornecidas pela insuficiência dos rendimentos regios.
Depois, podia aterrorisar-se os mais brigões e convictos á pranchada e a tiro. Para que servia a municipal e a policia? O exercito amordaçava-se com o augmento de soldo, conquistava- se com meia duzia de visitas régias aos quarteis, tudo correria no futuro como um marfim, veria.
O marquez, muito intelligente, bem percebera a ratoeira armada pelo finorio ministro, mas não podendo já recuar, e desejando mais dinheiro, deu-lhe n'esse dia plenos poderes, promettendo assignar tudo.
Jogava talvez o seu futuro, mas que lhe importava se era rico, tinha alguns mil contos no banco de Londres!... Era para tentar, a partida. Absorvia por completo o poder e receberia mais dinheiro.
Conhecia bem o povo portuguez, indolente e manso por temperamento, prompto sempre a aguentar todos os vexames e impostos.
Os partidos monarchicos da opposição não os temia; eram antipathicos ao paiz, sabia-os desprestigiados e sem a menor energia.
Quanto aos republicanos, esses gastavam o tempo em comicios, não tendo nem armas, nem dinheiro, nem dirigentes. O partido podia alastrar, engrandecer, unificar-se mesmo; mas sem uma cabeça solida e de acção, nada poderia fazer. Ora essa não apparecera por emquanto nem parecia manifestar-se n'um praso curto.
Entregou-se pois cegamente nas mãos do Nunes. Era no fundo um mediocre, um ignorante, aningindo como tantos outros pela intriga as auras do poder.
Para bem avaliar a sua capacidade intellectual, bastava citar dois ditos de S. Ex.a.
For occasião d'um leilão feito n'um dos palácios herdados pela mulher no estrangeiro, mandaram-lhe offerecer por um quadro assignado André dei Sarto uma somma de alguns mil francos.
-- Vende immediatamente, vende já o quadrinho em que me fallas assignado por um tal André, respondera elle ao administrador encarregado a liquidação.
O outro fôra por occasião d'um pedido de dinheiro para reparações de edificios históricos e protecção á arte nacional.
-- Mas para que precisamos nós de arte? Nada, não dou vintem, o dinheiro é-me preciso para o exercito e para eleições.
Quanto ao phisico do Nunes estava em justo parallelo com o moral. Côr biliosa, maxilas salientes, figura angulosa e dura, beiços carnudos de negro, cabellos asperos e indomaveis assim como a espessa bigodeira.
Um todo vulgar, antipathico pela grosseria das maneiras e pelo desagradavel timbre da voz e da pronuncia acentuadamente provinciana, vicio que nem o melodioso e correcto acentuar coimbrão conseguira modificar.
Junte-se a um tronco esguio e curvo, uma cabeça de degenerado, oblonga e chata, com depressões acentuadas nos parietaes, lembrando um d'esses seixos achatados que se encontram á beira dos rios, e daremos por completo o retrato do actual senhor de Portugal.
Assim fôra fabricado o conselheiro Nunes dos Santos presidente do conselho de S. M. e futuro dictador.
IV
Sob o vasto toldo, em frente ao mar, o grupo elegante da Enseada, conversava animadamente.
Sombrinhas de côres vivas dormiam sobre a areia por entre as cadeiras de palhinha e os bancos de praia.
Creanças de pernas nuas entravam no mar soltando gritos agudos, outras em maillots vistosos precipitavara-se denodadamente á agua, de cabeça para baixo, mãos erguidas em oração, fazendo oscilar os pequenos barcos de pesca, d'onde se recolhiam apoz o mergulho, para logo se arrojarem de novo.
Janotas vestidos de claro, gravatas vistosas fluctuantes, sapatos de lona e bonet de pala, misturavam-se aos grupos das senhoras em cata de flarts.
Achava-se alli, n'esse á-vontade incomparavel das praias, todo o vicio elegante, vaidoso e snob da linda e vasta Enseada Azul; e se á primeira vista parecia reinar entre os frequentadores da praia uma geral promiscuidade, era um completo engano. Havia profundas separações; barreiras vedando o acesso aos desconhecidos e aos posydonios.
Havia o grupo de Cascaes, o mais aristocrativo e talvez por isso o mais livre e descarado, o do Estoril, o do Monte e dos adventicios a quem ninguem conhecia. E todos elles se criticavam mutuamente sem piedade, se despedaçavam, se abandalhavam em cada nova manhã um pouco mais.
Toda essa furia de malidicencia calumniosa, contrastava singularmente com a pureza da atmosphera, com o mar infinitamentel impido, transparente, e com a tranquillidade dos montes longinquos cobertos de arvoredo frondoso.
Essas lindas boccas proprias para beijar, profanavam-se ignominiosamente ao perpassar dos palavrões em calão, com que affectavam uma nova elegancia, uma nova moda.
Algumas, com carinhas de marquezas de Trianon, de braços nús, torneados e alvos, pulsos e mãos infantis, arrepiavam pela sua conversação banal e ordinaria.
Falavam de tudo e tudo discutiam, desde as cocotes conhecidas, amantes d'este ou d'aquelle, até aos secretos adulterios do seu conhecimento; por dinheiro ou sensualidade, senobismo ou indifferença.
-- A quem escolherá o Luna, perguntava a espirituosa Rachel de Sousa, a peior de todas as linguas femeninas de Cascaes.
-- A ti, provavelmente, respondeu-lhe a linda condessa de Sylves, a mais estonteante morena da sociedade, cujos olhos tinham causado suicídios.
-- Não me parece. Sou muito magra para elle, pois segundo me consta, gosta só de coisas solidas e magestosas. Preferir-te-ha com certeza, minha querida, pois tu és o que elles dizem, um bom pente.
Soaram alegres gargalhadas em torno, o dito agradára.
-- Esta Rachel está cada vez peor, exclamou a Mercêdes de Lima, está uma peste.
-- Com que os homens se envenenam, segundo diz o Silveirinha, accudiu a condessa.
-- Serei o que vocês quizerem, é-me indifferente, tenho as costas largas apesar de magra; mas voltemos ao que agora mais nos interessa, ao gajo da situação» -- Qual gajo?
-- Ora qual? o coronel, o heroe, o terror dos negros, dos politicos e das mulheres.
-- Sempre é certo elle ter chegado?
-- Hontem á noite, indo logo para a villa Esmeralda.
-- Então decerto não tarda ahi. O marquez não falta, não é verdade Mercêdes?
-- E que sei eu? Acaso mando n'elle.
Mercêdes corára muito, respondendo desabridamente á velhaca interrogação de Rachel. Ninguém ignorava a marcada predilecção do Bacalhôa por ella, e a vaidosa acceitação com que com recebia os galanteios do opulento senhor.
A Rachel porém não se intimidou por tão pouco.
-- Faz-te sonsinha, anda, que tens graça, proseguiu ella; isso era bom para outras mas não para nós, tuas amigas, e que sabemos perfeitamente tudo o que por ahi se faz.
Olha, quem te deve estimar muito e tratar-te com o maior carinho, sei eu...
-- Quem?
-- Que pergunta minha rica, o Luna, o qual na sua qualidade de adorador ideal da marqueza deve desejar certamente alguem para entreter o marquez ...
És a peor lingua d'este mundo, safa; na tua bocca tudo é perverso e imperfeito.
-- Qual, minha filha, eu não sou má lingua, enganas-te, repito apenas o que dizem e vejo muitas cousas que os mais não vêem, alem d'isso assiste-me o direito da represália, dizem as ultimas de mim e eu faço o mesmo dos outros, aguentem-se. Pergunta á Condessa, á Maria, á Sarah, a todas, se eu menti ha pouco quando disse que o Luna arrasta a aza á marqueza e que o marquez, anda embeiçado por ti. Pergunta, pergunta.
-- Lá isso é verdade, confirmaram todas.
-- Depois, continuou a implacavel Rachel, nós as casadas somos as mais criticadas.
A vocês, raparigas, tudo se lhes perdõa, são tudo creancices: a ti e á tua amiga Freixosa, que ainda outro dia foi caçada na tapada com o Bacalhoasito, um sonso peor do que ella e do que a própria mãe. E emquanto a nós nos chamam tudo quanto ha, vocês continuam sempre a serem as semi-virgens, quem tudo se desculpa e perdoa. Olha o que dizem da Condessa, de mim e da Maria.
A essa, até já lhe dão por amante ao sujo e asqueroso Abrahão.
-- Nogento, talvez, mas que tem massa como milho. É como o teu Silveirinha a quem attribuem mil vicios; dizem só gostar de homens e entretanto não o largas. Tem automovel, carroagens, e dá-te lindas prendas, como o colar do Leitão, que todas nós conhecemos. Olha, minha querida, quem tem telhados de vidro ... O melhor é não falar!
A pequena Mercêdes calou-se offegante, nervosa, o lindo olhar inflamado, fito na Rachel, cuja figura impassivel de magra viciosa, a fitava zombeteira e sem cólera.
-- Tens razão, todas nós temos culpas no cartório e se as temos é porque servimos para alguma coisa, não acham?
A condessa de Sylves concordou n'um gesto indifferente e Maria de Sousa sorriu enygmaticamente compondo os bandós d'um negro admiravel. Toda de branco, côr da sua preferencia, parecia uma vestal grega resuscitada.
A attenção de todas foi n'esse momento atrahida para um enorme vapor navegando em direcção ao norte, para um rumo desconhecido. Cortava magestosamente a agua coroado de fumo. Sobre o convez distinguiam-se vultos de passageiros saudando com os lenços. Ao passar junto do yacht Mary Fany, pertencente ao marquez, os dois navios trocaram uma saudação.
-- Que bom é viajar, seguir por esse mundo fora para terras mysteriosas. Quando vejo partir qualquer vapôr fico triste, desejava ir n'elle, fugir d'esta maçada, exclamou Maria de Lima com o olhar cravado no oceano.
-- Tambem eu...
-- E eu ...
Concordaram todas em que o viajar era o melhor dos prazeres.
-- Mas porque não pedes tu ao Abrahao um yacht. Elle é immensamente rico e facilmente poderia dar-te um, observou maldosamente Rachel.
-- Seria melhor que o pedisses a esse que ahi vem, retorquiu a Sousa com desdem.
Voltarara-se todas. O Silveirinha avançava para ellas, muito esguio, muito elegante, com o impertinente monoculo ao canto do olho, o rosto glabro e vicioso de degenerado cynico.
Assentou-se entre ellas familiarmente, beliscando umas, beijando os dedos a outras, com uma confiança femenina por todas acceite tacitamente. Muito intelligente, riquissimo, sem sombra de hypocrisia a mascarar-lhe os vicios, natureza artistica e sensivel, todas as mulheres lhe eram familiares, precisas e egualmente indiffentes. Apreciava-as como bibelots, desdenhando-as para o vicio. Sentia porém uma preferencia especial, uma sensualidade estranha, pela magreza falsa de Rachel, por essa compleição de ephebo egual á sua, e sobre tudo pelo vicioso do seu temperamento.
Fôra ella a primeira e unica amante para quem abria prodigamente a bolsa e dispensara alguma voluptuosidade.
Fôra d'ella só apreciava os homens.
-- Estão na má lingua habitual e na historiasinha depravada, não é assim? Vamos, continuem, que eu prometto ajudal-as. Qual era o assumpto? interrogou fitando-as.
-- O Luna, respondeu Rachel.
-- Não tarda ahi com o marquez e com o Alva. Encontrei-os ha meia hora no Estoril, de auto.
-- E que dizem d'elle?
-- Ora o que dizem? Tudo o que vocês sabem. O Nunes guerreando a sua volta para Africa, instigado pelo Sagres da marinha, e os marquezes a quererem mettel-o no paço, creio que por temor.
-- E elle acceitará?
-- Que remedio. Alem d'isso, dizem estar doido pela marqueza e vocês bem sabem como é difficil resistir-lhe.
-- Mas é que o Luna é d'outra tempera, não se parece com os outros homens. Se quizesse, aposto que atiraria com o Nunes para o diabo, e ficaria elle governando.
-- Para isso querida condessa, seria preciso, primeiro, que o marquez quizesse, segundo que a marqueza o não conquistasse, e finalmente, que o Luna não fosse um monarchico ferrenho, mais realista que o próprio rei.
De tudo elle será capaz menos d'uma traição, e o revoltar-se contra o Nunes n'este momento, seria appoiar os republicanos e combater o seu ideal monarchico.
-- Safa! como estás politico, exclamou Rachel por entre uma gargalhada.
-- Repito o que ouço e faço depois os meus considerandos, é natural.
-- Olha os teus amigos alem. Chama-os para o cavaco e deixa-te de cantigas, O Silveirinha ao erguer-se sentira um peso desacostumado nas algibeiras.
Mercêdes e a irmã tinham-se divertido a encher-lhe os beiços d'areia. Então começou a despejal-os atirando-lhes com punhados ao rosto por entre gritinhos de susto e pulos desordenados. Á entrada da praia, appareciam os vultos dos seus inseparaveis companheiros de passeios e orgias clandestinas; o José Assis e o Nuno Cabedo. Chamou-os n'um largo aceno de mão. Elles vieram logo. Eram dois janotinhas ridiculos, completamente barbeados como elle, e com ademanes femeninos e voz macia.
As senhoras receberam-os alegremente.
Gostavam muito d'elles pela exaggerada delicadeza e pelas piadinhas e historietas que, contavam a respeito de toda a gente. Trajavam de claro e traziam como o Silveirinha bonets de pala. Assentaram-se na areia, muito junto ás saias, em posição de gatinhos mimosos.
-- Vimos o Coronel com o marquez na Explanada, e o Luiz Bacalhôa disse-nos: que o pae ia dar um garden-party ainda esta semana, em honra do Luna.
Já toda a gente falava na festa, seria o acontecimento da estação. Ate o corpo diplomatico seria convidado e os officiaes dos couraçados inglezes.
Mas a Rachel exigiu pormenores, queria saber tudo. O que dizia o Negrão agora com essa intimidade do Luna com a marqueza, sim o que dizia.
-- Ora adeus, minha amiga, respondeu logo o Nuno Cabedo que se fazia passar por intimo do celebre diplomata. O querido Negrão é um typo que nada teme, nem se importa com cousa alguma, e em mulheres ninguém tem sorte como elle.
-- E tem-o provado bem, não ha duvida trepando sempre á custa d'ellas, observou a condessa maliciosamente.
-- Então já vêem se tenho ou não razão, e é por isso que eu affirmo, elle nada receiar.
Alem d'isso, está certissimo da marqueza, que parece de ninguém gostar a não ser d'elle. Flarteia com um ou com outro, não o nego, mas sempre por qualquer motivo ou fim. Lembram-se do Neves, d'esse pobre diabo de quem hoje já ninguém falla e foi n'uma dado momento o heroe da terra. -- Esboçou um gesto vago. -- A marqueza enlouqueceu-o e prendeu-o de tal forma, que o pobre diabo perdeu todos os fumos de revolucionario que trouxera de fora, tornando-se n'uma especie de marquez de Lafayete, naufragado. Ora com o Luna talvez venha a succeder o mesmo. Demais temos o Nunes a intrigal-o, e se elle por cá fica é homem ao mar. O Negrão porem é o unico que ha de escapar sempre são e salvo de toda a intrigalhada. É o mais finorio de todos, creiam, apesar de ser egualmente o mais insignificante. Nasceu n'um sino. Veste como um caixeiro e passa por elegante; sendo quasi mulato julgam-o branco: calculem vocês a força do homem.
E o Silveirinha proseguiu maliciosamente com voz melifula: E ainda ha mais; reputam-o com talento, um Talleyrand, e o homemsinho até hoje que me conste, não escreveu senão cartas de amor e só teve habilidade para conquistar mulheres.
E achas pouco? acudiu impetuosamente Rachel.
Pelo contrario, acho muito, tanto mais que eu não daria um só passo fosse por qual fosse. Acho-as a vocês todas d'uma banalidade horripilante.
Atrevido! disse-lhe ella dando-lhe uma bofetada. Elle susteve-lhe a mão rindo muito e mordeu-lhe no pulso, devagarinho.
Grande maluco! E Rachel soltou um gritinho fugindo-lhe.
Ouviu-se porem n'esse momento o som rouco e intermitente d'uma corneta de automovel.
Todos se levantaram para vêr.
Ahi vem o marquez, é o seu automóvel.
Era efectivamente o magnifico Fiat de 60 cavallos do Bacalhôa, que acabava de parar na estrada, em frente á praia.
Então deu-se um grande reboliço em todos os diversos grupos que se achavam espalhados pelo areal.
Cahiram bancos, cadeiras, as senhoras empunharam as sombrinhas vistosas e todos os olhares convergiram para os recem-chegados.
Apenas as gaivotas singrando pelo espaço azul, continuaram indiferentes nas suas evoluções curvelineas.
O marquez caminhava pela praia sorridente, charuto enorme entre os dentes, seguido pelo Conde de Alba e pelo coronel D. Alvaro de Luna.
Por toda a parte, á sua passagem, se vê em dorsos humilhantemente curvados, sorrisos falsos de adulação, e escutam-se palavras lisongeiras, cumprimentos refalsados e hipocritas a que elle corresponde com indiferente altivez.
Todos os do grupo de Cascaes, homens e senhoras, se haviam precipitado ao seu encontro, e excepto o Silveirinha e Rachel, os quaes apoz o haverem saudado de longe trocavam de novo impressões.
-- Já reparaste em como todos esses imbecis são d'um servilismo enjoativo, disse Rachel.
A sua observação era justa, pois nunca a inferioridade, a humilhação, o pouco sentimento da dignidade propria, se mostrara tão evidente. Devia ser bem inferior e miserável, toda essa sociedade, abdicando tão facilmente os seus sentimentos de orgulho e independencia, deante d'esse grotesco e balofo symbolo do preconceito e do poder.
-- Aposto, disse o Silveira, que, se Moliére passasse por aqui descalço, ou Shakspeare mal vestido, ninguém daria sequer por elles. Ao contrario, veneram o Bacalhôa e teem medo do Nunes. Sucia de cretinos.
-- O que te digo é que sendo eu uma creatura viciosa, tendo amantes e ausência de preconceitos, me sinto mil vezes mais nobre e digna do que todas essas anciosas em lhe venderem sorrisos. A Mercedes, a condessa e Maria, todas emfim que o rodeiam, o adulam e lhe pertencem. Eu cá era-me impossível entregar-me assim gosto ou não gosto bem o sabes. Quando sinto desejo, entrego-me, fora d'isso, odeio e não me vendo. Digo-te isto a ti por te saber uma creatura intelligente e aparte, distanciada de todos esses idiotas. Pareces-te commigo.
-- Até nos vicios, carissima. Riram alto, contentes por se comprehenderem.
-- Sim, até n'isso, dizes bem, pois tens a impudencia e a audacia de atirares com o que és á cara dos outros.
Entretanto, fizera-se um circulo e do marquez que se sentara na praia. Rodeavam-o as Limas, a condessa de Sylves a linda Sarah e outras do grupo, disputando todas á vez as suas palavras e olhares.
-- Vocês estão todas pecegas, esta manhã, fresquinhas e apetitosas como fructos, dizia elle.
Todas sorriram lisonjeadas, ao banal cumprimento.
-- E tu, meu diabrete, continuou dirigindo-se a Mercêdes, porque faltaste hoje ao tennis? Pregaste-me um bom lapin, não ha duvida.
- A culpa não foi minha, foi da mamã a quem tive de acompanhar a Cintra.
-- E que foram lá fazer de madrugada!
-- Vêr meu pae que está doente ha alguns dias.
-- Ah! não sabia. Tirou uma fumaça ao havano. Vamos ter festa depois de amanhã, proseguiu, e lá as espero a todas, ouviram.
Levantou-se dirigindo-se para um grupo de homens que conversavam cora o coronel.
Este, fazia sensação. Alto, esguio, olhar melancholico, contrastando singularmente com o rosto audaz cortado por uma enorme cicatriz, cingido na farda elegante de cavallaria, o dolman constelado de insignias honrosas.
-- Em Outubro iremos caçar para a Bacalhôa, disse-lhe o marquez, e quero ver se matas tão bem perdizes como negros.
-- Farei pelo melhor, retorquiu o coronel inclinando-se.
-- Pergunta aqui ao Alva, o destroço que eu fiz n'ellas a epocha passada. Não errei uma, alem dos tiros duplos. Só n'uma manhã matei dezeseis. Presentemente é o unico tiro que me interessa, a perdiz.
-- E ás pêgas? ajuntou ironicamente o Alva, a quem eram permittidas certas familiaridades.
-- Essas, respondeu o marquez rindo, costume caçal-as a bordo do meu barco, alem.
Apontou para o Mary-Frany, balouçando-se sobre o mar como um grande cysne, doirado pelo sol.
-- Effectivamente é mais commodo, fez o coronel.
O marquez aproximara-se d'elle e quasi ao ouvido disse-lhe:
-- Ves aquella creaturinha magra, vestida de azul, viciosa como um gaiato, atrevida e perversa, indicava-lhe a Rachel.
-- A Rachel d'Oliveira ?
-- Sim, essa mesma, pois fica sabendo que já foi a bordo assim como a Silves e a maioria das que vês por ahi.
O coronel fez uma careta de espanto e perguntou.
-- E não receia que se saiba, o invectivem, possam censural-o.
-- Qual! São todas umas croias, acredita, o que ellas querem é massa e empregos para os maridos, ou para os irmãos, quando solteiras. Soltou uma gargalhada cynica.
O coronel contemplou-o com espanto e o Alva fez-lhe um signal enygmatico de longe.
-- Ahi chegam o Negrão e o almirante inglez, advertiu.
-- Que estopada! Confesso não me ser nada agradavel este almoço em Cintra, declarou o marquez.
O Negrão vinha radiante, caminhando por entre sorrisos e cumprimentos. Vestia um completo de casimira azul aos quadrados, e sobre a camiza de peito mole, côr de anil, ondulava uma gravata branca de foulard presa por um travessão de pérolas. Parecia um mulato claro recentemente chegado do Brazil, com a sua casquette de bordo branca, com pala amarella. A seu lado caminhava o almirante inglez, muito alto e secco, vestido de flanella branca.
Saudaram o marquez que se acercara risonho e amavel.
O automovel aguardava-os para seguirem para Cintra onde um almoço intimo e á vontade, seria servido no magnifico palacio dos Bacalhôas.
Dirijiram-se immediatamente para a estrada seguidos por um numeroso grupo.
A Rachel junto do Silveirinha mirava-os por o enorme binoculo d'este.
-- Que feio é o almirante observou ella, e o Negrão como esta manha vera preto e como tem a mania das cousas claras.
-- É que em Londres apreciam o negro, é já cousa conhecida. Assim realça mais a sua coloração de mestiço.
-- Será?
-- E quem o não é em Portugal. Quando se não descende de preto vem-se de mouro, eis a razão do baixo nivel intellectual do nosso povo. Só agora é que o portuguez começa a embranquecer.
Rachel soltou uma gargalhada ruidosa.
Até na maneira de rir se conhecia a sua franqueza e independencia.
-- Sabes que mais... murmurou.
-- O que é?
-- Estou-me a lembrar de que se o Luna me quizesse, me entregaria a elle sem hesitação, voluptuosamente, como talvez nunca me dei. Tem um typo soberbo, masculo e energico; deve saber amar, esse homem.
-- Estás cada vez mais doida.
-- Vê, e diz-me se concordas ou não commigo.
-- Sim, não é mau typo para mulheres, eu, porém, para mim preferia o Negrão.
-- Sujo!...
O automóvel partira com ruido e a praia despovoava-se.
-- Olha que typos, observou o Silveirinha á passagem de dois passeantes que os haviam saudado.
Rachel sorriu com desprezo.
O conhecido Abel das Fayas agarrado ao braço do nababo Villa Flor, fallava-lhe por entre um sorriso mole, obsequioso e attento.
-- Então, meu caro barão, sempre vae ávante a nossa combinaçãosinha? perguntou ancioso.
O nababo, porem respondeu-lhe bruscamente.
Estava de mau humor n'essa manhã: Nada por emquanto havia resolvido, tinha a estudar primeiro a questão, amadurecel-a depois no cerebro. Alem d'isso era preciso ver os terrenos e preparar o caminho para a especulação.
O Abel não se deu por vencido, amontoando explicações.
-- Mas você bem sabe de que eu sou capaz, já teve a prova d'isso, lembra-se da concessão em Angola arrancada ao marquez por mim. Creia você que o meu logar de confiança, e a amizade que elle me dispensa, fazem-me valer mais do que muitos pensam.
O Villa Flor, concedeu-lhe um gesto de assentimento, promeilendo-lhe -- não descuidaria o negocio.
-- São dois verdadeiros typos d'arrivistes caracterisados, continuou o Silveidnha, especuladores, usurarios, sem pudor de especie alguma, tendo apenas por mira o interesse.
O Fayas, servindo-se dos favores e con trada.. os outros, são d'uma cobardia burgueza que me exaspera.
Rachel retorqui-lhe com malicia: -- Emendaste a mão a tempo não há duvida.
Levantaram-se. A praia achava-se quasi deserta e sobrea a transparente bahia, o sol a prumo, punha manchas de oiro fulvo. As gaivotas, escuras e alvas, continuavam evolucionando indifferentes no espaço, ou se precipitavam velozmente sobre as aguas, e um rancho apenas de creanças se agitava ainda sobre a areia molhada, fugindo ás ondas, entre gritinhos alegres e gargalhadas claras. O yacht branco e doirado, balouçava-se adormecido, e todo o panorama cegava, tão intensamente fulgia á luz quente e incomparável d'um sol meridional.
V
No explendido atelier da marqueza, envolto n'uma luz sabiamente introduzida pelas janellas velladas por stores amortecedores da crua claridade, esta, em frente ao ligeiro cavalete de madeira clara e setinosa, trabalha attentamente aguarellando um trecho do palácio de Cintra.
Tem na frente alguns azulejos arabes que lhe servem de modelo. Pendendo das paredes cobertas por um estofo claro, alguns quadros da eschola franceza, dois Rose Bonheur, uma magnifica paysagem de Corôt, uma cabeça de creança de Jean Paul Lorrin. Sobre outro cavalete, a um canto do atelier, um lindo quadro de Ramalho representa um interior minhoto -- dois velhos entretidos a ler, emquanto uma rapariga viva e robusta, a neta naturalmente, troca um beijo com o namorado á porta da rua, abrigado por uma parreira.
Sobre um precioso movel de boule, alveja graciosamente uma figurinha de Teixeira Lopes.
Alguns contadores da India e duas vitrines contendo bibelots preciosos, sobre os quaes se ostentam em jarrões de Saxe, rosas e lyrios, adornam o vasto gabinete, cujo sobrado em parquet, desapparece sob tapetes da Persia e d'Arrayollos. Chaises-longues e plians, cobertos do mesmo estofo sedoso das paredes, convidam ao recolhimento, emquanto duas magnificas estantes e pau preto, Renascença, d'um complicado trabalho, replectas de livros luxuosamente encadernados, attestara a predileção litterária da marqueza.
Esta, levanta-se de quando em quando, recua, volta para junto do quadro e lança uma nova mancha sobre a alvura do papel retesado pela lisa prancha de madeira.
Envolve-a um ligeiro peignoir mauve, amplo, fluctuante, cingido á cintura por um cordão doirado. As mangas perdidas põe-lhe a descoberto os braços alvos e torneados, e a garganta livre e bem lançada, possue essa carnação incomparavel das mulheres do norte.
O atelier é o seu santuário predilecto; alli medita, lê, repousa, nas horas ardentes da canicula, ou negligentemente recostada na ampla chaise-longue, em frente á larga janella, contempla a vasta enseada banhada da luz rubra do sol nas explendidas tardes de agosto.
Uma ligeira pancada na porta chama-lhe a attenção.
-- Entre, diz.
A porta abre-se, deixando passar um velho creado de cabellos brancos, correctamente vestido de negro, casaca, calção e meia de seda.
-- Ah! é você, João, quer alguma coisa?
-- S. Ex.a manda perguntar á sr.a marqueza se o pode receber.
-- Diga-lhe que sim, que o fico esperando.
Pousa os pinceis, dirige-se para defronte d'um magnifico espelho de Veneza e compõe os cabellos. Em seguida, reclina-se negligentemente na chaise-longue, esperando.
A porta abre-se novamente dando passagem ao marquez, que a cerra sem ruido -- Trabalhava? pergunta elle examinando como conhecedor a aguarella começada. Faz progressos, marqueza; a mancha dos azulejos produz um bello effeito e a perspectiva das arcadas é magnifica.
-- Isso são favores, amabilidades da sua parte ... Mas diga-me antes a que devo a honra da sua visita matinal...
-- É bem simples. Venho falar-lhe d'um amigo nosso a quem desejo ser util e para o qual preciso do seu appoio, disse elle beijando-lhe galantemente a mão.
-- Pode contar desde já com toda a minha boa vontade, embora ella me pareça de pouca valia deante do seu simples empenho, que tudo representa.
-- Engana-se, minha querida, e muitas vezes nós os homens, por mais poderosos que sejamos, não logramos conseguir o que facil se toma a uma mulher de espirito como a marqueza. Ora o pobre coronel precisa de si.
-- O coronel? Como! Pois é d'elle que se tracta? fez a marqueza com espanto.
-- D'elle mesmo. A politica tomou-o á sua conta e envolve-o nas suas malhas miudas e traiçoeiras. Torna se pois problematica a sua volta para Africa.
-- E porquê?
-- Porque o Nunes se oppõe tenazmente ao seu regresso nas condições passadas, isto é, com os amplos poderes que o ultimo ministerio lhe concedeu, e todos nós approvamos.
-- E qual a razão! Acaso não cumpriu elle com a maior intelligencia, honestidade e valor a sua missão, já por acaso alguém o egualou em coragem e fidelidade, iremos pagar agora com uma falta de confiança tudo que lhe devemos?
-- Não por certo, e é isso justamente o que aqui me traz.
O Nunes apresentou-me esta manhã argumentos contra os quaes não podemos luctar. A altivez do coronel feriu profundamente o ministro, quasi o tratou de imbecil e declarou-lhe terminantemente nunca despeitaria a sua opinião dentro das questões do seu governo. Em Africa mandava elle e não os ignorantes que se propunham governar de dentro d'uma secretaria, regiões para elles desconhecidas e acerca das quaes não tinham a menor noção.
-- Mas elle tinha razão! affirmou a marqueza com violencia.
-- Toda, não discuto, o que não obsta a elle ter comettido uma falta contra a disciplina, grave e punivel. Depois tratou todos os empregados do ministério de grate-papier e militares de papelão. Confesso-lhe aqui para nós, que não pude deixar de rir e concordar absolutamente com a opinião d'elle.
Mas as cousas não se levam assim a ferro e fogo, levam-se com diplomacia, e o coronel perdeu a partida.
-- Mas não pode o marquez impôr-se ao Nunes, e appoiar o coronel como deve.
-- Isso minha cara marqueza é ura verdadeiro impossivel. A nossa missão é aturar, contemporisar e encher os nossos corações de egoísmo e até muitas vezes de crueldade.
Entre a inimizade do Nunes e o desgosto do coronel não podemos hezitar.
O marquez sentara-se n'um tamborete de veludo aos pés da marqueza, a qual amarrota nervosamente entre os dedos o pequeno lenço de renda.
Por um intervallo do store escapa-se um vivo fio de luz que vem beijar docemente a pequena figurinha de marmore erguida sobre o contador um perfume suave a rosas e lyrios embalsamam o ambiente.
-- Combater o Nunes é-me impossivel, e só demitindo-o poderia salvar o coronel.
-- Mas que tem esse homem de extraordinario, esse louco sem mérito, nem cultura nem educação, para assim o dominar, a si, que tão bem se sabe desfazer de todos os importunos.
-- Apenas duas cartas cuja publicação seria para nós a ruina completa e uma queda fatal. Ora a marqueza sabe demais os poucos escrúpulos do Nunes, a sua vaidade immensa e facilidade com que muda de ideias e de politica. Amanhã, fora do poder, seria o nosso mais acerrimo inimigo e o mais feroz dos republicanos.
-- Mas como as adquiriu elle, e de que tratam?
-- Não sei como as obteve; o que lhe posso dizer é que ellas se referem largamente a essa desgraçada historia dos adeantamentos levantada na Camara propositadamente por elle, para me ter seguro.
A marqueza levantara-se inquieta, nervosa. Ao seu caracter altivo repugnava-lhe essa forçada humilhação perante um personagem odioso como o Nunes.
-- E o que quer que eu faça, diga? Lembre-se que eu em nada sou culpada das suas imprudências, nem da sua total indifferença perante tudo quanto é serio e digno de attenção.
-- Nem eu, pois tudo isto vem de longe, de muito longe. Se tudo começa a desmoronar-se, não é razão para nós ficarmos de braços crusados á espera da derrocada.
Precisamos do Nunes, não ha remédio senão aguental-o; quanto ao coronel, é preciso mettel-o no paço, dar-lhe um cargo correspondente ao seu mérito. Conseguiremos assim doirar-lhe a pilula, e tel-o para sempre do nosso lado. Lembre-se de que os heroes militares são sempre perigosos por mais dedicados que sejam. Recorde Saldanha entre nós e Lafayette em França. Ninguem melhor que a marqueza o saberá convencer e consolar. Dou-lhe carta branca, entrego-lh'o.
Ella olhou-o com desprezo, elle porém continuou sorrindo, examinando attentamente a aguarella.
-- Tem um bello um bello talento, minha amiga, um bello talento!
Ella não lhe respondeu entregue a uma profunda meditação, com o rosto contrahido encostado ás mãos.
N'esse momento um formoso relógio antigo, de madeira, executou um pequeno minueto Luiz XV.
Então como que despertou, levantandose.
-- Já onze horas, disse...
-- E eu deixo-a minha querida, esta tarde verá o coronel e rogo-lhe se não esqueça de o convencer. A proposito, tornou elle já da porta, e voltando-se outra vez, o dinheiro que me pediu para os jesuítas do Varatojo, e Campolide, e para os seus padres de S.
Luiz já o mandei entregar em seu nome; lembro-lhe porem seja d'ora avante menos pródiga com a egreja, pois creio Roma mais rica que nós; alem d'isso o Nunes que é um homem de economias crueis, seria capaz de falar na Camara d'essas somas já bastante avultadas como falou nos adeantamentos. A marqueza accusa-me dos meus egoismos e indifferenças, eu porem sou mais generoso, respeito-lhe as suas estravagancias fanaticas embora ellas me não agradem. Até logo.
Sahiu sem esperar resposta como que paralysada no meio do aposento com o olhar transtornado por uma colera impotente.
Quem assim a visse n'aquelle momento, não conheceria de certo n'esse rosto desfigurado e duro, a placida e attrahente physionomia da aristocratica marqueza da Bacalhôa.
Correu junto do espelho e cravou o olhar no aço polido, contemplando-se. Espantada talvez com a propria imagem, recuou levando as mãos aos olhos e conservando-os fechados por alguns instantes.
Quando os abriu de novo, sorriu. A placidez habitual voltara de novo; e encolhendo os hombros com indifferença, deixou o atelier n'um ruido abafado de sedas roçando-se contra os tapetes.
A figurinha de marmore toda debroada de luz, parecia sorrir ao beijo doirado do sol.
VI
O Garden-party offerecido pelos marquezes de Bacalhôa em honra do coronel D. Alvaro de Luna, reunira no vasto parque que contornava a villa Esmeralda, a mais escolhida sociedade da Enseada Azul.
Uma larga clareira abrigada do sol por macissos de loureiros, rosas e cedros, servia de salão de baile.
Separado apenas por uma alea frondosa estendia-se o vasto taboleiro do tennys, junto do qual se erguia um pavilhão vistoso, onde os criados serviam constantemente champagne frapé, gelados, refrescos e toda a casta de guloseimas.
Por toda a parte se viam numerosos grupos conversando, rindo, sentados ou em pé, n'uma animação sem tréguas de ditos espirituosos, cáusticos, imbecis ou banaes.
As toilettes claras, elegantes e ligeiras das senhoras, esmaltavam graciosamente as vastas pelouses relvosas, dando a impressão d'uma tella colorida de Goia, sob um céu resplandecente e limpido.
As fardas brancas guarnecidas de oiro dos officiaes inglezes, encareciam o quadro, quebrando a monotonia dos trajes banaes e demasiado correctos dos elegantes da capital.
A um angulo da clareira, o marquez conversava animadamente rodeado por íntimos, escutando attentamente as suas habituaes historias: proezas de caça ou arrojos heroicos de campino n'alguma ferra. Como charuto a um canto dos labios, corado e sadio, a obesa figura apertada n'um colete branco sobre o qual se abria um amplo frak alvadio, gesticulava de manso ao falar.
De quando em quando, ao narrar alguma passagem peccando por exaggero inverosimil, lançava para o conde d'Alva, ou para qualquer dos amigos que o rodeavam, um olhar furtivo de cumplicidade.
Fôra um tiro duplo a duas gazelas, cahindo fulminadas na carreira á certeira pontaria da sua carabina; uma pega de cara a um toiro desembolado, ou uma vertiginosa correria á cabeça d'alguma manada de gado bravo tresmalhado. Lances de força, prodigios de habilidade sportiva. Elles, servis, dependentes da sua bolsa franca e recheiada, confirmavam com convicção todas as façanhas, embora scientes de que ellas apenas se realisavam na fertil imaginação do embusteiro marquez.
Os inglezes, correctos e polidos, soltavam alguns haos! admirativos, sem bem comprehenderem a estranha mania d'esse grande senhor, tendo por divertimentos phantasias tão adversas á sua posição, e gerarchia e responsabilidades.
Por deferencia, deixavam-o discursar sem uma interrogação. Em breve se cançou a verve algarvia do marquez, affastando-se repentinamente era direcção d'um grupo de raparigas onde os olhos vivos da pequena Mercêdes o estavam de ha muito chamando.
O coronel Luna, era agora a victima dos inglezes, crivado de perguntas acerca das suas campanhas em Africa, da guerra do Transwal, dos mais varios assumptos referentes ás colonias. E para um sagaz observador não passaria desapercebido a attitude diferente, de interesse e deferência, por elles dispensado ao famoso coronel. Não era o simples respeito marcado apenas perante a alta cathegoria do personagem, como a attitude anterior tomada em face do marquez, mas sim o interesse, a admiração, e o vivo prazer em agora ouvirem discutir assumptos que tanto os interessava, por um homem d'um valor incontestável.
O seu nome apreciado e discutido em Inglaterra, tomara-o d'elles logo um conhecido, e o próprio almirante offerecera-lhe já a bordo um sumptuoso banquete, realisado na vespera.
A ordem do dia era pois o coronel, a quem todos disputavam com afan por snobismo; a novidade sensasional, a sua entrada próxima para a corte, amargamente verberada pelos amigos, e appoiada apenas pela banal camarilha, no desejo maldoso de o verem em breve tropeçar na intriga sordida dos corredores e ante-camaras reaes, perdendo assim o prestigio e a independencia.
Dizia-se porem á bocca pequena, que a bella marqueza da Bacalhôa fora a unica pessoa capaz de dominar a vontade de ferro do coronel, que até então se negara terminantemente a servir de adorno palaciano.
Já outra energia identica se perdera n'esse meio de rendas brocadas e mentiras, ao murmurio de boccas voluptuosas e das vãs honrarias e lisonjas.
O Conselheiro Sebastião Neves, governador geral, poeta, escriptor, politico, homem d'uma grande energia e probidade, aviltara-se como por encanto, na tepida atmosphera do paço. Haviam bastado uns olhos voluptuosos de mulher para triumpharem de todos as suas resoluções de homem valido e impeccavel. Vagueava agora por essa côrte, despresado, e sem prestigio, com a sua pena gloriosa de outr'ora, incapaz de novas luctas jornalisticas, obcecado por uma paixão impossivel que o volvera em imbecil.
Ninguem como elle sondára tão angustiosa e profundamente os sordidos manejos tramados presentemente na sombra contra o coronel, ninguem como elle os adivinhara hora a hora, dia a dia. Arrastava-se o coronel para a inacção, para o servilismo cortezão, baixo e criminoso, como annos atraz o haviam egualmente arrastado e perdido.
Ao astuto marquez não convinham homens de valor e energia, caracteres rectos e probos, intelligencias claras e livres. A esses, temia-os a sua mediocridade, egoismo e orgulho de inferior. Seriam para elle mais que um estorvo, um perigo.
Por isso os atrahia a si para mais facilmente os escravisar e envillecer. Se as honras os não seduziam, restava o amor e a intriga habilmente urdida.
O coronel ao encontrar-se em Lisboa novamente com o Neves, reconhecera subitamente n'elle, toda uma transformação evidente. Depois, mil historias e versões que corriam a seu respeito, haviam-lhe desvendado o resto -- as causas d'uma tal mudança, tão incomprehensivel como evidente:
A sua paixão infeliz pela marqueza, motivo primordial do seu rebaixamento moral e perda completa de energia; o seu afastamento da politica activa, trocada por uma indifferença completa, uma apathia constante a respeito de tudo que não fosse o seu culto amoroso por esse impossível. Sabia Luna tudo isto, e longe de o desprezar, lamentava-o profundamente.
No dia em que de mais perto conhecera a marqueza, tivera como que uma visão sinistra do seu poder, comprehendendo facilmente como o encanto poderoso de uma mulher, poderá dominar por completo um temperamento nervoso, artístico e romântico, como o de Sebastião Neves.
Elle mesmo se sentia arrastado mysteriosamente para ella, e embora luctasse heroicamente contra essa fatal corrente de sympathia, a apercebesse perigosa e nociva, capaz de dominar a sua energia altiva de luctador, continuava sendo inconscientemente ganho por ella dia a dia.
Talvez se julgasse assaz forte para poder resistir-lhe, ou que um sentimento de vaidade o dominasse em face das evidentes demonstrações de distincção e apreço que ella lhe dispensava.
Sebastião Neves parecia agora evital-o, contrariado naturalmente pelas suas amiudadas visitas á villa.
Com a vinda do Luna, aureolado de fama, heroe do momento, ficara elle como que n'um plano inferior de indiferença e esquecimento.
A marqueza avançava graciosamente pelo braço do duque de Alvor, para o grupo dos officiaes inglezes. Ao aproximar-se, chamou o coronel com um aceno de mão.
Este acercou-se respeitoso.
-- Convide em meu nome o almirante e os outros officiaes para tomarem um copo de Champagne; O coronel conduzil-os-ha, não é assim?
Fixara-o longamente, esboçando o seu melhor, sorriso Luna inclinou-se com respeito, e voltou para junto dos officiaes aos quaes transmittiu as ordens da marqueza.
A orchestra quasi invisível, n'um minusculo corêto coberto de glicinias, executava n'esse momento uma valsa, e numerosos pares evolucionavam já em torno do recinto reservado á dansa.
Rodeando a clareira, e precedidos pelo Luna, dirigiram-se todos para o pavilhão armado em bufete, onde os donos da casa os aguardavam rodeados de altos personagens.
O almirante brindou aos marquezes e a Portugal, saudação retribuida pelo marquez, brindando pelo rei Eduardo e pela marinha ingleza.
Soaram alguns hourras euthusiasticos, e os jogadores de tennys abandonaram por um momento a partida para virem espreitar os inglezes.
A condessa da Freixosa approximara-se do coronel.
-- Então já decidido? perguntou-lhe.
Expira amanhã o prazo que marquei para a minha resposta definitiva, respondeu Luna com hezitação. Antes d'isso, não direi nem uma só palavra a tal respeito, perdoe-me.
-- Nem mesmo a mim, confidencialmente!...
-- Nem mesmo a si, pois por mais amavel que quizesse ser, comsigo ser-me-hia de todo impossivel responder-lhe.
-- E porque?
-- Porque nem eu próprio ainda sei o que resolva.
-- Como assim?
-- Posso-lh'o affirmar. É por tal fórma melindrosa e difficil uma semelhante resolução que, todo o tempo me parece pouco para reflectir e chegar a uma conclusão.
-- E será capaz de desagradar á marqueza? Lembre-se ser ella a mais empenhada em tudo.
-- Se me lembro, e tanto assim, que se não fôra o receio de desagradar-lhe, ter-me-hia excusado immediatamente a tal graça. Note, querida condessa, que eu nasci para o movimento, para a independência, sou até meio vagabundo e corredor de aventuras. Uma especie de D. Quixote sem moinho nem Dulcinêa. Ora tudo quanto me possa privar da liberdade, aterra-me; além d'isso, confesso-lhe egualmente me não seduz demasiado a vida da corte, por artificial e perigosa.
-- Ora adeus, isso são historias, invenções dos de fora, despeitos ...
A marqueza que se conservara junto ao bufete seguindo com o olhar a conversação da amiga com o coronel, chamou-o de longe. Luna correu apressado.
-- Dê-me o braço. -- Temos que conversar, disse.
Ao lado, no tennis, estabelecera-se um grande bulicio. As pequenas Limas sustentavam uma brilhante partida contra dois guardas-marinha, loiros e rosados. Em torno, um grupo de convidados excitava-os, e junto ao bufete o marquez engulia sofregamente dúzias de sandwichs.
Via-se o Alvaro Negrão, moreno e espadaúdo, com a sua elegância vistosa de rastaquière, o Freixosa, petulante e ouço, belâtre conquistador, antigo marialva do Marrare e do Polimento; o Alva, efeminado e chic, o mais requintado snob da corte, com pretençôes a litterato e a fidalgo sem o ser, e, finalmente, o lindo conde de Seiva, um dos mais bellos e authenticos nomes de Portugal, que actualmente lhe pertencia pela mulher, como herdeira única dos Seivas e de 600 contos que lhe levara em dote. Esse parecia ter sido feito unicamente para procrear, pois nenhum outro mérito se lhe reconhecia a não ser a bella presença e a numerosa prole. A interessante e espirituosa condessa de Sylves dissera d'elle um dia:
-- Quando o Seiva me fita sinto-me gravida.
Este dito definia o conde.
Mais além, um agrupamento de mulheres formosas, entretinha-se conversando animadamente com os inglezes e varios diplomatas, entre os quaes se salientava pela correcção, o velho marquez de Rimini, discutindo arte com a duqueza d'Alvor, curiosa reliquia da antiga nobreza de Portugal, muito artista e muito mundana.
A um canto, um grupo bulhento de semi-virgens, faces afogueadas, olhos vivos, agitando nervosamente os pequenos léques, coqueteavam com o Ribatejo e com o pequeno Luiz Bacalhôa. Tanto o tio como o sobrinho pareciam interessar demasiado as raparigas, visto as gargalhadas francas estalando no ar como cristaes chocando-se.
E sobre todo este quadro colorido e buliçoso, pousava levemente como que suspensa, uma poeira d'oiro, luminosa e tremula, coada atravez das espessas ramarias dos platanos e das copadas tilias do parque.
Todas as pequenas mordiam delicadamente sandwiches, empadinhas ou frituras, com os seus dentes alvos de cadellinhas sensuaes, humedecendo-os apoz com champagne extra-doay brilhando como oiro nos facetados copos de cristal de Veneza.
A marqueza afastára-se com o Luna por uma pequena avenida a meio da qual se deixara indolentemente cahir sobre um amplo banco de marmore.
-- Aqui conversaremos melhor, todo esse ruido de festa me enerva, murmurou ella fitando-o com melancholia. Depois desejava dizer-lhe algumas palavras antes de amanhã. Quero saber se é meu amigo e provar-lhe ao mesmo tempo o meu interesse.
-- Acaso o póde duvidar? acudiu o coronel com impaciencia.
-- Quasi, em vista da sua indecisão.
-- Mas repare, marqueza, que todo o meu futuro depende talvez da minha resolução.
Ficar na corte será para mim uma grande honra, confesso, mas será egualmente o anniquilamento de todos os meus projectos.
-- E não acha por acaso para si uma nobre missão, o velar pelos seus amigos n'este momento perigoso em que elles precisam como nunca de affeições sinceras como a do coronel? A sua voz era triste e Luna commoveu-se.
-- Decerto ... decerto, e a sua confiança é para mim a mais grata recompensa que até hoje tenho recebido, acredite... Ha comtudo um ponto negro que me aterra, confesso-lhe, e me tem trazido até agora hezitante.
O coronel que ficara em pé deante da marqueza, torcia nervosamente as luvas entre os dedos, o rosto contrahia-se-lhe denunciando a lucta intima que se travara em si, havia dias.
A marqueza estudava-lhe attentamente a physionomia com o seu olhar frio e penetrante. Uma expressão de triumpho esclarecia-lhe o rosto, certa da passividade d'esse homem forte, perante quem todas as vontades se quebravam como vidro.
- E qual é o ponto negro? interrogou apoz uma longa pausa, maliciosamente.
-- O desprezo dos que em mira confiara e a inutilidade do meu sacrificio. Sei infelizmente o quanto pode a intriga, e temo ver-me dentro em pouco tempo, um horaera inutilisado e quem sabe se ridiculo.
A marqueza, quero crer, dispensa-me alguma estima como diz. Mas será ella bastante energica para me sustentar. Depois, tenho deante dos olhos constantemente um grande exemplo, e ante elle sinto-me cobarde pela primeira vez na vida.
-- Cobarde, um Luna?
-- E porque não? Acaso não hesitou Napoleão entre o repudio de Josephina e o desejo de dar á França um herdeiro. Não tremeu Numa ante Ersilia, Albuquerque deante da ingratidão humana, Gonçalo de Cordova deante da linda Zuleima?
-- E são esses os espectros que o aterram?
-- Não porque esses já se perdem no passado; existe um outro mais próximo e frisante.
-- Qual!
-- Sebastião Neves!
Pelo rosto da bella marqueza perpassou um remorso.
Levantou-se bruscamente do banco e disse-lhe nervosamente:
-- Mas esse perdeu-se a si mesma pela falta de energia e por sonhar um impossivel.
Hezitou entre dois caminhos differentes sem coragem para seguir por qualquer d'elles. Ora eu faço-lhe justiça coronel, em o julgar um homem, com outra vontade e com outra persistencia. Depois elle era um velho, entende, e o Alvaro é ainda um rapaz.
O golpe foi tão certeiro ao coração do Luna que quasi cambaleou. A marqueza sorridente e já sem sombra de colera, estendia-lhe a mão com confiança.
-- Acceita, não é assim?
Luna curvou-se sobre essa mão poderosa e alva, e beijou-a demoradamente. Um sim imperceptivel escapou-lhe dos labios.
-- Para que se não esqueça, disse-lhe ella entregando-lhe o pequeno ramo de myosotis que trazia á cintura.
E emquanto a marqueza se dirigia triumphante para o local da festa, seguia o Luna meio curvado, pela avenida tranquilla, em direcção á rua, levando junto dos labios as pequeninas flores azues. A marqueza seguira em direcção ao tennis.
Alli a animação progredia. Os inglezes deixavam-se bater pelas suas formosas adversarias, naturalmente por um requinte de fidalguia britânica.
A condessa da Freixosa approximára-se da marqueza.
-- E o coronel?
-- Partiu esbaforido. Depois de pequena lucta declarou-se vencido.
O marquez que egualmente se acercara da marqueza, interrogou-a baixinho:
-- Então, foi feliz na sua missão diplomática ?
-- Acaso o duvidou?
-- Não, certamente, e venho por isso apresentar-lhe todos os meus cumprimentos.
Longe de nós, o bom coronel, podia ser-nos perigoso, perto, será mais um passivo instrumento como os demais. Obrigado, marqueza... obrigado.
Afastou-se risonho, mordendo o charuto, para junto de Mercêdes de Lima que, toda afogueada, limpava o suor ao pequenino lenço bordado.
A orchestra executava a symphonia da Carmen, e o sol declinava lentamente sobre o mar infinitamente azul, apparecendo ao longe por entre as ramarias verdes.
VII
O Coronel Luna, no seu vasto gabinete de trabalho, sentado á secretaria, o rosto appoiado ás mãos, tinha os olhos cravados sobre um grande volume aberto o qual parecia absorver-lhe por completo a attenção.
Era a famosa edição do século XVII do D. Quixote, de Cervantes. N'uma jarrinha esguia de crystal, perto d'elle, o pequeno ramilhete de myosotis, dadiva da marqueza n'essa tarde, conservava ainda todo o viço injenuo da sua côr suave.
Um candieiro de azeite de metal branco com o globo verde, derramava em torno uma semi-obscuridade melancholica.
E as gravuras e retratos suspensos das paredes, cubertos d'um estofo cinzento, pareciam contemplar da sombra o rosto palido e contrahido do seu companheiro quotidiano, estranhando n'elle, essa expressão angustiosa da qual não comprehendiam o motivo.
Seu avô D. Luiz de Luna, parecia do seu canto sofifrer das mesmas incertezas e duvidas. Na figura placida do grande liberal, divisava-se alguma cousa de amargo e triste.
E em face, um retrato de Cervantes olhava-o com amor, como se n'elle visse resuscitada a sua alma triste de eterno sonhador, para quem a bondade e o génio somente tinham sido causas de desgraça e dores; personificação da bondade altiva e intelligehte entre a turba venal, grosseira e egoista.
Apenas o rosto de Napoleão, que uma explendida gravura de Goupil representava na sua impassibilidade de estatua, assistindo á tremenda batalha de Jena, conservára essa mascara eterna do mais tremendo egoista da humanidade.
E eram esses os favoritos de Alvaro de Luna, dois grandes liberaes generosos e bons, amordaçados pela utopia do preconceito, e um immenso despota cujo valor consistira apenas no amplo conhecimento dos homens e no desprezo que lhes votara.
Elle, Luna, participava dos tres: herdando dos primeiros a illusão cavalheiresca, a crença, o preconceito, o patriotismo, e do ultimo o voraz appetite da conquista.
De quando em quando o seu olhar dirige-se para o retrato de Cervantes, como que a pedir-lhe o segredo envolto na alma complicada do triste cavalleiro manchego, e recorda-se da vida attribulada do grande escriptor, do quanto elle havia sentido a odiosa verdade da celebre sentença do poeta latino:
«nil habet paupertas durius in se, quam quod ridiculos homines facit;» a pobreza tem a dura particularidade de tornar os homens ridiculos.
Acabava de ler justamente o capitulo que narra a passagem de D. Quixote e Sancho pela corte da duqueza, e das palavras murmuradas por este a respeito do amo, apoz haver contado todas as suas loucuras, e pancadas recebidas por culpa d'elle, fome, maus tractos e desillusoes. «Pois apezar de tudo, diz Sancho Pança, a ninguem mais estimo no mundo, e nada será capaz de nos separar, até que a mesma pá e a mesma enchada nos cavem o ultimo leito». Estas palavras sublinhadas por Luna á margem do livro haviam-n'o feito longamente meditar.
Nenhumas tão a propósito poderiam agital-o n'esse momento. Ellas representavam a maior das fidelidades e dedicações; por ellas affirmára Cervantes a dedicação do povo hespanhol aos seus reis e tradicções.
E alli estava esse pequeno ramo de myosotis, exigindo d'elle uma egual dedicação, e a resuscitar-lhe um ideial de amôr, pela intangivel Dulcinêa, para a qual caminhava como o errante cavalleiro.
O seu coração romântico de meridional, educado na religião, no preconceito e no dever para com os reis, não podia deixar de ser arrastado por esse ideial aristocratico.
De tudo por elle se sentia capaz, e apesar de aperceber nitidamente o seu futuro perdido, todos os seus longos serviços inutilisados, a sua missão impotente no meio d'essa corte carunchosa e derruída; a reprovação muda dos amigos e da própria familia, na acceitação d'esse cargo servil de cortezão, a sua ideia subsistia ainda assim, firme e inabalavel. Era uma alma antiga, habitando um corpo moderno, uma creatura do passado atravessando um lodaçal corrompido, cynico e descrente, civilisado apenas na apparencia, onde passaria incomprehendido e seria fatalmente arrastado a um fim ignominioso.
E porque lamentavel cegueira elle, tão perspicaz no conhecimento dos homens, elle que a sangue frio declarara ultimamente, atravessar o paiz uma crise egual á da França em 1830, prevendo ao Nunes, egual fim ao de Polignac, tendo a visão nitida de Cherbourg, prevendo a revolução popular, tarde ou cedo, em vista das futuras e fataes medidas reaccionárias do Nunes, a quem uma vaidade hysterica do poder ensandecia dia a dia; elle, o descendente de liberaes, trocava o sympathico destino d'um Lafayette, pelo apagado e pouco honroso mister de cortesão?
Nem elle proprio o saberia explicar. Talvez essas flores azues fossem mais eloquentes que o seu proprio pensamento ou o psycologista mais profundo.
Ainda n'esse ponto Luna se confunde com o heroe de Cervantes, ou com o proprio Cervantes para melhor dizer. Existe em D. Quixote um patriota cuja visualidade contraria por vezes o enthusiasmo, reside n'elle um liberal algemado pelos prejuízos nacionaes. Hoje porem, se Cervantes existisse seria um revolucionário, um libertário; porque mysteriosa razão pois Luna sendo um liberal, continuava escravo d'um throno?...
Egualmente como Cervantes, Luna padecia de egual misanthropia, raro era rir e raras cousas o divertiam.
Andava habitualmente triste e pensativo, e a sua verdadeira preoccupação era talvez a gloria, o amor dos seus e da patria. Prodigamente generoso, d'uma rectidão incomparável e d'uma audácia temeraria.
Chegara a casa ainda sob a impressão poderosa das ultimas palavras da marqueza:
«Não será uma nobre missão o velar pelos seus amigos n'este momento perigoso?» Haviam sido estas ultimas e perigosas palavras, que o tinham convencido, mais que as declarações terminantes do Nunes a seu respeito, e as intrigas do ministério da marinha.
Não poderia voltar a Africa n'esse momento, esperaria. O ministério actual seria de pouca dura, não o duvidava, só lhe restava pois ter paciência. Era esse o seu disignio quando ainda tentara luctar com a marqueza. Ella porém vencera-o como o venceria sempre. Sentia-se por ella completamente subjugado e um terror intenso e misterioso minava-o surdamente.
«Seria um sentimento de amor essa inqualificável fraqueza a dominal-o? Interrogava-se a medo sem ousar responder a tal pergunta. Se assim fosse, era um homem perdido, inutilisado, ridiculo, para o qual somente a morte seria remedio eficaz.
Esta ideia nunca o aterrara. Exposera mil vezes a vida como quem se expõe a um raio de sol, sem recêo nem hezitação. A morte, pelo contrario, parecia atrahil-o pela grande tranquilidade. O ficar eternamente dormindo, sem dôres, sem preocupações, nem alegrias. Quantas vezes elle não afirmara a todos, ser o seu maior prazer a inamobilidade, permanecer longas horas estendido na chaise-longue, o olhar aberto sem ver, pensamento funccionando inconscientemente, sem pensar.
Ao chegar de Africa, trazia comsigo mil ambições que perdera. O engrandecimento das colonias tornava-se impossivel perante a rotineirice ignorante dos ministros, o indiferentismo condemnavel do chefe d'Estado, a intriga lavrando entre o exercito, a marinha, as secretarias, a completa desmoralisação da tropa, os portos mais elevados, alcançados na preguiça dos gabinetes ministeriaes ou ante-camaras do paço, a atitude humilhante do paiz perante a Inglaterra, vivendo apenas da politica internacional, do favoritismo incomprehensivel de diplomatas, a quem somente as mulheres haviam servido de pedestal ; todo emfim este estado de degradação moral e ignorância, lhe havia immediatamente demonstrado a inutilidade dos seus esforços, e exitos alcançados á custa de mil sacrificios, e perigos.
Para que existia pois, para que vivia?
Essa mesma mulher, por quem estava prestes a sacrificar as mais caras ambições, mereceria por acaso o seu sacrificio?
Seria ella como elle a sonhara, uma creatura ideal e pura, capaz de grandes acções e victima apenas d'um marido egoista e do meio corrompido em que era forçada a viver?
Quantas versões corriam a tal respeito!...
Não pretendiam ter sido ella a causa da apostasia do Neves, rodeando-o de lisonjas e hypocrisias, fazendo das suas graças um iman sempre prompto para servir as intrigas palacianas.
Não affirmavam egualmente á sua predilecção criminosa pelos amores saphicos, apontando até a Freixosa como a paixão dominante da sua vida!... E tudo isto era appoiado por argumentos irrefuctaveis. A sua educação n'um meio beato e dissoluto, viciado desde creança pelas amigas, ávidas amantes do seu corpo alvo e arredondado; o mysticismo característico de todas as grandes invertidas. Depois, viera o casamento mais tarde a desilludil-a cruelmente do homem, o soffrimento da gravidez tendo o doloroso pano por epilogo, tudo era fim que desgosta a mulher do macho, a lança na pratica das sensualidades mais requintadas, mais ardentes e menos perigosas.
«Se assim fôra, não seguiria elle na vida cego á luz da razão? Não o levaria a uma maior dôr o seu inutil sacrificio? Depois, tinha deveres; estimava profundamente a mulher, a familia, tremendo ante a só idéa de lhe causar o minimo desgosto.
Todas estas considerações o lançavam n'um mar angustioso de contradicções, duvidas, incertezas e indecizôes.
Quem triumpharia, quem?
Fechou o livro favorito, e machinalmente, procurou outro. O primeiro era o Plutarcho francez, fechou-o com força; um segundo e um terceiro, a Vida de Napoleão e os Commentarios de Affonso d'Albuquerque, tiveram egual sorte. Só o quarto lhe mereceu attenção; era um volume de Fourier, sobre socialismo.
Parecia desejar afastar todo o passado, procurando a cura do seu attribulado espirito nos modernos ideiaes.
Por algum tempo o leu com certo interesse, folheando-o aqui e acolá. Mas acabou também por enfastial-o. Decididamente não podia concentrar o pensamento em outro qualquer assumpto que não fosse aquelle que tanto o mortificava. Demais conhecia todas essas lindas doutrinas, desde Saint Simeon, Owen e Bentham, até ao socialismo christão de Lamennais e de Tolstoi.
E havia ingenuos capazes de acreditarem na educação moral d'essa fera a quem chamavam o homem.
Se por um lado concordava na immensa desegualdade humana, e o seu coração generoso lhe segredava a necessidade de a corrigir, por outro repugnava-lhe instinctivamente essa promiscuidade precisa, e patriota como era, não podia comprehender a fusão de todas as raças n'uma só familia, a completa abolição de todas as fronteiras e nacionalidades.
Era tudo utopia, loucura; e de repente, surgiu-lhe a grandiosa visão da Hespanha dos reis catholicos, de Fernando e Isabel, esses modelos da realeza e da virtude.
Só assim poderiam as nações attingir o mais elevado grau de felicidade e grandeza.
A resolução do problema politico era para elle uma só: um bom monarcha; achado elle, tudo resurgiria de novo. Foi como que uma revelação grandiosa a deslumbral-o. A sua missão defenia-se; bastava empregar todos os esforços da existência até se preciso fosse, para encaminhar esse rei, mostrar-lhe o dever, a gloria do engrandecimento do paiz, a felicidade suprema de praticar o bem, tornando felizes á força de leis sadias nobres e justas, os cinco milhões d'almas que governava. E pensara elle em voltar para Africa quando o seu logar era alli, junto d'aquelle a quem via todos os dias afundar-se cada vez mais na lama do seu culpavel indifferentismo. Não, ficaria; e esse homem seria forçado a escutal-o, a obedecer-lhe em nome dos mais nobres princípios da humanidade.
Esquecera o Nunes, reacionario, vaidoso, estupido e cruel, toda essa camarilha ignorante e vã, toda a corrupção incuravel e atavica do balôfo Bacalhôa, incapaz de o ajudar no seu sonho de illudido.
Voltava por um instante a habitar n'elle a alma romanesca e pura de D. Quixote, e como elle de novo tomaria os moinhos por gigantes e os mais pacíficos transeuntes por filhos de Satanaz. Dava-se n'elle, agora, esse phenomeno inexplicável mas vulgar ás grandes almas: uma espécie de semi-loucura arrastando-as inconscientemente aos actos mais inverosímeis na realisação d'um ideal, impelidas por um destino mysterioso.
Puzera de parte uma utopia, para correr atraz d'outra mil vezes mais impossível e confusa.
Creancice e cegueira, tudo por causa d'um frágil ramilhete de flôres azues sem perfume.
Assim são as creanças, os poetas e os bondosos.
D'esta vez a marqueza podia estar certa do seu triumpho.
VIII
No salão familiar, austero e sobrio, o esguio candieiro de bronze, velado pelo immenso abat-jour de seda verde, projecta uma luz tenue e dôce, contra as tapeçarias purpura cahindo em longas pregas sobre os portaes, e vestindo as cadeiras de espaldar, plians e sophás, que guarnecem o aposento.
Um raio de luz, depois de se espraiar de movel em movel, de tapiz em tapiz, vai expirar entre os labios risonhos d'uma formosa dama retractada, cujo rosto altivo e nobre, surge graciosamente d'uma gargantilha de finas rendas.
Perto d'ella, parecendo contemplal-a amorosamente, um grão-mestre de Calatrava, de rosto moreno e enérgico -- D. João de Luna -- seu esposo, -- descança a valorosa mão sobre o punho d'aço da espada Toledana.
Quasi em frente, entre um coronel de milicias do Reino -- D. Vicente de Luna -- o valoroso caudilho liberal mais tarde, ministro de D. Pedro IV -- um guerreiro coberto d'aço -- ainda um Luna -- destaca-se do fundo escuro do quadro. E heroe da grande familia que teve Castella por berço, o vice-rei da India, Pero Affonso de Luna y Gusman, valido predilecto de Filippe 2.o e tenente general das armadas hespanholas.
O seu rosto sêcco e anguloso, o fino bigode á mosqueteiro, e sobre tudo a côr azulada do olhar melancholico, contrastando singularmente com a altivez endurecida que lhe acentua os traços physionomicos, revestem d'um encanto especial essa figura attrahente de guerreiro. E parece, que a natureza, por um d'esses mysteriosos caprichos de atavismo inexplicaveis, se compraseu em marcar trezentos annos depois, com as mesmas grandes qualidades moraes e o mesmo encanto physico, ao seu actual representante, o coronel D. Alvaro de Luna y Gusman.
O traço principal dos Lunas -- o labio inferior sensual e desdenhoso, marca acentuadamente o ultimo herdeiro d'essa velha geração de guerreiros, defensores intransigentes da Realeza e da Religião.
Algumas panoplias guarnecidas de lanças, punhaes, arcabuzes e espadas, completam o adorno das paredes, assim como dois contadores indianos ricamente embutidos. A um canto do salão, resguardada por um biombo japonez de côres vistosas, repousa uma mesa redonda, sobre a qual a luz da alampada desce directamente innundando-a de claridade; e sobre o panno vermelho de veludo, avultam encardernações luxuosas de livros, varios jornaes, revistas, e três modestos cestos de costura contendo novelos de lãs, agulhas esguias de marfim e sedas de bordar -- polychromas.
Em torno da meza, duas senhoras vestidas de negro, cujos bandós côr de linho emolduram os rostos alvos e aristocráticos, conversam baixinho, emquanto uma terceira, ainda moça e esvelta, se debruça carinhosamente sobre o hombro do marido, cujo olhar divaga amorosamente sobre as magnificas gravuras da celebre edição de Cervantes, do seu immortal D. Quixote.
Esses rostos tocando-se, parecem illuminar-se ao sopro de impressões idênticas, experimentarem as mesmas sensações, de alegria e de dôr, os mesmos enthusiasmos e ardores.
Ambos lêem com avidez, essas paginas conhecidas, para elles sempre encantadoras e imprevistas, ora tragicas ora burlescas, amorosas ou tristes, severas ou compassivas, na logica da critica sincera, mordaz e incisiva. Por vezes o olhar de D. Alvaro sorri para a mulher, aponta-lhe uma phrase que sublinha, ou escreve á margem alguma nota. E quasi todas as folhas se acham assim escalpeladas pelo lapis temerario e caustico do coronel.
-- O menino ha-de acabar por perder completamente a vista com essa mania de ler á noite, diz pausadamente D. Mathilde fixando carinhosamente o filho.
-- Qual, minha mãe, é rarissimo agora ler de noite, pergunte á Luisa.
-- Lê muito menos o Alvaro, muito menos que d'antes. Quando estavamos na India, então, lia até de manhã, quando não se assentava á secretária a escrever. Agora o ler de noite é raro, é uma vez lá por acaso.
-- Pois sim, pois sim, mas nem mesmo esse pouco deve sêr; lembre-se do seu pae que ficou quasi cego. Depois a myopia é uma moléstia de família, e o Alvaro já vê pouquissimo.
-- Victor Hugo, não trabalhava senão de dia -- observou a outra senhora -- D. Clara de Luna, tia direita de D. Alvaro. Por isso chegou aos 80 annos sem necessidade da luneta. Emquanto que o menino tem apenas trinta e oito.
-- E uso monoculo, não é assim? acudiu D. Alvaro com ar de troça, sorrindo-lhe.
Lembre-se porem, querida tia, que o grande Hugo era uma creatura á parte, e que não só a vista, como todos os mais sentidos, os conservou inalteraveis até morrer.
-- Gente antiga que vae acabando pouco a pouco... Depois, retorquiu D. Clara apontando para o retrato do vice-rei, e pousando a costura lentamente sobre o regaço:
homens como aquelle é que já não ha e toda esta gente moderna me parece apodrecer antes de tempo. E até -- Deus me perdoe o que vou dizer -- todos os fidalgos modernos e as proprias pessoas reaes, me parecem ir acabando. Já por elles não sentimos egual respeito e amôr, não representam o mesmo ideal, falta-lhes um não sei quê - o porte, a dignidade a convicção... eu sei lá.
-- Lá vem, lá vem, com o seu odiosinho ao moderno, ás liberdades de agora. Observou D. Alvaro.
-- Engana-se, menino, Não é odio - longe d'isso -- mas apenas tristeza. Acho que os reis deviam ser como os d'out'rora, reis pelo direito Divino -- cercados por uma nobreza escolhida: especies de divindades de difícil asseco. Hoje o que vê o menino na corte?
Grandeza, fidalguia, maneiras, educação, qual! Três ou quatro nomes antigos, quando muito; o resto são parvenus enriquecidos, ou políticos ambiciosos e ruins, sem sombra de dignidade ou brio.
-- Eia que catilinaria? A tia hoje está mal humorada com certeza, interrompeu D. Luiza sorrindo.
-- E estou, é verdade. A entrada para a corte do teu marido, traz-me inquieta, mortificada. Os Lunas não nasceram para creados de reis. Aquelle que alli vê, Pero de Luna, afim de o premiarem dos seus serviços, fizeram-o vice-rei e tenente general do reino, mas não me consta que nenhum dos Lunas tivesse sido lacaio de rei ou de imperadores.
-- Mas o Alvaro não foi já quasi rei ?
-- Sim; foi-o, mas por pouco tempo. Não tardou que todas as invejasinhas dos quartéis, secretarias e ante-camaras reaes, o viessem infamemente calumniar.
-- Mas que havia elle de fazer, senão acceitar o offerecimento do marquez, visto não o deixarem voltar para o seu governo?
-- Não sei, não sei... tudo menos entrar para o paço. Será um presentimento talvez, temo todavia que essa determinação lhe acarrete desgraça.
-- Mas querida tia, olhe que a côrte, não é positivamente um antro de feras, um pântano... notou sorrindo melancolicamente D. Alvaro.
Confesso não ser para mim um ideal essa offerta, mas os marquezes insistiram por tal forma comigo, a carta que me escreveram era tão affectuosa que, confesso não tive coragem para negar. Alem d'isso, espero será apenas temporaria a minha nomeação, e ao menor rumor de insurreição em Africa -- o que não tardará -- creia que logo me chamarão.
-- Deus o queira ... Deus o queira...
Havia dois dias que o assumpto obrigatorio em casa dos Lunas era a nomeação do coronel para um dos mais elevados cargos da corte: -- mordomo-mór e camarista. Intrigas politicas, manejos sórdidos, odios e invejas, haviam conseguido insinuar no animo voluvel e traiçoeiro do marquez, a inconveniência e o perigo da volta do coronel para o seu independente governo da provincia africana. Seria a perda certa da grande colonia, falava-se na autonomia da provincia exigida ao governo pelo coronel, inventavam-se conspirações, perigos para a monarchia, toda a espécie de mentiras capazes de desvirtuarem esse caracter nobre e independente contra o qual todos uivavam de longe invejosamente.
Os ministros temiam as suas criticas sempre sinceras e altivas; os militares odiavam-o pelo seu valor incontestavel como guerreiro, os republicanos aspirando a conquistal-o, não lhe perdoavam o seu fanatismo pela monarchia.
Creara inimigos podendo fazer escravos; e se o seu grande espirito conseguisse libertar-se d'um atavismo pernicioso e d'uma educação fanática; se os vultos severos d'outros tempos, aristocratas convictos n'uma monarchia e escravos da tradicção, e prejuisos, não dominassem completamente a sua vontade a ponto de o obrigarem a um cego servilismo por um sêr inutil e egoista, incapaz d'uma gratidão ou recompensa, o coronel Luna seria um d'esses homens de génio que apparecem de seculo em seculo, destacando-se a marcar uma nova civilisação, na tremenda crise em que o paiz agonisava decadente e cobarde, dominado pela superstição catholica e por dois ou três audazes bandoleiros da alta politica que sugavam os cofres publicos e enfraqueciam o ultimo alento portuguez, e podendo ser o redemptor d'uma raça envillecida e indifferente, para quem a unica ambição consistia no decorrer da vida despreocuda entre toiradas, folguedos nas ruas e nas praias, lausperenes e romarias.
Tudo o mais lhe parecia inutil.
Luna, ao voltar d'Africa teve a visão nitida d'esta decadencia miseravel, e o seu grande coração indicou-lhe um unico caminho a seguir: a lucta sem treguas pela redempção do seu paíz, mesmo á custa da propria existência.
Errou porém esse caminho, victima da fatalidade, da tradicçao e d'esse amor doentio que lhe avassalava a alma.
Fôra esse ideal, talvez, que o levára a acceitar um logar inferior ao seu merito e gerarchia no louco desejo de incutir no animo do seu cynico patrão, servindo-se da sua superioridade, do predominio que conquistara e da notoriedade incontestável do seu nome, todas as idéas, de generosidade, justiça e caridade, para bem governar.
Bem o sabia elle egoista, indifferente, ingrato e sorna, como todos os da sua raça, mas era por isso mesmo que precisava estar junto d'elle, para quando não podesse dirigil-o pela persuação, o dominasse pela rectidão e energia.
Era essa a sua missão; tental-o-hia, pois, cumprir.
Parecera-lhe, efffectivamente, a principio, pouco lisongeiro e apropriado esse cargo inferior de cortezão; uma vaidade, porém, e uma ingenua confiança abalaram-lhe os ultimos escrupulos.
Depois d'um immenso triumpho, de vêr a seus pés quasi um paiz inteiro, e d'uma viagem triumphante ás principaes côrtes da Europa, viera bruscamente a decepção trazida pelo indifferentismo dos homens, pelo seu egoismo, inveja e maldade. Mezes apenas haviam decorrido e já mal distinguiam dos outros officiaes, o seu vulto esguio de heroe conquistador. Notava da parte dos ministros, cortezãos e do próprio marquez, um certo desdem rancoroso.
Desejára voltar a Africa e todos se haviam opposto ao seu justo designio.
«O que se passava, o que era aquillo?» A mulher querida consultada, respondia-lhe invariavelmente por entre um sorriso meigo :
-- É inveja, deixa-os lá.
Que lhe restava pois fazer?
Ou vegetar apagadamente n'um quartel á frente d'um regimento, ou viver n'essa corte corrompida e falsa, da qual talvez podesse triumphar.
Opinou pela ultima hypothese. O que porém não ousou confessar a si próprio é que o sorriso divino d'uma linda mulher tinha sido o mais importante factor da sua determinação.
A seductora marqueza da Bacalhôa, fôra a diplomata escolhida para essa missão perigosa e delicada: -- obter do terrivel coronel o seu consentimento.
Entrava no salão o creado trazendo o chá, e logo apoz um rapaz ainda novo, pallido e franzino, precipitando-se de braços abertos para o coronel que se levantara para o receber.
-- Só hoje é que cheguei e vim logo ver-te.
Beijara a mão ás senhoras e sentara-se junto do coronel.
O seu olhar envolvia-o com carinhoso respeito.
-- Mas está óptimo o Alvaro, está óptimo, não acha prima Luiza ? E as tias, ambas famosas e sempre bonitas. Isto é que é uma familia.
-- De velhas alquebradas e cheias de reumathismo, accudiu D. Clara sorrindo.
-- Ora adeus!
-- Mas tu d'onde vens, d'onde surges?
-- De Londres, Paris e ultimamente da Suissa, d'essa incomparavel Suissa que devia ser o espelho das mais nações européas. Republicanos das duzias ...
-- Qual republicano! envergonhar-me-ia de o ser. Um pouco mais de ideal meu caro Alvaro; para mim a republica é apenas um passo para a frente pois possue quasi os mesmos defeitos que a monarchia... tem ministros... militares... padres... etc...
etc.
-- Repara onde estás, e olha que a minha mãe não gosta de ouvir falar em religião nem em politica.
-- Nem eu o desejo. Isto foi apenas um ligeiro desabafo, uma reminiscência dos lagos e das geleiras.
-- É lindo não é?
-- Formosissimo!
-- Já foi ha tanto lempo que estive em Genéve e na região dos lagos, que só com esforço me lembro da paysagem. Ainda o Alvaro não tinha nascido; o teu tio estava emigrado e eu fora ter cora elle a Paris. Viviamos na rua de Bussi n'uma agua-furtada.
D. Mathilde cerrara os olhos na recordação d'uma paysagem remota...
Então D. Clara lembrou essa saudosa ausência e a triste epocha de luctas que tinham atravessado. As tyranias do conde de Bastos, a força, e a energia assombrosa dos duques de Saldanha e da Terceira, -- Outros tempos e outra gente, concluiu.
O coronel escutava com o cigarro ao canto dos lábios, as palavas da tia, e o José Gusman, o primo recem-chegado, contemplava com respeito as velhas senhoras.
-- Que bellas e santas creaturas, murmurou baixinho para Alvaro, parecem castellãs medievaes, d'outros paizes.
Alvaro concordou n'um gesto, sorrindo.
-- E o primo demora-se por cá? interrogou Luiza.
-- Provavelmente uns mezes, ainda não sei. Trago o plano d'um livro na cabeça, preciso estudar isto por cá.
-- Livro atheu, revolucionado, não é assim?...
Todos conheciam já as suas tendencias sinceras para o moderno ideal. Um tanto loucas, utopicas e incoherentes,mas cheias de bondade no fundo. Assim é que lhe perdoavam a franqueza brutal com que ordinariamente tratava os assumptos de religião e os preconceitos de raça e de familia. Era certamente um pouco desiquilibrado e sobretudo visionario, mas reconheciam-lhe parallelamente, qualidades de sinceridade, franqueza, caridade e altivez, bastantes para fazerem esquecer os seus defeitos.
Vivera por longos annos no estrangeiro, frequentara uma universidade positivista, conhecera de perto Zola, Reclus e Jaurés, Espirito irrequieto e sequioso de liberdade, acompanhara com amor e convicção, todas as idéas evolucionistas, tornando-se um apostolo fervoroso de Kropotkine, Carl Marx, Bakounine, Tolstoi, Ibsen e tantos outros demolidores do preconceito e da supremacia das castas.
No Thermidor teria sido um girondino, entre a sociedade moderna limitava-se ao papel de propagandista das idéas mais avançadas.
Temperamento absolutamente opposto ao de seu primo, tinha não obstante, por elle, a maior das admirações e amizades, e apesar de conhecer a intransigência do seu caracter e a convicção das suas crenças, não desesperara ainda de o chamar para o vasto e luminoso caminho do ideial moderno. Contava para isso, na sua ingenua cegueira de apostolo, com as decepções que Alvaro experimentaria, ao conhecer de perto as hypocrisias interesseiras, egoístas e mesquinhas, d'essa corte decadente e envilecida.
Seria o mais formal desmentido ao sonho de perfeição humanitária e bondosa que Alvaro julgara attingir dentro d'uma monarchia.
Este, comprehendera perfeitamente as intenções do libertario a seu respeito, mas como tinha por elle uma sincera ternura, e sympathisava com a sua franqueza audaz de luctador convicto, ouvia sem se zangar, as suas mais arrojadas theorias contra reis, militarismo, religiões e preconceitos, limitando-se a dizer-lhe: perderia o seu tempo e o seu latim, pois os homens continuariam sempre a ser os mesmos, idênticos nas paixões, vicios e egoismos, e só elle perdia pelas theorias que expunha, visto a maioria das pessoas o não comprehenderem e o julgarem por tal facto, um visionário perigoso e immoral.
Concluiam ordinariamente d'esta forma as discussões entre os dois primos, sem todavia modificarem as idéas d'um e d'outro, nem os fazer desistir das suas missões idênticas no fim, mas tão diversas nos meios e no resultado. Ambos desejavam a ventura dos homens, ambos por elles sentiam amor e compaixão.
Um porém baseava essa ventura na completa liberdade e independência dos espíritos, o outro só a julgava possível dentro das religiões e dos preconceitos.
«Seria um livro atheu, certamente,» dissera-lhe Luisa com bondade. Elle porém não quisera responder-lhe francamente. «Com senhoras não se podia discutir nem religião nem politica», era esta a razão porque só com Alvaro se entretinha em taes assumptos.
-- O que tu és é um maluco! muito sympathico, sem duvida, mas um maluco de pedras, declarou Luísa.
-- O que eu não comprehendo, ajuntou D. Mathilde, por mais esforços que faça, é como sendo tu um fidalgo, e um artista de gostos tão apurados, possas apreciar toda essa gente, talvez muito boa e muito humanitária, não contesto, mas em nada parecida comtigo, nem no nascimento nem na educação.
Era esta a terrivel sentença com que o esmagavam.
Elle então pretendia explicar-se: «Em Portugal, ninguém fazia uma idéa perfeita do libertario. Julgavam-n'o, ordinariamente, uma espécie de assassino cruel e sanguinário, um maltrapilho, contendo na sacola um punhal e uma bomba. Era sempre um revoltado, um pobretão, ou um louco, visando apenas a vingança ou o dinheiro dos outros.
E quanto não eram differentes d'esse retrato falso e maldoso, esses homens corajosos e bons, caminhando sem vacilar para um ideal de justiça, tendo como recompensa a morte, os maus tractos, a ignominia, e acceitando tudo isto estoicamente, pelo seu entranhado amor pela brutal e grosseira humanidade, que tão mal lhes pagava o sacrificio. -- Não consideravam tantos, Napoleão, César e Alexandre, heroes; os dominicanos da Inquisição santos e redemptores da fé; e em compensação todos esses illuminados, homens e mulheres, pugnando á custa da própria existência pelo ideal sublime da emancipação humana, eram reputados vis assassinos, apenas por destruirem uma ou outra existência de previlegiados ferozes, algozes dos espiritos e das vidas de muitos milhões de homens».
José Gusman, apesar das suas tenções pacificas, perdia a cabeça, e embalado pela própria palavra, enthusiasmando-se progressivamente á medida que ia defendendo a sua causa, falava febrilmente, com o rosto transfigurado, o olhar ardente, esquecendo o iogar, a hora e o resumido auditório que o escutava.
Depois cahia em si, ficando furioso por não poder conter-se.
«Que tolice, discursar d'essa forma deante de senhoras, e n'um salão aristocrático!» O coronel, reclinado na chaise-longue, com os olhos semi-cerrados e o cigarro ao canto da bocca, escutava-o com um sorriso triste nos labios; e as senhoras em torno da meza, sorvendo o chá doirado, das finas chicaras azul e oiro, ouviam-o horrorisadas como ao anti-Christo.
Apenas D. Luisa o contemplava complacente, desculpando-o, por sabel-o bom e sincero.
-- Estás cada vez peor, não se pode, -- murmurou D. Clara, fingindo-se horrorisada.
-- Vá-se embora, vá-se embora, o menino hoje não está bom, recommendou D. Mathilde levantando-se da meza e erguendo a sua elevada estatura de fidalga.
-- Grande maluco! murmurou o coronel despedindo-se d'elle.
José serenara por completo, envergonhado, arrependido da sua irreverência.
Despediu-se affavelmente de todos.
-- Cautella com o juiz Veiga, advertiu D. Luiza ironicamente.
O Anarchista escoou-se por detraz do pesado reposteiro de velludo, esguio e pallido como sempre, o dorso ligeiramente curvo.
Com elle parecia ter-se evaporado esse sopro ardente de revolta, em contradicção flagrante com o aristocratico aspecto do salão dos Lunas. E os retratos dos antigos guerreiros, sorriam tranquillos e piedosos entre as molduras douradas, d'esse neto louco e idealista, apostolo fervoroso da utopia moderna.
O salão ainda foi agitado minutos, por um ruido abafado de vozes e o roçar da seda sobre a alcatifa purpura que cobria o pavimento. Depois, apoz um ultimo relampago de luz agonisante, adormeceu tranquillamente envolto na sombra.
IX
O dr Fabricio de Mattos, almoçava invariavelmente ás 11 horas em ponto e entrava no seu consultorio da Rua do Ouro á uma. Ahi permanecia até ás quatro da tarde, hora a que dava por findos os seus trabalhos medicos. Uma vez na rua, era inutil consultal-o ou falar-lhe sequer em medicina.
«Falem-me de tudo menos n'isso,» respondia cathegoricamente aos que ousavam formular-lhe a menor pergunta ou consulta, se o encontravam por acaso cá fora ou no Martinho, onde era frequentador assiduo.
Chegara havia um anno de Paris, apoz um curso brilhante, e a sua viva intelligencia, erudição e syrapalhia, depressa lhe grangeara uma numerosa clientella e uma solida reputação, entre os seus collegas mais distinctos. Tão modesto como erudito, a todos agradava apesar das suas conhecidas theorias de libertário que a principio haviam impressionado toda a Baixa.
Tornara-se uhimamente um dos mais vivos sectários do movimento evolucionista, e os seus discursos vibrantes de eloquência, nos meetings e reuniões republicanas, haviam-n'o a breve trecho notabilisado.
Alto e robusto, grandes olhos castanhos expressivos, uma physionomia pallida e insinuante, coroada de uma espessa cabelleira negra, negligentemente atirada para traz, que lhe punha a descoberto uma fronte audaciosa e larga. Os movimentos nervosos e bruscos, denunciavam n'elle o meridional sonhador e romântico.
Um defeito para muitos, constituia certamente uma das suas mais apreciáveis qualidades. Fabrício não era patriota, sendo pelo contrario o mais puro internacionalista. Os problemas politicos apenas o interessavam quando se referiam á grande humanidade, deixando de o preoccupar quando exclusivamente nacionaes.
Discipulo fervoroso de todtos os nihilistas russos, admirador contricto e exaltado de.
todos os revolucionários, era o mais acérrimo inimigo do reacionarismo e da religião.
«Devia-se ser bom por índole, por amor dos homens e nunca pelo receio d'um castigo futuro.
Moral, preconceitos, religiões, justiça, não passavam de embustes egoistas no intuito de destruírem as principaes qualidades do homem: a liberdade e a intelligencia.» Ora n'essa manhã de Fevereiro, chuvosa e pardacenta, acabava elle de saborear o café, apoz o almoço, folheando os jornaes, quando irrompeu de repente pela porta da sala de jantar o José Gusman, surpreza que lhe arrancou um grito de espanto.
Fabricio levantara-se abraçando o amigo.
Facil era de comprehender a sua alegria.
Alguns annos haviam decorrido sem que se vissem esses dois inseparáveis de tanto tempo em Paris.
-- Ora tu por cá, tu, o Gusman do Vachette, do Bulier, do d'Harcourt, dizia elle contentissimo.
-- E da pequena casa de Asnières! esqueceu-te por acaso ?
-- Qual ! Qual ! Se tenho tudo aqui retractado como se fosse de hontem. Que saudades meu velho ! Que saudades ...
A casa de Asnières citada por Gusman, era a residencia d'um seu amigo e companheiro de estudos, um polaco chamado Moriewick, anarchista exaltado, e aonde os dois tinham assistido por vezes a varias reuniões secretas, celebradas de noite, sob a presidencia do fogososo libertario.
Como elles professassem eguaes idéas, haviam logo sido postos na confidencia, com essa fácil confiança existente entre camaradas moços e expansivos, trocando ideas e profissões de fé nos restaurants de noite, nas bachanaes e nos átrios das escholas.
Lá se haviam trocado varias e acaloradas discussões, acerca da propaganda mais util a fazer no interesse da grande causa.
Optavam uns pela dynamite, os mais exaltados, achando demasiado lenta a evolução scientifica, fracos e pouco eficazes os discursos e pamphletos revolucionarios.
Batalhava-se, discutia-se muito e bebia-se ainda mais.
A amante de Moriewick, uma russa muito joven e muito interessante, que estudava medicina, assistia ás sessões, presidia ás ceas, pondo uma nota docemente femenina a essas turbulentas reuniões de rapazes, das quaes nada de real subsistia a não serem projectos temerosos mais ou menos insensatos, contra a burguesia, principes e padres.
Mais tarde, com a partida de Moriewick e da amante, dissolvera-se pouco a pouco a sociedade que apenas contara trez annos de existencia.
Um dia porém, muitos mezes apóz a ida de Moriewick para a Polonia, leram n'um jornal da tarde, um telegramma datado de Varsovia, que os obrigou a reunir mais uma vez em sessão magna. Contava elle, ter sido arrojada corajosamente contra a policia, nos últimos tumultos, uma bomba que causara enumeras mortes e ferimentos.
O nome do anarchista escripto em grandes caracteres, logo no principio do artigo, assombrou-os. Fora Moriewick, o seu antigo presidente e condiscipulo, o auctor d'esse acto de energica e justa represália.
A sessão correu tumultuosa com gritos e discursos temerosos de vingança e repassados de enthusiasmo e saudade pela memoria do amigo victima do seu próprio acto.
Ainda algumas vezes se tornaram a encontrar animados por alguns estudantes russos a quem o attentado excitara. Vieram depois as ferias, as partidas de uns e outros para paizes distantes.
Fabricio e Gusman haviam deixado tambem Paris, guardando apenas d'essas reuniões as ideias d'um anarchismo vago, inteligente, menos utupista e menos feroz.
Corações, ardente, juvenis e generosos, viviam do ideal sonho da regeneração humana em poucos annos. Tanto o dr. Fabricio como Gusman haviam continuado sempre fervorosos apostolos da nova idéa, apesar da separação, dos annos decorridos e do contacto de outros meios.
Não apresentava portanto Gusman, no seu typo exterior, nenhum traço caracteristico dos vulgarmente attribuidos aos anarchistas. Nem grande cabelleira inculta, nem olhar alucinado de fanático, nem desmazelo no vestir.
Era ao contrario, como Fabricio, um rapaz correcto e quasi elegante. Muito franzino e alto, distincto de maneiras, advinhando-se facilmente em toda a sua pessoa a velha e aristocrática raça d'onde vinha, em contraste singular com as suas idéas e conducta.
Apenas o olhar, profundo e vivo, a constante mobilidade do rosto expressivo, e a ampla fonte coroada de cabellos loiros, ondeados, marcava audacia e intelligencia pouco vulgares. O dorso um tanto curvo e a pallidez mate do rosto, accusavam á primeira vista, um temperamento incorregivel de sensual e um largo abuso da primeira mocidade, visto contar apenas trínta e cinco annos.
Defeitos tinha-os como todos e em grande escala, mas uma qualidade principal brilhava como jóia rara e inestimável no fundo do seu coração sensivel: -- uma piedade infinita por toda e qualquer desgraça.
Generoso e audaz, d'uma franqueza absurda mas por elle cultivada com amor, livre de qualquer preconceito ou crença religiosa, vivia naturalmente n'um completo desacordo com toda essa sociedade burgueza e egoísta, incapaz de comprehender o ideal a que votara, sem esperança de recompensa, o melhor da sua existencia. Facil é de comprehender, a reputação de immoral e perigoso, que sobre elle recahia d'essas boccas ignorantes e inspiradas por cerebros inferiores, obtusos, vingativos, cobardes e invejosos, impotentes perante a audácia das suas affirmaçoes e a independencia dos seus actos.
Fabricio porém interrogava-o, queria saber tudo:
-- Quando chegaste, o que tens feito, porque me não procuraste, mais cedo?
Gusman sentara-se á mesa, alegre com o amigo, por de novo se encontrarem.
-- Cheguei hontem de manhã no sudexpress, direitinho de Paris. Dormi quasi todo o dia e fui á noite depois de jantar a casa de meus primos Lunas. E aqui me tens hoje, meu velho.
-- Mas que bella surpreza, appareceres assim de repente sem se esperar. Tomas uma chicara de café e um cálice de cognac, nâo é verdade?
-- Melhor do que isso, almoçarei se fôr possivel.
-- Mas sim, mas sim... Domingos gritou Fabricio da porta.
Appareceu correndo o creado do douctor.
-- Traz o que houver, depressa, o senhor D. José almoça ... anda mexe-te -- O Domingos está na mesma, hein?
-- Sempre rijo como vê, graças a Deus, mas o senhor D. José é que parece magrito... disse o Domingos.
-- Anda safa-te e deixa-te de dizer tolices, bradou Fabricio para o creado que se ficara pasmado deante de D. José que o olhava com amizade.
-- Mas que bom vento te traz por cá, diz?
-- Falta de massa, respondeu melancholicamente José. Só esse motivo me traria cá.
-- Tens razão, meu caro, isto é a ultima terra do mundo; -- peor que a Serbia e que a Turquia.
-- Está então tudo cada vez peor, hein!
-- Um horror, não calculas. O Nunes intrujou toda a gente, as camaras protestam contra a sua falta de palavra, os republicanos gritam, praguejam, mas não passam d'ahi.
-- E o paço ?
-- Rejubila, sustenta-o. O marquez não o largo e até ameaça cada vez mais as nossas já tão mesquinhas e exiguas liberdades -- uma vergonha!
O Domingos interrompeu o dialogo, trazendo uma travessa com bifes e um prato com carnes frias.
-- Ha também salada e ovos, observou.
-- Pois traz, traz tudo e deixa-nos em paz.
E emquanto o Domingos se sumia ligeiro á voz do patrão, D. José abancado ao lado do amigo atacava o almoço com appetite.
-- Encheu-lhe o copo de vinho.
-- É Collares do Mucifal, bebe que has-de gostar.
-- Então tudo cada vez peor, dizes, insistiu Gusman.
-- Uma canalha; todos sem energia nem sinceridade.
-- E os republicanos !
-- O partido augmenta dia a dia não ha duvida, mas a fraqueza dos chefes perde tudo. Gladiam-se uns aos outros eivados de inveja e vaidade, e não passam de platonicos, ladrando entre si raivosamente.
-- Que queres tu que elles façam sem convicções. A republica não é, como sabes, um partido ideal, capaz de produzir fanaticos sublimes, illuminados e apostolos. É um governo apenas de transição como a monarchia liberal, apenas com a substituição d'uma familia predestinada por um presidente electivo. Dentro d'ella, existem os mesmos defeitos: -- prejuizos, cathegorias, penitenciarias, militarismo etribunaes. Como queres tu pois vêl-a produzir creaturas livres e perfeitas, sendo ella propria já de si um aleijão! O anarchismo, meu velho, é o ideal, seja christão como o de Tolstoi, ou materialista como o de Kropotkine.
-- Não o sei eu tão bem como tu? Mas por emquanto nao é possível para o nosso povo, cretino, fanático e indolente; é preciso pois transigir, ir por étapes, educal-o e reformal-o pouco e pouco, e olha que a republica é o primeiro lance da estrada.
-- Façamos pois a republica, estou prompto para tudo, bem o sabes.
-- Ovos com tomates, gosta, senhor D. José? perguntou o Domingos solicito.
-- Gosto sim, deixa ficar, O enorme relogio antigo, collocado entre as janellas contra a parede clara da sala fez ouvir um minueto de Back, e um raio pallido de sol, coando-se por entre as cortinas de cassa branca, veio manchar de oiro velho a toalha adamascada da meza.
-- Meio dia, advertiu o doutor.
-- Tens que fazer?
-- Sim, mas só á tarde. Preciso de ir a casa de teu primo Luna vêr uma das senhoras.
- A tia Clara? Mas ella não me pareceu mal hontem á noite. Só se adoeceu de repente. Será cousa de cuidado? Que tem ella?
-- Qual? ... Caruncho, meu velho, caruncho ...
-- O Alvaro é que era capaz de salvar tudo isto, murmurou Gusman com convicção, depois de reflectir.
-- Teu primo?
-- Naturalmente. Com o seu nome, audácia e prestigio, faria d'este paiz o que quizesse.
-- Esqueces porém duas cousas, dois inconvenientes principaes ...
-- O primeiro é ser militar convicto, e o segundo é ser monarchico, não é assim?
-- Nem mais ... ajunta-lhe porém outro bem differente, e perderás de todo as esperanças como eu.
-- Qual?
-- A sua entrada para o paço e a sua fraqueza bem natural perante as graças da opulenta marqueza da Bacalhõa.
-- Diabo! Com essa é que eu não contava. Mas isso é a sua morte moral, precisamos mecher-nos, salval-o custe o que custar.
-- E como?
-- Não sei... mas precisamos encontrar o meio.
-- Lembra-te do conselheiro Neves, d'esse typo que chegou quasi a ser um heroe, podendo ajudar teu primo na sua missão, engrandecer as colonias e o paiz, usando do seu valor como escriptor e diplomata, e dando finalmente em droga estupidamente.
-- Como assim?
-- É verdade que nada sabes senão de cocotes, cabarets e intrigas amorosas no Maxime. Pois ouve e pasma. O asno do Neves apaixonou-se pela marqueza e desatou a fazer asneiras e a desacreditar-se. Claro que o Bacalhôa, como grande espertalhão e cynico, longe de o affastar o attrahiu cada vez mais, e hoje pode-se considerar um homem á margem. Todo o seu prestigio se foi.
-- Mas é tudo assim por cá. Uma mulher, um logar na corte, uma legação, tudo corrompe, compra, seduz. Como os paizes do norte são differentes ...
-- E queres tu prégar anarchismo, individualismo, falar da internacional, do amor livre, da suppressão de família e da herança, a todas estas bestas! Estás louco, meu pobre amigo. Trabalha por uma republicasinha hediondamente burgueza, transige com o capital, com o legista, e o financeiro; se queres viver, d'outra forma és um homem perdido.
Ruidos alegres de guiseiras soaram n'este momento na rua, acompanhados de sons roucos de businas e d'uma musica estridente de ferrinhos e castanholas.
-- Com o sol anima-se o entrudo, disse Fabricio levantando-se e espreitando pela janella. A alegria doestes dias é como um raio d'este sol, dura um momento apenas para morrer logo afogado em nuvens escuras e tristes. O entrudo é uma triste mascarada, quasi um symbolo da existência.
Voltou para a meza, encheu um copo de cognac para o amigo e esvasiou o d'elle.
-- Vives agora sósinho?
-- Absolutamente.
-- E a Pepita?
-- Em Granada, com o chulo.
-- Quê?
-- Admiras-te, não é verdade? Tanto amor e tanta promessa... pensarás. Mas se ellas são todas eguaes, adoráveis quando amam, carrascos quando o amor parte.
Quanto a mim, fiquei satisfeito com a lição.
Hoje tomo uma amante onde a encontro, na Alta, na travessa da Palha, na Alfama, ou no bordel. Todas me servem sob condição de não repetir.
-- Como eu faço actualmente.
-- Tu! Ora adeus, não acredito. Has-de morrer apaixonado, meu velho, é sina tua.
O que te vale é amares por pouco tempo, se não fosse isso ...
-- Qual ! Estou curado; e hoje penso como o velho Peam teu professor, lembras-te:
Les femmes sont peu de chose.
-- Paris ... Paris !
-- Tens saudades? Tambem eu, e apenas o deixei ha três dias.
Conservaram-se calados, chupando silenciosamente nos charutos e engulindo os pequeninos golos de café e cognac.
Era confortavel a casa do Fabricio.
O sol porem sumira-se outra vez, o dia escurecera de repente, e uma chuva miudinha açoutava brandamente as vidraças.
O jardim da Patriarchal, estendia-se em frente, com os arvoredos despidos, envoltos n'uma nevoa diaphana e humida. Uma cégada, no passeio, dançava tristemente sobre a lama, e alguns ché-chés ensopados, abrigavam-se da chuva contra os portaes escuros.
-- Triste cousa o carnaval! murmurou pela segunda vez, melancholicamente o doutor.
D. José espreguiçou-se levantando-se da cadeira.
-- E que intentas tu fazer no meio de tudo isto ?
-- Luctar se for possivel, derribar o Nunes, o Bacalhôa, e procurar communicar alguma energia a toda esta gente. Não é positivamente uma questão de patriotismo idiota -- bem sabes como penso a esse respeito -- mas é talvez uma predilecção por esta terra onde me creci; predilecção como pôde ter um grande proprietário por uma quinta mais cuidada e que escolheu para residencia.
-- Pois eu ajudar-te-hei com toda a melhor fé. Sabes como o Alvaro me estima e póde ser que, em vista d' este estado de cousas, elle se decida a fazer alguma cousa de grande.
-- Tenta, mas parece-me inutil. Uma ideia, esta noite ha baile em S. Carlos, queres lá ir?
-- Vou, mas sob condição de ir mascarado. Não estou ainda com pachorra para aturar ninguem, para maçadas ...
-- Pois iremos mascarados. Será até melhor para veres o estado de indifferença revoltante em que esta gente vive: uma nobreza composta por meia duzia de marialvas degenerados, bebados ou chulos, toureiros ou cretinos, a par d'uns elegantes modernos, burguezinhos de corpo e alma, que andam dorso curvado para imitarem o Negrão, e empunham as bengalas como os gatos-pingados as tochas nos enterros. Devo advertir-te que a maioria doestes asnos são Nunistas. Porque, ninguem o sabe, nem elles próprios se lh'o perguntarem. Enchem a bocca com o Nunes, barafustam, exaltam-se e discutem a sua grande honradez e energia.
É possivel que tenhas no baile o desgosto de veres com os próprios olhos, o perigo que corre teu primo.
Examina-o bem quando esteja junto da marqueza e tu me dirás então o que pensas.
Apresentar-te-hei a dois amigos e correlegionarios com quem podemos contar absolutamente. Dos outros desconfia, pois até entre os nossos collegas do Suisso ha bufos Nunistas, e sabes que o Veiga continua existindo.
-- Aposto que os advinho ?
-- Diz.
-- Os dois Secias e o idiota do Barrinhos.
-- Nem mais. Ficas pois identificado da situação, como se estivesses em Lisboa desde a subida ao poder do Nunes, e ficarás sabendo egualmente que todas as machinações tendentes a perderem teu primo Alvaro, inutilisando-o como fizeram ao Neves, foram tramadas pelos marquezes e entourage, este verão na Enseada Azul primeiro e mais tarde na Bacalhôa.
Dizem as más linguas ter sido lá que elle succumbiu aos encantos da marqueza.
-- Mas o Neves e o Negrão, o que dizem a tudo isto, francamente nada percebo.
-- O Neves abandonado e sem esperanças, faz disparate sobre disparate, odeia o Alvaro e escreve artigos mentirosos e repassados de inveja contra elle. Quanto ao Negrão, como é cynico, egoista, e tem apenas por culto a vaidade, vai-se servindo do amor como o auxilio mais directo e seguro para os seus fins e ... -- il s'en moque.
D. José soltou uma gargalhada sardonica.
-- Que cambada ! Imagina a dose de virtude é a pureza de caracter que são precisas ao pobre Alvaro para se não salpicar com a lama de tão immundos personagens. E são estes os bons, os moraes, os sãos. E nós os anarchistas, somos os assassinos, os malandros, nós que sacrificamos a nossa tranquilidade, bem estar, existência, o amor até, por um ideial longiquo que nenhum interesse directo nos traz. N'ao temos pois o direito de revolta, o direito de destruir até toda esta cohorte de malandrôes insignificantes, cobardes e egoístas, sacrificando milhões de indivíduos aos seus vicíos e paixões. Oh! se temos e a represália nâo tardará. N'esse dia não haverá caridade nem quartel, será um dia de lucta e de extermínio.
-- Eia o que ahi vai de exaltação e desaiva. Calma-te meu caro, e sabe esperar, com paciencia. O nosso dia ha-de chegar bem o sei, infelizmente ainda vem longe, muito longe. Até lá, e esperar com paciencia.
-- Pacientar, enraivecer, quebrar as unhas contra uma muralha. Sabes que mais, tudo isto dá vontade de emigrar outra vez, fugir, não querer saber nem ouvir nada.
A chuva cessara novamente e o sol um momento ausente, voltara a doirar a toalha n'uma caricia branda. O barulho na praça recomeçara e as carruagens apinhadas de mascaras, passavam trotando ao som alegre das guiseiras, em direcção ao Chiado. A cegada dançava novamente ao som dos ferrinhos, dos pandeiros e das guitarras, e os apostrophavam os transeuntes uas graçolas grosseiras, agitando olhos de pau e as enormes lunetas doirado.
esta a vida ! Esquecer hoje para amanha, murmurou Fabrício apontando a rua. Sobre a sua fina mão nervosa.
irador, tremia o pequeno raio de sol, do-a.
X
José de Gusman e o dr. Fabricio atravessaram rapidamente o átrio cheio de mascaras e entraram no salão de baile. Conduzia-os uma curiosidade anciosa dos boatos propalados a respeito do coronel. Tudo quanto lhe haviam dito os mortificava dolorosamente.
Se assim era, o coronel seria um homem perdido, um outro conselheiro Neves, cuja energia fora açaimada pelos ohares profundos d'essa fatal mulher. Repusavam-se portanto a crêl-o; seria necessário investigarem; policiar olhares, gestos, conversas, para obterem uma certeza.
Os dominós ajudal-os-hiam poderosamente no seu mister de espiões. Avançaram pois de braço dado por entre a multidão anonyma.
A vasta sala, rodeada pelas suas cinco ordens de camarotes, cujos medalhões vermelhos se destacavam n'um fundo claro guarnecido de oiro, resplandecia intensamente envolta n'uma especie de neblina tremula e vaga.
A grande tribuna real, ladeada por cariathides sustentando o trabalhado frontão encimado da coroa real, dormia recatadamente, fechada pelas suas pesadas cortinas de velludo vermelho, como um sanctuario austero, vedado á loucura.
E comtudo, os seus habituaes frequentadores dos dias de gala, alli se encontravam quasi todos, faces afogueadas de prazer, colos palpitantes, cabellos em desordem, esquecendo na febre do baile a estudada rigidez commandada pela pragmática.
Em torno da sala um zumbido confuso de vozes naturaes, em falsete, esganiçadas ou vibrantes, partindo por detraz dos folhos de seda das meias mascaras, chocavam-se como laminas. Uma exposição sensual de cólos, braços e espáduas nuas, uma profusão attrahente de cabeças empoadas, engrinaldadas de rosas e fitas, ou scintilando de diamantes. Bustos de linhas esveltas, debruçados dos camarotes, braços redondos e alvos erguidos, pequeninas mãos cobertas de pedrarias, agitando-se.
E todas essas creaturas -- mundanas em voga -- bonitas ou feias, jovens ou idosas, fitavam com o mesmo olhar impudico e descarado, a procissão negra dos encasacados sorrindo satisfeitos e vaidosos.
-- Um fumeiro humano! segredou Gusman ao ouvido do medico.
-- Chama-lhe nomes ! retorquiu este, mas tomara eu penetrar em algums d'esses fomos, olha n'aquelle, por exemplo, e apontou-lhe uma frisa de lado, aonde uma encantadora mulher vestida á Pompadour, segredava por detraz do leque a um vulto esguiu e aprumado, cujos cotovêllos se achavam appoiados ao veludo escarlate que guarnecia a deanteira do camarote, escutando-a attentamente.
-- Mas é meu primo Luna ... fez Gusman com espanto.
-- Sim, e que parece assaz enternecido á voz melodiosa da linda condessa de Sylves.
-- O patife não se perde, hein ! Mas repara como todas estas creaturas perdem a linha, se confundem com prostitutas, parecem collocadas n'um basar musulmano, á espera de comprador.
Não deixava de ser justa a observação de Gusman. O amigo concordou n'um gesto, exclamando:
-- Olha para o Bacalhôas ! A marqueza parece uma linda burgueza em festa, apoz um lauto jantar n'algum dos restaurants da Porte Maillot... e o marquez esse...
-- Lembra um reitre pançudo embriagado de cerveja, accudiu Gusman soltando uma gargalhada.
-- Ou um cevado em vésperas de morte.
Continuaram examinando os camarotes, criticando. Conheciam na maioria a toda essa gente frequentadora da opera e sempre a mesma; estranha amalgama de typos os mais curiosos e contradictorios, desde a grande mundana pagando aos amantes sem pudor, da simples adultera, da estherica entregando-se irresponsavelmente por temperamento, até -- aquellas cujo prazer consiste n'um fervoroso culto á lasciva Lesbia. Estas, sobretudo, representavam certamente a maioria. A honestidade apparecia raramente n'esse logar; algumas fugitivas virgens ou idosas provincianas, ricas de preconceitos e fanatismo. Todos estes vicios eram conhecidos e perdoados, sob condição expressa da existência d'um marido, d'um titulo, ou d'uma fortuna solida. Era assim a moral moderna.
Raro era o camarote, que não encerrava um adulterio ou uma vergonha. Todos o sabiam, o comentavam, mas todos egualmente o desculpavam. Tudo porem era natural n'essa gente corrompida e vã, mas senhora pela propria banalidade e torpeza, dos destinos da multidão anonyma. Era ella quem dictava as leis; -- creava reputações, titulos, famas, distribuia pensões, lançava impostos; imperava, n'uma palavra, sobre o paiz corrompido e servil, decadente e cobarde.
-- Corja de pulhas! rosnou Gusman.
É que toda essa gente o enojava com a sua vaidade hipochrita e falta de caracter. Não os queria santos, longe d'isso, desejava-os até mais perversos, talvez, mas o que elle exigia da humanidade era sobretudo a franqueza, a coragem dos seus actos bons ou maus, criminosos ou caritativos.
Não queria altares, religiões, justiça ou preconceitos, exigia porém humanidade, inteligência culta, e uma absoluta liberdade.
Quem fazia o criminoso senão o preconceito, a família, a religião e a herança!
-- E pensar, notou Fabricio que somos uns patifes nas boccas d'esta canalha? .. .
Repara n'essas figuras sorridentes; ninguem dirá ao vel-as, como são habeis em esconder a perfidia e as ambições que os devoram.
A Lima, com os seus lindos bandós negros, a sua toilette império cor de cysne, parece uma virgem de Raphael, e ninguem dirá ao vel-a, ser ella a amante do velho e grutesco Abrahão.
-- Olha para a Sarah, accudiu Gusman.
Essa é espantosa; entre o marido e o amante, hein? E a Rachel d'Oliveira, sempre com o Silveirinha e cortejo ...
-- Essa tem uma attenuante ...
-- Qual?
-- O descaramento, a franqueza. Não ignorando nenhum dos commentarios que correm a seu respeito, tem, pelo menos, a coragem de se não assustar. Prefiro-a a todas as outras, mais perversas, mais hypocritas e mais cobardes.
Pararam perto da frisa da condessa de Sylves. Esta dizia ao coronel Luna com a sua voz aveludada e sensual:
-- Não calcula o quanto estimei a sua nomeação para a corte.
-- E porquê? interrogou Luna.
-- Ora, porque o tenho mais perto, velo-hei mais vezes. Além d'isso, um homem como o coronel, não podia estar n'outro meio mais próprio ao seu valor e gerarchia.
Acha? Pois eu confesso-lhe com sinceridade, querida condessa, não ter a mesma opinião.
-- Como assim?
-- É muito simples ... verá. Os homens com o meu feitio, são plantas selvagens, sequiosas de ar livre, de chuva e sol quente, incapazes de medrarem na sombra envenenada das estufas. Quanto á minha gerarchia creia que em nada se pôde orgulhar d'esse regio favor. Lembrese que os principaes cargos da corte raras vezes são dados á melhor nobreza...
-- Apanha ... segredou Fabrício ao ouvido do amigo. Para a filha d'um antigo cerieiro, actualmente dama do paço, não é má piada.
Effectivamente a linda condessa mordera os labios carnudos e corára subitamente; o coronel porém permanecera impassivel, como se houvesse proferido a maior das amabilidades.
-- Repare para os camarotes, e verá se eu tenho ou não razão quando assim falo da nossa nobreza.
Então começou ennumerando nomes, murmurou confidencias, pondo espirituosamente a nú o real valor da maior parte dos espectadores.
Os dois mascarados, seguiam a conversa attentamente, examinando os personagens indicados pelo coronel, ao qual cada physionomia inspirava um dito espirituoso que muito os divertia assim como á condessa, satisfeita por ouvir delapidar mordazmente as suas mais intimas relações.
E era um desfilar grotesco de figurinhas burguezas, enobrecidas de hontem, vulgares ou rídiculas, apesar dos diamantes e das luxuosas toilettes. Os homens, sobre tudo, pareciam mais lacaios disfarçados em fidalgos que titulares, conselheiros d'Estado ou dignitarios da côrte. Apenas algumas figuras aristocráticas enobreciam os austeros camarotes: e essas mesmas pareciam abastardadas e decadentes.
O coronel Luna despedia-se da condessa e seguia por entre essa multidão arrastandose sem alegria nem interesse, parecendo alli estar mais por uma mera convenção de elegância, do que propriamente por satisfação d'um prazer sensivel. A atmosphera carregada de perfumes excitantes, de respirações alcoolicas e de fumo de tabaco, entrando em lufadas pelas portas mal fechadas, asfixiava as gargantas, estonteando os cérebros. Apenas a orchestra, meia escondida no palco por arbustos crivados de pequenas lâmpadas polychromas, resuscitava, por assim dizer, uma briza voluptuosa de alegria, voando suavemente em torno do salão. As valsas ligeiras, d'um rythmo indolente e languido, interrompiam por vezes esse immenso murmurio de vozes que enchia toda a sala.
-- Reparaste no olhar que elle lançou á marqueza? observou Gusman.
-- Sim... pois verás como elle não tarda cm apparecer lá em cima... É um homem perdido.
Os dois amigos tinham-se collocado em frente ao vasto camarote dos marquezes, o melhor do theatro, adornado de bellas poltronas de veludo carmein e por espessos cortinados de egual estofo.
A marqueza em pé, n'um desalinho estapafúrdio, destacava a sua elevada e robusta estatura, toda branca da cabeça á cintura, do fundo escuro do camarote. Sem luvas, os braços robustos sahindo d'entre rendas preciosas, as compridas mãos crispadas contra os cartuchos de póz com que se divertia, atirando os para os camarotes visinhos.
Risos vibrantes, o surdo estrebuchar de cadeiras contra o tapete, e o ruido claro de sedas entrechocando-se, coavam-se por entre nuvens de póz fluctuando em face dos camarotes como uma rede luminosa. O marquez, egualmente em pé, volumoso e suando, com o rosto loiro e nédio manchado de branco, ajudava á batalha.
N'isto, a um camarote lateral, assomou a figura morena e angulosa do omnipotente Nunes, e como se quizessem achincalhar a sua dignidade ministerial, logo o metralharam impiedosamente de póz e confettis.
Quem mais se distinguia na lucta era a pequena Mercêdes, toda vestida de azul, com uma grinalda de rosas brancas em torno do decote, o collo moreno e palpitante e os olhos brilhando sinistramente. O marquez, porém, penetrara no camarote de improviso, e agarrando-a pela cintura, pozera fim á batalha.
As gargalhadas redobraram impiedosas.
-- Olha que o matas... treguas... treguas... bradou o marquez. A Mercêdes fugira, toda branca.
O Nunes desconcertado e colerico, precipitara-se pela porta, coberto de pó, com a bigodeira cabida e mastigando papelinhos, -- Que grande gajo o conselheiro, murmurou Mercêdes por entre uma gargalhada.
-- Uma inconveniencia ! observou o marquez sorrindo com hypocrisia.
A condessa da Freixosa quasi desmaiara de prazer sobre o hombro da marqueza, rindo como uma louca, e o Conde d' Alva aproximando se, declarou: que o Nunes estava mesmo um amorsinho de gesso, um encanto.
Á porta assomou n'esse momento a figura altiva e esguia do Luna.
Todos se calaram, como por encanto e o marquez retirou se logo para a pequena ante camara do camarote, depois de lhe estender nigligentemente a mão.
E era sempre assim recebido depois da sua vinda d'Africa. Ou por que o seu real valor se impunha a essa maioria banal de elegantes, ou porque a sua physionomia severa e melancholica os contristasse intimando-os, o certo era que a sua prezença espalhava em torno, como que uma atmosphera de frieza e receio.
Apenas a marqueza continuou sorrindo e lhe estendeu a mão com abandono. Elle beijou-lh'a demoradamente, com devoção.
-- Como vê divertimo-nos, disse-lhe ella.
-- Por pouco não mataram o conselheiro -- Encontras-te-o no corredor? perguntou-lhe o Alva.
-- Ia por tal forma empoado que mal o conheci. Nem sequer me fallou...
-- Eis-te vingado d'elle por esta noite.
Reparaste no seu mau humor? Creio que o amor lhe não assiste, observou a marqueza.
-- Será possivel! O conselheiro amoroso ...
-- Pergunte ao Conde.
-- A marqueza tem rasão, e não é só a alta politica que perturba actualmente o seu admiravel cerebro. Parece que uma lindissima diplomata americana, conseguiu impressionar o grande homem da Certã. Ella porém, diz: não poder aturar a sua horrivel pronuncia provinciana, lembra-lhe um galego murmurando madrigaes; d'ahi o seu natural enfado e mau humor perante o grande homem. Vinha esta noite cheio de esperanças e ao que parece...
-- Foi corrido...
-- Pelo menos a póz e confettis, concluiu a marqueza. E o coronel tem-se divertido muito ?
-- Eu? raras vezes me divirto, sou um triste, um contemplativo...
-- Então, certamente se ha-de aborrecer muito por cá e quasi me arrependo de o ter obrigado a ficar comnosco.
-- Que ideia marqueza ! Referia-me simplesmente a esta especialidade de prazeres; porém junto de si, seria uma blasfemia, mais até, um crime, o proferir a palavra enfado.
Acaso não acceitei eu sem a menor hesitação as suas ordens.
-- Diga antes pedido... O coronel bem sabe que lhe dêmos a escolher entre nós e a sua Africa? Um sorriso dolorosamente ironico contrahiu a face marcial de D. Alvaro.
-- Perdoe-me, marqueza, murmurou fitando-a fixamente, se ouso fazer-lhe uma ligeira objecção.
-- Diga, diga.
-- É que a minha volta para Africa seria uma espécie de desterro forçado.
-- Como assim !
-- Voltaria alli como o filho prodigo a casa dos paes, sem comtudo os encontrar.
A marqueza mordeu os labios, disfarçando mal um gesto de contrariedade.
-- Se fosse assim, retorquiu com enfado, já o seu sacrificio não era tão digno de agradecimento.
-- Engana-se talvez ainda...
-- Diz?... Mas o coronel está esta noite insuportavel, paradoxal, enygmatico.
-- Se é terça feira de entrudo !
-- Ah! é verdade; confesso-lhe que nem sequer me lembrava de tal. Mas diga-me, porque me enganei mais uma vez?
-- É que, entre Africa e a côrte, o meu dever impunha-me naturalmente uma outra missão mais sagrada e mais ... -- teve uma ligeira hesitação.
-- Acabe... não tenha receio, bradou a marqueza quasi colerica.
-- Mais digna.
A marqueza ia talvez responder desabridamente á impertinencia do coronel, quando a porta do camarote se abriu dando entrada ao marido seguido pelo conde d'Alva.
-- Precisamos mandar o coronel para uma embaixada ou para Africa, meu caro, disse ella com ironia. Lisboa mata-o de tedio, segundo elle acaba de me dizer.
-- Ora adeus... faz por lá muito calôr, isto por cá é mais arejado e mais sadio.
Aprecio muito o coronel para o ver de novo desterrado. Precisamos de ti por cá, tem paciencia.
D. Alvaro inclinou se profundamente sem murmurar uma só palavra e sahiu do camarote.
Do salão, haviam os dois amigos seguido attentamente com o olhar toda esta scena, e apenas o coronel desapparecera, logo Fabrício murmurava ao ouvido de Gusman.
-- Resta-te agora a menor duvida ?
-- Não, contestara Gusman por entre os dentes. Essa mulher tem-o effectivamante nas garras. Vamos embora, ajuntou elle apoz uma pequena pausa. O baile estava no fim e já muitos camarotes se viam vasios.
Apenas aqui e alli, alguns grupos de mascaras em torno d'um conhecido, lançavam-lhe chistes e piadinhas sornas, em falsete esganiçado.
A pequena Mercêdes depois de haver trocado um olhar demorado com o gordo marquez, que, lhe acenara amigavelmente com a mão, lá seguira com as irmãs, embuçado cuidadosamente na sua luxuosas ortie de seda branca, guarnecida de arminho.
Os marquezes sabiam egualmente n'esse momento, e o grande salão meio deserto, tinha o aspecto desolador d'um fim de orgia, o riso pallido d'um doente em agonia. Os largos espaços negros dos vastos camarotes vasios, pareciam buracos mortuários d'uma gigantesca crypta; e apesar da luz intensa, das flores, dos adornos, uma nevoa de tristeza parecia ter baixado de repente da sua altiva cupula.
-- Até fez frio... exclamou Gusman. A agonia d'uma festa é semelhante a todas as agonias.
No foyer crusaram-se com a Condessa de Sylves, voluptuosamente envolta n'uma linda capa cor de rosa franjada de oiro. O capuz guarnecido de pelles, emoldurava-lhe o rosto moreno e redondo, aonde brilhavam os mais lindos olhos castanhos do mundo.
Com a pequenina mão coberta de pedrarias, brincava negligentemente com o leque de plumas correspondendo sorrindo ás numerosas saudações. Perto d'ella, a pequena Lima, toda de branco, inclinava os bandós negros para um velho baixo, vermelho e repugnante -- o judeu Abrahão -- e a um canto do atrio, entre as duas portas da sahida a Sarah Trigueiros, ainda formosa apesar dos seus 35 annos já feitos, conservava-se erecta e magestosa entre o marido, o banqueiro Félton, -- conhecido pelo seu culto á Sodomia, -- physionomia loira, e apagada, e o escriptor aristocratas, barão de Villar, sempre minado de ciumes e sensualidades doentias.
Perto, a aristocrata duqueza d'Alvôr, descera mais uma vez do seu pedestal heraldico, para acompanhar a interessante baroneza de Villa Flor, a mais generosa colaboradora das suas obras de caridade.
De momento a momento, a voz desagradavel do porteiro do theatro, annunciava a carroagem d'algum dos prezentes, o qual se apressava a sahir, lançando fugitivamente a ultima saudação.
Por seu turno, o medico e Gusman, sahiram por umar porta lateral para o largo enlameado.
A noite estava negra e uma chuva torrencial cahia ruidosamente sobre as calçadas.
-- Tenho fome, murmurou Fabricio.
-- E eu! Sabes que mais, exclamou Gusman, toca a ir para o Silva e a politica que vá para o diabo. Façamos como todos; a patria que se lixe e vivam as Pepas, as Pacas, e a terra de Maria Santissima.
Conseguiram fazer parar uma tipoia e entraram escorrendo para ella, bradando ao cocheiro:
-- Para o Silva.
XI
O coronel subiu rapidamente a escada da redacção do Triumpho. O suelto publicado na vespera, em que acintosamente se referiam á influencia poderosa d'uma alta senhora na sua vida privada e tendo tido como determinante a sua entrada na corte, irritára-o profundamente. Era preciso castigar desde logo o atrevido jornalista para que o facto se não repetisse. Começavam cedo os ataques, as insinuações maldosas e a calumnia.
Empurrou a porta d'entrada, em cujos vidros se lia, em grandes letras vermelhas, o nome do jornal, e penetrou na primeira sala da redacção.
Em frente ás secretarias de pinho envernizado, alguns indivíduos escreviam attentamente, ao passo que outros, em pe junto ás vidraças, olhavam a rua.
Em torno das paredes, pendiam de ganchos de ferro, collecções dos varios jornaes da capital e alguns atlas amarelados e sujos.
Sobre o sobrado velho e enegrecido, amontoavam-se periódicos rasgados e pontas de cigarro. Nada de mais banal e insignificante do que esse fumarento recinto onde se criavam reputações, se calumniava, mentia, diffamava, tudo ao sopro dictatorial do doentio e epileptico director da gazeta, -- o Sarzedas e Silva, -- aproveitando todos os assumptos, politicos ou Íntimos, em seu beneficio particular. Ninguém dentro d'aquella casa podia ter opinião, caracter, talento ou sinceridade. Tudo elle dirigia, inspirava, discutia e farejava. Tão depressa era governo como opposição, monarchico, republicano, religioso ou livre pensador.
O fim unico era o interesse, o augmento de exemplares e a banal consideração do vulgo. Invisivel nos momentos criticos, tinha acolytos, testas de ferro e caceteiros, promptos sempre a appoiarem e defenderem as sórdidas ignominias forjadas á sua inspiração, pelos pseudos-redactores, n'uma prosa equivoca, desbragada e grosseira.
O jornal fizera-o a chantage, e presentemente o publico, ávido de escandalo e ignorante dos processos habituaes do jornalismo, protegera a sua enorme tiragem.
O papel era reles, a impressão pessima, a parte litteraria nula; e comtudo o Triumpho vendia-se como pão por todo o paiz, augmentando dia a dia a sua já immensa tiragem.
A entrada do coronel produziu um movimento de receoso espanto, entre o pessoal da redacção.
Cingido no uniforme de cavallaria, monoculo ao canto do olho, o peito constelado por numerosas insignias de condecorações, havia apresentado laconicamente o numero do Triumpho, da véspera, ao primeiro redactor que encontrara.
-- Quero saber quem escreveu isto ? interrogou secamente, indicando o local.
-- Perdoe v. ex.a senhor coronel, mas... não estou bem certo... preciso indagar... e depois não é comigo... respondeu o redactor muito palido, de pé, em frente de D. Alvaro, olhando-o por detraz da secretaria, tremulo e gaguejando.
-- Não sei se é comsigo ou com quem é, preciso saber unicamente o nome do intrigante que escreveu esta imbecilidade para lhe dar o correctivo merecido.
-- Tenha v. ex.a paciência, é um minuto apenas, volto já; e o redactor levantou-se precipitadamente em direcção a uma porta lateral por onde se sumiu.
Então o coronel olhou em torno, procurando algum dos outros reporters que fosse mais explicativo, mas com grande pasmo seu vio-se sosinho.
Todos elles haviam desapparecido durante o seu curto dialogo com o pobre diabo que o ouvira. Dirigia-se já para a porta por onde elle sahira, quando a ella assomou o Bento Domingos, secretario e factotum do director do jornal, mais vulgarmente conhecido pelo Vassouras, em virtude da quantidade de cabello que lhe cobria os possantes nós dos dedos e pulsos.
Mais baixo que alto, muito entroncado, figura grosseira, espesso bigode negro, mais parecia um bufo da Boa-Hora que um jornalista.
Por detraz d'elle, meio escondido pelo seu dorso espadaúdo, o fugitivo reporter murmurou para o coronel:
-- É este o sr. Bento Domingos, secretario da redacção.
-- O coronel mirou-o com desprezo de alto a baixo e repetiu a pergunta formulada ao repórter:
-- Quem escreveu esta sandice?
O Vassouras quiz responder com energia, chegou até a endireitar-se, mas a mão febril do Luna agarrára-se ao punho da espada e o seu olhar duro e frio cravára-se n'elle como um ferro em braza. Empalideceu, titubeou, respondendo apenas:
-- Não fui eu, nem posso agora saber quem foi, preciso ver o original, a lettra...
Luna porém não o deixou continuar, interrompendo o desabridamente.
-- O senhor é o secretario, o único portanto responsável, na ausência do director, pelas infâmias que aqui se publicam impunemente. D'esta vez porém não será como das outras, e desembainhando a espada o coronel assentou tres vigorosas pranchadas no lombo do Vassouras. Este recuara cobardemente murmurando:
-- Está doido!... está doido!... doido furioso... e com os braços e as mãos gesticulando, deffendendo o rosto da espada do coronel, conseguira emfim escapar-se pela porta por onde desapparecera Já o outro companheiro esbaforido. Entre os humbraes das mab portas, appareciam typographos de blusas de riscado azul, abafando risos de troça, tapando as boccas com âs mãos enegrecidas de tinta. Nenhum porém se atrevera a correr em defeza do Vassouras.
Entretanto, D. Alvaro, serenando rapidamente apoz o correctivo infligido ao Vassouras, embainhara tranquillamente a espada e sahira da redacção, direito á escada, sem que um só gesto ou ameaça lhe cortasse a retirada. Apenas porém voltára costas, logo a sala se enchera, e os redactores e reporters escondidos, pareciam surgir de todos os cantos como n'uma magica.
O Vassouras fulo, interpellava-os, ameaçando-os de expulsão.
-- Canalhas, cobardes, sucia de malandros! E cofiando o enorme bigode, alisando a cabelleira rebelde, vociferava como um possesso.
Ninguem o deffendera, ninguem, e o maldito do coronel enchera-lhe as costas e os braços de nodoas negras. Tirara o casaco, e arregaçando as mangas da camisa, examinava os braços cabeludos como os d'um macaco.
Um dos typographos correra logo á botica próxima em procura de arnica, e o Camargo, o piadista da redacção, esfregava-lhe os braços e os costados, troçando-o:
«Até parecia impossivel que um gigante como elle, com taes braços e um tal tronco, se não soubesse defender do enguia do coronel. Se fora com elle, haviam de ver, ia tudo raso, mezas, cadeiras, tinteiros, tudo p'ra cima do coronel».
-- Mas tu não estavas lá dentro, não ouviste tudo, cuidas por acaso que te não vi além á porta, espreitando e a rir. O que tu precisavas era uma carga tambem para não cantares tanto. O Vassouras quasi que se atirava ao Camargo ao proferir estas palavras raivosamente. Este, porém, fugira rindo, com o frasco de arnica entre as mãos.
O barulho crescia com a commentação da aventura; todos riam, jogavam chalaças crueis ao Vassouras, desvirtuado perante todos pela sua exautoração publica; e o jornal não se fazia apesar de já serem quatro horas.
Então abriu-se a porta do gabinete do director, e a cara amarellada e insignificante do Sarzedas, assomou entre ella repentinamente.
-- Que pouca vergonha é esta, bradou; parece impossível que os senhores se esqueçam do logar onde estão. Para que serve o sr. Domingos estar ahi, ser secretario? Para apanhar pancada vergonhosamente e para nada mais, não é assim?
O silencio fizera-se repentinamente, e todos já em frente ás secretarias, escreviam ou fingiam escrever.
O Sarzedas chamara o Domingos ao gabinete cuja porta se fechara sobre elles com estrondo.
-- Então meu pobre Domingos, apanhaste p'ra teu tabaco, hein? A physionomia do Sarzedas mudára de expressão, de dura tornára-se meiga, e no seu olhar intelligente parecia brilhar uma caricia voluptuosa de sodomita.
Á sua fragilidade doentia, e ao hysterismo morbido dominador do seu temperamento de invertido, a possante robustez de Domingos inspirara desde o primeiro dia, um attractivo poderoso e irresistível.
-- Consola-te meu velho; são ossos do officio que eu saberei recompensar como amigo. E magoou-te muito ? Magoou-te ?
-- Mas tu não viste ? -- Os dois na intimidade davam-se tu. -- -- Vi sim, mas mal. Espreitei por alli; indicou a fechadura. O diabo do coronel parecia doido. Bem fiz eu em não apparecer.
-- Rachava-te meu velho. A espada d'aquelle desalmado, só um corpo como o meu poderia resistir. Olha para os vergões com que fiquei no braço.
O Sarzedas acariciou-lh'os com ternura.
-- Pobre Domingos! atirou-lhe um abraço e beijou-o ruidosamente na bigodeira.
O Vassouras, com um sorriso de bruto, deixava-se acariciar, indifferente.
Toma pela tareia, tomou o Sarzedas apoz a sua effusão voluptuosa, estendendo-lhe uma nota de cincoenta mil réis, -- isto é pela tareia. Agora vai lá para dentro e obriga esses idiotas a concluir o jornal, anda raspa-te...
O Domingos retirou-se, e o Sarzedas continuou escrevendo, com o rosto ainda illuminado por um sorriso de satyro invertido.
XII
Ha muito que o velho edificio de S. Bento não se vira tão buliçoso, nem contemplára um aparato tão marcial como o d'aquella tarde.
O ascensor da Estrella, as carruagens e automoveis, despejavam constantemente uma multidão mista e variada, ávida de assistir a essa sessão da Camara, promettedora de interesse e commoçôes.
Ás boccas das ruas e no largo, grupos de policia de aspecto feroz, recebiam ordens dos chefes, e no peristilo do vasto edifício, uma companhia da guarda municipal, reforçara a guarda ordinaria dos dias normaes.
Todo esse aspecto guerreiro era mais que significativo dos terrores do governo pela perturbação da ordem publica. Advinhava-se nos semblantes da multidão, um fremito nervoso de descontentamento e revolta, contra os ultimos actos governamentaes, de sisthematica recusa em discutirem os graves assumptos que ultimamente preoccupavam todo o paiz, -- os adiantamentos á casa real e a greve dos estudantes, alastrando dia a dia por todas as escholas académicas e lyceus.
Debalde nos dias anteriores, os deputados das opposições se haviam cançado em verberações justas contra o procedimento do Presidente do Conselho, o qual manhosamente fugia ao assumpto, ou fazia encerrar precipitadamente as sessões, illudindo os mais duros ataques com respostas evasivas, ou com um desinteresse culpavel e premeditado.
Promettia pois ser a sessão d'esse dia, mais uma nova polemica de descomposturas, arruaça e motim, do que propriamente uma discussão parlamentar.
O governo embaralhava, mentia, faltava a todos os compromissos e programmas liberaes; irritava pela sua hysteria, banalidade e reacionarismo estupido. Via-se isolado, incapaz de lealmente poder sustentar-se, desmascarado, inútil; e procurava o primeiro pretexto para um encerramento de côrtes que lhe permitisse o golpe de estado necessario á sua vida artificial.
Todos inconscientemente advinhavam o matreiro plano do Nunes, e entre os grupos de deputados e politicos que enchiam as galerias dos passos perdidos, trocavam-se impressões n'esse sentido.
Seria essa a ultima sessão; o Nunes não responderia ainda n'esse dia ás questões palpitantes de momento, e encerraria as camaras violentamente sob qualquer pretexto.
Veriam...
José Gusman e Fabricio conversavam com o dr. Antonio Migueis, deputado republicano, um dos sobreviventes na camara á expulsão dos collegas por occasião da discussão dos famosos adeantamentos.
O dr. Migueis, com a sua physionomia aberta de apostolo, o seu ar bondoso de illuminado convicto, era o melhor homem do mundo, mas por isso mesmo o menos perigoso para os do governo.
Era, como a maioria dos chefes republicanos, mais um theorico que um combatente, uma boa pessoa e não um revolucionário. Tinha tanta rhetorica como illusões e sonhava com a barricada como o Christo outr'ora com a cruz. Em Portugal infelizmente, desconhecia-se esse genero de defeza das cidades, emquanto que na Judéa o supplicio da cruz era rudimentar.
Os dois amigos embora o estimassem, reconheciam-n'o egualmente como o melhor dos republicanos e o mais illudido de todos.
Um homem que pregara a republica em pleno parlamento, perante meia duzia de soldados da municipal, mandados para expulsar os seus collegas, ou era um visionario sublime de simplicidade e abnegação, ou um tresloucado de momento. Fizera rir quando devia correr sangue, prestára-se á troça quando devera impôr-se por um acto de energia estóica.
Mas se tudo era assim em Portugal...
Um rumor repentino annunciou a abertura da discussão, e emquanto o dr. Migueis, despedindo-se, se dirigia para a sala dos deputados, trepavam os dois amigos rapidamente pela escada que conduzia ás galerias. Graças a um guarda do conhecimento de Fabricio, poderam arranjar dois bons logares na tribuna reservada.
A vasta sala em semi-circulo, guarnecida de tribunas esguias, sustentada por columnatas como um amphitheatro grego, estava completamente cheia, e até por detraz das bancadas das galerias e tribunas, se apinhava uma compacta multidão.
A luz coada e fria, tombando directamente da alta claraboia, sobre a sala branca e oiro, batia cruamente sobre os dorsos e cabeças dos deputados, em frente ás carteiras, olhos pregados no presidente que acabara de proferir os nomes dos inscriptos para usarem da palavra antes de se passar á ordem do dia; prevenia porém que, apenas tinham meia hora para as discussões alheias aos assumptos da ordem.
Então levantou-se um deputado da opposição, propondo se prolongasse a hora por ser impossivel n'um tão curto espaço de tempo, o tractarem-se assumptos de tal responsabilidade como a questão academica.
O presidente volveu que não podia tomar essa responsabilidade visto não ser da lei.
O deputado retorquiu pedindo, fosse sujeita á votação da camara a sua proposta.
O presidente acedeu, mas a maioria regeitou.
Levantou-se immediatamente um grande borborinho, ouvindo-se imprecações e o ruido surdo de punhos abatendo-se contra as carteiras. A campainha presidencial agitou-se.
-- Advirto o illustre deputado de que tem apenas vinte minutos para ser ouvido, murmurou com voz apagada.
-- Mas isto é um desaforo, gritou uma voz.
-- Uma violencia.
-- Não querem que fallemos.
-- É todos os dias o mesmo.
-- Ordem... ordem...
A campainha agitou-se pela segunda vez e o presidente ameaçou levantar a sessão caso o ruido continuasse.
-- Exige-se a presença do sr. presidente do conselho, declarou o dr. Migueis, ha dias já que s. ex.a prometteu responder ácerca da questão academica e sua ex.a continua invisivel.
Desinteressa-se, gritou uma voz.
N'este momento porém entrava justamente o conselheiro Nunes, e todo o ruida sessou como por encanto. Foi immediatamente rodeado por numerosos deputados cumprimentando-o servilmente. Um collega murmurou-lhe algumas palavras ao ouvido e elle levantou-se, para fallar.
-- Vou responder ao illustre deputado, começou, prevenindo-o porém de que serei rapido e pouco pródigo em palavras. Começo por declarar que cada vez me sinto mais forte para responder aos incessantes ataques dos meus adversarios politicos, declarando não serem elles de natureza a amedrontar-me. Irei para a frente sempre, que é a minha divisa, sem vacilações, receios ou cobardias improprias do meu caracter.
-- E sem faltar ás suas promessas, ao seu programma e á sua palavra, não é assim?
interrorapeu-o bruscamente o dr. Migueis.
-- E porque não ha-de ser?
-- Porque até hoje, desculpe-me v. ex.a que lh'o lembre, nada do que prometteu cumpriu. Faltou sempre á sua palavra. -- Ruído enorme da maioria, protestos, gestos ameaçadores contra os dr. Migueis, appoiados energicos das opposições. Trocam-se insultos de carteira a carteira, cortam o ar punhos fechados, e a campainha presidencial agita-se violentamente.
Faz-se silencio com dificuldade; o Nunes prosegue o seu arrasoado. As palavras porem proferidas pelo deputado republicano, desnortearam-o. Empalidece, tem o gesto febril, largo e tremulo dos epileticos, o olhar vago, o rosto colerico.
-- Nunca faltei á minha palavra nem ao meu programma como o illustre deputado pretende. A linha de conducta que tracei a mim mesmo tenho-a sempre seguido e continual-a-hei seguindo sempre... sempre...
Ruidosos appoiados da maioria que tem descido dos seus logares e rodeiam o chefe, humildes e servis, como se fora um idolo.
Muitos d'elles mal teem bigode e mais parecem collegiaes que deputados.
O Nunes prosegue cada vez mais irritado:
-- Em vão os senhores pretendem, lançando n'esta casa toda a ordem de perturbações, que eu desanime, desfaleça, recue, não siga energicamente para a frente no cumprimento sagrado d'uma missão que me foi certamente inspirada pela Divina Providencia.
Prolongados rumôres partem da direita.
Uma voz:
Não estamos aqui para escutar prophecias. Responda antes á questão principal, como pretende proceder relativamente á academia.
O Nunes exaltadissimo, dá duas fortes palmadas sobre a secretária, enrouquece á força de gritar, gesticula como um louco.
-- É uma questão de creanças, não pode ella constituir um embaraço a discussões mais graves para o paiz: desinteresso-me d'ella por completo, e tenham a certeza que não serão esses fedelhos capazes de obrigarem a demitir-me. Não, não e não. Estou novo, forte, tenho energia, estou para lavar e durar...
O presidente interrompe o orador, dizendo ser já a hora de entrar na ordem do dia.
O Nunes quer ainda falar, porém um grande tumulto levantado pela opposição, abafa-lhe a voz. Erguem se novos deputados pedindo a palavra. O tumulto todavia alastrou-se por toda a camara e o presidente agitando baldadamente a campainha, e não podendo manter a ordem, a um gesto do Nunes, cobre-se e levanta a sessão.
Ha gritos de protesto, partem-se carteiras; novas ameaças e insultos surgem entre deputados rivaes e todos sahem tumultuosamente da sala.
Fabricio e Gusman haviam descido com dificuldade a escadaria por entre a multidão ainda agitada, discutindo entre piadas e risos de troça, a atitude do Nunes, o seu discurso, todo o immenso ndiculo da sessão memoravel a que vinham de assistir. Percebia-se uma decidida hostilidade contra o governo a par d'um grosseiro indifferentismo por todos os negocios do paiz. Vinham alli como a uma toirada, para rirem, divertir-se durante algumas horas. O espectaculo era gratuito e por vezes interessante.
A galeria dos passos perdidos ainda estava povoada por numerosos grupos, e o dr. Migueis rodeado de amigos e trunfos republicanos, discutia animadamente.
Corria a voz, por toda a parte, do encerramento illegal das camaras para o dia seguinte.
Era fatal, evidente. Entrava no plano do Nunes, causa principal de todas as carrapatas politicas dos ultimos tempos.
Sendo-lhe impossivel governar com o parlamento, suprimia-o, era simples. Depois viria a dictadura, o reaccionarismo feroz; resuscitaria o antigo fanfarrão, o conhecido mata gatos dos tempos de Coimbra.
-- Olha para toda esta cambada de egoístas e indiferentes, e diz-me se vale a pena tentar alguma cousa por um semelhante paiz, observou Fabricio.
-- Tens rasão, tudo isto é repugnante... triste.
Entraram no ascensor entre acalorada discussão. Era sempre o mesmo assumpto:
-- o encerramento e a dictadura.
Cá em baixo, receberam as bengalas das mãos do porteiro e sahiram para a rua. No atrio, a companhia da municipal formara a um lado, e no largo, d'um e d'outro lado, apenas se viam grupos de policias e caras patibulares de agentes da secreta, empunhando grossos bengalões e cofiando os espessos bigodes.
O dia estava no fim, e um pallido sol no ocaso dourava apenas os cimos das arvores começando a florir e os beirados altos dos telhados.
O elevador da Estrella, ronceiro e gebo, trepava com dificuldade pela calçada; e para os lados do aterro, ouvia-se o som claro dos electricos sibilando, o ruido prolongado, surdo, do apito d'um vapor em marcha.
Uma carruagem passou rapidamente ao lado dos dois amigos, e uma cara angulosa e macilenta, dura e mestiça, desenhou-se entre o quadro escuro da portinhola do coupé.
Era o conselheiro Nunes que vinha da camara.
-- Besta! rosnou Gusman seguindo-o com o olhar.
O Fabricio soltou uma gargalhada indifferente exclamando:
-- Bem se vê que chegaste ha pouco de Paris.
Quando n'essa noite José de Gusman entrou em casa dos Lunas, logo sua prima Maria de Luna veio ao seu encontro com um sorriso trocista nos lábios.
-- Já hoje te vi e parece impossível como não me conheceste, disse.
-- Como! retorquiu elle admirado.
-- Sim, na camara, esta tarde. Vi-te perfeitamente com o teu inseparavel dr. Fabricio.
-- Pois tu vaes ás camaras, estás politica á ultima hora?
Achavam-se no pequeno vestíbulo que antecedia o salão, d'onde sahia um ruido animado de vozes. Era uma pequena saleta toda guarnecida de armas e tropheus indigenas trazidos por Alvaro da costa Africana.
Dois largos divans de veludo escarlate e um bufete de pau preto renascença, completavam o sobrio mobiliario. Uma alampada fosca pendendo do tecto, derramava em torno uma luz suave.
-- Ha por cá muita gente? perguntou Gusman.
-- Apenas quatro pessoas. A duqueza de Alvor, a Freixosa, o velho marquez de Rimini e o Nuncio. Bem sabes que a nossa casa não é muito divertida nem frequentada.
Mas senta-te um instante, preciso falar-te antes de entrares.
-- O que é? fez José, admirado, alguma grave noticia.
-- Não. É que... explicou Maria com embaraço, como está cá esta gente, seria melhor não fallares em politica. Além d'isso o Alvaro anda exquisito, pensativo, preocupado, parece que o seu novo cargo o contraria ou teve no paço alguma semsaboria.
Passa quasi todo o dia lendo e escrevendo, e se hoje fui ás camaras foi a pedido d'elle.
Queria saber, o que se passava.
-- E contaste-lhe como tudo correu?
-- Claro ...
-- E que disse elle?
-- Que já esperava isso. Não fez porém mais commentarios, pois elle comigo não se digna conversar em cousas sérias. Mas vi perfeitamente, estava contra o Nunes e sei pela Luiza o desprezo que elle lhe vota.
-- E apesar de tudo não o guerreia e supporta-lhe a auctoridade.
-- Que querias tu que elle fizesse?
-- Era bem simples. Impôr-se ao marquez com o seu prestigio e o seu nome...
-- E quem sabe se já o tentou, e se foi por tal motivo que voltou precipitadamente do paço esta tarde, estando de serviço ...
-- Talvez ... talvez ...
O dialogo foi interrompido pela chegada, á porta, de Luiza.
Gusman foi ao seu encontro, beijando-lhe a mão com respeito e amizade.
-- Vai lá para dentro conversar com o Alvaro que está farto de aturar o marquez e de muito mau humor, disse-lhe ella.
Gusman entrou no salão precedido por Maria.
A mesma luz suave e o mesmo aspecto de correcção e conforto. Apenas uma infracção ás regras dos mais dias. Uma meza de bridge na outra extremidade do salão, opposta áquella em tomo da qual se reuniam todas as noites.
Monsenhor Viscomti, Nuncio de S. Santidade, jogava em face da duqueza de Alvor contra o marquez e a mãe do coronel.
A condessa da Freixosa conversava com D. Clara de Luna. Maria e Luiza trocavam segredinhos.
N'essa noite os cestos da costura haviam sido abolidos, e meio sumido n'uma poltrona, junto ás senhoras, achava-se o coronel que acabara, com grande prazer, de findar o seu robber como parceiro do marquez, -- És tu, grande vadio ! murmurou elle para José que se approximára apoz os cumprimentos do estylo. Ha mais d'um mez que não appareces?
-- Conhece este maluco? perguntou á condessa, apontando José.
-- Perfeitamente, respondeu ella esboçando um sorriso amavel. Acho porém muito severa a sua apreciação. Sei que é poeta revolucionário, odeia o conselheiro Nunes, mas, sei egualmente que nada tem de maluco.
Gusman agradeceu-lhe n'um sorriso murmurando:
-- Quem sabe, condessa! Talvez o Alvaro tenha rasão.
Entretanto, levantára-se entre os jogadores uma ligeira altercação.
-- Per Bacho! exclamara o Nuncio que perdera a partida ...
-- desabafo predilecto de Sua Eminencia em momentos de contrariedade.
-- Monsenhor é mais fino diplomata que bom jogador, observou maliciosamente a duqueza de Alvor.
O Nuncio porém pretendia justificar-se embora fosse culpado do mau destino da partida.
-- Tinha tres trunfos, duqueza, tres trunfos, e nunca podia imaginar os restantes na mão do marquez, explicava com a sua voz ecclesiastica, untuosa e terna, carregando muitos nos rr, Errarum humanum est. Além de que, o bridge não é o meu forte.
Se fora o wirth, veriam, sou de primeira força. Em Roma, ia todas as quintas feiras ao Vaticano jogar com Sua Santidade; era o seu parceiro dilecto.
-- N'essas partidas santificadas, Sua Eminencia era por certo inspirado pelo Espirito Santo, exclamou ironicamente o raarquez.
Ao contrario, eu como jogava no profano Quirinal com S. Magestade Humberto primo, perdia todas as noites.
O Nuncio aspirou ruidosamente uma pitada da sua preciosa caixa de oiro esmaltada.
-- Rasão porque o marquez ganha sempre quando joga com Monsenhor, notou maliciosamente a duqueza, e perde contra elle ...
O Nuncio sorrira ao gracejo por debaixo dos óculos d'oiro, abriu os braços entre um ruido claro de seda e deu cartas. Detestava jogar com o diplomata por ser este de primeira força ao bridge, e notar-lhe sempre, embora delicadamente, os seus numerosos erros.
-- Então agora o marquez, não deixará de marcar um sans a tout, declarou D. Mathilde. É necessário continuar como até agora, irreverente. Passava pausadamente as cartas por entre os finos dedos cor de cera.
Este, como para corresponder gentilmente ao desejo da parceira, exclamou, apoz uma pequena pausa:
-- Sans a tout...
Uma sombra de manifesta contrariedade perpassou pelo rosto glabro e amarellado da Eminencia. Era de todos conhecido o seu mau humor em dias de perca. Como quasi todos os homens da egreja italiana, dominava-o uma avareza mal disfarçada.
-- A culpa é de Monsenhor que deu cartas, observou D. Mathilde.
-- Repara na cara do Núncio que é impagável, murmurou Alvaro ao ouvido de Gusman.
Haviam-se acercado da meza de jogo para assistirem á ultima batalha.
A duqueza, abafando a custo o riso, mostrava ao coronel o seu jogo. Não tinha uma unica carta de valor.
O rosto de Monsenhor assombrava-se cada vez mais, á medida que ia perdendo vasas.
-- Per Bacho! Nula! Nula, duqueza.
Esta ria baixinho, mirando disfarçadamente o parceiro.
-- Shlem! bradou victorioso o marquez.
Fizeram-se contas. Monsenhor perdia cem pontos para o marquez.
-- Uma renda para o Quirinal, exclamou elle pagando.
O chá entrava n'este momento, servido sobre duas enormes bandejas de prata.
A conversa agora corria em torno da meza acerca de politica. O Nuncio sempre em opposição ao marquez, achava o Nunes um grande homem de Estado.
« Os ministros queriam-se assim: -- enérgicos, respeitadores da religião e solidos appoios do direito divino dos reis».
O marquez, porém, contestou.
«Achava o Nunes, pelo contrario um homem perigoso para a realeza como todos os reaccionarios. Quem ultimamente se tornava o esteio das monarchias modernas eram, pelo contrario, os grandes liberaes, como Garibaldi e Cavour».
-- O lobo de Caprera, exclamou horrorisado Monsenhor.
-- Mas que unificou a Italia e deu o throno a Victor Emanuel, respondeu o marquez triumphante.
D. Alvaro, porém, temendo uma disputa desagradável entre os dois rivaes intransigentes, propoz bruscamente se fizesse um pouco de musica. Maria iria tocar algum trecho do Othelo, Esta comprehendendo a intenção do irmão, dirigiu-se logo para o piano, começando por tocar a inspirada Ave Maria do quarto acto.
Fez-se um grande silencio, e tanto Monsenhor como o marquez, logo se sentiram reconciliados ao vibrar melancholico da incomparável melodia.
Ambos se haviam approximado do piano escutando attentamente Maria, que com raro talento tão bem traduzia o génio de Verdi.
-- Bravo! Bravissimo, exclamaram elles batendo as palmas e fitando Maria com olhar enternecido.
Esta levantára-se sorrindo, muito confusa.
«Não tocava nada bem, nada; era apenas uma infima admiradora do grande maestro».
Entrára agora no salão um novo personagem -- Monsenhor Barreda, coadjutor da Nunciatura.
Vinha de casa da marqueza de Lima onde fora chamado a toda a pressa por causa do seu perigoso estado de saude.
Rodearam-o todos.
-- E a pobre marqueza como está? interrogou Monsenhor.
-- Em perigosissimo estado, receia-se a toda a hora um desenlace fatal. Apenas cheguei, disse-me ter feito já o seu testamento e se não esquecera da Santissima Religião. Uma santa... uma santa...
A voz do coadjuctor tornára-se meliflua, arrastada e no seu rosto côr de ambar, trazia impressa toda a finura caracteristica dos homens da egreja. Era muito eloquente, sahira dos jesuítas, sendo apreciadíssimo pela sua astúcia em conquistar heranças a favor da Santa Sé.
-- Mais uma roubada pelo Barreda, murmurou Gusman para Alvaro, cujo olhar profundo se cravara curiosamente no rosto do coadjuctor.
-- Um espertalhão este padre, apaixona as velhas e suga-as á hora da morte.
Alvaro sorriu sem responder á observação do primo; esse sorriso todavia indicava uma concordância paralella de idéas.
Entrou um creado annunciando a carruagem da duqueza. Esta levantou-se e despediu-se affectuosamente das senhoras.
O coronel offerecera-lhe o braço para a conduzir.
Todos se levantaram respeitosos ; os proprios retratos pareciam sorrir nas molduras, ao contemplarem o vulto aristocrático da gentilissima senhora. A seda roxa do manto de Monsenhor beijou graciosamente a ampla cauda de veludo da duqueza, emquanto esta se inclinava deante da Eminencia.
-- Espero-o na quinta feira para nos vingarmos do marquez, disse-lhe á sahida.
-- Impossivel, duqueza. Eu sou invulneravel, declarou o diplomata beijando-lhe a mão.
Atraz d'ella, seguiram todos até ao pequeno vestíbulo onde se trocaram as ultimas despedidas.
-- Então amanhã teremos mais barulho nas camaras? disse Gusman ao despedir-se.
-- Não creio, respondeu Alvaro. Foi hoje a ultima sessão ...
-- Como assim?
-- O Nunes encerra-as amanhã.
-- Teremos então dictadura ...
-- E mais que isso, verás ...
-- Esse homem está doido.
-- Varrido, mas quem tem a culpa são todos vocês. Teem apenas o que merecem, é bem feito. Paiz de doidos só pôde ser governado por um doido.
-- E tu?
-- Eu? faço como elle, desinteresso-me e talvez desappareça em breve, quem sabe, fez elle melancholicamente. Adeus e apparece. Deixa-te porém de politica e pensa antes na vida a serio, é mais pratico. Portugal, n'este momento, está só bom para se emigrar, acredita.
Gusman desceu desanimado a escadaria atapetada.
-- Emigrar, pensou. Mas era uma cobardia, não o podia fazer. Se fosse certo esse acto insensato do Nunes, -- a dictadura -- o paiz não o supportaria. Ainda havia sangue em Portugal. E se assim não fosse, elle juntamente com Fabricio e os outros, alguma cousa haviam de fazer certamente.
Transpoz o portão e achou-se na rua sem dar por isso.
Uma chuvinha miuda e desagradável chamou-o á realidade.
Os bicos de gaz vacillavam ao vento e as ruas lamacentas brilhavam, por intervallos, á claridade.
Ao fundo da rua, apesar da chuva, distinguiu um vulto conversando para um primeiro andar; e mais abaixo, por entre a porta entreaberta d'uma taberna, ouvia-se uma voz avinhada cantando o fado, ao som desafinado d'uma guitarra.
E era aquella a vida portugueza, decorrendo entre o eterno gargarejo amoroso e o fado.
Indolencia, illusão e indifferentismo.
«Talvez que o Alvaro tenha razão», pensou apressando o passo, rente á casaria adormecida e escorrendo.
XIII
As palavras do coronel haviam sido propheticas a respeito da sessão de S. Bento, a ultima que marcou a insensatez e epilepsia do conselheiro João Nunes dos Santos.
A loucura começava logo no dia seguinte; dissolviam-se as camaras e implantava se uma dictadura burlesca mas sem que por isso deixasse de ser nociva e vergonhosa para o paiz.
A famosa lei da imprensa era proclamada e as perseguições aos jornaes começavam, amordaçando assim a mais nobre manifestação do homem -- a liberdade do pensamento. Transformava-se o Nunes n'um Polignac imbecil e sem grandeza, appoiado pelo cynico Bacalhôa, de quem parecia dispôr a seu bello prazer.
Lisboa pareceu consternada; os jornaes republicanos e da opposição irritados pela violência do ministro, verberavam-o desapiedadamente, os caricaturistas ridicularisavam-o por todas as formas. Sentia-se como que um fremito de revolta pairando sobre a cidade de ordinário soranolenta e triste. Grupos de individuos espalhados pelo Rocio, ás portas dos cafés, commentavam irados os actos do moderno dictador, ávidos de mais novas do Porto, onde elle fora buscar ousadamente um triumpho e d'onde fugira acossado pelas manifestações d'uma população hostil ao reaccionarismo e amiga da liberdade.
Animada pelo exemplo da capital do norte, Lisboa preparava-lhe uma recepção ruidosa de apupos e desagrados.
Uma voz mysteriosa correra por entre a multidão presagiando graves acontecimentos para essa noite, e instigando os descontentes a manifestarem-se energicamente contra elle, á sua chegada, n'um commum interesse de reconquistarem essa liberdade a que todos tinham direito e que a impudência d'um tyranete ameaçava.
Pela tarde, a venda dos jornaes inserindo as ultimas noticias do Porto, mais irritou os animos, e as redacções dos jornaes, especialmente a do Globo, reunia nas suas salas os principaes elementos das opposições.
Ia começar pois uma nova lucta sem treguas, entre o despotismo resuscitado pelo Nunes e a ancia d'um novo regresso á normalidade constitucional.
Á porta do Martinho, um grupo numeroso, distinguia-se pela agitação da polemica, pelos gritos, imprecações e pragas contra o actual governo.
Entre os mais exaltados notavam-se o poeta Felix, o Gusman e os dois medicos inseparáveis, o Fabricio e o Aurelio. Aguardariam a hora da chegada do Nunes, para serem dos primeiros a invadir a estação.
O Porto cumprira o seu dever apesar da sanha da municipal, da policia, das descargas e acutilamentos; cumpria pois á capital o direito de energicamente a secundar.
Se por um lado as manifestações dos partidos monarchicos e da opposição, não implicavam violencia, corriam vozes de que tanto os republicanos, como algumas associações secretas mais libertarias, pretendiam aproveitar o momento da chegada do Nunes á gare, para d'elle se libertarem por uma vez, apunhalando-o.
Eram porém rumores vagos e incertos, espalhados apenas por entre um numero restricto de individuos conhecidos pelas suas idéas avançadas e revolucionarias.
O Gusman chamára de parte Fabricio e interrogára-o.
-- O que ha de combinado?
-- Nada sei ao certo do que os meus combinaram de positivo; concordaram com os outros n'uma manifestação ruidosa de desagrado, mas não creio empreguem meios violentos. Em todo o caso é bem difficil no ultimo momento, conter uma multidão excitada. Tudo depende de como corram as coisas.
O Felix interveio; sabia de boa fonte que alguns individuos pertencentes a uma associação secreta, chamada a Vingança, haviam deliberado aproveitarem-se da confusão da chegada para apunhalarem o Nunes. Tinham-se até lembrado de atirar em Campolide uma bomba para dentro do wagon, mas a proposta fora regeitada por perigosa e deshumana. Poderia acontecer como das outras vezes, morrerem creaturas inoffensivas e escapar o principal criminoso. Eu, para o que der e vier, levo isto, e mostrou a coronha de marfim d'um pequeno rewolver Smith.
-- A minha convicção é que, se o Nunes cae na tolice de desembarcar alli na gare, é um homem morto, observou Fabricio; elle porém é um grande espertalhão para cahir em tal, além d'isso é um typo cobarde, tendo só a energia que lhe dá a força da municipal e da policia; todo esse valor e temeridade que para ahi lhe dão, é uma blague.
Perguntem aos seus condiscipulos de Coimbra e vocês verão o que elle vale.
-- Sim, é natural que elle se apeie em Campolide e nós todos fiquemos com cara de idiotas esperando-o, ajuntou Gusman.
Ouviu-se n'este momento um grande ruido para os lados do Rocio.
-- Que diabo é aquillo? inquiriu o Felix.
Uma grande multidão entrava agora no largo, dirigindo-se para a estação, á frente da qual caminhavam alguns deputados, redactores do Globo, e o chefe dos opportunistas, -- partido formado havia pouco, -- mas que ganhava terreno rapidamente, em vista da energia dos seus principaes dirigentes e do seu programma politico todo liberal e tendente a absorver á realeza as mais insignificanteis prerogativas.
-- É lastima que o Alvim ainda tenha esperanças na monarchia e a sua cegueira do poder o afaste de nós, disse Fabrício.
-- Não tardará em procurar-nos, crê.
-- Será tarde, meu caro, e o momento preciso, psychologico, era n'esta occasião.
Um chefe energico, intelligente e audaz, como elle, é o que nos falta; com elle a revolução fazia-se amanhã, acreditem.
Continuava a afluir muita gente para a estação e o largo era invadido a todos os momentos por novos grupos.
Egualmente chegavam troços de policia capitaneados pelos chefes de esquadra, subdividindo-se era patrulhas dobradas, guardando as immediações da gare e postando-se ás boccas das ruas.
Individuos mal trajados, com caras de facinoras e grossos bengalões, rondavam as portas dos cafés, misturavam-se aos grupos escutando, farejando, emquanto uma nova força da municipal, vinha reforçar a guarda habitual de D. Maria.
Um borborinho surdo de vozes crescia de momento a momento cortada pelos gritos agudos dos garotos, annunciando a Lucta, o Liberal, o Paiz, o Globo! esgueirando-se agilmente por entre os grupos, e fazendo esgares aos bufos que os ameaçavam com as temerosas bengalas.
A noite estava d'uma grande serenidade e o céu coberto de constelações brilhantes, mas apesar da calma, da natureza, advinhavam-se graves acontecimentos para breve.
As janellas dos edifícios do pequeno largo, enchiam-se pouco a pouco de curiosos. Todo esse movimento de tropas e policia, causava espanto, dir-se-hia que o governo farejava uma revolução. E entretanto, nada de mais escusado, pois conseguia apenas excitar os animos e lembrar talvez um expediente perigoso, mas eficaz.
Perto das nove horas quasi se não podia transitar na praça.
Do lado do Rocio, ouvem-se de repente immensos vivas acompanhados de prolongadas palmas. São dois deputados republicanos que chegam, seguidos por um numeroso magote de manifestantes. A policia começa então a praticar os primeiros actos de selvageria, distribuindo pranchadas a torto e a direito á turba inoffensiva.
N'esse momento Gusman acompanhado de Fabricio e dos outros amigos, penetravam na gare, rompendo com enorme dificuldade, aos encontrões, por entre uma multidão exaltada e turbulenta, dando vivas á liberdade, á carta e aos deputados republir canos, e morras á dictadura e ao despotismo.
Ao longo do caes, em frente ao local onde o comboio deve chegar, a custo se póde romper, e de quando em quando uma nova onda humana irrompe pela porta da gare que em breve é arrombada, por estreita a dar vasão a toda a turba. Os gritos redobram e dão-se conflictos parciaes entre manifestantes e a policia secreta.
Um padre esgalgado, figura glabra e feroz, agride traiçoeiramente com uma bengala o dr. Migueis. Erra porém o alvo, e é immediatamente empurrado e agredido pela populaça. Foge espavorido. A grita e a confusão augmenta.
-- O dictador não vem cá, aposto, exclama um.
-- Apeia-se em Campolide, diz outro.
-- Se vem cá, cá fica, responde um terceiro.
Grandes gargalhadas festejam o dito.
-- Estes diabos deitam tudo a perder, observa Fabricio. Não tarda ahi a municipal e falha tudo. Ou nos fazem evacuar a gare ou o Nunes fica n'outra estação.
-- Naturalmente segue de Campolide para Cintra, lembra o Félix, o gajo é raposa matreira e a esta hora já deve saber como isto por cá está.
-- Qual ! O typo tem farronca e ha de querer vir, diz uma voz do lado.
Mas n'isto, em frente, do outro lado da linha, tem avançado já uma companhia de infanteria da guarda, commandada por um alferes, formando em linha, frente ao povo.
Redobram as imprecações, as ameaças, e debalde os chefes dos bandos clamam silencio. A multidão exasperada a nada attende e os soldados a uma nova ordem avançam para o fundo da gare e intimam os manifestantes e retirarem-se. Então passa-se uma scena repugnante e cobarde. Ouvem-se gritos e ordens.
-- Ninguém fuja.
-- Não nos podem pôr fóra, é uma violencia.
Mas os soldados começam a distribuir coronhadas avançando, e a maior massa da multidão cede cobardemente e obriga os outros a recuarem, o que se faz passo a passo, entre arguições e ameaças de parte a parte.
Fabricio, Gusman e os do bando, são empurrados brutalmente e obrigados a recuar como os demais. O poeta Felix enfurece-se e grita, Gusman agita-se, e todos elles procuram em vão, deter a turba.
São assim levados n'uma onda irresistível até á porta que abre a rampa, descendo em direcção á calçada do Duque. Mal a transpõem, deparam comum bando furioso de policias accudindo á refrega. São pois recebidos traiçoeiramente á pranchada, distribuida a duas mãos, com sanha inconcebivel. Alguns revoltam-se, procuram fazer frente a esse bando de canibaes com as bengalas. Elles porém parecem nascer debaixo dos pés, surgir de todos os cantos.
O Felix derruba ainda um, fére outro, mas acaba por ser empurrado pelos que fogem com um braço acutilado e escorrendo sangue. Perde-se dos amigos. Dois ou três do bando haviam cahido por terra e Gusman pretendendo accudir-lhe é egualmente acutilado assim como Fabrício.
-- É inutil a resistencia, estamos desarmados e quasi sósinhos, vejam? Era o Aurelio quem assim falava indicando a multidão fugindo em todas as direcções.
-- Por aqui, bradou, e seguiu correndo rampa a baixo em direcção ao Rocio.
De repente pararam á esquina da Rua do Principe.
-- Mas o que é este ruido?... perguntou.
-- Descargas, tiros... olha como tudo corre ...
Effectivamente não se viam senão individuos galppando em todas as direcções seguidos por policias de rewolver em punho ou sabre no ar.
-- Vamos para o Martinho... toca a safar...
Precipitaram-se correndo pela Rua do Principe na direcção do Martinho, onde penetravam minutos depois.
Era tempo. Uns trinta policias corriam desvairados sobre o café, perseguindo um bando.
A sua approximação ouviu-se uma voz gritando:
-- Fechem as portas, façamos uma barricada; e acto continuo, contra as portas, foram levadas mezas, cadeiras, bancos, sendo por detraz arremeçados contra a policia, toda a casta de projectis: pedaços de mármore, copos, garrafas e quantos destroços se encontraram n'esse momento. Cá fora, um grupo de individuos, arremeçava pedras contra a policia que por sua vez debandava espavorida para os lados do Rocio. A algazarra era immensa e as apostrophes, chufas e piadas grosseiras, choviam corao as pedradas sobre os dorsos fugitivos.
Em breve porém se ouviu o galope de muitos cavallos e o tenir das espadas. Era uma força da guarda a cavallo, avançando direito ao largo, ao passo que uma força de fanteria formava em linha, costas á esta o, dominando o largo.
-- Estamos encurralados, e se os maldis se lembram de disparar contra nós, tens a matança dos innocentes ... disse o arelio... Aqui o que ha a fazer é fugir, a resistencia é inutil e excusada. Ninguem tem armas e ninguem pensou em fazer uma relução. Tudo isto é obra do acaso e sahiu apenas da excusada provocação da tropa.
A cavallaria avançando a passo até a meio do largo, estacou subitamente, mas logo uma saraivada de pedras lhes cahiu em cima. Furiosos sacaram dos rewolvers e começaram a disparar em todos os sentidos.
Um soldado fôra derribado do cavallo cahindo ferido por terra, muitos outros haviam recebido ferimentos egualmente.
Duas ou três balas vieram despedaçar os grossos vidros dos portaes do café, com una ruído sinistro; outras foram cravar-se no tecto e na cornija.
Dentro, fez-se um movimento brusco de pânico. Parte da multidão levantou-se arremeçando mezas e bancos contra o sólo, debandando para as trazeiras do café obedecendo ao poderoso instincto de conservação, ao passo que outros se refugiavam por detraz dos pilares e muros espessos da casa.
Detonações seccas e uniformes, ouviam-se para os lados do Rocio.
N'este momento, entrava espavorido no café o Félix, seguido d'alguns do bando que ainda empunhavam pedras apanhadas na rua.
Ao vêr os amigos correu para elles.
Trazia uma manga toda rota e o braço cheio de sangue.
-- Mas tu estás ferido! exclamou Fabricio ao vêl-o.
-- Isto não é nada, foi o couce d'um policia. Despejei-o todo, e não tenho nem uma unica bala, respondeu mostrando o rewolver descarregado. Depois narrou o que vira, animadamente. Houvera actos de grande coragem da parte do povo, desarmado, mas sem medo. Encontrara garotos esfarrapados, semi-nús, avançando até ás patas dos cavallos e apedrejando os soldados, uma rapariguita, de saia vermelha, com o avental cheio de pedras, esgueirando-se por entre a tropa corajosamente e distribuindo aos rapazes as munições; policias furiosamente espancados, o diabo... por essas ruas.
No Rocio, a infantaria fizera fogo do pórtico do theatro e matara dois pobres diabos inoffensivos; os electricos ao chegarem, eram rodeados pela policia, maltratando os passageiros, obrigados a fugirem em todos os sentidos. Nem sequer respeitavam as mulheres e as creanças. Vira um official ameaçar com a espada um desgraçado que se encontrava abrigado contra um portal, transido de susto. Se houvesse um chefe de energia que se pozesse á testa do povo, a revolução fazia-se amanhã, veriam.
Houve então no café, uns minutos de treguas, mas a batalha continuava cá fora mais feroz. Um novo magote de populares apedrejava outra vez a cavallaria, que carregava a multidão, disparando mais tiros; do café partiam novas pedradas e gritos e o commandante da tropa, irritado, avançou galopando em direcção a uma das portas vindo chapar-se-lhe o cavallo contra o passeio.
Novamente se fizera o panico no interior do estabelecimento e uma voz gritara:
-- Pode-se fugir por detraz, vem ahi a cavallaria e morre aqui tudo encurrallado, fujam...
A maioria precipitou-se correndo para as trazeiras do café, trepando ao telhado, escoando-se por um pateo que ia dar á travessa.
-- Vem d'ahi também, disse o Fabricio agarrando-se a um braço do Felix que permanecia junto á porta.
Gusman e o Aurelio preparavam-se para os seguir.
-- Não vale a pena, vê como tudo já socegou.
Effectivamente o esquadrão tomara a direcção da Avenida em seguimento do commandante, que conseguira levantar o cavallo e se contentara do seu acto glorioso de ridicula e escusada fanfarronada.
O povo havia já quasi retirado e apenas alguns grupos, mais curiosos que guerreiros circulavam pelo largo e sobre os quaes, a policia effectuava prisões arbitrarias na sua sanha insensata e feroz.
Já se dispunham a sahir, quando deram de cara com o Manuel das Monicas, que entrava apressadamente no café em procura do dr. Alcides. Apesar da noite turbulenta e sinistra, não largara o famoso rolo de manuscriptos que trazia carinhosamente debaixo do braço.
-- Imaginem vocês, que acabo de assistir sem querer, ao mais interessante episodio da noite, á comica chegada do dictador.
-- Então elle não ficou em Campolide?
-- Qual Campolide. Alli mesmo é que elle desembarcou ha cousa de uma hora. Dava para uma comedia, não podem calcular o ridiculo da scena... é espantoso!...
-- Mas conta lá, meu alma do diabo, repara que nos estás ralando a paciência, disse nervosamente o Gusman.
-- O homem, ao chegar a Campolide, fizeram-n'o esperar e mandaram ordem para a policia fazer evacuar a gare, - isto naturalmente com receio de que o matassem a chegada-, -- e quando todos já pensavam que elle tivesse seguido outro caminho, apeava-se alli em frente, enganando a espectativa geral, exactamente na occasião em que o tiroteio começava. Eu que de nada sabia, descia a calçada do Duque e encaminhava-me para a estação, quando ouvi o barulho das descargas e vi a policia correndo em todos os sentidos. Ora exactamente n'esse momento, sahia o typo da estação, rodeado dos outros ministros e seguido pelo Barradas, que vinha parecia um morto. Ao conhecel-o, cosi-me com a parede para não dar na vista, e observei tudo, ouvindo até o que elles diziam:
O creado do café veio interrompel-os Queria fechar. Vinha ainda muito pallido e parecia desolado.
-- Reparem para tudo isto e digam-me se tem algum geito. Indicava o café, completamente desorganisado, com as mezas partidas, mármores despedaçados, bancos e cadeiras; fragmentos de garrafas e copos pelo chão. E isto, dizia, mostrando os cristaes das portas fendidos. Cada um doestes, representa mais de cincoenta mil réis, não contando as garrafas cheias partidas, e os calotes da noite. Ninguém pagou, ninguém, gorgetas, nicles. Até o sr. dr. Zagalalo que esteve alli toda a noite, se esqueceu. E para que, pergunto eu? para nada, para ficar tudo na mesma e o Nunes continuar a fazer mais poucas vergonhas e desaforos, é o que én parola e nada mais; se fosse lá em Hespanha, na minha terra, esta noite tinha ido tudo raso,... assim... e o creado fechou a arenga com um gesto largo da mão em torno do pescoço.
-- Já agora acompanha-nos até ao hospital, vamos vêr quem está ferido, de caminho contarás o resto, disse o Gusman ao Manuel.
Sahiram para o largo, tomando o caminho da Avenida. Só se encontravam agora grupos de policias e patrulhas dobradas de cavallaria, avançando a passo.
-- Pois imaginem vocês, proseguiu o Manuel, que o chefe da policia declarou ao Nunes, não poderia seguir pelo Rocio. «Escute V. ex.a o que por la vai, escute». Continuavam as descargas e uma grande algazarra.
O Nunes então muito pallido, sem chapéu, passando a mão pela gaforina em pé, murmurou desesperado:
-- Então por onde hei-de seguir para casa, sim por onde !
-- Por alli, por alli, advertiu o chefe, indicando a calçada do Duque.
-- Mas os cavallos não deitam lá cima, é possivel ...
-- Verá que deitam, senhor conselheiro, são possantes e garanto a v. ex.a os seus bons serviços.
Rodeavam todos o Nunes solícitos e apavorados.
-- Hão de m'as pagar, dizia elle rancoroso. Hão de m'as pagar...
-- É não perder tempo conselheiro, é seguir já.
Então quasi o enpurraram para o interior da tipoia e ao Barradas, que não ousara uma palavra.
-- A carruagem lá partiu á desfillada e garanto-lhes que as pilecas eram de primeira ordem.
-- E vistes a cara d'essa besta? perguntou o Felix.
-- Se vi, ia verde, desgrenhado, com a gola do pardessous voltada para cima, parecia um ladrão.
Soltaram todos uma gargalhada.
-- É esperar pelo couce, -- observou Gusman.
Chegavam n'este momento á calçada da Gloria.
-- Que fazemos? perguntou o Aurelio.
-- Vamos lá cima ao posto dos soccorros, depois, cearemos em qualquer parte, tenho fome, lembrou o Fabricio.
-- Oh rapazes ! exclamou o Manuel, mas isso é uma ventura inesperada. Imaginem vocês, que vinha agora mesmo procurar o dr. Alcides para lhe sacar uma carinha. No meio de toda esta pagodeira de tiros e pedradas, o mais ferido aqui sou eu, que nem sequer jantei.
-- E o elevador?
-- Parado desde as onze horas, disse o Felix. Para aqui houve também pancadaria a valer.
-- E as minha costas ? fez Gusman por entre um gemido.
Só agora se lembrava das pranchadas.
-- E o meu braço! gemeu o Felix.
E seguiram subindo lentamente a calçada, direitos a S. Roque.
O céu continuava d'uma serenidade triumphante, constelado d'estrellas fulgurantes e longínquas, como ideiaes inatingiveis.
XIV
Foi pelas sete horas da manha que o conselheiro João Nunes dos Santos, seguiu velozmente no seu automovel em direcção ao palacio dos Bacalhôas, na Junqueira.
A essa hora, a cidade adormecida, nenhum perigo lhe apresentava; alem d'isso, a vigilancia da policia redobrara, e desde a sua casa até ao palácio, encontrar-se-hiam agentes numerosos da secreta, postados em todo o percurso, para o guardar.
Durante toda a noite se haviam effectuado centenares de prisões, e tinham sido expedidas as ordens mais severas, tanto para a policia como para o juizo de instrucção.
O Nunes estava furioso. Os fiascos porque acabava de passar nas duas principaes cidades do reino, punham-no fora de si.
Não dormira toda a noite, passeando febrilmente pelo quarto, os labios grosseiros a escumar e a physionomia mestiça accusando a raça n'essa colera africana.
As lagrimas da mulher, sinceras e piedosas, nem sequer lhe haviam merecido um olhar de compaixão.
Era uma fera escouceando na jaula, bramindo de impotência, guardado vergonhosamente á vista como animal perigoso.
Todo o atavismo perverso herdado, se lhe revelava agora mais que nunca, inspirando-lhe as mais cobardes e insensatas vinganças. Uma idéa todavia, persistente e principal, o dominava, -- governar, -- fosse como fosse, custasse o que custasse. Seria dictador, cruel, déspota, odiado, mas governaria apezar de tudo. Queriam derribal-o, enganavam-se. Morreria primeiro, e antes de chegar esse dia, teria tempo suficiente para a represália sangrenta que meditava.
Saberia os nomes dos principaes cabeças do motim e então veriam quem ganhava a partida. A lei de 13 de fevereiro vigorava sempre; e houvera imbecis bastante credulos para se fiarem nas suas promessas de dissolver essa lei e governar só com as camaras. «Imbecis! corja de idiotas, eu vos arranjarei» rosnou. E porque não? quem se poderia oppôr aos seus designios ? O Bacalhôa! Mas esse tinha-o na mão, possuia uma duzia de cartas d'elle, capazes de o fazerem enforcar no primeiro candieiro pelos libertarios ; ou elle lhe dava todo o appoio, ou, se perderia, embora na queda o arrastasse comsigo. Depois, era rico, tinha milhões em Italia, pouco lhe importava o resto ...
Pombal e Richeheu, eram as sombras mais queridas á sua phantasia, sem sequer lhe lembrar a distancia a que ellas estavam d'elle e da epocha. Na sua infinita vaidade, e na insania do seu sonho, julgava-se egual a elles no talento e na força, quando apenas o era talvez, na crueldade.
O conselheiro ensandecera.
Esperava-o uma decepção á chegada.
O marquez, seguira logo de madrugada para bordo do seu yacht, e dera ordem para o prevenirem de que lá o esperaria. O Nunes ficou furioso, mas lá seguiu para a doka de Alcântara onde o escaler o aguardava.
Em contraposição á colera bramindo no esquentado cérebro do ministro, o Tejo corria silenciosamente, reflectindo na sua serenidade polida o azul explendido da atmosphera limpida. Os montes de, Almada e Caparica, douravam-se de luz matutina, velas longinquas desappareciam em direcção á barra, e um grande vapor da carreira do Brazil, avançava magestoso, coroado de fumo, com o tombadilho povoado de passageiros dispertos á entrada do porto.
O escaler passou por elle apenas a alguns metros, e um rancho de raparigas, com toilettes claras, envoltas em gazes ondulando, acenaram com os lenços ao furibundo despota.
Mas no seu entendimento grosseiro e curto, fechado ás menores impressões de arte, nenhum reflexo d'esse quadro harmonioso de paz e felicidade, se manifestou, dulcificando-o.
Continuava a ser a mesma besta grosseira e vingativa, cuja extrema vaidade tudo sacrificava.
Chegára. O escaler atracou á escada de bombordo pela qual trepou pouco seguro.
Na coberta esperava-o o marquez vestido de linho branco e com um bonet azul escuro de longa pala.
Estendeu-lhe a mão dizendo-lhe:
-- Esperava-te anciosamente e desculpa o fazer-te vir até cá. Mas isto aqui é mais seguro e consta-me estarem os ânimos em terra bastante exaltados.
Dirigira-se, seguido pelo Nunes, para a pôpa, onde debaixo do toldo já erguido, se encontravam algumas commodas cadeiras de bordo.
-- Senta-te aqui e conversemos, disse, indicando-lhe uma vistosa roking-chair.
Logo, tirando dois magnificos havanos e offerecendo-lhe um com ironia pois sabia que o conselheiro não fumava continou: -- não queres, fazes mal, pois crê que nada existe no mundo tão mil em momentos criticos, como um bom charuto. Convida á meditação e dá idéas.
O conselheiro parecia receber mal, estes gracejos, admirado da fleugma e sangue frio do marquez, n'esse momento critico.
-- Não julgo lá a occasião muito propicia para tão bom humor, disse com má catadura.
-- Estás funebre esta mantiã. Que diabo te fizeram. Escapas por um triz d'uma cilada e ainda te queixas, hein!
-- Já sabe tudo pelo que vejo.
-- Tim tim por tim tim. Julgas então que passo a vida a dormir, nos tempos que correm, enganas-te, razão porque esta madrugada me puz ao fresco para aqui, e d'onde só sahirei quando as cousas estejam um pouco mais socegadas para o tranquillo palácio da Bacalhôa. E tu que embrulhaste tudo, tracta de desfazer a meada e aguentar-te. Commigo, repito, não contes, não estou para mais maçadas... estou farto, aborrecido ...
-- Para isso venho.
-- E qual é a tua idéa?
-- Já lhe exponho o que penso e intento fazer, mas rogo-lhe me explique, primeiro que tudo, a causa do seu bom humor n'este momento. Acaso ignora as mortes de hontem, os ferimentos, que se eu ao desembarcar em Lisboa, não faço evacuar a gare, me matavam como um perro, sem dó nem piedade?
-- Não, nada ignoro e vou responder-te á letra. Se houve mortos, feridos, quasi uma revolta, a ti se deve unicamente, por outra, á tua vaidade. Lavo d'ahi as minhas mãos; e se por acaso elles te assassinassem, não cumpriam senão um acto de justiça. Quizeste o poder, dei-te toda a protecção, e quando te lembrei que a dissolução das camarás era uma loucura e um erro de que te havias mais tarde de arrepender, impuzeste-a, ameaçando-me com as cartas que tens em teu poder e alcançaste não sei como.
Lembrei-te então pedires a demissão, não quizeste, ahi tens o resultado.
-- Mas se eu cahir, cahimos ambos.
-- Enganas-te. Conheço melhor que tu o povo, e sei até onde elle pôde ir. Sobre tudo tomei-lhe bem o pulso n'estes ultimos mezes do teu reinado e isto basta para me tranquillisar. N'outro paiz, estariamos desfeitos a estas horas, aqui poderá ser que te estoirem qualquer dia, não duvido, quanto a mim, affirmo-te, ninguem por emquanto me tocará. Vês este lindo sol, estas aguas tranquillas e transparentes, pois imagina olhares a minha consciencia serena e limpida como ellas.
O marquez soltou uma gargalhada, tirou com voluptuosidade uma longa fumaça, e ficou-se contemplando os novellinhos azulados que subiam do charuto até irem morrer contra a lona clara do toldo. O Nunes fizera uma careta.
-- Quero ainda dizer-te mais alguma coisa para teu governo, antes de tomares qualquer decisão grave. Quando me deixaste diplomaticamente perceber a existencia das minhas cartas d'outr'ora, em teu poder, confesso que n'esse momento, se não fossem ellas, teria deixado de sustentar-te. Depois pensei, pensei muito, e esse primeiro receio passou-me de todo. A rasão, permittirás a guarde para mim.
Fitou o Nunes ironicamente como para estudar na sua physionomia transtornada, o effeito das suas palavras.
N'esse momento, approximava-se um criado trazendo n'uma bandeja de prata, uma garrafa de crystal e dois calices.
-- Toma um copo d'este magnifico Madeira e ouve o resto, proseguiu o marquez sorridente.
O Nunes, por delicadeza, tocou apenas com os labios no magnifico nectar, ao passo que o marquez bebia um longo trago.
-- Dizia-te, pois, não te receiava ha muito tempo, e é verdade. Mas nem por isso deixei, como sabes, de ser o mesmo para ti, nem penso ainda hoje, apesar de tudo, em não continuar sendo bom príncipe.
O conselheiro fez um gesto de espanto, cravando curiosamente no marquez os seus olhos buliçosos de epyleptico.
-- Espantam-te as minhas palavras, hein?
Tens rasão, meu caro conselheiro. Passo porém a explical-as. Pensei que te devia deixar completamente á vontade, e sabes porquê? Por vingança, para ter mais tarde o prazer de provar-te a tua imbecilidade.
O Nunes pulou na cadeira, empallidecendo.
O marquez fingiu não dar por tal, continuando com indififerenca:
-- Conseguiste com os teus discursos intrujares meio mundo, todos me faziam elogios a teu respeito, as questões politicas complicavam-se, e eu cedi. Nota porém, embora isso te não seja agradável, que nenhuma fé tinha em ti. Conhecia-te de longa data e estava certo dos teus desvairamentos, filhos da tua vaidade e desiquilibrio. Como vês, não me enganei, e a tua ida ao Porto foi a prova mais cabal d'essa loucura. És uma creatura nociva, capaz até de arriscar o meu futuro, sei-o perfeitamente, mas por isso mesmo, me agradou o arriscado da partida. Como sou ainda mais audacioso que tu, o perigo seduz-me. É um sport como outro qualquer, como vês.
A physionomia do Nunes, reflectira toda a gama das expressões mais contradictorias.
Do espanto á colera, da colera á zombaria, e da zombaria ao temor. Agora, porém, parecia completamente aniquillado, e nem sequer ousou uma palavra de censura ou desculpa, ás extraordinarias arguições e zombarias do marquez.
Era bem o lacaio espesinhado e escarnecido, deante do senhor.
-- Devo então deixar o poder? interrogou a medo.
-- Estás louco. Não, nunca; já agora irás até ao fim, quero-o eu, exijo-o.
-- Posso pois!...
-- Fazer o que queiras: prender, processar, despachar para Timôr, suspender garantias, tudo n'uma palavra. Desde que me metti n'este novo sport, não pretendo abandonal-o ... Confesso-te assim a minha curiosidade em saber o que vaes fazer e como desembaraças a meada.
Um sorriso enigmatico contrahiu os grossos lábios do Nunes, e o rosto animou-se-lhe.
Que lhe importavam, em suma, as recreminações do marquez.
O que desejava elle, não era o poder! Pois ahi o tinha na mão, mais firme e estensivo que nunca. Poderia pois vingar-se amplamente, dar um terrível exemplo da sua omnipotência, fazer pagar bem caro todas as humilhações da véspera.
O sol ia já alto e a linda paisagem resplandecia intensamente.
O marquez levantára-se olhando com attenção a costa para os lados de Belem.
Um pequeno escaler parecia dirigir-se para bordo.
-- Ahi vem o Alva e o Negrão com as pêcegas. As dez horas levantamos ferro e seguimos para Setubal. Basta pois de politica...
-- Pois eu sigo para terra, disse o conselheiro. Reunirei esta noite o conselho e resolveremos o que ha de melhor a fazer.
-- Pois vai, é já tarde e não te convém lá muito o andares de dia pelas ruas, sobre tudo com este sol. Pobre conselheiro, quizeste o poder, pois ahi o tens. Soltou uma gargalhada zombeteira. Já reparaste n'uma cousa curiosa, proseguiu mudando de tom.
Vê lá. tu como são extraordinários os destinos das nações e a felicidade dos povos. O do nosso por exemplo, soffrendo todas as asneiras que a tua vaidade te sugere e eu consentindo- as por capricho. E será sempre assim meu caro, emquanto a estupidez humana consentir os privilegios de herança, as castas e religiões. E devemos nós ser assaz idiotas para nos não aproveitarmos das nossas regalias? Não... impossivel...
Estendeu-lhe a mão que o Nunes apertou com respeito.
-- Adeus, até amanhã.
O dictador desceu apressado a escada de bordo, entrou novamente no escaler e seguiu rapidamente em direcção á docka.
Sobre a ponte, o marquez dirigia o oculo para um outro barco; já esquecido do Nunes, tendo na physionomia rosada essa expressão de bonhomia e placidez que lhe era habitual.
Distinguira á ré, entre o Negrão e o Alva, umas sombrinhas azues e côr de rosa do seu conhecimento.
O barco avançava rapidamente cortando a agua por entre as numerosas embarcações ancoradas. A torre de Belem erguia-se finamente recortada, debroada de luz, como uma joia do passado glorioso, entre a realidade do presente. Ao fundo, sobre uma colina, o palácio d'Ajuda, sombrio e magestoso, apparecia isolado como a realeza de hoje; e trepando pelas encostas, amontoados, verdes, azues, côr de rosa, entre trechos de arvoredo, e estendendo-se indefinidamente em amphitheatro, resplandeciam as casas abrazadas de sol, dominadas por torres, zinnborios, mirantes, e pelas prosaicas e esguias chaminés das fabricas coroadas de fumo negro.
Sobre o yacht todo branco e immovel deslisavam lentamente bandos de gaivotas.
Do sol pairando já alto no espaço azul, parecia chover oiro miúdo sobre as montanhas sinuosas da outra banda.
XV
Logo pela manhã, apoz a noite tempestuosa da vespera, José de Gusman dirigira-se á estação do Rocio.
Meditára mais que dormira, e apenas uma possibilidade esperançosa lhe apparecia segura d'exito. Era preciso, segundo a sua opinião e a dos tres amigos, conquistarem á sua causa o coronel Alvaro de Luna.
Entre as suas mãos vigorosas, residia o futuro d'esse Portugal vilipendiado por uns miseráveis tiranetes, vaidosos e egoistas. Ainda havia certamente algum valor, algum sangue nobre, nas veias d'esse povo. As scenas da véspera demonstravam-o sobejamente.
Um homem corajoso, leal e energico, leval-o-hia facilmente ao triumpho. Onde estava porém esse homem?
Apenas Alvaro de Luna reunia as precisas qualidades para triumphar. Ou elle consentia, ou Portugal continuaria no seu marasmo culpavel e cobarde, que o tornava indiscutivelmente um povo de barbaros, cretino e inferior. Acceitaria o coronel essa missão de revolucionário audaz e preciso? Nenhuma esperança certamente o animava n'esse sentido; a sua obrigação porém, era mais uma vez abrir-lhe os olhos á verdade, mostrar-lhe o despenhadeiro por onde se precipitava, despedaçando a sua grande alma de cidadão. Talvez em face dos sangrentos acontecimentos da vespera, das prepotencias inauditas do execrando Nunes, elle se convencesse finalmente da missão alevantada e nobre que o destino lhe impunha.
Talvez que o entranhado amor pela patria, conseguisse desenraizar d'esse coração altivo, os preconceitos de casta e culpável dedicação a uma monarchia envilecida.
Talvez! ... talvez! ...
Eram quasi horas do comboio quando desembocou no largo de Camões.
A fachada elegante do theatro de D. Maria, parecia um templo grego beijado pelo sol matutino.
Á sua direita, em face do Martinho, um grupo de populares examinava os vidros despedaçados pelas balas, e os estragos causados pelo motim; no Suisso pouca gente se via ainda a essa hora.
Grupos compactos de policias, physionomias boçaes e atrevidas, espalhavam-se pelo largo; e sob o lindo portico do theatro, em vez de tunicas de linho, de cabellos coroados de rosas e myrthos, divisavam-se os uniformes odientos dos soldados da municipal, que ainda na véspera haviam fusilado um povo indefeso, apenas por defender tão justamente os seus direitos inatacáveis de homens livres.
Uma praga despresivel, escapou-se-lhe dos labios cerrados pela indignação.
Apressou o passo sem querer vêr.
Ao passar porém rente á livraria Tavares Cardoso, deparou com o vulto grosseiro e antipathico do Zagallo, levantado já a essa hora, preoccupado pela sua constante mania de grande homem em evidencia.
Entroncado e burguez, o corpo mal traduzido por um frak alvadio de mau corte, sobraçando a illustre pasta negra, mais propria para guardar papel sellado que paginas litterarias, alli permanecia encostado ao portal, olho alerta para os ephebos e scismando nas iguarias mal adubadas e grosseiras, prestes a engulir ao almoço, n'algum hotel de terceira ordem.
E era esse o primeiro escriptor portuguez, aquelle grotesco, falhado e miseravel, cuja cobardia moral o transformára em ridiculo, quando tinha obrigação e podia ser, um elemento altivo e civilisador do seu paiz, uma creatura admirada e respeitada por todos, cumprindo uma missão honesta e util.
Mas se tudo era identico em Portugal.
Estavam bem patentes esses dois symbolos visiveis da sua decadencia: -- o theatro normal, quartel de esbirros e Grandella de histriões, e o Zagallo -- um Verlaine na prosa, sem a grandeza do poeta degenerado, sem obra, sem utilidade, nem consideração.
Era tudo assim, tudo. Parecia uma fatalidade inconsciente, arrastando todos os homens de valor para a demência, para o egoísmo ganancioso, ou para uma indolencia criminosa.
E procurava elle luctar, por tal povo e com tal gente? ...
Não, era impossivel, mil vezes impossível, e de novo um desalento conhecido e mortal o penetrou.
Saccudindo porém os hombros n'um esticão energico, subiu os degraus da estação mutilada e desgraciosa e penetrou no ascensor.
«Cintra, pensou, seria a ultima caminhada, o ultimo esforço».
Ao chegar á linda villa, metteu-se n'uma tipoia, fazendo-se conduzir á Villa dos Chorões, habitada pelos Lunas.
A manhã estava formosa; uma d'essas manhãs limpidas e transparentes em que o sol d'entre o azul inalteravel, envolve toda a terra n'uma rede luminosa d'oiro palpitante. Era flagrante o contraste, entre, a serenidade d'essa natureza alegre e pujante de vida e côr, e a noite sombria da vespera, agitada por ódios e maldições, pelo som sêcco e frio das detonações, pela procissão dolorosa dos feridos e mortos atravez das ruas, uns em direcção aos hospitaes e os outros á morgue.
- E eram estas tristes meditações que lhe opprimiam o coração, ao percorrer a estrada frondosa e poeirenta, devisando atravez dos arvoredos, dos arabescos complicados das folhagens verdes, as casas da villa alvejando; e sobranceiro, altivo e elegante, o velho alcasar dos reis com as suas janellas rendilhadas, as immensas chaminés sujas, semelhantes a cantaros gigantescos cortados a meio e postos alli por um original capricho.
Ao longe, no ultimo plano, levemente pousado sobre a montanha verde escura, coroada de brisas diaphanas e ligeiras, o castello da Pena resplandecia ao sol com as suas torres, zimborios e cupulas, artisticamente amontoadas n'uma harmonia suave de contornos.
Ninho d'águia, ninho de amantes, parecia um castello de fadas ou de lenda. E logo n'um plano inferior, dominando um outro pincaro verde, um montão de muralhas mouriscas encimadas d'ameias debroadas de luz, alegrando a vista e despertando recordações. A estrada seguia sinuosa, assombreada pelos arvoredos marginaes, manchada de sombras recortadas como linguas doiradas, filtrando-se atravez das ramarias.
Em breve a ligeira victoria atravessou a pequena praça e entrou a galope na estrada dos Pisões.
Á direita, extendia-se a varzea verdejante, divisando-se ao fundo, grupos de arvores frondosas, prados viçosos d'um verde terno, sulcos de ribeiros marcados por chôpos esguios. Pombas brancas evolucionavam graciosamente no espaço e assobios zombeteiros de melros partiam das balseiras em flor. As montanhas cobertas de verdura erguiam-se abruptamente na frente, coroadas de ruinas e de enormes e alvos monolitos.
Um chalet moderno, assente n'uma eminencia, destoava da paysagem severa, com as recordações históricas por ella evocadas.
Á porta da villa, esperava-o já o coronel, attrahido pelas guiseiras das pilecas.
-- Que bom vento te traz por cá ? Escapaste da bernarda de hontem á noite, pelo que vejo. A Luiza quasi te julgou morto, sabes ?
-- Tudo quanto ha de mais são. Algumas pranchadas nas costas, e o risco de apanhar com um balasio. Mas tenho muito que falar comtigo e em cousas bem sérias, acredita.
-- Guardaremos isso para depois de almoço. São quasi horas e tua prima não gosta de esperar. Entra.
Transposta uma pequena ante-camara, penetraram na sala de jantar. Luiza de Luna, dava uma ultima vista de olhos á meza já posta, ageitando umas flores no centro de meza, de crystal e bronze.
-- Julgava-te morto ou pelo menos ferido, e olha que não brinco, disse ella para José Gusman dando-lhe a mão a beijar. Como és um revolucionario assanhado, calculei que andasses mettido em tudo isso. Pergunta ao Alvaro, se tivemos ou não o maior receio por ti; e se hoje não vens, tencionávamos procurar-te.
-- Vaso ruim não quebra... E as tias, como passam!
-- Óptimas, tive esta manhã carta da minha mãe, que anda toda preoccupada com os seus queijos, a sua manteiga e o pomar.
Mas o que dizes da nossa villa? Linda, não é?
-- Encantadora. Parece uma casa de noivos.
As duas janellas de sacada, da sala toda branca, davam sobre a parte da matta, trepando pela encosta da montanha como um batalhão, todo verde de gigantes; e atravez dos troncos vestidos de trepadeiras e eras, das folhagens copadas dos plantanos, das acacias, cyprestes e pinheiros, apercebiase ao longe toda a varzea de Collares; e á direita, mais escondido por uma aba do monte, distinguiam-se ainda os telhados e as collossaes chaminés do alcasar. O sol entrava a jorros, doirando os aparadores, os bufetes, as louças, projectando nas paredes, tropheus complicados, tremulos e luminosos.
Um intenso perfume agreste, embalsamava toda a casa innundada de luz, risonha como um vestido de noiva.
-- Toca a almoçar, disse alegremente Luiza.
O creado entrava n'esse momento trazendo uma travessa de ostras. Abancaram.
-- Prohibida a politica, percebes ? Agora só se trata de comer, temos tempo de sobra para preoccupações e enfados. Bem basta o que vai por Lisboa para nos trazer já bem inquietos e ainda bem que o Alvaro está longe de tudo isto.
José Gusman ao escutar Luiza, fixára-a impressionado pelo olhar intenso de ternura e receio, que ella lançara ao marido. Sentiu-se mordido repentinamente por um grande remorso.
Não viria elle perturbar ainda mais, essas existencias já tão attribuladas? Acaso não aparentavam elles uma serenidade falsa, quando as suas almas deviam soffrer intensamente do mesmo mal? Sim, era certo, e o seu intento era cruel. Seria peior que um algoz vindo accordar ingratidões e miserias, reabrir profundas feridas de amor proprio, ainda sangrentas.
A maior das injustiças, acabava de ferir profundamente a grande alma do coronel, cavalheiresca e generosa; e agora, quando elle procurava n'essa solidão, n'esse descanço, um esquecimento que não vinha, seria elle, o seu maior amigo, o perturbador impiedoso d'essa paz aparente ? «Não, mil vezes não» pensou, subitamente arrependido de ter vindo; mas uma vez alli, ser-lhe-hia impossivel recuar. Cumpriria a sua terrivel missão, custasse o que custasse.
Luiza e o marido comiam silenciosamente, servindo-o esta attenta e amorosa, com o melancholico olhar cravado na sua physiomia anciosa e triste.
Pelas janellas abertas de par em par, entrava um claro ruido de trilos e gorgeios; perfumes agrestes e balsamicos vinham trazidos pela brisa, impregnar o aposento simples e confortável.
O coronel porém, apesar do aviso de Luiza, voltara a interrogar o primo a respeito dos acontecimentos da vespera.
-- Então sempre é verdade o ter morrido gente ?
Ao som d'estas palavras, proferidas por Alvaro n'uma voz secca e penetrante, pareceu a José de Gusman que, apesar da alegria do dia e da floresta, dos trilos prolongados dos pássaros saltitando cá fora, de toda essa claridade intensa e jubilosa de paz e serenidade, uma névoa de tristeza envolvera repentinamente a pequena sala.
-- Cometteram-se as maiores barbaridades, matou-se, e feriu-se... Seriamente, sem dó nem contemplação de espécie alguma, respondeu Gusman, sombrio e triste.
-- Canalhas ! E o povo resistiu?
-- O mais que pôde e nobremente. Se da sua parte tivesse havido rancor e não unicamente um justo instincto de defeza, haveria a esta hora muito mais mortes a lamentar.
-- Está tudo perdido ... tudo. Não ha vergonha de especie alguma, nem criterio sequer. São todos uma corja de ambiciosos cobardes e nullos... uma canalha...
Alvaro mal comia, expiado pelos olhos de Luiza que fazia signaes a José para lhe não responder. Um pequeno tremor nervoso agitava-lhe as mãos, o olhar tornara-se duro e o seu rosto empallidecia. Bem fiz eu que me retirei a tempo do meio d'essa gente, proseguiu. A lucta honesta, frente a frente, como deve ser, torna-se impossivel. Para luctar é preciso ter crença n'um ideial, ora eu perdi-o por completo desde ha muito. A monarchia aviltou-se e a republica não me inspira confiança, sobre tudo por agora, seria peior que tudo, seria a anarchia, o crime o roubo, o fim do fim. Além d'isso nasci monarchico, dediquei ao rei toda a minha actividade e todo o meu amor. Se tive a ingratidão como recompensa é natural, pois nem outra cousa podia esperar. É proverbial na nossa familia tal recompensa. Com outro chefe poderia ser grande a nossa terra ou egual aos demais paizes, com este, é o que é actualmente, uma terra de negros peior que uma colonia.
Gusman bebia-lhe as palavras dos labios, olhava-o com admiração, e Luiza esquecendo a sua prohibição de ainda ha pouco, escutava-o egualmente sem ousar interrompel-o. Quantas decepções não experimentára esse homem de aço para que tal indifferença houvesse substituido o seu antigo enthusiasmo por tudo quanto era portuguez.
Ahi estava mais um inutilisado pelo paço, uma nova victima dos sórdidos manejos do marquez da Bacalhôa aviltando tudo ao seu contacto.
Era talvez a agonia do ultimo nobre portuguez; com elle morreriam definitivamente os Albuquerques, os Castros e os Gamas.
«Se elle quizesse! se elle quizesse!» pensava o anarchista. Vamos até lá dentro, disse-lhe o coronel levantando-se. Tomaremos o café no meu escriptorio e fumarás um charuto.
Uma vez lá, Gusman encostou-se a uma cadeira de balouço emquanto o coronel se extendia na chaise-longue de oleado.
-- Nunca me vistes tão expansivo, hein?
murmurou elle offerecendo-lhe um havano...
Foram os acontecimentos de hontem á noite que me puzeram n'este estado d'excitação.
Mas diz lá o que te traz cá, embora eu pense advinhal-o e percas o teu tempo.
-- Sei-o perfeitamente. Bastava-me para isso conhecer-te como te conheço. Em todo O caso, visto obedecer a um mandato e não a uma inspiração pessoal, terás a pachorra de ouvir-me?
Como o sol entrando pela janella os cegasse com a sua luz vibrante, José fez descer um grande store escuro, attenuando assina a demasiada claridade. O escriptorio ficou logo envolto n'uma doce penumbra, n'um recolhimento mais intimo e confortavel. Sobre o buffete de pau preto, vasto e pesado, servindo de secretária, brilhava a famosa edição do D. Quixote e algumas folhas de papel enegrecidas pela letra miúda e firme do coronel, afirmavam o seu trabalho constante.
-- É escusado, proseguiu Gusman, exporte a situação anormal da nossa terra, a desmoralisação, os atropellos, os crimes que a esta hora n'ella se commettem, pois tu, melhor que ninguem, os conheces. Caminhamos para uma ruina inevitavel e estamos servindo de chacota, pela nossa miseravel conducta, a todos os povos cultos. Os partidos monarchicos estão desacreditados, já a ninguem inspiram confiança e o maior culpado é o rei.
-- E então? interrogou o coronel levantando-se a meio na chaise-longue.
-- Só a revolução nos poderá salvar.
Alvaro soltou uma gargalhada ironica, macabra, retorquindo:
-- E com quem contas, sim, com quem contas?
-- Com o paiz, com o povo, com os republicanos sobre tudo.
-- Idiota! E julgas tu esses homens capazes de algum acto energico, suppões-lhes tu por acaso a coragem bastante para triumphar, qualidades necessárias para administrar e governar? Estás doido, meu pobre José. Toda essa tropa não passa de um grupo de vaidosos, ávidos de popularidade e successo, incapazes d'um sacrificio ou do menor acto de civismo. E ousam elles propôr-me pela tua bocca, use da minha popularidade, atraiçoe os meus juramentos, as minhas crenças, o meu nome de fidalgo, e me ponha á sua frente para combater um rei, embora esse rei me não mereça hoje amor ou respeito. A outro que não foras tu responder-lhe-hia pondo-o fora a pontapés; a ti, louco visionário, mas bom e sincero, perdôo-te.
-- E a tua terra, este Portugal que tanto estimas, insistiu José n'uma ultima tentativa, vel-o-has sossobrar como o costado podre d'um navio desconjuntado e gemendo?
-- Acaso o salvaria eu com essa gente?
Não, seria peior, um maior desastre, ainda mesmo triumphando. Portugal agonisará breve, com a sua monarchia a amortalhal-o.
Como todos os paizes desmoralisados e decadentes, vive hoje apenas das tradicções, dos seus reis; arrancar-lh'as será matal-o.
Sabes que mais, no meio de tudo isto dá-me vontade de morrer. As vezes durmo tranquillamente algumas horas, alli, n'aquella chaise-longue; é o melhor momento o mais tranquillo. Quando accordo, sinto-me invadido por uma tristeza sem fim. Deve ser tão bom o não sentir nada, o não viver...
A physionomia de Alvaro, ao proferir estas palavras, adquirira uma expressão estranha de angustia. Os seus olhos azues humedecidos, pareciam os d'uma creança, tão translucidos e sinceros se haviam tornado.
Pelas faces pallidas e angulosas, baixava-lhe uma suavidade de martyr, e todas as linhas do seu rosto enérgico de batalhador incansavel, se suavisavam como por encanto.
Não era por certo n'esse momento, o heroe postiço, indififerente, orgulhoso e zombeteiro, conhecido do publico e das ruas nem mesmo o cruel militar que tanto sangue derramara. Era um outro homem, bem differente e mais humano, o que se revelava agora aos olhos do revolucionario e que elle advinhára ha tanto, n'essa mascara de rigidez e indiferentismo. Era a creatura apreciavel, um coração puro e sincero batendo dentro d'essa farda bordada de condecorações vaidosas; era o excellente marido, o homem intimo, o homem de familia, beijando cada dia com nova devoção, a mão da sua fiel e incomparavel companheira, fazendo sonetos d'um lyrismo infantil nas horas vagas, ou anotando com superior inteligência o livro da sua predilecção; -- o D. Quixote -- do qual herdara a alma e a illusão.
E a admiração de José de Gusman pelo primo, accrescia ao contemplal-o, lamentando do fundo d'alma e n'um frémito de indignação, a perda inevitavel, não só para a sua terra como para a humanidade inteira, d'essa creatura superior.
O olhar do coronel pousára-se melancholicamente sobre uma magnifica photographia collocada a meio da secretária, e Gusman reconheceu com desgosto, a figura imponente, formosa e provocante, da bella marqueza da Bacalhôa. Uma dedicatoria carinhosa cortava o cartão de canto a canto, d'uma letra ingleza clara e firme.
Então, todos os boatos que corriam a respeito da influencia mysteriosa da marqueza sobre o coronel, lhe appareceram mais nitidos e verosimis. Uma nova angustia se apoderou d'elle.
Alvaro estava duplamente perdido. Além das tradicções de nobreza, do preconceito religioso e do intransigente realismo a asphyxiarem n'elle todas as ideias de humanidade e progresso, uma outra algema mais possante o prenderia para sempre a esse throno caduco e torpe, -- um amor poderoso e fatal, -- por essa incarnação perigosa da hereditariedade, fanatismo hypochrita e reaccionarismo criminoso. Surgiu-lhe no peito uma grande indignação, e incapaz de a dominar gritou para Alvaro:
-- Tem cautella com a marqueza, Alvaro; não sejas dos nossos, deixa morrer Portugal, muito embora, mas por ti, pelo teu grande nome, pelo teu passado heroico te peço, não te percas por essa creatura que te não merece.
Teve porém que recuar deante da expressão colerica de Alvaro avançando para elle de braço erguido.
-- Nem uma palavra mais desgraçado... ou...
Durou porém apenas um minuto a sua exaltação, e Gusman arrependido das suas palavras, conservou-se por um instante cabisbaixo e silencioso.
-- Perdôa-me, meu querido Alvaro, é que... sabes... nem eu mesmo te posso explicar o que sinto... sim... Balbuciava sem poder encontrar palavras para explicar o seu estado de alma e a exaltação e revolta que n'elle ferviam como lava ardente.
-- Já acabou... está bem, não vale a pena falar mais em tal, és um doido desculpo-te, retorquiu o coronel com calma.
Felizmente que Luiza veiu pôr termo a esta situação difficil, annunciando a carruagem.
-- Adeus, disse o coronel, jantas ou voltas?
-- Volto.
-- Pois eu não tenho tempo a perder, é já tarde e preciso estar na Bacalhôa antes das quatro. Vem commigo, deixar-te-hei na estacão.
-- Acceito.
Despediram-se de Luiza e subindo para a carruagem.
Ao entrar novamente no wagon, de regresso a Lisboa, apoderou-se de Gusman uma grande tristeza.
«Tudo perdido, tudo» murmurou deixando-se cahir desalentado sobre o assento da carruagem.
Com a intolerancia de Alvaro, adeus revolução, ideial, liberdade. O que mais o angustiava era a certeza absoluta da perda irremediavel do primo em quem começava a descobrir um abatimento profundo e uma tristeza persistente.
No melancholico rosto de Luiza mais elle ainda advinhara essa verdade. Alvaro já não era o antigo cavaqueador cheio de verve e alegria, o caustico commentador do D. Quixote, o enthusiasta amigo da patria, o sonhador de glorias e triumphos.
O seu novo cargo já nenhum amor lhe merecia, e se ainda voltava á Bacalhôa, era por causa d'ella, da marqueza, d'essa creatura perturbadora da paz de dois grandes corações. O Neves morrera ha um mez, quasi ignorado, pranteado apenas pelos raros amigos que não haviam esquecido os seus reaes méritos e valor incontestavel.
Fora a principio um grande liberal, um inimigo acerbo do preconceito e do fanatismo, e acabára escravo d'um amor sem esperança, enlouquecido por um bafejo de vaidade, abdicando toda a dignidade pessoal e princípios, por um symbolo vivo d'esse mesmo reaccionarismo e religião por elle tão combatidos.
Qual seria o fim de Alvaro trilhando identicas pisadas, egual caminho de cegueira e vaidade!
Uma unica esperança atenuava, ainda que frouxamente, a sua preocupação e receio. A profunda estima do coronel por Luiza, estima respeitosa e nunca desmentida, e o immenso carinho pela familia.
Quem sabe se a desillusão, toda essa sociedade banal e intrigante entre a qual vivia, não acabaria por enojal-o, operando sobre elle uma reacção salutar?
Quem o poderia advinhar? Quem?...
Não sendo assim, seria certo o triumpho do odioso Nunes e como consequencia o do ignobil marquez, cada vez mais cynico, egoista e impudente.
-- Paiz de negros! Corja ! vociferou elle.
O comboio posera-se em marcha, e o castello da Pena lá ao longe, brilhava orgulhoso á luz do sol, sob o seu pedestal eterno de verdura, encimado do pavilhão real -- cor de sangue.
XVI
Eram cinco horas da tarde quando Gusman entrou no Martinho em busca de Fabricio.
Dois dias haviam decorrido depois da fatal noite da barricada e já o café retomára o aspecto pacato dos mais dias. Apenas algumas mezas mais ordinárias haviam substituido as quebradas, e os grossos vidros das portas apresentavam largas fracturas feitas pelas balas. No tecto e nas cornijas viam-se egualmente signaes de outras balas, evidentemente mal dirigidas.
Os mesmos personagens de todos os dias, em torno das banaes mezas de mogno, vasias de consummações. Uma ou outra carapinhada, sorvida lentamente pelas respectivas palhinhas, por freguezes extraordinarios, obrigava algum criado, para os vir servir, a levantar-se lentamente do seu poiso habitual, junto do balcão, onde o caixeiro dormitava a maior parte do dia, com a cabeça inclinada repousando entre as mãos cerradas.
Uma atmosphera carregada de tédio, soma e pesada, adormecia o café e os consummidores.
A uma meza, á direita da entrada, o Zagallo em face d'uma porção de linguados que tirara da volumosa pasta negra dormindo a seu lado sobre o marmore, exhibia a grotesca figura aburguezada e vulgar, convicto do seu talento de escriptor consagrado, penna suspensa entre os dedos obscenos e grosseiros, cabeça voltada para o largo, esperando a inspiração voadora dimanada sem duvida dos predios fronteiriços e das arvores rachiticas do Rocio.
Em frente, um grupo ruidoso de políticos, discutia os ultimos actos do Nunes, entre murros mansos no ar, gestos em circulo e nuvens de perdigotos alados. Aventava cada um a sua opinião, fortalecida por exemplos e idéas sociaes. Citava-se a camara dos lords, dos communs, a violencia de Clemenceau, a Duma e as grèves do sul da França.
O Barros e o Moreirinha lá estavam no seu posto, ouvindo sem discutir, n'uma passividade de carneiros broncos. Apenas de tempos a tempos lhes descerrava os labios um sorriso de descrença ou de approvação.
Mais além, um circulo de estudantes, entre os quaes se salientava a voz do Tiberio, o decano e chronico anarchista da faculdade, commentavam ainda a greve furada vergonhosamente, o indulto e a batalha da noite de 18, em que a ferocidade da policia ultrapassara as raias da mais elementar prudencia e humanidade. A um canto, os dois Secias, inseparaveis e insignificantes, combinavam qualquer tramoia rendosa de algumas coroas. Como a litteratura lhes deixasse pouco e o phosphoro que outr'ora os allumiára se extinguira, haviam abandonado as lettras pelo mister mais proveitoso das pequenas industrias. Dizia-se até ter ido um d'elles offerecer-se como bufo ao conselheiro Nunes. E firmava-se esta versão, na súbita camaradagem que entre elle se estabelecera com o Barros, conhecido pela sua estúpida e servil vassalagem perante os marechaes triumphantes do Nunismo.
Gusman, ao atravessar o café, logo divisara á ultima meza do fundo, o dr. Fabricio conversando com o critico Tibaldo, e dois medicos seus amigos, o Ramada e o Cipreste. Dirigiu-se immediatamente para o grupo.
-- Cuidado, que elle hoje traz dynamite, observou logo o Tibaldo, piadista chronico e chalaceador infatigavel.
-- Qual! traz mas é alguma pega no bolso, advertiu o Ramada, e é francesa.
Mas o Gusman irritou-se. Como podiam elles estar sempre ás piadas, mesmo nas occasiões mais graves da vida. Que diabo, era preciso interessarem-se um pouco mais pelas cousas sérias, pela situação miserável do paiz.
-- Aos olhos do mundo, affirmou elle com convicção, não passamos de turcos sem civilisação nem coragem. Ao menos esses sabem batalhar, morrer.
-- Podera! se o Mahomet lhes guarda boas pêcegas para depois da morte, como não haviam elles de a desejar, disse o Tibaldo.
Soltaram todos uma gargalhada e até o proprio Gusman sorriu sem coragem de se zangar.
-- Varinas, meu caro, varinas é o que tu precisas, bradou elle.
O fraco conhecido de Tibaldo, eram as varinas. «A mais perfeita raça femeeira de Portugal, dizia. Depois eram engraçadas, francamente interesseiras, tendo além d'isso a vantagem de falar pouco e cheirarem a marisco».
As gargalhadas rebobravam; e as graças, as facecias e as piadas do costume choviam como graniso sobre todos. Era sempre assim. Nenhum assumpto sério se podia tractar n'essa meza de má lingua, critica desapiedada e constante. E se algum mais exaltado ou nervoso ia á serra, estava perdido irremediavelmente. Passava porém n'este momento junto do grupo, o Manuel das Monicas sobraçando uma grossa papelada, seguindo para o fundo do café a encontrar-se com o bando chamado -- os do Normal. Continuava a sêr o eterno theatro-mano. Passava a vida escrevendo peças, ideando magicas, revistas, perseguido pela raiva theatral, em guerra aberta contra os emprezarios que lh'as não representavam por acinte, inveja ou ódio, dizia.
Não era todavia irritante, como o seu outro camarada, soffrendo de egual doença, -- o Corujeira. Com a áspera guedelha negra cahida sobre a fronte, as lunetas, a barba emaranhada, e o desalinho do vestuario, o Monicas inspirava apenas caridade e sympathia pela sua fobia, mas não irritação. Afora o theatro e a preocupação dos inventos, era o melhor dos rapazes e o mais inoffensivo.
Agora, porém, com a nova reforma do Normal, inspirada pelo azedume feroz do dr. Alcides contra os comicos do theatro, desde o dia em que elles haviam ousado recusar-lhe a ultima peça, as esperanças idealistas do Manuel haviam-lhe aggravado a chronica doença.
O Alcides era para elle, n'esse momento, o protector, o apostolo das lettras, ó grande homem do theatro; motivo porque o não largava um só minuto, escutando attento as suas idéas, theorias, programma futuro para a nova gerência, e até mesmo a sua maneira de ver as coisas de theatro: movimento dos personagens, duração das scenas e actos, maneira de dialogar; apesar do completo desaccordo em que sempre estavam acerca de taes assumptos.
O dr. Alcides tinha porém a respeitabilidade da edade, da erudição, e sobre tudo do latim, de que era profundo conhecedor; era doutor e falava sempre com auctoridade não admittindo réplica nem controversia, mastigando o charuto emquanto discursava, ou cofiando a longa barba grisalha, com o esquisito chapéu molle em equilíbrio no alto da veneranda cabeça de apostolo das lettras.
Ainda bem o Monicas se não affastára, já soavam novas gargalhadas á meza do Tibaldo.
Como os Secias e mais alguns poetas ou jornalistas imberbes, se approximassem do Zagallo, o Tibaldo dissera logo uma das suas, apontando-o:
-- Parece uma gallinha choca com os pintos em torno.
-- Todos, porém, de differentes galos, ajuntara o Ramada, sem perder occasião de metter uma das suas.
Acercára-se, porém, da meza um novo camarada. Era o José Raposo, intimo de Gusman, cujo fraco consistia na elegância exterior e na mania das grandezas e do fausto.
-- O que tomam vocês, rapazes, exclamou apoz trocados os cumprimentos do estylo. Hoje estou rico e preciso estoirar a massa o mais breve possivel. Bateu as palmas.
-- Traz Madeira velho e Vermouth Turino, disse para o creado espantado com o desusado pedido.
Encaixara o monoculo no olho e lançava em torno olhares importantes de ricaço superior.
Ia partir em breve para Londres, Paris, comprar um automovel ou um yacht, não sabia ainda ao certo.
Antes porém de partir, deslumbraria Lisboa com duas ou tres loucuras de truz... d'arromba ...
O Ramada comtudo interrompera-o a meio do discurso, perguntando-lhe, se o automóvel e o futuro yacht seriam de cartão.
Furioso, lançou-lhe um olhar impertinente e desprezador, mas logo se conteve enchendo os copos e mudando de assumpto.
N'isto, irromperam gritos e pragas da meza dos políticos.
-- Um desaforo!
-- Corja de bandalhos!
-- Todos a mesma canalha!
O Barros levantára-se colerico esmurrando o ar com grandes gestos, e o Moreirinha, por prudencia, logo se escapara com um sorriso velhaco nos labios.
A causa de todo o ruido eram as investidas violentas do Lino Vellozo, o director da Batalha, jornal republicano, contra o Nunes e o marquez da Bacalhôa.
Fez-se um silencio repentino em todas as demais mezas do café e os habitués do pequeno recinto ao lado do balcão, vieram junto á arcada espreitar a medo a intensa gritaria.
Pouco depois ouvia-se o Tibalde dizer para o Gusman -- E queres tu com gente semelhante, que alguem sério e não sendo estupido, se preoccupe com os negocios publicos d'um semelhante paiz. Acaso não vês tu n'aquella tropa, o symbolo mais evidente do portuguez actual. Falam, esbravejam, escrevem artigos politicos, melhor ou peior amanhados, ordinariamente maçudos, malcreados, sem interesse, vivem apenas de vaidade tendo por mira a ganância, incapazes pela cobardia de qualquer acto energico; e queres tu, repito, que elles me preoccupem ou interessem?
Concluiu ironico:
-- Historias meu caro... historias. Olha para o Zagalo, alli tens um exemplo d'outro genero, outro symbolo, se assim o queres. D'antes tinha talento, feitio, e até um certo caracter. Escrevia com uma lucidez admirável, era o nosso primeiro escriptor, e como tal lhe competia dirigir, ajudar com a sua pena, a evolução do paiz, educal-o, e encaminhal-o? Pois bem, que fez elle? Nada, absolutamente nada. Casou rico, foi para a provincia tratar das berças; regressou ao que era de origem, um burguez avaro e invejoso; e quando hoje escreve algum artigo, é sempre uma banalidade e o peior de tudo é que a escreve por interesse e sem convicção. D'ahi a sua marcada inferioridade de dia para dia.
-- E entretanto cheio de talento! observou Fabricio.
-- Sim, mas inutil, proseguiu o Tibaldo crusando a perna e ajustando o monoculo que lhe cahira no calor da discussão.
-- E é tudo assim cá em Portugal. Interesse apenas, uma indolencia marcada de negros, e nem o mais leve vislumbre de sinceridade. A politica já vocês sabem o que é, agora olhem para as questões de Arte.
O theatro por exemplo. Reparem n'aquella meza e digam-me quem veêm. Um grupo de typos que pretendem dirigir o theatro, segundo dizem, afim de o tornar uma escola de educação e uma porta aberta para todos aquelles cujas aptidões sejam reconhecidas e dignas de protecção. Acabar com os syndicatos, proteccionismos, gerencias de actores e fiscalisações partidarias e mais abusos.
O programma é lindo, mas reparem vocês para os executores e digam-me se é possível o inspirarem-nos a menor confiança.
O dr. Alcides, é primeiro que tudo um despeitado. Não lhe reconheceram o talento nem as aptidões theatraes que elle imagina ter, e metteu-se na lucta não por interesse meramente litterario, mas unicamente por espirito de vingança. Os outros que o ajudam são duas excelentes pessoas, quero crer, mas absolutamente alheias á arte theatral.
Quem resta pois? Actores e auctores. De actores apenas tem nome, vegetando só de uma certa aptidão caixeira! Não sabem declamar, gesticular, mover-se; incapazes da menor creação original e fazendo tudo por decalques grotescos, copias pretenciosas.
Restam os auctores. Os que tem talento natural, se podem chanlar escriptores de theatro, como por exemplo o Marcolino, esses são infelizmente preguiçosos e ignorantes.
Escrevem atabalhoadamente as peças sobre o joelho e unicamente para receberem os reles cobres de que necessitam. Depois, mutilam-as, amoldam-as á vontade dos actores e á sua reconhecida inferiordade. São portanto servis e nada sinceros. Ora sem sinceridade meus caros amigos, nada se pode fazer de bom; nem um par de botas, nem um drama.
Todos concordaram com a opinião do Tibaldo. Era triste, mas era assim mesmo.
-- Por cá tudo se plagia. Artigos criticos, dramas e comedias e até a politica, como diz o Nunes no seu programma de governar á ingleza, ajuntou o Fabricio.
-- Romance a fasciculo que os editores compram a pezo ordinariamente, e sob condicção de serem historicos, artigos nos jornaes de elogio ou ataque, segundo as ideias, conveniencias ou humor do director do respectivo jornal e politica de arranjinhos, cobarde, sordida e ronceira. Segue-se que nem temos criticos, nem homens de lettras, nem jornalistas, nem politicos.
-- Dá vontade de emigrar para sempre, declarou Gusman com desprezo; e como visse o Mandas, o auctor do theatro mais em voga e um dos trunfos de D. Maria, proseguiu: -- Aquelle é que a sabe toda. Cosinha elle proprio os reclames, implora nas redacções o artigo de elogio, explora habilmente o escandalo e arranja colocação para as amantes. Não teve mocidade, nasceu velhinho, mas é o mais sabido videiro d'estes reinos.
-- Safa! exclamou o Ramada, hoje aqui ninguem escapa, é uma chacina...
O Tibaldo porém levantára-se da meza.
Eram seis horas já, e dia de ir jantar a Bemíica.
-- Fiquem com Deus, rapazes que eu cá vou-me safando. Por hoje já dei bastante á taramella, parece-me; e affastou-se seguido pelo dr. Ramada e pelo Cipreste que, não tendo tido occasião de falar nas amantes -- seu assumpto predilecto, -- se conservára quasi sempre callado.
Os gaiatos entravam n'esse momento apregoando o Pais e o Noticias de Lisboa.
Gusman e Fabricio sahiram egualmente em direcção da Avenida.
Lá, o Raposo abandonou-os. Tinha que ir visitar uma pêcega a casa da D. Maria de Patriarchal.
-- Então sempre é para esta noite? perguntou Gusman ao amigo.
-- Sim, á uma e meia em minha casa.
Visto a recusa de teu primo Alvaro é preciso combinarmos alguma cousa. Seguiram silenciosos por debaixo dos copados arvoredos, ladeando os canteiros verdes, floridos.
Nuvens de pardaes chilreavam esvoaçando em torno das ramagens, alguns passeantes descançavam nos bancos, tomando o fresco. Carruagens e automóveis crusavam-se na rua central, coroados de gazes de côr; transparentes efluctuantes, como auriflamas.
A tarde quente, d'uma serenidade incomparável, decahia lentamente envolta n'um crepusculo purpureo.
XVII
Em torno á meza, na sala de jantar do dr. Fabricio, os quatro amigos discutiam animadamente. A noticia da recusa do coronel Luna, trazida de Cintra pelo José Gusman, lançára-os n'uma grande consternação, embora ella fosse de prever.
Era o aniquilamento de todas as suas esperanças.
Sem um chefe com o prestigio do coronel todo e qualquer movimento revolucionario seria inutil.
Era infantil contarem com os republicanos, não tinham chefes, nem energia, nem convicção.
O mais exaltado de todos era o poeta Felix. Segundo elle, havia apenas um meio unico de obstar a esse pavoroso retrocesso ao despotismo: -- a morte do Nunes.
Procurar uma occasião e assassinal-o sem a menor hesitação. Por muito menos se praticavam na Rússia summarias execuções, identicas á que elle propunha.
Seria um acto de justiça, mais que justificado, preciso até. O dr. Aurelio appoiava essa ideia sob condição necessaria, que d'essa morte resultasse alguma cousa de util para o paiz. Quem era o verdadeiro culpado? Seria o Nunes ou o patife do Bacalhôa, seu protector e socio? Qual dos dois merecia a morte?
-- Ambos, murmurou sombriamente Gusman. Segundo a minha opinião o marquez é o principal criminoso. Mortos os dois bastará uma pouca de energia para se obter o triumpho.
-- E os herdeiros, os que cá ficam, todos esses ambiciosos do poder? Quaes as tropas e a gente para lhe oppormos? interrogou Fabricio. Não teem elles a municipal e quasi todo o exercito? Lembra-te que con Nunes ou sem Nunes, o que elles são primeiro que tudo é monarchicos, conservadores, burguezes, receiosos pelas suas fortunas e honrarias. Cuidas acaso, não viria logo um Bacalhoasinho, mais soma e mais beato, disputar-nos o campo? Não encontraria elle, por ventura, entre os marechaes dos seus partidos, outros Nunes? Illusão, meu caro, para combater é preciso ter atraz de si gente sincera e sobre tudo convicta.
-- E para que serve a dynamite?
-- Para muito, bem sei. Com ella, um grupo de homens decididos, desfaz-se d'um exercito. Mas esse grupo de homens onde está? Não tentámos já por ventura fundar uma associação secreta como a de Paris?
Não escrevemos nós aos nossos antigos camaradas e não recebemos cartas d'elles promettendo-nos todo o appoio, assim como o das outras lojas da Belgica e de Paris? Pois bem, a quem encontrámos nós com as condições capazes de nos inspirar confiança?
Ninguem. Somos os quatro unicamente capazes de alguma cousa, e francamente acho bem pouca cousa.
-- Mas poderemos encontrar mais gente, é uma questão de tempo e de perseverança, advertiu Felix.
-- De tempo, eis a questão, concluiu Fabrício esvasiando um copo de cerveja.
Levantou-se e foi abrir as janellas. Fazia um calor suflfocante e a noite d'uma grande serenidade, envolvia mysteriosamente a grande praça, rodeada de casaria silenciosa, com o seu vasto jardim adormecido, onde o luar brilhante punha largas manchas prateadas.
Era muito tarde já e apenas se ouvia, perturbando o silencio, o murmurio longinquo da agua cahindo no lago. Uma ou carruagem passava de tempos a tempos tando a calçada, fazendo estreisas.
-- Mas diz emfim qual é a tua idéa; se devemos desanimar por completo ou continuar a lucta
-- E quem fala em desanimar? Eu o que penso é na melhor maneira de conseguirmos fim, sem precipitações nem riscos inuteis. Tenho pensado muito n'estes ultimos dias e cheguei a uma conclusão...
Acercaram-se todos da meza, impacientes pela opinião de Fabrício. Era este, por assim dizer, o chefe d'esse resumido grupo de libertarios, todos bons e sinceros, mas arrebatados e illudidos. Capazes de tudo arriscarem pela sua idéa, mas egualmente inexperientes e pouco conhecedores do meio em que viviam. Apenas o bom senso de Fabricio os dirigia com a sua experiência e auctoridade.
-- Fumem e bebam para se não maçarem muito e digam-me depois se concordam com o meu plano de combate.
Fabricio accendeu um charuto e proseguiu:
-- Imaginem vocês, estarem n'uma grande sala de conferencias assistindo a uma palestra anarchista. Fez uma pequena pausa, olhando-os fixamente. O que pretendemos nós, continuou, implantar em Portugal? O anarchismo ou o socialismo, certamente que não, pois seria um disparate pensal-o sequer. O que queremos, pois? É libertar-nos, primeiro que tudo, d'um despotismo charlatanesco e grosseiro, aviltante para todos, e concorrermos com todos os nossos esforços para uma forma de governo mais liberal, sendo, por assim dizer, um passo avante para a nossa causa. Essa fórma transitória de governo é a republica. Todos vocês conhecem os seus defeitos principaes, logo não preciso repetil-os. Melhor que a monarchia por acabar com a hereditariedade dos reis, não deixa comtudo de ser uma forma antiquada, repressiva, e principalmente burgueza. A republica é o governo dilecto do banqueiro, do commerciante e do industrial, e com isto digo tudo. Tem padres, tem militares, juizes, syndicatos, trusts, etc... Precisamos, porém, apesar dos seus multiplos defeitos, appressal-a e supportal-a depois por algum tempo. Quaes os meios actuaes de que dispomos para a fazer triumphar? Um único, meus amigos, a evolução se acaso a força se não puder empregar.
-- Mas a evolução está feita! interrompeu Felix.
-- Nem sequer chegou a meio, por cá, retorquiu Fabricio. Lembra-te que entre os cinco milhões de portuguezes apenas uma quinta parte sabe ler e essa mesma mal, soletra. É pois bem lamentavel o triste estado intellectual do nosso povo, quasi inferior ao negro em muitas provincias. É preciso capacitarem-se d'uma verdade, é que sem sermos secundados pela Hespanha nada podemos fazer. Historicamente marchámos sempre a par e terá de ser assim no futuro. Ora estando a Hespanha quasi como nós, é necessário, antes de tudo, abrir os olhos a todo este povo ignorante e imbecil, sobre o qual não pesaram debalde dezoito séculos de escravidão e fanatismo religioso. Resulta pois que só o tempo e um grande impulso por parte dos escriptores revolucionários, poderá fazer esse milagre. Assim é que, ao passo que nós fôrmos crescendo em civilisação, a Hespanha não poderá deixar de seguir o mesmo impulso, e de unir futuramente os seus destinos ao nosso, visto nada justificar as absurdas fronteiras que nos separam.
Uma vez unidos, formaremos um grande Estado independente e livre. A esse tempo a França, já socialista e meio ganha pelo anarchismo, não hezitará em demolir as suas fronteiras em nome da fraternidade dos povos. A ella se seguirá uma nova Italia de Mazini, sem Vaticano, nem Quirinal, nem concilios, e todos os mais povos e reinos latinos se juntarão irmãmente no mesmo accordo tácito de solidariedade universal. Será este o resurgimento da raça latina, novamente triumphante pela intellectualidade, não temendo mais o confronto com as fortes raças do norte que hoje ameaçam esmagal-a. N'essa nova pátria, immensa e sábia, apenas reinará a paz e a bondade.
N'ella serão supprimidas as penitenciarias, as cathedraes, os quarteis, os parlamentos e os tribunaes, por inuteis e apocriphos.
Afundar-se-hão no pó do esquecimento todas essas espectraes reliquias do velho mundo.
O grande dogma da nova religião constará de duas palavras apenas: «Devêr e Caridade» e o culto entranhado das novas gerações, será somente o amor do bello na sua mais ampla significação. A familia convencional desapparecerá egualmente, substituida pela só acceitavel e unica, a universal, e com ella a herança inexplicavel e perigosa. O amor será livre, como livres serão todos os misteres e affeições, por isso mesmo mais solidas, sinceras e perduráveis.
As creanças pertencerão á communa, livres e eguaes na educação e na familia. Eis o ideial para o qual temos de caminhar com confiança. Os meios vou dizel-os.
Fez-se uma longa pausa. Encheram-se todos os copos.
-- Ao Fabricio! bradou o Felix enthusiasmado esvasiando o seu. Todos o imitaram.
-- Tenho fome, exclamou Gusman.
-- Pois come, tens alli no aparador pão e carnes frias. Sabem vocês que já são.
tres e meia, disse elle olhando o relogio.
-- Então, continua lá emquanto nós comemos, como ficas em casa, não te faltará o tempo.
O Fabricio proseguiu com a sua bella voz de orador, persuasiva e vibrante. Nem um murmurio se ouvia, tal era a attenção com que todos o escutavam, e nos momentos de silencio, nas curtas pausas decorridas entre a elaboração d'uma nova idéa, sentia-se ao longe o ruido claro da agua cahindo em fio no lago do jardim. Um perfume quente a magnolias, a seiva, a plantas germinando em plena maturação, entrava pelas largas janellas de sacada. Todos se haviam servido já, porém os pratos continuavam cheios defronte dos convivas, ninguém comia, escutavam.
A voz dôce de Fabricio, vibrava novamente, mascula e persuasiva:
-- Se por acaso a morte do Nunes e da Bacalhôa fossem efficazes, significassem o triumpho evidente da nossa causa, seria eu não só o primeiro a admittii-as como até a executal-as, embora todo o homicidio repugne á nossa doutrina de paz e humanidade.
Evidentemente, seria apenas destruir duas existencias nefastas, prejudiciaes, anachronicas, em beneficio de milhares de outras, indignamente opprimidas, escravisadas, e embrutecidas por esses dois symbolos do reaccionarismo do passado. Acho, porém, inutil e improfícuo esse meio extremo; portanto injustificavel seria o lançar mão d'elle.
Atraz d'um Bacalhôa viria outro, e existindo estes, com elles existirão necessariamente outros Nunes. Além d'isso meios violentos são apenas perdoáveis em paizes onde elles nascem da crença n'um ideial, e onde milhares de individuos cpmbatem sinceramente, sem egoismo e sem recompensas a esperar. Lá, poderão certamente ser de alguma utilidade visto esses povos se acharem mais aptos para acceitarem bruscamente uma remodulação nas suas instituições politicas, implantada mais directamente pela convicção da maioria que pela força ou prestigio de qualquer ambicioso. Entre nós, bem o sabem vocês, não existem por infelicidade, nem convicções, nem energia ou crenças imprescindiveis para o triumpho de qualquer idéa. Infelizmente, repito. E a prova viu-se ainda ha dias, presenciei-a eu, vocês todos, n'essa malograda noite da chegada do Nunes. Todo esse simulacro de batalha foi apenas o resultado das ambições partidarias. Houve victimas a lastimar e actos de coragem individual escusados e perdidos. A apathia e a indifferença, succedendo immediatamente a esse movimento de legitima e justificada revolta, deram-me a noção exacta do nosso povo, e sobre tudo dos chefes dos dififerentes partidos contrários ao Nunes. Nenhum d'elles tinha a coragem da convicção nem sequer a fé precisa. Tudo correu tumultuosamente e banalmente. Devemos pois combater inutilmente, apenas porque o deslumbramento de algumas horas nos cegou, e o nosso romantismo tradiccional nos impelliu a correr atraz d'uma illusão? É a pergunta que fiz a mim mesmo sem encontrar resposta favorável. Esta é a minha opinião, agora vocês digam o resto.
-- Mas que fazer pois, deixar correr tudo na mesma e ficarmos de braços crusados n'uma criminosa indifferença? observou Gusman com exaltação.
-- Não meu caro José longe d'isso! Tu deverás continuar a tua obra de propaganda efficaz pelo bem commum, por meio dos teus escriptos; estygmatisando, sem dó a reis, juizes, generaes, e padres; combatendo rudemente o patriotismo sentimental, a familia convencional, a herança, n'uma palavra, todos os preconceitos. Tu Felix, poeta e dramaturgo, continua chorando as miserias dos escravisados, as victimas da família, d'uma sociedade corrompida e hypocrita, toda a desgraça humana. Exalta cantando, os humildes, os simples, os sinceros, os naturalmente bons, eis a tua missão de apostolo. Escreve porém para o povo, faz verso singelo, sincero e simples; ao alcance das suas rudes inteligências; não te percas em philosophias transcendentes, sê mais cantor popular, mais trovador. Desvenda-lhe as bellezas da natureza, impoe-lhe primeiro que tudo o amor pelo bello para assim elle abranger depois o do proximo; inspira-lhe o desprezo e o rancor por tudo quanto é falso e foi apenas creação do egoismo: -- idolos, leis, religiões, justiças e castigos. DespedaçandoIhe as peias dos preconceitos, depressa fitarão sem receio a luz da verdade e poderão largamente comprehender a única e suprema felicidade da vida, alegria de saber perdoar e fazer bem. Para ti, finalmente, Aurelio, livre pensador, e medico como eu, e além d'isso professor e lente d'uma eschola superior, homem de letras e erudito, digo que, ninguém como tu, mais facilmente póde contribuir para a victoria da nossa causa, para o ideial sublime da emancipação do homem: -- o individualismo absoluto, sem restricções. -- pois lembra-te, que o elevar até nós, -- civilisados do futuro, -- a todos esses infelizes cegos pela ignorancia e productos irresponsaveis d'um despotismo de seculos, cruel e criminoso, em que o terror, o fanatismo e o direito da força, a tudo dominavam, é a nossa mais cara missão, e o caminho mais curto que conduz á nossa bella utopia ou superior religião. Livros e poemas são armas de combate mil vezes mais energicos que a dynamite e o punhal, acreditem.
Fabricio enthusiasmando-se progressivamente á medida que fallava, cahiu sobre uma cadeira limpando o suor e atirando os longos cabellos negros para traz. Estava extenuado.
-- Bebe um copo de cerveja, disse-lhe o Felix. Rodiaram-o carinhosamente saudando o seu talento.
Todos elles concordavam, certamente, com as suas idéas. O diabo era a morosidade da evolução.
-- Vocês enganam-se, accudiu Aurelio, torcendo o fino bigode negro. A evolução caminha prodigiosamente, augmenta com rapidez, d'uma progressão arithmetica. É como um pequeno capital em deposito com juros acumulados. N'estes ultimes vinte annos tem o nosso ideial alastrado mais que em todo o seculo. Desloca-se velozmente como uma avalanche, engrossando passo a passo, avolumando em proporção, e sepultando debaixo de si todos os preconceitos e crendices dos antigos povos.
-- O peior é não sepultar a malvadez nem o egoísmo dos homens; isso é que é o diabo, notou o Felix.
-- Pois sim, mas limpa-os das teias de aranha que traziam os cerebros voltados.
Maus e criminosos ha-de havel-os sempre, é evidente; existirão porém apenas os nascidos, e como taes irresponsaveis dos seus crimes. Os conscientes serão rarissimos, e o maior numero, os formados pela ignorancia, pela estupidez e pelo fanatismo, esses deixarão de existir por completo.
Fabricio levantara se aproximando-se da janella, aspirando com delicia o ar fino da madrugada. Todo o jardim e casaria, apparecia como que atravez d'uma grande gaze cor de lilaz, a atmosphera d'uma leveza de cambraia e d'uma transparencia infinita, tingia-se de egual côr, acentuando-se pouco a pouco e transformando-se lentamente n'um azul claro, a principio indeciso e vago.
Nuvens de pardaes despertavam nas ramarias verdes, carroças pezadas rodavam já sobre as calçadas, varredores somnolentos e moles varriam as ruas com esforço. Começavam d'ouvir-se pregões anthipaticos destoando com o macio do ar, a serenidade da manhã.
-- É já dia, vamos embora. O Fabricio está cançado, precisa descançar, disse o Felix indo espreitar á janella.
Agora, porem, o Aurelio, emquanto ia comendo, discursava serenamente, sem pressa; ouvia-se silvar a sua voz penetrante com um sotaque acentuadamente coimbrão.
Gusman havia abancado egualmente junto d'elle, e Fabricio arrastara comsigo o Felix para a meza, que enthusiasmado com a linda manhã, recitava á janella os conhecidos versos de Guerra Junqueiro, do seu immortal D. João:
Findára a orgia e pelo azul da esphera, Vai sorrindo ás montanhas pensativas O explendido luar da Primavera.
-- Anda d'ahi, vem comer e deixa-te de versos.
-- O Fabricio tem razão ao dizer-nos ha pouco que nenhuma idéa triumpha pela força mas somente pela convicção; que as verdadeiras revoluções, as revoluções fecundas, resistentes a uma reacção inevitavel, são as feitas pelo tempo, por isso longas e desesperadoras. A França é um exemplo, pois se n'esse paiz triumphou a republica foi só apóz luctas incessantes, annos de aviltamento e oppressão. Não foram certamente os batalhões republicanos nem o povo que obraram esse prodigio de energia, mas sim as idéas incutidas n'esse mesmo povo pelos encyclopedistas francezes taes como -- Jean Jacques Rousseau, Voltaire, D'Alambert, Diderot e tantos outros. Se as idéas novas alastram na Russia como uma onda impetuosa, é graças aos esforços de Tolstoi, Bakunine, Doystoywesky, Kropatkine e alguns mais fervorosos apóstolos do novo ideial nos ultimos tempos. Formidáveis de energia efficaz, teem sido os modernos philosophos e romancistas como Karl Marx, e Horris em Inglaterra, Zola, Fournier, Reclus e Malato na França, Carducci e Garibaldi, Massini e Cavour na Italia, Salmeron e Blasco Ibanes na Hespanha. Ora, porque não seremos nós, pois, os novos do apostolado portuguez, porque não continuaremos a obra, ampliando-a, encetada já por Theophilo Braga, Sampaio Bruno, Guerra Junqueiro e outros combatentes da nova fé?
O Felix interrompeu o Aurelio que fizera uma pausa para beber um calice de Porto.
-- Tudo isso é bello e verdadeiro, não discuto, mas é demasiado longo. Um bom attentado de tempos a tempos, inspira novas forças, novas energias, aterrorisa os burguezes e os reaccionarios acelerando a evolução scientifica. Se eu sou pela propaganda de facto é por julgal-a justificada e necessaria muitas vezes. Se o homicidio por interesse ou crueldade é infame e repugnante perante todas as moraes e sociedades, torna-se pelo contrario, uma grande prova de coragem e civismo, quando elle é commettido no intuito de libertar alguns milhares de creaturas d'um carrasco que as opprime.
Logo pretendo e sustento que, o anarchista assassinando um déspota politico, um industrial usurário e cruel, um juiz injusto e criminoso, é um martyr sublime que expóe a sua vida desinteressadamente, e ainda mais, a sua memoria, por um entranhado amor á humanidade. Viva a anarchia, vivam as bombas.
Bebeu o copo d'um trago enthusiasmador.
Applaudiram-o todos, rindo e batendo as palmas.
Então Fabricio levantou um brinde á memoria de Angiolino, o assassino de Canovas dei Castillo.
Conhecera-o em Lisboa, de passagem, quando elle seguira para Hespanha, e nunca vira uma tal serenidade, nem semelhante coragem. Jantara com elle no Avenida Palace, e na gare, á despedida, lançára-lhe estas palavras sinistras, sorrindo, que só mais tarde comprehendera:
-- Vou para Hespanha afim de ser garrotado, adeus.
Dias depois dava-se a tremenda tragedia.
Canovas, era justiçado e Angiolino findava heroicamente no garrote como annunciára.
Seguiu-se um silencio lugubre ás palavras de Fabricio.
-- Um martyr! exclamou Felix com enthusiasmo.
Todos beberam á memoria do famoso anarchista.
A esse tempo porém, o sol rompera já, e as ruas animavam-se progressivamente.
Electricos passavam sibilando, o jardim povoava-se de passeantes matinaes e os pregões soavam desabridos, impiedosos, n'um crescendo mortificante.
O sol, entrando a jorros na sala de jantar, poz fim á reunião. Despediram-se cordealmente de Fabricio e sahiram para a rua.
á fora, Felix emquanto descia com os companheiros a rampa de S. Pedro de Alcântara, ia recitando o prologo dos Simples.
Cá em baixo, no terraço que domina o panorama todos pararam um momento deslumbrados, em contemplação da cidade limitada á direita pelo Tejo e indo perder-se inversamente nas pequenas collinas que se estendem até Bemfica e Campolide, subindo em amphitheatro, no horizonte, eriçada e sinuosa, coberta de edificações coloridas imterrompidas por trechos verdejantes de campo, nimbada de oiro, resplandecente como uma apotheose.
O sol incendiava as vidraças e as claraboias brilhavam nos montes fronteiriços, emquanto em baixo, uma claridade mais terna afagava apenas de leve os cimos das olaias em flor e dos plátanos da larga avenida. Mais ao longe, entre uma aba de monte que se divisava apoz um mar encapellado de telhados e chaminés, brilhava o Tejo sereno e azul, manchado de oiro, resplandecente como um immenso crystal.
-- Até é um crime o irmos dormir sem gosar esta lindíssima manhã, declarou Gusman, e se vocês quizessem... tinha uma idéa ...
-- Qual? Qual?
-- Irmos todos por pegas a casa da Amalia e acabarmos por almoçar na Cova da Piedade.
-- Oh diabo! observou o Felix, a idéa não é má, agrada-me, mas o peior é a massa, tenho apenas cinco mil réis e...
-- Vocês são mais loucos que a loucura, disse o dr. Aurélio, eu vou mas é para a cama, se querem dinheiro tenho aqui algum, mas não contem commigo, estou moidissimo.
Os dois insistiram, terá um desmancha-prazeres, um caturra, devia vir tambem; a manhã estava linda, seria um agradavel passeio; tocar-se-ia o fado, malaguefias e tudo o mais».
-- Mas vocês são espantosos! fantasticos! palavra de honra. Ainda ha pouco discutiam com a maior seriedade problemas sociaes; falavam de mortes, de revoluções, da regeneração da espécie humana, e pensam agora em pêgas, em orgias, em fado e siguidillas.
O que vocês são é doidos varridos. Olhem, ahi teem dez mil réis e deixem-me em paz, até logo, e partiu apressado, calçada abaixo, em direcção á rua da Gloria onde morava.
Elles cá de cima começaram a gritar, troçando-o e insultando-o, mas Aurelio seguiu bravamente o seu destino, voltando-se para traz de quando em quando e saudando-os com a mão.
Apenas o viram desapparecer, desceram a rua em direcção a S. Roque.
Eram cinco horas da manhã e um lindo sol de verão resplandecia.
A meio da rua, deram de cara com o Raposo, que subia entre duas francezas do Casino.
-- D'onde vens tu? perguntou-lhe o Gusman.
-- Do Silva, de dar de cear a estas senhoras.
-- E segues?
-- Para casa d'ellas. Encaixara o monoculo franzindo o sobrolho, e perguntou:
-- E vocês d'onde veem e para onde vão?
-- De conspirar e vamos almoçar á Outra Banda com meninas que vamos buscar. Queres vir?
-- E uma idéa, e se estas quizerem...
Interrogou-as.
-- Mais certainement; c'est trop aimable pour nous autres, respondeu a mais alta, muito loura e muito pintada.
O Gusman cortejava já a outra, baixinha, morena, e de formas arredondadas.
-- Eu já tenho mulher, exclamou.
-- E eu? fez o Felix dolorosamente.
-- Traz a Lolita, a cantadora; cedo-t'a por hoje. Vae buscal-a e vem ter comnosco á térrasse do Royal, esperamos-te lá.
E enfiando o braço no da franceza, seguiu atraz do Raposo que retrocedera o seu caminho em vista da nova combinação.
Ao chegarem, porém, ao Camões, chamou uma tipoia.
«Era uma massada o ir a pé com esse sol. A claridade fazia-lhe mal aos olhos apoz as noites de orgia».
Subiram todos para a carruagem que desceu velozmente pela rua do Alecrim.
Já no carro, a pequena franceza murmurou ao ouvido de Gusman:
-- É verdade ser o teu amigo muito rico, ter automóveis, carruagens, um castello?
Elle abafou uma gargalhada a tal pergunta, á qual respondeu, todavia, com um oui dos mais expressivos.
-- Cada doido com sua mania, pensou.
A favorita do Raposo era o sonho constante das pandegas e da excentricidade. E não seriam todos como elle, uns monomanos? O que era em resumo a vida e a humanidade?
Um gigantesco hospital, onde cada um arrastava a sua doença chronica e incurável.
Uma estupidez e uma incoherencia! ... concluiu.
XIX
Despertara o velho palácio da Bacalhôa como por encanto, do seu habitual lethargo de casa abandonada. Uma numerosa creadagem enchia de rumor desusado as cosinhas, corredores e cavallariças da velha habitação senhorial. Os marquezes, fora do costume, haviam resolvido passar quinze dias n'esse solar, ha tanto abandonado.
As velhas estatuas de marmore pareciam sobresaltadas com o estranho ruido e o zumbido antigo e murmurante das cascatas, fontes e repuchos, novamente em actividade.
Era sobretudo para os lados do jardim que o bulicio se acentuava, destoando com a austeridade das fachadas e o estylo aristocratico do parque geometricamente traçado, as facecias grosseiras e libertinas dos jardineiros e moços de cavallariça cingidos por blusas de riscado azul.
As tres fachadas grandiosas com as suas vastas janellas ornadas de festões, cornijas lavradas e elegantes terraços cortados de amplas escadarias, erguiam-se fronteiras aos jardins.
O quarto avô do marquez, D. Affonso Antonio d'Alard, animado pelo desejo de imitar Versailles, substituira a primitiva e rudimentar casa acastellada já em ruinas, por essa opuUenta construcçâo.
Os marquezes haviam chegado na vespera com numerosa comitiva.
Os jardins guarnecidos de canteiros limitados por espessos muros de buxo recortados em pyramide nas extremidades, desenhavam-se em ruas rectas e uniformes, convergentes a um grande lago principal, ao centro do qual avultava um grupo de bronze esverdeado, representando Neptuno entre sereias e golphinhos.
Em frente á fachada principal, apercebia-se atravez os finos balaustres dos terraços, a extensa avenida que conduzia á enorme cascata dos Faunos, d'onde se despenhava um jorro d'agua crystalina sobre uma concha gigantesca, caprichosamente ornada de arabescos complicados. Tinha o aspecto d'um templo ou pavilhão, esguia e rectangular, encimada por uma fina cornija sobre a qual pareciam apenas pousar, algumas estatuas em marmore, esguias e gracis.
Apoz os jardins, separados por balaustradas de marmore, as avenidas partindo d'um vertice commum, affastavam-se em angulo por entre sebes de verdura, plantanos, tilias e eucalyptos. Por toda a parte grupos em mármore, ou bustos mysteriosos, assentes era plyntos rendilhados, alvejando sob as espessuras verdes dos arbustos.
A melancholia do parque proveniente do abandono, parecia repellir toda essa invasão intensa, atormentando a sua paz e quietação.
As vastas salas poeirentas e austeras, contrastavam singularmente com o mobiliario vistoso e sem estylo com que á pressa as haviam guarnecido. E as velhas pinturas, as tapeçarias, os graciosos arabescos em talha, contornando portaes e janellas, as finas columnatas de crystal, arrepiavam-se deante d'esses modernos atavios.
Na limpida madrugada despontava apenas o sol, vindo dourar levemente o palacio silencioso e austero.
Abrira-se porém uma das portas envidraçadas, da fachada dando passagem a um hospede madrugador.
O coronel D. Alvaro de Luna desceu os poucos degraus que o separavam do jardim, seguindo direito ao lago, junto do qual um jardineiro varria cuidadosamente o solo.
Ao seu apparecimento cessou todo o ruido.
-- Vai ás cavallariças e diz ao criado da sr.a marqueza que apparelhe o seu cavallo Sultão e o meu Rosilho, disse para um lacaio. Este partiu correndo, emquanto o coronel se sentava n'um banco em frente ao lago, accendendo um cigarro. Lançou um demorado olhar em torno e respirou com delicia o ar balsâmico da madrugada.
Acompanharia a marqueza, como de ordinario, no seu passeio a cavallo pela extensa matta do parque. O relogio do palácio deu horas, «cinco», murmurou. Era cedissimo, teria muito que esperar ainda. Não podera, todavia, dormir mais. As insomnias continuavam a atormental-o, sobre tudo desde que chegara á Bacalhôa.
Ficara n'um quarto historico, o mesmo habitado outr'ora pela celebre D. Maria Carlota de Lara, terceira avó do actual marquez, e passara toda a noite recordando a aventurosa vida d'essa andalusa viril e sensual. Era famosa a ascendencia dos Bacalhôas; desde o primeiro marquez, que cobardemente se humilhara deante do terrivel duque d' Alva, a ponto de lhe offerecer pousada no seu forte castello, bem guarnecido de lanças e cavallos; elle, o mais rico e poderoso fidalgo portuguez, abrindo o reino, com o seu exemplo, ás tropas do famoso capitão de Filippe II, até essa marqueza barregã, que n'esse mesmo quarto se entregara aos abegões, feitores, soldados e campinos, incapases, apesar da sua robustez, de satisfazer a insaciavel Messalina.
Excelente essa familia, onde o incesto se fizera legalisar em Roma. A espada dos Bacalhôas que não ousara sahir da bainha em defeza da pátria, estivera n'esse momento prestes a tingir-se em sangue portuguez.
Viera depois um interregno de luz fugitiva, para tombar de novo no mais satyrico fanatismo, curando-se das perversidades, do deboxe e do cynismo, com o incenso dos lausperenes e as bênçãos de Roma arrancadas a peso d'oiro, acoitando á sombra da cruz, todas as torpesas, a titulo de religião; adquirindo-se o Patriarchado para o orgulho, o palácio de Bellas para o fausto e os serralhos conventuaes para o amor.
As bastardias na familia não se contavam já: -- freiras e priores presidiam ás gerações mais remotas.
Uma das marquezas, cujo marido pusilânime passara uma existência apagada e inutil, arruinára-se em actos d'um fanatismo demente, edificando basílicas, formando bibliothecas compostas exclusivamente de livros dedicados á Virgem, comprando em Roma canonisações de antepassados por preços fabulosos, e passando finalmente a vida em banquetes pantagruelicos nos collossaes refeitórios dos conventos, entre os santos varões de tonsura e habito. Coroara essa ascendencia illustre a principio, vil e abastardada depois, o terceiro avô do marquez, fugindo miseravelmente ante os canhões victoriosos do feroz Napoleão, aventureiro de genio e de egoismo.
«O que poderia pois ser o actual marquez herdeiro d'um tal sangue». pensava D. Alvaro emquanto o seu olhar melancholico divagava pelos silenciosos jardins banhados da finissima luz da madrugada ? Era o que elle proprio reconhecia : -- caracter refalsado, egoista indifferente e cobarde : e sendo assim, como era possivel que elle, um Luna, herdeiro das mais nobres tradicções de liberdade, valor e independencia, se podia abrigar no mesmo tecto, servir esse rebento funesto d'uma arvore carunchosa?
Pela primeira vez sentiu dentro de si uma revolta surda e violenta. Todas as suas illusões estavam para sempre perdidas, impossivel lhe era renovar de viço como esperara, essa caducidade prestes a rolar por terra; e a recordação do primo, d'esse idealista da revolução, da utopia, como elle o proclamava, appareceu-lhe então fulgurando n'uma ardente apotheose de verdade. Nada havia por certo a fazer futuramente a não ser a destruição do passado, a limpeza radical dos preconceitos hereditários e vãos, despotismo feroz, previlegios e convenções, grilhetas poderosas do espirito humano. O passado cahira de podre e só refulgia o futuro límpido d'uma nova sociedade: illustrada, boa por instinto, inteiramente livre, sem religiões, fronteiras ou prerogativas de espécie alguma; livre no amor, no culto nos misteres e nas acções.
Um sorriso amargo descerrou-lhe os lábios e atirou para longe n'um gesto brusco e violento a ponta do cigarro.
Levantou-se, e a sua alta estatura, retratou-se na agua límpida do lago, tremula como as indecisões do seu cerebro doente e preoccupado.
Tão absorto estava no sonho, que só deu pela presença da marqueza ao contacto da sua fina mão calçada de anta, tocando-lhe ligeiramente o hombro.
Voltou-se bruscamente ao passo que uma ligeira vermelhidão lhe substituia a habitual pallidez do rosto.
-- Tão pensativo logo de manhã?
Curvou-se com respeito beijando-lhe a mão direita ainda sem luva.
-- Esperava-a com impaciência. A manhã está tão linda que seria um crime não a aproveitar.
Olhava-a com admiração pois nunca a vira tão formosa. A elegante amazona azul escura, desenhava gentilmente a sua figura elevada e forte, e o largo chapéu de feltro á mosqueteiro, ornado por um pluma branca, enorme, salientava a alvura deslumbrante da sua pelle mimosa.
Um chicotinho esguio com o cabo de oiro cinzelado, cravejado de brilhantes, reluzia junto da cintura, empunhado negligentemente. Um enorme ramo de cravos vermelhos e uma ferradura de oiro fosco e esmeraldas constituiam o unico adorno da jaquette Luiz XIV cingida, ao busto opulento.
Com a mão appoiada a um plyntho de marmore, de costas a uma pyramide verde de buxo, parecia uma princeza da corte de Versailles em pleno parque.
N'um original e flagrante contraste, apparecia o coronel, trajando á marialva, jaqueta e calção côr de pinhão, bota de vitella e esporas de prateleira.
O largo chapeu molle, sustentava-o por uma das enormes abas, junto á perna.
O grupo era curioso e digno de ser reproduzido por um artista: um velho Jardim que parecia ter sido traçado por le Nôtre, uma amazona Luiz XIV e um marialva flexível e altivo.
-- E como acha o palacio? interrogou a marqueza, não tenho eu razão em o preferir a todas as nossas outras vivendas?
-- Com certeza, é encantador.
-- Sobre tudo por me recordar Versailles, um cantinho do meu lindo paiz. Depois isto aqui é tão tranquillo, as tardes são tão melancholicas. Mas não o acho o mesmo, coronel, estranho-lhe a physionomia. Teve acaso algum desgosto?
-- Qualquer que elle fosse, esquecel-o-hia facilmente deante da marqueza. Mas não, apenas aprehensões que por vezes me mortificam, depois a marqueza bem conhece o meu humor triste, não apreciando o mundo buliçoso dos palácios e invejoso sempre da immobilidade.
-- Então deve gostar d'este parque silencioso e antigo.
-- Sim, sobre tudo a esta hora de tranquillidade e tendo a ventura de a contemplar assim, como agora, sem olhares que me cubicem, ou labios que murmurem.
Ouviu-se ao longe um relincho alegre.
-- Ahi temos os cavallos, vamos; e a marqueza seguiu até ao fim do jardim, descendo a escadaria de mármore seguida silenciosamente pelo coronel.
Dois creados fardados, chegavam trazendo á mão dois magnificos pur-sang. Um setter de longo pêlo setinoso, veio cabriolando rojar-se aos pés da dona.
-- Juizo, Fox, muito juizo ! disse a marqueza, afagando carinhosamente o seu cão predilecto.
Depois dirigiu-se para o formoso alasão que graciosamente dobrava o pescoço mascando o bridão, e acariciou-o.
O coronel aproximára-se.
-- Quer montar?
-- Sim, disse ella.
D. Alvaro dobrou o joelho, e a marqueza ajustando as rédeas, saltou ligeiramente para a sela sem quasi o tocar.
Elle montou egualmente -- A porta lá em baixo está aberta? perguntou.
-- Sim, senhora marqueza, já a foram abrir, respondeu um dos creados.
Fizeram piafar por alguns minutos os cavallos e partiram a meio galope pela frondosa avenida, em direcção á floresta.
Transposto o immenso portão, acharam-se immediatamente á entrada do bosque, prolongando-se a perder de vista, calmo e assombrado, cortado de veredas espaçosas, correndo em diversas direcções. Tomaram por uma, ao acaso, mettendo novamente os cavallos a galope.
O coronel cavalgava á esquerda da marqueza e o setter na frente, cabriolava latindo.
-- Bella manhã, e como é linda esta matta, não acha? Aposto que já está de bom humor outra vez, disse a marqueza sorrindo e olhando-o.
-- Como sempre, junto de si.
-- Mas isso não é bastante. Desejava vel-o sempre alegre e feliz, e quando o encontro, apesar d'essa alegria que diz trazer-lhe a minha presença, parece-me notar vagamente escondida por essa mascara de felicidade momentânea, um secreto soffrimento. Ora o Alvaro apesar da minha sympathia por si, da minha confiança, responde-me sempre o mesmo e guarda cuidadosamente o seu desgosto. Hoje, porém, jurei arrancar-lhe dos labios o seu segredo; tem que ser, ouviu?
O coronel estremeceu, e o cavallo deu-lhe uma enorme furta.
-- O que foi isso? interrogou a marqueza cujo cavallo saltara egualmente.
-- Uma distracção. Toquei, sem querer, o pobre Rosilho com a espora, e elle sentiu-se.
A marqueza metteu a passo bruscamente.
-- Conversemos, disse. Assim a passo, mais facilmente poderei ouvir as suas queixas e dores intimas, para as quaes procurarei cura.
-- Não zombe, marqueza. As minhas feridas são incuraveis, e ver-se-ha talvez forçada a não poder cumprir a sua promessa.
-- E acaso não poderei eu tudo para si? disse ella com orgulho, voltando-se a meio na sella e fitando-o com aspecto carregado.
-- Melhor o sabe que eu próprio.
-- Então supponha-me medico ou confessor, como queira, e conte-me tudo com a maior franqueza.
-- Será longo, fastidioso e de pouco interesse para si.
-- É o mesmo. Empenhei-me em ouvil-o e exijo que fale. Será acaso cobarde, o coronel?
-- E a segunda vez que a marqueza me faz tal observação. A primeira foi no Estoril, recorda-se da minha resposta...
-- Perfeitamente. Citou-me nomes historicos, homens rudes e temerarios, balbuciando ante a mulher amada. Mas porque me faz tal pergunta?
-- Por uma simples razão. É que desejo lembrar-lhe ainda um outro, não garantindo porém a sua existência, fora do cérebro de Victor Hugo.
-- E chama-se?
-- Ruy Blas! ...
-- Ah! fez a marqueza curvando-se silenciosa.
Achavam-se a meio da matta, n'uma pequena clareira onde desembocavam varios caminhos. Ao centro, alguns penedos sobrepostos cobertos de musgo e fetos, em torno, essa plácida tranquillidade das florestas silenciosas e deshabitadas. Grandes manchas de sol projectavam-se no sólo, coberto de folhas amarelladas, e um ruido manso de brisa misturava-se aos trilos longinquos de melros.
Muito alto, no azul, um milhafre traçava curvas alongadas, ora baixando ora subindo, as azas estendidas e quasi immoveis.
-- Com que então preocupa-o o protogonista de Hugo, volveu ella apoz longa pausa.
-- Sim, pela sinceridade.
-- Acaso o coronel é como elle?
-- Talvez, quem sabe...
-- Ruy Blas viveu porém apenas d'um sonho, e quando acordou -- morreu...
-- Nada de mais natural, pois eu acho que a unica independencia verdadeiramente grande que na terra possue a creatura, é o poder findar com a existencia no momento preciso morrer a tempo eis o problema.
-- Mas isso é uma blasfemia, é offender a Deus. Acaso o coronel perdeu as suas crenças religiosas? não acredita n'uma outra vida, expiação ou castigo da nossa passagem na terra?
-- Nem eu mesmo já o sei. Houve tempo em que tudo isso me pareceu lindo; Deus, o perdão, o céu... mas hoje sinto-me por vezes incrédulo. Prometti-lhe uma confissão sincera ahi tem uma primeira causa dos meus multiplos soffrimentos, a descrença em tudo.
-- Em tudo? volveu a marqueza fitando-o com dureza e parando subitamente o cavallo. Alvaro reparou no movimento, e um sorriso pallido acudiu-lhe aos labios.
-- Espanto-a marqueza coça o meu pessimismo, e pergunta naturalmente lá para si, como eu pensando assim, continuo ainda aqui, não é verdade?
-- Effectivamente; confesso ter sido esse o meu pensamento immediato.
-- A minha resposta pertence á segunda confissão.
-- Temos então um outro doloroso peccado?
-- Sim muito grave, e aposto que a marqueza, não o acharei nem menor, nem digno de zombaria.
-- Tão grave é elle!
-- Que merece excomunhão. Antes porém de lh'o dizer preciso fazer-lhe um pedido e uma pergunta.
-- Diga.
-- Se terá a prudência e o perdão do confessor e se sente forças caritativas para me perdoar a falta, por mais grave que lhe pareça?
-- Sabe que são duras as condições?
-- São comtudo necessarias, acceita?
A marqueza meditou por alguns minutos. Um imperceptivel sorriso de triumpho maldoso illuminou-lhe um instante a physionomia, tão rapido, porém, que Alvaro não o apercebeu apesar de a olhar attentamente.
-- Acceito... falle... disse ella bruscamente.
Continuavam a passo por uma estreita vereda e o joelho de Alvaro roçava por vezes a saia da marqueza. As folhas seccas estalavam sob as patas dos cavallos, e o melro longinquo continuava assobiando de quando em quando.
-- Em primeiro logar devo declarar-lhe sem preambulos que, se aqui estou é unicamente por si, bem o sabe. Os ultimos acontecimentos, o estado de excitação a que tudo chegou por culpa do Nunes e pela indifferença do seu marido, tudo me faz prever um fim desastroso e para breve.
Foi agora a vez da marqueza estremecer. Alvaro impassivel, continuou:
-- Na fatalidade, só os amigos sinceros e desinteressados, como eu, ficam, os demais desapparecem. Resta-me um dever pois a cumprir e uma illusão a seguir, mas se essa illusão desapparecesse, como o resto, daria a minha missão por cumprida. Callou-se por minutos, depois com voz tremula concluiu:
-- O segredo, a minha grande falta involuntaria, o meu peccado, é o immenso amor que sinto por si.
A marqueza estacou o cavallo repentinamente e fixando-o disse-lhe cruelmente:
-- Repare nas suas palavras imprudentes, lembre-se com quem falla e não me faça arrepender da minha confiança.
-- Nenhuma censura, julgo, ellas podem envolver. Acaso não me exigiu que falasse, não me provocou até, recordando mais uma vez a minha fraqueza, tratando-a de cobardia. Pois bem, já que principiei terá de ouvir-me até ao fim. Tenho na alma muita sinceridade e muito respeito por si, para ousar offendel-a nem de leve. O meu amor é tão immenso como o meu respeito; nada lhe pede, nada exige, apenas ambiciona vêl-a, rodeal-a de adoração muda, submissa e eterna. Lembre-se que é a minha só illusao, a unica, e que sem ella... Callou-se repentinamente soffocado e cheio de espanto por essa confissão que jurára jamais proferir.
O culpado porém não fôra elle, mas sim essa coqueterie provocante inata em toda a mulher.
A marqueza conservava-se tremula e silenciosa o busto arquejante e debruçado sobre o pescoço do alazão.
-- Prometteu perdoar-me, continuou elle novamente corajoso em face do silencio da marqueza. Imploro-lhe humildemente o meu perdão. Esqueça o que lhe disse se quizer, mas não me condemne por ser sincero. O meu futuro está compromettido para sempre -- bem o sabe -- tudo deixei por si, gloria, ambições, o mais sagrado dever d'um patriota até, a felicidade do meu paiz, opprimido, arrastado, escarnecido por todos, pasto abandonado a todas as ambições. Até quasi por um momento esqueci a melhor das amigas, a mais santa e a mais caritativa; mas se quizesse, marqueza, um só d'esses lindos cravos significaria o meu perdão.
-- Basta, bradou a marqueza irritada e castigando o cavallo com uma chicotada nervosa. Este, espantado com a injusta punição deu uma levada enorme e precipitou-se n'um galope desesperado atravez da floresta.
Alvaro espantado pela interrupção brusca e pelo movimento rapido da marqueza, precipitou-se em seu seguimento, nervoso e inquieto.
O melro lá ao longe continuava assobiando e a grande pluma branca da marqueza agitada pela velocidade da corrida, parecia por vezes tingir-se de oiro ás fugitivas caricias do sol, escoando-se por entre as espessas ramarias da floresta silenciosa.
XX
D. Alvaro fôra desagradavelmente arrancado ao socego da sua villa de Cintra.
Chamado pelos marquezes á Bacalhôa, partira preoccupado de presagios. A politica actual do marquez, appoiando os actos mais loucos e contradictorios do vingativo Nunes, a sua indefferença perante alguns conselhos que ousara dar-lhe, recebidos até por uma fórma aggressiva, tinham-lhe abatido profundamente o animo, a ponto, de procurar n'um afastamento calculado, o tornar-se pouco a pouco esquecido.
Além d'isso, repugnava ao seu grande caracter, toda essa mentira palaciana, lisongeira e aviltante, filha da mais crua baixeza e ambição. Lá, dominava apenas o interesse e a intriga, e nunca a sinceridade tivera alli guarida. Depois, sentia-se vencido por um grande amor, e assim se tomara incapaz d'uma deliberação energica. Julgara encontrar á sua volta d'Africa, um povo ainda conservador, d'algumas das nobres qualidades do passado, um chefe susceptivel, no meio da desordem da sua vida folgazã e inutil, de n'um momento extremo, energicamente se occupar do paiz, senão por sentimentalismo, ao menos por um legitimo orgulho, dever, ou até por egoismo proprio.
Em troca o que encontrara! A mais fatal decepção; um chefe de Estado incapaz, roído de tédio e indifferentismo, o producto mais genuíno d'uma ruim hereditariedade, possuidor de todos os vicios da sua raça e sem nenhyma das qualidades que em raros fulgores de excepção, haviam marcado alguns dos seus antepassados.
Desiludido completamente, ferozmente acusado de palaciano, indifferente e orgulhoso, perdendo dia a dia o seu prestigio, inculpado por artigos traiçoeiros de varios jornaes inimigos, Alvaro sentia-se de repente perdido, rolando por uma pendente em cujo extremo encontraria o peior dos males: -- o ridiculo.
Procurara pois deter-se a tempo e por isso se retirara para Cintra, na firme intenção de lá sahir apenas para qualquer legação longinqua.
Fôra n'esta dolorosa tensão de espirito que a carta dos marquezes o viera encontrar.
Optima occasião para realisar o seu intento.
Deviam-lhe innumeros favôres, aquelles por quem devotára a existencia tantas veses exposta temerariamente.
Fôra este o pretexto e a desculpa com que para si justificara a sua partida; a rasão, porém, era outra, era o desejo ardente e irresistivel da presença da marqueza.
Sentia o perigo e não procurava evital-o: a louca chimera d'esse amor, impossivel por todos os motivos, attrahindo-o, correndo para elle impellido secretamente por uma fatalidade invisível e inexplicavel. A cobardia do amor minara n'elle por completo todas as principaes funcções de energia e visualidade, caminhava, como um cego inconsciente, para o abysmo, mas tendo por vezes uns lampejos d'instincto a prevenil-o: a rectidão inquebrantavel do seu caracter e o desprezo completo pela morte.
Esses bastariam para o salvar na hora extrema.
Logo ao chegar, procurara interessar o marquez pela sua resolução; este, porém, respondera-lhe troçando-o: «Que fizesse como elle, se divertisse, caçasse, toureasse, não encontraria paiz algum como o seu, com mais lindo sol e com tão amaveis mulheres».
Comprehendeu admiravelmente que estas palavras envolviam uma recusa. Mas, porque motivo?
Toda a sua logica se perdia na indagação da resposta. Seria ainda o receio de o vêr longe, de poder ainda conquistar o antigo prestigio e preponderancia, ou apenas intrigas do Nunes na raiva de o sentir secretamente inimigo?
Por outro lado a marqueza, rodeava-o de attençôes e lisonjas, escolhendo-o para companheiro dos seus passeios matinaes, e deixando-lhe antever fugitivas esperanças que o perturbavam levando-o a prolongar a sua estada na Bacalhôa, ao contrario dos seus projectos constantemente desfeitos e renovados de se afastar de uma vez para sempre do palacio.
Lá, as mesmas caras de sempre; o Alva com o seu sorriso hypocrita e a sua elegancia snob; o Freixosa a tudo indififerente, typo completo do palaciano belâtre e banal; o Sylves indifferente ás traições da mulher sempre bella e que ultimamente parecia haver desthronado para sempre a pequena Mercêdes do coração volúvel do marquez; o robusto Negrão, o querido das princezas taradas, cada vez mais escuro e fátuo; o Seiva, divertindo todos pelas suas bobices e banalidades, e finalmente o António Sardinha, ministro n'uma legação longínqua e ultimamente em vilegiatura no reino.
Este apparecêra ao Luna como o symbolo perfeito da diplomacia actual. Espécie de peru enfatuado, absolutamente nullo, elevado ao seu cargo por um conjuncto de circumstancias felizes; uma predilecção mysteriosa do chefe d'essa nação longinqua pela cara metade; sustentado pela colónia, na esperança de lhe apanhar as sommas por elle extorquidas a titulo de empréstimos, e pelas quaes haviam exigido condecorações e mercês, cartas de nobresa, impondo-se-lhe com ameaças, de exporem um dia á luz as suas masellas de diplomata fallido. No exterior e no tracto, a incarnação completa do conselheiro Accacio de veneranda memoria.
O marquez, cuja vocação toureira, ultimamente se manifestara mais intensa que nunca, trasia por veses á Bacalhôa alguns discipulos de Guerrita, os quaes entre gargalhadas grosseiras e piadas em calão, celebravam as suas proesas tauromachicas, por elle exaggeradas, invertidas, falsificadas sem pudor da verdade, na sua anciã e eterna necessidade de mentir.
Era este o meio entre o qual o coronel se via forçado a supportar, ouvir, a accolher e a sorrir.
Como elle devia soffrer na sua vaidade e amor-próprio de homem útil, honesto, simples e franco. Que flagrante contraste entre essa horda de imbecis enfatuados e esse homem de caracter corajoso e austero, inimigo directo da lisonja e da mentira.
Assim é que um grande desanimo o prostrara, sobre tudo apoz o seu ultimo passeio a cavallo com a marqueza, em que ella ardilosamente lhe arrancara uma confissão inutil por elle guardada ha tantos meses com o mais rigoroso sigilio.
E todavia, ella parecia haver esquecido e perdoado as suas palavras imprudentes e impetuosas.
Ao chegarem, apenas o prevenira de que na manhã seguinte o dispensava, visto partir para Cintra em automovel com a Freixosa.
De resto nem uma palavra de arguição e até durante o almoço e o resto do dia se mostrara para com elle mais amavel e communicativa.
Voltára-lhe pois uma certa tranquillidade, embora a atittude d'ella o não illudisse por completo.
Parecia perceber-lhe, atravez das palavras mais amáveis, uma zombaria occulta, e mais acentuada a sua friesa de mulher egoísta, sobre quem os homens não tinham a menor influencia ou interesse.
Além d'isso as suas predilecções eram notorias: a Freixosa, a religião e o filho. Tudo o que não tocasse de perto estas particulares affeições, era para ella indifferente. O Sardinha comprehendera bem o seu caracter, com a sua esperteza particular de videiro, conquistando donativos faceis entre os magnates riquissimos da colonia distante para os vir depor nas mãos da marqueza afim d'ella satisfazer os encargos que a sua fanática consciencia lhe dictava.
Um espertalhão o Sardinha!
Pretendera a marqueza um dia ligar intimamente ao coronel seu filho D. Luiz, o que elle recebera com jubilo, na esperança de ensaiar na creanca a benefica influencia dos seus conselhos tão mal recebidos sempre pelo pae. Deparara porém com uma natureza já formada, altiva e egoista, dominada por um fanatismo grosseiro. Toda a hereditariedade dos Bacalhôas accrescida com a avareza e o fanatismo da mãe. E riu-se de si proprio, da sua ingenuidade. Era sina sua, um fado inevitavel, o atravessar a existencia como um cavalleiro de lenda em cata da verdade.
Continuava a ser inconscientemente D. Quixote; como poderia pois deixar de venerar Cervantes, essa alma de sonhador que parecia ter herdado.
XXI
N'essa noite o jantar correu alegre. A companhia ruidosa, augmentada com a prezença do Theodomiro da Golegã, e do Lopes de Villa Franca, dois lavradores abastados, a quem ultimamente o marquez se ligara pelas façanhas nas touradas e ferras e pela affeição á guitarra.
Ninguem como o Lopes tocava o Choradinho, cantava o Anadia e o antigo fado da Severa.
A sala de jantar com as amplas portas abertas sobre o terraço, resplandecia. As luzes do magnifico lustre de crystal de Veneza, suspenso sobre a meza coberta de flôres, de pratas, adornos de Saxe e crystaes doirados, reflectiam-se indefinidamente nas quatro paredes forradas de espelhos, ao centro dos quaes telas elypticas ostentavam pinturas a oleo, representando merendas e festas campestres, do século XVIII. Um perfume intenso a cravos, inagnolias e tilia, vindo dos jardins, começava agora a alterar-se com as nuvens de fumo dos havanos acesos logo á sabida das senhoras para o terraço apoz a sobremesa.
O calor porém, trouxe em breve os homens para junto d'ellas e os creados com as suas vistosas librés azul e prata, serviram o café e os licores.
Não tardou a conversa em generalisar-se.
Falou-se de caçadas, de cavallos e de touros e a esse respeito contaram-se toda a casta de anedoctas.
-- Oito horas a cavallo, sem descançar, separando o gado de pampilho em punho.
Um caraça carregou-me e eu vi-me forçado a derrubal-o apoz uma carreira louca.
Uma belleza, não calculas. Pergunta alli ao Theodomiro, elle que te conte, explicava o marquez ao coronel que o escutava sem interesse.
O Theodomiro accudiu logo presuroso.
-- O marquez, um catita não calcula.
Quando o gajo o carregou e elle largou á desfechada, ainda o quiz seguir. Ia porém já longe e o meu cavallo abanou com as orelhas, disse que não.
As senhoras sentadas em cadeiras de palha, escutavam cochichando segredinhos, e abafando risos por detraz dos leques. Então a condessa de Sylves teve uma idéa, o que raras vezes lhe succedia:
-- E se o sr. Lopes nos tocasse um fadinho, disse ella.
A condessa tinha uma grande predilecção pelas cousas portuguezas, e um grande fraco por toureiros e fadistas.
-- Não tenho pianninho, senhora condessa senão era já. Em questões de faduncho nunca me fiz rogado. Acharam todos muita graça á pallavra faduncho, riram, e o elegante Sardinha perguntou: se era uma nova expressão da moda, pois sendo assim a levaria para a colonia.
O marquez logo suppriu a falta.
-- Tenho cá o pianinho, o meu, e vaes vêr que nunca puzeste os dedos n'um instrumento tão macio.
Chamou o Alva, que conversava com o Negrão, e mandou-o pela guitarra. Este seguiu logo bamboleando-se.
O coronel afastára-se um pouco do grupo, e o Negrão viera ter com elle. Achava demais essa extraordinaria familiaridade do marquez com typos d'aquelles.
-- Isto, meu caro, já me não parece um palacio, parece antes um retiro das hortas.
disse elle rindo alto. Piadas em calão da Mouraria e d'aqui a pouco o fado.
-- Que quer você? quem tira o marquez d'estas cousas tira-lhe tudo; portanto é inutil insistir, respondeu D. Alvaro.
-- Mas é que está cada vez peior. Antigamente, ainda me lembra, concedia alguma attenção aos negócios e sabia divertir-se de outra forma. Não perdia a linha, senão nas feiras do Alemtejo ou n'alguma ferra. Agora é em toda a parte. Entregou tudo ao Nunes e deixa correr o marfim. Antigamente gostava de vir cá, agora demoro-me o menos possivel. E você, como atura isto. Nunca julguei, francamente, tivesse feitio para estas cousas.
D. Alvaro encolheu os hombros com indifferença.
-- Espero não ser por muito tempo, disse.
Soaram porém na noite uns preludios de variações complicadas do fado. O Lopes tocava.
-- Ahi está uma cousa de que gosto, disse o coronel.
-- Sim, é original, é bem portuguez. Mas lá para fora não serve, ninguem entende, explicou o Negrão. Uma noite, n'um concerto em Londres em casa d'uma duqueza, minha amiga intima, levei lá um patricio nosso para tocar, o celebre João Maria dos Anjos, lembra-se?
-- Sim, tocava bem.
-- Pois imagine você que emquanto tocou operas e musicas hespanholas foi muito applaudido, mas quando tocou o nosso fado foi quasi um fiasco. Vinham todos perguntar-me que diabo era aquillo, se eram cantos d'Africa ou do Brazil.
A voz do Lopes gemeu de repente na noite como um lamento. Atacara o rigoroso:
Foi no colete encarnadoN'uma espera de toiros...
Ao acabar rebentou uma salva de palmas, e as senhoras, enthusiasmadas, cravaram-o de cumprimentos e de exclamações.
-- Que bem que canta! ...
-- É uma delicia!
-- Um encanto!
O Sardinha tomára nota da quadra para a levar á colonia.
Então a marqueza, sentada muito junto da Freixosa, com o braço nu rodeando-lhe a cintura, lembrou o fado da Severa.
-- A Maria canta-o perfeitamente, parece a Angela Pinto, disse ella dirigindo-se á Sylves.
Ella porém não queria cantar, desculpou-se.
Insistiram muito e o marquez prometteu egualmente botar piadinha.
-- Assim convence-me, disse. Poz os olhos em alvo, e murmurou a primeira quadra:
O amor das desgraçadas É grande como a illusão...
Cantava perfeitamente, com esse acento guttural peculiar aos verdadeiros fadistas, com suspiros na voz e finaes bruscos nos remates.
Foi um delirio, e mal ella terminou viu-se obrigada a recomeçar, taes foram os pedidos.
-- Que tal te parece a gaja? disse o marquez ao ouvido do Negrão, que se approximára outra vez do grupo, seguido pelo coronel.
-- De primeira ordem, uma verdadeira fadista.
-- Que faria se a visses na cama ...
A physionomia do Negrão abriu-se n'um sorriso enygmatico, puchou para elle o coronel e disse-lhe ao ouvido:
-- Juro-te que nada teve ainda com ella, é pêta.
-- Ora adeus... toda a gente o sabe...
-- A culpa não é d'ella, não é por esse motivo ...
-- Então?
-- E que não póde. Só o que eu ri, quando ella ha dias me contou como tudo se tinha passado. Não calculas, o maior dos fiascos.
O marquez, perdeu a respiração.
-- É de familia! observou o coronel irritado com toda essa má lingua, e indignado comsigo proprio por ter de ouvir taes historias, para elle indifferentes e sujas.
O fado recomeçara de novo e quem agora cantava era o marquez. Então Luna desceu as escadas e penetrou no jardim. «Seguirei amanhã para Cintra e não voltarei, haja o que houver, murmurou. Tudo isto me enoja e aborrece». Entrou n'uma das longas avenidas, e perdeu-se na noite.
Cá em cima redobravam os cantos, as gargalhadas, os applausos. Parecia o ruido d' algum d'esses retiros de fora de portas, o Zé dos Pacatos ou o Papagaio, como bem lembrára o Negrão.
Depois de divagar por algum tempo pelas ruas escuras do parque, foi sentar-se junto da grande cascata.
A noite, tépida, perfumada, convidava á meditação, e o ruido das vozes e da guitarra, chegavam até elle vagamente, amortecidos pela distancia. O céu resplandecia de constellações, e os arbustos e arvoredos, desenhavam-se nitidamente na infinita transparência da atmosphera.
As estatuas alvejavam em fundos negros de ramagens.
Sentiu-se bem alli, e permaneceu por muito tempo meditando, n'uma semi-somnolencia.
De repente despertou bruscamente. Ergueu-se, esticou os membros e passou a mão pela fronte.
Devia ser já tarde. Para os lados do palacio cessara todo o ruido e apenas o murmurio indefinido dos campos e da agua cahindo nos lagos e na cascata, perturbava o grande silencio.
Dirigiu-se para os terraços, seguindo a larga avenida. Mas ao subir a escadaria dos jardins, ouviu um ruido abafado de vozes perto do lago.
A curiosidade levou-o a approximar-se sem ser pressentido, tomando por uma das estreitas veredas ladeadas de buxo, que iam desembocar ao lago.
Continuavam conversando baixo, mas podia já ouvir o que diziam e conhecer as vozes.
Eram os dois toureiros amigos do marquez, os românticos cavaqueadores nocturnos, o Theodomiro e o Lopes. D. Alvaro, occulto por um cedro expiava-os, ouvido attento.
O nome da marqueza proferido por um d'elles redobrou-lhe a curiosidade.
-- É uma mulher de alto lá com ella, dizia o Theodomiro, e pena é que ella não goste de homens.
O coronel estremeceu violentamente; mais uma vez essa torpe accusação cahia como um labéu repugnante sobre a reputação da marqueza.
-- Lá isso é positivo e a Freixosa que o diga. Essa porém não se perde só com as amigas, topa a tudo. Dizem que o marquez antigamente fora querido d'ella.
-- Depois do marido a mulher, é natural, concluiu o Theodomiro entre um risinho de troça.
Mas ouve lá, continuou, dizem p'ra'hi que a marqueza se dá muito com o coronel, sae com elle a cavallo todas as manhãs e não o deixa sahir para fora como elle queria. Parece que a gaja tem um certo fatacaz por elle.
-- Ora adeus. O Luna é um tanso como muitos outros que se teem deixado levar pela sua labia. Ella, uma sabida, que, em um typo começando a deitar as unhinhas de fora, a ganhar importância e a poder fazer sombra ao marido, logo o mette na ordem. Namora-o, dá-lhe confiança, perde-lhe a pinha, e um bello dia quando o pardal está lúlú, já não serve para nada, manda-o passear. Lembra-te do Neves e pensa no caso, -- Tens rasão, deve ser isso... O que eu te digo é que, se assim é, pode-se gabar de esperta.
D. Alvaro estava sobre brasas, n'uma ancia louca de atirar-se de improviso sobre esses dois pulhas, delapidando na sua propria cara a honra d'uma mulher. Conteve-se porém; seria denunciar-se, uma loucura, provocar um escândalo que não só recahiria sobre elle como sobre a marqueza.
Felizmente terminara a conversa n'esse momento, e os dois, afastavam-se em direcção da outra dependência do palacio onde naturalmente dormiriam.
Apesar porém de toda a confiança e do immenso amor pela marqueza, divinisando-a e engrandecendo-a como idolo único das suas aspirações, não podia deixar de sentir uma terrivel apprehensão, uma secreta e cruel suspeita a mortificar-lhe o espirito perante essas affirmações -- calumniosas por certo -- mas que nem por isso deixavam de correr por toda a parte com uma extranha insistencia.
A recordação do Neves, o empenho repentino da marqueza em retel-o junto d'ella, todas as coquetteries e manhas femenis com que habilmente o conquistara pouco a pouco, e sobre tudo a glacial indifferença com que tolerara a sua audaz confissão d'essa manhã, lodos esses factos eram demasiado inquietantes para o seu espirito já tão alarmado, e, só a uma cegueira evidente como a sua, escapariam decerto esses mil pequenos nadas na apparencia, mas tão significativos e crueis nas questões de coração, a provarem-lhe a natureza especial d'essa mulher egoista, fanatica e insensivel, nascida apenas para o dominio, e incapaz portanto de vibrar a um amor coojo o seu, todo feito de respeito, humildade e idealismo. Se n'ella existia alguma paixão era toda sensual, poderosa, de appetites carnaes requintados, uma d'essas paixões só saciadas na cela incensada d'alguma freira lubrica e formosa; paixão mystica, fanatica, sem consequencias nem crime.
Tudo isto porém escapava ao seu ideialismo romântico, casto e d'outras eras, subsistindo apenas uma certa desconfiança que se extinguiria ao primeiro olhar da mulher amada.
Despertou pela segunda vez de dentro de si mesmo.
«Devia ser muito tarde» pensou, e atravessando rapidamente os jardins entrou no palacio adormecido.
Transposta a grande galeria dos azulejos, achou-se á porta do quarto. Abriu-a cautelosamente e entrou no vasto aposento immerso em sombra. Um forte perfume penetrou-o logo adentrada. Aspirou-o perturbado, accendendo um phosphoro sem comprehender. Sobre a commoda, coroando uma elegante jarra de Saxe, um ramo rubro de cravos exhalava o seu olor penetrante.
Quem os puzera alli ? Examinou o curiosamente recordando-se do que vira brilhar ao peito da marqueza e que tanto o perturbara ao ajudal-a a subir para o cavallo.
Seria o mesmo! Mas então é que ella não só lhe perdoara a sua ousada confissão, como até parecia... Além d'isso pairava no ambiente um outro perfume mais subtil, mais mysterioso.
Não quiz porém deixar-se ganhar pela visão perturbante que n'esse momento lhe passou vagamente ante o seu olhar ancioso e espantado; a graciosa imagem da marqueza penetrando no seu quarto e deixando-lhe com esses cravos a mais chymerica esperança jamais por elle sonhada.
Não, era impossivel. Deviam ser outros cravos, havia immensos nos jardins e fôra naturalmente apenas uma lembrança do creado do palácio posto pelos marquezes ás suas ordens.
Sabel-o-hia no dia seguinte.
Lembrava-se porém das respostas da marqueza quando a interrogára a tal respeito.
-- Mandaram-m'os de Hespanha. Veja como são lindos...
Effectivamente eram enormes, tres vezes maiores dos que tristemente vegetavam no parque; e ao examinal-os de novo mais se convenceu fossem os mesmos.
Além d'isso como explicar esse outro perfume desconhecido misturado ao dos cravos e que o embriagava como um beijo sensual.
Eram os mesmos sem duvida, os mesmos, que ella lhe abandonava como uma muda promessa d'amor.
Então tomou a jarra com respeito e levou-a para junto do leito, aspirando com sofreguidão voluptuosa esse perfume traidor.
Sob as suas pálpebras semi-cerradas, agitando-se, perpassavam pela primeira vez desejos loucos d'uma sensualidade doentia.
Parecia que toda a influencia mysteriosa d'esse velho quarto outr'ora theatro das scenas amorosas mais requintadas e perversas, pesava sobre o coronel adormecido. Que todas as figuras das tapeçarias, Satyros e nereides, sensuaes e de mãos dadas, lhe rodeavam o magestoso leito de ebano, n'uma farandola diabolica e macabra.
Um angustioso pesadelo galvanisára-lhe, por assim dizer os membros e em vão tentava fugir á horrivel visão que agora o assaltava.
Em torno d'elle, agitavam-se n'uma dansa lenta e macabra, um grupo de bachantes, coroadas de flores, os flancos agitados por cabelleiras fulvas. N'um plano superior, assentados sobre um throno espesso de verdura, uma dúzia de Satyros e faunos, sopravam nas flautas longas de marfim, um cantico ardente d'um rythmo indefinido.
E todas ellas, ao som da estranha musica, se encaminhavam para elle, offerecendo-se uma a uma, livremente, sem pudor, n'uma graciosidade infinita de movimentos.
A ultima arrancou-lhe um uivo de paixão carnal. Reconhecera n'ella a encantadora imagem da marqueza. Em torno aos seios erectos e pujantes, uma grinalda de cravos purpureos manchava a sua alvura deslumbrante, e a bocca entreaberta por um sorriso lubrico convidava-o aos beijos mais excitantes.
Precipitou-se sobre ella d'um salto, pretendendo-a enlaçar. Mas ao tocal-a, estremeceu violentamente. O seu corpo pareceu-lhe neve, apesar do rozado da pelle e da côr rubra dos labios espessos.
A sua caricia foi gelada no abandono e o seu sorriso ironico.
Com as mãos febris tocara os cravos que lhe rodeavam os seios. Ella soltou um grito, e elle sentindo os dedos humidos, olhou-os.
Viu-os da côr dos cravos, tintos de sangue.
Ao fital-a de novo, recuou de espanto.
Um circulo liquido alastrava agora pouco a pouco, tingindo-lhe de purpura o ventre, os flancos, desenhando-lhe as curvas graciosas das pernas até tocar os artelhos. Toda ella vertia sangue e se perdia pouco a pouco n'uma sombra côr de rosa esmaiando lentamente, nos seus braços tremulos.
E era em torno dos dois, que a farândola agora corria vertiginosamente, ao passo que a musica executada pelos satyros tomava as proporções d'um crescendo, cada vez mais prodigioso e satanico. Coberto de suor accordou. Cá fora rompia a manhã e na esguia jarra de Saxe os cravos mysteriosos pareciam ensanguentados.
O baile festejando os amos da marqueza reunira nos velhos salões do solar, todo o mundo elegante e banal para quem essas festas constituem a única occupação séria da existencia.
Haviam-se lançado centos de convites para Cascaes, Estoril, Cintra e Lisboa, e todo o vasto largo do palacio, atulhado de automoveis e carruagens, annunciava a numerosa concorrencia.
Os marquezes achavam-se no principal salão, todo branco e oiro, sustentado por esguias columnatas incrustadas de espelhos, d'onde se elevam em curva graciosa as arcarias que formam uma claraboia gigantesca, toda decorada por pinturas a fresco da escola Italiana.
Os grandes espelhos bisautés das extremidades, erguendo-se entre os espaçosos, portaes, ladeados por caryatides, reflectem as innumeras velas dos três lustres de crystal de Veneza e dos enormes candelabros assentes sobre plyntos doirados, aos cantos.
As portas restantes, abertas de par em par sobre os terraços, são encimadas por janellas octogonaes. Entre ellas, tremós doirados de puro estylo Luiz XV, transformam-se em Jardineiras olorosas. Sobre o pavimento em marmore, luzente como um espelho, deslisa a immensa multidão em torno dos donos da casa.
Os convites para o baile impunham como condição absoluta o trage rigososo do reinado de Luiz XVI, exceptuando apenas os officiaes que preferissem a farda ao disfarce.
Entre o pequeno numero dos que se haviam utilisado d'este privilegio, salientava-se o coronel D. Alvaro de Luna pela sua figura altiva, e pelo dolman desapparecendo sob o oiro e o esmalte das innumeras condecorações. A gran'cruz da torre e Espada, pendia-lhe sobre o peito, do vistoso colar.
Encostado a um dos portaes, examinava silenciosamente a chusma dos convidados, esboçando-se-lhe por vezes nos labios, um fino sorriso de ironia ou de desprezo, arrancado pela vista de alguns dos recem-chegados, curvando-se deante dos marquezes. Perto d'elles, o Alva e o Seiva conversavam animadamente. O primeiro envergava o elegante uniforme de coronel das guardas francezas, emquanto o segundo escolhera a farda vandeana do general Charette. A marqueza soberba na sua magnifica toilette de damasca branco bordada a oiro, os braços possantes apparecendo por entre as finissimas rendas d'Alençon que egualmente lhe cobrem a garganta, vindo cahir em pontas sobre o seio pujante, presas por um pequeno cysne em diamantes.
A cabeça empoada ergue-se altiva, com o complicado penteado da epocha, cópia d'um retrato da infeliz Marie Antoinette.
A seu lado o marquez, pretendera copiar Luiz XVI.
Veste casaca direita de setim negro, bordada a matiz, calções de egual estofo sobre meia branca de seda, colete azul claro semeado de florzinhas minúsculas e sapato de vernis com fivelas de brilhantes. Adorna-lhe o busto a classica cruz de S. Luiz.
O capricho da marqueza, pretendendo por uma noite recuscitar Versailles na Bacalhôa, realisou-se. A illusão é completa apesar das farjas modernas d'alguns officiaes, facilmente eclipsadas pelos guardas francezas, postilhões, pagens, fidalgos da corte, dragões e pelas maravilhosas cabeças empoadas, collos e gargantas nuas, ostentando pedrarias, laços e flores. Tudo se agita e revolve animadamente, lembrando um enorme Watteau a quem, a varinha magica d'uma fada caprichosa, animasse por umas horas.
Os enormes espelhos prolongam o quadoo indefinidamente como n'uma espantosa féerie Um general ainda moço atravessando os grupos com ligeiresa, n'uma attitude ridícula de pavão, arranca um soriso irónico ao coronel. É o Seabra de Lemos, ministro de estado honorario, general de divisão, antigo deputado, conselheiro d'Estado par do Reino, tudo emfim quanto a vaidade humana, a intriga e protecção dos poderosos, pode alcançar na sociedade portugueza.
É vulgarmente conhecido pelo Seabra das medalhas e isto para explicar a sua collossal vaidade pelas innumeras commendas e grã-cruzes, ganhas sem uma batalha ou qualquer acto de valor real a justifical-as, mas apenas pela frequência das ante-camaras reaes, gabinetes de ministros, secretarias poeirentas e microbianas dos ministérios e triumphos de goella nas duas camaras.
D. Alvaro ao fital-o sorri dolorosamente, e sente um profundo despreso por essas mesmas condecorações que lhe adornam o peito, por elle ganhas entre mil perigos, arriscando a existencia dia a dia em paizes longinquos e insalubres, ganhando inimisades, ingratidões, e perdendo a saude e a alegria em face das amargas decepções que o futuro lhe reserva como recompensa aos seus actos.
E não é só o Seabra o unico exemplar d'esse género. Alli estão muitos outros mostrando o valor da banalidade e da intriga e o pouco para que serve o mérito real e o quanto é vã a palavra justiça. Alli estão o Seiva, o Alva e muitos mais a attestal-o.
Apenas falta o Nunes á festa, e ninguem já repara em tal, visto elle viver agora em pleno sobresalto, encurralado sempre como um javardo medroso, mostrando as prezas aguçadas á bôcca do covil nauseabundo, d'onde continuava inspirando perseguições e vinganças, o seu manjar tavorito.
Faltavam egualmente o Ribatejo e o filho do marquez em viagem havia uns quinze dias, pelas principaes cortes extrangeiras.
Afora estes, ninguem se excusára, inclusive o gordo nababo Villa Flôr, pouco dado a prazeres d'esta ordem.
E toda a cohorte dos cortezãos apparece aos olhos do Luna, eternamente servil e convencional, moralistas, que não desdenhavam, como o Seiva, de receberem em seus solares, entre as esposas e as filhas, a bella condessa de Sylves e outras concubinas do marquez.
Como o enoja todo esse mundo e como desja fugir-lhe para sempre. Soffre horrivelmente; uma amargura intensa cerra-lhe dolorosamente a garganta.
«Para que viver, para quê?» murmura; dirige-se para os terraços, ávido de respirar o ar puro da noite. Todas as emanações pérfidas do salão: perfumes de flôres, carnes perfumadas, halitos impuros, causam-lhe uma quasi suffocação.
Transpõe já uma das portas, quando uma pequenina mão nua, scintillante de anneis, lhe agarra nervosamente o braço.
Volta-se e depára com a condessa da Freixosa, muito formosa no seu disfarce de bergère, côr de rosa pallido bordado por pequeninas flores claras.
A orchestra postada no terraço executava n'esse momento uma dolente valsa de Strauss. -- A marqueza deseja valsar comsigo, venha... disse amavelmente a condessa.
Aos primeiros accordes da musica, toda a multidão, abandona o salão lentamente, dirigindo-se para as salas onde se não dança; mais pequenas embora não menos luxuosas e propicias ao recolhimento e á conversa.
Alvaro dirige-se rapidamente para a marqueza esquecido já de todas as preoccupações, acommettido repentinamente por essa especie de ancia receiosa, tormento e voluptuosidade que nos causa a presença da mulher amada.
Ella esperava-o sorrindo.
-- Prometti-lhe uma valsa se viesse, não póde pois dizer que não cumpro as minhas promessas.
Alvaro inclinou-se, murmurando um agradecimento imperceptivel. O perfume que de toda ella emana, causa-lhe vertigens. Desde a noite fatal em que os cravos vermelhos lhe haviam suggerido o cruel e sensual pesadelo que o despertara febril e innundado em suor frio, o seu amor transformára-se.
Não era já o sentimento casto dos primeiros tempos, mas sim um desejo voluptuoso, carnal, contra o qual todo o combate era nullo.
Com elle nascera esse ciúme selvagem que agora o dominava, não podendo supportar junto d'ella uma pessoa estranha sem se sentir irritado.
A condessa da Freixosa era-lhe sobre tudo odiosa, com as suas repetidas meiguices e caricias prolongadas, ouvindo continuamente, apesar dos seus esforços, as vozes ironicas dos dois amigos conversando junto ao lago, a respeito d'essa intimidade mais que suspeita.
-- Devia-se agora seguir o minuete ou uma pavana, mas eu vi a sua impaciência e não o quiz desesperar. A marqueza dissera estas palavras, no tom mais indifferente. Depois proseguiu: É que o coronel está insupportavel, tem teimas de creança e violencias perigosas. Quer um conselho: não seja tão exaltado, tão impaciente.
-- Mas em que consiste a minha impaciência, e quaes são as minhas teimas? Interrogou Alvaro.
-- Ora, quaes são? Mas vamos primeiro dar uma volta e conversaremos depois.
Alvaro passou-lhe o braço em torno da cintura e arrastou-a comsigo febril e arfando, aspirando-lhe o halito e embriagando-se com o seu perfume.
A marqueza habil valsista, deixava-se levar com prazer, sem experimentar o minimo cansaço; immensos pares voltejavam alegremente, em pequenas curvas cadenciadas, rostos afogueados, olhos brilhantes, respirações confundidas. A animação era extrema e parte d'elles seguindo a marqueza, penetravam de salão em salão, lançando por toda a parte uma chuva de alegria.
-- Paremos um pouco, abafa-se, disse a marqueza estacando subitamente. Vamos tomar um pouco de ar?
-- Como queira, retorquiu Alvaro solicito.
Dirigiram-se para o terraço em face. Pelos jardins resplandecendo mysteriosamente na noite, numerosos fugitivos escoavam-se por entre as estreitas carreiras de buxo, emquanto outros descançavam nos silenciosos caramanchões.
Palavras longínquas e gritinhos, partiam das folhagens. Luna e a marqueza haviam-se sentado.
-- Quer-me então dizer quaes são os meus peccados? interrogou Alvaro placidamente.
-- Peccados de impaciência teimosa, de orgulho e de mau humor; acha pouco?
-- Não, por certo. Todavia não a comprehendo bem.
-- Passo então a explicar-me melhor. Em primeiro logar, você é uma creatura sombria, com olhares ameaçadores e com promessas d'exigencias insupportaveis e impossiveis.
Por causa d'uns simples cravos postos n'uma simples jarra de Saxe, por mão caritativa, já se julga no direito de ser exigente e fazer perguntas indiscretas tornando-se n'uma palavra vaidoso e futil como todos os homens.
-- Mas, querida marqueza, exclamou Alvaro interrompendo-a, eu nada exigi, pedi apenas.
-- Uma resposta decisiva ás suas loucas palavras de outro dia sob a ameaça de deixar-nos. E chama isso um pedido? Fitou-o fixamente com ironia, emquanto brincava negligentemente com o magnifico leque de plumas e tartaruga, incrustado de oiro. Espero que, fallando hoje á rainha de França, será menos exigente, mais respeitoso e submisso, concluiu entre um pequeno sorriso de troça.
-- Mais uma rasão para eu ser franco, visto dever-se aos principes toda a verdade.
-- Olhe que é perigoso por vezes.
-- Não duvido, comtudo sabe bem como sou corajoso.
-- Mesmo junto de mim ! fez a marqueza com altivez.
-- Quem sabe!
Callaram-se por um momento. A marqueza porém interrompendo o silencio, perguntou-lhe bruscamente.
-- Acredita na virtude ?
-- Sim, acredito, sob condição unica, d'ella existir dentro de nós mesmos, do contrario, não, pois ficaria representando apenas, um preconceito ou uma imposição e nunca uma qualidade. Refiro-me, é claro, á virtude em geral.
-- E na da mulher?
-- Essa é mais frágil, mais problematica, retorquiu Alvaro por entre um sorriso de dúvida, reside toda nos nervos...
-- Como assim ?
-- É que são rarisssimas as mulheres absolutamente virtuosas.
-- Não admitte pois a honestidade na mulher?
-- Conforme a accepção da palavra fôr tomada; se fala na honestidade convencional, dir-lhe-hei que existem effectivamente virtuosas, para os outros; d'outra forma limito-me a duvidar.
-- E porquê?
-- Pela simples razão de que no mundo existem três ordens de mulheres e todas ellas criminosas no amor. As conscientes da falta, aquellas a quem o temperamento perde, e as grandes amorosas nas quaes reside um sentimento estranho -- a consciência na inconsciencia. Ora são estas para mim as unicas sympathicas, honestas e dignas de serem amadas.
-- Confesso-lhe que o não entendo bem.
Acho isso tudo confuso e paradoxal, fez a marqueza com despeito.
-- Explicar-me-hei melhor, dizendo-lhe que aquellas que o mundo reputa honestas, são, na maioria, as mais viciosas, tendo apenas habilidade para esconder os seus actos e tendências.
-- Bonita theoria e que muito nos honra, declarou a marqueza rindo. São pois para si dignas de ser amadas?
-- As grandes amorosas.
-- E despreziveis?
-- As que guardam as conveniencias por temor do mundo ou por defeito physico.
-- E póde-me dizer a que grupo pertenço eu?
-- É-me difficil responder, como comprehende, a não ser que a marqueza me diga...
-- O quê?
-- O seu pensamento intimo no dia em que me mandou pôr no quarto os lindos cravos de Sevilha. Por outra, qual a sua intenção?
-- Intenção nenhuma, sentimento é possivel.
-- E qual esse sentimento? fez elle anciosamente.
A marqueza levantou-se, e cravando n'elle o seu olhar frio e altivo, murmurou cruelmente :
-- O dó e o perdão. Entrou rapidamente nos salões, evitando uma resposta.
Alvaro ficou como que atordoado, perplexo, ante a frieza glacial da marqueza.
«Mas esta creatura é um monstro, formosissima sim, mas de uma insensibilidade mortal», pensou elle vendo-a affastar. Um frio de morte penetrou-lhe o coração e todo o seu orgulho se sentiu revoltado. Passou a mão pela fronte alagada, e dirigiu-se precipitadamente para os jardins.
Precisava meditar, achar-se só, concentrar bem todo o pensamento n'uma só idéa, consultar definitivamente o coração, reagir, procurar emfim uma solução ao problema angustioso da sua vida.
Illudira-se até alli, com promessas vagas, enganára-se a si proprio cobardemente no terror d'uma decepção antevista, inevitável. Fora o frivolo joguete d'essa mulher, servindo apenas á sua ambição e curiosidade perversa. Agora era-lhe impossivel duvidal-o.
Percorreu a alea sombria, quasi inconscientemente, e achou-se junto á cascata monumental, sobre a cornija da qual brilhava ainda uma ou outra luz vacilante. As restantes haviam-se já apagado.
Era tardissimo por certo. Ao longe porem o palacio continuava ainda incendiado, os compassos melancholicos d'um minuete antigo, vinham morrer junto d'elle como uma melodia do passado.
Então a realidade appareceu-lhe bruscamente, implacavel, a flagelal-o como um latego impiedoso.
Emquanto elle agonisava, toda uma multidão ávida apenas de gôso se divertia na embriaguez do baile, indififerentc e cruel.
Esses por quem elle sacrificara todos os sonhos, ambições e quasi a propia dignidade, continuavam despreocupados e felizes, consciencias fechadas a toda a dor e soffrimento.
Dias apenas haviam passado apoz os morticinios do Rocio, centos de individues, jaziam presos apenas por suspeitas d'um crime justificavel, a revolta contra a escravidão; os jornaes eram suspensos, o pensamento humano perseguido, e os causadores de tanta calamidade divertiam-se, rejubilavam n'uma indifferença criminosa, Novamente lhe appareceu o vulto de Gusman, do louco, e as suas palavras exaltadas e cheias de humanidade e energia, pareciam zumbir-lhe agora triumphantes e verdadeiras.
«E a tua terra, este Portugal que tanto estimas, vel-o-has sossobrar como o costado d'um navio desconjuntado e gemendo».
Depois o seu ultimo grito contra o qual se revoltara a ponto de o ameaçar brutalmente com os punhos:
«Toma cautella com a marqueza, não sejas dos nossos, deixa morrer Portugal muito embora, mas por ti, pelo teu grande nome, pelo teu heróico passado te peço, te não percas por essa creatura que não te merece».
«Como tinha rasão, pensou Alvaro, e como fui imbecil ...» Um soluço fundo fel-o estremecer, e duas lagrimas ardentes, talvez as primeiras da sua vida, queimaram-lhe o rosto marcial tostado pelo sol distante d'essas regiões longinquas onde o seu nome ficara para sempre enraisado.
A marqueza de volta aos salões, fora direita á Freixosa que correra logo ao seu encontro.
O minuete terminava substituido logo por uma pavana.
Parecia que uma animação louca e desusada, aditava a todos, n'essa noite.
Nenhum symptoma mais significativo, como a indifferença egoista e brutal de toda essa casta privilegiada, risonha e descuidada, perante os ultimos acontecimentos da capital, os atropellos e crueldades comettidas dia a dia, e os gritos abafados d'um povo servilmente ridicularisado, opprimido e agonisante.
Alli estavam-- como bem considerára o coronel n'esse momento, -- os principaes inspiradores da barbaria insana do Nunes, aquelles, que com o seu appoio sanccionavam os seus actos criminosos e loucos, esquecendo no banal prazer d'um baile, os mais sagrados deveres de humanidade e justiça, mil vezes mais criminosos e responsaveis, do que o miseravel executor de tão funestas determinações.
Caminhavam cegamente para um abysmo invisivel, pois todos os crimes politicos têem fatalmente um castigo equivalente á falta.
Por certo uma terrível sentença pairava invisivel sobre essas cabeças resplandecentes e ôcas.
Não seria esse baile, essa pretenciosa reproducção da agonisante corte de Luiz XVI, um triste vaticinio do futuro? Essa alegria exaggerada e febre de goso, a loucura que por uma fatalidade irresistivel precede sempre as grandes catastrophes ?
-- Como te demoraste! dissera a Freixosa á marqueza passando-lhe o braço em torno da cintura. Parece-me que o coronel se póde considerar feliz por muito tempo.
-- Qual? o pobre Alvaro deve a estas horas estar, pelo contrario, o mais infeliz dos cavalleiros andantes.
-- Como assim?
-- É que sem querer, sem eu mesma comprehender o motivo, fui para elle d'uma crueldade irreflectida. O mal, porém, está feito e já não ha remedio.
-- Conta-me, conta-me, disse a condessa olhando-a com curiosidade.
-- Pois sim; mas no meu boudoir. Sinto-me cançada, farta de luzes e de barulho.
Procura o marquez e diz-lhe que desculpe a minha ausencia, diga que adoeci repentinamente. Vai e volta depressa.
Dirigiu-se para os seus quartos, emquanto a Freixosa atravessava os salões olhando para todos os lados.
O Negrão aproximou-se solicito:
-- Procura alguém?
-- Sim, o marquez.
-- Encontra-o nos jardins em coloquio amoroso com a Maria Sylves.
-- Obrigado -- disse-lhe ella soltando uma gargalhada. Ganhou rapidamente o terraço e de lá, desceu para os jardins.
Um ruido de vozes abafadas sahindo d'um caramanchão próximo, attrahiu-a. Ao aproximar-se indiscretamente, divisou na meia luz uma casaca de setim negro, junto d'uma magnifica toilette de brocado branco.
Um braço fugiu apressadamente por detraz d'uma cintura.
-- E o marquez! perguntou da entrada.
-- Entre condessa, sou eu, deseja alguma cousa ?
-- Venho como emissaria da marqueza que se achou de repente incommodada e se retirou. Pede-me para lhe dizer a desculpe da sua ausência do baile.
-- Mas que tem ella! Alguma cousa de cuidado? volveu o marquez.
-- Não, a enxaqueca do costume.
-- Pois então vá tranquilisal-a depressa e que lhe desejo uma noite tão agradavel como a que tenho passado, graças á amabilidade d'esta linda fada. Beijou a Sylves na bocca.
-- Que horror ! Não lhe digas nada, ouviste! interrompeu a condessa dirigindo-se á Freixosa.
-- Sabes perfeitamente que sou discreta, descança, volveu esta impassível.
Afastou-se rapidamente em direcção aos aposentos da marqueza.
Encontrou-a negligentemente recostada n'um amplo sophá branco e oiro forrado de damasco vermelho, o corpo molle descançado sobre almofadões, parecendo meia adormecida. Desapertara o corpete do vestido, e os braços admiráveis e o collo, appareciam d'uma alvura de cysne por entre as rendas de Inglaterra que guarneciam a fina camisa de baptiste.
O pequeno boudoir octogonal, em cupula sustentada por columnas de mármore, reflectia nos oito espelhos das paredes a alampada de alabastro pendendo do centro por uma cadeia de bronze doirado. Sobre os portaes, pinturas da escola franceza, representavam grupos de nymphas e faunos perdidos entre vergeis floridos. Guarnecendo o aposento, contadores e secretárias de sandalo e tartaruga, renascença portugueza, moveis preciosos trazidos da índia no tempo das conquistas. Sobre o parquet, extendia-se uma admirável pelle de urso, lusidia e negra.
-- Então? fez a marqueza.
-- Encontrei-o no jardim em doce colóquio...
-- Com a Sylves, naturalmente. E o coronel, viste-o?
-- Não ...
-- É natural que partisse, observou a marqueza como respondendo a uma interrogação intima; depois, estirando preguiçosamente os braços para a condessa, murmurou carinhosa:
-- E se tu me despenteasses. Tenho a cabeça dorida d'este incommodo penteado, e custa-me a crer como as nossas avós supportaram tal moda por tanto tempo; é horrivel.
Os dedos ágeis da condessa perdiam-se já nos magnificos cabellos da amiga, desprendendo-os dos ganchos, fitas e flores que os guarneciam, sob uma ligeira nuvem perfumada de pos.
-- Cada vez detesto mais os homens, exclamou por entre um suspiro de alivio a marqueza, succudindo a bella cabelleira; são seres grosseiros, egoistas e despotas.
Ora eu nasci para reinar e não para ser escrava.
-- Mas o coronel parece ...
-- Ora adeus, é como os outros... peior talvez. Por emquanto é tímido, submisso, e na minha presença parece dominar todos os sentimentos e revoltas de paixão, que lhe advinho no olhar; no dia, porém, em que uma hora de fraqueza me lançasse nos seus braços, transformar-se-hia, acredita, no peior dos tyrannos. É uma natureza de ferro, uma energia sem egual.
Soltou uma alegre gargalhada, e levantando-se beijou a condessa nos labios.
-- D'essa porém está elle livre, concluiu.
-- E o Negrão? interrogou maliciosamente a condessa.
-- Prefiro talvez esse, apesar da sua banalidade, pois julgo-o um d'estes entes incapazes de amar sinceramente, por tal motivo, sem violencias ou zelos importunos.
Depois, é um vaidoso que apenas sabe conversar, inoffensivo portanto para mulheres como eu. Qualquer aventura amorosa com elle é tranquilla e sem perigo. Mas para que servem todas essas perguntas, quando tu sabes perfeitamente a minha impossibilidade em amar um homem.
-- E a mim? retorquiu Maria com os olhos semi-cerrados voluptuosamente.
-- A ti adoro-te, bem o sabes, e ninguem incarna para mim o amor, como a tua fragilidade voluptuosa, sincera e ardente. Só nós, mulheres, comprehendemos o amor sensual e delicado, sem brutalidades nem interesse.
Só entre nós elle póde ser durável, exclusivo e sempre moço. O homem sacia depressa pela brutalidade. Em todo o caso, sinto por vezes um praser maldoso em experimentar o meu dominio sobre essa raça forte e orgulhosa, eterna inimiga da nossa fraqueza, d'ahi os meus flarts e caprichos. É um sport perigoso para muitos, mas inoffensivo para mim.
-- E não sentes nada... mesmo nada?
-- Sim ... talvez ... uma ligeira sensação de prazer que não chega a ser volupia, amor proprio satisfeito, e sobre tudo, o sentimento cruel de fazer soffrer, sentir uma existencia dobrar-se ao capricho, um rosto empallidecer ante o meu olhar frio.
-- Comtudo amaste a teu marido ?
-- É possivel. Era uma creança crente no amor do homem e ingénua como todas nós no principio da vida. Foi por isso mesmo que soffri muito. Aprendi egualmente a conhecer os homens, rasão porque hoje os abomino; eguaes todos no amor, desde o heroe ao insignificante, do artista ao mais cretino. Egoistas, ciumentos, despotas e voluveis.
A todos havia visto a meus pés, faltava-me apenas um: -- heroe...
-- E não teria eu o direito de chamar-te voluvel egualmente? interveio Maria em tom de censura carinhosa.
-- E porquê, minha doidinha? Ah! já sei, respondeu a marqueza rindo e beijando-a.
Desapertara por completo o magnifico vestido de setim, substituindo-o por um amplo peignoir de seda branca. Referes-te ao meu capricho pela Magdalena Villa Flôr, não é assim?
-- E se fosse?
-- Dir-te-hia não teres razão. Capricho de uma semana em Cintra, durante a tua ausencia, e logo esquecido nos teus braços ... Não sejas creança. Vai desembaraçar-te d'esse apparatoso vestido de corte, e volta depressa ... anda. O champagne penetrou-me o cérebro como um filtro amoroso e sinto necessidade das tuas caricias, dos teus beijos, do completo esquecimento do mundo, dos homens e da pragmatica. Vai.
XXIII
Todo o palacio parecia adormecido quando o coronel D. Alvaro de Luna, despertando do seu sonho doloroso e erguendo-se do banco de marmore, se dirigiu por entre a grande aléa de tilias e buxos, para a escura fachada do palacio ainda ha pouca rumorejante e illuminada como um templo.
Tudo em redor se conservava calmo e tranquillo, cortado o silencio apenas pela queda da agua da cascata e dos repuxos, nas conchas rendilhadas.
As estatuas, alvejavam entre o escuro das folhagens na sua immobilidade de pedra, surgindo á passagem do coronel como unicas testemunhas da sua intima agonia.
Uma coruja passou assobiando, n'um vôo baixo, para os lados da matta. Luna estremeceu interiormente como em face d'um presagio. Caminhou mais depressa, e achou-se em breve junto á escadaria lateral, subindo em curva até aos terraços que rodeavam o vasto edificio.
Uma unica luz brilhava ainda atravez d'uma das portas envidraçadas do rez-do-chão. Alvaro reconheceu com espanto partir do boudoir da marqueza.
Uma força irresistivel atrahía-o para lá.
Olhou em torno, não viu ninguém, e cautelosamente, como um ladrão, arquejante e medroso, seguiu direito á luz caminhando na ponta dos pés, appoiando-se febril ao bordo da balaustrada.
Apenas se encontrou em frente ao portal illuminado, estacou subitamente, o corpo immobilisado, o olhar fito no interior do aposento, os braços torcidos, as mãos convulsamente agarradas ao marmore, sustendo o corpo.
Conservou-se assim por instantes. Depois, o pescoço curvo, o olhar vago, as mãos crispadas como se apertassem um objecto invisivel no espaço, avançou para a porta, pé ante pé, n'uma cadencia authomatica de espectro.
O quadro que contemplava horrorisava-o, fascinando-o.
No luxuoso e pequeno boudoir, agora illuminado como um sanctuario pagão, reflectindo-se indefinidamente nos espelhos, sobre a setinosa e escura pelle que cobria o pavimento, apertavam-se dois corpos alvos n'um abraço unico, trémulos e frementes de voluptuosidade.
Um, franzino e nervoso, apenas arredondado; o outro possante, de formas admiraveis e firmes, com poderosos flancos de mãe saudavel, braços roliços e fortes, pulsos e artelhos robustos. Confundidos n'uma commoção profunda, agitavam-se estreitamente, ligados peito contra peito, ora de costas, ora de flanco, envoltos nas longas cabelleiras ondulantes e nervosas como serpentes, mordendo-lhe as espáduas, os hombros, os collos e as coxas, cingindo-as como anneis polidos de metaes vivos e desconhecidos. Dos lábios rubros, escapavam-se suspiros, exclamações surdas de prazer, nos intervallos em que os dentes cubiçosos de morder se não cravavam voluptuosamente carniceiros, nas mucosas tremulas e rubras. E os espelhos reflectiam toda a nudez enlaçada, como se uma grande orgia pagã se prolongasse indifinidamente por boudoirs consecutivos e luminosos.
O coronel avançou irresistivelmente para a frente, e a sua fronte húmida de suor, foi appoiar-se contra o vidro polido e frio da vidraça. Parecia querer devorar com a vista as formas voluptuosas e nuas dos dois corpos femininos, ao passo que uma expressão de raiva e repugnancia lhe transtornava o rosto livido e ardentemente curioso.
Foi tão poderosa a commoção experimentada por elle n'esse instante, que a sua fronte chocou-se com ruido contra a vidraça do aposento.
Então os dois corpos, levantaram-se de súbito, medrosos e tremulos; e quatro olhos espantados e assustadiços, cravaram-se fixamente na janella. Cegas pela luz; as duas amigas, nada a principio poderam distinguir, conservando-se immoveis, ainda abraçadas, os flancos açoutados pelos cabellos esparsos, o olhar fito para a noite. Uma d'ellas soltou porém um grito rouco, e precipitando-se d'um salto para a janella, fez descer repentinamente o estore, gritando assustada:
-- O coronel! o coronel!...
Alvaro ao reconhecer os vultos da marqueza e da Freixosa, ficara como que attacado d'uma paralysia súbita, hirto em frente á janella. Depois deitou a correr pelo terraço, penetrou no interior do palacio, dirigiu-se ao seu aposento e accendeu todas as vellas d'uma magnifica serpentina de prata.
Estava livido, e por entre os lábios queimados de febre, escapavam-lhe palavras confusas, ininteligiveis. Sentou-se á secretária, encostou o rosto aos punhos cerrados, e meditou muito tempo.
Quando despertou, parecia completamente sereno. Apenas as rugas que lhe partiam dos cantos dos labios em direcção ao queixo, marcavam nitidamente uma amargura enorme. Via-se que uma resuluçao extrema se preparava difinitivamente, sem esforço, no seu cérebro.
Entretanto a manhã, começava a clarear e atravez das persianas filtravam-se mdiscretos os primeiros clarões do dia.
Escreveu com mão firme duas cartas, subscriptou-as, colocando-as depois bem á vista sobre a secretária. Feito isto, abriu uma gaveta, tirou d'ella um magnifico rewolver americano, o qual examinou cuidadosamente fazendo-o girar entre os dedos.
Metteu-o na algibeira, sahiu do quarto rapidamente, e a meio da galeria dos azulejos, sobre os quaes brincava a luz vermelha d'aurora, abriu uma das portas cerrando-a apoz, sem ruido, descendo para os jardins que despertavam na manhã, serenos e luminosos.
Cá fora, avançou rapidamente pela aléa das tilias em direcção á cascata, sem um olhar, ou uma distracção, a passos firmes e authomaticos.
Chegado ao banco onde n'essa mesma noite tão profundamente meditara, deixou-se cahir sobre elle. Um profundo suspiro escapou-se-lhe dos lábios, e só então lançou um longo olhar em torno; primeiro á gigantesca cascata sobre o friso da qual agonisavam ainda algumas lanternas azues e balões venezianos, despojos últimos da festa, depois ás pyramides de buxos, ás grandes tilias e cyprestes, aos arvoredos immoveis e longinquos da tapada; e por ultimo ao palacio longinquo, cujas janellas rendilhadas reflectiam gloriosas as claridades rubras da aurora.
Apertara com mão firme a coronha de ébano do rewolver, sem uma vacilação ou mais ligeiro estremecimento nervoso, appoiando o cano luzidio á fronte, sem errar d'uma linha o ponto fatal; e n'um sorriso de escravo liberto, de victima escapando pela vontade a um martyrio insupportavel e cruel, desfechou.
O braço cahiu-lhe inerte, o revolver rolou por terra, e o corpo declinou suavemente até junto d'um plynto, sobre o qual o vulto marmoreo d'uma mulher, sorria mysteriosamente para um ponto indefinido ...
XXIV
Eram sete horas da manhã, quando o José Gusman apeando-se da carroagem que viera a galope desfechado pela rampa de S. Pedro d'Alcantara, parou bruscamente á porta da casa do dr. Fabricio.
Subiu rapidamente a escada, e apenas lhe abriram a porta precipitou-se como um doido no quarto do amigo, sem uma palavra para o creado que permanecera immovel junto á porta aberta. Fabricio que ainda dormia accordou bruscamente á entrada de Gusman.
-- O que succedeu... o que ha? perguntou assentando-se no leito, cravando os olhos espantados no rosto transtornado do amigo.
-- Uma desgraça irreparável, mataram-o.
-- Mas a quem, a quem ?
-- Ao Alvaro, meu Fabricio, ao Alvaro, bradou-lhe entre um soluço fundo de dor, emquanto cobria o rosto com as mãos para suffocar o choro que lhe estremecia o corpo.
-- O Alvaro ... mataram o Alvaro ... bradava o Fabricio que se levantara de golpe e empallidecera repentinamente.
-- Mas quem?... como?... onde foi? interrogava elle sacudindo o braço de Gusman, cuja voz começou de relatar o suicidio do primo, conhecido já a essa hora por toda a capital...
-- Escuta, ouve... Os dois callaram-se.
Um vendedor de jornaes bradava na rua com voz sonora:
«Quem quer comprar o Noticias. O drama da Bacalhôa. O suicidio do coronel D. Alvaro de Luna... quem quer, quem quer?» Conservaram-se um minuto silenciosos, rostos contrahido pela dôr.
-- Vim para te pedir o automovel afim de partirmos immediatamente para a Bacalhôa.
-- Decerto, decerto, visto-me n'um minuto. Mas que horror, que fatalidade! ...
-- Era de esperar. O Alvaro era uma creatura extraordinária, grande de mais para um paiz tão pequeno. Alma de heroe, sincera e limpida para que se não manchasse ao contacto grosseiro de toda essa canalha.
Fallava a custo por entre soluços, e o Fabricio apesar da sua impassibilidade de medico, tinha lagrimas nos olhos e imprecações surdas na bocca.
Sahiram. Entraram de novo para a carroagem partindo á desfilada em direção á garage da Avenida, onde Fabricio guardava o automovel.
Uma vez chegados, logo o chauffeur prevenido, poz a carruagem em pressão, e passados dez minutos corriam pela Avenida acima, a noventa kilometros á hora, em direcção á Bacalhôa. Atravessaram como n'um sonho Bemfica e Porcalhota, sem trocarem uma só palavra, os olhos semi-cerrados á claridade e ao pó, absortos n'uma dor estúpida que os immobilisava.
Só em frente ao velho palacio, quando a veloz carruagem Mercêdes parou bruscamente no espaçoso largo da villa, em frente ao portão principal, despertaram por assim dizer d'esse marasmo. Grupos numerosos estacionavam pela praça e alguns mais curiosos rodeiavam o porteiro, que pela centessima vez narrava o succedido:
«A precipitada partida dos marquezes logo apoz a fatal noticia, e o corpo do coronel, que fora encontrado pelo jardineiro, ás seis horas da manhã, transportado acto contínuo para a capella onde se armara á pressa uma camará ardente».
José Gusman disse quem era, e penetrou com o amigo no interior do palacio dirigindo-se para a capella, situada na ala esquerda do edifício.
O porteiro cerimonioso e falador acompanhára-os até á porta.
Então os dois, levantando o pesado reposteiro negro de veludo, entraram silenciosos e recolhidos no lugubre recinto.
Toda a magnífica talha desaparecia sob as ricas colgaduras de veludo negro, franjadas a prata, e apenas as balaustradas ouro e vermelho do coro, punham uma mancha collorida no pequeno templo silencioso, onde o morto repousava sobre a gigantesca eça armada ao centro da nave, ladeada por enormes brandões de prata, curiosamente cinzelados.
Todos os fúnebres atavios que outr'ora haviam servido aos fallecidos senhores da Bacalhôa, prestavam agora a ultima homenagem ao coronel D. Alvaro de Luna.
A luz branda, coada pelos elevados vitraes, vinha docemente beijar a physionomia serena e triumphante de Alvaro, a quem a morte parecia ter engrandecido como querendo mostrar que alli repousava alguém que na vida fôra grande.
Alguns officiaes de patente superior, velavam respeitosamente o cadaver quando Fabricio e Gusman penetraram na capella.
Este, a quem a angustia emmudecera, dirigiu-se para a eça escura, e abeirando-se do corpo inanimado, beijou-o na fronte glacial; terna e devotamente como se beijara um santo. Era a ultima caricia, o derradeiro adeus tributado áquelle que na vida tão seu amigo fora.
Quando voltou para junto de Fabricio trazia os olhos razos de agua, mal podia falar.
-- Que saudade, Fabricio, que saudade ! articulou a custo.
-- Como está sereno e triumphante, respondeu-lhe o medico sem despregar os olhos do morto.
-- Parece sorrir e dizer-nos: ser a morte o único lenitivo, o supremo descanço.
-- E assim deve ser, pois só ella nos eguala. Ceifadora de todas as vaidades e grandezas, é egualmente a grande consoladora dos que soffrem, a generosa mãe do repouso e do mysterio, e a única que jamais repudiou os filhos que a ella voluntariamente se acolheram.
Calaram-se meditando, os olhos fixos na morte, atrahidos por uma ardente curiosidade, seguindo passo a passo a mudança que se operava na physionomia pallida do morto, que cada vez parecia mais serena e vaga.
Estranho mysterio o sorriso dos que morrem!
E alli estava estendido, immovel, morta para sempre, o symbolo do passado glorioso e honesto, embora convencional e retrogrado.
Era o ultimo monarchico sincero desapparecendo, o despojo material do heroe ingénuo e generoso, aviltado em vida pela lama do convencionalismo hypocrita, pela intriga baixa e criminosa dos palacianos vis e sem pudor.
Não podera com tu do esse contagio contaminal-o por completo, salvara-o a morte voluntária, toda a energia dos Lunas jamais desmentida e acobardada.
E, caso estranho! Junto d'elle corriam lagrimas sinceras, lagrimas piedosas de saudade infinita, ultimo tributo ao representante derradeiro do Portugal cavalleiro, prestada por aquelles que representavam agora as gerações futuras, boas por Índole, pela intelligencia e pelo amor, percursores infalliveis da grande reivindicação dos direitos do fraco e do opprimido; os executores d'um Deus phantasma, das religiões, dos preconceitos de todos os symbolos vãos do poder, da desegualdade e da torça, de toda a mentira humana, convencional e criminosa.
O sino da egreja badalava lugubremente o seu canto de morte, e os dois libertarios ajoelharam então junto ao catafalco, não decerto para orarem pelo morto, mas sim para junto d*elle formularem o mais terrivel juramento de vingança que a cólera, a tristeza e a justiça, lhe inspirava n'esse momento solemne.
Depois, levantaram-se placidamente, já sem lagrimas nem soluços.
Poderia descançar em paz, como tanto desejara, longe das miserias e torpezas d'essa sociedade que covardemente o assassinara. O futuro vingal-o-hia decerto; a avalanche da verdade da nova religião triumphante da paz e do amor, sem Deus, sem altares, sem preconceitos, egualitaria, livre e carinhosa, rolava já formidavel e ameaçadora, avolumando dia a dia, hora a hora, sinistra, impetuosa e impassivel como a fatalidade.
Dobrava talvez esse sino fúnebre e presago, não somente pela morte de D. Alvaro mas pela agonia inevitavel e justa d'uma monarchia caduca e envilecida.
FIM
Ermijeira-- 6 de setembro de 1907.
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