ARZILLA
Romance do seculo XV
POR
BERNARDINO PINHEIRO
COIMBRA
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE
1862
I
ÚLTIMA TRAVESSURA DUM BRANDE POLITICO
INTRODUCÇÃO
Alterae um pouco os numeros que dividem os seculos; começae na historia patria o décimo quinto em 14 d'agosto de 1385, terminae o décimo sexto em 4 do mesmo mez de 1578; abri esse grandioso periodo em Aljubarrota, encerrae-o em Alcacer-Kibir, e tereis os dois mais variados e admiraveis seculos da vida de Portugal. Vereis um pequeno povo escalar a alta e escarpada montanha do poderio e da gloria; vel-o-heis chegar ao seu mais alto cume, ahi conservar-se por um momento em todo o fastigio do triumpho, começar depois a descer, cahir, sumir-se entre a chusma dos estados sem nomeada na historia. É um vasto e maravilhoso quadro: -- aqui os populares elegem d'entre si um rei, marcham com elle ao campo da batalha, e ahi hasteiam firme sôbre o cadaver do estrangeiro o pendão da independencia, proximo a desabar; -- além os homens de trabalho, conscios de seus direitos, reunem-se em assembleias nacionaes, e aconselham, e dictam ao seu monarcha as leis para a governança pública; -- depois são esquadras e exercitos poderosos, que vão no occidente d'Africa vingar sôbre os sarracenos as affrontas que os turcos fazem aos christãos no oriente da Europa; -- em seguida é o sceptro do rei, que, juncto ao alvião do povo, destroe os privilegios e os solares da nobreza feudal; -- agora ahi vão as frotas dos navegadores afamados arrancar ao oceano ilhas «em numero» mostrar ao velho mundo a estrada maritima da India, plantar a cruz de Jesu-Christo num hemispherio novo; -- depois é ô declive da montanha: -- ahi vem os galeões da India com o ouro e especiarias do oriente, mas trazem comsigo a corrupção, o luxo, o materialismo e a escravidão da Asia; -- em seguida lá chega de Roma, pelo caminho de Hispanha, o fanatismo ambicioso e cruel, lança fóra do reino os mercadores e industriaes judeus, nervo da riqueza interna do paiz, funda a Inquisição e suffoca a liberdade do pensamento; -- finalmente, é uma criança-rei, obstinada e temeraria, ciosa de toda a gloria, que, cercada de frades, pretende fazer d'uma nação um austero convento, e que, para cúmulo de fatalidade, reune quanto ainda havia de gente nobre e valorosa, e vae com ella sepultar-se nos areaes da Africa; -- e todos estes grupos são ligados por uma linha magestosa de sabios jurisconsultos, de oradores eloquentes, de historiadores celebres, de litteratos, de poetas e de artistas inspirados. Ahi tendes a historia de Portugal. Antes d'este periodo é o gerar-se, o organisar-se, o nascer, o avigorar-se, o preparar-se em fim para os grandes feitos. Depois... depois é o cahir de cansaço, o jazer no olvido de passado, o dormir numa indolencia indifferente e criminosa com tres ou quatro estremecimentos de gloria. Se aproveitarmos o último, aquelle que veio dar ao povo o pleno exercicio do seu imprescriptivel e sagrado direito de pensar, de trabalhar e de se governar a si, poderemos, despertando do marasmo que nos consome, e apenas com os elementos que inda conservâmos, tornar a ser entre as nações do mundo um povo respeitado. Poderemos, que para a construcção d'este grande edificio no futuro, mas futuro que póde ser, e prouvera a Deus que fosse ámanhan, basta apenas conservar a liberdade, ter nella fé, -- haver probidade e perseverança em pensar e practicar seguidamente nm verdadeiro systema de governação. Nas horas ociosas do lidar para a realisação d'este porvir, é recreio, e talvez tambem não seja inteiramente esteril recordar, mesmo folgando, alguns acontecimentos do passado. Sumido num dos grupos do quadro magestoso dos nossos dois seculos de gloria um facto busquei, pequeno em relação a tantos outros d'aquella grandiosa era, mas não diminuto em si, já pela gloria que nos deu, já pela utilidade que podia trazer-nos, a não ser mais tarde abandonado, como foi: -- é a tomada d'Arzilla. Narrei-o, entrelaçando-o com um outro acontecimento, onde se mostrou o brilhar das ideias cavalleirosas, que na vida íntima começavam a extinguir-se, e que, no tocante á lealdade e honra, bom seria renascerem hoje no espirito, não duma classe, mas de todo o povo. Fez o caso então certo ruído na côrte; e, parte oral, parte escripto, de geração em geração, chegou a nossos dias. Ouvi o d'uma familia que pretende succeder dos dois principaes personagens que n'elle figuraram. Achei-o interessante. Ambos escrevi, e dei á estampa. Lêde.
II
EMPREZA NOCTURNA
Era uma noite escura e triste do mez d'abril de 1471. As ruas tortuosas e immundas da cidade de Lisboa eram então de mui perigoso trânsito, logo duas horas depois de se pôr o sol. Só as percorriam bandos armados de fidalgos mancebos, foliando desordenados, homens d'armas ou marinheiros, que sahiam embriagados das tabernas, e muitas vezes mesmo ladroes, que extorquiam a bolsa a algum retardado viandante. A policia real e a dos magistrados municipaes era quasi inteiramente nulla, e a sua pouca acção contrariada ainda pela pessima disposição das ruas, pelas trevas em que de noite jaziam, e pelo espirito brigoso dos homens do seculo. O mesmo ou peior acontecia em todas as cidades populosas da Europa. Não se estranhava pois. N'aquella noite dois cavalleiros, seguidos por outro, que parecia criado, pela distancia respeitosa em que d'elles ia, desciam vagarosamente a encosta do Castello. Conhecia-se irem todos tres bem armados e bem montados pelo tinir e, de espaço a espaço, resplandecer das armas, e pelo passo certo, pesado e grave dos cavallos. Os dois da frente iam conversando baixinho.
-- Inda é cedo, Diogo? perguntava o da direita com uma voz juvenil, mas pausada e nazal.
-- Muito cedo, senhor; impossivel é que ja durmam todos os da casa; teremos de esperar juncto a Sancta Justa que sejam horas proprias.
-- Esperar!... quanto desejava eu agora que essa palavra fôsse riscada da nossa lingua, e extinguir com ella a cruel realidade da sua significação!... Esperar! quando eu tenho o coração a arfar de desejos e impaciencia, a imaginação povoada de afogueados e deleitosos sonhos... tu dizes friamente: teremos de esperar... Não é o mesmo que dizer ao falcão, cujo vôo incitámos, que fique de repente extatico nas nuvens, quando vê a presa proxima a cahir-lhe sob as garras? -- não é o mesmo que querer impedir a explosão da polvora, quando a esta chegámos o fogo?...
-- Desconheço-vos hoje, senhor, estaes mais loquaz e ardente que de costume.
-- Estou, Diogo, estou. Mas é que,... sabes,... eu vi-a esta manhan na Sé, juncto ao altar de Nossa Senhora. Por acaso... ai! acaso foi, de certo... levantou para mim aquelles olhos negros, grandes, vivos; aquelles olhos, que enlouquecem ao olhar-nos... Era a primeira vez que os via assim tão de perto; senti por dentro estremecer-me todo, senti um fogo ardente de desejos incendiar-me o coração... Para os possuir, Diogo, dava, dava de boa vontade a mais rica e fortificada villa d'estes reinos.
-- Apesar de serdes mais que ninguem generoso, creio que jamais sereis d'essas dadivas demasiadamente prodigo.
-- Não de certo!... respondeu a voz mais juvenil em tom seguro, e depois quasi sumidamente continuou:
-- Mas não fatiemos no que serei, nem piada no que sou, aqui n'estas ruas, e, sôbre tudo, indo a emprezas como a d'esta noite. Vae nellas mal á minha dignidade; conheço-o e peza-me; mas por ora o coração póde mais do que a cabeça... Que em verdade o que eu imagino ser verdadeiro amor não o sinto por ella, não; desejo-a muito, quero-a tanto, que passei o dia todo n'uma especie de loucura a pensar n'aquelles olhos; -- mas amor não lhe tenho, nem o tive jamais por mulher nenhuma... Mas dize, Diogo, é seu irmão aquelle rapaz que tantas vezes a acompanha?
-- Não, meu senhor; é filho do velho fidalgo em casa de quem está a moça; e até, segundo a criada me disse, é...
-- É que? dize.
-- É seu promettido noivo; que estima o velho tanto a menina, que deseja desposal-a com o filho.
-- Noivo!... E elles amam-se?
-- Disse-me a criada que muitissimo.
Aqui os dois calaram-se. E que na alma do mancebo foi de chofre dar aquella notícia. Todo o doloroso despedaçar do ciume sentiu em si, que em ânimo energico, por diminuto que seja o amor, quando lhe sobrevem com motivo aquelle sentimento, é d'um pungir atrocissimo. E era energico... oh! se era! o espirito d'aquelle mancebo. Mas não imperavam n'elle menos do que as más as ideias boas. E com os maus pensamentos luctaram estas; luctaram e venceram, que o joven exclamou por fim:
-- Ai! Dom Prior, então vamos nós destruir-lhes a felicidade?
-- Inda podemos mudar de intento, senhor; e deixar que a serva aguarde até pela manhan o signal convencionado.
-- Não; tornar atrás, não; e ralar-me-hia de pena com a ardencia de meus desejos illudidos; vamos, e depois emendarei, como puder, o mal que houver feito;... é verdade que o principal, a perda da honra não posso eu reparar... Mas não lhe tocarei n'essa; não, sem ella querer; hei de ir até á sua camara, juncto ao seu leito, adoral-a de joelhos, beijar de leve, para a não despertar, os seus formosos labios, e sahir do quarto deixando-a virgem; hei de em fim portar-me, como aquelle bom rei da lenda, que, passando uma hora juncto ao leito onde dormia a mulher d'um conde seu, a deixou como entrara.
-- Se tal fizerdes, senhor, mandarei em Crato proclamar-vos rei dos cavalleiros andantes... Dissestes ha pouco que a não amaveis, e só a querieis; e agora pareceis-me o mais idealmente enamorado... Pelas vossas palavras ninguem poderá conhecer-vos hoje... Apeemo-nos.
O outro despeitado não respondeu. Tinham chegado ao largo da egreja de Sancta Justa; desmontaram-se, deram as redeas dos cavallos ao criado; e, caminhando silenciosos ao lado um do outro, começaram a passear no adro do templo. Estiveram assim por largo espaço, quando de repente o que se mostrára apaixonado disse para o outro com impaciencia:
-- Não posso aguardar mais, Diogo; vamos, já deve a criada estar á nossa espera. Nada haverá que nos estorve; não é verdade?
-- Nada; se a donzella e a velha aia já dormirem, e esta dormirá profundamente, que lhe fiz dar um narcotico soffrivel. O ancião foi para Santarem, como vos disse, e o filho repousa n'um aposento tão afastado da camara da menina, que impossivel é ouvir qualquer ruido; além d'isso ha entre elles uma grossa porta que estará mui bem fechada... Ouviu-se então um pequeno rumor n'um recanto escuro que ficava perto.
-- Que será?
-- Examinemos, disseram alternadamente os dois. Assim fizeram, mas nada vendo, e dadas as ordens particulares ao criado, partiram ambos por uma viella proxima. Algumas vezes parecia-lhes ouvir passos após si; paravam, escutavam, examinavam com attenção as densas trevas da rua, e, não observando cousa alguma, continuavam seu caminho. Servia-lhes como de fanal a luz d'uma lampada, que illuminava uma pequena imagem de Nossa Senhora, posta em nicho aberto na parede d'uma casa.
-- Ver-nos-ha a Sancta Virgem commetter uma acção vil, Diogo d'Almeida!...
-- Pois voltemos, senhor, voltemos!
-- Não, tarde é já; eis-nos chegados, não devemos recuar. Dá o signal!
Estavam no espaço mais claramente illuminado pela luz da lampada. Fronteiro a esta havia um casarão muito comprido, da mais grosseira e irregular architectura, mas quasi de aspecto collossal. Dirigiram-se os dois á porta, e Diogo soltou um assobio. Era o signal ajustado; a porta abriu-se, e os dois iam a entrar, quando do mais sombrio da rua um vulto de espada e adaga em punho correu gritando:
-- Parae, senhores, parae; essa casa é minha!
-- É meu amo!... estou perdida! murmurou no limiar uma voz afflicta de mulher. Fugi!
E a porta de novo rodou sôbre os gonzos e fechou-se na cara dos dos. Estes, vendo á luz da lampada o seu aggressor, que parecia bem apessoado e bem armado, disseram desembainhando as espadas:
-- É o noivo!
E este gritava:
-- Sois uns miseraveis, que vindes de noite ás occultas accommetter casas honradas e desflorar donzellas em quanto dormem. Defendei-vos!
E antes que os outros tivessem tempo de responder atacou-os com furia, defendendo-se com a adaga e atirando a um e a outro repetidos botes da sua comprida espada. Por algum tempo não se ouviu mais que o tinir das armas, o bater dos pés dos combatentes nas pedras da rua no avançar e recuar da peleja, e alguns sons inarticulados e abafados pelos proprios que os iam soltar, -- como de homens que mais queriam combater do que fallar.
O noivo atacava com grande fôrça, e aparava com a maior pericia os golpes continuados que lhe atirava Diogo; e o outro defendia-se apenas, ainda que perfeitamente, do seu aggressor, e não o atacava, como homem que em sua consciencia conhece ser indigna a victoria numa contenda em que a justiça é contra si. A lucta prolongava-se, e começavam a sentir-se vozes e movimentos de luzes nas casas vizinhas. Diogo, percebendo isto, gritou ao seu joven companheiro: -- sustentae-vos, senhor, em quanto eu dou o signal. E recuando apitou.
O joven, quando o viu retirar da peleja, querendo mostrar a sua valentia, accommetteu o noivo com violencia tão inesperada para elle, que, não aparando uma estocada, sentiu a ponta da espada atravessar-lhe o arnez e penetrar-lhe de leve no peito. Então, deixando quasi inteiramente a defesa, atirou grandes golpes de espada e adaga ao seu adversario, dos quaes alguns foram bater-lhe na armadura; mas esta era de tão fina têmpera, que as armas resvalaram por ella e não poderam penetral-a. Isto foi um momento, e Diogo voltou logo á peleja; mas então abriu-se de repente uma janella do grande casarão, e um vulto branco de mulher, assomando a ella, vendo o combate e conhecendo os contendores, soltou agudos e afflictivos gritos. Duas gelosias da casa fronteira abriram-se tambem, mostrando várias pessoas com luzes, e que soltavam grandes clamores.
Do lado de Sancta Justa sentiu-se galopar de cavallos; eram os ginetes dos nossos dois nocturnos contendores, que, apenas os viram, desembaraçaram-se do seu adversario, saltaram sôbre as sellas e partiram a todo o galope. Era tempo; as portas começavam a abrir-se e os vizinhos a apparecer na rua.
O noivo foi bem depressa rodeado dos burguezes e de suas mulheres que gritavam:
-- Ah! é o senhor Jorge, o senhor Jorge Ruy!
E depois vociferavam contra os dois fugitivos. Ia crescendo a multidão e o tumulto. Então a porta mais vizinha do casarão abriu-se; sahiu uma mulher vestida de branco e em desalinho; rompeu rapida por entre o povo que lhe fez praça, e, chegando ao pé de Ruy, e tomando-o pela mão, o levou comsigo. No limiar Jorge agradeceu aos populares o terem vindo á rua, e, cortejando-os, desappareceu com o branco vulto feminino. A porta do casarão de novo se fechou; e dentro em pouco jazia a rua no anterior silencio.
III
PRIMEIBOS ESBOÇOS
Oito dias depois, vamos introduzir o leitor n'uma camara d'aquella casa perto de Sancta Justa, simplesmente adornada de velhos pannos de raz e moveis de carvalho escuro, tendo apenas d'algum luxo um canapé de madeira dourada, estofado de damasco vermelho. Estava no canapé meio deitado Jorge Ruy, pallido e convalescente apenas da ferida que recebera no combate, a qual lhe produzira por alguns dias uma perigosa febre. Jorge era um mancebo de vinte e dois annos, de mediana estatura, mas mais alto do que baixo, e bem proporcionado. Tinha o cabello negro e annelado, a tez meridional, muita expressão, viveza e sinceridade no olhar, e em todo o rosto uma grande belleza viril. Era como o geral dos mancebos ambicioso de gloria, mas tinha superior á maior parte d'elles um coração bondoso e livre de egoismo, ideias rectas profundamente arreigadas no espirito sôbre a honra e a lealdade, e uma educação litteraria esmerada para o tempo.
Placida até ali lhe deslisára a vida. O seu maior acontecimento era o encontro que tivera aquella noite em que fôra-ferido. Por acaso, recolhendo-se a casa muito mais tarde do que era seu costume, encontrára no adro de Sancta Justa alguns vultos, e, occultando-se por um momento para ver como passaria sem ser percebido, ouviu o que Diogo e o seu companheiro diziam. Andava suspeitoso por ver ha muito rondar pela sua porta alguns cavalleiros. Estremeceu, conhecendo pelo que ouvia quaes eram os seus intentos, e resolveu, mesmo a trôco de sua vida, obstar-lhes á realisação. Disto sabemos o resultado. N'esta occasião Jorge vestia com elegancia um gibão de seda azul escura fardado a preto, deixando ver no peito a camisa finissima e de rendas, umas calças perfeitamente justas da mesma seda, e uns sapatos excessivamente compridos e terminando n'um bico prolongado, como então se usava. Perto do canapé, sentada n'um pequeno banco, estava uma menina d'encantadora belleza, a mesma que havia sido involuntaria causa da briga na rua, a mesma que lá fôra buscar o mancebo, a sua noiva emfim, como dissera Diogo. Era alta, duma figura delicada e mui esbelta. O que se via do pescoço, o rosto e as pequeninas mãos tinham uma cor alvissima, resplandecente e pura; sem a minima sombra, sem a mais sumida e diminuta mancha. Todos os contornos, todas as feições do rosto eram harmonicas e femininamente bellas. Uma havia que dava á donzella a mais singular e insinuante formosura, e, que excedendo as outras, não as offuscava, antes abrilhantava a todas. Eram os olhos; aquelles olhos de que o joven enamorado fallára, grandes, negros, vivos; que ora se amorteciam e similhavam uma noite de luar, meiga e placida, gosada na primavera entre jardins; ora resplandeciam d'alegria e luz, como o sol de verão em terras meridionaes. E eram élles o espelho da sua alma candida; alli se retratavam até as ideias, que mais rapidas lhe passavam no cerebro: a repugnancia, a indifferença, a amizade ou o amor; a saudade ou o desejo, a dor ou a alegria lhe assomavam n'elles, apenas sentidas no espirito. Por isso não tinha, não podia ter a donzella a minima sombra de dissimulação ou hypocrisia. Era o que mostrava ser: bellissima no corpo, e muito mais bella ainda no íntimo da alma, que o devia á sua boa indole e á optima educação, que recebêra no seio d'uma familia honrada, nobre e rica, como era a do cavalleiro velho em cuja habitação estava.
No centro d'essa familia, e soccorrida por ella, a dera a luz sua mãe, perdendo a vida. Memoria e nome de pae, ou bens de fortuna não herdára a orphan. Ignorava quem fôsse seu progenitor, e pouco mais sabia do que ser sua mãe filha d'um honrado fidalgo das margens do Liz. Um crucifixo d'ebano com a imagem de Christo de prata era quanto d'ella possuia. Só d'aquella joia era verdadeiramente senhora. Amava-a pois a donzella como o seu unico thesouro.
Trajava um amplo vestido de finissima lan da mimosa côr que hoje chamâmos de lilás, apertado na cintura por uma fita de setim, apenas visivel por entre as bordaduras de ouro de que toda resplandecia; tinha no pescoço um pequeno collar de perolas; e a cabeça era adornada por fartas e naturalmente annelladas tranças d'um cabello azevichado, fino e lustroso.
Tinha ha muito parado de bordar, e olhava meigamente para Jorge.
Ambos eram bellos, e no rosto d'ambos lia-se o prazer ineffavel, o sentir deleitoso que experimentavam n'alma por se estarem vendo. A linguagem vulgar e fria da palavra, por todos sabida e repetida, tinham elles substituido o mais sympathico e expressivo meio de communicaçao: -- o dos olhares, que n'elles era mais sincero e enthusiasta do que em pessoa alguma, porque todo o immenso e variadissimo sentir do coração, ao vivo se lhes pintava nos olhos formosissimos. Havia muito, que os dois estavam naquelle silencioso, mas ao mesmo tempo energico e suavissimo colloquio, quando á porta da camara appareceu uma velha matrona, aia da donzella, dizendo:
-- Lá vem na rua o sancto doutor Fr. José do Amparo; em poucos minutos o tereis aqui. E sahiu.
Os dois jovens tomaram uma posição de mais gravidade, e a menina continuou o bordado.
-- Mui penhorado estou para com o virtuoso franciscano; -- todos os dias tem vindo saber de mim?
-- Todos. E nos dois primeiros em que estiveste em delirio, horas inteiras passou juncto ao leito em que jazias.
-- É um frade fóra do commum; eloquente e sabio, e d'uma abnegação e caridade que admiram. Infunde-me um tal respeito!
-- Pois a mim causa-me um secreto receio, um medo... não gósto de ver aquelles seus olhos profundos fixados nos meus.
-- Isso é creancice, Rosalinda; é elle hoje o typo de sanctidade na sua ordem, que no desregramento em que vivem todas, é a mais austera e observante. Apenas me conhece de me avistar algumas vezes nas escholas; e vê, como sollícito, apenas soube que estava ferido, tem vindo inquirir notícias minhas.
-- Verdade é isso, e só tenho razões para confirmar a sua grande fama de sanctidade... porém um não sei que, uma voz íntima, fundada talvez no terror que me inspira aquelle hábito... e sabes porque...
-- Sei... mas não fallemos em tal... já vaes a entristecer... Porém calemo-nos, ahi chega o frade.
A aia tornou a apparecer, abriu até atraz a porta da camara, collocou-se a um lado, e, fazendo a mais profunda e respeitosa mesura, deu entrada ao visitante.
-- A benção de Deus e do nosso padre S. Francisco sejam n'esta casa, disse com voz grave, clara o sonora, o frade entrando na camara.
Os mancebos levantaçam-se, e respeitosamente lhe beijaram a mão. Ruy fel-o sentar no canapé, e sentou-se perto n'um escabello.
O frade era de elevada estatura e magro; o rosto macilento, como do homem que tem passado a vida no estudo, e na práctica da penitencia; os beiços delgados e sumidos, o nariz aquilino; e a testa amplissima, maior parecia ainda, continuando-se na calva, que lhe embranquecia a parte superior do craneo, rodeada d'uma corôa de cabello negro. Os olhos eram pardos e cavos; ás vezes brilhavam d'uma viva luz, o que dava incrivel fôrça á sua palavra, eloquente; mas, commummente amortecidos, nada revelavam do que se lhe passava na alma. A sua figura infundia respeito e mesmo admiração; mas querer penetrar-lhe os pensamentos por qualquer exterior indicio era como pretender, no oceano estanhado pela calmaria, investigar o sítio onde desapparecêra o baixel sossobrado durante a tempestade.
Agora nada mais direi do franciscano, o livro inteiro o retratará.
-- Eis-vos quasi bom, senhor Jorge, disse elle; era perigosa a ferida; e depois de Deus, a duas pessoas deveis a cura: ao medico, e a essa menina que, segundo me disseram, está para ser vossa desposada.
-- E vontade nossa e de meu pae, que esposa mais virtuosa e digna não podia encontrar para seu filho.
-- E Deus voa faça para sempre felizes. Mas dizei-me, já não sentis incómmodo?
-- Quasi nada, reverendo doutor, e muitissimo vos agradeço o cuidado que tendes mostrado por mim, desde que estou doente.
-- Nada tendes a agradecer-me; só pela estima em que tenho vosso talento e a briosa acção que practicastes, defendendo a honra dessa menina, eu viria visitar-vos; mas além d'isso fui mandado a saber noticias vossas por uma pessoa que muito se interessa por vós.
-- Por mim?!
-- Sim; e vos manda recado que desejo communicar-vos.
-- Então dizei.
-- Só particularmente o devo fazer.
E olhou para Rosalinda, que, percebendo a vontade do frade, e vendo a apoiada pelo olhar de Jorge, sahiu da camara vagarosa e como a seu pezar.
IV
REVELAÇÃO -- SEPARAÇÃO
-- Sabeis, senhor, quem era o mais joven das dois individuos, com quem brigastes ha oito dias, aquelle que vos feriu? perguntou o frade apenas ficaram sós.
-- Não sei, respondeu Jorge, mas, quando estiver completamente bom, indagarei quem é; vestirei uma armadura da têmpera da sua, e obrigal-o-hei a bater-se de novo.
-- Impossivel! aquelle homem, -- que o é, não pelo número dos annos, porém pela fôrça energica de seu caracter, -- não póde bater-se em combate singular, senão por um acaso, um devaneio, -- e creio que n'elle hão de ser raros, -- similhante ao d'aquella noite que tão fatal ia sendo para vós ambos.
-- Não póde!... nao comprehendo, reverendo padre, a vazão d'essa impossibilidade. É nobre... pela sua linguagem, vestuario, ademanes e pericia nas armas me pareceu...
-- E dos mais nobres é.
-- Pois se o é, os deveres da sua classe o obrigam a dar-me satisfacção, a bater-se comigo á luz do dia, em combate singular e com armas eguaes.
-- Exaggeraes, mancebo; ha deveres...
-- Não exaggero... e não conheço deveres que prohibam ao offensor o dar honrosa satisfacção ao ofendido; que prohibam a dois homens nobres, que já uma vez se bateram, e continuam inimigos, a cruzar de novo as suas espadas.
-- Ha, senhor Jorge, ha deveres, e mui altos e imperiosos, além mesmo d'aquelles que a religião sancta de Christo a todos impõe, e pelos quaes os obriga á paz e ao amor reciproco; -- ha deveres que negam a certos individuos o direito de expôr a sua vida por um capricho, por um pundonor particular, porque ella não lhes pertence: outorgou-lh'a Deus para a empregarem, unica e exclusivamente, a prol do seu paiz.
-- Então quem é, reverendissimo, esse homem com quem me bati... que, tendo deveres taes, anda de noite a armar insidias á honra das donzellas?... é isso, que chamaes, empregar a vida a prol do seu paiz?
-- Foi, disse o franciscano em voz baixa, e olhando ao redor, como para examinar se estavam sós; foi uma aberração de seus verdes anãos, uma loucura de creança... mas já protestou que será a última, e, pelo juizo recto e fôrça de vontade de que é dotado, creio firmemente que o ha de ser.
-- Então quem é esse homem, padre doutor?
-- É um dos mais nobres, ricos e poderosos senhores de Portugal; cuja vida, como já vos disse, unicamente deve ser consagrada a defender e augmentar a sancta religião e o reino. Por elle vos dou minha palavra que não mais attentará contra a virtude da mulher que amaes, e que, elle mesmo o disse, jámais lhe ha dado o minimo indicio de affeição. Não vos quer mal por a haverdes defendido, pelo contrário faz justiça ao vosso valor, e até, direi, vos estima.
-- Oh! dizei-me quem é esse homem, dizei!
-- É o principe D. João, filho d'el-rei o senhor D. Affonso v.
Jorge empallideceu um pouco, e ficou silencioso; só momentos depois é que perguntou:
-- E é da sua porte que vindes aqui?
-- Não; foi el-rei quem me mandou. O principe queria saber se a ferida que Vos fizera era grave, e já ordenava a D. Diogo d' Almeida, prior do Crato, seu companheiro naquella noite, de vir a vossa casa, quando o senhor D. Affonso V, sabendo o acontecido, depois de larga práctica com o principe, em que este de certo levou a melhor, se encarregou da solução do negocio e me incumbiu trazer-vos recado seu.
-- E o que ordena el-rei?
-- Ordena-vos que guardeis um segredo inviolavel sôbre esta aventura, e aconselha-vos que por algum tempo vos ausenteis de Lisboa.
-- Ausentar-me de Lisboa! quando meu pae está em Santarem, e dentro em poucos dias parte para o Além-Téjo, onde tem de se demorar talvez muitos mezes; tendo pois Rosalnda de ficar sosinha aqui!... quem velaria pela sua honra?
-- Eu, senhor Jorge, que vós conheceis pouco, é certo, mas cujo nome, hábito e edade vos devem servir de segurança. Porem, em quanto a não desposardes, póde recolher-se a um convento; ahi a inviolabilidade e sanctidade da casa lhe servirão de abrigo. E vós haveis de sahir de Lisboa; é isto sôbre tudo importante para vós. Sois muito joven, mas não vos fallece edade e muito menos intelligencia para conhecerdes quanto vos é conveniente esta ausencia, e que tambem mui facilmente a podereis aproveitar para encetardes alguma carreira. Uma próspera, de grande futuro, e que muito diz com vossa condição e indole vos posso eu franquear; é propria do vosso brio e valor, e espero que, sendo, como sois, dotado de espirito corajoso e tom portuguez, a não recusareis. O senhor D. Affonso V prepára, como sabeis, uma grande expedição. Tudo quanto houver de ingenho militar, de valentia, de nobreza e mocidade no paiz fará parte d'ella. O logar que vos compete julgo que não querereis deixal-o vasio. De honras, de gloria e poderio haverá para todos larga ceifa. Não se sabe ainda onde se levará a guerra, mas com tal capitão o triumpho é certo. Não deixareis de ir, e el-rei folgará de vos ter por companheiro d'armas. Em prova eis um escripto de seu punho em que vos concede um logar nas suas guardas; e pretende desde já encarregar-vos missão de confiança: ireis ao Porto levar cartas suas ao duque de Guimarães.
Imbuido das ideias guerreiras d'aquelle seculo, e sôbre tudo d'aquelle reinado, e amante de gloria como era, não poude o mancebo resistir ao convite do franciscano. Agradeceu-lhe vivamente o interesse que por elle tomava, e acceitou a nomeação que lhe mandava el-rei.
Oito dias depois, na portaria do mosteiro de Sancta Clara, Rosalinda despedia-se de Jorge. Este tinha pedido auctorisaçâo ao pae, que a dera em Santarem, e partira para o Além-Téjo, onde se foi reunir com elle a aia da donzella.
Banhados em lagrimas, a menina recolhia-se ao mosteiro, e o mancebo partia para o Porto. Rosalinda havia jurado sôbre o crucifixo de sua mae eterna fidelidade a Jorge, e este promettera-lhe, sob a sua honra e palavra, que a desposaria.
II
SEGREDOS DO CORAÇÃO
I
CONQUISTAS NA AFRICA
D. Affonso II, concluindo a conquista do Algarve, acabava de expellir os mouros do extremo occidente da Europa, e desembaraçava completamente o territorio portuguez do dominio arabe. A obra d'Affonso Henriques estava consummada. A espada portugueza, apesar dos arremessos continuos do leão castelhano, derribára as meias luas infieis, e arvorára para sempre em seu logar a crua do Christianismo e o pendão de Portugal.
D. Affonso II e seus successores poderam pois, alliviados da guerra sancta com os arabes, pensar no engrandecimento interno do seu reino. A agricultura, a jurisprudencia, o commercio, a industria em geral encontraram n'elles quem as plantasse em Portugal, as cultivasse, e fizesse progredir. D. João I, restabelecendo nos campos d'Aljubarrota a independencia portugueza, que estivera um momento em perigo, collocava-se á frente d'uma nação rica, populosa, e que dois seculos de continuadas victorias haviam tornado aguerrida e emprehendedora até á temeridade. Possuindo uma marinha de guerra importante, -- vendo em roda de si uma nobreza militar impaciente e ainda poderosa, com seus filhos a frente, mancebos instruidos e anciosos de fama, -- e dotado elle mesmo d'um genio bellicoso e cavalheiresco, terminada a guerra com Castella, quiz ir continuar na Africa a lucta com os infieis, que seus avós tinham com tanta gloria sustentado na Europa. Duzentas e trinta embarcações com vinte mil soldados singraram para as terras africanas. E Ceuta, importante pela sua fôrça, e importantissima pela sua posição, guarda do Mediterraneo e portico de Libya, foi tomada ao primeiro assalto. A este feito um brado unisono de triumpho echoou em todo o reino. Era a primeira estrophe da grandiosa epopeia dos mares, que maravilhada nos escutou a Europa durante trinta e tantos lustros. Desde então as guerras de Africa continuaram. O grande revez mesmo, que logo se seguiu, foi uma gloria: -- gloria de heroismo no martyrio, que, para maior tornar a similhança da nação moderna com o grande povo da antiguidade, nos veio dar na pessoa do infante sancto um novo e não menos afamado Regulo. Os sofrimentos do thio excitaram o ânimo do sobrinho. D. Affonso V tornou seu nome immorredouro na historia pelas suas victorias na Africa. Alcacer- Ceguer, e mais tarde Arzilla e Tanger deveram á sua espada o serem, como joias preciosas, encravadas na corôa portugueza. Com as descobertas ao longo da costa Occidental d'aquella parte do mundo fomos de dia em dia augmentando os nossos senhorios. Se nos tivessemos contentado em plantar o pendão d'Affonso Henriques desde as torres de Ceuta até ao Cabo de Boa Esperança, e sustentado e feito prosperar até hoje aquella immensa, e tão nossa vizinha extensão de praias, seriamos agora, incontestavelmente, uma nação das mais poderosas do mundo. Não o quiz assim o nosso aventureiro genio. Passámos além. Fomos ás margens do Indo e do Ganges colher ás riquezas sumptuosas do oriente, e abrir ás nações, que só mui tarde haviam de ser poderosas na Europa, a entrada do celeste imperio. O ouro da India corrompeu a antiga honra portugueza: abandonou-se a cultura do solo patrio, as liberdades municipaes, o lar domestico para em tão remotas paragens ir ceifar palmas tão douradas quão enganadoras. Esta foi a primeira causa da nossa decadencia; o resto fizeram-no a insensatez e o fanatismo, tantas vezes feroz, de tres reinados. Mas em 1471, o dia do grande lucto nacional estava ainda muito longe; se já havia alguem que antevisse o poderio e gloria que um dia alcançariamos; ninguem de certo imaginava o grande aviltamento a que depois haviamos de descer. O neto de D. João I mandava em todo o reino, e principalmente no Porto, preparar a frota da sua tçrceira expedição a Africa. Estava-se pois na vespera d'um grande triumpho.
II
O DOURO
Era n'esta epocha o Douro um rio mais revolto ainda do que hoje, que a mão do homem nada havia modificado então em seu leito de granito. As vagas impetuosas, debatendo-se de rochedo em rochedo, corriam em cachões violentos e assustadores, e iam depois passar rapidas, mas humildes, ante a cidade, que mais tarde havia de ser invicta, como prestando homenagem á sua futura gloria. No princípio de maio, dias depois dos acontecimentos até aqui narrados, ainda o filho terrivel de Orbion não tinha completamente lançado no Atlantico as aguas que no começo da primavera haviam chovido copiosas. Pela posição do sol conhecia-se ser apenas meio dia, quando um barco á vela subia o Douro, da foz para a cidade. Os bancos dos remeiros estavam cheios de tripulantes; á poupa via-se sentado um homem ainda moço, que, pela sua gravidade e apurado do trajo, se conhecia ter no mundo a mais distincta posição, e juncto d'elle uma joven de deseseis annos quando muito, de rosto bello e delicado, e elegantemente vestida; atraz d'este grupo, mais elevado, porque ia sentado na borda do barco, estava o arraes segurando o leme. Era o vento é, poupa, e para o seguimento da viagem foi preciso cambar a vela; então a impetuosidade da corrente, uma rajada mais forte e inesperada de vento, e um movimento errado na cana do leme fizeram com que o barco se voltasse, e cahiram na corrente todos os que n'elle vinham. Foi tão inopinado o desastre, e tão passados de temor ficaram todos aquelles homens, alguns mareantes velhos, que tiveram apenas ânimo para nadar em direcção a um outro barco, que navegava perto. Só o individuo que vinha á poupa, ancioso estendêra oa braços para segurar a menina, mas uma pancada que levou no hombro com a ponta do mastro o obrigou a largal-a. Desamparada, soltando gritos afflictivos, conservou-se um pouco sôbre a agua, levada pela corrente, depois desappareceu debaixo das ondas. A morte era certa, se fôsse ao fundo; quebraria a cabeça de encontro a algum rochedo, e só voltaria á superfície d'agua, feita cadaver. Então do barco, que vinha proximo, lançou-se ás ondas um mancebo, mergulhou no sitio em que a joven se tinha afundado; e, depois d'um momento de anciedade para todos, que já estavam livres de perigo a bordo do outro barco, voltou ao cimo d'agua, trazendo nos braços a menina desfallecida. Vogaram immediatamente para elles; lançaram-lhes um comprido croque a que o joven se segurou, e depois, aproximando-se, os metteram ambos dentro do bote. Apenas no barco, fizeram lançar á menina a agua salgada que tinha bebido, e deram-lhe para voltar a si e aquecer alguns golos d'aguardente. Em menos de dez minutos, reclinada n'um banco sôbre um amplo manto, estava livre completamente de perigo. Então o cavalleiro que pretendera segural-a, e que até ahi estivera occupado com o tractamento, voltou-se para o mancebo que a tirara das ondas, e disse- lhe: -- Eu sou, senhor, o duque de Guimarães, e estou aqui encarregado por el-rei para preparar a armada: a senhora que tão animosamente salvastes é minha sobrinha, amo-a como filha, ser-vos-hei eternamente grato; consenti que vos abrace, e dizei-me o vosso nome para o gravar no coração. E apertou com effusão o mancebo de encontro ao peito. Apenas o largou, o joven tirou respeitosamente o chapeu e respondeu: -- Chamo-me Jorge Ruy, entrei ha poucos dias nas guardas reaes, acabo de desembarcar d'uma galé vinda de Lisboa, e trago a vossa mercê cartas do senhor D. Affonso V. E o mancebo tirou do bolso d'um pellote, especie de sôbre-tudo áquelle tempo, que despìra quando se lançára ao mar, as cartas d'el-rei, e as entregou ao duque. Pouco depois o barco aproou em terra. Desembarcaram. Um grande coche estava na praia á espera do duque; este entrou n'elle com sua sobrinha; obrigou Jorge a entrar tambem, e dirigiu-se para o paço da Sé onde estava hospedado.
III
AMO-TE
Tres semanas depois da scena antecedente era uma formosa noite de maio; quente, escara, sem lua; e as estrellas tão numerosas no ceu, que similhavam ouro em pó, luzindo brilhantemente n'um veu vasto e negro. Por entre duas linhas de choupos, d'alamos e de acacias floridas e aromaticas, juncto ao Douro, passeavam alguns poucos grupos d'homens e de senhoras, gosando da amenidade da noite, que, sendo de primavera, egualava pela temperatura as mais calmosas do estio. Passeavam ali com suas mulheres e filhas alguns cavalleiros, que se achava [...] Nas tres semanas decorridas desde que pela primeira vez tão singularmente haviam travado conhecimento, os dois tinham passada junctos os dias, vendo-se a todas as horas; ora tangendo alaúde e cantando rimances, ora lendo livros de cavallarias, ora narrando mutuamente seu viver e folgar de infancia, quasi unico passado que ambos tinham. E estabelecera-se entre elles uma intimidade tal, e um tal affecto, que ia muito além do sentir descuidado de duas pessoas q«e se estimam. Não fôra porém ainda entre os dois trocada uma só vez a palavra amor; não haviam tido os labios fôrça para tanto, mas os olhos, sempre mais imprudentes e sinceros, a tinham de ha muito repetido frequentissimas vezes. Nenhum d'elles ignorava o que era aquelle sentimento.
Jorge amava extremamente a sua noiva Rosalinda, e conheceu que um novo amor, sem lhe desvanecer o antigo, lhe ia pouco a pouco apparecendo no espaço infinito do sentir. Assustava-se d'este novo affecto, e, quando estava só, luctava mesmo contra elle. Mas não podia vencel-o. A sobrinha do duque, D. Anna Mafalda, que assim se chamava, era tão esbelta, tinha uns olhos que lhe penetravam tanto no coração, as suas fallas eram tão insinuante, e meigas, e passavam junctos tantas e tantas horas!... E ella, apesar de seus poucos annos, como tinha vivido sempre proxima á côrte militar e aventurosa, e por isso galanteadora de Affonso V, e como lêra e treslêra quasi quantos romances d'amores se haviam escripto nas Hispanhas, viu bem no seu coração o affecto, que ia tendo por Jorge; mas deixava possuir-se d'elle, porque o mancebo entre todos e em tudo distinguia-se pela sua elegancia, tinha-lhe salvado a vida, e parecia por ella loucamente apaixonado. Julgava ser o objecto de seu primeiro e unico amor. E sentia uma intima satisfacção, um como orgulho da paixão do mancebo. E este dos mais perigosos estados em coração de mulher. E Anna Mafalda tinha descuidadamente chegado a elle.
Sentados n'aquelle sitio sombrio e retirado, apertando reciproca e suavemente as mãos, estavam silenciosos e entre-olhando-se. E o amor verdadeiro e íntimo pouco palavroso, e para dois, que se estimam devéras, difficil uma declaração. Além d'isso na alma de Jorge ia uma grande lucta: elle não tinha ânimo de confessar à D. Mafalda o seu outro amor, confissão que seu espirito recto lhe dizia ser um dever; e desejava ardentemente, sem deixar de o receiar e muito, ouvir de seus labios a declaração de que ella o amava. Segredos, mysterios inexplicaveis são estes do coração!
Mafalda foi a primeira que rompeu o silencio:
-- Eu sinto, Jorge, disse ella, uma intima e doce alegria de estar comtigo aqui... A noite... noites como esta foram de certo destinadas pela natureza para durante ella se expandirem êois corações que se estimam.
-- Assim é, respondeu Jorge, mas estimas-me tu devéras?
-- Ai! se estimo?! pois não me salvaste a vida?
-- Isso devo á feliz casualidade de me achar alli, outro qualquer teria feito o que fiz; e se algum merito ha no que practiquei, demais hei sido recompensado já pelo acolhimento desvelado que de ti e de teu bom thio hei recebido. Mas dize, querida, não ha no teu coração alguma cousa mais por mim do que esse reconhecimento, do que essa estima?
E, assim dizendo, levou aos labios a mão da menina, que a sobrinha do duque não afastou.
-- Ha; para que hei de occultal-o? respondeu, ha uma necessidade de viver comtigo e de pensar em ti, que me torna monotonas as longas horas em que te não vejo, e dulcissimos os momentos em que estamos junctos, que sendo a máxima parte do dia me parecem rapidqp instantes...
-- Então amas-me?
-- Amo-te, disse ella com voz sumida.
E Jorge, achegando-a suavemente para sôbre o coração, lhe imprimia nos labios um longo e suavissimo beijo.
Então um vivo clarão de luzes que se aproximavam, mas já estavam perto, e o som ruidoso de muitos instrumentos bellicos, mas em tom festivo, vieram de subito perturbar e assustar os dois namorados. Levantaram-se e dirigiram-se apressados para o logar da alameda onde tinham deixado o duque.
Ao aproximarem-se viram muitos homens d'armas, marinheiros e operarios da esquadra com a alegria nos rostos, brandões accesos nas mãos; no meio d'elles muitos musicos com seus instrumentos; e todos, agora silenciosos, cercavam o duque e os seus cavalleiros. Afastaram-se alguns para lhes darem passagem, e quando chegaram juncto ao grupo dos fidalgos, viram um cavalleiro com trajos de viagem todo empeado, que apresentava ao duque uma carta.
O mensageiro, ao passar na cidade, tinha dicto a que vinha; -- a nova causára á gente da armada muito regosijo, reuniram-se apressados, e, com grande alarido, o acompanharam á presença do duque. As senhoras e os fidalgos que estavam com este, e ignoravam o assumpto da mensagem, esperavam com grande curiosidade que elle, lendo a carta, explicasse a causa de tanta alegria.
O duque abriu vagarosamente e com solemnidade o papel, e, depois de o ler á luz avermelhada dos brandões, disse para os senhores que alli estavam, mas alto, de modo que todos o ouviram.
-- El-rei, meu senhor, participa~me que tendo Focumbrix, corsario inglez, sobrinho do conde de Varsic, aprisionado doze naus portuguezas, que vinham carregadas de Flandres, quer tomar desafronta d'este vil feito, para o que dentro em quinze dias a nossa armada singrará para os mares d'Inglaterra, e ahi felizmente iremos pelejar.
A estas palavras um brado unanime de -- viva o senhor D. Affonso V! atroou os ares, e as charamelas, trombetas e atambores começáram a tocar.
Para todos os homens que alli estavam era a guerra uma alegre nova; todos a desejavam ardentemente, fôsse contra quem fôsse, e a viam em fim chegar.
Era ella a principal e a mais nobre occupação dos homens e dos estados, era o mais facil caminho do poderio e da gloria; com ella os individuos ganhavam os foros de fidalgo, as familias se engrandeciam, as nações se formavam ou dilatavam.
Tal estado não devia prolongar-se muito mais. Os grandiosos acontecimentos d'este seculo e do seguinte mudaram profundamente o modo de existir e de pensar dos homens e das sociedades. A guerra começou a ser olhada, como um dos maiores flagellos que opprimem a humanidade. De causa de júbilo que era, tornou-se motivo de consternação e de prantos.
Alguem dirá que isto é prova da decadencia das ideias briosas e nobres, para mim é um progresso e não pequeno.
IV
PLANOS DE CASAMENTO
Tres dias depois, n'um aposento particular dos paços da Sé; estavam reunidos o duque, sua sobrinha e Jorge Ruy.
Este prestava commummente ao duque o serviço de pagem da escrivaninha, e agora o de secretario. Estava sentado juncto d'um bofete, e escrevia o que o duque, passeando ao longo da sala, lhe dictava.
Ao leitor não desagradará saber quem era o duque de Guimarães; um personagem grande e infaustamente célebre na historia de Portugal.
Era bisneto de D. João I, e, por morte de seu pae, -- então já de muita edade, e mais que ninguem ouvido e seguido nos conselhos d'el-rei, -- seria o terceiro duque de Bragança, aquelle que no reinado de D. João II expiou no cadafalso a altivez, o poderio e os crimes da nobreza.
Era o duque de Guimarães, D. Fernando, de presença nobre e gentil, bom capitão e valoroso soldado, como já o tinha mostrado muitas vezes nas guerras d'Africa. Ahi foram taes suas façanhas que lhe grangearam, como a D. Affonso v, o titulo de africano.
Lhano commummente em seu tracto, egualava-se com aquelles que ante si se mostravam submissos; mas era alteroso e suberbo com os que pretendiam a elle nivelar-se. Era generoso, e amava a ostentação e os prazeres; na sua infeliz morte porém foi exemplo de desapego do mundo e de sancta resignação. No anno antecedente áquelle em que estamos, tinha recebido em segundas nupcias D. Isabel, filha de D. Fernando, irmão d'el-rei. Ainda não vivia com a infanta por ella ser de mui pouca edade. Não tinha pois successor o duque e amava Anna Mafalda com os extremos de pae.
Era esta filha natural de seu irmão D. João, que depois foi marquez de Monte-mór, e morreu refugiado em Castella, emquanto a sua estatua era desauthorada e degolada em Portugal, por ordem do terrivel e real inimigo do feudalismo.
Anna era linda: era uma d'essas raras e mimosas formosuras portuguezas, a quem o sol ardente do meio dia, depois de ter aquecido a tez, lhe foi aquecer e encandecer o coração. D'um moreno leve, a pelle era macia e aveludada; o nariz e a bocca pequeninos; a testa espaçosa e serena; o cabello abundante e luzidamente negro; e os olhos rasgados e d'um castanho brilhante e vivo inspiravam o amar, e promettiam a ternura e até mesmo o delirio da paixão. Não era alta, mas admiravelmente bem feita, sôbre tudo os pés e as mãos d'uma pequenez e delicadeza fabulosas.
Estava sentada n'uma grande cadeira, cujo espaldar de pau preto era lavrado, como o portico principal d'uma cathedral gothica; trajava um vestido de setim azul escuro enfeitado de rendas, e tinha os pés sôbre um banquinho estofado. N'aquella posição Anna Mafalda era magestosamente bella. Jorge, escrevendo, olhava-a de quando em quando, e, vendo-a assim, cada vez mais no coração se lhe infiltrava o amor.
Dictava-lhe o duque uma carta para o pae de D. Mafalda: dava, primeiro, os parabens de ter sido nomeado capitão da armada que devia ir a Inglaterra; depois algumas instrucções sôbre os navios, que se armavam no Porto.
Concluindo isto, o duque parou defronte da sobrinha, e disse-lhe:
-- Agora: algumas palavras a teu respeito.
-- Quaes, meu thio? perguntou corando.
-- Ouvi. Dirigiu-se de novo a Ruy.
-- Escrevei, disse; e voltando ao seu passeio começou a dictar: «Na ausencia, D. João, em que vivo aqui dos nossos, é tua formosa filha o unico lenitivo ás minhas saudades, e aos cuidados e fadigas da governação da armada. Ha annos que vive em minha companhia; e hei de roubar-t'a de todo, que já não posso passar sem ella. Comtudo, como eu não basto ao seu coração, esposal-a-hei, sob a condição de não sahir d'ao pé de mim, com o mais gentil e denodado pagem, que ora tenho, a quem breve daremos na proxima guerra as esporas d'ouro de cavalleiro. N'isto fallaremos apenas nos virmos. Agora: ella te envia muito saudar, e te pede a benção.»
Anna estava da cor da purpura; e Jorge pallido e tremulo, sentia tamanha turbação, que escrevia pelo tacto sem ver lettras, nem papel.
O duque, vendo o enleio dos dois, riu-se.
-- Agora o que resta, disse, eu mesmo o escreverei, podes sahir, Ruy.
E o mancebo pallido, como um defuncto, sem olhar para nenhum dos dois, sahiu, encostando-se ás paredes.
Anna Mafalda no seu delicado e perspicaz coração d'amante sentiu uma dor agudissima, vendo-o assim:
-- Parece-me que lhe peza o unir-se commigo, pensou ella.
O mesmo duque não poude deixar de notar a tristeza do mancebo.
-- Vae tranquilisal-o, disse para a sobrinha, pois julgo que o pobre moço não entendeu que era elle o pagem de quem fallava.
V
NOTÍCIA INESPERADA
Estava Jorge Ruy n'um passo difficil e angustioso. Amava D. Anna, amava-a com toda a fôrça de seu coração, e era correspondido com a ardencia vivissima duma verdadeira filha da peninsula. O duque desejava que elles casassem; a um desejo seu e d'aquella ordem quem poderia resistir? Materialmente, de tal união não podia Jorge antolhar senão vantagens: Anna não era filha legítima, mas procedia de sangue real; elle seria armado cavalleiro e intimamente alliado com uma familia que em poderio, fausto e nobreza hombreava até com a reinante casa; os primeiros cargos do estado lhe seriam accessiveis. Para Jorge Ruy, filho d'um simples cavalleiro, apesar de rico, era aquelle um futuro tal, como não podia ter phantasiado nos seus mais affogueados sonhos de gloria.
Mas Rosalinda? Rosalinda que elle amava com toda a vivacidade d'um primeiro amor e com toda a lealdade d'um coração nobre e pundonoroso? Annos havia que a donzella lhe entregara, com a dedicação e extremo d'uma alma virgem e apaixonada, o seu coração e a sua vida; agora do claustro, onde por sua causa se encerrara, d'ella recebia longas e enamoradas cartas repassadas de lagrimas, de amor e de saudade. Elle amava-a ainda tanto ou mais do que outrora, e havia-lhe empenhado sua palavra!... E o pobre Jorge não sabia o que fazer; -- pois para outro qualquer menos verdadeiro e menos honrado d'aquella, ou desta nossa epocha, a resolução era simples.
Naquelle dia evitou encontrar-se a sós com a sobrinha do duque. Via que o seu dever era declarar lhe a duplicidade de sua posição; mas, como já em outro logar o disse, não tinha ânimo: pela altivez que lhe conhecia receiava que, sabendo ella a verdade, deixasse de o amar, e elle amava-a.
Passaram-se muitos dias sem se atrever a fazer tal confissão. Quando sósinho, escrevia mil cartas em que lhe declarava tudo, mas juncto a sobrinha do duque deixava levar-se do amor que o possuia, e não tinha fôrça para lh'as entregar; depois rasgava-as, e escrevia outras que tinham o mesmo fim.
No entanto viera ordem de Lisboa para a armada nao partir. El-rei resolvêra mandar embaixadores a Inglaterra pedir satisfacção, e passou cartas de marca aos navios portuguezes para que podessem fazer presa nas cousas inglezas. Continuaram pois os preparativos para a expedição primeiro delineada.
Jorge quando tal soube ainda mais se affligiu: além de se distanciar a occasiâo em que poderia distinguir-se, esperava que a partida da esquadra, e as mil contingencias da guerra o livrariam d'aquella dificuldade. E ella cada vez se tornava maior. A última carta que recebêra de Rosalinda pintava-a no mais afflictivo estado de saudade. E o duque já, outra vez fallára na sua união com D. Mafalda. Estava pois em ancias o nosso pequeno turco de coração.
Foi n'este estado de espirito que um dia pela manhan lhe bateu á porta do quarto um leigo do convento de S. Francisco, que, depois de lhe dirigir as mais respeitosas genuflexões, e de sorrir idiotamente com uma cara abeatada e estupida, lhe entregou uma carta que, disse, ter n'aquella hora chegado do convento de Lisboa, e retirou-se.
Jorge leu:
«Meu filho espiritual, -- Sei tudo quanto vos ha succedido desde que vos achaea com o magnanimo e virtuoso senhor duque de Guimarães, e o apertado transe em que a lealdade de vosso coração, e a gratidão justa e devida, além d'um novo e muito digno affecto, vos collocaram. Sempre sollícito a guiar vos com a luz, de que Deus e o nosso bemaventurado padre S. Francisco me fizeram dom, tinha em minha consciencia resolvido impetrar de el-rei, nosso senhor, uma ordem que a vos chamasse a Lisboa, e livrar-vos assim, da dificuldade em que estaveis. Infelizmente, porém, o principe das trevas foi tentar e assenhorear-se d'aquella a quem tinheis dado vossa palavra, e por quem estaveis prompto a fazer o grande sacrificio da muita gloria e prosperidade que vos offerece a união que o duque vos propoz. Hontem, com grande escandalo das almas purissimas que a habitavam aquella sancta casa em que a deixastes, fugiu durante a noite, favorecedora da maldade, com um individuo que ninguem sabe quem é, e com o qual, havia dias, tinha occultas relações. Estaes pois, meu filho, livre da vossa promessa, e podeis ceder aos desejos do mui nobre senhor, que tanta honra vos quer fazer.
Sinto profundamente em meu coração dar-vos a tão pungente notícia. Porém consolae-vos; o mal é da infeliz que se perdeu, para vós ha só vantagens. Em minhas orações eu não cesso de rogar a Deus que vos abençoe para que melhor o possaes servir e glorificar. Vosso pae em Jesu-Christo»
«Frei José do Amparo.»
Jorge, quando acabou de ler esta diffusa e fradesca missiva, sentiu gelar-se-lhe o sangue; deixou-se cahir sôbre uma cadeira, e ahi esteve muito tempo quasi sem vida. Depois levantou-se ardendo em febre. Todos os seus sentimentos exaltados de lealdade e orgulho achavam-se profundamente offendidos. Não podia comtudo acreditar a carta do franciscano, e, muito menos, resolver-se, sem mais prova alguma da infidelidade de Rosalinda, a acceitar a proposta do duque. Com a virtude que n'ella conhecia, n'ella quasi sua irman, n'ella a protegida e educanda de seus paes, aquella perfidia parecia-lhe uma absurda impossibilidade.
Cumpria, primeiro que tudo, ter a certeza da verdade.
Foi ter com o duque; disse-lhe que um negocio de summa ponderação o chamava a Lisboa, e que absolutamente lhe era preciso partir. Elle, vendo-o tão afflicto e resoluto, não quiz negar-lhe licença, e deu-lhe dois homens d'armas para o acompanharem.
N'esse mesmo dia Jorge Ruy sahiu do Porto, caminho de Lisboa, tendo apenas escripto a D. Anna um bilhete de despedida; pois, com os varios sentimentos que tumultuavam em seu espirito, não teve o mancebo ânimo para lhe annunciar oralmente que se ausentava.
III
FREI JOSÉ DO AMPARO
I
ADVERTENCIA
O vulgo, os inscientes, confundem muitas vezes, as mais das vezes, e de boa fé, o padre com a religião, o homem com a ideia. É que seu espirito descultivado não concebe facilmente o ideal; a elles param no que é material e tangivel, fixando ahi, quasi exclusivamente, suas vistas.
Por isso esfria no povo o espirito religioso quando cae em vilipendio o clero; -- assim como são chamados malevolos e impios pelos rudes ou hypocritas defensores da religião aquelles que, apesar de a respeitarem, atacam as abominações de seus ministros. Eis dois grandes males que resultam d'aquella confusão. A historia da vida do catholicismo, tão longa e cheia de tantas vicissitudes, é prova exuberante d'esta verdade. Servindo-lhe tal confusão de escudo, os padres jámais a combateram seriamente; pelo contrário, é o geral d'elles que mais têm concorrido para a enraizar, pois a professam e ensinam. E o maior testimunho da divindade da religião catholica é ter resistido triumphante por dezoito seculos aos erros e impiedades dos que deviam ser seus guardas fieis e fervorosos propagadores.
Em theoria, e para o homem que pensa, é a distincção clara e facil; é porém difficil na práctica, e quasi inexequivel aos espiritos rudes.
Pois era util, utilissimo imprimil-a na mente de todos, porque exaltava a religião, e mais tarde exaltaria os seus ministros; discriminava o bom do mau, separava o joio roedor e parasita do trigo alimentoso e nutritivo.
Não é aqui logar proprio para largamente a expor e explicar; só a menciono, para que sirva diviso aos incautos -- que não é ataque á religião sancta do Crucificado, mas sim aos clerigos maus, a seguinte narração, cujos factos succedidos no seculo XV, têm sido frequentissimas vezes repetidos n'outras eras e n'este nosso tempo.
II
O FRADE E A ABBADESSA DE SANCTA CLARA
Na grade principal do convento de Sancta Clara de Lisboa, pelas quatro horas da tarde do mesmo dia em que n'elle entrara Rosalinda, Frei José do Amparo dizia á Abbadessa:
-- Minha irman, nada ha na vida que mais cuidado, sollicitude e desvelo nos mereça que a expulsão dos pensamentos e costumes que tinhamos no seculo, a completa escravidão das paixões, a inteira abnegação de si e de tudo o que é terreno; e a consagração de todas as nossas ideias, de toda a nossa existencia ao amor exaltado, á adoração sem limites de Jesu-Christo. Para tal conseguir, a vida do claustro é a mais perfeita: nas sanctas abobadas do mosteiro não retumba com tanta fôrça a voz escandalosa das abominações e impiedades do mundo. Por baixo das vestes religiosas póde o cilicio andar mais conchegado ás carnes; e temos mais contricto o coração e mais devoção no peito com os exemplos vivos de virtude e de zelo religioso, que n'estas sanctas casas nos rodeiam. E pois o claustro a senda mais plana e menos semeada d'abrolhos para nos conduzir ao ceu, unico fim que devemos ter em vista. Ora, minha irman, eu tenho verdadeira affeiçâo a essa ovelhinha desgarrada, que hoje entrou no vosso rebanho; e quizera ver-lhe despir as roupas do seculo que a desfeiam, e envergar a estamenha, muito mais formosa aos olhos de Deus, do nosso sancto hábito. Era roubal-a assim ás tentações do inimigo do genero humano, desvial-a dos mil precipicios, dos mil reconditos e profundos abysmos que o mundo a todos apresenta, e inda mais a uma donzella, para a collocarmos e encaminharmos n'esta sempre difficil, porém mais viavel que nenhuma das outras estradas do paraiso.
E o franciscano em pé e com expressivo gesto fallava com tanta uncção e enthusiasmo que as suas palavras impressionaram profundamente o coração simples da abbadessa, e uma lagrima, rolando pelas faces, lhe foi cahir e sumir-se no escapulario.
Era a freira uma senhora alta e corpulenta, de coração e olhar meigo e bondoso, e com o rosto e as mãos d'uma alvura excessiva, mas sem brilho algum, inteiramente baça.
No typo geral das femininas formosuras claustraes ha um não sei que, mais para affligir que para recreiar a vista; são quasi sempre gordas, mas d'uma gordura balofa, quasi inchação, não se lhes divisando através da cutis a côr rosada do sangue, e faltas completamente de animação e vida. Os olhos não lhes brilham, porque sempre são mais ou menos affectados da ophtalmia, e a palavra é commummente abafada e sem echo.
A abbadessa respondeu:
-- Vós sois, reverendo padre, sabio e virtuoso, e exemplo, para todos nós os filhos de S. Francisco, de austeridade e zelo no serviço de Deus. Um desejo vosso é uma ordem para mim. Se pretendeis trazer ao claustro para sempre a donzella que hoje confiastes á minha guarda, eu farei tudo o que me aconselhardes para a persuadir a abraçar esta vida, que sabeis pintar com tao sanctas e vivas côres, mas que o meu espirito fraco e rebelde para o bem, me afigura menos mansa e menos piedosa do que parece á vossa alma illuminada pela sapiencia e divina graça.
-- Sois ingrata para com Deus, minha irman, e o vosso espirito ainda não está inteiramente desprendido das cousas miseraveis da terra. Como S. Paulo dizia aos Corinthios, «vós ainda não experimentastes senão tentações humanas; mas Deus não permittirá que sejaes tentada mais do que podem vossas fôrças, antes fará que tireis ainda vantagem da mesma tentação para a poderdes supportar.» Guardae-vos bem, de não repetir o que dissestes, sôbre tudo diante d'aquellas que Deus vos confiou para guiar no seu serviço. E deveis castigar com penitencias a rebellião de vosso espirito para melhor cumprirdes o dicto do Apostolo.
O frade dizia isto quasi irado e á pobre senhora, correndo-lhe agora o pranto em fio, estava verdadeiramente afflicta e arrependida do que tinha dicto.
-- Perdoae-me, padre, disse ella, eu jejuarei dois dias a pão e agua, e oito conservar-me-hei de joelhos mais uma hora na oração pelo escandalo que vos dei.
-- Assim deveis fazer, minha irman, e o nosso bemaventurado padre S. Francisco vos obterá o perdão de Deus. Mas emquanto á donzella, de que vos fallava, não olvidareis de lhe apresentar constantemente as vantagens incontestaveis da vida monastica, de a dissuadir quanto possivel dos affectos que a ligam ao mundo, e principalmente de procurar extinguir em seu peito o fogo d'um mundano amor que a possue e tresvaria.
-- Farei quanto me ordenaes, reverendissimo; mas peço-vos encarecidamente e espero que me ajudeis na realisação de tão sancto empenho. A vossa voz é eloquente e persuasiva, e ha de por certo mover o coração innocente e bom da donzella.
-- Mui grande é já e mui excessivo para as minhas fôrças o peso das obrigações que estão sôbre mim; porém não posso negar-me ao pedido que me fazeis, porque, emquanto a minha alma se conservar no involucro miseravel d'este corpo, eu não devo, nem posso negar-me a trabalho algum na vinha do Senhor. Virei todas as vezes que possa practicar com a donzella, e Deus abençoará o nosso intento.
E dizendo isto o franciscano saudou a abbadessa e sahiu.
III
O JURAMENTO
Nas palavras austeras de Frei José não viu a boa, a simples da abbadessa senão o pensamento que o padre por ellas expressou, tão piedoso e de tão saneio fim. Pois outros tinha o franciscano na mente de muito menos virtude e piedade, que fariam estremecer de horror o coração da religiosa, se os tivera adivinhado.
Regosijando-se interiormente de ter vencido o primeiro obstaculo que a sua empreza lhe apresentava, ia agora o frade caminhando para as portas da cidade, e distribuindo a todos os mendigos que encontrava, e não eram poucos, muitas moedaa de cobre de que levava a bolsa recheada.
Com a sua figura alta e delgada, a cabeça calva, o rosto pallido das nocturnas vigilias, passadas, assim o julgavam todos, no estudo e na penitencia, e a parda e ampla capa do humilde hábito solta e empavesada pelo vento, o frade tinha um aspecto magestoso, e cavalleiros e peões ao passarem por elle respeitosamente o cortejavam.
Era Fr. José do Amparo um soneto, e -- o sancto, por excellencia o appellidavam todos.
Vendo-se tão venerado da multidão, o padre começou a revolver na mente a historia intima de sua vida, que inviolavelmenle occultava a todos, e que por isso mesmo tinha sempre mais ou menos presente na memoria. N'aquella hora parece que um genio oppressor e maligno acintemente lhe desenrolava aos olhos do espirito a longa e pavorosa tela de todos os seus nefandos crimes:
Fazia n'aquelle dia quarenta e seis annos que o alcaide do castello de Leiria, descendo o morro íngreme em que se levanta a fortaleza, para vir gosar a briza refrigerante do cahir da tarde juncto á margem do Liz, encontrára involto em esfarrapa dos manteus um lindo menino, parecendo ter apenas algumas horas de nascido.
Embrulhou-o no seu manto o cavalleiro e foi leval-o á espôsa, que amamentava então uma filhinha de dois mezes, primeiro e unico fructo do seu consorcio.. Alimentadas pelo mesmo leite, deitadas no mesmo berço, foram crescendo junctas as duas creanças, e junctas viveram até aos doze annos.
Era a menina d'uma construcção robusta e genio ledo, e os dias passava-os a folgar nas veigas cultivadas e tão risonhas que rodeiam a cidade.
Acompanhava-a o seu collaço, menos alegre e ruidoso, e com rosto já n'aquella edade pensativo e dissimulado. Nos jogos de fôrças entre os mancebos não era elle o último; mas via-se que o desgostavam aquelles exercicios corporeos; e só se deleitava, e levava a todos vantagem nos trabalhos da eschola.
Um irmão do alcaide, leitor no convento de S. Francisco em Lisboa, veio um dia a Leiria, e, vendo as felizes disposições do mancebo para os estudos, o levou comsigo á capital.
Seus progressos foram rapidos: aos vinte annos era conhecedor profundo das tres linguas, então muito professadas e sabidas, latina, grega e hebraica, e o primeiro theologo entre os escholares da casa.
Em philosophia ostentava ser acerrimo sectario da exaggerada doutrina do mysticismo do quasi seu coevo Gerson.
E edificava a todos no convento a compostura de maneiras e palavras, a muita humildade e caridade do mancebo.
Costumavam as casas conventuaes franciscanas de Lisboa e Coimbra mandar ás mais celebres universidades extrangeiras aquelles dos seus escholares que mostravam ser dotados de superior talento e rara applicaçâo.
O filho adoptivo do alcaide foi escolhido para este fim. Partiu. E o bom cavalleiro, que jámais se esquecia d'elle, constantemente lhe mandava dinheiro para o seu bolsinho.
Annos depois o joven sabio, voltou á patria, tendo percorrido quasi toda a Europa, e com o grau de doutor em theologia pela universidade de Paris e o de doutor em direito pela de Pisa.
Era a honra, era a gloria da sua ordem; e os seus confrades todos o receberam de braços abertos.
Mas no mesmo dia em que desembarcou em Lisboa uma carta chegada na vespera ao convento o obrigou a partir para Leiria.
O alcaide estava a morrer, e queria vel-o antes de descer ao sepulchro.
Foi louvado de todos o sancto empenho com que o doutor correu ao appêllo do moribundo. O moço franciscano fez rapidamente a jornada; mas, quando chegou, estava o cavalleiro quasi a expirar. Ao ver entrar o seu filho adoptivo, animou-se um pouco, sentou-se no leito, e, encostado ao cabeçal, disse-lhe com voz desfallecida:
-- Bemdicto seja Deus que te trouxe aqui! a tua vinda faz com que a minha alma se desprenda da terra menos afflicta... Isto está por instantes... já te não posso provar a alegria que experimento por ver, que tão alto subiste em virtude e sciencia...
O ancião quasi cadaver parou um pouco, respirou; depois estendeu o braço, tomou na mão descarnada um cruxifixo que tinha á cabeceira, e proseguiu:
-- «Estou viuvo e pobre; com a minha filha e comtigo hei despendido o resto de meus poucos haveres. -- Eu morro... e a ella... só tu lhe restas no mundo... Jura, -- continuou o moribundo com voz supplicante e lacrimosa e a cruz entre as mãos postas e estendidas para o franciscano, -- jura!.. jura sôbre a imagem de Christo crucificado que, emquanto vivo fores, serás a guarda e o amparo de minha filha!
E o padre -- que já o era -- ajoelhou, e, collocando com solemnidade a dextra sôbre a veneranda effigie, respondeu:
-- Assim o juro!
Ouvindo tal, o ancião levou aos labios o crucifixo, clamando:
-- Graças! Senhor, graças! E expirou.
IV
SOMNO FATAL
Frei José do Amparo transpoz o espaço que separava o convento de Sancta Clara das portas da cidade, e entrou n'esta, quasi sem o perceber.
Ia, machinalmente, dando esmolas aos mendigos e comprimentando quem lhe passava ao pé. No cerebro continuava a opprimil-o a negra visão do seu passado.
Tres dias depois da morte do alcaide a filha d'este e o doutor partiram para Lisboa n'uma liteira.
Havia treze annos que elle não via a sua irman adoptiva. Tinha-a deixado menina, correndo e folgando pelas margens do Liz; encontrava-a agora mulher já feita, [...] mulher e a oppressão assustadora de seus pensamentos febricitantes.
Na noite do segundo dia chegaram a Santarem. Entraram pelo largo magestoso de Fóra-de-Villa, e foram hospedar-se na casa do dono da liteira.
O frade podia e devia ir poisar no convento de S. Francisco, mas não quiz deixar a filha do alcaide.
No outro dia não foi para Lisboa, ficou; não tinha ânimo de voltar para o convento, de se affastar d'aquella mulher; e alli esteve uma semana; e depois um mez.
De noite bem aforrado sahia acompanhado com a donzella e levava-a a passear, umas vezes por aquellas ruas tortuosas e estreitas em que as egrejas, os conventos, os palacios se apertavam em suas grandiosas fórmas; outras, sahia de Marvilla, e, descendo o monte, ia ao Alfange divagar na margem do Tejo.
Elle cada vez sentia mais no peito augmentar-se-lhe a paixão; ella estava inteiramente preoccupada com a immensa dor da perda de seu pae.
Não podia já o frade resistir ao louco e criminoso affecto que o possuia; e o geral do convento de Lisboa, sabendo que estava em Santarem, instava pela sua volta á capital; elle dizia-se doente, e uma pequena e fradesca indisposição entre a casa de Lisboa e a d'aquella villa impedia o prelado de saber a verdade; alem d'isso, em tão bom conceito tinham o joven doutor que ninguem aventava a menor suspeita. Comtudo, era impossivel prolongar-se aquella demora; já havia um mez que sahíra do convento.
N'uma noite, em que a donzella se achava indisposta, não foram passear; subiram a um terraço que tinha a casa.
Era no mais quente do estio, não bolia folha, a lua não campeava no ceu, mas as estrellas brilhavam com fulgor.
Um não sei que tornou á donzella n'aquella hora vivissimas as saudades do pae. E afflictivo pranto, abundante de lagrimas e de soluços, a accommetteu. Então o franciscano, fingindo querer mitigar-lhe a dor amimando-a, estreitou-a ao seraphico burel que o cingia, e imprimiu-lhe nos labios longos e freneticos beijos, ardentes de lasciva voluptuosidade.
E a donzella deixou beijar-se: elle era seu irmão, sempre o considerára seu irmão; e ainda se lembrava dos dias que no mesmo berço dormiam abraçados com toda a innocencia da infancia. Era por isto que, tendo já duas vezes o padre alludido ao que sentia por ella, o não comprehendêra; e elle se acobardara ante aquella afouteza d'irman.
Agora o franciscano sem se atrever a mais, a beijava e apertava com loucura; até que a filha robusta do Liz, sentindo-se fatigada de tantas caricias, se lhe desembaraçou dos braços.
Levantaram-se e recolheram-se aos seus quartos.
Quando sósinho, o frade sentiu estalar-se-lhe o coração de desejos e, direi tambem, de verdadeiro amor.
Uma desesperação cruel o accommetteu:
-- Se fosse, pensava elle, um homem do mundo, a realisação dos seus desejos era facilima, a religião a sanctificaria; mas frade, mas padre!... E com terriveis blasphemias elle arrojou fóra de si as roupas humildes do casto e virtuoso Francisco d'Assis!
Lançou-se sôbre o leito, e rojou-se por elle, e arrepellou-se, e chorou; mas lagrimas grossas e aridas, que não alliviam, antes mais opprimem o coração.
De repente um pensamento nefando o assaltou; reteve os loucos transportes que o agitavam, vestiu-se, e esperou que a servente da casa o chamasse para a ceia.
Quando esta o fez, elle tirou d'uma pequena caixa um frasquinho de prata, metteu-o no seio, e sahiu.
Chegando á sala da refeição, ainda lá não estava a filha do alcaide: deitou o frade n'um prato comida para ella, e lançou-lhe algumas gôttas d'um líquido que se continha no frasco. Ella veio e comeu; e minutos depois, queixando-se d'um grande peso na, cabeça, retirou-se para o quarto.
O padre esperou o tempo preciso, para que todos em casa dormissem, e depois, cautelosamente, introduziu-se no aposento da donzella.
Grossas bagas d'um frio suor banhavam o rosto ao franciscano, e elle tremia todo. Aquelle era o primeiro crime que perpetrava; a sua alma de mancebo ainda não estava endurecida. Ante si parecia-lhe ver o cadaver do alcaide de cruz na dextra. Comtudo o genio da perversidade o impellia.
No quarto aproximou-se do leito da donzella com uma luz na mão. Ella estava alli profundamente adormecida, com as faces rosadas, e tranquillas, e voluptuosamente descobertos os peitos e os braços perfeitissimos.
Não poude resistir; a violencia infrene dos desejos lhe fez estremecer todo o systema nervoso. Arrancou do corpo o hábito com furor, e ia lançar-se sôbre o leito, quando, levantando os olhos, viu pendente na cabeceira o crucifixo sôbre que jurára proteger aquella que ia deshonrar.
Agora não era visão, era realidade.
Uma comprida cruz de ebano, guarnecida nas pontas com florões de prata, e tambem de prata, mas fosca, a imagem do Christo em partes esmaltada, figurando gottas de sangue, lá estava á cabeceira; e era a mesma, terrivelmente a mesma que seu pae adoptivo lhe appresentára á hora da morte.
O moço frade ardia em febre; mas, vendo a cruz, um horrivel calafrio lhe percorreu todo o corpo; empalideceu, esfriou. Uma ideia de arrependimento lhe despontou no cerebro, e fez um movimento para se retirar.
Mas lançou os olhos outra vez sôbre o aspecto fascinante da donzella, e todo o pensamento bom lhe fugiu da mente. Para mais não ver a imagem do Crucificado apagou a luz, e com louco frenezim lançou-se sôbre o leito.
Desde então, fugindo espavorido, o seu anjo da guarda o desamparou para toda a eternidade.
V
JUSTIÇA DA TERRA
Na mente de Frei José do Amparo a visão continuava.
No outro dia, ao romper d'alva, um frade do convento de S. Francisco de Lisboa chegava a Santarem. O doutor apresentou-se-lhe pallido e com o pulso alteradissimo, dizendo-se ainda infermo; mas que estava resolvido a partir immediatamente.
A filha do alcaide continuava a dormir. Elle não se atreveu a tornar a ver aquella que o seu pae adoptivo, o seu unico protector confiára á sua guarda. Fugiu.
Justiça da terra! Depois d'aquelle feito, chegando a Lisboa, o doutor foi logo nomeado lente da faculdade de theologia na universidade; faculdade cujo ensino era então exclusivo da ordem de S. Francisco, e que depois foi tambem partilhado pela de S. Domingos. Foi apresentado ao grande potentado então da egreja lusitana, D. Jorge da Costa, que foi ao mesmo tempo abbade de muitas abbadias, deão de muitas sés, bispo de muitos bispados, arcebispo e que depois mais tarde, quando refugiado em Roma, tão celebrado foi sob o nome de cardeal d'Alpedrinha. E este o levou á côrte, e o apresentou a D. Affonso v e ao duque de Bragança e ao cardeal D. Henrique e a todas as pessoas principaes; e em poucos messes Fr. José foi o orador mimoso da capital, o confessor predilecto das mais nobres damas; e pela austeridade de seus discursos e exterior, e, pelo muito dinheiro que ostensivamente dava aos pobres, grangeou grande fama de virtude e sanctidade. No entanto a filha do alcaide estava em Santarem entregue á afflicção e ao desamparo.
Quando accordou do somno fatal que o elixir lhe causara, conheceu o seu estado; chorou, gritou, rasgou suas candidas vestes, e arrancou teus formosos cabellos.
Algum dinheiro que o franciscano lhe deixara lançou-o pela janella. Vendo-a em tão viva dôr, os seus hospedeiro se compadeceram d'ella, e a levaram para casa d'uma honrada familia, marido e mulher, abastados fidalgos que tinham apenas um filho no berço, e que vendo suas máguas e infelicidades, e, com o tracto, conhecendo a nobreza e urbanidade de sua alma, a receberam e tractaram como filha.
A infeliz senhora nunca mais pronunciou o nome do seu algoz. Mergulhada em profunda melancholia accommettida, de tempos a tempos, d'espamos, effeitos do terrivel elixir, e quasi cega de chorar viveu alguns meses, até que, dando á luz uma menina, morreu de parto e principalmente de desgostos.
Os donos da casa tomaram conta da creança, educaram-na, e comsigo a levaram para Lisboa, onde foram habitar.
Isto soube o frade, quando cinco annos depois, não podendo recusar ir a Santarem, tractar negocio de summa importancia para a ordem, inquiriu a tal respeito, sem ser reconhecido, o seu antigo hospedeiro, que a edade e a miseria tinham entrevado e tornado quasi idiota. Porque em tão longo espaço de tempo, no bulicio da côrte e do crescer contínuo da sua fama, o mau padre não quiz mais saber da filha do seu protector; não lhe mandára soccorro algum, inteiramente a abandonára á caridade alheia.
E elle continuou a subir no conceito de todos.
Por duas vezes o tinham querido nomear bispo, e recusára. Contentava-se em governar, sem titulo algum ostensivo de prelada, não só o convento de Lisboa, mas toda a provincia de Portugal dá ordem dos frades, menores de S. Francisco, já então numerosissima, contando centenas de conventos de frades e de freiras, e uma innumeravel multidão de seculares em todas as povoações com o nome de irmãos terceiros.
A uma palavra sua aquelle poderoso exercito franciscano movia-se, como escravo obediente á voz do senhor.
Elle era o reformador de todos os conventos; o juiz de todas as contestações clericaes; o theologo consultado e seguido em todas as discussões de moral ou theologia, de direito ecclesiastico ou canonico; e frequentes vezes mesmo o director occulto dos principaes negocios politicos.
N'estes, abusando do grande podpr das suas faculdades, da sua grande fôrça persuasiva, influia muitas vezes no ânimoo d'el-rei e de seus conselheiros em proveito exclusivo do temporal da egreja, ou da sua ordem, mesmo com detrimento da corôa e do povo. Mas isto sempre de tal modo, que a alma generosa de Affonso V, cada vez lhe queria mais; e tanto admirava a sua virtude e sabedoria, que muitas vezes ia visital-o ao convento. No confessionario havia persuadido dezenas de mancebos e donzellas ricos a abraçarem a ordem. E, muitas vezes mesmo, quando estava certo que não se desacreditaria, tinha-se servido d'aquelle sancto tribunal da penitencia para seduzir e deshonrar muitas mulheres.
A simonia, mas tão indirecta que ninguem sabia ser practicada por elle, o stupro e o adulterio eram-lhe habituaes.
Maravilha ao estudar a biographia d'este homem, um ponto aqui, outro alem, nos quasi extinctos manuscriptos do seculo XV, ver a refinada hypocrisia com que havia practicado tão nrfandas perversidades, sem que pelo espaço de quasi vinte annos a sua fama sofresse a menor quebra.
E caminho do convento, elle ahi ia com a fronte carregada de maus pensamentos, revolvendo na mente seus antigos crimes, e planeando um novo, mais horroroso que todos quantos havia perpetrado; e era, como veremos na parte seguinte, à nossa pobre Rosalinda a víctima agora escolhida pela sua maldade.
IV
ROSALINDA
I
O MOSTEIRO DE SANCTA CLARA
Transpõem mais facilmente os seculos as memorias impressas nas folhas frageis do livro, do que as gravadas nas fórmas graniticas do mais grandioso edificio. O livro, pequenos cabedaes o reproduzem, o multiplicam e espalham por todo o orbe; e zomba assim do tempo e das mil variadas circumstancias de destruição que traz comsigo. O edificio, numerosas quantias são indispensaveis á sua construcção e conservação, e um dia vem a fôrça irresistivel da natureza ou da vontade dos povos, o abala, o lança por terra, e o confunde com o solo.
Assim como nas familias os filhos e os netos tomam o logar dos paes e dos avós; no mesmo ponto do globo edificam-se, uns após outros, os monumentos e as cidades. -- Dos mil edificios que levantaram nas terras, hoje portuguezas, os celtas, os filhos da Phenicia, do Egypto, da Grecia ou de Roma, poucos restam d'estes ultimos, e nenhum talvez, dos primeiros; e comtudo a residencia aqui d'aquelles povos é commemorada nas páginas incontrovertidas de bons historiadores.
Quantos, monumentos até não edificaram nossos avós, nos primeiros seculos da monarchia, de que nos não chegaram os menores vestigios?
É a materia constitutiva a mesma, e as moleculas d'uns servem a construir os outros. Dá-se perenne esta evolução de materiaes nas cidades antigas, e, não menos do que em alguma outra, na filha magestosa dos phenicios.
O livro é que, passado de geração em geração, vae recordando essas construcções extinctas.
Aquelle que, na multidão de casas caiadas e quasi uniformes da nossa capital, quizer procurar a vetusta Lisboa dos reis da primeira e segunda dynastia, quasi obliterada a divisa nos monumentos de pedra, e só d'ella formará ideia pelas chronicas ecclesiasticas ou civis d'aquellas não mui remotas eras.
Um grandioso edificio existia outrora, proximo á Fundição, de que só talvez em livros reste lembrança, e cuja historia é digna de mencionar-se.
Corria a última metade do seculo XIII, e era, como todos sabem, do espirito d'aquelle seculo, como o tinha sido dos ultimos que o precederam, e o foi ainda dos que mais proximamente o seguiram, -- levantar nos ermos ou nos povoados monumentos, que attestassem aos porvindouros as vivas crenças religiosas de seus fundadores.
Uma rica dama asturiana D. Ignez Fernandes com mais tres senhoras portuguesas tiveram em 1288 a lembrança de construir um grandiosa mosteiro. De todas as ordens religiosas uma estava então em maior crédito, a que depois maid baixo cahiu no desprêzo e irrisão publica; mas que n'aquela era, e ainda por muito tempo, contrastava por sua ansteridade, voluntaria pobreza e saber de seus adeptas com a relaxação em que se achava toda a clerezia catholica.
Era a ordem dos frades menores de S. Francisco, que, apenas contando oitenta annos de existencia, já possuia numerosos conventos por toda a Europa, e exercia poderosa influencia nos municipios e nos paços reaes; aqui pela sciencia e por ser mais, que nenhuma outra, milicia do pontifice, além pela sua humildade e facil communicação.
Foi de religiosas d'esta ordem que as quatro piedosas damas quizeram o mosteiro, e o papa Nicolau IV, lhes outorgou licença.
Começou D. Ignez as obras em Lisboa, no logar onde depois foi a capella mór do convento da Sanctissima Trindade; e com ellas começaram os milagres, que a epocha e as seraphicas historias do assumpto tornavam indispensaveis em taes empresas.
A cada martelada dos operarios brotava um obstaculo: parecia que a noite destruia o que durante o dia se levantava; e a fábrica, apesar de todos os esforços e despesas, não medrava.
D. Ignez não esfriava na fé, e redobrava, suas orações a Deus e a S. Francisco. Uma noite, dormindo, teve um sonho, egual ao de Jacob. No campo em que se armava a fôrca, viu uma grandiosa e brilhante escada, por onde subiam, do ceu á terra innumeros anjos. E a serva de Deus maravilhada ouviu um dizer-lhe:
-- Neste temeroso campo manda o pae das misericordias que fundes teu osteiro. Entre elle e o ceu haverá communicaçSo. Nós viremos muitas vezes para confortar as almas no trabalho da virtude, e ellas irão subindo por esta escada de gloria. Para signal da vontade de Deus acharás n'este sítio uma cruz mysteriosa formada em duas pedras por memoria de que ao seu madeiro sagrado o filho de Deus franqueava a salvação.»
D. Ignez correu ao logar indicado; encontrou a cruz; comprou o terreno, e lançou a primeira pedra. Mudou-se o local das execuções. A fábrica cresceu magestosa e rapidamente: em 1292 já lá havia freiras.
O mosteiro de Sancta Clara de Lisboa, foi em breve dos mais afamados do reino. A sua origem milagrosa, a grandeza, a optima collocação, -- um pouco além dos muros orientaes da cidade, olhando, como de palanque, o Téjo na sua maior largura -- e sôbre tudo, a influencia da ordem a que pertencia o tornaram querido da cidade, da nobreza e dos monarchas.
Os magistrados municipaes, e o cabido da Sé, e os religiosos de Lisboa o visitaram processionalmente no dia de Sancta Clara. As mais nobres damas, até infantas e princezas habitaram n'elle, e o escolheram para seu jazigo. E os reis da primeira e segunda dynastia lhe outorgaram immunidades e privilegios e o dotaram com largueza.
O ceu tambem não se esqueceu das suas promessas; comprovam-no o grande número de milagres que favoreceram aquella casa, e as muitas sanctas que a illustraram.
Em 1613 foi o edificio reformado, principalmente a egreja; as paredes e as abobadas eram forradas de marmores finos e resplandeciam com os dourados; valentes pinturas as adornavam; nas capellas lateraes luctavam com egual vantagem o primor e a riqueza; e maravilharam sôbre tudo a belleza e a magnificencia do côro superior.
Era dos mais bellos e ricos mosteiros da christandade; e centenas de religiosas o habitaram.
Mas em 1766 o anjo terrivel das iras do Senhor passou sôbre Lisboa, e o tocou, talvez sem querer, com a ponta da aza. A obra dos seculos instantaneamente vacillou, e, cahindo, sepultou em suas ruinas quatrocentas pessoas.
As poucas religiosas, que sobreviveram a tamanha catastrophe, fugiram d'aquelle logar de destruição e morte; e foram abrigar-se no convento de Nossa Senhora da Piedade da Esperança, de religiosas tambem de Sancta Clara. Esta casa, que D. Isabel Mendanha edificára em 1530, tambem soffreu com o terremoto, e foi refugiadas e abarracadas na cerca que suas virtuosas donas recebêram as hospedas N'este pobre convento, inda hoje existente, viveram, até que Deus as chamou ao ceu, as derradeiras filhas do mosteiro grandioso de Sancta Clara.
II
A IMITAÇÃO DE JESU-CHRISTO
-- Trago-vos, filha, um optimo presente, que só me agradecereis quando, lhe conhecerdes toda a excellencia; -- assim dizia o doutor Frei José do Amparo para a Rosalinda, quer estava com a abbadessa na grade principal do convento de Sancta Clara -- É, continuou, um sancto livro, escripto por um religioso, cujo nome se não sabe ao certo; o que parece designio de Deus, pois a obra é tal, que mais devia ser deitada pelo Espirito Sancto, que pela razão limitada d'um ou outro individuo; é, permitta-se-me dizel-o, o complemento do Evangelho, o guia seguro para alcançarmos a perfeição de que o Evangelho tracta, é em fim a Imitação de Jesu-Christo.
E o franciscano tirou debaixo da capa um livro com encadernação de velludo e fechos de prata dourada, e; abrindo-o, collocou-o sôbre a mesa que estava juncto ás grades, em posição que perfeitamente fôsse visto através d'ellas.
Era um codice de pergaminho finissimo, manuscriptado com toda a perfeição e maxima paciencia, a que na edade média chegaram aquelles trabalhos. Na página fronteira á inicial de cada um dos quatro livros, em que a obra se divide, havia um primoroso desenho, representando as acenas mais affectuosas e patheticas da vida de Christo. Cada capítulo tinha sôbre o titulo uma pequena e bella vinheta, e todas as páginas eram cercadas com uma tarja de flores e emblemas. Tudo perfeitamente escripto, illuminado e dourado.
Hoje, aquelle livro seria preciosidade rara n'uma bibliotheca ou n'um museu, e valeria muitas centenas de mil réis; no seculo XV, porém, pouco mais apreciado era do que o são agora por nós esses nitidos volumes, com bellas gravuras d'aço e capas de chagrin cobertas de dourados, que todos os dias nos remettem os livreiros de Paris.
Era comtudo, mesmo materialmente, um bello presente, e cujo valor muito mais se lhe augmentava pela grande celebridade de que já gosava a Imitação de Christo, ainda que então mui pouco vulgarisada entre nó. Frei José trazia aquella traducção, -- que alguns bibliograpbos attribuem a Frei João Alvares, abbade do mosteiro do Paço de Sousa, secretario do infante D. Fernando e seu historiador, -- e de que, passados annos, a imprensa, estabelecendo-se em Portugal, imprimiu grande cópia de exemplares, que os nossos missionarios levaram para as tenras conquistadas.
A abbadessa ficou contentissima, vendo aquelle livro; Rosalinda não, ella temia que fôsse um laço, pois receiava a mão que lh'o trazia.
O que sentia por Frei José do Amparo difficil é de descrever, que eram sentimentos antinomicos e mutuamente repulsivos. Sentia por elle uma intima affeição, que não podia explicar, e o respeito proveniente da sua apparente austeridade e da grande fama de sciencia e sanctidade que gosava; mas tambem um temor secreto, uma aversão interior que ás vezes temos por um inimigo que se adivinha, e que no seu espirito não tinha razão suficiente em ter o frade sido causa da ausencia de Jorge Ruy. Queria fugir d'elle e um não sei que a attrahia, e ella previa que d'aquelle homem não lhe podia vir senão desgraça.
Foi pois com repugnancia que obedeceu á abbadessa, indo á pequena roda sita ao lado da grade receber o livro que Frei José lá collocára. E o frade voltando para defronte das duas senhoras, disse:
-- Ide, minha cara filha, ide para a cella folhear, ler e meditar esse sancto livro, reparae logo nas primeiras palavras que são de Jesu-Christo -- «Aquelle que me segue não caminha nas trevas»; -- e attendei que o melhor caminho para o seguir é o da oração, o da penitencia, o do claustro. E vos, irman abbadessa, dispensar do côro esta noite, deixae que na solidão da cella se entregue á proficua meditação da vida e paixão do Filho de Deus.
E dizendo isto, o doutor cortejou e sahiu.
Era para a abbadessa de Sancta Clara ordem terminante uma palavra de Frei José. Apesar da curiosidade que sentia de folhear aquelle primoroso codice, mandou a Rosalinda que com elle se recolhesse á sua cella.
A donzella, apenas ahi encerrada, deixou á solta correr a imaginação n'um profundo pelago de pensamentos varios. Havia quasi um mez que Jorge partira, e ainda não tinha recebido notícia alguma d'elle. A abbadessa e Frei José do Amparo haviam-lhe, de ha muito, dado a conhecer o seu intento, queriam fazel-a freira. E d'estas duas ideias nasciam mil outras, pela maior parte oppressoras e afflictivas.
As intenções dos dois religiosos não a assustavam; eles não podiam obrigal-a a obedecer-lhes em tão extremo ponto; e a vinda de Jorge d'isso a livraria. Mas a falta de notícias do seu futuro noivo é que mais a maguava: -- ter-lhe-ia acontecido algum desastre pelo mar, sempre inconstante e tantas vezes revolto? -- Estaria elle no Porto, doente, longe dos seus e longe d'ella? -- Ou um novo amor lhe faria obliterar o antigo, olvidar os protestos e juramentos que tinha feito?
E abundantes lagrimas, como fios de finissimas perolas, lhe brotaram dos olhos e foram correndo por seu alvo rosto.
Foi então que, lembrando-se do livro que lhe dera o doutor franciscano, o abriu e começou primeiro a ver a delicadeza do lavor, depois a ler aqui e alli algumas passagens.
Esteve assim uma hora entregue á leitura.
Na singeleza de seu coração admirava-se da austeridade e ascetismo d'aquella doutrina, muito mais rigorosa que a do proprio Evangelho. Aqui stigmatisavam-se as riqueas e a mesma propriedade; além o estudo e as sciências; n'uma parte prohibiam-se a amizade e todas as affeições humanas; n'outras recommendava-se ao homem o exilar-se da sociedade; e por toda a parte a cega obediencia aos superiores era ensinada e recommendada como das maiores virtudes. Mas os encomios dirigidos em todos os versiculos á humildade, á caridade, á abnegação de si, ao amor cego, á paixão ardente por Jesu-Christo, em um estylo cheio de uncção, e como inspirado, a enthusiasmavam e exaltavam.
Com o seu bom senso a donsella conheceu que aquelle livro era simultaneamente mui pernicioso e utilissimo; que instigava á virtude e tambem ao fanatismo; e que Frei José do Amparo lh'o tinha dado para que a sua leitura a persuadisse a deixar o mundo e a abraçar a vida claustral.
Ia a fechal-o, quando entre as folhas percebeu um pequeno bilhete. Sobresaltou-se-lhe o coração, e apressadamente o abriu.
«Se quereis saber notícias de Jorge, -- resava o escripto, -- e cousas que muito vos interessam, ide esta noite ás horas do côro ao confessionario que fica perto da sacristia.»
A lettra não parecia de Fr. José, e comtudo o escripto era d'elle e para ella. Rosalinda ficou irresoluta: para que desejava o padre uma conferencia nocturna e ás occultas, elle, que lhe podia ter fallado na grade, mesmo sem a abbadessa ouvir, pois, sob qualquer pretexto, a teria afastado?
Porém o desejo vivissimo de saber de Ruy, mesmo mysterio da missiva, uma curiosidade inexplicavel, e que não lhe era propria, tudo a instigava a ir. Agitada e impaciente passou na cella duas longas horas que faltavam para o momento aprasado.
Por fim entre receiosa, assustada e alegre, ouviu o sino tocar para a resa, e cada badalada lhe echoou no coração. Trémula de anciedade escutou á porta da cella até ao último echoar dos passos das religiosas que se dirigiam ao côro, e, quando reinou o silencio n'aquella parte do mosteiro, Rosalinda abriu a porta, e sahiu [...] intelligencia mais perspicaz, um pensar mais profundo, um coração que sentia com mais vivacidade a dor e a alegria, os desejos e as paixões. Porém, para occultar tudo isto, e lhe duplicar a fôrça, pois a condensava e tornava assim toais potente, possuia um rosto onde se não desprendia um sorriso, os olhos nada exprimiam, um musculo não se agitava sem que elle, e mui determinadamente, o quizesse. Li por dentro, bem no fundo d'alma, é que se davam os renhidos combates, é que furioso fervia e bramia o vulcão.
Era comtudo a custo, repito, que operára agora aquella grande fôrça. Parece risivel, mas é verdade, tinham-na feito vacillar os olhos de Rosalinda. Já o disse na primeira parte d'este livro: findam estremecer d'amor quem olhava para elles. Eram um podêr demasiado para uma creatura tão singela, e por isso só serviam a prejudical-a.
E aquelles olhos sem o quererem, nem mesmo o saberem, tinham inspirado ao frade um tal affecto, que lhe repassára todas as fibras do coração, lhe ascendêra ao cerebro e o escaldava.
Porém mesmo quando livre do magnetismo indefinivel d'aquelle olhar, e acalmada a ardencia de seus desejos, elle tinha pela donzella uma intima sympathia, uma affeição grande, mas pura, que pela primeira vez observava em si, e que o sabio não sabía explicar.
Convidára Rosalinda áquella conferencia nocturna e secreta para lhe communicar, a seu modo, o que sabía do Porto, para estar a sós com ella, para lhe fallar, para a ver sem grades de permeio, mesmo para a persuadir a estimal-o, porque, apesar de toda a perversidade de sua alma, não intentava aproveitar-se da occasião para abusar da donzella. E alli estava vivamente agitado, esperando por ella, e ouvindo sem os attender os primeiros acentos da nocturna oração das freiras.
Era um estreito recinto que communicava por uma janellinha de grades com um d'aquelles cubiculos que se vêem em muitas egrejas de freiras, servindo de confessionarios para as religiosas; mas, além do orificio destinado á práctica do cenfessor e da confessada, havia entre as duas casas uma pequena porta, inteiramente escondida na parede, e por onde o franciscano entrára. Maior e visivel era aquella, agora entreaberta, por onde se communicava com o interior do mosteiro.
Havia no aposento alguns tamboretes, uma mesa sôbre a qual estava uma alampada accesa e por cima, na parede, uma pintura a oleo, invenção, segundo alguns, do comêço d'aquelle seculo e de Van Eyck, pintor flamengo, -- obra grosseira, mas não sem uma certa expressão, representando a Virgem levada ao ceu n'uma nuvem recamada de pequenos anjos.
O padre escutava o menor ruido que soava do interior do convento; sentiu passos aproximarem-se, abriu um pouco mais a porta, e Rosalinda entrou.
Trazia um vestido e um largo manto de sêda branca bordada a prata, e a cabeça descoberta, ataviada com as compridas tranças de seu farto e lustroso cabello negro.
Assim vestida, Rosalinda tinha uma expressão de innocencia e candura e sanctidade tal, que ao contemplal-a fugiram da mente ao padre todos os pensamentos maus. Só um lhe ficou, mas esse acreditava-o elle bem, era fazel-a freira.
-- Minha filha, disse, offerecendo-lhe um tamborete em que ella se não sentou, eu sinto por vós uma extremosa affeição. Longa experiencia me tem assás instruido no que é o mundo; conheço as inconstancias, as tentações, as fallazes alegrias e as dôres pungentes que a todos causa. Sei quanto é difficil trilhar a senda escorregadia e pecaminosa da vida de modo que vamos direitos e puros á mansão dos justos; e queria, no grande affecto que vos dedico, aplanal-a e sanctifical-a para vós; mas só tenho um meio, porém seguro, efficaz, é o que nos offerece aquelle que Deus escolheu para a reedificação da sua egreja, que as heresias e a vil cubiça faziam cahir em ruinas, -- é a paz e a sanctidade do claustro, que junctas á graça inherente ao nosso hábito seraphico e á bondade de vosso coração vos darão uma vida tranquilla n'este desterro do mundo, e depois d'elle a eterna gloria.
-- Meu pae, respondeu Rosalinda com voz commovida, mas segura, Deus não quiz que eu gosasse do tranquilo e sancto ocio do mosteiro; deixou que meus labios e o meu coração fizessem promessas, que são para mim sagradas, e são inviolaveis; prometti consagrar a minha vida a um homem e a familia que o ceu nos der; e isto não póde ser desagradavel ao Senhor; porque, ajudada pela sua graça, eu procurarei guiar para o bem o meu esposo, educar meus filhos no temor de Deus, no amor do proximo e da patria; a minha vida não será tão socegada como ao abrigo dos religioso muros do convento; mas ella ha de ser mais util á humanidade, e por isso não menos a aprazimento de Deus.
O doutor ficou admirado d'esta resposta, não a esperava dos labios d'uma donzella e tão moça ainda. Viu que tinha um contendor mais forte do que até ahi julgára, e preparou-se para discutir, como se estivesse n'uma academia.
Fallando, o sabio recorreu a todo o seu talento oratorio, a todo o seu immenso pôder de persuadir para resolver a donzella a seguir a vida religiosa.
Pintou com negras e carregadas côres a vida secular, e coloriu com brilhante suavidade o existir claustral; -- apresentou com desenho imaginoso e medonho os antros do inferno, e descreveu com enthusiasmo sancto as beatitudes celestiaes.
E Rosalinda, vivamente commovida, chorava.
-- Padre, disse ella com vos quasi extincta, estou condemnada!... é-me impossivel gosar a ventura que me offereceis!... os meus juramentos me prendem ao mundo.
-- Oh! Jesu-Christo nos deu o pôder de ligar e desligar; -- d'ellas vos absolvo.
-- Não, tomou a donzella, eu amo-o!...
O franciscano tinha-se por um momento julgado victorioso; e sentíra orgulho da sua eloquencia, da sua fôrça de persuasão; vendo-se agora no mesmo estado que antes de fallar, estremeceu interiormente de raiva; os seus pensamentos maus voltaram; e aquella phrase -- «eu amo-o!» lhe foi despertar no espirito o ciume, e o amor impuro com todo o seu furor e lascivia.
Começou então uma scena hedionda e impopsivel de descrever. A sua voz tornou-se mais suave e melliflua; perdeu aquella fôrça e enthusiasmo que lhe dava a religião, porém tangeu insinuante e apaixonada, mas d'uma paixão má. Apagou-se-lhe nos olhos o brilho sancto de quem peleja por uma causa que tem por justa, e appareceu-lhe uma luz baça e licenciosa que attrahia e assustava.
As suas palavras tornaram-se, cada uma de per si, mais puras e evangelicas, mas constituiam phrases que iam tomando cada vez mais um sentido obsceno e vil.
Fez saber a Rosalinda que Jorge amava a sobrinha do duque de Guimarães, e que este pensava em os desposar, e exaggerou e mentiu. Depois disse-lhe que elle, sabio e velho e fradre e padre, a amava com delirio, e a desejava e queria com insania. E para dizer isto citou, adulterou e inventou textos e textos da Escriptura; e disse blasphemias e loucuras. Tudo com uma alluvião de palavras hypocritas, mas sonoras e insinuantes.
No entanto ouvia-se ao longe o sancto rezar das freiras, e as vozes juvenis e puras das noviças em seus canticos sagrados.
Causava horror ver a figura torpe do frade com suas perfidas arengas juncto á candida menina, alli n'aquelle recinto que parecia o interior d'um tumulo.
E Rosalinda com uma terrivel oppressão no peito, transida de medo, ouvia com pasmo o franciscano. Attonita pensava se não seria aquillo um sonho, um pesadelo horrivel. Não podia crer n'aquella nefanda transfiguração do soneto!
Já várias vezes tinha olhado para a porta que dava no claustro, desejando fugir, mas não podia; quiz gritar, mas seus labios não tinham fôrça para articular um som. Estava como fascinada; não podia faaer um movimento.
O frade começava a apertal-a nos braços, e ennodoar-lhe as faces com sua baba de nojenta osga. Com seus movimentos fez cahir um tamborete que foi bater com fôrça de encontro á mesa; o quadro da Virgem, que estava mal seguro na parede, desprendeu-se, tombou sôbre a alampada com ruido, e tudo ficou em trevas.
Então Rosalinda despertou d'aquelle medonho torpor em que jazia; desembaraçou-se dos braços do frade, e fugiu.
IV
A FUGA
Aquelle acontecimento lançou Rosalinda na mais afflctiva desesperação. Pensou em dizer tudo á abbadessa, mas ella não a acreditaria; julgaria que a pobre menina tinha perdido o siso, que tomava como realidade o que só era producto de sua imaginação desvairada. Participal-o em cartas a Jorge ou a seu pae era imposivel; Fr. José era quem lh'as remettia e de certo as lia antes de as mandar. A ninguem pois communicou o que lhe havia acontecido com o doutor franciscano. E este continuava todos os dias a ir visital-a; mas ella recusava á abbadessa o acompanhal-a á grade. Umas vezes uma inventada indisposição, outras um supposto voto de não sahir n'aquelle dia da cella, outras uma negativa terminante alliviaram durante um mez a noiva de Jorge da presença, agora para ella medonha e repugnante, do mau clerigo.
A boa da abbadessa pasmava de tamanha obstinação, e já teria empregado toda a sua auctoridade para a vencer; se Frei José lhe não recommendasse repetidas vezes a maior doçura para com a donzella. E tambem está quasi em continuo pranto, definhando-se a olhos vistos, e em tudo mais submissa e humilde, não lhe provocava a íra, mas sim a compaixão e a piedade.
Rosalinda só tinha uma consolação, eram duas ou tres cartas que recebêra de Jorge, ternas e apaixonadas, e que ella acreditava, porque o seu coração leal e puro não crêra os amores de Ruy no Porto, que o franciscano lhe contára. Tudo o mais para ella era solidão, desgostos e causa de receios.
N'aquella casa onde havia trezentas mulheres de todas as edades e condições e de tão diversa indole, a infeliz não encontrou uma unica amiga, um coração com que desabafasse.
O seu rosto sempre triste, e o encerramento quasi constante na cella afastavam da infeliz menina todo aquelle ruidoso e loquaz mulherio. Além d'isso as mais graves religiosas, vendo-a tão procurada e estimada do mui afamado, sabio e virtuoso doutor, que em o primeiro na ordem, e que ellas quasi divinisavam, conceberam grande ciume e odio pela donzella. As outras invejavam seus airosos ademanes, a graça de seu andar, a belleza de toda a sua figura. E todas ellas ou lhe queriam mal, ou não sympathisavam com a pobre Rosalinda.
É difficil de imaginar as pequenas intrigas, os pequeninos e vis mexericos que occupam, e recreiam a multidão feminina d'um convento; o seu afan em procurar um ou outro confessor, a minuciosa attenção que empregam em calcular o tempo que elle gastou confessando esta ou aquella, e depois os dictinhos com que se picam, as zangas, os ciumes que têm por isto.
Repugna ver o seu empenho, a sua curiosidade ao inquirirem os visitantes ou as serventes sôbre as modas, as intrigas e os amores que vão no mundo; e as malignas reflexões que sôbre tal assumpto fazem com adocicadas palavrinhas, e os olhos fitos no ceu. Mas o que mette mais nojo, e até me custa a dizer, são uns certos amorinhos que as jovens reclusas têm reciprocamente, pelos quaes se appellidam com nomes de homens, e simulam n'um só sexo haver os dois.
Não exaltem a educação claustral, nem a recommendem; quasi nada tem que seja bom. Através das grades do convento, as mestras mostram ás educandas o mundo d'um modo inteiramente falso, diverso do que é. Exaggeram-lhes o espirito religioso, e o degeneram em fanatismo. Não sabem ensinar-lhes o amor da patria. Inspiram-lhes repugnancia pelos indispensaveis trabalhos domesticos. E as tornam inaptas para o fim commum, mas o mais sublime da mulher, o serem boas mães de familia. Porém vamos a nessa historia.
Rosalinda no meio d'aquelle enxame de malhares vivia uma vida insupportavel. Mas soffria com resignação, porque ao menos tinha, até ahi evitado a presença de Fr. José. Porém estremecia, constantemente de pavor oom o lembrança de novo encontrar de novo a sós com elle. Encerrada na cella, bordava, lia ou passava horas inteiras de joelhos ante a cruz de ebano de sua mae. -- Mas a abbadessa um dia, entrando no seu quarto, disse-lhe: -- Rosalinda, minha filha, amanhan, é vespera d'um dos maiores dias da egreja catholica, venera-se o eleito por Jesu-Christo para sua pedra fundamental; é costume da nossa sancta casa dispormo-nos para tão grande solemnidade com o jejum e o divino sacramento da eucharistia, preparae-vos pois para vos confessardes amanhan.
E a religiosa dona sahin sem que Rosalinda tivesse tempo de lhe responder.
No outro dia, depois das rezas matutinas; a abbadessa tomou-a pela, mão, e dirigiu-se com ella para um confessionario.
-- Minha mãe espiritual, disse a menina, com voz trémula, é Fr. José do Amparo confessor?
-- Não sei, filha.
-- Peço-vos por Nossa Senhora que me deis outro, minha mãe; a elle é para mim absolutamente impossivel confessar-me.
-- Não vos entendo, menina, tornou em tom agre a abbadessa; o sabio doutor Fr. José do Amparo é o mais sancto religioso da nossa ordem, e o confessor das mais distinctas e virtuosas damas de Portugal; muitas graças deveis dar a Deus e ao nosso padre S. Francisco, se o tiverdes por espiritual director; porém não sei se ha de ser elle quem vos confesse, que isso depende do superior da vigaría e não de mim.
E como tivessem chegado a uma pequena porta aberta, a abbadessa impelliu para dentro Rosalinda, e fechou-a.
Esta achou-se então n'um estreitissimo recinto, onde apenas duas pessoas caberiam; tinha n'uma das paredes uma grade, communicando com o cubiculo da egreja, e muito mais elevada n'outra, parede uma fresta construida com o fim de illuminar perfeitamente a confessada.
Um vulto de frade lá estava através da grade. Rosalinda ajoelhou, e fez as orações proprias da occasião. Então a vez para ella medonha do doutor franciscano echoou terrivel nos seus ouvidos e lhe gelou o coração!
E o frade repetiu-lhe alli no confessionario os torpes discursos com que a martyrisára já uma vez.
A donzella meia desfallecida, deixou cahir-se para traz, tapou com as mãos os ouvidos e fechou os olhos.
Grande devia ser a punição que, além do tumulo, o Celeste Vingador reservava áquelle padre, para que o não punisse alli já da ignominia com que abusava da mais grave e saneia faculdade que lhe conferira a egreja!
Apesar dos esforços de Bosalinda para não ouvir, a voz vibrante do franciscano, transpunha seus diaphanos dedos, e, como um trovão, lhe ia retumbar n'o cerebro e quasi enlouquecel-a. Tentou gritar, mas apenas um gemido se lhe escapou dos labios.
Assim, quasi morta, esteve uma hora longa e abominavel, em que o padre maldicto cuspiu sôbre ella, através da grade, a eloquencia impudica da sua paixão obscena a sacrilega. Até que saciado de fallar, irado por não obter resposta, sahiu com furia do confessionario.
Sentindo-o retirar-se, Rosalinda começou a gosar algum alívio, foi pouco a pouco socegando, sentou-se e pensou.
Habitar mais tempo n'aquelta casa era impossivel. Depois tomou sôbre isto uma resolução. E, quando passada meia hora, a abbadessa lhe veio abrir a porta encontrou-a quasi tranquilla.
Recusou commungar; a abbadessa não insistiu, e ella retirou-se para a cella.
N'aquelle dia era vespera de S. Pedro. A noite as fogueiras ardiam aos centos pela cidade e arredores, e na egreja havia festa e grande multidão de fieis.
Rosalinda vestiu umas roupas escuras, lançou aos hombros um manto de seda preta, tomou a preciosa cruz da herança materna e uma caixinha onde encerrou o que possuia de mais valioso, e sahiu da cella, quando todas as religiosas estavam entretidas no côro com os canticos, ou nas janellas com as fogueiras.
Desceu ao claustro. Entrou na casa onde primeiro estivera com Fr. José; procurou cuidadosamente a porta falsa que suppoz devia existir; encontrou-a e a mola com que se abria, carregou n'ella que cedeu, e porta descerrou-se. Sahiu, e achou-se no cubiculo do confessionario. Ajoelhou e rezou á Sancta Virgem. Depois, pouco a pouco, e sempre de joelhos, foi aproximando-se da nave da egreja até que n'esta se confundiu com a multidão.
Então, apressada, dirigiu-se á porta do templo, e fugiu do mosteiro.
V
POLITICA DE PORTUGAL NO SECULO XV
I
UMA VISITA A FREI JOSÉ
Vamos, caro leitor, a um outro convento; eram tantos outr'ora em Portugal que não se davam dois passos sem encontrar um. Não havia cume de monte, encosta pittoresea, valle de que a fertilidade fôsse notavel, prado ameno e regado de rios, cujos echos não estremecessem á voz sonora dos sinos do mosteiro. E contavam-nos ás dezenas as cidades e as villas.
Passou depois sôbre a face d'esta terra, o simoúm da revolução, e, estava escripto que tudo quanto se lhe oppozesse sería destruido.
O convento não o comprehendety -- oppoz-se-lhe, e elle o tornou ermo, e o fez cahir em ruinas. -- Os sons magestosos do orgão e a voz canora do psalmista não vibraram mais pelas abobadas que havia seculos as repercutiam. E o frade, rasgado o hábito, e expulso do claustro, foi morrer ao desamparo e talvez á fome entre os que o desprezavam ou desamavam.
Mas para que se fez elle ignorante, devasso e cubiçoso? Para que deixou o povo, cujo era, e se foi alliar com os tyrannos? Para que cerrou os olhos á luz da liberdade, que era a do Evangelho, e a guerreou no confessionario no pulpito, na praça, nos comicios, no campo da batalha, por toda a parte? Elle tinha entre nós povoado e desbravado os ermos; -- tinha acompanhado nossas esquadras em suas longinquas navegações, - e ensinado aos povos que sujeitámos; as doutrinas de Christo e a obediencia á metropole; -- tinha aprendido e ensinado as sciencias, -- e illustrado o pulpito e a egreja com a eloquencia e a sanctidade.
Mas tambem havia fanatisado os reis e os povos, -- aconselhado a uns e outros as mais impoliticas e impatrioticas medidas, -- e instigado-os ás maiores crueldades; - havia requerido e practicado todos os horrores da Inquisição, e reprimido a liberdade do pensamento; -- havia-se apropriado de todas as riquezas do paiz, - e levado a intriga e a desordem ao lar domestico e aos conselhos do estado; - e, em continuação e consequencia de tudo isto, oppunha-se á civilisação social e politica da edade moderna.
Porém, dizem, devia ser reduzido e reformado. Sim. Mas ordenae ao rio caudaloso, que na sua enchente e transbordamento fertilisa o prado por onde passa, que não destrua, mas aformoseie os obstaculos que na sua passagem encontra; -- dizei ao fogo que se lança no mato para estrumar e cultivar depois a terra onde este cresce, que não consuma a arvore fructifera que por acaso se levantava entre as urzes.
Eu não approvo o que se fez, mas desculpo.
Porém devemos nós hoje estabelecer de novo os frades? Em these para mim a resposta é difficil.
O grande principio da liberdade de associação está por elles.
Mas serão uteis com o progresso moderno, com o modo de existir e de pensar das nossas sociedades? Creio que não.
Já os vi morigerados, alheios da politica, gozando o que possuiam á sombra das instituições liberaes, e não guerreando ninguem. Mas uteis?... não o eram, e necessarios muito menos. Prejudiciaes é que provavelmente o serão, principalmente na Europa -- com os olhos na sua historia, sonhando, a todos os momentos com a sua antiga prosperidade e influencia, e no meio da lucta que agita hoje, e agitara ainda por muito tempo as nações mais cultas.
Para Portugal e agora porém voto contra elles in limine.
Mas continuemos a nossa historia; voltemos ao seculo quinze, e entremos, meu querido leitor, no conhecida convento de S. Francisco da cidade, que Zacharias fundou em 1217, e que na epocha em que estamos, 1471, era dos mais vastos e ricos de Lisboa.
É a sua historia assas sabida, não vos fatigarei com ella.
Estamos no dia seguinte ao da fuga de Rosalinda. O sol acaba apenas de dourar com seus primeiros raios as aguas do Tejo; -- ainda não são cinco horas da manhan.
No fundo d'um corredor do lado oriental do Convento está uma grande sala, o sol, que tudo lá fóra illumina e abrilhanta com sua luz, penetra alli a disto por uma janella estreita e alta, aberta em grossa muralha. Ao longo das paredes escuras e nuas estão enfileirados simples tamboretes sem pregarias douradas, nem lavores. A um canto está um pobre catre como escondido na sombra. E proximo da janella uma pequena estante, -- com alguns livros, uns manuscriptos, outros já impressos na Allemanha, na França ou na Italia, -- domina uma grande mesa de pinho, vergando sob o peso de infolios, de apontamentos, de numerosa e confusa papelada.
Ha porém n'aquelle aposento uma cousa notavel, além da tristeza que todo elle respira, é um grande retrato de S. Francisco d'Assis, quando de joelhos na egreja de S. Damião ante a imagem de Christo crucificado, ouviu uma voz dizer-lhe: -- «Vae, Francisco, repara a minha casa que está cahindo em ruinas.» O distico eil-o escripto no alto do quadro; e é elle, mas tomado em sentido contrário, mas com a significação adulterada, mas referido-o ao temporal e não ao espiritual, como o fazia Jesus, que é a maxima, a regra inviolavel, mas hypocritamente seguida pelo habitante d'aquella casa triste, o celebre doutor franciscano Frei José do Amparo.
E este eil-o já sentado ao pé da mesa a examinar com attenção uma larga folha de pergaminho que tem ante os olhos.
É um desenho tosco e imperfeito, representando com a maior minuciosidade e exactidão possivel para aquelle tempo os lados septentrionaes o occidentaes do imperio de Fez e de Marrocos.
Alli se viam marcados os pontos de mais facil desembarque, os mais pequenos rios, os despenhadeiros mais reconditos, as menores sinuosidades do terreno. Não eram muitas veies guardadas as devidas proporções, e das cidades e fortalezas, mais proximas do litoral, se viam as muralhas e as obras exteriores de defesa: e notas á margem de diminutissimo cursivo descreviam o número aproximado da sua guarnição, população e riqueza.
O sabio marcava com um lapis vários pontoa das praias occidentaes, e sôbre elles escrevia n'uma tira de papel as suas reflexões.
Porém de quando em quando erguia a cabeça e olhava para a janella d'onde se avistava toda a cidade até ás muralhas do Castello, ás torres de S. Vicente e as da Sé; e os olhos penetrantes do padre pareciam querer passar alem d'aquelles obstaculos materiaes.
Pensava por certo na reclusa de Sancta Clara, que ás vezes o nome de Rosalinda lhe murmuravam os labios. Então fazia um movimento de impaciencia, e voltava a examinar o mappa.
Foi durante uma d'estas distracções que ouviu bater á porta da sala com fôrça, e d'uma maneira particular.
Dobrou rapidamente o pergaminho, levantou se e foi abrir: afastando-se para um lado da porta e curvando-se respeitosamente ante os visitantes.
Eram dois cavalleiros simplesmente trajados, mas que á primeira vista se conhecia serem pessoas principaes.
Um tinha trinta e nove annos de edade, mas parecia mais edoso; alto, bem feito, ainda que um pouco corpulento; o rosto redondo, mui povoado de barba comprida e negra, e os olhos animados e expressivos, mas cheios de bondade. A sua figura tinha todas as caracteristicas do homem costumado a mandar, e era magestosa e infundia respeito nos ânimos dos que a viam.
O outro era um gentil mancebo de dezeseis annos de edade, d'uma elegancia viril em todas as proporções do corpo, mas não alto; com o rosto comprido e bello, e os negros olhos d'uma luz que pareciam ir illuminar e patentear-lhe a alma da pessoa em quem se fixavam. Pelo typo do rosto, pelos seus modos, e edade parecia filho do outro cavalleiro, porém a sua presença, mesmo não lhe levando em conta a juventude, não era tão magestosa como a d'elle; e comtudo qualquer estaria mais á vontade ante o pae do que fixado pelas vistas do filho.
Pendiam-lhes dos hombros mantos de velludo preto, e vestiam gibões de seda côr de violeta com leves bordaduras d'ouro fino. Traziam á cinta primorosas espadas de Toledo, e na cabeça chapeus de largas abas e breves plumas negras.
Era o mais edoso el-rei D. Affonso V, e o mais joven o principe D. João seu filho.
II
QUASI PROPHETA
-- Não pensaveis que apenas sol nado teríeis esta visita? Disse el-rei, depois de feitas as primeiras saudações, e sentando-se n'um tamborete no lado principal da mesa, em quanto em dois outros se sentavam o principe e o frade.
-- Não por certo; e apesar de eu estar habituado a ser honrado muito alem do que mereço por vossa real senhoria este último favor me transporta de prazer. E eu o attribuo primeiro á vossa magnanimidade real, e depois aos sanctos apostolos que hoje venera a egreja.
-- Na verdade a S. Pedro e a S. Paulo deveis tambem esta visita. Ha dias que desejo ver-vos; e vós tendes andado tão arredio do paço, ha um mez, que determinei vir a S. Francisco. Hoje, levantando-me ainda mais cedo do que tenho por costume, vi a manhan tão linda, e ouvi tantos cantares e musicas pela nossa boa cidade, que senti grandes desejos de vir até aqui, e fui ao quarto do principe acordal-o para dar commigo este matutino passeio.
-- Mui bem fizestes, real senhor; passear n'uma formosa manhan de primavera ou do estio é não só deleitoso, mas remoçar-noe até a natureza. Eu costumo madrugar...
-- Tambem o fazemos no paço, doutor. Somos chefes d'um povo laborioso e guerreiro, e não é bastante conformar-nos com seus bons costumes; devemos incital-o n'elles. São os actos do capitão exemplo para o soldados; e jámais foi disciplinado e valoroso o exercito regido por um cabo mal morigerado e cobarde. Instigo a todos ao trabalho, porque, sendo esta uma nação, pequena e tendo a porta poderosos inimigos, só com muita perseverança no lidar se póde sustentar e engrandecer.
-- É pequeno o territorio, senhor, mas tem por capitão um grande rei, e o futuro successor não o será menor. Não era tão extenso o solo de Roma, seus governantes tão conceituosos e emprehendedores, nem tão valorosos os cidades, e as aguias romanas estenderam seu voo audacioso por todo o mundo conhecido. A cruz das quinas portuguezas não ficará após das aguias pagans. Mais longe ha de ir; iremos plantal-a em regiões até hoje ignotas. Ha onze annos, sôbre o rochedo de Sagres, o grande espirito de vosso thio D. Henrique, desprendendo-se da terra, aos portugueses mostrou como futuro o oceano. É essa a estrada. D'ella faremos surgir, ante o velho mundo maravilhado, nações e riquezas não sonhadas dos maiores visionarios da antiguidade.
A voz eloquente e apaixonada do franciscano impressionou profundamente o rei e o principe. Este porém, apesar de seu enthusiasmo, cravava no rosto do padre com certa desconfiança o olhar perspicaz e já profundo. Advinhava-se n'aquelles olhos o grande politico que depois foi.
O doutor, olhando-o de relance, desviou d'elle a vista, e fixou com tranquilidade o rei. Depois d'alguns momentos de silencio, este disse:
-- Deus vos ouça, padre; só elle sabe quanto desejo o engrandecimento do povo que me ha dado; quero-lhe como a este filho. Accusam-me os populares de não punir as vexações que sôbre elles exercem os nobres; de não attender ás vezes suas queixas, de nada recusar a fidalgos e cavalleiros... talvez tenham razão. -- O principe fez um signal de assentimento. -- Bem sei, João, que tu és contra mim n'este unico ponto; affrontam-te os grandes, e d'essa tua opinião receio a ti e a elles desavenças no futuro. Eu não penso assim; sou para com nobres e populares indulgente, porque amo a todos; porém acarinho mais aquelles, pois são o nervo d'esta nação guerreira. E a sua espada valorosa e dedicada que sempre encontro a meu lado nos dias de combate. São elles que deixam os lares e vão mar em fóra combater na Africa com os sarracenos, luctar no oceano com as vagas. No entanto ficam no reino os populares tranquillos a laborar seus campos, a lidar em, suas officinas, ou a mercanciar em suas lojas. São tambem estes trabalhos uteis, indispensaveis; são elles quem occorrem ás despesas da guerra e da paz. Sei. Mas o engrandecimento da nação, mas a sua gloria toda das armas tom vindo até aqui, e d'ellas a espero ainda. For isso Deus me perdoará a parcialidade para com a nobreza, para com os guerreiros, que é em serviço seu a do povo, que á minha guarda confiou.
É D. Affonso V quem falla, o último rei que tivemos, verdadeiro representante de briosa cavallaria da meia edade, excellente soldado e optimo capitão, mas pessimo governante; estimado da nobreza, porém malquisto do povo; não por maldade ou tyrannia que pessoalmente practicasse ou ordenasse, mas pelas que deixava impunemente exercer aos fidalgos.
As suas victorias contra os sarracenos lhe deram memoria gloriosa na historia patria, e o honraram com o titulo de africano; é o seu brilho que deixa, como na sombra, os grandes êrros politicos de todo o seu reinado, devidos já, ao seu caracter cavalleiroso, já, umas vezes, a deixar-se guiar na gerencia das cousas públicas por maus conselheiros, outras, a seguir como pertinacia o seu parecer im-prudente.
A mesma auctoridade real, que seu filho depois tanto elevou e exaggerou, elle muitas vezes a não sabía sustentar pela nimia bondade de sua alma. Reconhecendo esta fraqueza, ante duas pessoas que tinha na maior confiança tivera alli aquelle desabbafo. Calando-se, ficou á espera de ouvir apoiar ou contestar suas ideias. Mas o principe guardou silencio pelo respeito que lhe tinha; e o franciscano, -- que, tendo estudado na Italia o direito romano e pontificio, pertencia á eschola dos theologos e juristas que fundaram no continente da Europa o governo absoluto da corôa á custa dos populares e dos nobres, e era por isso de contrária opinião á do rei favorecedor da nobreza, -- julgou conveniente não contrariar Affonso V por nenhum lucro ver que d'isso podesse resultar n'aquella occasião à sua ordem ou a si proprio.
O rei pois continuou:
-- Mas dizei-me, doutor, achaes vós que devemos seguir exclusivamente os conselhos do sabio infante D. Henrique; que devemos deixar as conquistas de Africa para empenharmos todas as nossas fôrças em navegações e descobertas? Dir-vos-hei desde já que não é essa a minha opinião.
-- Nem a minha, senhor; que seria deixarmos o certo, o real, pelo duvidoso, e o que ainda é mais deixariamos o inimigo da vizinhança que tantas vezes nos vem sobresaltar a casa, roubando-nos com seus corsarios os haveres e a honra de nossos lares, para nos irmos perder nas vastidões reconditas do oceano; e depois é vossa real senhoria um rei christo, e por isso tem o rigoroso dever de combater os inimigos da cruz; nem Portugal mereceria desculpa de não ter até hoje directamente concorrido para as guerras sanctas do oriente se não fôsse ter combatido constantemente os sectarios de Mahomet n'esta parte occidental do mundo.
-- Então, deixaremos os trabalhos das descobertas tão felizmente começados? Madeira com suas mattas magestosas, as ilhas fertillissimas dos Açores e de Cabo Verde, o encontro da de S. Thomé no anno passado, e já este anno da do principe não são victorias sôbre o oceano para nos animar a maiores emprehendimentos?
-- São, por certo, real senhor.
-- Então qual das duas emprezas me aconselhaes?
-- Ambas, senhor rei de Portugal, rei d'uma nação maritima e bellicosa, ambas! Poucos navios bastam, apenas algumas dezenas d'elles para continuar ao longo d'Africa as navegações começadas. Pelos trabalhos que vi na eschola de Sagres penso que aquella parte do mundo se prolonga na verdade muito para o sul, mas que ainda será possivel um dia costeal-a toda, e subir pelo oceano até Medina e Meca no mar Vermelho. Esse será tambem o caminho maritimo da India. Grande gloria virá a quem o descubrir; e se nós os portuguezes o conseguimos, todas as immensas riquezas da Asia, que hoje vêm através dos desertos do oriente com grande dispendio e perigo embarcar nos portos do levante, para, ao longo d'um mar inçado de corsarios, irem enriquecer Veneza e outras cidades da Italia; todas essas immensas riquezas, digo, virão pelo oceano ao porto de Lisboa que, tornado o mais rico emporio do mundo, as distribuirá á velha Europa maravilhada. Esta não é porém obra d'um anno, mas dê muitas e muitas dezenas d'elles; hão de succeder-se n'ella as gerações, que não é para uma só.
Fr. José parou um momento meditando; o rei e o principe escutavam-no com admiração e enthusiasmo, pouco depois continuou.
-- No entanto o grosso da armada e essa nobreza numerosa, impaciente e avida de combates e de gloria, precisa ser empregada, precisa que seus feitos a desculpem no ânimo do povo, perante os homens bons dos concelhos, das vexações que exercem sôbre os populares, do trabalho e do sangue que lhes extorquem. As praças mouriscas d'Africa, as meias luas de Fez e de Marrocos nos offerecem para isso occasião; e o prolongamento d'este pequeno reino, ao longo d'essa costa que tão perto fica de nós, é de grande utilidade para o paiz. Ahi, palmo a palmo, conquistaremos aos sarracenos suas terras, e nas torres das mesquitas mussulmanas arvoraremos a cruz de Jesu-Christo.
-- Muito me regosija ser essa a vossa opinião, é a minha tambem, sabio franciscano. Iremos pouco a pouco continuando as navegações; empregaremos n'ellas os melhores mareantes que temos, e com ellas educaremos outros que, continuando-as cada vez mais vastas, sigam o pensamento grandioso de D. Henrique. No entanto proseguiremos as guerras de Africa, não menos gloriosas e de mais certo resultado. Em poucos dias estarão promptas trezentas velas, e no fim de Julho teremos armados e prestes trinta mil homens. Andam os mouros entretidos com suas guerras de Fez, e não desconfiam do nosso intento, porque mesmo no reino se não sabe ao certo, se para o mar do norte, do levante ou do sul, singrará nossa armada. Estou, como sabeis, desassombrado dos negocios d'Inglaterra; os nossos corsarios fizeram tanto damno aos pobres insulares que já nos requerem paz, e dão a satisfacção exigida. Agora pois nao penso senão em Africa; mas inda não resolvi qual das suas praças atacarei, e é sôbre isso que desejava saber a vossa opinião.
III
O PRINCIPE PERFEITO
Estava Fr. José do Amparo n'aquella hora n'um dos seus raros momentos, em que, liberto das tramas que andava sempre enredando, e n'ellas muitas vezes enredado, para nada lhe era util a hypocrisia e a maldade. Felizmente para o rei e para a nação cousa alguma lucrava o frade, nem a sua ordem, nem a egreja em geral com o mau exito das guerras d'Africa. Tinha pensado até pelo contrario o franciscano que, concorrendo elle com seus conselhos juncto do rei, e com suas predicas entre os soldados na hora do combate, para o bom resultado da empresa, augmentaria sua pessoal influencia, e a ordem alcançaria da corôa talvez alguma doação avultada.
Não era este um pensamento da vespera; concebera-o apenas vira despontar na mente do rei os desejos d'uma terceira expedição a Africa; procurara logo o melhor geographo franciscano, mandára-o a Ceuta com ordem aos irmãos de S. Francisco que lá residiam de o ajudarem, em tudo que necessário fôsse, a levantar uma carta geographica d'aquelle pequeno canto da Libya.
Foram muitas as jornadas pelo litoral que os padres emprehenderam, muitos os trabalhos e perigos que arrostaram para executar em segredo, como lhes fôra recommendado, a ordem do doutor. Fez-se por fim o mappa, e o geographica o trouxe em triumpho com muitos outros esclarecimentos a Fr. José, recebendo em recompensa a nomeação de leitor do convento de Bragança, o mais antigo da ordem em Portugal. Era este o mappa que Fr. José do Amparo estava a estudar quando o rei batêra á porta da sala. Foi pois com o maior contentamento que o frade ouviu D. Affonso V pedir-lhe o parecer a respeito da empresa. Não deu comtudo a minima demonstração da sua alegria interior, e depois d algumas palavras sôbre sua incompetencia no assumpto e boa vontade de servir o rei, desdobrou com simulada humildade, ante as vistas dos seus reaes visitantes, o mappa de Marrocos.
Fez então uma larga e minuciosa descripção de todas as praças susceptiveis de serem atacadas pelas nossas armas. Isto com tanta clareza e tão profundo conhecimento das cousas sarracenas, que o mesmo rei, sabedor do assumpto, estava admirado. E que o padre, havia mezes, não estudava outra cousa. Por fim designou Arzilla, como primeiro ponto de ataque, e, no caso de ser tomada rapidamente, accommetter a proxima povoação de Tanger, que, a não ser soccorrida facilmente se entraria amedrontada pela conquista d'Arzilla.
Achou el-rei bom o conselho e abraçou com effusão o conselheiro; depois disse que o segredo absoluto era indispensavel para o bom resultado da empreza, e que só diria o destino da armada no proprio momento de sahir de Portugal; que, para mais perfeito conhecimento do logar do desembarque, e do interior e exterior da praça, ia aproveitar o mez, que inda era necessario pára esquipar o exercito, em mandar a Arzilla Vicente Simões, bom navegante, e Pedro Alcaçova, seu escrivão da fazenda, ambos mui perspicazes, e de grande confiança; que um navio mercante estava no Tejo prestes a partir para Africa, n'elle os faria embarcar *naqueile mesmo dia; e, sob pretexto de tractar com os mouros, se introduziriam na villa e tomariam as informações necessarias.
Terminada assim a práctica, quando já o rei se dispunha a sahir, o principe D. João, que sempre se conservára mui attento, mas silencioso, levantou-se do tamborete e, ajoelhando juncto ao rei, disse-lhe:
-- Meu senhor e pae, uma graça tenho a pedir-vos, que haveis de conceder-me, pois me vae n'ella a honra e todo o amor que tenho pela vida.
-- Qual, filho? disse el-rei admirado.
-- O avô de vossa real senhoria, o senhor rei D. João I, na sua expedição a Ceuta levou comsigo os infantes seus filhos para serem armados cavalleiros depois de tomada a praça. A espada christan venceu o alfange mulsumano; e, apenas sagrada a mesquita e feita egreja, os infantes, que. se haviam batido com o valor proprio de filhos de tal pae, receberam aquella dignidade de verdadeira valentia e nobreza. Fazei o mesmo, senhor; levae-me comvosco, e se eu me bater com denodo, como fizeram meus reaes thios, conferi-me aquella honra que, depois do vosso amor, é o que mais desejo no mundo. Levae-me comvosco, levael Vossa real senhoria sabe que eu nunca vi uma batalha. E como poderei um dia governar um povo que vós, o mais esfôrçado cavalleiro, o melhor capitão de Portugal, regestes, e tantas vezes levastes já, e mais vezes ainda levareis à victoria, sem nunca ter visto uma peleja, um verdadeiro combate entre christãos e infieis? Qualquer homem d'armas se rirá de mim, e me julgará incapaz de empunhar a serio uma espada.
-- Mas, meu querido João, tu és o successor da corôa, o meu unico filho...
-- Pois por isso, senhor rei, por isso! honras são essas que me obrigam a arrostar os perigos e a desejar a gloria. É preciso que eu mostre ser digno d'ellas, e só o posso fazer, pelejando com esfôrço pela cruz de Jesu-Christo e por esta terra que vossa real senhoria e os reis meus avós tanto fizeram celebrada.
-- Mas tu és tão novo ainda, filho? Tens tão pouca edade!
-- Pouca edade! a mesma tinha Affonso Henriques, quando com suas proprias mãos se armem cavalleiro na cathedral de Zamora, e já havia entrado em muitos recontros com os mouros. Egual número de annos contava D. Sancho I quando começou em todos os perigos a ter companheiro de seu esfôrçado pae. Aos vinte já D. Sancho n era rei, e merecia pelas suas victorias contra os sarracenos os encomios do sancto padre Honorio III. E aos cinco apenas foi D. Diniz, armado de ferro, levar soccorro ia seu avô o sabio Affonso de Castella.
-- Basta, basta, meu filho, já vejo que sois grande sabedor da nossa historia. Eu desejava levante, que não posso separar-me de ti, mas a tua perda me daria a morte, e seria para o reino uma grande fatalidade.
-- Oh! não penseis n'isso, meu pae. Vós sabeis que rezo todos os dias a Nossa Senhora; ella me protegerá no meio da peleja, e nenhum mal me pôde sôbrevir. Tenho n'isto viva fé, e irei para o combate muito mais afouto e muito mais alegre do que para um torneio de cavalleiros na vossa côrte.
-- A ninguem posso recusar o que me pede; quanto mais a ti, João! mas terei contra mim o parecei de todos no conselho.
-- Deixae, meu pae, a opinião dos do conselho. Vós é que sois o rei, a vós, e não a elles, compete o governar. Promettei pois, que irei comvosco, promettei.
-- Pois sim, irás, principe; mas has de ser prudente, dás-me a tua palavra?
-- Dou a minha palavra, dou, que no campo da batalha serei vosso verdadeiro filho.
Com grande alegria beijou muitas vezes a mão do rei, e, levantando-se, o joven principe perfeito exclamou enthusiasmado:
-- Oh! em Arzilla serei armado cavalleiro!
IV
DESESPÊRO
Acabado este incidente, conversaram ainda alguns momentos os reaes visitantes com Frei José do Amparo; depois sahiram da cella, e elle os acompanhou á portaria. Voltou o frade a encerrar-se em seu triste aposento; apenas porém havia fechado a porta um bater respeitoso lh'a fez de novo abrir.
O irmão porteiro, entrando, depois de muitas zumbaias abeatadas e do mais profundo acatamento, lhe entregou uma carta da abbadessa de Sancta Clara, e sahiu.
A virtuosa dona n'um papel ainda humido das lagrimas, e com palavras da maior afflicção, participava a fuga de Rosalinda, e se lastimava de ter aquella sancta casa, e durante o seu governo, sido escolhida por Satanas para tamanho escandalo. O furor que o padre sentiu, concluindo a leitura, foi extremo; sahiu-lhe do peito um som inarticulado, uma especie de rugido doloroso; amarrotou entre as mãos o papel e arrojou-o a grande distancia: depois começou a percorrer o aposento em várias direcçSeB e com incerto e precipitado passo.
Mas a tormenta que ia lá n'aquella alma de tanta exaltação e perversidade é que é impossivel descrever.
O orgulho, o ciume, os desejos lascivos, a cubica, o sacrilegio, tudo quanto ha mau na mente do homem, e tambem, de espaço a espaço, um como lampejar de pensamento bom, que a maldade absoluta jámais se dá em a natureza humana, lhe combatiam furiosos no espirito, qual em noite de horrendo temporal, quando soltos com furia os ventos do ceu, impellidas em todas as direcções, as nuvens com estampido se debatem.
E esteve assim mais d'uma hora, até que, extenuado das fôrças do espirito e do corpo, cahiu inanimado sôbre o pobre leito.
Um pensamento mais que todos lhe dilacerava a mente: -- Rosalinda, fugindo do convento, iria para o Porto reunir-se com o amante. -- Alem do seu orgulho e ciume revoltados, elle começou a ver os inconvenientes que das revelações da donzella lhe podiam resultar.
Este receio, tomando consistencia no seu espirito, o fez voltar a si e recuperar toda a razão e energia.
Levantou-se e escreveu a Jorge a carta aleivosa e beata, transcripta no fim da parte segunda, que servia a prevenir o mancebo contra a donzella, a augmemtar o seu amor por D. Anna, e a fazel-o ceder aos desejos do duque. Conseguindo isto, Rosalinda perderia a protecção de Ruy, e estaria mais facilmente ao seu dispor; e vingava-se tambem do modo como a recolhida de Sancta Clara recebêra as suas arengas.
Escreveu ainda várias cartas para os conventos franciscanos entre Lisboa e Porto; chamou um correio da casa, e ordenou-lhe que montasse a cavallo e partisse immediatamente a leval-as com a maior presteza e cuidado.
Depois tirou d'uma gaveta do bofete algum dinheiro e um agudo punhal que no seio occultou, e, dirigindo-se para a porta, murmurou com um sorriso feroz:
-- Vá! vamos procurar e trazer ao nosso aprisco aquella ovelhinha desgarrada!
VI
IDYLLIO
I
A MADRUGADA DO DIA DE S. PEDRO
Na bella madrugada do dia 29 de Junho de 1471 vamos ainda avistar um outro grupo, não tão importante, porém muito mais alegre, e por isso muito menos cuidadoso, do que o apresentado ao leitor na cella de Fr. José do Amparo.
Constituem-no um velho, ainda robusto, cuja simpleza e bondade do coração lhe estão escriptas no rosto, -- um mancebo de vinte e um annos, de estatura regular e de feições expressivas e bellas, mas d'uma belleza masculina e rustica, como d'homem nascido e creado ao ar livre do campo e aos raios ardentes do sol da Estremadura, -- e duas meninas tambem de formosura campesina, porém mais delicadas e alvas que o geral das aldeans, pois semelham as filhas de rico lavrador que passam os dias mais a costurar em casa, a lidar no celleiro ou no coberto da eira, do que a ceifar ou a vindimar, no monte ou no prado.
Caminha o velho sosinho na frente e após elle o mancebo ladeado das duas meninas. Vão todos conversando e folgando e rindo. Saúdam a cada momento mais numerosos e não menos alegres ranchos de camponezes que por elles passam com ramos de flores e cannas verdes nas mãos, e cantando ao som de suas rústicas violas, guitarras e tamborins.
São os habitantes de Sacavem, de Camarate e das aldeias e casaes vizinhos, que vão, n'este dia de S. Pedro, em alegre romaria, visitar uma pequena fonte que, assombreada de copadas arvores, e rodeada de floridas balsas, fica perto de Sacavem.
Não faltam alli namorados: não ha môça que não se deleite, ouvindo com ternura as palavras amorosas de seu aldeão galan, tão apaixonadas e tão desenxabidas, como a dos galans de todos os logares e de todos os tempos.
As mães vêem e sorriem, afastam a vista e suspiram; suspiram por já lhes haver passado a quadra innocente e feliz dos amores na juventude.
Ri por toda a parte a natureza; a manhan está bella e pura, e o sol doura apenas o cume dos outeiros.
Quanto é bella uma formosa madrugada do dia de S. João ou de S. Pedro, com as suas tão recentes, mas já tão saudosas recordações das fogueiras da vespera, com os seus deliciosos passeios ás correntes e ás fontes!
Oh! fontes!... fontes do Castanheiro e do Cidral da minha terra, sempre, sempre no coração, vos lembrarei com saudade!...
Ia caminhando o nosso pequeno rancho.
O velho fallava, ora nas cousas agricolas que se lhe apresentavam aos olhos, ora na desastrosa guerra civil do rei com seu thio o infante D. Pedro. Vinte e dois annos havia, que elle a vira talar-lhe os campos, e tão desastrosamente finalisar juncto ao ribeiro da Alfarrobeira, proximo d'Alverca, por isso a conservava sempre no espiritou fallava constantemente d'ella.
Os tres jovens, pelo respeito que lhe tinham, simulavam prestar-lhe attenção, e respondiam-lhe de quando em quando; mas, baixinho, iam conversando em cousas mui somenos, porém que mais lhes diziam respeito e tocavam ria alma.
Pelo titulo de parentesco que mutuamente se davam, conhecia-se que o velho camponez era thio do mancebo e pae das duas meninas.
-- Ora o que nunca te contei, meu sobrinho Ricardo, dizia o velho, foi o pacto celebrado entre o regente e o conde d'Avranches.
-- Não, thio, que me eu lembre, de certo que não. E os jovens trocaram entre si um sorriso, como de pessoas que vão escutar pela décima vez, ao mesmo narrador uma historia, mas que resolvem prestar-lhe attenção ou fingir que lh'a prestam, porque sabem que isso lhe dá gosto.
-- Pois ouvi, tornou o velho, que foi o suocesso mais interessante d'aquella fatal contenda:
«Era o conde d'Avranches o mais valente cavalleiro que havia então em Portugal. O regente fizera-o governador de Ceuta; e lá serviu com a maior gloria. Voltou ao reino, quando no desagrado d'el-rei cahiu o duque. Foi, porém, bem recebido por D. Affonso v que muito se deleitava em praeticar com elle nas cousas d'Africa.
«Aproveitava o cavalleiro estas occaroSes para lhe fallar a pro do seu amigo o infante; comtudo pouco fazia no ânimo d'el-rei, pois eram taes e tantos os inimigos do regente e de tal modo o calumniavara, que o joven monarcha estava muito irado contra, seu thio. Apesar d'isto no conselho dos nobres, com risco de perder a liberdade e até a vida, sempre o conde o defendeu.
«Por fim foi reunir-se com elle em Coimbra. Lá, serviu-lhe de muito com seus conselhos de homem valente e leal.
«Quando as cousas chegaram ao derradeiro extremo, o duque resolvendo vir com seu pequeno exercito ter explicações com el-rei, chamou ao oratório particular o conde d'Avranches.
«Tiveram, primeiro, longa e maguada práctica regada de muitas lagrimas; depois, como eram ambos extremosos amigos, antigos companheiros d'armas e ambos cavalleiros da ordem ingleza da Jarreteira, obrigaram o capellão do duque a receber-lhes o juramento terrivel de que, havendo peleja, se um morresse, o outro combateria até perecer tambem, e sôbre este pacto solemne tomaram a sagrada communhão.
«Partiram caminho da capital. As explicações desejadas não poderam ter logar por causa dos maus conselheiros d'el-rei. E, depois de muitas cruelades e devastações, practicadas por um e outro partido, entre Santarem e Lisboa, as tropas do duque façam assentar arraiaes em Alfarrobeira.
«Era o acampamento fortificado, e defendido por algumas peças d'artilharia. Cereou-o o exercito do rei, dez vezes mais numeroso, e começou fazendo-lhe alguns tiros. Responderam-lhe igualmente os sitiados. Um soldado, por engano, apontou, uma bombarda á tenda real; cahiu o projectil proximo, e os cortezãos, irritados d'aquella ousadia, tomaram rapidamente as armas e atacaram o campo do infante.
«Colhido de sobresalto, o pequeno exercito pouco resistiu, e desanimou, quasi logo no principio, pela morte do regente.
«Foi a nova participada ao conde d'Avranches que andava combatendo d'outro lado. Recolheu-se por um momento á sua tenda, e ahi mudou algumas peças da armadura, -- comeu e bebeu um pouco, fez as suas devotas orações, como d'homem que se prepara para morrer, e depois sahiu.
«Vi-o então. Eu combatia, como sabes, obrigado nas fileiras do exercito real. Tinha aquillo até alli sido mais uma carnificina que uma batalha. A chegada porém do conde d'Avranches mudou por bastante tempo o aspecto da contenda.
«Com a sua terrivel e comprida lança, divagando pelo arraial, feria quantos se lhe aproximavam. Apertava-o a multidão por todos os lados. Mas ninguem conseguia tocar-lhe; apenas depois de muito se poude cortar-lhe a lança. Travou então da espada.
«Nunca vi golpes como aquelles; a sua arma brilhava no ar, como relampago, e cahia de instante a instante sôbre o craneo dos nossos soldados, abrindo-os de meio a meio. Combater com elle era ir luctar com a morte. O seu olhar feroz regelava os corações de medo, e a sua espada levava, irremediavelmente, onde se dirigia, o termo fatal da vida»
«Elle só vingou a morte do duque, a sua e de todos os seus que alli morreram. «Por fim já se não pelejava n'outro ponto. E, mortos todos os seus companheiros, ainda resistiu por algum tempo a todo o exercito que o cercava.
«Finalmente cahiu de fadiga, «não vencido, mas cançado de vencer,» e clamando: Fartar, rapazes!
«Foi então trespassado de tantos golpes que não se podiam contar. E, já cadaver, ainda os mais valentes o não olhavam sem temor.
«Assim cumpriu aquelle nobre guerreiro o juramento que tinha feito ao seu amigo e companheiro d'armas.»
Ao terminar, o velho soldado d'Affonso V tinha os olhos humedecidos de lagrimas, tamanha era a commoção que sentia ainda ao recordar-se do valoroso conde. E os mesmos jovens, sem quererem, lhe haviam por fim prestado attenção, e se tinham commovido, ouvindo o velho contar-lhes a morte do celebre D. Alvaro Vaz d'Almada com enthusiasmo e com certa correcção que lhe era habitual; pois o camponez vivera por muitos annos em Lisboa entre pessoas, algumas das quaes cultivavam as letras, quanto n'aquella epocha a falta geral de instrucção o permittia.
O nosso novo e gentil grupo tinha por fim chegado á fonte, e sentou-se nos bancos de pedra que estavam de roda. Não havia então mais ninguem alli.
As meninas foram ao pé da bica d'agua chrystallina, lavaram as mãos, e depois, unindo-as em concha e enchendo-as d'agua, deram por ellas, primeiro uma e a outra após, de beber ao mancebo. E elle ao beber apertou com ternura as mãos das meninas, beijou-lhes, e todos tres gracejaram, e riram.
O joven aldeão amava por certo a alguma d'ellas; mas tractava ambas com tanto affecto, que era difficil dizer a qual dedicava maior ternura. Porém dil-o-hei eu, era a mais edosa, mas não menos bella das duas; mais baixinha do que a irman, e menos elegante do que ella; porém com o rosto mais expressivo e sympathico, os pés e as mãos mais pequenos e bem feitos, e a sua linguagem mais fluente e meiga. Lucila era o seu nome, e Maria o de sua irman. Esta era muito alta, com uns olhos lindos, e o sangue todo fervendo-lhe por dentro; por isso jámais estava socegada.
Continuaram os tres jovens a fallar e a rir todos ao mesmo tempo, e o velho a pairar de guerras e de quanto lhe lembrava. De repente disse para Ricardo:
-- Então, meu sobrinho, já está isto resolvido?... sempre te obrigam a ir com o fidalgo para o exercito?
A esta pergunta inesperada a tristeza foi de golpe assombrear o rosto dos tres jovens.
-- Obrigam-me, thio, obrigam; mas por em quanto não se sabe quando partirá o nosso terço, por isso não fallemos em tal.
O velho não replicou a esta resposta dieta com certa aspereza; e a alegria foi, pouco a pouco, restabelecendo-se.
Maria, que nunca estava quieta, afastou-se da fonte e entrou, correndo, por uma abertura entre as sebes.
Apenas desappareceu, ouviu-se-lhe logo um grande grito. Todos correram immediatamente. Chegando, viram a causa do espanto da donzella: n'um claro das sebes, sôbre um tapete de relva, estava deitada uma menina formosissima.
Maria julgára-a uma encantada moura, uma fada qualquer d'aquella fonte, porque as ideias predominantes do seculo assim a faziam pensar, por isso gritara.
Os quatro cercaram a desconhecida que quasi parecia morta; e tal a julgaram primeiro; o velho, porém, pondo-lhe a mão sôbre o coração, disse que vivia.
Então Ricardo a tomou nos braços e a levou para a fonte; e Lucila conduziu uma pequena caixa que estava ao pé, e que n'um escudo de prata sôbre a tampa tinha gravado o nome -- Rosalinda E a menina encontrada era effectivamente a fugitiva de Sancta Clara, que tendo caminhado perto de duas léguas, cahíra, quasi morta de fadiga, entre aquellas sebes, onde se perdera.
Os bons camponezes a fizeram tornar a si, e a levaram para casa do velho aldeão, um dos mais ricos lavradores de Camarate e o mais honrado.
II
O CURA DE CAMARATE
Tres semanas depois, no adro da bella egreja de S. Thiago de Camarate, quando o sol, quasi a esconder-se no horizonte, illuminava com seus raios já desmaiados a frontaria do templo, estavam conversando os cinco personagens do antecedente capitulo com um ancião que apresentaremos ao leitor.
Era um velho clerigo de aspecto venerando; não sabio, mas um sancto; de linguagem não eloquente, mas facil e persuasiva; estudára e comprehendêra o Evangelho, e ensinava-o com fervor, mais pelo exemplo do que pela palavra. Seguia, e tinha gravada na consciencia, a divisa que um seculo depois adoptou o sancto arcebispo de Braga: Ardere et lucere.
Estava sentado no pedestal da elegante cruz de pedra que fica defronte da porta principal da egreja, e que então tinha aos lados algumas arvores mui altas e copadas que muito aformoseavam o adro.
Ainda este não era cercado de prédios, e avistava-se d'alli uma grande extensão de pequenos outeiros, de valles, de collinas cobertas de vinha ou de rastolhos amarellados das searas já ceifadas de trigo e de centeio. E por todos os lados do horisonte, rico de cultura, levantavam-se numerosas as modestas e pacificas oliveiras, arvore mais que nenhuma outra util ao homem, pois lhe dá com a luz augmento de vida, e lhe consente prolongar o trabalho, os prazeres ou o tracto com os outros homens, quando o sol deixa em trevas a face da terra.
-- Ha quinze dias que lhe enviei a carta que escreveste apenas melhoraste d'aquella febre, minha querida Bosalinda, e o superior dos dominicos em lisboa, a quem devia ser remettida a resposta, ainda a não recebeu, -- dizia o ancião.
-- Porém devemos ter esperança em Deus; talvez não chegasse ás mãos de Jorge ou por ser interceptada, ou por elle ja não estar no Porto... ou... quem sabe!... pôde ser que venha em caminho para aqui.
-- Ai! senhor cura, é tão mau e tão poderoso o meu inimigo, que, de certo, ou foi roubada a carta, ou illudido o coração de Jorge, ou cortados os seus passos.
-- Talvez não, minha filha; tem esperança.
-- Esperança!... tenho-a... tenho-a desde que estou aqui com estas meninas por quem sinto amor de irman, no seio d'esta familia que estimo como se fôra minha; tenho-a desde que as vossas palavras de consolação a trouxeram de novo á minha alma. Oh! eu a havia perdido, quando aquelle demonio, vestido de religiosas roupas, occulto na capa da virtude e da sabedoria, me tentava e atormentava; porem voltou-me agora; mas não a de ver aqui Jorge... Não poderam, graças a vós todos, descobrir até hoje o meu abrigo, e por isso tenho estado livre. Mas elle, se partir para vir encontrar-me, sahirá do Porto ostensivamente; logo o saberão, e a sua marcha será immediatamente embargada, que o mau frade fará quanto poder para não nos avistarmos.
-- O principio do bem não será vencido pelo do mal; não ha de o inferno prevalecer contra o ceu. Se tu e o teu noivo, minha filha, forem virtuosos e tementes a Deus, sereis unidos um dia apesar de todos os esforços dos perversos e dos impios.
-- Nossa Senhora vos ouça, meu padre! nenhum outro desejo mais me liga ao mundo.
-- Pois, filha, Nossa Senhora te valerá; pede-lhe com fervor e bem do fundo do coração. Olha; ámanhan, que é domingo, vae tu, Rosalinda, e ide tambem, Lucila e Maria; vão todas ajoelhar ante a formosa imagem da Nossa Senhora da Conceição, e rogae-lhe, filhas, rogae á Rainha das Virgens para que vos proteja e faça ditosas a todas. E agora adeus; tenho de ir um pouco longe, a uma visita, e por isso permitti que vos deixe; adeus!
O padre levantou-se e caminhou pelar estrada que leva a Sacavem; todos, tendo despedido-se d'elle com o maior respeito, o contemplaram até desapparecer. Então Rosalinda disse para o velho aldeão:
-- Senhor Luiz, ha muito que me prometteis contar o motivo por que o sancto homem que é nosso cura tomou ordens; hoje haveis de cumprir vosso dicto, que não vos deixo sem isso.
-- Pois contar-vol-o-hei, minha senhora e filha, filha, que vos estimo tanto como se na realidade o fôsseis; e apenas vos conheço ha tres semanas... Contar-vol-o-hei, ainda que já vou estando muito velho; só tenho na memoria aquellas cousas que profundamente me tocaram no coração. Datas e nomes de pessoas olvidei-os. Não sei o dia em que meus irmãos, meu pae, ou minha mãe morreram. E lembro perfeitamente... parece-me ver ainda o seu rosto, o seu aspecto moribundo, despedindo-se de mim. Não sei o anno em que me casei, a edade que tinhamos, eu ou minta mulher, e comtudo recordo muitas vezes... avisto, por assim dizer, no horizonte do coração, a sua meiga figura, ao mesmo tempo alegre e triste, involta em roupas de virgem, ajoelhada ao meu lado, juncto áo altar, onde recebemos a benção nupcial. Por isso não posso dizer precisamente o logar, a data ou o nome das pessoas do caso que vou contar. Apenas me lembro de que vivamente me impressionou, ouvindo em Lisboa á fidalga, madrinha de Maria, a historia do homem justo que vistes desapparecer além.
«Pouco havia que o mestre d'Aviz fizera pazes com a regente de Castella, quando a nobreza, desoccupada da guerra com os castelhanos, em que geralmente tão mal serviu, se entretinha em satisfazer odios pessoaes e de familias, sua occupação unica, além da caça, da devassidão e do divertimento constante de nos opprimir, a nós villãos, como nos appellida.
«Entre Douro e Minho as contendas eram perennes. Já tinham sido maiores antes do bom rei D. Diniz; mas nunca inteiramente haviam cessado. «Certo dia um d'aquelles maus fidalgos reuniu todos os seus vassallos, assaltou o solar d'outro nobre, destruiu-o até aos alicerces, e matou todos os da familia, pae, mãe e muitos filhos.
«Apenas d'estes escaparam dois; um de vinte e quatro annos que estava em Lisboa, era dos poucos fidalgos amigos do chanceller; outro de dezoito que frequentava as escholas ecclesiasticas de Braga. O que estava na côrte, levando muitos homens d'armas, sahiu dalli escusamente, mas, dizem, com a approvação do doutor João das Regras, foi a Braga tomar o irmão, e dirigiu-se com elle para o solar de seu inimigo.
«Era uma praçasinha forte e vantajosamente situada. «Havia tres dias que a cercavam. Aos dois irmãos tinham-se reunido todos os seus vassallos e muitos populares de dois ou tres concelhos vizinhos que o mau fidalgo, havia muito, vexava constantemente. Este, vendo escassear os mantimentos, mandou apunhalar os prisioneiros, e pendurar os cadaveres nas ameias do castello.
«Era horrivel! Viam-se alli escorrendo sangue além de homens e mulheres do campo, dois frades e duas creanças»
«Os sitiantes enfureceram-se; assaltaram o castello, levaram-no de escalada, e passaram ao fio da espada toda a guarnição.
«Os dois jovens fidalgos tinham combatido na frente de todos; elles vingavam seus pães e seus irmãos.
«Apenas seguidos de dois ou tres homens d'armas avançaram até ao quarto do castellão. Ahi o encontraram, e n'elle o matador de toda a sua familia. Era um homem de aspecto feroz, que, além dos seus ultimo? assassinatos, durante a guerra com Castella vivera da rapina, atacando, ora castelhanos, ora portuguezes. Com a espada ensanguentada na dextra esperava os aggressores e defendia com seu corpo .uma linda menina de treze annos, sua filha natural.
«A peleja durou algum tempo; elle era valente como um leão; matou um dos homens d'armas e depois, ferindo o mais novo dos dois irmãos, foi n'aquelle momento atravessado pela espada do outro. Cahiu, e a seu matador, desenterrando a arma, travou da menina para a degollar.
«Então o mais joven dos dois, vertendo sangue da ferida que recebêra do pae, precepitou-se sôbre a filha, e a tirou das mãos do irmão, pedindo-lhe, quasi de joelhos e com muitas lagrimas, que não matasse a innocente creança. Porfiava o mais velho no seu intento, allegando que dois dos seus irmãos tinham sido mortos mesmo no berço. Mas o moço escholar tomou a menina nos braços, e fugiu para a capella. «Foi um rasgo que maravilhou a todos. O mesmo irmão mais velho compadeceu-se da creança e a deixou ao mancebo.
«Este a levou a Braga e a entregou n'um convento de freiras para ser educada. Ahi a visitava frequentes vezes, interessando-se sempre pelo seu adiantamento. «Passados annos a donzella adoeceu gravemente, e os physicos recommendaram-lhe que sahisse do convento e da cidade. Não conhecia o mancebo fóra de Braga familia alguma a quem a entregasse. Foi pois pessoalmente com ella para uma aldeia vizinha afamada de bons ares.
«Alli residiram quasi um anno; e o mancebo enamorou-se e apaixonou-se pela donzella. Declarou-lhe um dia o seu amor, é pediu-lhe que o recebesse por esposo. A menina respondeu-lhe, chorando, que nada podia recusar ao seu unico protector no mundo. Preparou-se tudo para o casamento; respeitando-a sempre o mancebo, como se ella fora sua irman.
«Na vespera porém da celebração ouviu um colloquio que lhe cortou a alma. A sua noiva dizia a um bello moço, filho d'um lavrador vizinho, que o amava com delirio, mas que ia desposar o homem que lhe conservára a vida, e a quem devia tudo o que era, porque este assim o desejava.
«Não quiz o moço fidalgo escutar mais nada. Rasgou os papeis do seu casamento; e em poucos dias preparou tudo para o matrimonio da menina com o seu namorado aldeão. Era este um rapaz honrado e laborioso, mas pouco abastado. O joven escholar comprou uma bonita herdade e a deu em dote á donzella, gastando n'isso metade da sua fortuna. Casou os dois amantes, e, apenas sahiu da egreja, dirigiu-se a Braga, e, dentro em pouco, perante o arcebispo, cantou a primeira missa.
-- E esse homem generoso é?...
-- O nosso parocho.
-- Oh! com que respeito, senhor Luiz, d'ora em diante eu lhe beijarei a mão!
-- E a sua vida como padre, continuou o velho, não desmentiu a causa que o levou a abraçal-a. Bem pelo contrário, jámais quiz acceitar cargos superiores ao de parocho, e quasi sempre tem estado em freguezias ruraes, e quasi todas tao pobres e desconhecidas como esta. E que tambem a sua exemplar virtude fazia sombra aos grandes dignitarios da cleresia secular e regular, e, como não podem tornal-o instrumento das suas cubiçosas intrigas, têm-no sempre afastado e como em desprêzo. Pois uma duzia de homens como aquelle seriam a ventura d'um paiz, e a melhor argumento a faVor da religião de Christo. Pouco mais ha de tres annos, que está n'esta freguezia, e os pobres e infelizes de toda especie, que muitos e muitos havia, já quasi desappareceram. Tem tantos amigos, quantos são os seus parochianos, que não ha momento na sua vida, que não empregue em fazer bem.
-- Oh! senhor Luiz, foi Deus quem me trouxe a esta boa terra para que eu, vendo um verdadeiro sacerdote, não maldissesse a religião de minha pobre mãe. As tentações e impiedades do mau frade faziam que, de quando em quando, na mente me despontasse a dúvida sôbre a divindade da religião que tinha um tal servidor. Era-me pois necessario ver um padre, verdadeiramente padre, para que estas ideias impias se me desterrassem completamente do espirito.
III
A ASSOCIAÇÃO
Dois dias depois havia em, casa do aldeão, onde estava Rosalinda, uma entrada e sahida de pessoas desacostumada.
De todos os lados chegavam lavradores de boa apparencia, e aldeans viuvas que pareciam abastadas e prudentes. E em casa do cura acontecia o mesmo; e o mesmo ainda em casa d'outro lavrador abastado. Similhavam os chefes de todas as familias gradas da freguezia que vinham alli a um negocio commum.
Toda aquella gente, tomando alguns refrescos que lhe offereciam, ou passeando no adro da egreja, fallava na cultura e no rendimento das suas terras, nos seus filhos, na sua familia, e nem uma palavra só que indicasse ao que vinha. Rosalinda estava admirada; nunca tinha visto tanta gente n'aquella socegada aldeia.
Ao descahir da noite disse-lhe Lucila:
-- Ha hoje aqui uma reunião de gente boa. E como ás occultas, porque o padre que é o chefe esconde-se para practicar o bem, como os ladrões para commetterem um roubo. Porém, como é no celleiro de meu pae, eu tenho um bom logar d'onde podemos ver e ouvir tudo sem nos avistarem. Não póde tardar muito; quereis vir?
-- Se quero, minha querida amiga! com todo o gosto... porém vosso pae, sabendo que fomos espreitar...
-- Espreitar!... não... Bem sei quanto vos desgosta ver-nos ás vezes escutar a uma porta, ou a uma escada, ainda que nada tendes dicto. E é feio, concordo; proprio só de intrigantes vis ou de cervos. Mas agora não é espreitar; meu pae sabe que vamos assistir á reunião, foi elle mesmo quem me disse que vos perguntasse se querieis ir.
-- Oh! então vamos!
E as duas meninas foram reunir-se a Maria que, n'uma pequena casa contigua ao celleiro, estava dispondo uns bancos de modo que em pé sôbre elles olhavam por uma janella occulta por cortinas. Via-se d'alli uma vasta sala toda forrada de velhos pannos de raz, que tinham para está occasião vindo da egreja; havia muitos tamboretes ao longo das paredes, e uma pequena mesa com uma cadeira de espaldar, mas de simples lavor, que parecia indicar o logar do presidente; estava a sala illuminada por velas de cera, mettidas em braços de ferro dourado, tambem trazidos da egreja.
-- Mas o que vêm elles fazer alli? perguntou Rosalinda.
-- Olhae, e vereis.
N'este momento começava a entrar na sala toda aquella gente que a noiva de Jorge tinha visto chegar á aldeia; e com elles os chefes das familias do jogar. Depois foram sentando-se e ficaram por algum tempo silenciosos e como esperando alguem. Então entrou o cura com passo grave, mas modesto, e caminhou até á cadeira de espaldar. Todos se inclinaram na sua passagem. Sentou-se; e o sacerdote fallou d'est'arte:
-- «E com muito regosijo que hoje contâmos o terceiro anniversario d'esta sociedade. Foi seu fim agradavel ao Senhor, pois coroou de bom resultado nossos trabalhos.
«Aquellas tres principaes virtudes que Jesu-Christo tanto em sua vida recommendou, nós nos esforçámos em practical-as. Ficámos muito áquem do que devíamos como christãos, e como imitadores, que temos obrigação de ser, do Nosso Divino Mestre. Démos apenas alguns acanhados passos no caminho do ceu. Porém, ainda que mui poucos, são taes que muito nos, devem animar a continual-os com menos tibieza, com mais fervor d'ora em diante. Éramos em diminuto número e escassos em cabedaes, e fomos uteis á humanidade; hoje somos mais numerosos e abastados, mais experientes em procurar os infelizes, mais animosos pelas victorias obtidas e por isso temos o dever de muito mais uteis nos tornarmos.
«Como em dia de solemne festa que é, todos nos reunimos hoje aqui. Commemoremos pois este dia instigando-nos para os trabalhos futuros com o esboço rapido do que obtivemos com os já executados.
«Havia muito que se me apertava o coração vendo a minha insuficiencia, a minha quasi completa nullidade de descobrir e soccorrer os numerosos famintos de pão espiritual e physico que havia na freguesia. Deus... foi Deus que me inspirou o associar-me com alguns chefes de familias para esta sancta obra de soccorrer os infelizes; e que moveu o coração de muitos a unirem-se-me.
«Logo nos primeiros mezes conseguimos empregar em diversas oficinas de Sacavem, d'Olivaes, e da capital os mesteiraes, paes de familias, que estavam sem trabalho; e arrancarmos á morte uma familia numerosa que a doença, o inverno e a fome iam devorando. «Depois tirámos da prostituição e applicámos a trabalhos honestos tres raparigas, cujos sentimentos eram bons, e que só estavam n'aquella vida de vício immundo porque a fome a isso as instigava.
«Descobrimos um mancebo, que, apenas por seu natural talento, e sem mestre algum, debuxava e fazia obras de estatuaria que admiravam; enviámol-o para um mestre d'aquella arte em Lisboa, e hoje os seus trabalhos já são afamados na côrte.
«Soubemos que um rapaz deshonrára uma donzella, cuja edade era alem da favorecida pela lei, e que o moço desejava casar com ella, porém que a sua familia o não permittia, por a menina ser pobre; démos um pequeno dote á rapariga, empenhámo-nos muito para com os paes do mancebo, e effectuámos o casamento.
«Alguns pobres da freguezia precisavam de banhos d'aguas sulphuricas, e nós lhes proporcionámos os meios necessarios de os ir tomar á nascente efficaz que fica perto d'Obidos.
«Dois individuos descobrimos que tinham o pensamento mau de se suicidarem, um, porque a sua fortuna estava completamente arruinada; outro, porque uma paixão não correspondida lhe desvairava o espirito; a ambos soccorremos: a um, emprestando-lhe os cabedaes necessarios para se rehabilitar; a outro com a luz da religião que o consolasse; e ambos voltaram á vida regular, ambos tornaram a ser cidadãos prestantes. «Os mendigos que por aqui transitavam dormiam na rua, ou nos palheiros e curraes do logar; edificámos-lhes uma albergaria, que póde conter quinze individuos, e que tem a divisão necessaria para homens e mulheres.
«Não havia uma eschola e estabelecemos duas, uma para cada sexo. Esta foi a nossa melhor obra, e que mais dificuldades nos offereceu. Queríamos que os meninos recebessem ahi, não só o ensino litterario, mas tambem, e principalmente, ideias sans sôbre os seus direitos e deveres como christãos, e como membros da republica, do municipio e da familia. Nada tinhamos que nos servisse de guia senão o nosso proprio coração, e o bom senso das pessoas graves da freguezia.
«Fugimos de entregar a ecclesiastico a eschola dos meninos, porque em geral o padre encara por um lado exclusivo o individuo e a sociedade; e só por esse os mostraria aos discipulos. Pozemos-lhe pois á frente um homem sabedor, bom catholico, bom cidadão, bom pae de familia, economico, amigo do trabalho, e que derramará o bom do seu coração na alma juvenil dos educandos. Escolhemos tambem uma viuva, mãe de muitas filhas, exemplar em todas as virtudes que se requerem nas mães, e por isso nas mulheres; e lhe entregámos a educação das meninas. Os fructos já colhidos d'aqueles duas mimosas arvores d'instrucção nos dão esperança de que hão de realisar o fim que tivemos em vista.
«Tudo isto é pouco, e nada é, se não continuarmos a nossa obra. N'este sentido temos ainda muito a fazer. Não desanimemos, porém; tenhamos fé e com ella revolveremos montanhas. Esta é a obra de Jesu-Christo, e Elle será comnosco. Aquém do tumulo proteger-nos-ha, além dar-nos-ha em recompensa a gloria celestial.»
Estas últimas palavras, dittas em tom inspirado, fizeram romper em applausos toda a assembleia. Restabelecido o silencio o padre apresentou um grande rolo de papel, e desdobrando-o e collocando-o sôbre a mesa, disse:
-- Aqui encontrareis as provas do que expuz, e d'alguns outros actos de caridade, que, por somenos, não relatei. Encontrareis tambem unia conta dos dinheiros e generos recebidos; dos que se gastaram, e dos que existem em depósito. Vinde examinar.
Ninguem se moveu por um momento; até que um ancião quasi octogenario, mas ainda robusto, chamado Vaz Fernandes, pessoa mui considerada no Riba Tejo, fidalgo, militar e lavrador, rico proprietario e chefe d'uma familia numerosissima levantou-se e disse, com vos propria d'homem costumado a fallar em numerosos ajunctamentos e a ser por elles escutado com respeito:
-- Senhor cura, as contas que ahi trazei ninguem aqui as precisa examinar. Todos sabemos que honrado e sancto homem sois, e o muito e muito que a vós devemos. Fostes vós, reverendissimo, que nos associastes, que nos instigastes ao bem, que tendes expulso d'esta freguezia as afflições que d'antes a opprimiam. Guardae pois as vossas contas, que não só os fundos d'esta caridosa associação, mas todos os nossos cabedaes de vós confiariamos.
Todos applaudiram com enthusiasmo, mostrando ser aquella a opinião de todos.
E o cura respondeu:
-- Muito vos agradeço a confiança que depositaes em mim, mas eu desejo que esta associação continue depois de nós; e bom é que desde já estabeleçamos prácticas taes que nos dêem garantia da sua continuação e boa governança. Consenti pois que sejam nomeados cinco individuos de ambos os sexos para examinar as contas e aconselhar o chefe; ficando porém a todos os membros sempre reservado o direito de aconselhar e examinar a gerencia, pois que tambem em todos pesa a obrigação de concorrerem com o que poderem para a práctica da caridade.
-- Pois então nomeae vós, nomeae vós.
-- Perdoae-me ainda, que vos diga não ser tambem isso conveniente: ao que está para ser julgado não deve competir a nomeação, do julgador. Adoptemos outro meio, mas que seja rapido. O mais velho d'entre vós será o presidente nato do conselho dos cinco, e propor-vos-ha os individuos que julgar aptos para constituir o resto do conselho. Quereis isto?
-- Queremos, queremos! tornaram todos.
-- Pois então, senhor Vaz Fernandes, vós ficareis, como mais edoso de todos aqui, presidente do conselho, e nomeae dois hpmens bons e duas donas para vossos companheiros.
Eleitos os quatro por unanime acclamação, o cura lhes entregou as contas para as examinarem em particular, e depois,-- como nós dizemos hoje, -- levantou a sessão.
IV
PARTIDA
Na manhan do dia 10 d'agosto a noiva de Jorge Ruy dizia ao parocho:
-- Recebestes então do senhor arcebispo de Lisboa ordem de acompanhar a armada? pois irei comvosco; não tenho outro meio de me encontrar com Jorge. Pelas notícias do Porto sabemos que ha mais d'um mez sahiu de lá. Hão de ter feito tudo para me não encontrar; talvez o prendessem. Mas com certeza o não mataram... -- e ella, dizendo isto, fez-se pallida, porém continuou, -- era homem do rei, e amigo do duque de Guimarães não se atreveriam a tanto. Irá no exercito, e, onde desembarcarmos, e todos nos reunirmos, lá o encontrarei.
-- Mas vós uma menina, uma donzella viver nos arraiaes, entre homens d'armas devassos e grosseiros!...
-- Não ha outro remedio, senhor cura. E depois eu irei na Vossa companhia, nunca vos deixarei; e tambem, entre o terço d'esta boa terra que mal posso recear? estes rapazes consideram-me como sua irman, hão de respeitar-me, sôbre tudo em attenção a vós.
-- Sim, hão de... nem d'elles eu receio... mas aquelles que não vos conhecerem?
-- Oh! esses, raro me avistarão! e nem hão de saber que sou mulher...
-- Como! não hão de saber?!
-- Mui facilmente, senhor cura, mui facilmente!
-- Mas dizei...
-- Logo o sabereis... Porém declarae positivamente, consentis que vá comvosco; não é verdade?
-- Eu sei!...
-- Ora meu pae! vós tendes dicto que me estimaes como filha, que muito vos doeis das minhas afflicções, que estaveis prompto a fazer todo o possivel para m'as poupar. E eu creio-o, que são para mim vossas palavras pontos de fé. Mas já mesmo muito m'o provastes pela caridade com que me tendes tractado, desde que estou n'esta aldeia. Dae-me comtudo mais uma prova; fazei-me o que mais do coração vos peço. Sabeis que não tenho outro meio de encontrar Jorge, que toda a minha felicidade na terra depende de o ver. Consenti pois que vos acompanhe, consenti.
E havia tanta ternura no tom plangente em que foi endereçada esta súpplica, penetrava tanto no coração o meigo brilho de seus olhos humedecidos pelas lagrimas, que o velho ancião não poude resistir a Rosalinda.
-- Pois vae, filha, vae. Que o ceu proteja o teu justo empenho... Eu hei de procurar servir-te de pae, e o que poder fazer por ti me console de ser obrigado a deixar os meus parochianos.
Na tarde d'esse dia estavam no adro da egreja uns trinta mancebos de figura robusta e com todos os preparos para se ausentarem por tempo indeterminado da terra natal.
Era o terço que a freguezia dava para a expedição que se intentava. Armas inda as não tinha; devia recebel-as em Lisboa para onde partia, e onde chegaria pela noite. Commandava-o um cavalleiro velho da casa do duque de Bragança, homem honrado e bom guerreiro.
Em volta dos mancebos estavam centenas de homens, de mulheres e de creanças, uns attrahidos pela curiosidade, outros pelo parentesco que os ligava aos que se ausentavam.
E as dolorosas despedidas com seu inseparavel acompanhamento de lagrimas e suspiros, de abraços apertados, de beijos longos e sentidos não faltavam alli; nem os conselhos sollicitos dos paes, nem os protestos de eterno amor trocados entre os mancebos que partiam e as suas mães, irmans e amantes que ficavam! Esqueciam-se n'aquelle momento todos os sonhos de gloria e, direi, até o amor da patria para só se prantearem os ternissimos affectos que tão estreitamente prendem o coração do homem ao torrão onde nasceu e foi creado.
Um grupo destacava d'entre os innumeros que estavam no adro. Era o sacerdote, o velho lavrador, nosso conhecido, com suas filhas Lucila e Maria, o seu sobrinho Ricardo que tambem partia, e Rosalinda, a linda Rosalinda vestida de trajos masculinos. Eram estes eguaes aos dos mancebos que deixavam a aldeia. Apenas Rosalinda se differençava d'elles por um gorro de velludo preto comi um broche de ouro que tinha na cabeça, e que lhe dava o mais encantador aspecto.
Rosalinda agradecia a hospedagem e o amor que alli tinha encontrado, Ricardo redobrava os seus protestos a Lucila, e abraçavam-se e choravam todos.
O sacerdote estivera até alli meio occulto juncto d'uma arvore, mas uma pobre mulher o descobriu; os seus prantos e esforços para lhe beijar a mão attrahiram para alli a vista de todos.
Então o velho cura foi cercado, ajoelharam em roda d'elle, e lhe imploraram a benção. O venerando ancião alçou a dextra e abençoou. Aa lagrimas cabiam-lhe em fio pelas faces. E o povo chorava, como filhos que vissem seu velho pae dizer-lhes o último adeus.
De repente deram o signal da partida. Os mancebos formaram-se em alas. Pouco depois pozeram-se em marcha, fechando esta o sacerdote e Rosalinda.
Todos da aldeia os acompanharam ao alto d'uma collina, e, alli, parando, até que o último desappareceu nas sinuosidades do caminho, lhes acenaram com os lenços e mantas, e lhes clamaram: -- Adeus! adeus!
VII
EM VIAGEM
I
A SURPREZA
É o vento norte o amigo de Lisboa; é elle que a refrigera nas tardes calmosas do estio, e que, passando com violencia através de suas ruas, lhe purifica a atmosphera dos miasmas, que sempre corrompem o ar d'uma grande povoação.
Muitas vezes açouta com furia o rosto dos viandantes, impelle-lhes para longe seus chapeus de largas abas; obriga a cada instante as senhoras a pararem para segurarem os vestidos que lhes levanta e descompõe; obscurece ás ruas com nuvens de poeira que ergue e faz redemoinhar; mas, apesar de tudo isto, o ceu não permitia que elle nos falte jámais com suas visitas durante o verão; os raios ardentes do sol nos queimariam, e a peste viria devastar-nos!
No Tejo, quando não excessivo, é o vento mais propicio ao navegante: desdobre o cauteloso arraes a vela meia rinzada, e aponte a proa do seu batel para o sul, que rapido, como no ceu a aguia, correrá através das ondas; -- em direcção contrária com mais ou menos bordos tambem chega ao seu destino; -- á bolina sobe o rio com velocidade; -- e em direcção da foz, com a maré vasando, o moderno invento da locomoção a vapor não o eguala em rapidez.
E era com agua e vento tanto á feição, na tarde do dia 15 d'agosto, dia tão festivo para toda a egreja catholica, pois se venera a Assumpção de Nossa Senhora, que descia o Tejo uma numerosa frota, levando na alterosa nau almirante o estandarte real.
Os caes da cidade, as praias e os cumes dos montes de ambas as margens estavam cobertos de povo que, com seus acenos e clamorosos vivas, saudava a gente da armada que lhe correspondia com gritos eguaes, musica e tiros de bombarda.
Ninguem, alem do rei e dos seus mais privados conselheiros, sabia ao certo o destino da expedição; porém tanta fé havia na pericia militar d'Affonso V, dos que o cercavam e no podêr formidavel do exército e da armada, que ninguem duvidava da victoria. O vento e a água impelliam com velocidade a armada; em breve as últimas caravelas passaram alem da praia do Restello, e a nau almirante, já muito fóra da barra, tomou o rumo do sul.
Pouco após d'esta, quasi ao lado, ia uma vistosa galera, não das maiores, mas a mais elegante e veleira de toda a frota, levando içado o pendão dos nobres duques de Bragança e Guimarães.
No interior todo este navio era modelo d'aceio e bom gosto; mas havia na camara um camarim, que era de sumptuosidade pasmosa para aquelles tempos em Portugal. A mais fina seda bordada primorosamente a ouro e a matiz forrava as paredes; o tecto, era esculpido e dourado e o sobrado coberto com rico tapete da Persia. Grandes espelhos com molduras de prata cinzelada, pendiam das paredes; havia alli mesas de mosaico com perfeitissimos desenhos feitos com embutidos diminutissimos e sôbre ellas jarros, castiçaes, pequenas estátuas e frascos de chrystal da Bohemia, de marmore de Paros e de prata e ouro com delicados lavores; os assentos eram de madeira dourada com muitos ornatos de madreperola e coral e estufados de velludo franjado de ouro. Este camarim era um presente que o Doge de Veneza fizera ao velho duque de Bragança, o mais intimo conselheiro d'el-rei, e que elle dera a seu filho primogenito, o duque de Guimarães.
N'este aposento em voluptuosa posição, mais deitada que sentada, estava n'um sofá á sobrinha do duque, a formosa Anna Mafalda, agora mais pallida, mais triste e mais languida ainda, mas não menos magestosamente bella do que a deixámos no Porto ha mez e meio.
Sôbre rica almofada tem juncto a si um livro aberto; mas não lê. Os seus lindos olhos castanhos têm um olhar vago, não fixam objecto algum, não vêem; mostram aquelle estado da alma em que, inteiramente ausentes do mundo exterior, nos occupâmos só de nossos intimos pensamentos. Com a mão direita tão delicada e linda, sem ter perfeita alvura, comprime o seio que arfa agitado. Afflictivas são as ideias que lhe povoam a mente, pois duas lagrimas lhe brotam dos olhos, lhe deslisam pela face, e vão humedecer as vestes.
N'este momento o reposteiro se franziu de leve, e á porta do camarim assomou a nobre figura do duque de Guimarães.
Com visivel ternura contemplou o thio as lagrimas, a tristeza da sobrinha. Considerava-a como parte de seu coração, e, apesar dos perigos do mar e da guerra, não pôde resolver-se a separar-se d'ella, a deixal-a em Portugal. Affligiu-o pois aquella tristeza. E foi silenciosamente que penetrou até meio camarim. Estava tão absorta, tão alheia do que se passava alli, que o não percebeu a donzella.
-- Então chorões, minha querida Anninhas, disse elle.
-- Ai! thio, que vos não via!
-- Pois vi eu, sobrinha; vi dos olhos correrem-te as lagrimas, o que me não maravilha, pois ha tempos a esta parte que são elles como perennes fontes. Tu outr'ora sempre tão leda! Ora parece-me que te mereço, que te devia merecer a confidencia de tuas maguas.
E assim fallando, com sua voz sempre nobre e meiga, sentou-se perto de D. Anna.
-- Se mereceis!... e perdoae-me, thio, o não vol-as ter já dicto,... mas é que não sabia, como as dissesse... e depois vós de certo as não ignoraes.
-- Não ignoro, não; são desejos e saudades d'um bello pagem do nosso mui particular conhecimento; não é verdade?
-- Ai! thio!...
-- Sei que o amas devéras; eu estimei-o desde que te salvou; e maior affeição lhe fui tendo ao perceber a intelligencia, e o amor ao trabalho de que era dotado, e, mais que tudo, as ideias elevadas e pundonorosas de sua alma.
Ouvindo estes gabos ao sen namorado, Mafalda corou vivamente, e seus olhos resplandeceram de alegria.
-- Mas tu, continuou o duque, não tens causa real para afflicções e prantos...
-- Não tenho, meu querido thio!... pois em mez e meio apenas me escreveu aquelle fatal bilhete de despedida, e depois duas pequenas cartas em que nada quasi me dizia!... e o que é peior não saber se está mais doente do que estava... o que presumo, pois não é homem para ficar no remanso da paz quando vão para a peleja os seus compatriotas! E não vae!... por certo que não vae na armada, que ao embarcar ter-se-ia apresentado a vós... pois a mim!... ai! meu thio, bem receio que me tenha olvidado.
-- Pois não te olvidou, Arminhas, e vaes ter d'esta verdade a mais evidente prova. Voltou-se para a porta, e, elevando a voz, disse:
-- Entrae. Então rapidamente affastou-se o reposteiro, e Jorge Ruy penetrou no camarim [...] melancholias, lagrimas e espasmos têm sido o seu habitual estado desde que nos deixaste. Não se entendem com tal doença os physicos do reino; do mal que ella padece só tu és o medico. Cura-a com o teu amor; na guerra te farei cavalleiro, e depois a benção da egreja vos unirá a ambos. Então um escudeiro particular do duque lhe veio dizer que da nau almirante faziam signal para que fôsse fallar a el-rei.
D. Fernando levantou-se e sahiu.
Jorge ainda não tinha dicto uma palavra, estava tão enleado como D. Anna. Mas, vendo-se a sós com ella, o mancebo animou-se; ajoelhou juncto da donzella, e, tomando-lhe uma das mãos, beijou-a com ternura dizendo:
-- Perdoa-me ter-te feito soffrer tanto.
Seguiram-se então muitos requebros de parte a parte, muita phrase d'amor sentido e verdadeiro, muitos olhares ternissimos, e talvez mesmo alguns instantes em que apenas se escutasse o ciciar dos beijos.
Horas destas, faceis de imaginar, deliciosissimas para gozar, são difficeis de descrever, e frias, mui frias para quem as lê, julga, e mais ainda vê passadas com outros.
Por fim a sobrinha do duque disse ao pagem:
-- Agora, conta-me o que te ha succedido desde que sahiste do Porto, o que te obrigou a tãi precipitada partida, o mau encontro que tiveste na jornada, a tua doença... tudo quero saber, Jorge, tudo.
-- E muito não é; poucas palavras bastarão para te narrar o que me ha acontecido; Porém o difficil é dizer-te qual o motivo da minha partida.
-- Pois é principalmente isso o que mais desejo saber. A tal respeito nem uma palavra me disseste, e com meu thio e senhor foste tão misterioso, que não só muito a curiosidade se me aguçou, mas tambem os apertos maiores do coração, as maguas mais pungentes que soffri na tua ausencia, eram principalmente d'ahi que procediam. -
- Causa não era para tantos soffrimentos... para que tu sofresses tanto... que para mim, sim, era!
-- Oh! então diz, Jorge, diz.
-- Direi... já ta posso dizer... mas não sei se deva.
-- Deves, Jorge, deves.
-- Sim, devo... hei sido verdadeiro e sincero para com todos, e mais o devo e quero ser para comtigo.
«Nasceu em casa de meu pae uma menina, com quem no regaço de minha mãe cresci, a infancia passei e a juventude. Vivemos junctos até ao momento em que sahi de Lisboa; então amava-a extremamente, e era... sim era, extremamente, amado por ella. Tudo estava disposto para o nosso casamento; meu pae consentia-o, e ella dizia que não ambicionava na vida outra cousa. Quando parti para o Porto, recolheu-se no mosteiro de Sancta Clara, e d'ahi muitas cartas me escreveu, as mais apaixonadas.
«Quando comecei a amar-te, e depois te adorei com delirio, quis contar-te tudo isto... Mas não tive ânimo... Receiava que esta revelação extinguisse em ti, minha querida Anna, o affecto que me tinhas, e que muito te maguasse. O combate que no meu espirito se pelejou não podes imaginal-o; luctavam, dilacerando-me a alma, o amor e o dever. Foi então que recebi uma carta do franciscano Frei José do Amparo, dizendo-me que a minha noiva com um desconhecido fugira do convento.
«Dil-o-hei com franqueza, maguou-me profundamente esta notícia; e entendi que não devia dar-lhe perfeito credito pela simples carta d'um homem, veneravel sim, mas que podia ter sido illudido. Deixei pois precipitadamente o Porto com o intento de vir a Lisboa certificar-me da verdade.»
Anna Mafalda, semi-deitada no soffá, occultava o rosto com as mãos; arfava-lhe o peito de sobresalto em sobresalto, mas não dizia palavra.
Jorge continuou:
-- «Acompanhavam-me dois homens d'armas, que o senhor duque me concedeu. Caminhavamos o mais rapidamente que podiamos, e sem notavel accidente fizemos a jornada até Coimbra. Chegámos alli pela uma hora da tarde d'um dia abrazador. Hospedámo-nos no mosteiro grandioso de Sancta Cruz para cujo prior levava recado de teu bom thio. Quasi nada repousára desde que sahira do Porto. Deitei-me, e dormi até ao anoitecer. Acordando, tomei algum alimento, mudámos de cavallos, e sahimos. «Era já noite quando passámos a ponte. Tinhamos d'ir a passo, porque ranchos d'homens e senhoras passeavam alli e nos embaraçavam a passagem.
«No fim da ponte, passado um grande edificio, havia um sitio delicioso para amantes; duas grandes alas de choupos e salgueiros, obscureciam e afformoseavam a estrada.
«Ai! lembrei-me alli dos nossos deliciosissimos passeios durante as noites de primavera no Porto; não pude suster duas lagrimas de saudade. Então incitei os soldados á corrida e partimos a todo o galope.
«Cada vez mais esporeávamos os fogosos ginetes. Em breve a corrida tornou-se vertiginosa. Tinhamos já subida um monte e iamos a descer a encosta d'elle; as arvores e os muros que bordam o caminho desappareciam, apenas vistas.
«De repente os nossos cavallos cahiram todos tres uns sôbre os outros, é a violencia inesperada da queda nos precipitou com fôrça fóra das sellas. Cahimos desamparadamente na estrada, e d'ambos os lados sahiram alguns homens armados de paus, atacando-nos vivamente. Ia a levantar-me para tirar a espada e defender-me, quando uma pancada na cabeça me estirou de novo em terra. Quasi perdi então os sentidos. Percebi que me tiravam as armas e o dinheiro que levava e o mesmo faziam aos meus companheiros. Depois pareceu-me tambem ouvir, o tropel de cavallos que se aproximavam. E assim era, que os ladrões fugiram e desappareceram entre as arvores.
«Então em breve os cavalleiros chegaram, perto de nós; apearam-se, e examinaram-nos com exclamações de surpresa. Entre elles pareceu-me ver tres frades de S. Francisco. Estes me levantaram a cabeça e n'ella me ataram um panno; pozeram-me sôbre uma das suas mulas; o mesmo fizeram aos meus companheiros; e nos levaram pela estrada que tinhamos percorrido.
«O ar fresco da noite me tornou em breve ao uso completo dos sentidos. Soube então que o meu salvador era o geral do convento de S. Francisco da ponte de Coimbra, que, tendo ido passear de tarde, voltava ao convento para onde me conduzia, pois a fenda que me vira não era de perigo imminente, mas exigia o maior cuidado; e que os nossos cavallos tinham todos as pernas partidas, pois uma grossa trave, posta já para aquelle fim na estrada, nos occasionára a queda.
«Dentro d'uma hora chegámos ao convento que era o edificio que ao sahir da ponte encontraramos. Entrámos, e em breve me deitaram n'uma boa cama. Eu tinha perdido bastante sangue e estava extremamente fraco. Um frade, physico do convento, me examinou a ferida e a tractou; em seguida deu-me uma bebida que me fez cahir n'uma profunda modorra. Depois a febre me accommetteu e alli jazi por muitos dias.
«Hoje quanto mais recordo a doença que soffri mais me parece ter sido antes dos remedios que da queda e da ferida na cabeça. Ao acabar de beber a tizana que me davam, era sempre accommettido de violenta febre ou d'um grande enfraquecimento. Passadas umas tres semanas, recusei positivamente tomar remedio algum, e dentro em tres dias achei-me com fôrças de te escrever e ao senhor duque.
«Em tudo o mais era tractado com esmero, o quarto onde habitava perfeitamente adornado, e a janella com uma vista encantadora.
«Tinha na frente aquella pinha de casas cercada de muralhas entre as quaes se erguia uma como seara de torres das egrejas, dos palacios e dos castellos, era a cidade de Coimbra; ao lado o mosteiro de Sancta Cruz, cujas variadas fábricas e a cêrca, occupavam quasi tanto espaço como a cidade. Aos pés de ambos estendia-se um vasto areal e por entre elle deslisava-se o n'esta quadra minguado e placido Mondego. Por todos os lados uma grande extensão de terreno, rico de pomares e de toda a vegetação. No meio d'esta paisagem pictoresca a grande ponte que vinha como á porta do nosso convento, e sempre coberta de gente que ia para a cidade ou d'ella sahia, augmentava muito mais a belleza do panorama.
«Passei horas e horas de tarde, sentado á janella, a contemplar aquella vista, a pensar em ti e a curtir impaciencias de me ver impossibilitado de sahir d'alli; mas um entorpecimento em todo o corpo me não permittia mais que dar alguns passos no quarto ou nos corredores do convento.
«De Lisboa não recebêra a minima notícia, até que escrevi a Fr. José que em breve me respondeu ter feito todo o possivel para encontrar a fugitiva de Sancta Clara, que tinha mesmo n'aquelle intento empenhado toda a influencia da ordem, mas nada obtivera.
«Havia quasi dois mezes que eu não tinha cartas da minha antiga namorada. Conheci que já me não amava, que me tinha esquecido, que eu estava, por consequencia, desligado das minhas promessas para com ella. E desde então não pensei senão em ti.
«Todo o immenso amor que te dedicava e reprimia no peito, deixei que transbordasse; eu mesmo fiz para que crescesse, e, n'aquella solidão, horas e horas, só vi na alma a tua imagem.
«Com a notícia da breve partida da armada senti um novo alento, e melhorei. Ha seis dias sahi do convento de Coimbra. Hontem, chegando a Lisboa, apeei-me na portaria do mosteiro de Sancta Clara; a abbadessa me confirmou tudo quanto me dissera Fr. José do Amparo, e me contou que a reclusa, todo o tempo que estivera no mosteiro, vivera d'um modo irregular e até escandaloso para a sanctidade da regra e da casa.
«Agora eis-me aqui todo teu. Não tenho, nem jámais terei no coração amor senão por ti. O outro nasceu antes de te avistar, depois não foi mais que um dever, mas sagrado, como são para mim todos os deveres. Ao presente estou desligado d'elle. Se devéras me tens amor e me queres, aqui me tens, não tendo outro pensamento, outro desejo, outra ambição senão a tua felicidade e o teu amor.»
Anna Mafalda apenas respondeu com voz sumida:
-- Eu não posso deixar de te amar.
E depois collou á testa pallida do mancebo os seus ardentes labios.
III
A MISSA DE CAMPANHA
Muitos são os navios da armada, quasi trezentas velas; e inda faltam os vasos fundeados nos portos do Algarve.
Se tivessemos hoje uma tão numerosa esquadra, outra importancia gozariamos entre as nações do mundo.
D'aqui onde escrevo, diviso todos os barcos do estado que jazem no Tejo: quatro ou cinco navios de vela desarmados e descurados; uma barca da transporte nova, mas sem tripulação, e apenas quatro vapores em bom estado de serviço. E pouco mais ha nos outros portos do reino, e por todas as nossas vastissimas possessões d além mar.
Na academia de marinha, apenas tem, em cada um dos ultimos annos, um, dois ou tres estudantes completado o curso.
E passa em proverbio a falta de actividade no arsenal da armada.
Todos sabem isto e quasi se não pensa em tal.
Custa a conceber como tão baixo cahimos, e ainda mais o intorpecimento, a inercia em que dormimos n'este miserando estado das cousas nauticas.
Nós que fomos a primeira nação no mar! Nós cuja prosperidade futura principalmente depende das nossas colonias e da nossa marinha mercante e de guerra.
Eia, acordemos! acorde o governo, o parlamento, o povo, acordemos todos! E unamo-nos n'um esforço commum para salvarmos a herança que as gerações passadas nos deixaram.
Haja fé, haja pensamento uniforme e systematico, haja em, todos actividade; e, com este fertilissimo torrão na Europa e as nossas extensas possessões d'Africa e da Asia, seremos uma nação verdadeiramente independente, respeitada e feliz.
Voltemos ao nosso romance, amigo leitor; e perdoae-me a divagação. Mas que quereis? eu quando estudo a historia das nossas passadas eras, não posso olvidar aquella em que vivo. Nem o quero tambem; que não é a historia uma simples curiosidade, um mero recreio. E antes a mestra dos homens e das nações; -- é o mappa que descreve no mar procelloso da vida os baixios onde naufragaram os povos e os individuos -- é a luz que na estrada do futuro guia a humanidade... Mas voltemos á esquadra de Affonso V, voltemos. Levada pelo vento norte a armada foi correndo ao longo da costa.
Na manhan do seguinte dia entrou a bahia de Lagos. Já ahi a esperava o conde de Valença com os navios e gente que o Algarve dava para a expedição.
O rei e todo o exercito que trazia de Lisboa desembarcaram pelas dez horas da manhan. N'um campo fóra da cidade estava armado um altar de campanha, e todo o exercito em alas se foi postar em tôrno d'elle. Apesar da estação, era o dia nebuloso o que permittia aos soldados estarem a descoberto no campo.
Juncto do altar muitos clerigos de capa de asperges e sobrepelizes com tochas nas mãos formavam em semi-círculo. Depois seguia-se o rei, o principe e toda a sua numerosa corte militar, trajada de muitas galas e das melhores e mais vistosas armas. Em seguida postou-se o exercito em número de vinte e 'quatro mil homens, na melhor ordem e disciplina possiveis para aquelle tempo; desenrolando ao vento um sem número de pendões, uns da nação, outros dos ricos homens, outros das ordens militares das cidades e concelhos a que pertenciam. E finalmente viam-se alli alguns milhares de servidores, de marinheiros e de gente do povo que de todo aquelle reino correra a encontrar o exercito.
A missa começou. Celebrou-a o capellão-mór d'el-rei. E, apesar de estarem alli mais de trinta mil pessoas, remava em todo o campo um silencio profundissimo.
Ao levantar a Deus tudo se prostrou de joelhos, baixaram-se as armas e as bandeiras, e só ficaram acima de todos elevados o crucifixo do altar e o sacerdote com a hostia primeiro e depois o calix em offerecimento ao ceu.
Era verdadeira e grande a devoção: os portuguezes d'aquelle seculo criam profundamente no catholicismo, e para muitos d'elles, sabiam-no, seria aquella a derradeira missa na terra da patria.
Em mais d'um rosto de guerreiro requeimado pelo sol dos combates deslisaram silenciosas as lagrimas. E não houve coração de tímido ou de bravo que mais agitado não arfasse no peito.
Era sublime o espectaculo de tantos milhares de homens tão valentes e poderosos, de tanta aspiração e ingenho, prostrados alli em campo descoberto implorando o auxilio do ceu para uma empreza, cujo verdadeiro fim mui raros sabiam, mas que todos julgavam sancta e grandiosa.
Terminado o divino officio, trouxeram ao rei e ao principe dois suberbos ginetes em que ambos montaram.
Á voz dos cabos o exercito apertou as alas, e, restabelecido o silencio, D. Affonso v, voltando-se para os soldados, e, tomando das mãos do alferes o estandarte real, disse com uma grande voz, de modo que todos perfeitamente ouviram:
-- «Soldados valentes de Christo e Portugal. Hoje mesmo deixaremos as terras da nossa patria e iremos ao imperio de Marrocos accommetter uma povoação importante pela sua fôrça e riqueza. Com a protecção de Deus, sôbre as torres d'Arzilla, abateremos as meias luas infieis, e em seu logar arvora- remos este pendão de Portugal!»
E com enthusiasmo o rei agitou no ar a bandeira.
Para maior exaltação dos soldados o sol n'este instante rompeu por entre as nuvens, e, com todo o immenso explendor do astro do dia no ardente Algarve, veio illuminar a figura magestosa de Affonso V, tendo na dextra o pendão real.
Um estrondoso, prolongado e delirante brado de acclamação rompeu unanime de todos os peitos; agitaram-se np ar as bandeiras e as armas; e milhares de bellicos instrumentos entoaram um hymno de trinmpho.
IV
PLANOS
Pela tarde sahia da bahia de Lagos a armada, contando então trezentas e oito velas.
Após as naus, as galés e outros grossos barcos ia uma grande multidão de pequenas caravelas, que obscureciam o horisonte com seus pannos desfraldados.
Eram estas desprovidas de artilharia. Só passados vinte e tres annos é que o proprio D. João II, em Setubal, depois de muitas experiencias, inventou o meio de trazer n'ellas grossas bombardas com que causavam grande damno aos navios alterosos mettendo-se debaixo das suas baterias. Esta invenção, por muito tempo ignorada pelas mais nações, tornou tão celebradas e temidas as caravelas portuguezas que os maiores navios não ousavam esperal-as.
Era n'uma doestas embarcações que ia o terço de Camarate, o bom cura e Rosalinda.
-- Viste-o, meu padre e senhor, viste-o com a sobrinha do duque radiante de fausto e de belleza? Não preciso viver mais; estou perdida. Falta-me o seu amor; nada mais quero no mundo!
Assim dizia, chorando, a bella noiva de Ruy ao velho sacerdote que, em pé, encostado á borda do convez, conversava com ella em voz baixa, tendo entre as suas uma das mãos da donzella.
-- Perdida, não, filha; resta-te ainda o que ha de mais valioso no universo; resta-te a protecção de Deus! Elle a outorga a todos e principalmente aos virtuosos e bons como tu! Não deves desanimar por emquanto, que não tens certeza de Jorge te haver esquecido. Em te vendo, em sabendo o que has soffrido, Deus lhe tocará no coração para que realise as promessas que te fez.
-- Ai! meu pae, o seu coração já é d'outra, formosa, rica e cuja familia o elevará ao fastigio do poder!... Não é uma affeição d'hontem, já data d'alguns mezes, sei-o; elle salvou-lhe a vida, ella pagou-lhe em amor, e o thio duque em reconhecimento. Têm junctos vivido messes, passado sósinhos muitas horas em cada dia, passeado ambos de mãos dadas pelas ruas e arrabaldes do Porto entre o povo e os soldados; tem-a compromettido, a ella que é de sangue real!... E, de mais a mais, ama-a!... Julga-me inconstante e perjura, que de certo não recebeu as minhas cartas... e Deus sabe as calúmnias que a meu respeito lhe terão feito acreditar!... o que terá pensado da minha fuga?!... Ai! padre, parece-me que já estou arrependida do que fiz...
-- Arrependida, filha?! arrependida de ter resistido e fugido á tentação! oh! não digas tal!... Não, tinhas outra cousa a fazer; não eram as tuas declarações que poderiam abalar no espirito da fanatica abbadessa de Sancta Clara a reputação immensa de sanctidade que goza aquelle tomem hypocrita e perverso. Fugiste e fizeste bem; foi Deus quem te inspirou essa ideia e quem te facultou os meios de a pôr em práctica.
-- Sim!... mas agora eis-me perdida no conceito d'aquelle a quem unicamente no mundo eu desejava agradar!...
-- Não ha de ser tão grande o mal! Hão de ter-te calumniado; e elle pensará talvez de quando em quando mal a teu respeito; sim. Mas quando souber a verdade, quando tiver d'ella evidente prova...
-- Evidente prova!... e como lh'a poderemos nós dar?
-- Não sei, filha; mas Deus é misericordioso e Elle nol-a dará. Em maiores dificuldades me tenho visto e com o divino auxilio as hei supperado. Nós o convenceremos, por qualquer modo, da verdade; saberá os padecimentos que por elle has tido, e, como, segundo tu me disseste, é mancebo pundonoroso e incapaz de faltar á sua palavra uma vez dada, de certo que não quererá deixar de cumprir a solemne promessa que te ha feito.
-- Tambem assim o creio, meu padre; sabendo a verdade, desposar-me-ha, que sei quanto é leal e nobre a sua generosa alma!... mas amor não m'o terá de novo!... e então seria eu que não quereria o sacrificio da sua felicidade!
-- Ha de ter-te amor, filha... ha de amar-te vendo-te outra vez, ha de.
-- Ha de!... em que fundaes vós, reverendissimo, essa confiança? dizei.
-- Em que a fundo?... custa-me a dizer-t'o... mas dil-o-hei que não és vaidosa, e é esta uma das primeiras e mais difficeis virtudes.
-- É a vaidade a mãe da suberba e do orgulho, a sufocadora da verdadeira caridade, a origem dos maiores vicios.
-- Em que a fundo pois, é na grande fôrça sympathica d'esses teus olhos, minha pobre filha, n'esses teus olhos que tantos males te hão attrahido, que talvez inda te causem outros, mas que n'esta occasião hão de, mais que tudo, concorrer para a tua felicidade.
Rosalinda, como o dissera o padre, não era vaidosa, não; mas era mulher... e por entre as lagrimas que lhe banhavam o rosto não poude fazer que por um instante um sorriso lhe, não viesse brincar nos labios. Córou; por um momento guardou silencio; e, como talvez lá no seu interior concordasse com a resposta que o sacerdote dera á sua objecção, deixou aquella e voltou a fazer outra.
-- «Porém, disse ella, o duque de Guimarães e seu irmão D. João não hão de consentir que um simples pagem abandone uma sobrinha e filha sua, que talvez na opinião da côrte tenha desconceituado, para se unir a uma pobre filha do povo como eu.»
D'esta vez foi o ancião que guardou silencio, pensou por um momento o que responderia, e depois, como meditando comsigo, murmurou:
-- É verdade isso... e inda mal para nós, que são elles a familia mais poderosa hoje em Portugal.
-- De certo!... filhos do velho duque de Bragança o primeiro no governo depois do rei... e até algumas vezes mais do que elle... Não foi o duque que ficou presidindo o conselho na ausencia do monarcha?
-- Foi... e ficou regente a joven princeza D. Isabel, mulher do principe D. João... Ai! espera!... julgo que atinei... Recorreremos ao principe... apesar de ser tão joven dizem-no todos amante dos pequenos e pouco amigo dos grandes. Já tem bastante influencia no ânimo d'el-rei, segundo dizem; e agora aqui em Africa estamos livres do duque de Bragança... el-rei ouvira o filho... e depois a nossa cansa é justa...
-- Mas o principe, senhor cura!... -- Sim... bem sei... viu-te e por tua causa bateu-se com Jorge... foi pois quem originou todos os males que te hao perseguido... contam estranhas cousas de seu caracter, e não duvidará reparar por todos os modos os prejuizos que te ha causado. Irei fallar-lhe; a sua alma é joven e nobre, e Deus me ajudará; hei de commovel-a. Tranquilisa-te pois, minha filha, o ceu é por nós, e veremos em Africa o que em teu prol nos inspirará.
V
DESEMBARQUE
No dia vinte á noite chegou a armada defronte de Arzilla, no oceano Atlantico, dezesete leguas além do estreito de Gibraltar.
Poz-se a esquadra á capa. A nau almirante deu signal para se reunir o conselho. Immediatamente os principaes fidalgos, os capitães mais abalisados e alguns ecclesiasticos mesmo, cuja alta posição na egreja lhes dava logar no conselho d'el-rei, vogaram em seus bateis para a nau real.
Apenas uma leve brisa de oeste agitava a superficie das aguas, porém não havia luar, estava a noite escura; era a praia cheia de recifes e de difficil de embarque.
Resolveu-se pois no conselho que se esperasse o alvorecer, então D. Affonso de Castro, conde der Monsanto, e D. João Coutinho, conde de Marialva, iriam occupar a praia com alguma tropa para depois, mais a seguro, desembarcar o rei e o grosso do exercito.
Prolongou-se a reunião muito pela noite adiante a discutir várias cousas do cêrco.
Quando os do conselho voltaram ás suas embarcações, o vento tinha mudado, e começava com fôrça a refrescar.
Ao amanhecer fazia um rijo temporal: medonho o vento assobiava pelas antennas dos navios; as ondas levantavam-se como em serras d'agua, e iam furiosas quebrar-se com espantoso ruido nos recifes da praia, erguendo altas columnas chrystallinas que voltavam a desfazer-se em amplos lençoes de espuma.
Os dois condes esperaram ainda algum tempo sôbre o convez de seus navios; não havia porém esperança de abrandar o temporal; grossas nuvens encastelladas no horisonte annunciavam que o vento augmentaria. A ordem de desembarque tinha-lhes sido dada, e elles conheciam quanto era necessario para o bom resultado da expedição cercar e accommetter com brevidade a villa, para que não fôsse soccorrida do interior do imperio.
Saltaram pois com a gente que lhes fora destinada para os bateis e remaram em direcção da praia. A cada momento as vagas os levantavam a espantosa altura e os precipitavam depois em abysmos profundos que se abriam entre as ondas. Com tal agitação os remos não pegavam na agua, e muito mais a fôrça do mar do que a d'elles foi impellindo os bateis em direcção da praia.
Era horrivel! ninguem se sustinha em pé nos barcos, que ás vezes a tormenta os erguia perpendicularmente da proa á pôppa, outras quasi os virava de lado e enchia d'agua. E quanto mais perto dos recifes mais perigoso era o mar. Dois dos mais pequenos bateis despedaçaram-se de, encontro aos rochedos, e um sossobrou. Os outros, ora as ondas os lançavam para terra, ora os atiravam a grande distancia para o oceano.
De sôbre o convez da nau almirante D. Affonso V e seu filho viam transidos de dor o perigo em que se achavam os dois condes e a sua gente. Não lhes soffreu o ânimo presenciarem-no de longe e resolveram ir partilhal-o.
A nau aproximou-se, quanto possivel de terra, e o mesmo os outros navios, chegando até demasiado perto os mais pequenos.
El-rei mandou lançar ao mar os bateis, e saltou n'um fazendo remar com o maior vigor. Em breve chegaram proximo aos dois condes e continuaram aquella espantosa lucta com as vagas.
A presença d'el-rei e do principe no meio do perigo a todos animava e dava fôrça a todos.
Mais houve quem olvidasse a prudencia e fôsse víctima da sua temeridade, do que quem se acobardasse com a visão da morte.
Uma galé e alguns navios mais pequenos, que excessivamente se approximaxam de terra, despedaçaram-se nos rochedos. Duzentas pessoas, entre ellas oito fidalgos e muitos cavalleiros e escudeiros, alli acabaram a vida n'aquelle batalhar com as ondas.
Mas foi vencida a tormenta; os bateis alcançaram um espaço de praia mais limpo de pedras; e o rei e o exercito ahi effectuaram o desembarque. Na manhan d'esse mesmo dia se começou a assentar o arraial defronte dos muros da mourisca Arzilla.
VIII
TOMADA D'ARZILLA [...] inundar a Europa. Enamoraram-te os jardins, as searas, os pomares e olivaes das Hispanhas, e, para mais productivo lhes tornar o solo, passaste o ferro do arado arabe sôbre o cadaver dos Wisigodos.
Mas em breve soou a hora da vingança: os soldados de Christo fizeram-te recuar, passo a passo, e, com a vermelha cruz no hombro, foram até a Syria cravar-te a espada no coração.
Os nobres filhos dos heroes das Asturias derribaram uma a uma as tuas meias luas na peninsula.
Agora o dourado crescente ismaelita apenas se divisa nas rendadas torres de Granada. Arrancal-o d'alli só compete ao castelhano. Nós, os senhores do lado occidental das Hispanhas, ha muito acabámos aqui essa triumphante ceifa.
Haja mais de meio seculo que passámos o estreito e a fomos continuar nas terras d'Africa. Ceuta e Alcacer-Ceguer já são nossas: e hoje os pendões de Portugal volteiam em torno dos muros d'Arzilla.
Arzilla é das mais antigas entre as povoações da Mauritania. Visitaram-na os gregos, e foi colonia dos romanos no tempo do imperador Claudio.
Os povos do norte, vencendo e destruindo o imperio dos Cesares, a conquistaram e possuiram muitos annos. Depois os filhos d'Agar, quando invadiram as Hispanhas, a tomaram e, durante dois seculos a fizeram prosperar. Então as suas riquezas attrahiram uma esquadra dos filhos da fria Albion; mataram de surpreza os seus habitantes, roubaram-na e destruiram-na.
Trinta annos mais tarde os reis de Cordova a mandaram reedificar, e bem depressa egualou e excedeu a sua antiga prosperidade. Habitam-na agora muitos commerciantes mouros; e estes enriquecem principalmente, armando navios de piratas, assaltando as pobres povoações das costas do Algarve, e accommettendo-nos juncto a Ceuta e a Alcacer-Ceguer.
É preciso acabarmos com este abrigo de salteadores maritimos.
D. Affonso V, o que na historia ha de ser, como Scipião, appellidado o africano, ahi está com seu exercito a cercar a praça.
Já foi assente o arraial, defendem-no fossos e palissadas não só das correrias que os sitiados possam fazer, mas principalmente d algum accommettimento que Moley Xeque, agora occupado nas guerras de Fêz, intente ao saber do cêrco posto á sua villa.
Com o temporal que vae no mar não se poderam desembarcar os principaes ingenhos para bater os muros da povoação. E grande a impaciencia d'el-rei; mandou assestar duas grossas bombardas e com ellas combater as muralhas. Tal foi o trabalho dos artilheiros, que dois lanços do muro desabaram. Apesar de serem muitos os homens d'armas dentro da fortaleza, só então lhes vimos alli pela primeira vez o rosto; accommetteram-nos com algum damno dos nossos para repararem o muro derrocado. Indispensavel é para bem sahirmos da expedição assaltar a praça em breve, antes que seja soccorrida do interior do imperio.
Ora ámanhan são d'agosto vinte e quatro, dia de S. Bartholomeu; e, dia festivo d'um grande sancto foi sempre para os soldados christãos um signal de victoria.
II
A CRUZ DE EBANO
Era ao descahir da noite do dia vinte e tres. As velas ou vigias nocturnas do arraial christão acabavam de ser postadas com todo o rigor da disciplina do tempo. Os cabos sabiam não só quanto eram precisas, mas tambem que o proprio rei, acompanhado do principe, que, desde a sahida de Lisboa, o seguia por toda a parte, e d'alguns dos mais nobres e denodados cavalleiros, iria, como em rolda, examinar e inquirir as sentinellas. Ouvia-se, de quando em quando, um tiro de bombarda, que os artilheiros com incerta pontaria, mas talvez por desenfado, faziam sôbre os muros d'Arzilla.
Por entre as ruas, formadas pelas tendas do acampamento, encontravam-se innumeros grupos de cavalleiros, de soldados e de gente mais somenos que seguia o exercito, folgando com prácticas e jogos, ou preparando ou vendo preparar em grandes fogueiras a refeição da noite.
Havia alli trovadores, músicos, jograes e bailarinos que divertiam os soldados; e havia tambem muitos frades, uns ensinando a moral e a doutrina christan, outros narrando chronicas de milagres sem número, outros cantando psalmos, outros finalmente, e «ram os mais numerosos, practicando e folgando com os seus companheiros, os homens de guerra. Porém havia em tudo isto uma certa compostura, uma certa regra que entre tantos milhares de homens com tao variadas condições e indole, denotava claramente a policia propria d'um bem regido exercito.
São duas as pequenas e singelas barracas do terço de Camarate.
É o logar dos mais humildes do arraial; mui afastado da tenda sumptuosa d'el-rei.
A uma distancia de mais de quarenta passos, n'um dos bastiões de palissadas que defendem o campo, estão os trinta mancebos em torno de seis frades de S. Francisco, dos quaes dois, coristas afamados, lhes cantam alguns psalmos de David.
Uma das barracas é deserta; na outra está apenas Rosalinda, que ha pouco pediu ao bom parocho que fôsse fallar ao principe D. João.
Com trajos masculinos e um branco albornoz mourisco laçado sôbre os hombros, com a fronte descuberta, deixando ver as bellas tranças de seu cabello negro, está sentada n'uma pedra que o joven Ricardo cobriu com pelles de carneiro para lhe servir de escabello. Tem na mão o crucifixo de sua mãe; mas não reza a donzella; escuta o cantar dos psalmos ao longe, e pensa no seu arredio noivo.
A noite é de luar; mas está um pouco anuviado o ceu. Só de quando em quando a lua, entrando pela alta abertura da tenda, vem illuminar o rosto de Rosalinda, até que, entre as nuvens occultando-se, torna a mergulhar a barraca em trevas. De repente a donzella estremeceu ao ver entrar na tenda um grande vulto negro. Uma terrivel ideia lhe passou na mente e quasi de todo lhe gelou e fez parar o sangue nas arterias. Affigurou-se-lhe o aspecto do mau franciscano, e a pobre menina nem poude mover-se mais.
Caminhou para ella o vulto; e a voz vibrante, porém agora soturna e baixa, mas para a infeliz hediondamente distincta de Fr. José do Amparo lhe retumbou nos ouvidos mais assustadora ainda que no mosteiro de Sancta Clara.
-- «Encontrei-vos finalmente. Ha mez e meio que sois o meu tormento... hei passado muitas noites, muitas dezenas de noites mal dormidas a pensar em vós, ou revolvendo-me no leito com terriveis insomnias, ou vagando pelas ruas e praças da cidade a procurar-vos.
«Fiz acreditar aos geraes de todos os conventos franciscanos do reino que encontrar-vos era um ponto de honra para a ordem. Fizeram-se as mais rigorosas pesquisas por toda a parte: em muitas povoações entre Lisboa e Porto nem uma só casa deixou de ser interrogada e espionada. Camarate mesmo sofreu uma d'estas buscas, mas o maldicto cura, combinado com o aldeão que vos hospedou, illudiu os nossos padres.
«Eu devia ter adivinhado que seria aquelle santão idiota e nescio, inimigo das ordens religiosas e da prosperidade da egreja, que havia de roubar-vos aos meus desejos. Assim foi. Lá estivestes no meio da sua congregação de rusticos, emquanto o meu coração e tudo em mim se dilacerava com a vossa ausencia, ao lembrar-me até algumas vezes que vos terieis suicidado. D'este pensamento porém me tiraram as cartas que escrevestes a Jorge; mas o fio que por ellas esperava obter para procurar-vos, quebrou-se logo; o superior dos dominicos, nosso inimigo, a quem as respostas deviam ser dirigidas julgando que nos hostillisava o seu silencio, a ninguem quiz dizer o nada que sabía a respeito de tal correspondencia. Mas tambem nenhum de vossos recados chegou a Jorge; elle quiz procurar-vos, mas fil-o reter no caminho e guardar n'um dos nossos conventos. «Não sei que voz no interior me disse que virieis no exercito com o intento de en
contrar Ruy; em Lagos eaqui estes tres dias freneticamente vos hei procurado entre a chusma da soldadesca. Esta manhan divisei-vos através d'uma ferida da barraca, conversando com o velho cura. Aproveitei esta occasião, em que sahiu, para fallar-vos. E eis-me aqui, amando-vos e querendo-vos mais do que nunca.
«Acreditai-me... jámais na minha vida hei sido tao sincero para com pessoa alguma, como hoje para comvosco... não espereis nada de Jorge, está para desposar-se com a sobrinha do duque, e ama-a. Deixai-o, esquecei-o, consenti que vos ame, e vós... oh! amai-me... Por vossa causa, accendeu-se em mim um fogo ardente que me devora e mata. Se houvesse inferno, o maior dos seus tormentos não egualaria o que eu por vós padeço: Amai-me: que importa que eu seja padre? porventura arrancaram-me o coração ao darem-me as ordens? perdi eu a qualidade de homem ao envergar este hábito? Se quereis, rasgal-o-hei. Segui-me, vinde viver commigo, iremos para onde sejamos desconhecidos: amor, prazer, riquezas, nada vos faltará... Vinde! oh! vinde!»
E o clerigo curvou-se para a donzella e travou-lhe d'uma das mãos. Rosalinda estremeceu horrivelmente áquelle contacto de vibora, e soltou um agudo e afflictivo grito.
Ninguem respondeu... Os mancebos de Camarate estavam com os franciscanos que psalmeavam agora todos seis com vozes de Stentor. Parecia uma communidade inteira a rezar exequias pelo papa.
A donzella disse com voz desfallecida:
-- Deixai-me... odeio-vos.
-- Deixar-vos?... oh! não! seria deixar a vida, seria lançar-me n'um pelago de tormentos! -- Odiaes-me!... que importa? sereis minha apesar da vossa vontade, apesar de tudo. Vinde!
E o frade arrastou-a com fôrça para a sahida da tenda.
Rosalinda, que tinha na mão liberta o crucifixo, levantou-o á altura do rosto, como querendo pôr aquelle último recurso entre si e o, malvado clerigo.
Então a lua, sahindo d'entre as nuvens, illuminou bom seus raios a devota cruz.
O doutor franciscano cravou n'ella com indisivel terror o seu olhar attonito. Era d'ebano, com a imagem de Christo de prata e gotas de esmalte figurando sangue. Aquella cruz nas mãos d'uma mulher trajada de branco e não sei que traços do rosto de Rosalinda foram para o padre uma visão pavorosa.
-- De quem era essa cruz, mulher? disse com voz abafada.
-- De minha mãe, respondeu tremula a pobre da menina.
-- E tua mãe!... era?...
-- Uma pobre desgraçada, a filha infeliz d'um alcaide de Leiria. Por ella, e por esta cruz tende compaixão de mim!
Os braços de Fr. José até ahi estendidos para à donzella, cahiram-lhe perpendiculares e, como inertes, ao longo do corpo. Encostou-se a um dos esteios da tenda para não cahir.
É que Rosalinda, que elle amava com toda a loucura d'uma paixão desvairada, com toda a lascivia d'um amor impuro e sacrilego... era sua propria filha!
De repente um agudo assobio, fóra da tenda, o fez estremecer, era o signal da volta do cura; não deu um passo, não se moveu, não tinha fôrças para se arrancar d'alli.
Um outro assobio porém, mais proximo, apressado e agudo que o primeiro o tirou d'aquelle torpor; hirto, passou diante de Rosalinda, maravilhada de tal transformação, e sahiu da tenda sem mais articular um som.
III
O ASSALTO
Vagou toda a noite o padre pelo arraial!
Tão contradictorios se lhe debatiam na mente os pensamentos, e com tanta ardencia e tão dolorosamente despedeçadores, que uma febre delirante lhe accommetteu o cerebro.
Ser pae de Rosalinda, e ter-lhe amor, amor como o seu, incestuoso e impio; e desejal-a e querel-a ainda cada vez mais, por que na alma do miseravel nem uma só das ideias más se extinguira, mas para tormento seu, a voz poderosa da natureza se levantára e lhe bradava sem cessar: -- maldição a tão nefandos sentimentos!
Oh! era por certo era um soffrer acerbo, um penar atroz, um dilacerar afflictissimo d'alma e coração!
Caminhando com incerto passo através das ruas do arraial, no cerebro febricitante as mais extravagantes e oppressivas visses ora se succediam umas a outras, ora se accumulavam, ora desappareciam todas, para darem logar a grande chusma d'ellas, que vinham como dançar-lhe e voltejar-lhe no espirito desvairado.
Jámais a mente se nos occupa d'uma ideia triste que não occorram logo, como em cortejo, outras mais tristes inda. Na alma do perverso é dobradamente peior: o remorso d'uma acção má attrahe todos os remordimentos dos outros feitos vis, e traz á imaginação todos os terrores do futuro aquém e além do tumulo.
As innumeras e criminosas acenas da sua longa vida de crimes se figuravam ao vivo na mente exaltada de Frei José: -- todos os seus planos d'ambição via como realisados, logo illudidos, e depois assumpto de irrisão pública. -- agora no mundo descobriam-se todas as suas perversidades, era arrastado no mais immundo lodo da ignominia, pisado aos pés do mais obtuso leigo, cuspido nas faces por seus mais crueis inimigos. -- Em seguida via-se elevado á mais alta dignidade da egreja e do estado, a morte o vinha derribar d'alli e precipital-o no mais profundo abysmo dos antros do inferno; e então sentia todos os tormentos do reino de Satanaz, e julgava verter lagrimas de fogo arrancadas pela dor.
Mas em todo este medonho tropel de visões uma havia que mais lhe cortava n'alma, sempre fixa entre o apparecer, tumultuar e extinguir das outras. Era a que n'esta hora mais lhe faltava ao coração, era a filha do alcaide e Rosalinda, abraçadas ambas á cruz d'ebano, á imagem de Christo gotejando sangue. Este lhe cahia na fronte; e o sangue que fôra de redempção para todos, gotejava-lhe sôbre o rosto em globos de fogo, formando a palavra de maldicção: -- precito!
Aquella noite foi para elle uma hora da terrivel e dolorosa eternidade, que o esperava alem da campa. Para a não padecer daria todos os gozos que obtivera com seus crimes; não quizera mesmo ter vivido; -- tamanha fôra a intensidade do soffrimento!
A fresca viração do fenecer da noite e a grande fadiga que sentia em todo o corpo um pouco lhe foram serenando a mente. Tendo já saindo do acampamento, apesar do bradar das sentinellas que o não retiveram á fôrça por o conhecerem, e, continuando a vagar incerto em torno da villa, cahiu extenuado de fôrças sôbre a terra.
Alli jazeu por largo tempo, o corpo inteiriçado, o sangue parado no coração.
Mas ao despontar da aurora um grande ruido o evocou á vida.
O conde de Monsanto estava d'aquelle lado do eampo defronte do castello; tinha agora assestado alli as duas bombardas, e com a maior actividade batia a fortaleza, A grita dos soldados e o estampido das explosões da artilharia atroavam tudo; o fumo da polvora obscurecia os ares, e, d'instante a instante, o relampejar dos tiros cortava o horisonte oom suas linguas de fogo.
Por alguns momentos olhou pasmado o franciscano para aquelle espectaculo de guerra. A sua inteligencia ainda nao recuperara o habitual estado de clareza; não comprehendia bem o que alli se lhe antolhava.
Tinha ainda tio perturbado o espirito que lhe custou voltar á realidade das coisas. Quando o conseguiu, dirigiu-se para onde estava o conde de Monsanto e o felicitou da vivacidade da sua bateria. Elogiado pelo afamado sabio, pelo clerigo mais privado d'el-rei, o conde ainda mais excitou os seus soldados.
Uma chuva furiosa de tiros de bombarda e fusilaria batia o castello; nem um só mouro ousava assomar ás ameias. Duas horas durou aquelle fogo, cada vez mais activo. Até que o frade e o conde viram por sôbre o fumo, no eirado da torre de vigia, arvorar-se uma bandeira branca como em signal de paz.
Calaram-se as bombardas. Um cavalleiro dos nossos aproximou-se do muro a dizer aos mouros que podiam sahir a parlamentar. Requereu o alcaide seguro d'el-rei, e D. Affonso V, tornado sabedor, lh'o mandou logo outorgar.
Quando se andava n'este ajuste de passes, uma ideia má occorreu ao espirito de Fr. José do Amparo. Encontrou um seu confrade, grande recitador de sermões alheios, e disse-lhe:
-- Não achais vil, para o senhor rei, para tantos nobres que ahi estão, e para todos nós, portuguezes e christãos, parlamentarmos com os mussulmanos infieis, com os inimigos da cruz, com estes filhos de Satanaz?
-- Certamente que sim, reverendo padre doutor, e compunge-se-me a alma ao ver tal baixeza da nossa parte.
-- Pois facil era o evital-a: bastava sôbre isso dizer uma palavra n'aquelle grupo que alem vedes dos cavalleiros mais jovens e fogosos, dos mais temeráarios capitães do exército. Balados estão de raiva ao ver fugir-lhes esta occasião de se distinguirem. Qualquer que lhes apontasse aquelle lanço meio derrocado dos muros da villa e lhes dissesse: -- avançai! veria com que nobre ardor correriam ao assalto.
E, dizendo isto, o doutor foi caminhando vagaroso n'outra direcção do arraial, e o seu irmão seraphico dirigiu-se apressadamente para o grupo que lhe fôra designado.
Em poucos instantes um grande tropel de guerreiros correu para a villa e começou a escalar os muros que as nossas bombardas tinham derrocado e os mouros reparado mal.
Distrahidos com os tractados em que andavam, não esperando aquelle subito accommettimento, tinham os mussulmanos mal guardados os muros, e os christãos no primeiro ímpeto com escadas, traves e contos de lança subiram ao alto das muralhas, e entraram uma estreita brecha que a nossa artilharia havia feito.
Porém em breve de todos os lados da villa occorreram os mouros, e travou-se entre elles e os nossos encarniçada a peleja.
Augmentava a cada momento a multidão dos marroquinos, e accommettiam com tal furia que, apesar da valentia dos nossos, como estavam em apertado espaço, e poucos podiam combater ao mesmo tempo, começavam a não a recuar, que antes todos queriam morrer alli do que apparecer ante él-rei sem a victoria, mas a vacillar e a intibiar os cavalfeiros de Chrísto.
O ruido da peleja foi na tenda real sobresaltar D. Affonso V que ia tractar com os mouros; informado do que succedia, tomou rapidamente o capacete e a espada, e, seguido do principe, do duque de Guimarães, que fazia em Africa as vezes de condestavel, e dos mais circumspectos fidalgos que estavam com elle, correu veloz ao logar onde se dava o combate.
N'uma pequena eminencia que ficava proxima viu o rei n'um relance folhos o estado da peleja.
Penetrava pela brecha uma como lingua do nosso exercito cuja immobilidade mostrava que a resistencia, dentro encontrada, a prohibia d'avançar; e no resto dos muros derrocados os nossos eram de tal modo combatidos pelos mouros, que era mais do que justo o receio de que fôssem obrigados a retirar.
Então viu o rei um homem alto, vestindo o hábito de S. Francisco, sahir d'entre os christãos que estavam juncto á villa, trepar rapidamente ao cimo do muro e com uma comprida cruz de ferro dourado, das que hoje costumam levar na frente as irmandades, accommetter com tal arrojo os sectarios de Mahomet, soltando gritos de animação para os portuguezes, que os portuguezes aterrados começaram a ceder campo e a desamparar os muros.
-- Bravo Fr. José do Amparo! clamou el-rei; eil-o mais denodado que nenhum guerreiro levar de vencida os cães dos infieis! Avante, senhores, avante, que ainda para nós havemos tarefa!
E dizendo isto, o rei precipitou-se com os que o seguiam lia direcção da villa. Era impossivel entrar pela estreita brecha, inteiramente occupada de combatentes; encostaram-se escadas n'outro lanço do muro juncto d'uma porta, e os que subiram a foram abrir por dentro. Entraram por ella o rei, o principe e muitos guerreiros, que até ahi não tinham obtido espaço para combaterem.
Travou-se então a peleja nas ruas da villa, e os mouros foram, passo a passo, recuando na direção do castello e da mesquita.
Avançavam na frente o rei e o principe. D. Affonso combatia com aquelle valor de todos conhecido, que não deixava aos inimigos fazerem-lhe rosto. D. João mostrava-se digno filho de tal pae, e, apesar da pouca edade, dava taes golpes que levavam quasi sempre a morte áquelles que os recebiam; em breve a sua espada estava embotada, e o sangue cahia-lhe da folha sôbre o punho.
Juncto á porta da mesquita alguns dos mais valorosos mouros, defendidos por uma especie de trincheira, quasi alli improvisada, resistiram aos christaos, retendo-os o tempo necessario para os seus correligionarios entrarem no recinto do templo. Ahi foi por alguns instantes vigorosa a resistencia; até que os nossos conseguiram saltar sôbre a trincheira.
Dos primeiros a vencel-a foi o principe D. João; mas ao trepar sôbre um cano, escorregando, um mouro o agarrou pelo hombro e sôbre a sua real cabeça ergueu o alfange. Então um mancebo christâo, que havia combato sempre na primeira fila, atirou ao sarraceno uma terrivel estocada que logo sem vida o lançou por terra.
Ergueu-se o principe e disse-lhe:
-- A vida vos devo, amigo; dizei-me o nome.
-- Jorge Ruy.
-- Ah!... conheço-vos; não vos affasteis de mim.
Nas ruas da villa tinha acabado a peleja, mas os mouros refugiados na mesquita e no castello, preparavam-se para a defeza.
Então o rei e o exercito ajoelharam um momento nas ruas da villa, e deram graças a Deus d'aquelle começo de victoria. Para que os infieis não fugissem do castello mandou el-rei vigiar com todo o rigor uma porta secreta denominada da Traição, e em redor de todo elle fez postar um apertado cordão de sentinellas.
Por não ser a mesquita tão defendida d'obras de arte, e de tão escolhida e nobre gente como a fortaleza, e porisso de mais facil victoria, foi accommettida de primeiro.
Muitos soldados com machados atacaram as portas da mesquita; porém tão fortes eram que não foi possivel quebral-as; tambem em vão se empregaram os simples ingenhos, e só foram feitas pedaços aos golpes vigorosos dos vae-vens. No entanto lançavam os mouros sôbre os christãos muitos projectis, causando aos nossos não pequeno damno.
Abertas as portas, entraram os guerreiros portuguezes de roldão; porém só depois de muito pelejar foram vencidos os mouros.
Em todos os passos perigosos onde combatia el-rei, ahi se via Frei José do Amparo, ora de cruz alçada, animando com a palavra os nossos, ora atacando os sarracenos com a sua comprida e terrivel arma. Estava o rei contentissimo com elle e, ao findar do combate na mesquita, com effusão o apertou d'encontro ao peito.
As mulheres, os velhos e os meninos, amedrontados e nos cantos do templo escondidos, mandou el-rei levar prisioneiros para o arraial. Em seguida ordenou o assalto do castello.
Estava este bem guarnecido com muita e nobre gente, porém foi tal o accommettimento dos nossos, que o levaram ao primeiro assalto. Muitos houve que, não podendo subir pelas escadas que se encostaram aos muros, uns por serem poucas, outros por não lhes soffrer o ânimo o aguardal-as, treparam ajudados por traves, pelas hastes das lanças, outros apenas pelas suas espadas e alguns* mesmo se fizeram içar por frageis cordas.
Então no terreiro, nos eirados das torres, em todos os logares do castello se travou a mais rija peleja d'aquelle dia. Os christãos d'involta com os mouros combatiam braço a braço; alguns houve que, não podendo suster-se em pé dos muitos golpes que já tinham, continuavam a luctar de joelhos ou deitados até a morte lhes vir de todo arrebatar as fôrças.
Por fim eram já tantos os cadaveres portuguezes e marroquinos que não se dava quasi no castello passo sem pisar um corpo d'homem, e corria o sangue em jorros. Só terminou a lucta quando foram captivos ou mortos todos os mouros.
Custou-nos a victoria n'aquelle dia bom numero d'homens valorosos; alli pereceram o joven e generoso conde de Marialva e o activo e experiente capitão conde de Monsanto.
Foi mui grande e rico o despojo que na villa fizeram os nossos; todo porém el-rei o deu aos seus soldados, e não quiz para si guardar um unico obolo.
Terminado o combate, ainda com a espada e a armadura cobertas de sangue, dirigiu-se D. Affonso V com os seus cavalleiros á mesquita.
Esperava-o á porta o seu capellão-mor e muitos sacerdotes com tochas nas mãos, e cantando psalmos e hymnos.
Ao entrar, encontrou dentro o cadaver do bello conde de Marialva e sôbre elle uma grande cruz.
Ajoelharam todos em volta, deram ao ceu graças pela victoria, e rezaram por alma d'aquelle e de tantos outros christãos mortos no combate.
Depois, levantados todos, el-rei disse para o filho:
-- Ajoelhae, principe, juncto ao cadaver do nobre conde ides receber a nobilissima ordem de cavalleiro.
D. João poz um joelho em terra, e o rei, tocando-lhe com a espada, disse:
-- Em nome de Deus eu vos armo cavalleiro, e Elle vos faça tão valente e generoso como esse que ahi jaz.
Depois o rei começou a outorgar aquella honra a muitos fidalgos e simples homens d'armas que no combate se tinham distinguido.
Então o principe tomou pela mão Jorge Ruy, que estava perto, juncto ao duque de Bragança, e disse para este:
-- Sei que lhe tinheis promettido armal-o cavalleiro, mas concedei-me que seja eu; salvou-me a vida e quero dar-lhe esta primeira prova do meu agradecimento.
E, sem esperar resposta do primo, disse para Jorge:
-- Ajoelhae!
Tocou-lhe com a espada, e continuou:
-- Em nome de Deus e d'el-rei, meu pae, eu vos armo cavalleiro, sede nobre, valoroso, leal, e -- fiel cumpridor das promessas que primeiro houverdes feito!
Ruy corou vivamente ao ouvir as últimas palavras do principe, dictas com singular accentuação. Erguendo-se e afastando-se para dar logar a outros mancebos que D. João chamava para tambem armar cavalleiros, um ancião lhe tomou a dextra, dizendo:
-- Segui-me!
E sahiu com elle da mesquita.
Pouco depois o rei, deixando o templo, dizia ao seu capellão:
-- Amanhan celebrar-se-ha missa pontifical e a egreja será dedicada a Nossa Senhora d'Assumpção em memoria do dia em que nós sahimos de Lisboa para tão fausta empreza.
Assim foi a tomada d'Arzilla, da filha querida da Mauritania, d'aquella que tão grande nome deu a Affonso V.
Esta victoria encheu de terror toda a Africa; Moley, desalentado, não mais tentou recuperar a sua villa; e Tanger, a invencivel Tanger, que tantas vezes em vão tentaramos conquistar, abriu, espavorida, suas portas aos vencedores d'Arzilla.
IV
CASTIGO
-- Mal posso crer o que vossa reverencia acaba de me contar. É verdade que quanto mais penso no que me ha succedido no convento de S. Francisco de Coimbra, mais me persuado terem-me retido alli por maus artificios e ter existido entre os frades secreto conluio para não haver de fóra communicações commigo. Isso porém não basta para acreditar sem mais testimunho do que a vossa, palavra, -- e n'isto perdoai-me, mas bem vêdes que o assumpto é d'uma terrivel ponderação, -- que procedesse d'um modo incrivelmente impio e refalsado, um homem cuja grande reputação de virtude tem até hoje sido sem nodoa. -- Oh! mas se for verdade, juro-vos que o meu braço é suficientemente forte, e a ponta da minha adaga assaz aguda para, através d'um exército de franciscanos, ir cravar o coração d'um sacerdote perverso e hypocrita, que tão cruelmente abusou da minha boa fé e credulidade.
-- O Senhor tal não permitta, filho! Espadana o sangue do assassinado para o rosto do assassino, e cada gota é uma brasa de fogo que lhe vae queimar o coração com toda a terribilidade do remorso! Deixai a punição dos crimes á justiça humana ou á divina, n'uma ou n'outra encontra o perverso o devido castigo; -- a nós, individuos, só toca o perdoar; são preceitos do Evangelho, e o que d'elles se affasta, esse não é filho de Deus... Mas, vós não acreditaes que tem calumniado a vossa noiva, que traças do mau clerigo de vós a afastaram; não acreditaes que ella vos ama tanto ou mais do que no dia em que de vós se separou, não acreditaes na sua virtude e pureza...
-- Oh! n'isso creio, padre; educada em casa de meu pae, com toda a religião e virtude de minha sancta mãe, possue um tal coração que não poderá jámais affastar-se da senda que o dever lhe impõe... é quasi minha irman: acreditar n'ella é crer em mim. Porém a ser como dizeis, para explicar o comportamento de Rosalinda ha mez e meio, é preciso não duvidar da perversidade d'um homem, que eu e todos venerámos, ha muito, quasi como sancto, e que hoje mesmo deu provas de heroicidade. E bem vêdes que isso...
-- Sim, difficil é, bem sei... porém vamos ter com ella e dir-me-heis depois, em consciencia, se pôde a mentira sahir de seus labios.
Assim conversando Jorge Ruy e o bom cura de Camarate, que era o ancião que o fizera sahir da mesquita, tinham chegado a uma casa grande da villa, que depois de conquistada esta, em quanto se batia o castello fôra transformada em hospital de sangue.
Ainda a cada momento os servidores do exército e muitos soldados traziam feridos mouros e christãos, ou em braços, ou deitados sôbre andas e alguns apenas em hastes de lanças. Gotejava-lhes das feridas sangue, soltavam ais e lamentos afflictivos; e o espectaculo que apresentavam as duas primeiras salas da ambulancia, em que os dois entraram, era repugnante á vista e oppressivo ao coração. Aos muitos physicos e operadores christãos junctára-se um afamado medico arabe que trabalhava alli com a maior pericia. Alguns dos physicos eram frades de diveri oriente tinham vindo com o exército, e não eram os menos habeis no tractamento dos infermos. Havia tambem alli muitas mulheres christans e mouras, e entre ellas procurou o cura a Rosalinda; como a não visse, inquiriu a tal respeito uma algaravia que viera de Lagos e esta lhe respondeu:
-- Senhor padre reverendissimo, a donzella que procuraes mais de duas horas aqui serviu comnosco, e era para estes pobres infermos um anjo de consolação é caridade, pois com o maior disvelo e amor lhes pensava as feridas e dava calmantes. -- Ha pouco veio uma d'estas bruxas mouras com muitos escarceos e prantos procural-a para um ferido; lá a levou por esses corredores dentro, e não sei onde está.
Apressado e com um secreto receio dirigiu-se o padre para o interior do casarão. Seguiu-o Ruy bastante agitado, porque ia pensando que o seu comportamento para com Rosalinda, tendo-lhe ella sido fiel, não fôra digno d'um homem que recebêra as honras de cavalleiro.
Silenciosos caminharam ao longo de muitos corredores que, tristes, estreitos e compridos, se estendiam ante elles.
De repente sahiu d'uma porta lateral meia cerrada um afflictivo grito de mulher e logo em seguida a vibrante voz de Frei José do Amparo que dizia:
-- Em balde gritaes!... ninguem virá... É esta a quarta vez que vos peço cedaes ao meu amor, não tendes querido, pois hoje cedereis por fôrça...
O cura e Jorge tinham-se aproximado da porta; o mancebo quizera penetrar logo no aposento, mas o velho lhe segredara ao ouvido:
-- Esperae um momento, ouvide e Vede.
E com o braço o retivera.
Agora elles estavam alli occultos por um reposteiro, e Ruy, lançando os olhos ensanguentados e irosos para o interior do quarto, viu o franciscano em pé com o rosto affogueado, travando d'uma das mãos de Rosalinda que pallida e trémula estava meia ajoelhada no vão d'uma janella. O frade continuou, mas como respondendo a algum secreto pensamento:
-- Deus e inferno não são mais que invenções nossas para aterrar e dominar os nescios!... Impedimentos de vinculo de sangue ou affinidade, recommendações da medicina, requisitos necessarios para a existencia da familia e da sociedade, como estão constituidas, e... fontes de riqueza para os curiaes de Roma; -- não são essas considerações que me prenderão a mim!... Inda uma vez vos digo: cedei; ninguem no mundo vos ama senão eu -- e ninguem jámais amou como eu vos amo... Jorge odeia-vos, e ámanhan á face da egreja receberá a filha de João de Bragança. Quereis amarme?... Quereis ser minha?...
-- Não, padre de Satanaz, não; matai-me, mas não serei vossa.
-- Pois haveis de sel-o, e já!
Dizendo isto, lançou-se sôbre a donzella.
Então Ruy com a adaga em punho precipitou-se no quarto, e, travando com furia e incrivel fôrça pelo pescoço do franciscano, o levantou, cravou-lhe a adaga no peito e, com asco, o atirou de costas ao chão.
-- Oh! que fizestes?! exclamou o cura, e correu a ajoelhar juncto ao franciscano, a tirar-lhe do corpo a adaga e a examinar a ferida. Estava morto. Elle que tanto trabalhára e tantos crimes commettêra em sua ambição de celebridade e gloria alli morreu, n'um vil recanto d'um casarão obscuro!
Jorge depois d'aquelle esforço, e vendo o padre estendido no chão, ficou hirto e como assombrado do que fizera. Rosalinda, sentindo-se desembaraçada do frade, abria os olhos e, olhando attentamente Ruy, reconheceu com grande transporte de alegria o seu tão desejado noivo.
Levantou-se, e com os braços estendidos correu para elle. Jorge, voltando a si, ia abraçal-a; mas a donzella recuou, e disse-lhe com voz maguada:
-- Nao!... a baba immunda d'esse homem tocou-me o rosto, talvez já me não julgues digna de ti!!...
-- O sangue que mana d'aquella ferida, -- disse Jorge indo para ella e abraçando-a, -- é bastante para te desenodoar as faces. Sei que és virgem, que o teu coração é meu como outrora, e o que por mim has soffrido desde que te deixei!... Oh! ámanhan tu serás minha esposa.
V
RESOLUÇÃO HERÓICA
A noite d'aquelle dia passou-a o rei, o principe e os mais nobres senhores alojados no castello, vigiado por muitas guardas e apercebido para qualquer ataque do exterior.
N'uma das torres da fortaleza pernoitaram os filhos do duque de Bragança que tinham vindo a Africa, D. Fernando, duque de Guimarães, D. João e D. Alvaro; -- a linda D. Anna Mafalda, e os familiares mais Íntimos.
Na manhan do seguinte dia, quando já o sol ia alto no horizonte, Mafalda ao acordar soube que Jorge desejava fallar-lhe. Havia vinte e quatro horas que o não via; desde que sahíra de Lisboa era o maior espaço de tempo que estivera d'elle separada; vestiu-se pressurosa e mandou-o entrar.
Jorge Ruy vinha pallido, como se passára não dormida noite em lucta tormentosa do espirito.
Saudaram-se os dois: Ruy com reserva e ar contrafeito, e Anna alegre e franca, como era proprio a uma dama d'aquelle seculo que, terminada a batalha, encontrava são e coberto de gloria o seu cavalleiro.
Depois Jorge a fez sentar n'uns coxins orientaes que alli havia, e com voz alterada e sahindo-lhe a custo dos labios, declarou-lhe tudo quanto se havia passado entre elle, o cura de Camarate e Rosalinda.
Anna escutou-o primeiro com pasmo sem comprehender bem o que ouvia; depois, á proporção que foi vendo a realidade, para ella terrivelmente afflictiva, sentiu, pouco a pouco, fugir-lhe do rosto o sangue, affluir-lhe ao coração, frios estremecimentos accommetterem-na; cubriu com as mãos o rosto, e com os braços apertou o peito que se despedaçava aos golpes d'aquella immensa dor.
Acabando a sua penosa narração, Ruy ajoelhou, tomou entre as suas ambas as mãos da donzella, e disse-lhe com voz alterada, plangente, quasi lacrimosa:
-- Que a desposaria hoje foi a promessa que lhe fiz, D. Anna; cumpril-a é o preceito que me impõe a honra de cavalléiro... -- Não sei se a amo a ella, creio que sim, em consciencia o digo, -- vendo-a e sabendo que tanto ha sofrido por minha causa... estremeceu-me o coração a senti de novo em mim o antigo ardor... creio pois que a amo, creio... mas a ti não só te amo, adoro-te... honra e vida ponho em tuas mãos, decide: ou serei cavalleiro honrado e leal, desposando-a, -- ou fementido e perjuro, mas teu!
A sobrinha do duque levantou-se no coxim sôbre os joelhos, pallida como uma defuncta, os braços estendidos e hirtos, e toda trémula, porém com voz segura.
-- Sê honrado e leal, disse; amaste-a e prometteste-lhe que a desposarias; promessa que a mim só fizeste quando a julgaste infiel; ella não o foi -- tem pois direito a exigir de ti o cumprimento da tua palavra. Vai, cumpre e sê feliz... -- Oh jámais se dirá que uma filha, ainda que bastarda, da casa de Bragança, aconselhou a alguem uma deslealdade!
Extinguiu-se-lhe toda a energia com este esforço, parou-lhe a vida e cahiu sôbre as almofadas do coxim.
Jorge estava ainda de joelhos, ergueu as mãos sôbre o peito e ficou por alguns momentos ante ella em adoração delirante e afflictissima, depois tomou-a nos braços, estreitou-a ao seu coração, e tanto lhe orvalhou com lagrimas o rosto que tornou a si a donzella.
Então esta levantou-se, e fez tambem erguer o mancebo, entrelaçou-lhe os braços na pescoço, deu-lhe nos labios um beijo último, prolongado e ternissimo, affastou-o de si, e suspirou:
-- Adeus, Jorge!
E, banhada em lagrimas, sahiu precipitadamente do aposento.
Horas depois, muito a despeito do duque de Guimarães, por mandado do principe, auctorisado por el-rei -- e d'aqui, dizem, se originaram os odios que mais tarde houve entre D. João II e o duque, -- o bom cura de Camarate lançou as bênçãos nupciaes a Jorge Ruy e á bella Rosalinda. Em seguida celebrou-se missa pontifical e Te-Deum em acção de graças ao Senhor das victorias pela gloriosa -- conquista d'Arzilla.
EPILOGO
TRES ANNOS DEPOIS
Era ao descahir da tarde d'um dia de maio de 1474.
Maio! Não ha quadra mais bella em todo o anno. Ri a vegetação nos montes e nos prados; contam as ares alegres os seus amores; expande-se o coração do homem nos affectos mais suaves.
Celebravam-na os antigos com folguedos; dedicara-na os catholicos a Estrella do Ceu.
Para mim não ha mez de tantas e de mais ternas e saudosas recordações.
Era pois em maio, n'uma bella tarde de maio, que filhas, ambas ja desposadas; Lucila com o seu tão querido primo Ricardo, Maria com um bello rapaz de Sacavem.
Cedo e facilmente casam as raparigas do campo; que é alli menos custosa a vida, mais imitativa do aninhar e amar dos pássaros, e são os ânimos mais singelamente expansivos; Maria nada perdêra com seu novo estado da alegria infantil que a dominava sempre. Nos seus lindos olhos lia-se-lhe ainda o tumultuar dos pensamentos ledos que lhe povoavam a alma. E ainda conservava a desinvoltura engraçada da sua meninice. De quando em quando corria a colher as flores dos arbustos e da relva, ou trepava, mostrando os seus lindos pesinhos, sôbre o pedestal da cruz do adro, a ver o horisonte de veigas cultivadas.
-- Olhae! olhae! gritou ella de repente do seu observatorio, la vem de Lisboa um cavalleiro, armado em guerra e grandes plumas na cimeira do elmo!
A estas palavras todos se levantaram com aquella tão justificada, mas tão importuna curiosidade de todo o habitante d'uma terra pequena.
O estrangeiro ao avistar o grupo do adro incitou com os acicates seu ginete, e em breve, chegando perto, saudou os que alli estavam, e examinou com attençao.
Ao reconhecer o sacerdote, descavalgou, e para elle se dirigiu rapidamente; tomou na sua manopla de ferro a mão descarnada do velho, e osculou-a com respeito, dizendo:
-- Dae-me a vossa benção; veneravel padre.
O ancião contemplou por um momento com surpreza o rosto queimado do viajante; pouco a pouco a alegria se lhe mostrou nos olhos, depois, lançando os braços decrepitos em tôrno do cavalleiro, exclamou:
-- Ah! é Jorge Ruy! um abraço, filho, um abraço!
Em menos d'uma hora todos os mancebos de Camarate e das suas immediações, que tinham ido na expedição d'Arzilla, estavam ao redor do cavalleiro d'Africa.
Todos queriam notícias de Rosalinda que chamavam sua irman e senhora, e ficavam mui satisfeitos ao saberem que estava de saude e que já tinha um bello menino. Depois inquiriam o cavalleiro sôbre as cousas d'Africa, perguntando-lhe até alguns por formosas mouras que tinham conhecido em Arzilla.
Livrou-o o cura d'estas importunações, e ia leval-o comsigo, quando o velho Luiz lhes estorvou os passos, dizendo:
-- Não, reverendissimo, perdoae-me, mas ha de ser em minha casa e no mesmo quarto e leito onde dormiu outr'ora a sua noiva que pensará este cavaleiro. Vinde comnosco, passae o serão, e muito me honrareis se quizerdes tambem servir-vos dos nossos lençoes de linho, que sois a gloria, o bem vindo do Senhor, á nossa freguezia.
E, dizendo isto, o velho aldeão tomou pelos braços o cura e o mancebo e os levou para casa.
Foi a ceia abundante e alegre; uma d'aquellas ceias entre amigos em que muito se come e muito se conversa, em que por entre o fumo dos pratos e o brilhar de ouro ou ntbim do vinho nas taças, se cruzam e nmumeras se debatem as palavras sahidas através dos labios, mas vindas do coração.
Todo o placido viver e amar na aldeia, o guerrear contínuo em ceifa de gloria na Africa adusta, a descuidado e doce existir na patria, o saudoso e pungente recordar-se ao longe d'ella, o mel dulcissimo do viver de noivos, o justo orgulho do ancião que se vê perpetuar em briosa prole, o anciar pelo futuro nos mancebos, o exaltado amor á humanidade de homem do Evangelho, tudo, tudo emfim quanto havia de sentimento n'aquellas almas alli veio com singeleza e ingenua sinceridade. São das poucas horas felizes no existir do homem aquellas em que seifa rodeios póde exprimir seu pensamento, em que póde derramar o sentir do seu coração em corações amigos.
Passaram assim muitas horas todos aquelles felizes de Camarate!
E até, para mais regosijo terem, um penhor de antigas affeições, de doce gratidão foi apresentado por Jorge. Rosalinda mandava a Lucila e a Maria dois lindos collares de perolas, em reconhecimento da extremada e amorosa hospedagem que recebêra n'aquella casa e no coração das duas meninas.
E estas choraram, ao lembrarem-se da sua amiga, da sua irman, lagrimas ainda mais lindas do que as perolas que recebiam, lagrimas que seus esposos, jovens e apaixonados, a não estarem alli extranhos, teriam embebido com ardentes beijos.
-- Então, senhor Jorge; disse o velho Luiz, n'um momento em que a práctica esfriou, quereis continuar n'esse perenne batalhar com sarracenos: não desejaes de vez voltar ao reino.
-- A isso vim, respondeu o guerreiro; fallei com o principe D. João, e a seu pedido el-rei me nomeou alcaide do castello de Leiria. Depois d'amanhan parto para Arzilla a buscar minha mulher e filho, e iremos viver para as margens do liz.
-- Mui bem fizestes, disse o cura, que é o sítio bello, e são amoraveis os habitantes. -- Mas dizei-me soubestes na côrte alguma cousa da gentil e virtuosa sobrinha do senhor duque de Guimarães?
Jorge Ruy corou, e ficou por alguns instantes silencioso e como enleiado; depois, tomando repentinamente resolução, disse: -- Soube, e dir-vos-hei, quasi formaes palavras, o que ainda hoje me contou um familiar do senhor duque, que não é isto cousa para mim de que possa facilmente olvidar-me; escutae!
«Poucos dias depois do vosso casamento, -- disse-me elle, -- o senhor D. Fernando, sabendo que d'aquella vez não se combateria mais em Africa, despediu-se d'el-rei e voltou na sua galera para Portugal.
«Na altura do cabo de Sancta Maria sobreveio-nos uma tormenta horrivel. Era de noite. Uma escuridão profunda nos rodeava. As ondas vinham rebentar furiosas no convez, e arrojar-nos d'um ao outro bordo do navio. De quando em quando retumbavam medonhos os trovões, similhando descargas multiplicadas de cem bombardas grossas; e os relampagos, illuminando o horisonte, mostravam-nos á vista pavida abysmos sem número profundamente cavados no oceano.
«Não tivera tempo o capitão de mandar ferrar o panno, e a violencia do furacão foi tal que fez voar em estilhas a vela grande, e partia o mastro.
«Gelido terror se apoderou de toda a marinhagem; abandonaram o leme; redemoinhou a galera á mercê das ondas; á horrida visão da morte apavorou o ânimo de todos; e um clamor plangente e afflictissimo echoou em todo o barco.
«Apenas o senhor duque em pé, seguro a um mastro que restava, com a sobrinha agarrada pela cintura, esperava tranquillo a morte, só uma leve pallidez se lhe divisava no rosto á luz offuscante dos relampagos.
«Julgavam-se alli perdidos todos, e todos, já sem esperança, á Virgem encommendavam suas almas.
«Então sahiu d'uma escotilha um grande vulto branco, atirou-se ao leme, e, tomando o governo da galera, gritou com uma voz que dominava o ruido espantoso do oceano enfurecido: -- «Animo, marinheiros! eu descobri o anno passado a ilha de S. Thomé, nasci sôbre as ondas, não conheço outro solo; -- o mar obedece-me, que sou quasi filho do grande infante D. Henrique. Animo!
«Os marinheiros ouvindo aquella grande voz, já mesmo conhecida d'alguns, e sôbre tudo vendo a resolução d'aquelle homem, levantaram-se no convez, onde estavam prostrados, e começaram a obedecer com presteza ás soas vozes de commando.
«Navegamos toda a noite debaixo de tormenta, e, de quando em quando, á luz dos relampagos divisavamos o vulto branco juncto ao leme, e todos sentiamos grande respeito e admiração por aquelle homem a quem deviamos a vida.
«Ao amanhecer a tempestade serenou, vimos então o nosso salvador que havia oito horas estava ao leme da galera: -- era um mancebo mui trigueiro, mas bello; grande amigo do infante D. Henrique e navegador afamado. Tinha sido ferido na tomada d'Arzilla e, voltando na galera, jazia infermo no beliche, quando, ao escutar os nossos gritos de terror, se levantou e correu a tomar o governo do navio.
«Durante a viagem o senhor duque com aquella sua alma mais que nenhuma nobre e agradecida o apertou muitas vezes ao seu coração; não, dizia elle, por lhe ter salvo os dias que pouco amava, mas sim a vida de sua sobrinha e a de tantos e tão leaes servidores e amigos que iam na galera.
«A senhora D. Anna tambem lhe dava muitos agradecimentos, mas jámais notei em seu rosto o menor signal de amor. N'elle sim, e, durante tres annos, practicou por ella os maiores desvelos, que viveu quasi todo esse tempo em casa do senhor duque.
«Ha tres mezes porém, estando todos em Villa-Viçosa, n'uma grande caçada, o heroico navegante livrou o senhor D. João de ser morto por um javali; o fidalgo em recompensa deu-lhe a mão da senhora D. Anna, que hoje é sua mulher, e não sei se o ama, mas inquestionavelmente muitissimo o estima.»
No outro dia Jorge despediu-se do bom cura e de seus hospedes; e dois mezes depois, com grande regozijo de todos, passou por alli com Rosalinda e seu filho, de jornada para o castello de Leiria.
FIM
NOTAS
I
Empresa nocturna
O assumpto d'este capítulo é vulgar nos romances que tractam da edade média, mas aqui é, alem de principal causa da maior parte dos acontecimentos de todo o livro, uma verdade historica. Vêde a Chronica de D. João II por Garcia de Resende, cap.. 6.°.
II
Vigaría
No mosteiro de Sancta Clara, havia uma Vigaría constituida por quatro religiosos franciscanos, dos quaes dois eram confessores, e o superior tinha voto nos capitulos da Provincia.
III
O principe perfeito
Damião de Goes na sua Chronica do Serenissimo Principe D. João, cap. 19 diz que, tendo D. Affonso V resolvido passar pela terceira vez a Africa, o principe propoz-se haver licença d'el-rei para o acompanhar, e que, depois d'alguns dias andar sôbre isto cuidadoso, resolveu descubrir sua tenção ao conde de Monsanto, pessoa de sua confiança e mui aceito d'el-rei, para impetrar d'elle a dicta licença. Depois de porfiada práctica, que o mesmo chronista appresenta, o conde encarregou-se do recado e obteve a permissão desejada.
Alterei n'este ponto a historia por achar mais dramatico, e mais quadrar no meu romance, ser pessoalmente o principe quem pedisse ao pae o consentimento d'ir na expedição, reputada sancta.
IV
Camarate
Camarate é um sitio ameno proprio para doce tranquilidade.
Antes da nossa heroina descansar ahi do seu tempestuoso existir d'alguns mezes, um dos maiores homens de Portugal alli tinha repousado tambem de cem victorias que illustraram a nossa patria; -- foi D. Nuno Alvares Pereira, o sancto condestavel, que muito tempo habitou no mesmo logar onde hoje estão as ruinas do convento de Nossa Senhora do Soccorro de religiosos carmelitas calçados.
Denomina-se de Sanctiago a egreja parochial de Camarate; é o tecto o mais notavel d'ella, dividido em vinte e sete paineis pintados a oleo, representando a vida de Christo desde a Anunciação da Virgem até á Ascenção do Senhor.
Disseram-me que era aquella pintura muito antiga, e que fôra retocada por Pedro Alexandrino. Não sei; mas pareceu-me boa e mui digna de ser examinada.
A egreja só é parochial desde 1511, até ahi estava annexa á freguezia de Sacavem; ha, por consequencia, um anachronismo de quarenta annos no meu livro. Desculpem.
V
A associação
É tambem anachronismo, e ainda mal, o assumpto do capitulo que tem este titulo. Conheci-o apenas o concebi; mas foi mui determinadamente que o escrevi e publiquei.
Associar todas as familias de cada freguezia com o fim de practicar o bem era cobrir o reino d'uma vasta rede de associações de caridade eminentemente prestadia, eminentemente nacional, eminentemente christan.
VI
A nau Borralha
Nau Borralha era o navio em que passou a Africa o chique de Guimarães; não achei o nome romantico e por isso n'este ponto afastei-me da verdade histórica.
Outras pequenas inexactidões talvez se notarão; mas este livro é romance; não é a historia.
VII
Ilha de S. Thomé
O primeiro nome que teve esta ilha foi, segundo Fr. Francisco Brandão, o de São Thomaz; dei-lhe no texto porém o nome que tem hoje para mais facil intelligencia do leitor.
Ignora-se a data do seu descubrimento, mas segue-ae geralmente que foi em 1470 ou 1471. Adoptei a primeira opinião.
Desconhece-se tambem o nome do seu primeiro descobridor, por isso o omitti.
VIII
Epilogo historico da expedição d'Africa
Grandes eram os desejos de Affonso V de conquistar Tanger. Emprehendeu porém a tomada d'Arzilla por lhe offerecer mais facil victoria.
Moley Xeque, o senhor d'esta, occupado nas guerras civis de Fez, apenas soube do cêrco já mui tarde: E marchava pressuroso a soccorrer a villa, quando em Alcacer-Kibir, lhe deram a notícia que já estava conquistada.
Reconheceu que seria inntil tentar recuperal-a. Mandou emissarios a D. Affonso V e entrou com elle em ajustes de paz: marcaram-se os limites das terras conquistadas, assignaram-se umas treguas de vinte annos que se entenderiam só nos logares chãos e descercados, e emquanto ás povoações muradas a ambos ficava livre fazer-lhes guerra, sem por isso as treguas se quebrarem.
Concluido o tractado, Moley Xeque voltou á guerra de Fez, de que depois foi pacifico soberano.
Scientes d'isto os habitantes de Tanger, desesperados de obter soccorro, e receiando a vingança de D. Affonso V das affrontas que tinham oommettido contra o infante D. Fernando e outros portugueses, abandonaram secretamente a cidade, levando suas fazendas.
Apenas el-rei tal soube, mandou a D. João, filho do duque de Bragança, que fôsse com muita gente de guerra apossar-se da povoação. Quatro dias depois da tomada d'Arzilla o guerreiro, que mais tarde foi condestavel do reino e marquez de Monte-mór, arvorou sôbre as torres de Tanger, até ahi julgada invencivel, o estandarte de Portugal.
Depois o rei e o principe entraram na com grande regosijo de todo o exército e tristeza sua, pois queriam apoderar-se pela conquista e não pelo temor dos mouros d'uma terra que tantos males nos havia causado.
Foi de Tanger nomeado commandante Ruy de Mello, depois conde d'Olivença; e d'Arzilla D. Henrique, filho do grande D. Duarte de Menezes.
Em 17 de Setembro voltaram ao reino D. Affonso e o exército.
O exito grandioso de tão prospera expedição encheu de júbilo a todos os portuguezes; e foi com o maior e mais sincero enthusiasmo que Portugal recebeu os triumphadores d'Africa. Como entre os captivos d'Arzilla fôssem encontradas duas mulheres, uma filha e um filho de Moley Xeque, contractaram trocar as tres primeiras pelo cadaver do infante D. Fernando, que tanto tempo os mouros em cruel vingança haviam tido exposto nos muros de Fez.
Quando se effectuou a troca, foi o cadaver conduzido a Lisboa, onde se celebraram grandes exequias; e depois o depositaram na sepultura em que jaz, no sumptuoso mosteiro de Sancta Maria da Batalha.
O filho de Moley, menino de sete annos, ficou até aos quatorze captivo em Portugal, onde aprendeu tão bem a fallar portuguez, que quando D. Affonso V depois o entregou, sem resgate, -- segundo a opinião dos escriptores portuguezes, mas não dos arabes, -- a seu pae, então já rei de Fez, os mouros lhe chamavam Mahomet o Portuguez.
Possam os louros obtidos outr'ora pelas nossas victorias marciaes servirem-nos hoje de incentivo para mais pacificos, mais productivos e não menos gloriosos triumphos no campo vastissimo da moderna civilização.
FIM DAS NOTAS
DUAS PALAVRAS SOBRE O LIVRO
Bellas manhans do estio, passadas na margem do Tejo, defronte de Lisboa (*), bafejadas pelas brisas do norte, ao som da harmonia sempre grande, mas ora meiga, ora ruidosa das vagas, rolando coroadas de espuma pela praia, não podiam ser empregadas em mais ameno entretenimento do espirito do que passar ao papel, pôr por escriptura o que pensava a cabeça, o que sentia o coração.
Assim o fiz. Mas alli qualquer era poeta, qualquer desprenderia a alma das cogitações vulgares e se elevaria as mais altas regiões do idealismo.
(*) Foi este livro escrípto proximo d 'Almada, de julho a setembro de 1861; férias do quarto para quinto anno do meu curso de Direito.
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