Marcellino Mesquita

Os quatro Reis

impostôres

(Romance da historia)

1908

Antiga Casa Bertrand

JOSÉ BASTOS & C.A

73, RUA GARRETT, 75

LISBOA

De Alcacer-Kibir a Alcantara

El-rei

«A historia é um romance»

Em certo ponto, o Embaixador fez um signal ao Caïd, a escolta parou, e nós, acompanhados por alguns soldados, fômos, a pouca distancia, visitar uma ponte.

Quando chegámos á margem, parámos; não restavam da ponte senão algumas estacas na margem oposta.

Estivemos alguns minutos olhando alternadamente para essas estacas e para o campo, absorto cada um nos seus pensamentos.

O logar era realmente digno d'um mudo testemunho do espirito.

Duzentos e noventa sete annos antes, no dia quatro de agosto, n'aquelles campos trovejavam cincoenta canhões e revoluteavam quarenta mil cavallos debaixo do commando de um dos maiores capitães de Africa, e um dos mais novos, mais aventurosos e mais desgraçados monarchas da Europa.

Pelas margens d'aquelle rio fugiam em desordem, escorregavam no sangue, pediam misericordia, precipitavam-se nas aguas para fugirem ás cimitarras

implacaveis dos arabes, dos berberes, e dos turcos, a flôr da nobreza de Portugal, côrtesãos, bispos, soldados hespanhoes e soldados de Guilherme de

Orange, aventureiros italianos, allemães e francezes, e a cavallaria musulmana pisava seis mil cadaveres de christãos. Estavamos no terreno d'aquella memoravel batalha de Alcacer-Kibir que consternou a Europa e fez resoar um grito de alegria desde Fez até Constantinopla.

Aquelle era o rio Makzem, n'aquella ponte passava, no tempo da batalha, a estrada de Alcacer.

Na visinhança da ponte estava o acampamento de Muley Moluk, sultão de Marrocos.

Muley Moluk vinha de Alcacer, o rei de Portugal vinha de Arzila.

Travou-se o combate nas margens do rio, na planicie que se estendia em torno de nós.

Quantas imagens tumultuavam na nossa mente!

Mas a não serem as ruinas da ponte, não havia, uma pedra, um signal que recordasse o passado.

De que lado tinha dado as suas primeiras cargas victoriosas a cavallaria do duque de Aveiro?

Onde tinha combatido Muley-Amed, o irmão do sultão, futuro conquistador do Sudan, capitão que pela manhã fôra suspeito de cobardia e que á noite

era o rei victorioso?

Em que parte do rio se afogara Mahomed, o negro, fraticida descorôado, provocador da guerra?

Em que angulo do campo recebera o rei Sebastião o tiro de espingarda e dois golpes de cimitarra que mataram com elle a independencia de Portugal

e as ultimas esperanças de Camões?

Onde estava a liteira do sultão Moluk, quando expirou, no meio dos seus officiaes, pondo o dedo na boca a impor o silencio?

Emquanto ruminavamos estes pensamentos, a escolta olhava para nós, de longe, immovel no meio d'aquella planura famosa, como se um manipulo dos cavalleiros de Muley-Hamed tivesse resuscitado, com o rumor dos nossos passos.

Decerto, tenham d'aquelles soldados saberia que era aquelle o campo de batalha dos treis reis, gloria do seu paiz; e, quando nos pozemos a caminho

com elles, deitavam para um e para outro lado olhares curiosos, como para procurarem nas hervas, então floridas, alguma coisa que lhes explicasse a

nossa paragem e a nossa contemplação.»

Isto escreve um viajante italiano, de Amicis, atravessando Marrocos, n'uma viagem a Fez, duzentos e noventa e sete annos depois d'esta batalha.

Expliquemos.

No paço da Ribeira, entre frades e jesuitas, a cabeça do piedoso imbecil que tinha o nome de D. João III, inclinara-se sobre o travesseiro, para não mais se levantar.

Dos nove filhos que fizera em D. Catharina, irmã de Carlos V, nenhum restava.

A série de casamentos consanguineos, sublimando nos successivos rebentos principescos as taras doentias, condemnara os filhos do lugubre fanatico a existências ephemeras.

O que mais conseguiu viver foi um bastardo, D. Duarte; naturalmente devido ao sangue da mãe e ás graças que lhe poria sobre a cabeça rapada a mitra archiepiscopal da Guarda. Viveu vinte e dois annos.

Não se fizeram, á morte d'este rei, os prantos em prosa e verso, com que se celebraram em doloroso estilo os funeraes do pae, esse D. Manuel, esse mediocre e ruim vilão, a quem a generosidade chronistica não poude encaixar melhor cognome que o de venturoso.

Cabe-lhe no entanto, para confirmação do dictado: quanto mais burro, mais peixe.

Não havia vagar para chorar.

O rei fôra uma figura kigubre, sangrenta, baixa, apagada na sua profunda ignorância e estupidez, sempre temido, jamais estimado.

Debaixo da apparente grandeza o reino difinhava rapidamente.

D. João II, um grande rei e um grande coração, a despeito do seu altissimo valor de pohtico, creara, pela ambição, a primeira causa da decadencia de

Portugal: matara a monarchia popular de Aviz, fizera a monarchia absoluta. A vida era luxuosa, cara. Os nobres empenhados, quizeram oiro.

Em honra delle correram, primeiro, ás colonias; mas quando o rei foi o primeiro mercador e accummulou as riquezas do Oriente, acharam que era melhor, mais facil, mendigar-lhe as honras e as tenças e tornaram-se servis.

O culto do rei trouxe, como sempre, a corrupção.

A expulsão dos judeus matara o commercio.

O rei estava empenhado, pobre; pobrissimo o thesouro; miseravel o povo, arrastando se esfaimado do campo para as cidades. Os annos de miseria sucediam-se: morria-se de fome sob os alpendres das casas, em Lisboa, pelas ruas, pelos becos.

A população, dizimada os campos incultos, a industria morta.

O Brazil e a India tinham exhaurido o paiz de homens validos. O resto dos energicos portuguezes andavam pela America e pela Asia, a batalhar, e a morrer.

Os que cá estavam ou eram fidalgos inervados pelo luxo, transformados em côrtezãos, ou pobres que esmolavam a caridade, nos pateos dos fidalgos ou nas portarias dos conv^entos. O trabalho faziam-no milhares de escravos.

Sobre este povo miseravel cahira a Inquisição prohibindo-lhe a liberdade do pensamento; emquanto, surdamente minado, o altivo espirito publico, que

tão nobre e tão grande fôra, morria ás mãos perversas dos Jesuitas, num ensino atrofiador, assassino!

Não havia tempo para chorar!

Uma afflicção intima, um mal estar geral, prenuncio de futuros e mais crueis desastres, oprimia grandes e pequenos.

D. Maria, filha de João III levara a Filippe II, casando-se com elle, o direito á corôa portugueza, na falta de herdeiro portuguez. Um só havia.

Esse tinha tres annos, era o unico neto do rei morto, filho do principe D. João, que morrera dezoito dias antes d'elle nascer, -- era D. Sebastião.

A união, a encorporação da monarchia portugueza na grande monarchia hespanhola estava iminente.

A independencia de Portugal tinha como unico amparo a vida de uma creança de tres annos, nascida entre sustos e anciãs populares, e cujo nascimento, anunciado pelos canhões e pelos repiques dos sinos, celebrado em tédéus, a imaginação popular cercou, mais tarde, de lendas, de aparições funebres, de signaes lugubres no céu.

Rei morto, rei posto.

D. Sebastião é aclamado rei aos tres annos; mas fica como regente do reino sua avó D. Catharina, senhora de dotes politicos incontestaveis.

Mal toma posse da regencia, torna-se-lhe inimigo implacavel, o velho, ambicioso, fraco, irresoluto e vingativo cunhado -- o Cardeal D. Henrique.

Jesuita, intrigando, sem descanço, a principio com os Jesuitas, Leão Henriques, seu confessor, e Miguel Torres, confessor da rainha, e mais tarde com os irmãos Camaras, de tal modo amarguraram o espirito de D. Catharina, que esta um dia se demitiu do cargo, e o Cardeal foi elevado a Regente.

Na alma amortecida do velho cardeal, ao lado da ambição que o avassalara sempre, só ardia ainda o fanatismo religioso.

Os jesuitas, mandaram, governaram, enriqueceram.

A Inquisição medrou em poder e em riqueza.

Os negocios do estado tornaram-se em conflictos fradescos. Os conselheiros austeros, os homens dignos retiraram se para as suas terras, não podendo

opôr-se á incapacidade exaltada, á subjeição servil da maioria, ás ordens dos padres, dos frades, dos pregadores, dos jesuitas, dos inquisidores, de Roma.

Esta santa regencia teve, infelizmente como tudo o que é bom, de acabar.

No dia em que D. Sebastião fez quatorze annos declarou-se-lhe a maioridade e começou a reinar.

Comparando as informações dos chronistas com o retrato da Univerisdade de Coimbra vê-se que D. Sebastião era loiro-ruivo, de estatura meã, olhos azues, barba loira e rala, rosto excessivamente comprido, o que provinha do desenvolvimento maior do queixo inferior, caracteristica da casa d'Austria.

O rosto era asimetrico, sendo a metade esquerda maior do que a direita. O beiço inferior tres vezes mais grosso do que o superior e descabido.

Tinha normalmente uma expressão austera que casando-se com as feições descritas lhe dava ao rosto o quer que fosse de desagradavel, á vista.

Sendo baixo e grosso não deixava todavia, de ter certo ar nobre, sobretudo a cavallo.

Foi muito bonito em creança. Era dotado de agilidade e força, qualidades que aumentou sempre, pelos exercicios que levava ao exagero.

Corria lanças horas a fio, completamente armado sem que o peso da armadura parecesse fatigá-lo.

Padeceu, em novo, de perdas seminaes e ainda aos desoito annos, tinha vagados, deliquios, que o obrigavam a apear-se do cavalo e a deitar-se no

chão, até lhe passarem.

Fisicamente, como se vê, D. Sebastião era um doente. A beleza infantil e a força que parecem, á primeira vista, signaes de saude, não são n'elle senão sintomas confirmativos de profunda lesão organica.

Por notavel coincidencia, o sangue dos principes aragonezes vem com Santa Izabel viciar a primeira dinastia; o mesmo sangue vem com D. Leonor, casada com D. Duarte, arruinar, matar a do mestre d'Aviz.

Um dos filhos d'este casal é Affonso V, perdulario, teimoso, desarrazoado: outro é D. Joanna, que casa com Henrique IV de Castella e é mãe da Beltraneja. Peregrina formosura, recebida em Castella com festas e torneios que trocou o marido por D. Beltran de la Cueva e causou guerras. O terceiro é D. Fernando, pae de D. Manuel, que tentando furtivamente ir á Africa fazer proezas, é agarrado no caminho.

O sangue de D. Manuel, aragonez pela avó misturava-se com o da mulher D. Maria, filha de Joanna a Doida, aragoneza pelo avô Fernando, o Catolico, que morreu melancolico.

O filho d'estes, D. João III é, scientificamente, um imbecil e para aperfeiçoar a raça casa com a outra filha de Joanna a doida, a rainha D. Catharina, irmã de Carlos V, um epileptico.

Dos filhos que não morreram, antes de casarem, um, foi D. Maria, que deu a Filppe II de Hespanha, o filho D. Carlos, corcunda, gago, e louco, que o pae, segundo parece, mandou matar; o outro foi D. João, fallecido aos 16 annos, pae de D. Sebastião

Qualquer medico, pelo que fica dito, concluirá

com a maior certeza que D. Sebastião -- é um degenerado, um epileptico.

Tal era bastante; mas nos dez annos do seu reinado o que fez e o que disse completa, absolutamente, o diagnostico tirado á priori.

Quando está em Cintra, muitas vezes, levanta-se da cama alta noite, sahe do palacio e mete-se pelos bosques mais espessos, só, sem socio algum

e monologando, passeia, passeia, até que o cansaço ou o somno ou a luz do dia o fazem recolher a casa.

Em Lisboa escolhe os dias de temporal desenfreado ou as noites e metido n'um fragil barco, proa á barra, increpa os ventos e as fúrias, desafi-

ando os elementos.

É um alucinado, direis, e não é outra cousa.

Quando a côrte está em Almeirim levanta-se tambem, muitas vezes de noite, sahe, anda por fóra largo tempo.

D'estas excurções diz o cronista: contam-se cousas que por menos criveis se deixam de referir.

Veremos que cousas são.

Em Lisboa levanta-se da cama, pelas onze horas, acorda o pagem da campainha, que dorme ao pé do leito, pedelhe a espada e ordena-lhe: vem.

Sabem os dois, sós. Vão andando ao longo rio, e em certo ponto, pede-lhe a espada e vae só pela praia e tanto se demora que o pagem adormece; o que o

Rei folga de ver porque assim entende que o não espreita.

Outras vezes, mete-se n'um batel com Sancho de Toar, saltam da banda d'alem num areal, o rei afasta-se até ir encontrar-se com um homem que veio de Belem, sósinho, n'um bote.

Demora-se com elle duas ou trez horas e voltando a Sancho de Toar, regressam a Lisboa. Por cuja causa, diz o cronista, se fallam conjecturas de

que o rei havia alguma especie de illusão e engano de entendimento.

Combinando estas misteriosas divagações nocturnas com a repugnancia que lhe inspiravam as mulheres, o leitor comprehende que o alucinado se desdobra em pedrasta.

Esta repugnancia que lhe atribuiram ao fanatismo religioso, ao desejo de pureza que o irmanava a um cavaleiro templario no voto intimo de castidade, não lhe veiu só da educação da unica pessoa de quem gostou no mundo, o mestre Luiz Gonçalves da Camara, jesuita e valido, mas, sobretudo, da sua organisação miseravel, defeituosa.

É natural que o mestre lh'a exacerbasse, quem sabe mesmo por que processos. O que é certo, é que a unica pessoa que D. Sebastião estimou a valer, a unica por quem chorou, ao saber-lhe da morte, foi por elle.

Não era porque o Camara fosse atrahente, porque segundo o embaixador de Veneza de então: era de presença rustica e pouco agradavel, rejubilava pela falta de um olho que o desfigurava e pelo defeito que lhe prendia a fala, ás vezes.

Segrêdos do amor!

Era um invejoso. Nos torneios, nas caçadas, quem se lhe avantajasse, tinha immediatamente uma demonstração de desagrado, de resentimento.

Por jactancia, n'um exagerado amor e consideração de si mesmo, por futuras proezas heroicas que havia de fazer, insultava um dia em Alcobaça os reis que se não tinham distinguido, nos campos da batalha.

Nas conversações faz continuamente esta pergunta: o que é o mêdo? Quando alguem narra o feito heroico de um capitão, de um bravo, tem sempre esta phrase: Se não fosse D. Sebastião quizera ser esse.

Ao ouvir prudentes conselhos de D. João de Mascarenhas, imagina que o heroe de Diu é um cobarde e propõe a uma junta de medicos o decidir: se um homem valente pode ser medroso na velhice. Nem a este nem a Luiz de Athayde os quer levar á Africa para não se encontrar ao lado de fracos.

Ao duque d'Alba o famigerado e sanguinario guerreiro pergunta em Guadelupe: dizei-me, duque, de que côr é o mêdo? A que o duque, o primeiro general do seu tempo, velha raposa, respondeu: Senhor, é da cor da prudencia.

É impaciente, é impetuoso, é brutal.

Porque o aio o velho e nobre D. Aleixo de Menezes o não deixa sahir n'um cavallo por ensinar, insulta-o. Porque em Cintra um camarista o adverte

de que se não ria d'um velho fidalgo trôpego que o vem visitar, dizendo-lhe que n'aquelle estado o puzeram as feridas recebidas em Africa, bufa tanto

e com taes palavras de enfadamento, que o camarista sahe do paço e retira-se para Lisboa.

É um glutão, é um mentiroso, como se verá.

A perversão dos sentimentos affectivos é completa. A avó, que o estimava, apressa-lhe a morte com desgostos; a D. Maria, sua tia, a quem deve inumeros favores, chora-lhe a morte fazendo justas e torneios antes de um mez de enterrada; ao Cardeal, ao Prior de Crato trata como inimigos.

Os proprios amigos, os mais chegados, aquelles a quem mais parecia estimar estavam sempre na iminencia de uma ruptura de relações, porque, como estimava, agora, detestava e aborrecia, logo.

A todos estes factos de jactancia, de inveja, de vaidade extrema, de perversão sexual e affectiva, de impulsivismo, de dolo, de glutonice, juntam-se para completar a confirmar a epilepsia de D. Sebastião o misticismo e a tenacidade, a obstinação n'uma dada enipreza, ideia que salta por cima de todos os obstaculos, fixa, invencivel -- a ideia fixa

epileptica.

Quer ser o capitão de Deus; assim o pede nas suas orações; assim o recommenda aos padres para que lh'o consigam nas d'elles; assim o solicita de D. Maria de Menezes no dia em que ella professa em Xabregas.

-- Que quereis que peça para vós ao meu divino esposo?

-- Pedi-lhe que me faça seu capitão, responde o rei.

Aos dez annos quer fazer longos jejuns. A avó oppõe-se.

Como para ser capitão é preciso ter tropas, arranja tropas; e como para dar que fazer ás tropas é preciso matar; arranja o alvo.

É a Africa, é o arabe, é o barbaro!

Conquistar a Africa; levar uma expedição ás Indias, voltar pela Pérsia; destruir o islamismo, nas muralhas de Constantinopla, taes eram as pequenas emprezas em que se deliciava a sua imaginação doentia.

A Africa estava ali a dois passos. Na costa de Marrocos tinhamos ainda praças importantes. Era preciso conquistá-las todas, fazer um imperio.

Sentia-se Alexandre; cria-se maior do que Albuquerque, o Capitão de Deus.

Começa a exercitar-se: vae ao Algarve como em simples excursão, mas com o fito de se encontrar com os corsarios da costa.

Tenta ir á India; mas o Cardeal afirma-lhe sob juramento de que não haverá esquadra que o leve.

Então começa a planear em segrêdo e em 1574, um dia, desaparece.

Grande consternaçcão na côrte e na cidade.

Onde estará? onde iria? N'isto vem uma carta de Lagos em que D. Sebastião explica que vae á Africa e que os fidalgos que o quizerem seguir que vão lá ter com elle.

Foram alguns e lá partiu para Ceuta e d'ali para Tanger, onde escaramuçou com os arabes.

D'estas escaramuças em que os arabes fugiam, porque nem vinham para combater mas para espiar, o Capitão de Deus concluiu que era facilimo conquistar Marrocos, visto que todos fugiam dos golpes da sua espada e voltou ao reino com a ideia mais firme, mais enraizada da grandiosa conquista.

E não pensou mais n'outra cousa. Nem nas intrigas do Cardeal, nem nos despeitos da avó, nem no estado miseravel do paiz, sem gente, sem agricultura, sem industria, sem ter que comer.

Conquistar Marrocos, eis tudo!

Um facto extraordinario veio determinar D. Sebastião. Muley-Hamed derrotado por Abdel-Mulek e Muley Moluk em quatro batalhas, foi expulso de Marrocos e veiíi á pressa mendigar o socorro de Filippe II.

O astuto Filippe nem consentiu que elle entrasse na fortaleza de Peñon-de-los-Velez, aonde se dirijira.

Desenganado pelo rei catolico, Muley-Hamed veio pedir o auxilio de D. Sebastião.

O pedido não podia vir mais a proposito. D. Sebastião recebeu-o com o maior prazer. Dava-lhe azo a proseguir com maior força a realisação da sua ideia. Desculpava-o, de certo modo, perante a má vontade geral. O cherife prometia-lhe Larache como recompensa; elle faria que Larache fosse o

imperio. Como penhor de confiança entregou-lhe a chave de Arzilla, abandonada por D. João II.

Reuniu o conselho. O conselho oppoz-se; não o ouviu.

Mandou a Madrid pedir a Filippe II um auxilio de tropas; para o resolver falava-lhe em casar com uma das filhas.

Houve uma conferencia entre os dois reis em Guadalupe. O duque d'Alba mostrou o perigo de uma invasão pelo interior de Marrocos, o que deu origem á pergunta sobre o mêdo e á resposta do duque.

Ficou assente: D. Filippe prometteu cinco mil soldados e cincoenta galeras.

Não era nada. Portugal não tinha gente. Seria um milagre arranjarem-se os dez mil homens que o rei mandara alistar.

Escreveu ao grão duque da Toscana a pedir-lhe quatro mil soldados italianos; a Guilherme de Navarra outros tantos allemães. E dinheiro? Hipotheca no estrangeiro as drogas da India; lança um imposto cruel sobre o sal e mais um por cento sobre todas as mercadorias; levanta os dinheiros dos cofres dos orphãos e dos depositos; finta os municipios, no que só o de Lisboa tem de pagar 30:000 cruzados; pede a particulares; faz contribuir os moleiros conforme as vendas; recebe do clero para lhe não tomar as terças dos bens, segundo a ordem da bula da cruzada, 150:000 cruzados; suspende a fiscalisação dos bens dos christãos-novos por 10 annos, por 285:000 cruzados de donativo e mais cem mil de emprestimo; recruta a torto e a direito para obrigar os resgates a dinheiro.

O rei andava doido de contentamento, a exercitar-se em jogos e corridas continuamente, para se tornar incansavel. Esta loucura começou a invadir os fidalgos, rapazes novos cheios de audacia e como o rei se preparava luxuosamente em armas e bagagens, começaram aquelles a querer hombrear em fausto e empenharam-se, alguns para sempre, com fatos de seda recamados de oiro e armaduras carissimas.

Em vez de agua e bolacha, diz um escriptor, compravam dôces e conservas; as tendas eram forradas de seda, e nos serviços de prata, havia vasos e taças de extraordinario valor.

Cada fidalgo era um pequeno rei.

A lucta contra tal designio afervorava-se á medida que se via mais próximo o dia da partida.

Os conselheiros, os homens sensatos, os velhos capitães experimentados, o cardeal, a avó, Filippe II, verdadeira ou falsamente interessado, opunham-se

pela prece, pelo conselho, pela auctoridade.

D. Sebastião sorria de uns, zombava de outros, não ligava importancia a nenhum.

Filippe II não se cansava de lhe escrever; escreveu-lhe o duque d'Alba: os embaixadores andaram n'uma roda viva a trazer recados. Escreveu lhe Jeronymo Osorio; o papa Pio V aconselhou-o. Tudo debalde.

Dizia-se até que, como D. Sebastião fazia sempre o contrario do que lhe aconselhavam, Filippe II lhe aconselhava a que não fosse na expedição se a fizesse, com a certeza de que assim mais o resolvia a fazel-a e a ir.

O que é certo é que já cansado de teimas e dos arrufos do rei dissera um dia:

-- Pois que vá; se vencer terei um bom genro; se fôr vencido terei um reino ainda melhor.

A expedição estava pois resolvida.

D. Sebastião passava o dia com os soldados, em exercicios, ou com os fidalgos, em jogos, ou nas galés assistindo aos preparativos.

Andava radiante; elle que era em geral, concentrado e pouco expansivo.

Os remadores lembraram-se tambem de solicitarem do rei o adiamento da expedição. Era uma corporação de pezo... o rei mandou-os embora.

O duque de Medina Coeli tambem deitou epistola e não foi mais feliz do que os de mais.

Era uma lucta continua e improficua.

A avó, essa então, lançada por elle á margem, não cessava de pedir a todos que se opozessem, decididos, á empreza e já doente parece que peiorou quando viu que eram baldados todos os esforços.

Foi adoecendo mais e mais até que morreu a pedir: Não o deixem ir á barbaria, não o deixem ir á barbaria!

Por essa occasião D. João de Mascarenhas o velho heroe da India um dia, com a auctoridade dos annos e dos serviços, fallou mais alto: D. Sebastião chamou-lhe cobarde.

-- Cobarde? replicou o velho fidalgo levando instinctivamente a mão á espada; cobarde, eu?

-- Ou fraco, replicou o rei.

-- Senhor, exclamou erguendo altivamente a sua bela cabeça de velho; tenho oitenta annos para vos aconselhar e vinte e cinco para vos servir.

A resposta altiva se fez calar D. Sebastião não o dispoz a favor do velho guerreiro a quem mais tarde prohibiu que o acompanhasse á Africa, como

já disse.

Ainda, já no mais adeantado da expedição, Muley-Moluk que era o mais sabio e mais distincto homem que occupara o throno de Marrocos, guerreiro habilissimo, politico não menos habil, escreveu ao rei.

E dizia-lhe: que não permittiria mais a entrada aos turcos nas suas terras -- os turcos eram temidos na Europa -- que desejava a amizade do rei de Portugal e daria á roda das praças da Africa portugueza espaço para os portuguezes cultivarem como lhes aprouvesse, garantindo-lhes munições e viveres.

Estranhava que el-rei se ligasse com Muley-Hamed que ainda havia pouco combatera contra os portuguezes em Mazagão. A carta era habil e séria.

D. Sebastião quando a leu, riu-se.

Riu-se e disse para os que lhe estavam perto: Vêde como Muley-Moluk receia a minha espada.

Não fosse elle completamente doido e teria respondido, nobremente, ao prestigioso sultão.

Ao saber-lhe da resposta ou pelo menos do desprezo que mostrara pela sua nobre tentativa de paz Muley-Moluk disse indignado.

-- Peior para elle. Sobre um ladrilho podre da Africa darei duas batalhas ao rei de Portugal.

D. Sebastião rejubilava.

A azafama era enorme em Lisboa, nos estaleiros onde os operários trabalhavam até os domingos, com licença prévia da egreja.

Pelas ruas, pelas praças era um inferno. A cidade era um quartel de soldados estrangeiros, falando todas as línguas, o hespanhol, o italiano, o allemão; com fatos de todas as cores, com armas de todos os feitios.

Havia descantes, jogos, rixas.

De uma vez travaram-se allemães e portuguezes á Boa Vista e houve mortes. De outra vez foram os portuguezes e os hespanhoes que se bateram no Rocio, como em campo de guerra.

D. Sebastião condemnou á morte todo aquelle que puxasse pela espada, nas ruas de Lisboa.

Foi improficua a ordem. Os marinheiros eram de má raça e a ordem só começou a reinar na cidade quando os foram separando para as praias onde tinham de embarcar.

Emfim, reunidos todos os elementos de homens e de armas que fôra possivel arranjar, promptas as galés, calados todos os murmurios, pela empreza inevitavel, D. Sebastião faz o seu testamento, escreve-o elle proprio, manda buscar a Santa Cruz de Coimbra a espada de Affonso Henriques, e com uma

bandeira nova bordada ricamente, uma corôa d'oiro fechada -- corôa de imperador, -- com o sermão já feito para a coroação pelo confessôr, manda

embarcar.

Dez dias depois, a 25 de julho, por um vento favoravel a frota de oitocentas velas, levando a seu bordo dezoito mil homens, volta as proas á barra e parte no meio de lagrimas, de preces de uns, de maldições do maior numero dos que ficavam.

Quem ia doido de alegria era o rei.

A batalha

Tinha vencido todas as difficuldades. A sua epilepsia tinha-o armado contra todas as más vontades, contra todos os bons conselhos, contra todas as boas razões dos velhos generaes, dos experientes. Vencera todos, só lhe faltava vencer Muley-Moluk e isso era questão de poucos dias; a Africa avisinhava-se e elle estava, lá, a espera-lo.

O rei ia doido de alegria e deixava outro não menos alegre a expial-o, a seguil-o e a rir-se -- Filippe II.

A frota chegou a Lagos onde embarcou as tropas do Algarve e a Cadiz onde esperou os corpos auxiliares hespanhoes.

A 6 de julho chegava a Tanger onde o xerife Muley-Hamed se juntou ao rei com o seu fraco contingente.

De Tanger embarcaram para Arzilla.

Como o ambito da praça não comportava tanta gente, acamparam fôra dos muros e no areial erguiam-se, batidas pelo sol, duas mil tendas.

D. Sebastião com a preoccupação de que houvesse qualquer combate sem que elle estivesse presente veio collocar a sua tenda real no meio do acampamento, fóra dos muros.

Com a mania da valentia, prohibiu que se cercasse o arraial com estacadas, que se abrissem fossos.

Os cortezãos, aprovavam-lhe as inconsciencias todas -- manha de cortezãos -- garantindo-lhe que os arabes não ousariam approximar-se, sequer, das tendas onde fluctuasse a bandeira do rei de Portugal!

Esperaram-se doze dias pelas bagagens, e a espera fez-se no meio de folias, de jogos, de rixas.

N'um reconhecimento dos soldados de Muley-Moluk, D. Sebastião correu sobre elles, e, como elles fugissem, imaginou ter ganho uma grande victoria, e mandou dizer para Lisboa, ao conselho, que os arabes tinham apanhado a primeira lição.

A si proprio se illudia, querendo illudir os outros? Não; o capitão de Deus estava convencido de que era o terror dos mouros.

Homens e cousas a postos, o rei reuniu o conselho de guerra.

Era apenas uma cerimonia.

D. Sebastião não tinha a menor tenção de se sujeitar ás suas resoluções; mas era costume, fê-lo.

E, logo appareceram tres opiniões:

Uns diziam: embarque-se imediatamente e vamos por mar sitiar e tomar Larache.

Diziam outros: vamos por terra; mas sempre ao longo da costa, para não se perder o amparo da esquadra.

A terceira opinião, a conforme com a vontade do rei, era a de entrar pela terra dentro, pelo caminho mais curto e encontrar o inimigo o mais depressa possivel.

Era a peior, mas como era a que elle proprio sugerira, aprovou-a logo.

Então o conde de Vimioso protestou. -- Era o mais insensato dos planos, disse.

-- É preciso pensar nos perigos de uma longa marcha incerta, cheia de perigos por desconhecimento completo dos caminhos.

-- Vá-se por mar; d'aqui a Larache são 6 horas. Ataca-la-hemos por terra e por mar; num momento será nossa. Conquistada teremos um hospital para

doentes e feridos, um logar seguro para as bagagens, um quartel general para centro de operação. A bahia é excelente para recebermos qualquer reforço.

Ora o rei não concordava.

Elle não ia á Africa para conquistar Larache.

Elle ia para se bater; para espantar pela audacia a barbaria e a Europa. D. Sebastião não era um general, um rei politico batendo-se pela gloria e augmento do seu paiz, era um cavalleiro andante, cuja dama era a fama universal que ambicionava do maior dos guerreiros, do mais valente dos homens.

Elle queria perigos, não queria conquistas faceis; elle queria fazer tremer a Africa com as patas do seu cavallo, como um Attila.

Oppoz-se claramente ao Vimioso, e seguiram-no, appoiando-o, os cortezãos amigos, os lisongeiros, os que não queriam perder a sua graça e a sua amizade, os timidos e os servis.

E, como todos percebessem que o rei queria ir por terra e que era inutil contradizel-o, a discussão affrouxou e a marcha por terra -- direita a Alcacer-Kibir -- ficou assente

Ora, n'essa noite chegaram ao arraial um frade, Fr. Roque do Espirito Santo, e Diogo da Palma, que vinham do interior de Marrocos e pediram para fallar ao rei.

Este mandou-os ir á sua tenda onde estava com varios fidalgos.

-- O que quereis? perguntou o rei.

-- Senhor, dar conta a Vossa Magestade -- foi D. Sebastião o primeiro rei que teve este tratamento -- das forças de Muley-Moluk.

-- São grandes?

-- Enormes, senhor.

-- Melhor. O seu acampamento é melhor do que o meu?

-- Bem melhor, replicou o frade.

-- Irei tomar-lh'o. Que mais quereis?

-- Dizer-vos que será loucura oppor o vosso exercito, pequeno como é, ao exercito do sultão que será quatro vezes maior.

-- Vindes aqui para dizer sandices, exclamou o rei, cheio de cholera, porque os fidalgos estavam ouvindo a informação. Não vos tolero conselhos...

E mandou-os prender.

Foi então que o barão d' Alvito, sahindo da tenda com o confessor do rei, lhe disse: -- Porque não prendemos este homem que está doido e que nos perde?

-- É tarde! disse o frade.

-- Ah! é? Então, padre nosso pelo rei, pelos vassallos, e pelo reino.

O rei chamou D. Diogo de Souza em segredo e disse-lhe: leve a frota para o porto de Larache e espere-nos ahi. Parta depois de nós.

O almirante partiu, como o rei lhe ordenava.

O arraial desfez-se como por encanto, e o rei, na vanguarda da brilhante cavalgada dos seus fidalgos cheios de sedas e oiro, de armas luzentes e

signas ao vento, seguido pelos terços allemães, pelos hespanhoes, pelos italianos, entrou pelo deserto.

Era a manhã de 29 de julho quando o exercito se poz em marcha, artilheria á frente, aos lados a cavallaria em esquadrões, um a cuja frente ia o rei,

e outro o duque de Aveiro.

O calôr do sol e o calôr reflectido pelas areias em breve começa a quebrar os corpos dos homens e dos animaes.

Levaram-se viveres e agua para cinco dias, mas o calôr era asphyxiante, a transpiração excessiva fazia apparecer a sede, e ao fim do primeiro dia de

marcha, tinha se bebido quasi toda a agua.

A marcha era lenta, difficil, para a infanteria. Os soldados começavam a deixar-se ficar para traz, uns asphyxiados pelo calôr, outros extenuados pela marcha sobre a areia quente e movediça.

De vez em quando a cavallaria fazia alto, para deixar approximar os atrazados, e, um pouco mais agrupados, lá começavam de novo a arrastar-se mais do que andar pelas areias.

A primeira noite de descanço, o ar menos quente, a comida, reanimou um pouco as gentes; mas, no outro dia, recomeçou a caminhada debaixo do mesmo sol, sobre a mesma terra, despida de relva, areiosa, d'onde os pés, arrastando-se, levantavam nuvens de pó, qne se infiltrava pelo nariz, pela garganta, que inflammava os olhos.

Começaram as queixas, os murmurios de protesto; a agua tornava-se já escassa. Aonde ir procural-a? A planicie não tinha fim, o sol dardejava

inclemente, o chão queimava.

Os murmurios tornavam-se em apostrofes, em pragas, em vozes de rebelião.

Os commandantes começaram a perceber que tinham de dar remedio aos protestos. D'ahi a horas, viria a indisciplina, a revolta.

Aquillo não era marchar. No segundo dia tinha-se andado, apenas, tres leguas, o máximo, e havia agua: estava quasi a acabar; quando faltasse de

todo, o que seria?

Foram ter com o rei.

-- É preciso voltar, meu senhor, é preciso voltar para traz, vamos para Arzilla e de lá, por mar para Larache.

O rei consentiu, o que espantou alguns. Teria D. Sebastião um momenuo de bom senso?

A situação era claramente dificil... mas o rei consentir, ser de opinião de retroceder...

Mandou-se Affonso Correia com quatrocentos cavalos voltar logo para Arzilia a prevenir, emquanto o exercito descançava um pouco, sob as tendas.

Pela noite apareceu outra vez Affonso Correia com os cavaleiros.

-- O que ha? perguntaram.

-- O que ha? é que a esquadra já lá não está.

-- Não está?

-- Logo depois de partirmos, partiu ella tambem.

-- Para onde?

-- Para Larache.

D. Sebastião teria a coragem de fazer hipocritamente um signal de desgosto? Talvez.

Não havia pois remedio, agora. Era andar para deante, custasse o que custasse, á procura da agua e de Muley-Moluk. Mal dispostos, aborrecidos ou

indignados, os soldados lá se foram levantando e marchando.

No outro dia, 2 de agosto, appareceu um rio -- o Makzem. Foi uma alegria. Começaram a marchar-lhe ao longo quando de subito, enire nuvens de pó começam a apparecer aqui e alli cavalleiros arabes.

Eram os espias; ao longe, muito ao longe, viam-se manchas negras pelo areal; era o exercito de Muley-Moluk. E, de então, os corredores arabes começaram a sua tarefa de cahir sobre os mais atrazados, de atacar, em corrida doida, a rectaguarda do exercito.

A marcha complicava-se com mais esta difficuldade.

-- Vamos sempre pelo lado do rio, até Larache, propunham uns.

-- Vamos a direito ter com elle, diziam os que sabiam que assim agradavam ao rei.

-- É esse o caminho, confirmou D. Sebastião para a frente!

Muley-Moluk, que, ao ver o exercito do rei seguir a margem do rio, imaginou que se dirigia a Larache para a tomar, diz-se que exclamou: Larache está perdida; ninguem lhe poderá valer.

Mas quando viu que o exercito deixava a margem do rio e se dirigia para elle, teve um momento de alegria pensando para si: agora são elles que estarão perdidos.

Habil general, Muley-Moluk começou a marchar em sentido contrario ao de D. Sebastião e aproveitou uma pequena iminencia que havia ao meio da planicie para esconder a artilheria.

Colocou o seu exercito de quarenta mil homens, na maior parte cavaleiros, na fórma vulgar arabe de combater, em meia lua ou crescente, disfarçou completamente a artilheria com ramagem e hervas, encarregou um dos seus officiaes de cavalaria de voltear o exercito portuguez logo ao começar da batalha, e de atacar a rectaguarda, e um outro de escaramuçar continuamente com as columnas portuguezas pelos lados.

Tudo ordenado, esperou. E, esperou com a morte no coração, disfarçando sofrimentos horriveis, porque estava envenenado, falando ás tropas com belas palavras de incitamento e de confiança.

Andava n'uma berlinda, palido, com uma serenidade absoluta, de grande rei -- de grande capitão.

O exercito aclamava o, ouvindo-o.

D. Sebastião ao vêr aproximarem- se os inimigos enchia-se do ardor e de coragem.

A coragem que augmentava no rei diminuia nos que o cercavam.

A tropa estava cançada, abatida pela marcha.

Sentia-se a má vontade em todos, a convicção clara do perigo immenso ante o formidavel exercito fronteiro.

Um fidalgo exclamava: -- Que infinita moirama se descobre!

D. Sebastião replicou, de golpe:

-- Não é tanta como vos faz ver o mêdo.

Antes de se começar a formar o exercito em ordem de batalha, alguns fidalgos foram ter com D. Sebastião.

-- Vimos pardir a v. magestade que não assigne a morte da nossa terra.

-- Como?

-- Combatendo, agora.

-- Porquê!

Somos um punhado de homens, n'este deserto, envolvidos d'aqui a pouco por essas duas foices de milhares de cavaleiros que se abrem deante de nós.

-- E ousaes dizer-me isso, vós? n'este momento? Ide aos vossos lugares, mandou o rei, n'um movimento de colera insustida e agora justa.

Eram os que o tinham aconselhado á marcha.

Entretanto D. Duarte de Menezes formava o exercito para a peleja.

Na vanguarda, os fidalgos, á esquerda os italianos, á direita os arcabuzeiros de Tanger, o terço alemão e o hespanhol.

Ao centro os terços de Lisboa e do Alemtejo; á rectaguarda os terços de Santarem e do Algarve.

Os carros e carroças flanqueavam as columnas; ao centro iam as bagagens.

Uma companhia de arcabuzeiros cobria a rectaguarda e nas duas alas marchava a cavalaria.

Na frente da columna marchava a artilheria.

Formado o exercito, D. Sebastião percorria as fileiras com o rosto alegre, enthusiasmado, dando ordem terminante para que ninguem atacasse senão á sua voz.

Começaram a mover-se, lentamente, um para o outro os dois exercitos, o portuguez cerrado e unido quanto podia; o arabe abrindo n'um movimento

lento as suas enormes tenazes.

Ao ter a vanguarda portugueza ao alcance do tiro, a artilheria, escondida, e só então reconhecida pelos nossos, rompeu o fogo.

Fez-se o pannico, pelo ataque imprevisto, mas que serenou em breve, não de todo, mas em grande parte. A imobilidade do exercito dava alvo aos

tiros.

Que fazia D. Sebastião?

Imovel como um espectro, n'um d'esses momentos dos epilepticos, n'um alheiamente de tudo o que o cercava, olhava e não via, escutava e não

ouvia.

E a artilheria continuava a dizimar a vanguarda.

-- Então, senhor, quereis que morramos aqui, todos, parados? Grilou-lhe do seu logar, á frente dos fidalgos -- aventureiros como lhes chamavam, --

Bernardino Pachêco?

O rei não o ouviu. Sereno e imovel, ficou, Jorge de Albuquerque Coelho, que estava perto de D. Sebastião, corre junto d'elle e brada lhe:

-- Senhor, não vedes nem ouvides? não vêdes os estragos que faz a artilheria? Porque esperaes?

D. Sebastião acordou. Levantou a cabeça, correu com a vista o sitio da peleja, depois o exercito inteiro, e mandou a um trombeta que d'esse o

signal de Ave-Maria.

O jesuita Alexandre de Mattos, de cima do seu cavallo, levantou ao alto um crucifixo, os homens de pé ajoelharam na areia, curvaram-se nas selas os cavaleiros e um silencio grave reinou, por instantes, no exercito abatido.

Ergueram-se os infantes, firmaram-se nas selas os cavaleiros, florearam as bandeiras, soaram os clarins e os tambores e esperou-se o signal do ataque.

Não se ouviu; mas viu-se D, Sebastião abalar, de chofre, á frente dos seus cavaleiros, de encontro aos mouros e sumir-se na peleja.

Brava e rija carga destroçou a cavalaria arabe que mais perto estava, rompendo-lhe a cohesão, a ordem.

O exercito porém... via. El-rei prohibira atacar sem sua ordem; os capitães esperavam.

D. Duarte de Menezes, menos paciente, seguiu atraz do rei a sustentar-lhe a furia; mas o resto do exercito não se moveu, disciplinado e não calmo.

A immobilidade era a derrota.

Olhavam-se uns e outros na irresolução da desobediencia, quando o terço dos aventureiros resolveu desobedecer.

A ordem não vinha; que faziam ali? Abalaram de impeto e atraz d'elles os arcabuzeiros de Tanger.

A carga foi heroica. Deante da columna rasgou-se uma avenida enorme e os bravos cavalleiros toparam com a liteira onde Muley Moluk, moribundo, assistia ao desastre.

De tal indole era o arabe, que pediu o cavallo, julgando a batalha em perigo; mas ao montar, faltaram-lhe as forças, vergaram-lhe as pernas e cahiu nos braços dos officiaes, pondo o dedo nos labios para indicar que guardassem silencio sobre a sua morte.

E morreu!

Estaria perdida talvez para os arabes a batalha, se o exercito portuguez atacasse, n'esse momento, inteiro, ousado, na perspectiva da victoria que sorria; mas uma palavra, um aviso intempestivo, aniquilou a situação ganha.

Um dos capitães, ao vêr paralisado o exercito e avançados, de mais, os terços destacados, receando por elles, sem auxilio, gritou: ter, ter.

A esta voz o impeto dos que se batiam afrouxou, indagando a causa, entre espanto e receio.

Voz egual repetiu a primeira aos esquadrões do rei e de D. Duarte de Menezes.

Instinctivamente, houve um movimento de paragem, seguido de um outro de recuo.

Foi a perda da batalha.

Os arabes, ao verem hesitar e recuar os esquadrões, imaginam que qualquer cousa extraordinaria se passa, ou que é o mêdo que faz recuar os portuguezes, unem-se, excitam-se com gritos, animam-se, carregam com furia brava.

A vanguarda desordena-se e vem lançar a confusão e a baralha nos terços formados em columna.

Ao mesmo tempo a cavalaria de Abdel-Melek ataca n'uma carga impetuosa a rectaguarda, os cornos do crescente apertam as alas e a chacina começa, na confusão horrivel dos corpos, entre gritos, entre pragas!

Então o campo de batalha torna-se um circo de combates irregulares, de proezas homericas, onde cada um vae vender a vida, cara, quanto lh'o permitirem a força e o instincto.

No meio do grupo dos seus cavalleiros, grupo já disinado, mas ainda corajoso e feroz, D. Sebastião, ao vêr perdida a batalha, a caça brava dos cavaleiros arabes aos peões fugitivos, aos cavaleiros apeados, tem um d'estes momentos de colera summa, de dôr, de raiva; e, notando a artilharia em risco de ser tomada, precipita-se como um louco brandindo a espada, rasgando corpos, disimando, matando!

Segue-o o grupo dos seus cavaleiros, a flôr da nobreza, dedicada e audaz, resgatando pela bravura a imprudencia dos poucos annos.

É esta a celebre carga onde o duque d'Aveiro, o duque de Bragança, D. Jayme, D. João de Mendonça e tantos outros, encontraram a morte.

O rei esse não morrera ainda. Batia-se, batia-se sempre, emquanto a seu lado os defensores iam a pouco e pouco cahindo, exanimes, golpeados de feridas.

Era como um leão do deserto, ferido, a defender a vida. Cahira-lhe o capacete, escorria-lhe o sangue pela testa; a armadura amolgada mostrava a grandeza dos choques sofridos; mas na clareira que a sua espada abria, hirto na sela, o olhar injectado, os arabes olhavam-no com mêdo, e cahiam

pelo chão quando elle arrancava n'um impeto, semeando o terror e a morte.

O prior do Crato coberto de sangue, roto, tirada a armadura, corria ao rei, dizendo-lhe:

-- Tendes aquella aberta, salvai-vos... e mostrava-lh'a com o dedo.

-- Fugir?

-- Que remedio senhor? Que outro tendes?

-- O do céo, disse sinistro o rei, se os nossos males o merecerem.

-- Se não fugis, morrereis! disse o prior, como a obriga-lo a aceitar-lhe o conselho.

Olhou-o D. Sebastião, fitamente. Um riso estranho, feito de agonias e de raivas lhe passou pelos labios, e, com voz serena, d'uma frieza de morte,

disse:

-- Morrer! sim; mas devagar!

Devagar! nunca em batalha alguma do mundo se disse cousa egual.

Nunca, ouvido humano escutou, em circumstancia tal, tão grande, tão eloquente, tão extraordinaria e reveladora phrase!

É uma alma que se fez som; a alma d'um heroe, a alma d'um ser que sintetisa uma raça de bravos, um povo de valentes até á loucura!

Morrer mas... devagar!

Devagar! É um poema de orgulho, de grandeza humana.

Sente-se que está fóra da humanidade normal, que só a podia dizer. . um doido! -- D. Sebastião.

E, lá partiu uma e outra vez, cada vez mais desacompanhado, ceifando corpos, abrindo clareiras.

Um a um os cavalleiros, o Vimioso, o filho, o conde da Vidigueira, D. Rodrigo de Mello, o bispo de Coimbra, e tantos outros, até Christovam de

Tavora, o intimo, o amigo até á morte, cahiram para não mais se erguerem.

Ao vê-lo só, a chusma rodeou o.

Rodeava-o, mas não avançava.

Era terrivel de vêr. O rosto afogueado, sujo de pó e suor, a espada a escorrer sangue, empunhada n'um aperto brutal como se ella e a mão fossem ambas de ferro.

Ninguem se chegava.

O olhar selvagem do rei espreitava o menor movimento e o fita-lo fazia recuar.

Farto da espectativa ia lançar-se n'um novo arranco para matar, quando se ouviu um tiro de arcabuz.

O rei vacilou na sela; viu-se-lhe na testa uma mancha negra d'onde o sangue jorrou; a mão esquerda largou as redeas, a direita a espada; o corpo

inclinou para o lado, vacilou, desiquilibrou-se, cahiu, redondo, morto!

Rugiu a turba! Como cães esfaimados lançaram-se a elle e arrancaram-lhe as armas, as esporas, o fato.

D'ahi a minutos o rei estava nú.

O imperio de Marrocos eram sete palmos de areia quente e ensanguentada; o manto era a nudez; a corôa de oiro transformára-se na pasta de sangue que lhe aglutinava os cabellos e os repiques festivos da corôação mandou-os talvez dar Filipe II quando lhe soube do fim!

A flôr da cavallaria portugueza morrera, em impetos de bravura e de dedicação ao seu rei.

Em volta do tresloucado monarcha a lança e a espada arabes tinham feito cahir, um a um, o esquadrão dos bravos a quem só a morte paralisara as espadas.

Raros viviam da falange heroica e esses prisioneiros de guerra.

No resto do exercito, a desordem depois da imobilidade, causara o mais espantoso desastre.

Livres dos ataques bravos dos cavalleiros do rei e do duque d'Aveiro, os arabes, que, cheios de animo, crentes na victoria que se via proxima,

começaram a fechar os extremos da meia lua como tenaz de ferro e a envolver o pequeno exercito, cançado, sobre o qual cobria o ardor asphixiante do sol africano.

A carga simultanea, por todos os lados, baralhou, em breve, italianos, allemães, hespanhoes e portuguezes, que sem ordem, sem methodo se defendiam inutilmente.

Os que, corajosos ainda, valentes, não arredavam pé e combatiam como desesperados, pela salvação menos do que pelo brio, lá ficaram todos,

mortos ou presos.

Os que fugiam, eram caçados pela cavallaria ligeira que volteava á roda da batalha e raros puderam escapar-se.

Dos que se salvaram do cêrco, da peleja e dos corredores arabes, ao atravessarem o Makzem muitos morreram afogados, porque a maré sahira pelo

rio e engrossara a corrente.

Ainda muitos que conseguiram atravessar o rio, depois, no caminho de Arzilla, foram assaltados e mortos, pelas estradas, n'uma caçada com que os bandidos, descendo dos montes, completaram alista, enorme dos morticinios d'esse dia funesto.

Duzentos fidalgos, das primeiras casas de Portugal, morreram na batalha, e mais de nove mil soldados lá ficaram, estendidos, sobre as areias quentes do sol e humidas de sangue.

Morrera no começo da batalha Muley Moluk; minutos depois, crivado de golpes, exanime. D. Sebastião expirava; meia hora mais tarde, Muley-Hamed, perdida a esperança da victoria, receiando a prisão mais do que a morte, consegue sahir da peleja com alguns cavalleiros e dirige-se ao Makzem para o atravessar e recolher-se a Arzilla. Vae com o desespero da alma reflectido no rosto, o desventurado xerife.

Seguem-no, galopando, silenciosos, Sidi-Mura e Abdel-Kerin.

Chega-se á margem do rio. A corrente vae turva e grossa.

Quando Muley-Hamed vae a metter o cavallo á agua, Mura observa-lhe:

-- É perigoso passar o rio, aqui, agora, senhor.

Muley-Hamed olha-o com um terrivel olhar de censura. Mura cala-se e o xerife mete o cavallo á corrente.

Este, cançado, não pôde resistir ao estoque da agua, lucta momentos cointra ella, erguendo a cabeça, resfolgando alto.

A agua porém domina-o cada vez mais; afunda-o o peso do cavalleiro.

A margem está perto, um esforço ultimo e lerá pé. Faltou-lhe a força; a agua enovelou-lhe os membros: tombou de lado; volteou rapido... Cavallo e cavalleiro desaparecem para sempre ante os olhares aflictos dos espectadores consternados e mudos.

Era o terceiro rei que morria. A batalha ficou conhecida pela batalha dos tres reis... tres reis mortos n'esse dia!

Alcantara

O que foi a chegada a Lisboa da esquadra de Diogo de Souza, com os restos d'esse exercito brilhante, uns centos de homens, palidos como cadaveres, rôtos, esfaimados, calcule-se.

O que houve de gritos, de lagrimas, de tédéus, de imprecações, de pragas, de raivas, imagine-se lembiando os protestos, anteriores, á partida de tantos á que a reprovaram e a série de lutos e amarguras em todo o paiz, onde quasi não houve uma casa em que não houvesse um morto a chorar.

As mulheres andavam pelas ruas, aos magotes, a gritar pelos filhos, pelos maridos, pelos pães.

Desgrenhavam-se, arrancavam os cabellos, contorciam-se pelo chão, como possessas.

Pediam o resgate dos prisioneiros.

Que remedio? arranjou-se dinheiro, e o reino, já miseravel pelas ultimas tres administrações, ficou sem pelle.

Á tragedia de Africa ia succeder a tragedia nacional.

Ao desastre de D. Sebastião, seguiu-se, logo, outro: a aclamação do Cardeal D. Henrique. Jesuita, mediocre, invejoso e ambicioso, tocava, em fim, a meta dos seus desejos, o sonho da sua vida -- era rei!

Estava velho, tropego; derrancado da cabeça e do estomago, a ter de sustentar-se do leite das suas amas como se fosse uma creança de mama.

Invadiam as egrejas a rezar, assaltavam o paço para, exigirem do Cardeal que desse dinheiro para libertar os presos.

Reinou durante mezes e quando foi a corôar á egreja do hospital de Todos os Santos, magro, enfezado, curvo, envolto nas amplas purpuras cardinalicias, montado n'um cavallo, rodeado pela nobreza velha -- que a 'nova ficara em Alcacer -- representava bem a imagem d'um paiz agonisante n'um ultimo arremêdo de vida, que tinha um ar ao mesmo tempo carnavalesco e tragico.

O povo viu passar aquella procissão espectral, a alma confrangida, grave e soturna, na sua desconfiança, nos seus mêdos, na sua miseria.

Mal o Cardeal foi feito rei, começaram as intrigas dos pretendentes, a uma corôa que ia vagar em breve, que uma cabeça de velho decrepito mal podia suster e que Filippe II começava a alcançar, comprando com ouro e com promessas a fidalguia inteira.

Não ha dôr que não acabe e os fidalgos empobrecidos acharam melhor venderem-se a Castella, e as damas de tanto chorar os maridos, pelas egre-

jas, de tanto rezar e andar com padres, começaram a fazer d'aquellas salões, dos officios saraus, onde se divertiam, palestravam e namoravam á farta.

A galanteria tinha-se aninhado sob as naves do templo e tão escandalosamente que um escriptor do tempo dizia: «creio que se os maridos soubessem de como as mulheres se portam prefiririam ficar lá presos do que vir para cá, para as não verem.»

Como um mal nunca vem só, com o cardeal veiu a peste.

Á peste, ás intrigas dos pretendentes que lhe davam cabo da cabeça fugiu para Almeirim. Reuniu côrtes, para determinarem a sucessão e como não houvesse accôrdo, rebentou-lhe debaixo da calva, uma ideia luminosa -- cazar-se! Quasi 70 annos, decreépito, ainda a mamar e cazar!

Precisava ter um filho coitado, e todos os pretendentes sérios como Filippe II, a duqueza de Bragança, D. Antonio Prior do Crato e os divertidos, como o Papa, Catharina de Medicis rainha de França, e Izabel de Inglaterra e o duque de Saboia, ficariam logrados.

Quando lhe souberam da ideia riram-se.

Mas o cardeal é que estava aferrado a ella e mandou pedir licença ao papa para o fazer.

Foi preciso que Filippe II trabalhasse em Roma, seriamente, para demorar a licença.

E tinha razão o Filippe: os homens que casam aos setenta annos, têem sempre filhos.

E, aqui está como a unica virtude d'este cardeal -- a castidade -- até essa foi prejudicial ao paiz. Não fôsse elle um casto, tivesse como toda a gente,

então, os seus bastardos, perfilhal-os-hia, e, um, seria rei.

O quadro rapido d'este tempo é este. Um reino despovoado, pobrissimo e cheio de fome. Os nomes mais gloriosos do Portugal, a começar pelos heroes da India, vendidos; umas côrtes subservientes, retoricas, balofas, a pedir á realeza aquillo que deviam decretar e de inúteis a descambarem em prejudiciaes por abdicarem dos seus direitos, por, em vez de exigirem, suppl içarem.

Os pretendentes intrigando-se mutuamente, sacrificando tudo ás suas pretenções e ao topo d'este calvario, um velho, a chorar, a rezar e a mamar.

Realmente, a figura d'este rei chega a meter dó.

Metido no meio de tres pretendentes ferrenhos, a ter de conferenciar e de desenvencilhar da diplomacia de Christovam de Moura, sem saber o que ha de fazer; hoje por D. Filippe, amanhã pela duqueza de Bragança, depois por D. Antonio; atrapalhado nas côrtes, medroso da peste, contrariado nas nupcias, sente-se, vê-se, a consolação d'esse estafado homem, quando, depois de uma larga conferencia politica, extenuante, a Maria da Motta apparecesse a porta da camará e afastado o reposteiro, com uma toalha á cinta, deitando as mamas de fóra, exclamasse, solicita e carinhosa:

-- Meu senhor, está o jantar na meza!

Que alivio!

Nem o leite das amas, nem a esperança de casar, poderam sustentar a vida ao velho enfermo.

Dezesete mezes depois de coroado, morreu; tão amado, tão querido, que o povo, á roda do paço de Almeirim, emquanto elle agonisava, lhe cantava debaixo das janellas:

Viva El-Rei D. Henrique

No inferno, muitos annos;

Pois deixou, em testamento,

Portugal aos castelhanos.

Não se póde exigir mais amabilidade nem mais reconhecimento de um povo agradecido e justo.

É certo que elle deixara o paiz a Filippe II; mas um resto de povo, onde vivia ainda a alma de uma raça cheia de orgulho e de valor, protestou e collocou-se ao lado do prior do Crato, figura nobre e ousada, quanto infeliz.

Agrupou-se ao seu ladoíe fel-o rei. Quando o hespanhol, obtidas pela traição as praças fortes da fronteira, se dirigia a Lisboa, D. Antonio veiu de Santarem, com o conde de Vimioso, o Bispo da

Guarda, D: Manuel de Portugal, D. Duarte de Castro e Diogo Botelho, e entrou na capital a preparar-lhe a defeza.

Os nobres e os ricos tinham abandonado a cidade.

Só os miseraveis, os ladrões, os escravos a habitavam. Foi d'esses o exercito do D. Antonio; uns por vontade, outros á força.

Todavia, era n'esta canalha que estava a alma da patria; era n'esses oito mil (?) homens, ignorantes da tactica de guerra, novos nos combates, pobremente vestidos, mal pagos, que residia a ultima esperança dos ultimos portuguezes.

Fraca esperança, perante a marcha victoriosa do duque d'Alba, grande general e grande carrasco, que tomada Setubal e Cascaes, se chegava a Lisboa, com vinte mil homens dos melhores soldados. Habil general e homem de verdadeira coragem, D. Antonio não trepidou, e fortificou-se na margem esquerda de Alcantara.

Ao outro lado chegou o duque d'Alba.

Fez o duque a inspecção das posições de D. Antonio e após ella o sou plano de batalha.

Ao romper do dia 25 d'agosto de 1560 mandou o duque a artilharia de D. Francês de Alava romper o ataque, e pedindo uma cadeira sentou-se commodamente n'um outeiro para vêr a batalha.

Os italianos de Prospero Colona que formavam o centro do exercito hespanhol investiram com os portuguezes que defendiam a ponte e levaram-nos de vencida.

Um frade Fstevão Pinheiro, mais guerreiro do que frade, grita aos que recuam, reune-os, carrega sobre os italianos e fal-os fugir em tropel. Os fogos da artilharia cruzam-se. No emtanto D. Sancho d'Avila passa o rio, acima da ponte, um sitio não defendido, e vem atacar pela rectaguarda as fortificações. Deram por elle quando lhes estava ao pé.

Prospero Colona reune os seus homens e com os arcabuzeiros .de Antonio Benevides retoma a ponte

D. Fernando de Toledo, seguindo o leito do rio, vem atacar a ala direita portugueza.

Aos ataques simultaneos, as milicias de D. Antonio perdem toda a coragem; invade-as o terror e debandam para todos os lados, n'um terrivel panico, invencivel.

Cheio de colera, bravo, o prior cahe sobre a ponte com un punhado de companheiros, derrotados primeiros e varre como um turbilhão as tropas italianas.

Inutil bravura. Os seus, fogem e vão lá chamal os, gritar-lhes, pôr-lhes as lanças aos peitos.

Desvairados fogem para a planura onde a artilharia os abate e a cavallaria os esmaga.

N'uma hora tudo estava perdido.

-- Vamos, senhor, gritou o conde de Vimioso a D. Antonio, vendo-o ferido no rosto, nada temos que fazer aqui, vamos para Lisboa.

E como visse D. Antonio prompto a investir, novamente, contra o inimigo, observou com intimativa:

-- Quereis que fiquemos prisioneiros, para seguirmos o cortejo do duque d' Alba?

D. Antonio viu razão do conde e seguido por este, por D Manuel de Portugal, por Diogo Botelho, por D. Duarte de Castro, metteu pela

estrada de Lisboa, atravessou a cidade e foi para Santarem.

É preciso dizer que a esquadra portugueza, 36 naus e nove galeões que no Tejo apoiava e protegia o exercito de terra, rendeu-se ao ataque dos marinheiros do marquez de Santa Cruz, em navios de remos.

Vendera-se, miseravelmente!

Esta foi a batalha d'Alcantara, se batalha se lhe podo chamar o não escaramuça, nome que melhor lhe quadra.

Tal como foi, representou para o coração dos ultimos portuguezes, uma decepção cruel, a descrença, o desespero.

Portugal estava, irremediavelmente, perdido.

A mão do demonio do meio dia ia carregar sobre elle, brutal, esmagadoramente. Portugal morrera; era uma provincia da Hespanha e não havia coração que se não doesse f

Os corações dignos, é claro; porque os havia; sobre tudo no povo, nos rudes, nos sinceros, n'aquelles em quem, nem a inveja, nem a vaidade, nem a avareza, nem o interesse, nem o orgulho, podem apagar, nunca, os sentimentos intimos, nobres, que protegem e validam atravez dos seculos as raça que se elevam sobre as outras -- e que são a sua alma collectiva.

Uma tristeza cruel, um luto enorme desceu sobre o paiz!

Retrahiram-se nas suas dores as almas justas; emquanto os vilões do clero e da nobreza saudavam no duque de Alba o redemptor e escovavam as casacas para receberem a visita de D. Filippe --

o prudente!

D. Antonio foge para o norte e atraz d'elle vae Sancho d'Avila.

Perseguem-no como a um lobo e pelas casas das serras, pelas choupanas de colmo, acolhem-no p velam-lho o somno os partidários, os rusticos, o povo singello das aldeias.

Põem-lhe a cabeça a premio. Ninguem o trae.

Por milagre, consegue embarcar para Dieppe, de lá para Londres

A sua vida no exilio é um poema de trabalho, de lucta, de sacrificios, de miseria, de honradez, de pobreza.

N'ella morreu em Paris, sem pão nem para elle nem para os filhos, o 18.º rei de Portugal, D. Antonio I o prior do Crato, o filho da Pelicana, o mais calumniado, o mais infeliz dos reis da nossa terra.

E, nem rei lhe chamam os historiadores! A subserviencia vil leva a contar, apenas, como misero pretendente, um rei popular, tanto como D. João I e mil vezes mais nobre do que este; um dos mais

dignos homens, um dos mais valentes, dos mais nobres caracteres de Portugal.

O Sebastianismo

A um povo envilecido pela fome, dizimado pela morte, na Africa, na India, no mar; opprimido pelo frade, roubado pelo nobre, bestialisado pelo jesuita, emparvecido na sua ignorancia absoluta, não ise podem pedir acções heroicas, rasgos de audacia, energias masculas.

O povo portuguez que, desde D. João II, começara a perder as suas nobres qualidades de cara-

cter> pela perda das regalias, ao chegar a D. Sebastião já não era um povo, era uma malta estupida e inconsciente, um rebanho timido de escravos.

Miseravelmente supersticioso e credulo, mergulha n'aquella apagada e vil tristeza», modorra moral, symthoma de aborrecimento, de indifferença pelas cousas da terra, de descrença na melhoria da doença, que reputa mortal.

A sua cabeça medita, exhaurida; no seu cerebro doente apparecem os sonhos, as illusões, cousas sobrenaturaes e loucas.

Era o delirio da fome, da servidão, da miseria!

Estava-se na terra da escravidão; quem levaria á terra prometida, áquelle maravilhoso Portugal do passado, cheio de riquezas, de respeito, do gloria?

Porque não se havia de voltar? Havia de morrer-se assim?

Então appaieceram os profetas, e, logicamente, adivinhou-se a -- Messias.

O Messias, era D. Sebastião -- o Sebastianismo nasceu.

A desventura que ferira o rei, levando com a sua pessoa a independencia de Portugal, era uma punição, um castigo ide peccados perante Deus.

Que cidade de vicios não era Lisboa!

Era uma crise passageira; depois d'ella viria novamente a liberdade do poder. Portugal resurgiria maior ainda, e, o seu rei, tendo assentado a paz universal, no mundo christão, tornar-se-hia o maior rei da terra, formando e regendo o quinto imperio.

Assim o começaram a dizer os profetas populares, Simão Gomes o sapateiro santo, e Gonçalo Anneb Bandarra, outro sapateiro, não menos santo, naturalmente.

Estes, exprimem-se em versos vulgares, á altura do vulgo

Não faltaram porém os profetas cotados, santos, doutores da egreja e até santas, faltando para as pessoas entendidas.

Santo Isidro, São Cyrillo, S. Theophilo, e outros; Santa Thereza, soror Martha, soror Leonor Rodrigues, até Nostrodamus o astrologo e a sibila Erithrea, consultados, todos tinham faltado claramente, de D. Sebastião, de Alcacer-Kibir, do dominio hespanhol.

Tanta gente a dizer estas cousas e ninguem tinha dado por isso. A cada quadra nova do Bandarra; a cada revelação descoberta n'um S. Cirillo ou em Santa Thereza os sebastianistas exultavam, e lá iam para as margens do Tejo, nas manhãs nevoentas a vêr entrar a galé doirada que devia trazer no sei! seio o príncipe loiro, o salvador, o desejado

Emquanto houve a possibilidade de existir D. Sebastião, ^o governo hespanhol sempre se incommodava com o grupo de sebastianistas que se tomava, pouco a pouco, em legião.

Mas no dia em que era mathematicamente impossivel admittir a existencia do rei, deixou-os em paz, sem vigilância e sem receio.

Então ficou uma seita de malucos mais ou menos ferrenhos a admittir o encantamento do rei n'uma ilha mysteriosa, á espera do momento azado para desembarcar no Tejo.

Teve a mesma sorte, D. Sebastião, na imaginação popular, que o rei inglez Artus, tambem encantado, pela lenda, n'uma ilha mysteriosa, para salvar, no momento proprio, os celtas vencidos.

Como D. Sebastião, até hoje, não appareceu mais.

A regra para os Messias, annunciada pelos profetas, como salvadores, é esta: o não apparecerem.

Quando apparecem, ou os fazem apparecer, acontece-lhes como ao Messias, salvador do povo judaico -- nem a si proprios se salvam!

Os judeus não voltaram mais, ricos e poderosos ás margens do seu Jordão; Jerasalem não foi redimida e o Messias foi crucificado como um desordeiro, perigoso para o prestigio de Roma e para o socego de Pilatos.

Cousa curiosa é esta em Portugal.

É inegavel, pelo testemunho geral, de todos os escriptores que pintaram o estado do povo portuguez, depois do Alcacer-Kibir, que o mais profundo desalento o invadira, que a descrença na independencia avassalava todos os Animos, de tal modo que tomou admissivel e justo para altos espiritos, como Bartholomeu dos Martyres e o bispo Jeronymo Osorio, o dominio hespanhol.

Não fallarei já dos fidalgos portuguezes, auctores das mais brilhantes e heroicas acções militares na Africa e na India, que aceitaram, sem repugnancia da consciencia -- porque não é licito suppôr que só a ganancia de ouro corrompesse caracteres de

tão alta monta como os d'esses velhos encanecidos no serviço de Portugal, -- que aceitaram, repito, o rei hespanhol, o dominio estrangeiro.

O povo portuguez estava, pois, completamente morto, para a reacção, para o protesto.

Porque não morreu?

Porque, sessenta annos depois, se revoltou e se emancipou de novo?

Que vida reanimou o cadaver? Porque não apodreceu ,de todo ,e se não fundiu na monarchia hespanhola, lentamente, até desapparecer como nação e viver, como tantas outras, provincia do imperio ,de Filippe II?

A resposta, vae fazer sorrir muita gente. Foi o sebastianismo que o salvou; foram os sebastianistas, os troçados e tantas vezes ridiculos, que obstaram a que morresse.

Nenhum historiador, até hoje precisou este facto. Antes tem considerado a seita, como uma legião de pobres diabos, de cabeças mais ou menos desorganisadas e nenhum d'elles lhe ligou importancia social. Visionarios, inofensivos dementes.

Pois foram elles, no paiz, quem synthetisou e fez viver com as suas esperanças e crenças ferrenhas, com as suas convicções absolutas, rastejando pela loucura, esse fundo celtico -- se é

celtico -- da raça portugueza: a tennacidade e a poesia. Tenacidade de marinheiros; poesia do aventureiros.

Portugal era, no começo do seculo XVI uma raça historica. Não ha que duvidal-o. O pequeno paiz que, pela vontade dos seus primeiros reis e pela espada dos seus heroes, consegue constituir-se e formar um reino independente, é o mesmo que consegue, no seculo XVI, o maior emporio commercial que já vira o mundo, em Lisboa.

Esse povo que n'uma persistencia tenaz de seculos, torneia a Africa, descobre a India, se assenhoreia do commercio do Oriente, povoa o Brazil, subjuga a Asia, é porque possue uma série de

qualidades e de faculdades communs, comunidade do pensamentos e de sentimentos, um ponto de vista, um fim superior e consciente, uma physiologia e uma psycologia proprias, o que constitue,

scientificamente, a alma d'uma raça.

Levou: quatro seculos a formar, o que é pouco, vista a lentidão com que se reconhece formarem-se ias raças historicas; mas o que ss percebe, pela semelhança dos elementos que formaram o povo portuguez.

Ora, se a formação de uma raça historica leva seculos para se dar, leva geralmente seculos para desapparecer. Os allemães, os hungaros, os slavos que vivem sob o dominio da Austria, são allemães, hungaros e slavos e não austriacos.

Em Hespanha os catallães são catallães; na Inglaterra os irlandezes são irlandezes, dominados por seculos.

Facto claro e persistente que leva um escriptor francez a dizer: que a raça deve ser considerada como um ser permanente liberto da acção do tempo: exaggero que se desculpa, pela intenção.

Quem foi em Portugal o depositario das qualidades da 'alma portugueza? o cofre onde se guardou o thesouro das qualidades moraes? -- ia a dizer religiosas porque a moral ó uma religião -- , quem foi?

A nobreza? essa vendera-se. O clero? conformara-se.

Foi o sebastianismo, que passou a ser a religião dos não conformados, dos protestantes, dos intransigentes.

Viveu na alma do povo, o que quer dizer na profundidade originaria de todos os sentimentos nobres e poeticos de uma nacionalidade.

Para esta religião vieram, em breve, os fidalgos e os padres; e, n'ella encontraram incentivo e base para conspirarem; d'ella se serviram para galvanizarem o cadaver da patria, para o terem

meio desperto, no dia em que foi preciso pô-lo de pé, electrizal-o com um tiro de pistola e dizer-lhe: anda!

E, porque era, n'esse momento, a vontade, o sentimento de um povo, a maior aspiração, o mais nobre, e o mais alto fim, a ordem não falhou.

O sebastianismo tinha, ou teve ao nascer, uma base.

El-Rei D. Sebastião morreu, indiscutivelmente, na batalha.

Viram-no e reconheceram-lhe o corpo mutilado varios fidalgos prisioneiros de Hamed-ibn-Mohamed, o sobrinho de Moluk, aclamado, depois da batalha, pelas tropas.

Disseram-no em Alcacer-Kibir; confirmaram-no em Lisboa, sem reticencias.

Morreu, pois, na batalha; mas isso era o natural, o mais logico que podia acontecer.

O povo não quer cousas claras, simples: quer o maravilhoso sempre, até nos mais vulgares phenomenos da vida.

O rei ter morrido? que admiração; mas isso não era para um rei como D. Sebastião, aquelle rapaz terrivel, de quem a moirama tremia só de ouvir-lhe

o nome.

Já lá estivera, já a fizera fugir. Não haviam de fugir deante da sua valentia indomavel, da sua audacia, da sua espada invencivel? Que melhor cavalleiro havia na Europa, mais ousado e mais robusto?

Ora, dois cavalleiros um Luiz de Brito e outro Luiz de Lima affirmaram terem visto o rei caminhar ao longe, foro da batalha, em direcção ao rio, só,

sem ninguem o perseguir.

Na noite da batalha, noite alta, quando se suppoz que nenhum fugitivo mais poderia apparecer, tinham-se fechado as portas.

Já se haviam fechado ha muito, quando um grupo de quatro cavalleiros, extenuados homens e cavallos, se chegou debaixo dos muros e gritou que lhe abrissem uma porta.

Recusou-se a principio a sentinella; mas um do grupo adeantando-se, fallou para cima.

-- Porque não abris a porta?

-- A ordem é não se abrirem as portas a ninguem, antes do romper do dia.

-- Porquê?

-- Para evitar qualquer surpreza dos moiros:

-- Essa ordem não pôde entender-se comnosco, observou o cavalleiro.

-- Comvosco e com todos, replicou o soldado.

-- Escutae, e, approximando-se mais do (ilegível) o cavalleiro disse em voz abafada: abri e depressa, que e el-rei D. Sebastião que alli está.

-- A sentinella desceu á pressa do muro e a porta foi aberta immediatamente.

Os quatro cavalleiros entraram. O da frente tapava-se com uma ampla capa. Os soldados cortejaram silenciosos, deixando passar.

No outro dia, como é natural, não se fallava noutra cousa em Arzilla.

Fallava-se como a medo, porque o rei não apparecera a ninguem e julgavam-no iinmerso na sua dôr e na sua vergonha de vencido.

A noticia chegou á esquadra e o corregedor Diogo da Fonseca logo que o soube correu a Arzila.

Dirigiu-se á casa onde poisava o rei e entrando deu de cara com Diogo de Mello e mais tres companheiros que o receberam acanhados.

-- Onde está el-rei? perguntou o corregedor.

-- Não sabemos, respondeu Diogo de Mello.

-- Não sabeis? pois não está aqui D. Sebastião? não entrou comvosco, a noite passada, em Arzilla?

Então, Diogo de Mello explicou: não sabemos de el rei. Eu e estes é que cançados e receiosos da perseguição, pedimos para nos abrissem as portas e como se negassem, lembrei-me de dizer que vinha el-rei.

O corregedor embuchou, attonito.

Na persuasão de que não era facil evitar a colera popular se se desmascarasse o trama, Diogo de Mello pediu ao corregedor para o levar secretamente, de noite, para a esquadra.

-- Não é de homem sério o que fizestes, Diogo de Mello, disse-lhe o corregedor. É uma imprudencia de que merecieis severo castigo.

-- Confesso que andei levianamente, Diogo da Fonseca; mas não ha remedio para o que está feito e nada ganhareis em me expor ao odio da soldadesca, quando se souber ludibriada e me tiver ao alcance.

-- Que ganhareis em me perder?

O corregedor disse ainda mais algumas phrases severas, mas resolveu-se a proteger Diogo de Mello, tanto mais que elle por fim lhe jurou que o que dissera á sentinella fóra: «venho d'alli, apontando o deserto, de ao pé de El-rei.»

Diogo da Fonseca deixou-se convencer e de noite levou-o para o galeão S. Martinho.

Reuniu o conselho dos officiaes e explicou tudo. Os officiaes ficaram scientes; mas a marinhagem e o povo de Arzilla, por mais que lh'o negassem,

nunca mais deixou de acreditar que o rei fôra na esquadra.

Os testemunhos de J.uiz de Brito e de Luiz de Lima e este caso de Arzilla reflectiram-so logo na crença poptdar, radicando-a.

Isso tinha ella morrido! Aonde estava não se sabia ainda; mas lá que era vivo não havia duvida nenhuma. Vivo e são.

Não tardaria, porém. E, começaram a esperal-o todos os dias, a vêl-o apparecer de repente, poderoso, magnifico, salvador!

O rei de Penamacôr

O filho do oleiro

Pelos fins do seculo XVI a olaria de Alcobaça, se nunca alcançou a fama europeia de que a sua irmã de Extremoz gosou, mercê dos seus processos celebres, fornecia a Extremadura com os seus productos pittorescos e economicos, a julgar pelos que pejam em grupos desengraçados: as feiras actuaes.

Um dos artifices do bairro tinha um filho, garoto, ao que parece de muita actividade, ladino, intelligente.

Um amigo do oleiro, que fazia rosarios, como o negocio em Alcobaça não rendesse bastante, porque os frades, ainda que aos centos, resavam

de cór, resolveu vir estabelecer-se em Lisboa e pediu, para aprendiz, o filho, ao oleiro.

O pae foi aconselhar-se com o frade compadre (todos os frades eram compadres dos maridos de Alcobaça), e este disse-lhe:

-- Deixa-o ir, deixa. O rapaz não tem grande quéda para o officio... aquillo em Lisboa sempre é outra cousa... vê-se mundo, aprende-se.

-- Mas como vossa reverencia... como tinhamos pensado em fazer d'elle um frade...?

-- A todo o tempo é tempo. Se tiver vocação elle voltará... está ainda muito novo... é melhor deixal-o ir.

O homem dos rosarios veiu para Lisboa e o rapaz veiu com elle. Isto passava-se dez annos antes da jornada de Africa em 1568.

O rapaz, já talvez por ser d'Alcobaça, já pelo officio do patrão, que o punha em contacto com padralhada, já porque intelligente como era comprehendia que era melhor ser frade do que passar o dia a enfiar por cordões de seda, ou cadeias de metal fino, toda a sorte de Ave-Marias, em bolas de todas as materias, do marfim ao corno, conservou sempre um secreto amor pelos habitos e pelos conventos.

Em 1578 entra a peste em Lisboa, e o patrão, homem pratico, abandona a cidade e deixa o rapaz, a tomar conta da loja.

Foi o que elle quiz. Um bello dia fechou a porta, metteu na algibeira os parcos dinheiros das ultimas vendas, e foi bater á portaria do convento do Carmo, onde tinha conhecimentos.

Pediu para entrar como noviço.

Conheciam-no activo, esperto, intelligente, admittiram-no.

Demorou-se pouco. Tinha os vinte annos azoagados de mais.

O que fez não se sabe; sabe-se que o mandaram voltar putra vez para o mundo, para a loja do patrão, para onde quizesse.

A loja estava fechada, o officio do pae sujava muito as mãos... Ser frade é que elle queria... agradava-lhe a vida.

Iria ter com o padrinho a Alcobaça... Era homem pratico e intelligente... elle o aconselharia. Foi. Recebeu-o o santo varão com alegria e quando elle lhe disse que queria entrar para o convento não pôz duvida.

Revendo-se no bello rapaz que via agora e que havia tantos annos partira, creança ainda, naturalmente indagou-lhe da vida que levára.

Contou-lh'a o rapaz e quando chegou á expulsão do convento de Carmo o frade contristou-se.

-- Isso é que é o diabo, disse n'aquella linguagem castigada dos Bernardos.

-- O diabo, porquê? inquiriu o rapaz com a mesma elegancia do phraze.

-- Porque o Dom Abade não te recebe som indagar do teu passado e como ha de sabêl-o é escusado pedir-lh'o.

-- Ora, disso o rapaz com ar de desprezo, não se perca a seriedade do convento se me admittirem.

-- Não sei não sei, replicou o frade... As cousas são como são; depois da cabeça rapada é uma cousa, antes é outra.

Depois, parando um boccado em frente do afilhado e a verem-se-lhe luzir os olhos de satisfação a contemplal-o, perguntou, com a face risonha:

-- Mas o que fizeste tu por lá, grande velhaco, para to porem ao fresco? Sim, o que fizeste?

-- Ora, disse encolhendo os hombros o ex-noviço, o que fiz?... mulheres.

-- Eu logo vi, eu logo vi, exclamou satisfeito pela propria perspicacia o alegre Bernardo... N'aquelle convento, homem... ahi tens o resultado.

-- Oram adeus, padrinho, aquelle convento... aquelle convento... é como todos.

-- Mais baixo, falia mais baixo, recommendou o frade, que to podem ouvir.

Ficaram callados por uns instantes. O frade pensava como resolver o problema, encostado á janella da cella que deitava para a principesca cêrca, copada de arvoredos, cortada pelo Alcôa.

De repente voltou-se:

-- Olha lá, disse, tu tens verdadeira vocação para a vida?

-- Se tenho!

-- É que podias penitenciar-te um pouco do que fizeste... talvez podesses entrar depois, facilmente...

-- Como? diga o que hei-de fazer?

-- Lembrava-me que te fizesses eremita, uns tempos. Olha que não é má ideia...

-- Eremita? é bem lembrado... e rende.

-- Se rende! confirmou o frade. E em liberdade... Então para ti, que pelo que vejo, gostas... do que eu gosto... melhor te servirá do que esta prisão... Outros ares, novas caras... isto por aqui está tudo visto ... é uma miseria.

Como o rapaz ficasse pensativo o frade perguntou-lhe: o que dizes, então?

-- Acceito a ideia, acho a de primeira ordem; e, com um riso de velhaco accrescentou: e então como penitencia não pôde ser mais bem achada. Vou ser eremita. Mas...

-- Mas o quê? observou o padre.

-- É que quero ser eremita a valer; quero poder usar do habito, relicario ao pescoço; peregrino que chega de Jerusalem e que procura um eremiterio onde se acoite...

-- Tudo isso se arranja; grande maroto ... como tu ma sahiste. Ora vão lá dizer que és filho d'aquello bronco do teu pae... bom homem, isso sim ... mas lá de esperteza ... uma pedra.

Depois chegando-se a elle, pondo-lhe a mão no hombro, familiar, paternalmente:

-- Olha que o officio é bom mas é preciso ter juizo... lá com mulheres... eu não digo... já se vê ... mas tento com ellas que são da raça do tinhoso.

Riam-se um para outro; o frade relembrando, in mente, peripecias de tempos idos; o afilhado n'aquelle adivinhar de aventuras, que todos sentimos aos vintes annos, como inevitaveis.

Como a conversa se prolongasse, o frade abri o um armario encravado na parede, tirou de dentro uma enorme broa que collocou sobre a meza e de debaixo da cama um garrafão com vinho.

-- O jantar já lá vae e fallar muito seca as guellas, observou o lambareiro. Não tens sede?

-- Alguma, respondeu o futuro eremita, puxando um banco e sentando-se.

O frade tirou mais do armario, duas canecas, um prato com queijos e um molho de rabanos.

Armado de faca e garfo, sentou-se do lado opposto de afilhado, levantando o habito para as coxas e mettendo a meza, que era pequena, entre as pernas robustas, só cobertas com as ceroulas, porque era verão.

Ao partir a broa, ao meio, com uma facada de magarefe, espalhou-se no quarto um cheiro, acre, aperitivo do chouriço que ella agazalhava no ventre, enroscado, luzidio, suando gordura, que alastrava, escurecendo-a, a massa granulosa da farinha loira do milho.

Abriram-se de goso as narinas do padrinho e do afilhado.

-- Que tal, hein? Perguntou aquelle; cheira melhor do quo o incenso.

-- Tem lá comparação, confirmou o rapaz, arrancando um fatacaz do pão e levando o á bocca; isto é comida de...

-- Frades; interrompeu o Bernardo enchendo as canecas, com o garrafão agarrado pelo gargallo e amparado no bojo.

-- De frades, sim, e de Alcobaça que não ha quem coma melhor.

-- E, mais, observou, envaidecido dos fóros do convento, o apessoado freire.

E, olhando a bôca do garrafão, d'onde o vinho delicioso dos coutos sabia em gorgolejes sonoros, perguntou:

-- Que me dizes a esta musica?

-- Isso é um órgão, respondeu o interpelado; è melhor; ha lá tubo de orgão que deite esse som?

-- Nem este vinho, assentou o frade levando a caneca á bocca e esvaziando-a.

O comer no mesmo prato dá a confiança; a conversa derivou por cousas varias, costumes das mulheres da terra, este e aquelle escandalo. Comparou-se a vida com a de Lisboa e veiu a pello a conquista de Marrocos, D. Sebastião, o alistamento..

-- É preciso que te arranje o habito e a licença já para amanhã, disse o padre descascando um rabano.

-- Já?

-- Já sim. Não sejas agarrado para alguma leva de soldados. Apanham ahi toda a gente a torto e a direito. Até velhos. Com o habito estás livre.

-- Pois elle que venha, quanto antes, que não tenho desejo nenhum de ir largar os ossos por essa barbaria dentro. Quero cá saber se são mouros ou

se são baptisados esses diabos de albornoz. O unico defeito que achava aos que andavam por Lisboa era o de não comprarem rozarios. Nunca me fizeram mal nenhum.

-- Nem a mim, accrescentou o frade, fazendo ranger e estalar a polpa do rábano entre os dentes caninos, nem a mim.

-- Os reis é que lá sabem o que lhes convem; observou o filho do oleiro, de caneca erguida; isso é lá com elles.

-- Quando sabem, objectou o frade, cuspindo para o chão uma lasca de rabano que se lhe entalara entre dois molares avariados e que desentalara com a lingua; ás vezes pensam que sabem muito e não sabem nada.

E para dar força á sentença pegou da caneca com modo brusco e esvaziou-o de um trago.

-- Isso é verdade, dizia o afilhado que já achava indiscutivel tudo o que o padrinho dizia.

-- Como este... este D. Sebastião. Não acceita conselhos, nem de amigos, de ninguem. -- Os frades tinham-lhe raiva porque lhe entrara pelos rendimentos. --

-- Ora essa?

-- É como te digo. Nem tem respeito a ninguem. Nem a vivos, nem a mortos. Ha tempos veiu cá ao convento e deu-lhe na mania de vêr os cadaveres dos reis. Como tudo para elle, no mundo, são espadeiradas... que tenham valor está visto quando se abriu o tumulo de D. Pedro, poz-se a troçar com o bom do rei, a chamar-lhe femieiro, a desfazer-lhe na vida e nas obras.

-- Que tal?

-- Um dos nossos, aborrecido com as baboseiras do fedelho, pediu licença e disse-lhe que os reis não eram só grandes pela espada. Que outras qualidades podiam fazer grandes reis.

-- Bem feito.

-- Fez-se vermelho como um tomate e mandou-o calar.

-- Calou-se o frade?

-- Pudera. Que se não se cala apanhava alguma bofetada que andava meia hora á procura da corôa.

O filho do oleiro largou uma gargalhada estrondosa; o frade não o acompanhou porque ao acabar de fallar, arremetera com um queijo de ovelha, que meteu de uma vez na bocca e mastigava inteiro.

-- É então assim decidido, o nosso rei, hein?

-- Elle lá em Lisboa tem fama de valente, não tem? perguntou o frade, com interesse.

-- Ora essa, de doido até. Os touros mais valentes, elle é que os pica. Quando o mar está bravo é quando elle embarca.

-- Mas o povo gosta d'elle?

-- Gosta, gosta; mas teem-lhe mêdo.

-- Como, mêdo?

-- Todos dizem que elle inda se mete n'alguma que lhe ha-de amargar. Lá que lhe amargue a elle só... vá; mas o diabo é que a dança em que elle se vae meter, mete muito povo.

-- Olha lá, ó afilhado, perguntou o padre depois de uma pausa em que limpara os beiços sujos de vinho, em ar confidencial, a voz mais baixa, elle é levado da breca para tudo, mas a respeito de mulheres?

-- Isso é uma desgraça.

-- Sim, hein?

-- É o que dizem. Nem vê-las... tem lá aquella mania... Dizem que lh'as andam a meter á cara...

-- Calcúlo.

-- E imaginem que tal hão-de ser... D'aqui... e, dizendo isto, apertava dobrando-o para baixo, com o indicador e o polegar da mão esquerda o beiço inferior.

-- E, elle, nada?

-- Nada.

-- Então ou é aleijado ou é tolo.

O frade ejaculou este juizo com o ar da mais profunda convicção.

Não fosse elle frade e não fosse elle bernardo.

O mólho de rabanos tinha-se acabado. O frade levantou-se e foi buscar outro; o afilhado que estava nas alturas do queijo, olhava-o sorrindo como

aquelle ar feliz de pessoa a quem a meia duzia de canecas começam a fazer cócegas no cerebro.

-- Estás contente, hein? perguntou-lhe o frade olhando-o, com os olhos meio fechados e brilhantes. Estás bem?

-- Estou, padrinho.

-- Estás a vêr-te de sacola ao pescoço... Hoje aqui, ámanhã ali...

-- Estou a vêr-me, mas é aqui. A contar com este queijo e com esta caneca... n'este belo ripanço... Esta é que é a vida para que eu sinto uma vocação cá dentro.

-- Este é o lado bom, observou o frade. Uma ou outra hora de folga; mas olha que todas as vidas teem os seus espinhos.

-- A sua?...

-- Estás enganado... na minha nem tudo são rosas. Eu te digo... e ia a encher de novo a caneca para tomar força para explicar as agruras de aquella vida de martires, quando um sino no alto de uma das torres, começou a badalar, compassadamente.

Ia a tarde a baixar; escurecera um pouco, e, pela janela entrava um ar frio e humido das bandas do mar.

-- Que toque é este?

-- É do inferno, exclamou o padre levantando-se sem largar a caneca cheia. Ahi tens... ha lá socega n'esta casa... Toca para o têrço?

-- Ah! é o têrço?

-- Pois que é? Imaginas que é passar boa vida, comer e beber e não ter mais cuidados? Isso era bom. Bem; que remedio... fica o resto da conversa para ámanhã.

Dizendo, bebeu de um longo e demorado hausto o vinho da caneca como a acaricial-o com a mucosa dos labios, como que a beijal-o, n'um adeus saudoso

de despedida.

O afilhado levantara-se e imitara o padrinho.

O quarto andava-lhe um pouco á roda; mas tomou energia e perguntou:

-- A que horas volto, amanhã?

-- Depois do meio dia.

-- Estará tudo prompto?

-- Ha de fazer-se-lhe a dilligencia... vae com Nossa Senhora.

-- Então não se arruma esta trapalhada? perguntou olhando para os pratos sujos e restos da merenda.

-- Isso logo se arranja, observou o frade. Logo... com mais vagar.

-- Seja como quizer, observou obsequiador o afilhado... não custava nada.

-- Obrigado, disse o frade, sacudindo o habito para o desenrugar... não preciso de creado tão grave.

Poz lhe a mão no hombro e de caminho para a porta dizia-lhe:

-- Olha que ainda ia outro molho de rabanos.

-- Bem empurrado, respondeu sorrindo o filho do oleiro.

Sahiram para o corredor. O frade tomou um ar grave. Passava, um a um, em direcção ao côro longinquo, o regimento dos frades, novecentos e noventa e nove!

O rapaz beijou a mão do padrinho; este fez-lhe sobre a cabeça o signal da cruz, abençoando-o; metteu as mãos nas mangas do habito; inclinou um pouco a cabeça meditativa, pelo vinho, e seguiu com passo cadenciado a caminho do martyrio, o caminho do terço.

O Presbiterio

Sahindo de Portalegre, raia fóra, os caminhos que iam entre montanhas e que conduziam a Albuquerque eram pouco trilhados, por fragosos, n'aquelle tempo.

Ha, Hespanha dentro, atravessada a serra de 5. Mamede, umas ligeiras planicies; mas á approximação da cidade, a terra eriça-se de montanhas pittorescas mas bravias, por onde correm rumorosos filetes d'agua, que formando pequenos rios, vão morrer no Xevora, que a seu turno se mette no

Tejo, junto a Badajoz.

No pendão da serra onde está Albuquerque, via-se em 1582, uma pequena capella, especie de logar apropriado para o culto, que indicava uma remota adaptação e uma reforma de pouco tempo.

A lapa, cavada na pedra, formava o corpo da capella, que tres paredes de pedra negra fechavam, abrindo-se a anterior, n'uma porta rusticamente trabalhada.

Uns bancos de rocha ladeavam a entrada, cheios de musgo; por cima do telhado debruçavam-se pinheiros bravios, de envolta com os medronheiros de aspecto secular, tal era a grossura dos troncos e a amplidão das copas.

O mato era bravo, em roda, alto como um homem, cercando o pequeno terreiro. Ao fundo n'um angulo da rocha cahia uma telha d'agua, crystalina e fria.

Do terreiro descia-se para o vale por uma escada de toscos degraus, abertos na pedra já pela mão do homem, já pela acção das aguas, por entre uma vegetação agreste, mas poderosa.

O carreiro, que outro nome não tinha, desembocava na estrada que levava a Albuquerque.

A capella era, em ornamentação, o que havia de mais pobre, porque não tinha nenhuma.

As quatro paredes eram lizas e escuras. Ao fundo, um pequeno altar de madeira tosca tinha ao centro um relicario onde se via um pequeno Christo crucificado.

Encostado á parede do fundo um painel representava Nossa Senhora do Rosario, com o menino ao colo e um rozario pendente.

Uma cruz e dois castiçaes de chumbo ladeando o relicario, um livro grosso de orações do lado da epistola, eram todos os objectos do culto; em dois castiçaes de barro vermelho, murchavam ramos de flores silvestres.

O ambiente era humido, escuro, apenas alumiado pela luz de uma lamparina baixa que ardia deante do crucificado.

Ao contrario, o pequeno terreiro era alegre, lavado pelos ares, illuminado pelo sol, perfumado pelos trevos e madresilvas enleadas nos troncos das

arvores.

Era, verdadeiramente, um logar de meditação, silencioso, isolado, longe dos homens e perto do céu.

Havia-o habitado, era voz da tradição, um homem que ninguem soubera bem quem fosse, que se supunha ser o proprio fundador, por cuja morte, o pequeno eremiterio, abandonado, cahira em ruinas.

Ora, um belo dia, apareceu em Albuquerque, um peregrino, ainda novo, de relicario pendente ao pescoço, habito de frade leigo, chapeirão na cabeça e

bordão na mão.

Ao perguntarem-lhe de d'onde vinha, dizia que de Portugal; ao indagarem para onde se dirigia, explicou que ali acabaria a sua viagem, porque tinha encontrado o logar que havia muito sonhava, um presbiterio bem rustico e bem só.

Então soube-se que restaurára como pudera a capella descripta e que lá vivia.

Era bonito e novo o eremita e não só as esmolas principiaram a cahir-lhe na sacóla; mas as devotas de Albuquerque começaram a subir o pedregoso caminho do eremiterio, em cumprimento de promessas á Virgem do Rozario, que solicitada pela seu devoto levita, começava a fazer milagres, que era um louvar a Deus.

Não ha como as mulheres para estabelecerem a reputação de um homem, quer como mau quer como santo.

Tal piedade, tanta mansidão de palavras e obras tanta virtude em tão verdes annos o eremita ostentava, que o cheiro da santidade começou a espalhar-se-lhe em roda e o seu conselho era solicitado, disputado, não só pelas mulheres do povo, mas tambem pelo madamismo de Albuquerque.

O proprio prior da freguezia mais proxima o visitou, um dia, e ficou encantado com a vida, maneiras e falas do santo rapaz.

Tinha a reputação feita; estava consagrado.

Um dia, em que sentado n'nm dos bancos rusticos que ladeavam a porta seguia com a vista, ao longe, n'um monte fronteiro, as evoluções de um rebanho de carneiros, viu subir, lentamente, pelo carreiro do monte, uma mulher, sósinha, vestida de luto.

Pareceu-lhe, pelo andar, ainda nova e forte, e, concentrando-se, dando ao rosto o ar mais simplesmente bondoso que que pôde arranjar, esperou a

chegada da visitante.

Não a tinha ainda visto. Era a primeira vez que ella subia ao eremiterio, pensava elle, vendo-a aproximar-se, bem que lhe não pudesse lobrigar o rosto

escondido pelo veu.

O corpo era de uma elegancia rara; e curvando-se e alteando-se na subida, tinha ondulações de um tal encanto que os olhos do eremita não se podiam despregar d'ella.

Nova e graciosa era... Se fosse bella...?

Quando chegou ao terreiro, como que encalmada, afastou o véu para um lado da cara e o solitario pôde contemplar o rosto mais formoso, os olhos e cabelos mais negros que jámais encontrara nas ruas de Lisboa, por Alcobaça e arredores, e ainda no seu longo caminhar de romeiro, até áquella altura.

-- Que linda creatura! -- pensou comsigo; e por um d'estes fenomenos cerebraes inexplicados ainda, claramente por associação de ideias, ao ver aquella nmlher, lembrou-lhe o padrinho d'Alcobaça e o rei D. Sebastião.

Naturalmente o primeiro porque era amador de bons petiscos e o segundo porque era, decididamente, um asno.

Levantou-se o eremita, e, como ella desse por elle e o fitasse, baixou castamente os olhos e cumprimentou.

-- Póde-se entrar? interrogou com uma voz fresca e aveludada a visitante, apontando a capella.

Quando quizerdes, minha senhora, respondeu com a maior humildade, o atencioso solitario.

A hespanhola entrou e atraz d'ella o eremita, que accendeu as duas velas do altar e se retirou para junto da porta, a fim de deixar a penitente, á

vontade, nas suas rezas.

A formosa mulher tirou de um pequeno sacca que levava suspenso n'um braço um pequeno livro de orações, e começou a rezar, ajoelhada, curva, n'uma grande concentração.

O eremita contemplava-a, de soslaio, como se tivesse mêdo que alguem lhe visse os olhares viciosos com que a envolvia.

Entregue ás suas rezas, a devota mulher não arredava os olhos do livro, ciciando palavras, benzendo-se, persignando-se, por vezes.

Meia hora ou mais durou a reza; acabada esta ergueu-se, beijou o christo do relicario e deitou na pequena abertura subjacente aos pés da imagem, que dava para uma caixa, uma moeda de prata.

É rica, disse comsigo o eremita ao sentir cahir a moeda e reconhecendo-lhe o metal pelo tinir.

N'isto a devota procurava-o com os olhos; evidentemente queria fallar-lhe e approximou-se.

Offereceu-lhe com a mão o unico banco de pinho que havia na capella e ficou-se-lhe ao lado, de pé.

-- Tenho ouvido que sois de Portugal, começou a viuva.

-- Assim é, minha senhora.

-- E, viestes de tão longe estabelecer-vos aqui!

-- Ninguem póde saber o que lhe acontecerá no mundo, onde viva e onde morra. Deus conduziu-me para aqui. Aqui estou.

A devota, ao ouvir estas palavras, teve no rosto um ar triste, que o eremita notou.

-- E, estaes, aqui, bem? Deveis estar, continuou, sem esperar a resposta, o logar é silencioso e bello. Um logar para rezar, um logar para pensar, longe

do mundo.

Tal dizendo, mais se sombreou o rosto da joven; os olhos exiprimiram uma tristeza clara, que não foi menos apreciada pelo erotriita, porque os olhos tomaram uma expressão d'uma doçura infinita.

Houve um momento de silencio, que o solitario interrompeu perguntando:

Sois devota da Senhora do Rozario?

-- Muito. Foi minha madrinha em creança. Muito a adoro; mas se resolvi subir á serra é porque me dizem que por vossa intercessão, ella opera favores continuados, distribue beneficies sem conta.

-- Rezae-lhe vós, minha senhora, vós só, com fé, que ella não deixará de ouvir dos vossos labios uma oração sentida, de preferencia áquella que lhe disserem os meus.

Havia o quer que fosse de profano, de galanteador no conselho do eremita. A voz tinha tido uma tal modulação afectuosa, cariciativa, que a hespanhola levantou os olhos para elle e o fitou de frente.

Só então viu bem, e viu que era um rapaz muito novo, de côr branca, boca rasgada, dentes alvos, olhos castanhos e vivos, o cabelo quasi negro, como a barba que lhe apontava apenas, escurecendo-lhe o labio superior e a ponta do queixo.

Com uma grande e natural insensibilidade o eremita sustentou o olhar da hespanhola, como se não percebesse o motivo porque ella o olhava tão detidamente.

Perante esse olhar calmo e a altitude simples do religioso, a boa senhora perdeu o quer que fosse de apprehensivo, que sentira ao ouvil-o.

Por seu lado, este, ao perceber o tacto fino da conversada, assentou, na mente, acautelar-se contra os impulsos de um desejo que sentia nascer dentro

em si, dominador, brutal.

-- Dizia, continuou a serenada senhora, que sois um medianeiro favorecido pela Senhora do Rosario... queria pedir-vos que nas vossas orações intercedesseis por mim perante ella.

-- De todo o coração o farei se assim o desejaes.

-- Desejo-o e preciso-o.

-- Tendes algum favor a pedir-lhe?

-- Um grande favor.

-- Podeis dizer-m'o?

-- Sou viuva...

-- Viuva? interrompeu de impeto o eremita, com um demasiado interesse que d'esta vez a hespanhola não notou.

-- Viuva de um cavalleiro, que morreu na Africa.

-- Quando?

-- Ha dois annos.

-- Aonde?

-- Em Alcacer-Kibir. -- Meu marido combatia sob o commando do capitão Aldana, que tambem lá ficou. Não conheceis a historia d'essa horrivel batalha?

-- Se conheço?

-- Deveis conhecer, como portuguez que sois.

-- Que poderei eu pedir a Nossa Senhora se vosso marido é morto?

-- Eis o horror da minha situação. É morto, diz toda a gente; mas um dia, outro dia, apparece um ou outro soldado ou official que toda a gente suppunha enterrado nas areias da Africa. Imaginae pois o meu mal estar constante, na incerteza da minha viuvez.

-- Deveis soffrer...

-- Muito. Choro meu marido como morto; mas a minha dôr perturba-se quando ás vezes tenho o presentimento de que está vivo.

-- E se está? Como viverá? Em que situação? Prisioneiro...

-- Não indagastes que o esteja?

-- Mandei um proprio a Africa a recolher noticias. Em parte alguma ouviu fallar d'elle; nem quem o soubesse vivo, nem quem o reconhecesse morto.

-- Morreria, então.

-- É o que todos pensam; mas se não morreu? N'esta incerteza o que hei de fazer? Esperal-o toda a vida ou não o esperar mais?

O eremita percebeu que o caso era grave, sobretudo para uma mulher nova e bonita e ficou-se a pensar.

A viuva perguntou dali a pouco:

-- Que me dizeis vós? Qual é o vosso conselho?

O que elle teve vontade de responder sabemos nós. Era que mandasse a memoria do marido para o diabo; que. era claro que estava morto e bem morto; que se isso, essa certeza lhe desse algumas penas, ali estava elle para a ajudar a soffrel-as, com o auxilio de Nossa Senhora do Rosario.

Mas, como homem intelligente que era, comprehendendo que uma resposta rapida, podia, por menos atilada, compromettel-o, mais tarde, no conceito

da linda viuva, tomou ares graves, conselheiraes e disse-lhe:

-- É uma grave questão, essa. Deixae-me pensar n'ella por algum tempo, um dia ou dois. Nas minhas orações procurarei o auxilio de vossa madrinha e minha protectora.

-- Ella me allumiará e me fará ver qual a resposta que vos hei de dar.

-- Não achaes sensato? É uma pergunta a vossa a que só o céu póde responder. Não vistes que nada vos adeantou a informação dos homens? As minhas orações commoverão, pela sinceridade da vossa dôr, a Nossa Senhora.

-- Acreditae que pedirei com todo o coração.

A viuva olhou para elle com uns olhos meigos de agradecimento, e, pegando-lhe n'uma das mãos, beijou-lh'a, levantando-se.

Entravam na capella duas mulheres do povo e foi providencial a entrada. O eremita não estava preparado para aquelle beijo de respeito, e é possivel que tivesse retribuído com outro, menos casto alvoroçando a alma alanceada da viuva.

Assim, como indigno servo que recebe grande favor, balbuciou tremulo:

-- Senhora, não sou digno.

Emquanto a viuva descia o atalho, elle pensava, vendo-a sumir-se:

-- N'aquella edade, com aquelle corpo e com aquelles olhos, deve soffrer muito sem marido! Talvez se lhe arranje um.

O leitor astuto de ha muito percebeu, ou adivinhou o resultado da primeira conversa entre um eremita de vinte annos, peninsular de olhos negros, e uma viuva de -inte e cinco annos, não menos peninsular e de olhos não menos negros.

O resultado primeiro foi que nem um nem outro dormiram bem, n'aquella noite.

O pobre eremita, porque no meio do seu pensar em coisas santas, tinha a imagem da viuva a distrahil-o, a olhal-o com os olhos avelludados, a pegar-lhe na mão e a beijar-lha com uma reverencia maliciosa.

A triste viuva, porque entre a imagem saudosa do marido desapparecido e ella se interpunha a figura attrahente do solitario, forte, novo, com um sorriso caricioso, uma voz cheia de modulações ternas, o olhar humido e quente.

As cogitações do eremita não iam longe; não se perdiam pela vastidão das hypotheses para descobrirem quem era aquella bella penitente.

Era uma deliciosa viuva que era preciso consolar nas suas maguas. Elle lhe daria os bons conselhos, dôces, fraternaes, como a sua saudade pedia, como a sua belleza recomendava.

E pensando que para isso seria preciso estar ao seu lado, tel-a junto de si, muito junta, n'aquelle segredo de confessor e de amigo todo o corpo lhe vibrava de prazer e de desejos.

E, n'este vibrar, reaparecia dentro do habito, aquelle ladino e guloso noviço do convento do Carmo, que os frades tinham posto na rua, por mais atreito ás seduções da carne do que á regra hygienica dos jejuns.

Que bella mulher! segredava-lhe o diabo, -- que é quem parece que segreda estas coisas aos miseros mortaes -- , que linda bocca! que colo! que corpo!

E, via esse colo e via esse corpo, branco, rigido, erguido deante de si, n'um esplendor de linhas suavissimas, provocador como um espadachim, apetitoso como um morango.

Elle estendia-lhe os braços. O rosto da visão sorria-se e inclinava-se para ella: mas ao tocar-lhe, quasi desaparecia, para reaparecer, d'ali a instantes, mais claro ainda e mais bello.

Vá lá um pobre eremita dormir assim!

No seu leito frio, a viuva não via aparecer o corpo extreme do moço eremita com taes seduções de plastica, mas recordando-lhe o ar, os gestos, o modo, a voz, o andar, perguntava a si propria quem seria o asceta, tão novo e tão descrente do mundo, que se escondera na garganta da serrania, como um velho cançado de viver, desenganado, na primavera da vida.

E, naturalmente, aquelle romantisar de mulher nova que a todas ataca, perante um homem que lhes agrada e que desconhecem, começou a mostrar-lhe o eremita como um amante, iludido e saudoso, que viesse enterrar n'um habito e na solidão uma vida despedaçada, ao nascer.

Não havia duvida. Não era aquelle rapaz filho d'um pobre mercenario, de um cavador obscuro, de qualquer vilão reles.

Tinha a pele branca, as mãos finas e cuidadas, o andar nobre e facil.

As suas palavras eram de pessoa illustrada; era atencioso, delicado.

Via-se bem; não era um eremita vulgar, aquelle. Quem seria? porque estaria ali? Que grande amor o tornaria assim, tão infeliz!

O coração da viuva enchia-se de dó, de suave pena, por esse pobre rapaz tão sympatico no seu isolamento, de palavras tão boas e de olhos tão negros.

O leito era triste e frio, como um ninho deve ser para a fêmea, quando o caçador assassinou o macho.

Se o marido voltasse de Africa! se elle aparecesse, ainda! Uma grande e intima convicção lhe dizia que elle não voltaria. Todavia, parecia-lhe que

a sua saudade diminuia consideravelmente. Ao indagar, em si propria, os effeitos da recordação marital, o coração já não pulsava como d'antes, nenhuma oppressão lhe apertava o peito, nem tinha vontade nenhuma de chorar.

Pela primeira vez em que verificava este estado pacifico das suas visceras e nervos, a viuva percebeu tambem que não tinha grande pena que isto assim fosse.

Sim, porque não se póde estar annos e annos á espera de um homem que foi para a Africa, que andou por lá debaixo dos cavalos da gente do profeta e que não manda noticias suas.

Todas as dôres devem ter e teem um limite.

Ella não podia ficar o resto da vida casada com um morto.

Se estava vivo que aparecesse; se estava morto que se deixasse estar.

Tinha feito o seu dever, até então.

Tinha-o chorado, publicamente; não deixara os fatos de hito; não abrira as gelosias para ver o cavalleiro que passava fazendo faulhar as pedras com as ferraduras do cavallo.

Viuva nova e rica, que niais podiam exigir da sua viuvez?

Assim se explicava e desculpava perante a propria consciencia a triste dona, dos pensamentos affectivos que lhe faziam passar pela cabeça, a imagem, o rosto captivante e pallido do solitario.

Não podia dormir, tambem. O leito era tão frio!

Assim, á mesma hora, a desolada viuva do cavalleiro de Africa rolava-se na cama, sem poder dormir; emquanto, no grabato tosco, o desconsolado eremita, em balde fechava os olhos para provocar o somno e, não o conseguindo, remechia-se, cançado e aborrecido.

É assim sempre; quando aquella doença, cujos primeiros sintomas estamos analisando, começa de invadir a cabeça de um homem ou de uma mulher, principia tudo, a andar á roda.

No dia immediato a viuva não foi ao eremiterio.

Não lhe faltaria vontade; mas era mostrar muita devoção de repente e além d'isso era preciso dar tempo que o eremitão pudesse alcançar do ceu resposta certa para o caso bicudo da sua vida, d'ella.

Sim, porque o ceu, se é, em geral, complacente e attencioso com a reclamação dos seus filhos dilectos, nem sempre defere ás preces com a rapidez precisa e sobretudo desejada pelos pretendentes, por demoras inevitaveis de um enormissimo expediente.

Quem andou em braza foi o pobre eremita, a olhar ao longe pelo valle abaixo e pelos cabeços distantes a indagar com a vista anciosa todos os vultos dos transeuntes.

Ás vezes, sentia rumor de vozes de alguem que subia o côrrego e lá ia, prestes, postar-se na subida para o pequeno adro, o ar simples e humilde, a dar as boas vindas na esperança de que fosse ella.

Qual? algum velho tonto que passava o dia a andar pelas egrejas e ermidas, ou alguma beata que andava a offerecer a Deus aquillo que o diabo já não queria.

Assim correu o dia e anoiteceu.

No silencio sepulchral do seu ermo, o eremita pensava, attribulado pela evocação da imagem voluptuosa da viuva, de papo para o ar, sobre o grabato:

-- Se ella amanhã não vem, vou eu á cidade.

Pego no bordão e no relicario e vou á esmola.

-- Hei-de vela. Não posso estar mais tempo sem a vêr. E, quedava-se, a olhar o tecto negro do pequeno cubiculo onde dormia, lateral á capella.

como se a visse no ar.

Espreguiçava-se, monologava, inintelegivelmente, bocejava, procurando dormir.

No outro dia, mal a claridade se levantava, estava de pé.

Para passar o tempo foi-se pelas quebradas a apanhar flores silvestres para ornar o altar. Havia poucas; mas lá conseguiu arranjar um grande ramilhete que dividiu pelas duas jarras de faiança, presente de uma devota, que ornavam o altar.

Vasculhou a ermida de alto abaixo, varreu o adro cuidadosamente, como quem prepara uma casa para receber uma visita desejada.

Acabada a limpeza, foi-se a um armario aberto n'uma das paredes do quarto, tirou para fóra uma côndeça em que havia comidas varias, uma borracha com vinho e sentado sobre a tarima, almoçou.

N'isto, ia quasi gasta a manhã, quando apareceram as primeiras beatas e começaram as rezas.

Pela tarde, quando o eremitão começava a desesperar da vinda da viuva e quasi a ir buscar o bordão e a sacola, ella que apparece.

O mesmo ar, a mesma graça, a mesma gentileza.

Sollicito, correu a ella, indagando como havia passado. A viuva respondeu com um secreto prazer ao ver no rosto do eremita e no fogo da pergunta, a alegria que causára a sua chegada.

Caminharam para a capella onde elle lhe offereceu a agua benta, que ella agradeceu com uma amavel venia e recebida a qual, se ajoelhou, orando.

Foi mais curta d'esta vez a oração. Pouco depois estavam sentados, ambos, no mesmo banco de pedra tosca que ladeava a porta da ermida e conversavam.

Ella, serena, apparentemente, o olhar baixo, a cabeça um pouco inclinada para o chão; elle olhando-a soffregamente, dominando, porém, a voz a representar uma natural tranquilidade, não isenta de um dedicado interesse.

-- Rezastes, pois, por mim? dizia ella.

-- Oh! muito! respondeu com o maior sangue frio o curioso velhaco. Levei a noite inteira a pensar em vós e a pedir a Nossa Senhora que me fizesse saber o que desejaveis.

-- Se era viuva?

-- Se ereis viuva.

-- E a Senhora, o que vos disse?

A esta pergunta clara, o eremita percebeu que não podia hesitar e tinha por força de responder: sim ou não.

Não quiz dizer que a Senhora não lhe tinha dado resposta, o que seria diminuir-se nos creditos de medianeiro, e respondeu, dando á voz um accento

compungido:

-- Que ereis viuva!

-- Como vo-lo disse?

-- Em sonhos.

A viuva não exigiu que lh'os explicasse. Aquella noticia quadrava-se perfeitamente, com os seus desejos intimos. Pareceu-lhe clara a informação e natural. Vinha do ceu, acceitou-a com fé; e, como não era natural que a nova tão grave deixasse de sentir pezar, nem natural nem bonito, tirou um

lenço de um saquitel pendurado no braço esquerdo, levou-o aos olhos e tapou-os, premindo-os, como quem chora.

Não era preciso tanto para commover o coração sensivel do enamorado eremita.

Tomou-lhe as mãos e olhando-a com muita bondade, perguntou-lhe, com carinhosa voz:

-- Magoou-vos a minha noticia?

-- Bem vedes, disse ella, ainda que affeita ha dois annos á ideia da sua morte, a certeza que me daes, reabre uma ferida ainda mal cicatrizada.

-- Comprehendo, disse o eremita, comprehendo; e, ficou-se a olha-la amorosamente, em silencio, como para não interromper aquelle desabafo, que

elle previa que não seria longo.

Não foi. Mais um tregeito nervoso, mais um suspiro e a viuva serenava rapidamente.

Ao mesmo tempo, elle encarregava-se de a consolar:

-- Não vos afflijaes, agora, tanto... serenae. Olhae que não é uma novidade o que vos disse... De ha muito devieis estar prevenida para o caso. Pois não é verdade que mandastes procurar vosso marido por Africa?

-- Até Fez, disse a viuva, por todos os carceres de christãos, por todos os aduares, onde havia escravos.

-- Ali, tendes. Ereis viuva já. Não magoeis assim os vossos olhos; não vos deixeis levar na corrente de uma dôr que já passou.

Dizendo, chegava-se mais para ella. Quereis rezar? rezaremos juntos, a oração acalma.

Tomou-lhe, suavemente a cabeça que ella deixou levar, encostou-a ao peito e ficou silencioso, como se intimamente orasse.

A viuva sentiu um calôr suave qno lhe vinha da mão do eremita que brandamente lhe poisava sobre os, cabellos, sentiu que esse calôr lhe corria o corpo como uma caricia fechou brandamente os olhos o deixou-se ficar, quieta, agradada, com uma grande humildade devota e voluptuosa.

Come se acabasse de resar, -- passado tempo porque, o peso da cabeça da viuva sobre o peito lhe fazia anciãs de a beijar e elle sentia um grande prazer em dominar os impulsos -- o eremita perguntou-lhe, dôcemente:

-- Estaes melhor?

-- Estou bem, disse a viuva, querendo levantar a cabeça, o que elle impediu com uma pressão maior da mão, estou bem.

-- Pois deixai-vos estar ainda um pouco. O ceu escuta as minhas orações, cada vez que peço por vós. Socegae bem.

Decididamente o rapaz tinha grande influencia no ceu porque a viuva em cada minuto ganhava uma melhoria visivel a ponto de poder levantar a cabeça, de o fitar com o olhar humido e vivido e de lhe dizer:

-- Como sois bom!

-- Bom? disse o velhaco, percebendo que lhe convinha por mais algum tempo representar de ingenuo, um pobre eremita, como tantos, que deixou o mundo e a quem as dôres alheias doem como as proprias.

-- E porque deixastes o mundo? perguntou interessada a viuva. Não tendes ainda a edade dos desenganos. Sois tão novo. Grande magua vos alcançou decerto. Uma grande paixão ou um grande crime?

O eremita que não tinha arranjado romance para qualquer das hypotheses, achou melhor guardar um cautelloso silencio perante o olhar interrogador da viuva

-- Não quereis responder? continuou ela.

-- Não posso, não me interrogueis que me magoa o não poder ser-vos agradavel. Que vos imporia saber quem sou? Os que deixam o mundo não lêem nome. O meu perdi-o.

O velhaco tinha encontrado uma bella sahida, envolvendo-se em mysterio. Por maior sorte, nem elle o calcularia, encontrára o ponto vulneravel da mulher -- a curiosidade -- , o encanto imperiosa de desvendar um segredo, a necessidade organica feminina de o desfazer.

-- Guardae o vosso segredo para vós, disse-lho a viuva; não merecerei sabel-o, nem poderia ser-vos util em qualquer cousa... sabendo-o.

-- Oh! não, replicou o eremita. Se mereceis, sabel-o! É que o segredo não é meu, não me pertence... a Deus pertence.

Perante uma tal affirmação, feita com uma mestria consumada de lazarilho, a viuva callou-se; mas olhou-o com maior insistencia, como se quizesse adivinhar quem se escondia debaixo d'aquelle habito.

-- Que me importa saber quem sois? volveu ella passados momentos. Se guardaes e jurastes guardar o mysterio é porque tal vos conveio e convirá ainda.

Cada um tem na vida a sua sina, o seu caminho traçado. É Deus que o marca... que elle seja louvado para sempre, acrescentou, beatificamente, a viuva, com um riso vagamente triste.

Os olhares dos dois encontraram-se, n'este momento, e nenhum se baixou. Partira de um para o outro uma caricia muda, uma expressão de sympathia intensa.

O eremita pegou-lhe nas mãos, brandamente, uniu-as fez das suas um estojo onde as metteu e olhando-a com olhar cheio de desejos, disse-lhe:

-- Porque vos queixaes? Olhae que é mau tentar a Deus, exaggerando as penas que elle nos dá.

-- Exagéro? perguntou ella.

-- Se exaggeraes! É certo que deveis ter soffrido... quero crêr que muito; mas que pena é a vossa que o mundo não possa fazer esquecer?

-- Fostes amada, muito, devieis tel-o sido, -- as suas mãos apertavam as da viuva, nervosamente, -- e quem vos não amaria, assim, tão bella e tão boa de coração.

-- Como sabeis que o sou?

-- Leio-o no vosso olhar; dil-o todo o vosso rosto feito pelos anjos; e, beijava-lhe as mãos, soffregamente.

-- Olhae, disse a viuva retirando-lh'as, que estaes tomando mais ares de cavalleiro, do que convem a um monge.

-- Esqueceis, talvez, que o fato que vestis, não permitto tão claro madrigal; tende mão em vós que vos comprometeis, senhor eremita.

Isto foi dito com tanta graça e ao mesmo tempo com tão ironica censura, que o eremitão comprehendeu que devia conter-se, sob pena de comprometter a aventura.

-- Que muito é que vos beije as mãos? Perdoae-me no entanto se vos magoei.

Dizendo, ficou-se, silencioso com um ar triste, abatido.

A viuva olhava-o com um amor que ella sentia nascer no peito, com um desvanecimento intimo de se sentir assim amada, -- tão facilmente as mulheres confundem o amor com o desejo, -- com uma ternura que a impelia a beijal-o e que ella dominava, a custo.

-- Porque estais triste? perguntou. Não me magoastes. Elle levantou para ella os olhos humidos. Não magôa, nunca, uma caricia, sincera. Preveni-vos apenas de que ireis esquecer-vos do vosso papel, de que tendes á cinta um rosario grosseiro e não uma espada de Toledo.

-- Bem vêdes, eu venho aqui, vinha, esperar um pouco de bem estar, na tranquillidade do sitio e no consolo da oração.

-- Sois um solitario, um eremita, um fugido do mundo.

-- Por dever? por força? por piedade? Não sei. Ao pé de vós imaginam todos e accreditei-o, eu, vem encontrar-se o arrimo de um espirito tranquillo, o balsamo da palavra serena, o abrigo de uma alma que vive mais perto do ceu do que da terra.

O eremita ouvia-a enlevado e receioso.

Ella continuou olhando-o, serenamente:

-- Se não é assim, se o vosso isolamento vos não furtou ainda á terra, ao mundo, se em vez de pronunciardes orações, distribuides galanteios, afastareis do vós as almas confiadas e tornareis inutil o sacrificio de uma longa subida, por penhascos até ao vosso eremiterio.

Vir-vos-ha d'ahi mal? Talvez. É por um bom movimento de affecto que me tendes despertado, que ousei lembrar-vos que vestieis um habito. Perdoar-me-heis, tambem, se fui mais longe do que devia.

-- Se vos perdôo, disse elle, fallai ainda e dizeime as cousas mais crueis que o vosso coração vos dite contra mim. É preciso que eu peque, novamente? e dizendo, beijou-lhe de novo as mãos; eis um novo crime, fulminae-me, agora.

A viuva não ponde conter um riso alto, ante o acto, gracioso e ousado, do atrevido rapaz.

-- Eu não vos digo, dizia ella, tentando retirar as mãos de entre as do eremita, eu não vos digo quo não tendes seriedade alguma? Ora pois acabae com a farça que vos tornaes ridiculo.

A sua voz, pretendia fazer-se severa; mas debalde. Conheceu-o o eremita e enlaçou-lhe a cinta com o braço direito.

-- Quero merecer todo o vosso odio, mas escutae-me.

Como ella fizesse um esforço para se libertar do annel do braço, elle puxou-a, para si, com força exclamando: oiça-me, oiça-me.

A voz era imperiosa e dôce como de macho excitado. A viuva, ouvindo-a, sentiu como um calafrio que se desfez em calôr, correndo-lhe o corpo.

-- Oiça-me, continuava elle, ha pouco quando deixou que lhe encostasse a cabeça ao meu peito -- a sua confiança prohibiu-me de lh'a apertar entre as mãos e de a beijar loucamente -- diga-me não me ouviu bater o coração desesperadamente?

-- Não sei...

-- Ouviu, por força. Nunca senti na minha vida uma impressão assim. É tão bella a vossa cabeça, oh! tão bella! Que culpa tenho eu de que no dia

em que vos vi, pela primeira vez, me sentisse tão fóra de mim, preso pelos vossos encantos, pela vossa graça, pela vossa belleza?

-- É um peccado o amar? Oh! não; a religião christã e toda de amor e de perdão. Não o sabeis?

Perdoae-me se vos amo, porque não está em mim o não poder fazel-o, nem em vós deixardes de ser a mais linda mulher que tenho visto! A tentação em carne.

Dizendo, apertava-a ao peito com o braço direito, emquanto a mão esquerda lhe tomava docemente a cabeça e a inclinava, suavemente, sobre o hombro.

A viuva, presa de uma dôce embriaguez, deixava-se ir na corrente das sensações voluptuosas, e não furtava o corpo ao braço, nem a cabeça

aos beijos que o ardente eremita lhe dava sobre os cabellos.

Tinha os olhos fechados, como se dormisse um socegado somno; o rosto alegre como se sonhasse um sonho delicado.

-- Olhae para mim, disse elle, beijando a na testa. Porque me não olhaes? São tão bonitos os vossos olhos! Olhae para mim e deixae-me vêr n'elles o meu perdão e a minha felicidade.

A viuva olhou-o, amorosamente, longamente.

Este olhar acabou de fazer perder a cabeça ao moço eremita que a agarrou de impeto, pela cintura, apertou contra o peito e começou a encher-lhe de beijos doidos os olhos e a bôcca.

Uma bôa hespanhola não é de madeira e a viuva enlanguescia nos braços do asceta a perder razão e pudor a ponto de começar a pagar abraços com abraços e os beijos com beijos.

Não será difficil perceber a que extremos carinhosos iriam chegar, o que teriam visto os medronheiros pendidos das rochas e a passarada cantadora nos silvados, se n'aquelle momento não se ouvissem vozes de gente que subia o ingreme carreiro.

A viuva, levantou-se de chofre, exclamando:

-- Estai quieto, senti vozes.

Assim era. Um ruido de fallas e de passos approximava-se.

Ficaram de pé; elle sacudindo o habito, ella a compor a cabeça um pouco descomposta, a assentar a mantilha, a concertar o olhar, a serenar a phisionomia.

Os que subiam, subiam de vagar. Tiveram tempo do alcançar a compostura grave, de retomar os gestos frios e ordenados, de emittirem fallas serenas e virtuosas.

As tres mulheres que subiam entraram na capella. A viuva, como presa do um mal estar repentino, despedia-se:

-- Ficae-vos em paz; boas tardes ... boas tardes.

-- Ide-vos já?

-- Então?

-- Voltareis ámanhã! Mais cedo? Com que anciedade vou esperar-vos.

-- Não espereis, porque esperareis debalde.

-- Hein? disse o eremita, como se não ouvisse bem, ou não quizesse ouvir, não voltareis?

-- Nunca mais.

-- Fallaes seriamente?

-- Como quereis que vol-o diga? É uma loucura... adeus... adeus... E a viuva descia o primeiro degrau que dava para o carreiro.

-- Olhae, disse o eremitão, não me deixeis n'esta incerteza e n'este soffrer. Dizei-me que voltareis... ámanhã... depois...

A viuva acenava com a cabeça como quem não acede.

-- Pois bem, disse o eremita: não vireis vêr-me?

-- Não.

-- Não voltareis aqui? Não vireis ter comigo?

-- Não.

-- Pois bem, eu sei o que tenho a fazer.

-- O quê? perguntou a viuva, parando de novo na descida, o que fareis?

-- Irei eu vêr-vos, irei eu ter comvosco.

-- Aonde?

-- A vossa casa.

-- Quem vos abrirá a porta?

-- Vós.

A viuva deu uma pequena gargalhada e, descendo, sumiu-se por os tufos de tojos e carrasqueiros que bordavam o correjo estreito.

O eremita ficou-se a espreitar uma volta ou outra, onde a cabeça da viuva por vezes apparecia, até que a não viu mais.

E, pensava de si para si, como a consolar-se de uma decepção tão inesperada: volta, volta; se não voltar, irei eu.

Amôres

O ar do caminho refrescou a cabeça da viuva. Uma mulher não gosta nunca de se render depressa, ainda que lhe não desagrade a derrota. Montada na mula que um creado, em baixo, no vale, segurava de redea, a viuva foi pensando no perigo em que estivera de esquecer completamente o escudeiro de Alcacer-Kibir.

O respeito pelo mundo tinha-a conservado honesta; um momento de solidão ao lado de um homem, estivera prestes a fazel-a rasgar o veu da viuvez.

Não lhe importava o facto; mas assim? Que pedia esperai ella de um eremitão? Não era um eremita... adivinhava-o... o habito não faz o monge... mas n'esse caso quem era? Lançar-se, á tôa n'um mysterioso amor?

Era melhor ser prudente. Havia de sêl-o. Quando se resolvesse a amar, a casar, tinha tantos pretendentes. Era rica, era nova ... não fosse perder-se

n'uma aventura vergonhosa.

Não iria mais ao eremiterio. Assim pensando, se apeou á porta de casa. No outro dia não pensou maio no eremitão; mas no dia seguinte -- sonhava com elle de noite -- não lhe sahia, outra vez, da ideia.

Resolvida, porém, a dominar-se, reagiu contra o desejo que sentia de o vêr, de o ouvir e não foi tambem .

No dia immediato, a saudade começava a fazel-a vacillar, a tortural-a, mas um facto providencial salvou-a. O ceu ennublou-se e pelo meio dia começou a chover, sem parar.

Com aquelle tempo era escusado pensar em ir. Teve uma certa pena, e ao mesmo tempo uma satisfação intima. Era uma tolice que faria se fôsse... Abençoada chuva.

A tarde começou um pouco triste; mas serena. Proximo da noite a viuva para melhor vêr, pegara no trabalho de costura em que se entretinha e fôra sentar-se ao pé da janella, por detraz da rotula de madeira, então em uso.

Podia vêr e não ser vista.

A chuva continuava a cahir muito meuda, mas persistente. A rua estava silenciosa e triste.

De repente, ouviu-se como que o bater de um pau na porta da casa fronteira. A viuva levantou a cabeça e espreitou por entre a rêde de madeira.

Tornou a olhar, affirmou-se e estremeceu.

Um eremitão, com o seu relicario ou nicho de santos ao pescoço, a sacola branca ao lado, o seu chapeu largo, o habito encharcado, batia com o bordão nodoso na porta, avisando:

-- O Senhor Jesus seja comvosco e Nossa Senhora do Rosario.

Abriu-se a porta, duas mulheres e um homem appareceram, no limiar.

O eremitão abriu a porta do nicho. Mulheres e homens persignando-se, beijavam a imagem. A sacola abriu-se para receber a esmola; o eremitão agradecia, despedindo-se:

-- Que Nossa Senhora os tenha na sua santa guarda.

-- «Amen», disseram ,03 tres. A porta fechou-se.

-- Elle! exclamara a viuva quando o eremitão se voltou e lhe viu o rosto. Elle! Em que estado vae o pobre É por minha causa...

Poz-se de pé, olhando-o, com uma grande anciedade. O eremitão ou não sabia, ou fingiu não saber quem ali morava. Não olhou para lado algum e seguiu, rua fóra.

Uma onda de piedade, de amor, encheu o cerebro da viuva. Não se conteve, abriu meia rotula e espreitou. O eremitão continuava a bater ás portas.

Estava na ultima, Voltaria pelo lado contrario ou enveredaria por outra rua?

A viuva sentia o coração a querer sahir lhe do peito. Fechada a ultima porta, o eremitão voltou, pelo lado opposto.

-- Vem cá, disse ella ... ah! o velhaco. E, sentiu-se tremer de alegria, de contentamento intimo, de vaidade.

Sentou-se no mesmo logar, ouvido á escuta.

A chuva era cada vez mais forte; escurecia rapidamente.

De novo soaram passos, ella alvoraçada, escutou. Pararam além; não era elle. Esperou de novo. Agora era; ouvia-se o bordão batendo a calçada, os passos pararam junto á porta, ouviu-se-lhe a voz:

-- O Senhor seja comvosco. Nossa Senhora do Rosario.

-- Bateram? veio de dentro perguntando uma mulheraça gorda e azougada.

-- Creio que sim. Vae vêr. Domingas.

D'ahi a pouco a Domingas apparecia:

-- É o eremitão da serra, senhora, que vem á esmola. Não quereis beijar?...

-- Sim, quero. Eu vou; respondeu o mais naturalmente a viuva. Manda entrar o pobre eremitão... tira-o da chuva.

-- Já mandei, senhora; está recolhido na casa da entrada.

-- Eu vou, eu vou, dizia a viuva, fingindo ordenar os aprestes da costura, para serenar. Vou já. Desceu.

O eremitão que se sentara levantou-se quando ella entrou e cumprimentou, humilde.

-- Deixae-vos estar, á vossa vontade ... deveis estar cançado. Tomou o nicho o beijou a imagem, passando-o á creada. Esta estava pasmada a contempla o eremitão.

Nunca vira nenhum assim, tão novo e... bonito. E, todo encharcado... corria-lhe a agua pelas sandalias...

-- Por um dia d'estes, porque desceste da serra com um dia assim? -- perguntou a viuva como se apenas a interessasse uma pena vulgar.

-- Não podia deixar de vir, senhora; respondeu o encharcado com o olhar entristecido. A viuva percebeu a intenção da phrase.

-- Não podieis? ... porquê?

-- Não, senhora. É o dia da esmola... Bem sabeis que me fazia falta o não a receber. Eu havia de vir... por força.

-- Coitado, exclamou a Domingas, apalpando o.

Está que nem um pinto, quando sae da casca. Tem tão boa cara, disse voltando-se para a ama, emquanto o eremita punha os olhos no chão... é

uma dôr d'alma... coitado... está fresco.

-- Não me parecia que chovesse tanto; disse com voz ingenua o eremita, olhando a creada.

-- Descançae um pouco... quanto quizerdes... até poderdes sahir.

-- Ides ainda para a serra?

-- Que remedio terei!

-- Com um tempo d'estes? Não daes com o caminho. E n'esse estado.

-- Tendes mais do que um habito?

-- Só tenho este.

-- Então ficaes toda a noite a secrar o fato no corpo? objectou a Domingas a quem o eremitão agradava cada vez mais; isso não póde ser.

-- É por não terdes onde ficar, que ides? ficae aqui. Arranjar-se-vos-ha um leito.

-- Pois está visto, é o que falta é logar onde fique, confirmou a Domingas. E quanto á farpela, acende-se o lume na lareira grande e vae para lá

sentar-se. Em meia hora está sêcco, que é um louvar a Deus.

-- Tenho que ir... dizia como que a mêdo O velhaco, com uma voz humilde, agradecida...

-- Tem que ir aonde? Ninguem lhe rouba a capella, dizia a Domingas. Agora, abalar pela noite, por caminhos de lobos, tropeça aqui, cahe acolá...

capaz de esborrachar o nariz... um nariz tão bonito... ora dê cá a maquineta, que fica aqui muito bem n'esta mesa. Tirou-lh'a do pescoço e pôl-a onde dissera.

-- Esse chapellão, dê cá isso, que está a pingar como um beiral de telhado.

-- Espere um pouco emquanto se acende o lume...

-- Depressa, disse a viuva, reparando que o eremita tremia todo. Tendes frio?

Todo molhado e parado o eremita sentia um resfriamento geral que, da espinha se lhe espalhava pelo corpo todo.

-- Algum... isto passa.

-- Qual passa... eu é que o faço passar, disse a Domingas, olhando um armario.

-- Um copo de vinho velho, lembrou a viuva.

-- É isso mesmo. Domingas correu dentro e trouxa um cangirão e uma caneca. Emquanto enchia a caneca, sentenciava:

-- Não é velho, é novo. Vinho velho é para velhos; novos querem-se com novos. Vá, de uma vez e veremos onde vae parar o frio.

O eremita, cautelloso, bebeu, apenas, um terço.

-- Só isto? observou a Domingas, que franganito.

A viuva ria, enlevada na scena, ao sentir-se perto d'elle tão perto, a vêl-o, a ouvil-o.

Aquele estado lamentavel cortava-lho o coração. Como remedial-o?

De subito, passou-lhe pela cabeça uma ideia.

Domingas?

-- Que é? minha senhora, vou já acender a brazeira.

-- Não não é isso...

-- Então?

-- Lembrou-me uma cousa melhor... era melhor... mais rapida...

-- O que é?

Este pobre rapaz não póde seccar a roupa no corpo. Póde fazer-lhe mal.

-- Mas despil-o...?

-- Não, disse a viuva, não podendo conter o riso...

-- Que se metta na cama, emquanto o fato sécca.

-- Será cêdo. Se elle mudasse de fato? Podia vestir outro...

-- Qual? Ha! um do senhor que Deus haja? É verdade. É o mais simples.

-- Veste-o e quando este seccar...

-- Torna a vestil-o. Boa ideia. Quereis que o vá buscar?

-- Não: melhor será leval-o ao guarda-roupa. Voltando-se para o eremitão disse-lhe: Ide mudar de foupa.

-- Senhora, para que tanto incommodo ... estou já quente, estou bem.

-- Qual está bem nem qual carapuça; pegando-lhe de um braço, venha d'ahi, mandou a Domingas.

-- Ide, ide, continuou a viuva com uma voz amavel; não nos incommodaes nada.

Subiram os tres a escada. Na primeira casa a Domingas acendeu um candieiro e ordenou: venha comigo.

A viuva fez-lhe um signal com a cabeça, como quem manda e elle seguiu a creada até ao guarda-roupa

-- Olhe, aqui, n'esta comoda, estão calções e meias. N'esta gaveta camisas. N'esta arca botas e sapatos, á escolha. Aqui, n'este armario, abra o, peitilhos e gibões.

-- É escolher do que gostar mais e vestir. Quer lavar-se? e abriu uma porta lateral -- tem ahi agua n'essa bacia de marmore; ahi tem sabão, ali estão toalhas.

Ponha o habito de fóra da porta e tudo o mais, se usa... camisa ou o que seja... que eu venho buscal-os.

Faça-se bonito... você não tem cara para habitos. E sahiu.

O eremitão olhou á roda de si proprio. Estava meio parvo por tudo o que estava acontecendo. Parvo e feliz. Era quasi inutil repetir o segundo adjectivo; mas sempre é bom repetir as grandes verdades. Como era, porém, homem para situações curiosas, e muitas outras, resolveu aproveitar esta, a que não faltava encanto.

-- Vamos a isto, -- murmurou entre dentes e começou a despir-se.

-- Pobre rapaz, -- dizia a Domingas para a ama, emquanto esperava a roupa molhada, -- parecia um S. Francisco.

-- É preciso dar-se-lhe alguma cousa de comer, d'aqui apouco, coitado.

-- Quando a senhora ceiar. Ora essa, ceiará tambem. Já agora vae-lhe ficar do lembrança esta noite. O diabo é quando elle voltar outra vez lá para o buraco da serra. Olhe a senhora que me faz especie um eremita assim... D'aquella idade...

-- Tambem a mim.

-- Alli andou grande paixão ou grande pouca vergonha. -- affirmou a Domingas.

-- Talvez. -- disse a viuva sorrindo.

-- Pela certa. Não é um homem ordinario. Vê se pelas mãos e pelos pós. Alli ha cousa.

-- Também já o suspeitei.

-- Ah já?

-- E lhe perguntei, até, o nome, quem era?

-- Elle o que lhe disse?

-- Não me respondeu. Não responde. Nunca diz o nome.

-- Ora. ah tem.

Ouviu-se abrir a porta do guarda-roupa.

-- Lá está elle a pôr a roupa ao sol, disse a Domingas, rindo. Bem, vou buscar-lh'a e accender o lume para a seccar e ao mesmo tempo aquecer a ceia.

-- Não te esqueças de pôr uma lâmpada deante do nicho, li em baixo.

-- Não me esqueço.

A creada sahiu a buscar as roupas e a preparar a ceia. A viuva foi para o quarto, deante do espelho, a alindar-se. Quando se achou contente comsigo propria, o cabello um pouco mais alto, o decote um pouco mais baixo, veiu sentar-se n'um pequeno gabinete, especie de escriptorio, onde havia uma

mesa grande ao centro, dois contadores, um de cada lado da unica janella que dava para o pateo. Sobre a mesa havia um grande tinteiro de metal amarello e diversos livros.

A viuva acendeu os tres bicos do grande candieiro que se erguia no meio da mesa, escolheu um de entre os livros, pequeno volume encadernado em coiro, de folhas pintadas de roxo e puxando uma cadeira de espaldar lavrada e braços rectos pôz-se a lêr... ou a fingir que lia.

Dominava-a um secreto prazer. A noite parecia-lhe conter um agradavel mysterio. Em roda d'ella voavam em pensamentos desordenados, desejos, receios, duvidas, esperanças.

De vez em quando, um ruido mais forte, no fundo do corredor, fazia-lhe levantar os olhos para a porta. Pulsava-lhe d coração. Socegava... lia.

Sentia-sc desasocegada. De uma das vezes levantou-se, foi abaixo, á cozinha dar ordens.

Tornou a sentar-se ... a lêr machinalmente ... não prestava attenção. O pensamento fugia-lhe para o fim do corredor, onde o eremita se ouvia andar,

de vez em quando.

Como o esperar é sempre um tormento, quando começava a cançar-se, sentiu abrir-se a porta do guarda-roupa e uns passos a principio hesitantes,

depois firmes, soarem pelo corredor.

-- Por aqui, por aqui, disse alto a viuva, a ser ouvida do eremita.

Os passos dirigiram-se para a porta e elle appareceu no limiar, sorridente, em venia.

A viuva ficou pregada á cadeira. Em vez do eremita, á porta, estava o mais gentil dos cavalleiros. Elegancia, graça, ar nobre, nada lhe faltava. A ca-

beça sahia-lhe 'arrogante por sobre o collarinho encanudado; o gibão de velludo preto apertava-lhe o corpo, modelando um tronco de Apollo; as mãos

sabiam, brancas, fidalgas, de dentro dos punhos de Hollanda, que lhe subiam rendados, a meio do braço.

O calção negro, e a meia de sêda esculpiam lhe as pernas, direitas, de um contorno ao mesmo tempo novo e forte. Os pés pequenos calçavam-nos uns sapatos de bico, apertados nas orelhas, por dois laços de fita de sêda.

Um cinto claro cravejado a prata apertava-lhe a cinta, d'onde pendia um punhal.

Como viesse o espanto da viuva, que não faltava, o eremitão, sorrindo, entrava. Parou junto d'ella.

-- Perdoae-me, disse, se abusei da vossa franqueza...

-- Oh! não, não, replicou, rapidamente, a viuva, fizeste bem. E, olhava-o com um olhar curioso, meio de espanto, meio de prazer, como quem quer confirmar uma cousa de que duvida.

-- Porque me olhaes, assim? perguntou elle.

-- Deixae-me vêr-vos ... como sabeis bem servir-vos d'esses fatos ... dir-se-hia que estaveis costumado a elles. Mas... sentae-vos... Estaes melhor

agora? Deveis estar... pelo menos, mais quente.

Indicou-lhe uma cadeira que elle puxou para o lado d'elle e onde se sentou.

-- Melhor? estou no ceu! Vestido como um cavalleiro e ao vosso lado.

-- Começaes o galanteio?

-- Perdão, disse o rapaz com um modo alegre, agora não podeis censurar-me. Despi o habito... vesti um gibão, estou no meu papel. Transformei-me...

-- Bem o podeis dizer e de tal modo que ninguem vos reconheceria.

-- Vedo como poderia figurar bem n'uma comedia de Lopo de Rueda ou de Torres Navarro.

-- Já vistes alguma? Já vistes representar Lopo de Rueda?

-- Não; mas conheço-o de nome... pela fama... Em Sevilha...

-- Duas vezes.

-- A fazer o què?

-- A vender rosarios; respondeu impensadamente o eremita.

-- A vender rosarios? Era o vosso officio?

-- Era... uma penitencia, explicou o eremita, percebendo que n'aquellas alturas o revelar a sua origem era comprometter o bom exito de uma em-

preza tão bem figurada.

-- Uma penitencia? Observou a viuva, olhando-o, fitamente. Uma penitencia de quê?

Elle olhou-a e ao procurar uma sabida, não respondeu.

-- Cometteste algum crime? Perguntou a viuva.

-- Oh! não. A penitencia, explicou o rapaz já á vontade, pois que achara resposta, impu-la, eu, a mim mesmo. O crime chamemos-lhe assim, só existia perante a minha consciencia. Só eu podia ser o juiz. A mim me condemnei.

-- Foi, então, uma traição amorosa, um perjurio...?

-- Oh! oh! deixai-vos de romantizar... de advinhar... n'isto tomou-lhe o livro que ella tinha na mão perguntando:

-- O que lieis? Versos?

-- Cantares. Não gostaes?

-- Gosto muito.

-- Deveis gostar mais dos livros religiosos, tenho o Caminho da perfeição de Santa Thereza de Jesus e a Guia dos pecadores de Fr. Luiz de Granada.

Tenho outras ainda, dizia, olhando-o com o mais ironico dos sorrisos.

Quereis lér? Ia a levantar-se para os procurar, sobre o contador da frente.

-- Não vos incommodeis, disse elle tomando-lhe o braço e percebendo-lhe o olhar.

-- Preferis os romances de cavallaria?

-- Prefiro faltar comvosco, ouvir-vos, vêr-vos. Deixae os santos e os cavalleiros e falae-me de vós.

-- De mim? que quereis que vos diga?

-- Porque não fostes ao eremiterio dois dias a fio? Não sabieis quanto me fazieis soffrer? Não sabieis que vos esperava, hora a hora, instante a instante?

-- Bem vos disse que não iria mais.

-- E ereis capaz de o cumprir! Pois póde tanta maldade esconder-se por detraz de tanta belleza?

-- Que iria lá fazer? Rezar? Bem vêdes que me não deixarieis livre e tranquilla.

-- E heis-de ficar, assim eternamente?

-- Como?

-- Á espera de um marido que não volta? á espera d'um espectro, á espera d'um morto? Quereis deixar passar toda a vossa frescura de corpo e de alma, n'um sacrificio inutil, n'uma espectativa sem fim? Hrada aos céus.

-- Quereis que ame?

-- Decerto.

-- A quem? O olhar, a voz, tinham uma expressão divina; a quem? repetiu, a vós?

-- Porque não?

-- Um eremita! Acreditaes que me seduza um amante de saias?

-- De saias! mas as saias despem-se, trocam-se pelos fatos de cavalleiro. O habito não faz o monge...

-- Tal o vosso caso, observou ella de chofre.

Acabaes de dizer uma verdade. Dizei-me quem sois. Peço-vos. Preciso de sabel-o; causa-me dó não o saber.

-- Se vos perguntar, porque? não me respondereis, ou respondereis falsamente. Pois bem, deixae-me quo vol-o diga eu.

Não me alcunheis de vaidoso. A razão é esta. Amaes-me...

Ella fez um movimento de espanto.

-- Amaes-me, continuou elle, pegando-lhe n'uma das mãos, amaes-me ou desejaes-me, como quizerdes. Quereis, porém, ter a certeza de que não empregareis mal o vosso amor. Não vos farei sahir um vilão ruim, por detraz do amante, Crêdes-vos casada ainda. Pensareis, no emtanto, em enviuvar de vez. Agrado-vos; natural é que tenhaes pensado enri que eu seja vosso marido. Essa idéa, essa tenção, séria e honesta, desculpariam o vosso amor, a vossa cedencia, perante a vossa consciencia. O vosso amor teria, como final, o casamento. Nada mais natural, nada mais justo. D'aqui a vossa insistencia, necessidade de saberdes quem sou. Não é verdade?

-- É verdade, disse a viuva encantada, com as palavras do eremita; adivinhaes, tendes esse condão.

-- Nada adivinho, amo-vos, tambem. Eis o segredo da minha perspicacia. Socegae, porém. Não ha na minha vida acto algum que possa envergonhar-me, que possa desmerecer me aos vossos olhos. Se vesti um habito de monge é que os que me educaram, o meio em que vivi, me fizeram sempre pender a alma para as cousas de Deus.

Referia-se o velhaco á loja de rosarios e ao convento do Carmo.

Um grande desgosto (referia-se á expulsão do convento) fez com que desejasse abandonar a vida mundana, procurar a solidão longe da minha terra, que tanto amo, longe dos meus.

A voz do eremita-cavalleiro era sincera e vagamente dorida. A viuva ouvia-o, attentamente, observando-o; um ar de alegria no rosto, uma expressão terna no olhar.

-- Viverei isolado, renegarei o mundo para sempre? Não sei, não sei. É mesmo certo, quasi certo, que não. É possivel que tenha de voltar a Portugal, que deixe o meu habito por outro habito melhor, (referia-se o maroto á promessa que o padrinho lhe fizera para entrar para frade de Alcobaça), e que seja ainda feliz. Se soubesseis o meu nome, então veríeis que podeis permittir-me que vos beije esta mão encantadora, -- dizendo isto, beijava-lha com fogo -- sem que vos insultem, nem maculem os meus beijos.

Esquecei o meu segredo insignificante, reparae, apenas, no meu immenso amor. Amae o mysterio. Que sabia eu de vós quando vos comecei a amar? Bôa ou má, santa ou peccadora, amar-vos-hia do mesmo modo como vos amo!

Tomou-lhe as mãos ambas e joelhou-se-lhe aos pés, olhando-a como se olha uma imagem do santa.

-- Levantae-vos; vêde que podem entrar e vêr-vos. Que tunante que sois! Como sabeis captivar! Levantae-vos... deixae-me as mãos...

-- Dizei que me amaes, dizei, ou não me levanto.

-- Sim, sim; olhae que vem gente ... dae-me um copo de agua. O apaixonado levantou-so de subito e correu ao contador onde estava um muringue de Extremoz e deitava agua no pucaro quando a Domingas entrava.

-- Senhor... deu de cara com o cavaleiro que se voltava com o pucaro na mão. Maria Santissima, sois vós, o eremitão?! Este, senhora, é aquelle...? Bem vos dizia. Negae lá, disse, dirigindo-se ao eremita, que andaes a mangar comnosco, disfarçado.

-- Pois podia lá ser? Olhava-o, andava á roda d'elle, analisando-o.

A viuva ria, silenciosamente, do caso.

-- Parece que foi talhado para elle o fato, observava a Domingas. Não assentava melhor em ninguem. E que ar, hein? que garbo? esclamava, olhando a patroa. Ah! meu menino, ahi anda aventura grossa. Tu que te disfarças é que precizas disfarçar-te. Ahi anda mulher... e se anda... que a Virgem me perdoe, mas a patifa não tinha mau gosto, não.

E, como todos se rissem do conceito, ella acentuou:

-- Ora o diabo não se fez eremita?

-- Então a ceia? perguntou a viuva, levantando-se.

-- Vinha dizer que estava na meza, minha senhora. Agora, não sei se será sufficiente para o cavalleiro... para o monge bastava.

-- Deve chegar, afirmou o eremita.

-- Sim, que tambem já deve estar desacostumado de comer, pelo menos alguma cousa com geito.

-- Como o sabes? perguntou, sorrindo a viuva.

-- Fui-lhe ver a sacola. Tinha pão de milho e chouriços. Chouriços com colorau á farta. Ora veja lá que comida para um homem só!

Na caza de jantar, ampla, com aparadores relevados, onde brilhavam pratas, na meza illuminada a velas, um caldo grosso fumegava, nos pratos. O eremita sentiu o estomago a rir.

A viuva offereceu-lhe uma cadeira ao lado direito. Sentaram-se.

A conversa a principio fria, a meio da ceia começou a animar-se.

As luzes tinham aquecido a sala. O vinho começava a esquentar os cerebros. Entrava-se n'aquelle periodo de bem estar, em que as cerimonias começam a desapparecer e nasce uma amizade, uma confiança ingenua em tudo e em todos.

A Domingas ao mesmo tempo que servia não deixava de metter a sua colherada na conversa, como pessoa da maior confiança da casa. Fôra ama da senhora e não sahira mais do pé d'ella.

D'ahi a liberdade que esta lhe concedia. Assim, quando trazia um prato novo, perguntava, ironica:

-- Não sei se Vossa Senhoria gostará d'isto? Gosta? A cozinheira do eremiterio, talvez o faça de outro modo.

-- O que é?

-- É cabrito, para servir a Vossa Senhoria. No forno? Talvez goste mais com chouriço crú? E riam-se todos, com um ar de famiha que enternecera um misantropo.

Quando lhe deitava vinho, explicava sempre:

-- Pòde beber sem mêdo; conhecemos os costumes fidalgos; a cama já está prompta. Sahia, a rir-se, a perguntar para si: quem será este rapaz?

A conversa interrompida continuava mais viva.

Tinham fallado, a proposito do primeiro prato de perdiz, de caçadas e jogos. O segundo prato, de cabrito montez, deu margem a conversa sobre as alegrias do campo, a poesia das montanhas, o encanto das flores. Lembraram os animaes de campo, as aves graciosas, os insectos.

Aos pequenos animaes opoz-se a ideia dos grandes: o leão, o toiro.

O toiro lembrou as toiradas, a valentia do toireiro. O despego da vida fez fallar nos guerreiros, na guerra. A guerra lembrou Marrocos, Alcacer Kibir. O marido morto, D. Sebastião.

-- Ahi está outro, dizia a viuva, que tambem se não sabe se morreu ou se não morreu. Morreria ou não?

-- Quem?

-- D. Sebastião. O rei de Portugal. Pois não dizem que elle não morreu na batalha? Que anda a cumprir o seu fado? Que se vestiu de romeiro e que se foi a Jerusalém, em penitencia?

-- Dizem... e é talvez verdade; observou o eremita despejando o copo de vinho ... quem sabe?

-- Quem lá esteve. Ou o viram morrer ou não. Prisioneiro não está. Se não morreu que sorte a d'elle!

-- Está para ahi n'algum eremiterio, a jejuar, a penitenciar-se dos males que causou, disse com a maior naturalidade o eremita, atacando um cuvi-

Ihete de compota de ginja. Fê-la bonita.

Que de miserias e de mortes causou!

Á palavra eremiterio a viuva olhou o comensal, e uma ideia subita lhe atravessou o cerebro.

D. Sebastião n'um eremiterio... seria elle? O misterio de que se rodeava, a negação a dizer o nome, o esconder a origem...

Serenou um pouco da impressão que tal pensamento lhe dera, e perguntou, saudando:

-- Vistes alguma vez D. Sebastião?

-- Muitas vezes.

-- Conhecel-o-hieis se o visseis?

-- Como a mim mesmo.

-- Era novo?

-- Muito novo.

-- Mais de vinte annos?

-- Pouco mais.

-- O cabello e a barba de que côr o eram?

-- Loiros.

-- É disfarce, pensou ella. Os olhos eram escuros?

-- Não, azues.

-- Alto, forte?

-- Da minha altura; mas mais forte do que eu.

Receia comprometer-se. É elle talvez. Começava a sentir-se dominada por esta suspeita. A duvida começou a luctar com o extraordinario apetecido do facto. Era possivel ser o rei!

Porque não? se ninguem lhe sabia a paragem? Como elle dizia conhecel-o bem! Se fosse elle! Como ella teria prazer em lhe ser agradavel, em o proteger, secretamente, com a sua dedicação, com a sua amisade. Seria o rei, realmente?

Sentia um aperto no coração. Olhava-o de soslaio. Era bello, forte, de bellos modos. Podia muito bem ser o rei. Um pouco palido... fraco... os jejuns... o remorso. Se fosse o rei!

-- Em que estaes apensar que não falaes e me olhaes com um modo estranho? perguntou o cavaleiro reenchendo o copo.

-- N'uma ideia... que me occorreu.

-- Ideia triste... Deixae as tristezas para outro dia. Dae-me o prazer do vosso riso, da vossa palavra dôce. Que ideia era? posso sabel-a?

-- Prometeis que me direis a verdade, se fôr verdadeira a minha ideia?

-- Que me pedireis que vos não faça? Dizei.

-- Pois bem, do que de vós sei, do que me tendes dito, do que haveis feito e fazeis, do vosso retiro do mundo, da vossa vida, enfim, veiu uma desconfiança ao meu espirito...

-- Uma desconfiança? qual?

-- A de que ereis... D. Sebastião... rei de Portugal.

O eremita caiu-lhe a colher dentro do prato, soltou uma gargalhada e olhando-a, fixamente, declarou:

-- Estaes a mangar comigo.

-- Não o sois?

-- Se vos digo que estaes a rir vos de mim. Eu o rei de Portugal?

-- Mas dizei que o não sois, dizei, claro.

O velhaco pensou, de repente, quanto lhe seria proveitoso, o partido que poderia tirar de se declarar D. Sebastião; ao mesmo tempo occorrendo-lhe a ideia de que a rtaleza o podia afastar da viuva; que outras complicações poderiam provir, de subir tão depressa ao trono, viu que o melhor seria negar, deixando a suspeita.

-- Porque o não dizeis? insistia a viuva, ao ve-lo hesitante, emquanto procurava.

-- Já vo-lo disse, senhora: eu, rei? Não. Vivi com elle, estive a seu lado, em Africa, na desastrosa batalha, de que por milagre me salvei, de noite,

alcançando, a pé, Arzila.

-- Estivestes na batalha?

-- Estive.

-- Ao lado do rei?

-- Como muitos outros cavalleiros.

-- E não sabeis se é morto ou vivo? Não o vistes prisioneiro, não o vistes morrer? Ficando em Africa nada soubestes, de certo, sobre a sua sorte?

-- O que se dizia; o que se diz. Quem sabe lá a verdade? Uns dizem que o viram morto; outros que o viram ao longe, fugindo da batatha... quem

sabe lá? Que Deus o tenha em sua santa guarda onde estiver... se é que vive.

O velhaco dizia isto tão mal, tão propositadamente hesitante, tão habilmente fingido, a dar a impressão de falsidade, que a viuva mais se convenceu, com a negativa, de que elle mentia.

-- Não sois o rei?

-- Não sou, não, infelizmente; se o fosse havia de por-vos uma corôa na cabeça, uma corôa de oiro que as mulheres prezam mais do que as de beijos.

Como elle percebia que a duvida não deixaria mais a cabeça da viuva, agora, falava, francamente.

E, chegando mais a cadeira para o angulo da meza, onde podia alcançar as mãos da hespanhola, perguntou-lhe, agarrando-lhe a mais proxima, com uma voz feita de desejo alcoolisado:

-- Amar-me-hieis mais, se acaso o fosse?

E, como ella o olhasse, interdicta, sem achar resposta, elle concluiu com voz maguada:

-- Que pena tenho, realmente, em não o ser! Em troca sois vós rainha, rainha do meu coração, da minha alma, do meu amor!

E, beijava-lhe as mãos que ella abandonava, enternecida.

Este pequeno drama, se não é antes uma ligeira comedia, tão vulgar na vida, presente-se que está a terminar. O leitor desde ha muito que lhe suspeita do desfecho e, eu, sem fazer offensa á acuidade do seu espirito, atrevo-me a dizer-lhe que não descobriu a polvora.

Não.

Sempre que um homem novo e uma mulher nova, quer elle seja um eremitão e ella a viuva de um soldado de Africa, ou elle viuvo e ella eremitôa,

sempre que os olhares interrogativos dos dois assentam n'uma conveniencia mutua, como lhe chama Schopenhauer, é fatal, que se se encontram isolados e livres, por mais denguices, mais amuos, mais esquivazes, acabam sempre por cantar o celebre dueto que pôz, na tracheia dos nossos primeiros pães, o vulto da maçã mal engulida.

Depois, n'este caso, visto o primeiro lance no presbyterio, sob os medronheiros pendidos, no banco rustico, debaixo de um dôcel rendado de fetos, lance que revelava o temperamento da hespanhola e a tradicional energia do portuguez, é facil perceber, que n'uma occasião casual ou provocada, um chover teimoso que os reunisse sob o mesmo chapeu de chuva, ou o mesmo tecto hospitaleiro, como n'este caso se deu, havia de ser a renovação de um idilio, renovação tanto mais feroz quanto mais esperada, quanto mais engrandecida pelo avolumar de um sonho voluptuoso, cujo inicio mal se anteviu e foi divino.

A resistencia, n'estes casos, dá a lucta.

A viuva, porém, não resistia. O eremita transformara-se, demais em cavaleiro; talvez n'um rei! Ainda que o não fosse, ella não deixara de o acreditar, o que era com certeza era um bello e fidalgo rapaz, vivendo n'um eremiterio, dias e dias, só: e ella era uma pobre viuva... viuva havia quatro annos!

A ceia fôra deliciosa, junto d'elle. Que discreto, que cauteloso não fôra. Beijara-lhe as mãos: n'isto se resumira todo o galanteio, toda a audacia.

Assim, quando acabada a ceia, voltaram de novo a pequena saleta onde haviam estado antes, como ella se sentasse n'um canapé de mais de dois logares, elle sentou-se-lhe ao lado.

E, como elle visse que ella não fazia reparo, nem objecção alguma a proximidade tão intima, amavelmente dizendo: «que noite de felicidade vos devo», foi-lhe passando o braço pela cintura e puchando-a contra si proprio.

E, como reparasse que a proximidade em que lhe ficava o rosto do rosto d'ella, a não intimidara, antes lhe dera no olhar uma expressão de ternura

suma, como fosse a fallar, tapou-lhe a bocca com um beijo quente e longo.

Como verificasse que o beijo fazia pender n'um suave desmaio, a cabeça da viuva, para traz, tal gesto teve, que a enlanguescida senhora se ergueu, de chofre, dizendo:

-- Oh! não, não... tende prudencia... tende cuidado... a creada não tarda. Elle serenou, cofiando os raros pêlos do queixo; ella sentou-se n'uma cadeira junto á meza e abriu um livro.

D'ahi a momentos a creada aparecia.

-- Não quereis mais nada?

-- Nada mais, podeis deitar-vos.

-- Boa noite senhora, boa noite... eremitão.

Cumprimentou ironicamente, e sahiu.

Ouviram-se os passos da serva que descia para o andar inferior. Fez-se um silencio. Elle olhava para o tecto, ella para as paginas do livro, e fingindo ler não via uma letra.

Aquelle era um daquelles momentos terriveis que precedem as catastrophes. A primeira palavra, fosse qual fosse, era o incendiar da mecha. Bello instante: elle a saborear a vitoria; ella a saborear a derrota.

Contarei minúcias: de como se approximaram de novo; de como se acariciaram; de como fizeram juras loucas entre beijos ainda mais loucos; de como se ergueram abraçados; de como accordaram assim; oh! não! respeitemos, com o silencio, a memoria do cavaleiro de Africa.

A expulsão

Ao outro dia, o nosso eremita, reconfortado por substancioso almoço, a sacola cheia de oferendas, nacos de cabrito assado, frangos tostados em azeite, queijo, fructas, retomou o caminho do eremiterio, depois de ter beijado agradecidamente, com o maior respeito, a mão da bemfeitora e lançado á Domingas o mais carinhoso olhar.

O sol rompera, vivo, illuminando a serrania; o dia era festivo e alegre, casando-se com as ideias e recordações da saudosa noite.

Uma hora mais tarde, subia o carreiro pedregoso do monte que dava para a capella e chegado ao fim sentava-se no banco de pedra, pensativo, como um homem que acorda de um sonho e se põe a relembrar as peripecias agradaveis, para sentir, ainda, com a evocação, uns restos de prazer.

Entretanto, cá em baixo na villa, a viuva não se podia conter que não dissesse para a criada Domingas:

-- Curioso o nosso eremitão, não achaste?

-- Muito, Angelita, respondia a Domingas, tratando-a familiarmente pelo diminuitivo do nome, como costumava em occasiões de confidencias, muito. Creio tanto que elle seja filho ahi de qualquer cavador, como creio que eu seja fidalga de Castella.

-- Lá se te meteu isso na cabeça... disse Angela, para experimentar a creada. É uma teimosia tua.

-- Será; mas o que é verdade é que um filho do povo não veste fatos fidalgos com aquelle garbo. Quem os veste assim... já os vestiu.

-- Lá isso é verdade... Uns taes modos... dizia a viuva Angela.

-- E, demais, a senhora verá... deixe correr o tempo... Nós veremos se não temos qualquer noticia... qualquer novidade.

A viuva poz-se a olhar para a criada em silencio. Havia uma cousa que ella desejava dizer... precisava de dizer. As mulheres não podem ter um segredo mais do que uma hora. Faz-lhes mal... pertuba-lhes a digestão... sofoca-as.

A viuva tinha um segredo.

Hesitou ainda algum tempo em o deixar sahir pela bocca. Valha a verdade resistiu cinco minutos... mais não pôde.

-- Ouve lá Domingas, disse ella. Tu não deixas, de ter razão.

-- Eu tenho mesmo uma desconfiança... será só desconfiança; mas...

-- Ah! tem? qual é? perguntou interessada a Domingas.

-- Não sei se deva dizê-la. É melhor, até, calar-me.

-- Tem mêdo, não confia em mim, Angelita? perguntou a Domingas dando-se ares de despeitada.

-- Sim, mas...

-- Não diga, volveu a creada. Eu não pedi confidencia... Ora, a minha senhora que já não tem confiança na sua ama!

-- Tenho, tenho, Domingas.

-- Tem? então, chegou-se para junto da ama que costurava, então, diga. E ficou-se de pé, deante d'ella, as mãos na cinta, esperando.

-- É uma suspeita, uma suspeita, só.

-- Seja o que fôr; fica entre nós.

A viuva tomou um ar serio, misterioso, dizendo:

-- Tambem estou convencida de que é um fidalgo.

-- Ah! bem.

-- É um grande fidalgo. Tão grande... e isso é que me faz ter as minhas duvidas... que custa a acredital-o.

A creada aproximava-se com interesse, acenando a cabeça em ar de aprovação.

-- Quem imaginas tu que possa ser? Quem te lembra?

-- Francamente, não sei.

-- É portugnez. Por cousas que me disse, conclui que esteve na batalha de Alcacer-Kibir, que de lá fugiu como poude. É o que deixa saber a seu

respeito. O nome não o diz. Encobre-o a todo o custo. O que veiu aqui fazer?... responde: penitencia. O grande segredo da sua vida porque ha um segredo...

-- Oh! se ha, confirmou a Domingas.

-- ... ninguem o sabe, a ninguem o diz. Pelas maneiras, pelas fallas, porque falla como um mestre de Salamanca, vê se que é homem de alta posição; é, ou melhor, foi. Ainda não te occorreu quem possa ser?

-- Não, senhora, não.

O que se diz de el-rei D. Sebastião, dei Portugal? perguntou a viuva como argumentando, o que se diz?

-- Que não morreu na batalha. Que foi a Jerusalem, que anda fazendo penitencia...

A Domingas tinha uma cara de espanto, de convicção.

-- Pois quem me diz... é novo, é ousado... quem me diz que o eremita da serra não é elle?

-- Nem tendes que duvidar, replicou a creada; não ha mais que indagar, senhora, é o rei D. Sebastião, não é outro. Pois quem pôde ser tal homem?

-- Eis a minha desconfiança.

-- Eu tinha-lh'o perguntado, claramente, se me tivesse vindo á cabeça essa ideia.

-- Perguntei-lh'o.

-- E elle?

-- Riu-se, mudou de conversa. Mais que uma, vez, por modo diverso o quiz fazer confessar... não foi possivel.

-- Mas não negava? não negou?

-- Não; mas não confessa.

-- É o bastante. Sem receio. Elle que se esconde é porque quer estar escondido, ate acabar a penitencia que se impoz.

-- Não é só a penitencia. É que se alguem soubesse quem elle era, a sua vida corria grande perigo.

-- Porquê? perguntou já com receio, a creada.

-- Porquê? Então Filippe II deixava-o em descanço? Se D. Sebastião aparecer de novo em Portugal, imaginas que não é de novo recebido como rei; que D. Filippe não ha de ter guerra e brava para conservar Portugal? Pobre d'elle se o descobrirem em Castella, que não vê mais sol nem lua.

A creada silenciosa, pensava nos perigos que cercavam o eremita e sentia-se fortemente apiedada do rapaz.

-- Não é outra cousa, dizia como para comsigo, não é noutra cousa... é o rei de Portugal. Elle era assim, novo, Angelita?

-- Era muito novo.

-- Não ha duvida é o rei.

-- Seja ou não seja. Domingas, silencio, hein?

-- Ora essa. Nem com torturas m'o fariam denunciar. Já se viu desgraça assim; um rei a comer chouriço e pão de milho ahi como um labrego, mettido na cova de um urso! A sorte que Deus reserva ás creaturas. Valha-lhe Maria Santissima.

Entre as duas, por esta e outras conversas, ficou assente que o eremita era D. Sebastião, que depois de voltar da Terra Santa, se viera esconder n'um cerro dos contrafortes da serra de Albuquerque.

Uma piedade amorosa, na viuva; sincera, na creada, abriu ao eremitão a porta da casa, pelas noites, n'uma convivencia cada vez mais intima.

Ás noites succedeu um ou outro dia em que por qualquer razão, mau tempo, calôr, a creada lembrava, solicitamente:

-- Se não fosse, lá, hoje? Ninguem rouba a eremida. Não tem que roubar. Deixe-se ficar.

O eremitão concordava, olhando a viuva que lhe sorria, aprovando.

Estes dias e noites passados n'um amoroso segredo, deram o resultado previsto. O eremitão começou a achar insupportavel o buraco do mon e,

a prolongar a estada por dois e mais dias, até que por fim abandonou de todo o presbyterio enroscado nos braços da viuva, a comer como um frade a cantar á viola, que fazia gemer deliciosamente, as modas de Portugal.

Abandonou de todo o habito, foi um dia fechar a porta da ermida e começou a viver com Angelita ostensivamente, como seu intendente ou administrador. O emprego era... calvo de mais.

Foi um escandalo na viila. Uma senhora tão séria, com uma vida de tanto respeito... tão saudosa do marido... Os commentarios não acabavam; mas a viuva -- o amor é cego e suido -- não via nem ouvia. A creada tinha para responder aos que sabia que fallavam na vida da patroa, uma phrase, justa: inveja; estão verdes.

Nas villas de então, como nas de agora, a censura a estes casos, aliás, vulgares, não veiu, nem vem, nem virá nunca de sentimentos nobres que se

encontrem feridos. Os que fallam, fallam sempre, porque alguem faz o que elles não podem fazer. Era o caso. A viuva, rica, fresca e apetitosa tinha

tido dezenas de pretendentes. Não attendera nenhum. Vem aquelle sarrafaçal do eremita, lá dos fins do mundo, e ella mette-o em casa, veste-o, anima-o e fal-o... mordomo.

Boa mordomia; casa, cama e meza.

Ralavam-se os vilões. Como, de mais, o mordome era portuguez mais se exasperavam as invejas. Ainda se fosse com um castelhano, vá; mas logo escolher um portuguez! Aquella mulher, nem se lembrava de Aljubarrota! A villa fermentava.

A fermentação era, porém, secreta; porque o eremita desde que tomára posse do cargo, sahia a cavallo ás fazendas, e pavoneava-se pela villa nos botequins e tabernas com o maior desplante.

Tinha fama de saber servir-se da espada, ou pelo menos o credito de que era capaz de se servir bem d'ella, justificado pelos seus ares e modos, de maneira que deante d'elle as conversas criticas paravam.

Começou o nosso homem a dar-se com os rapazes mais alegres de Albuquerque e, como tinha a bossa de bohemia, a acompanhal-os em ceias e em descantes nocturnos pelas ruas da villa.

Era eximio tocador de viola, bom comêdor e bom bebedor, prompto a tirar a espada: era um companheiro estimado.

A villa começava a andar alvoroçada todas as noites, com desordens e brigas.

A viuva já lhe não tinha mão com pedidos, nem a creada com conselhos. Pedidos e conselhos eram moderados... não fosse elle -- o pobre rei!

-- maguar-se com ousadias.

O alcaide é que andava furioso. O alcaide e o clero da localidade.

O alcaide, porque perdia a fama de homem capaz de fazer observar os bons costumes e a tranquilidade da terra; o clero, porque o mais escandaloso dos noctivasços era, ou tinha sido -- um eremita!

Concertou-se pois o clero com a força civil e resolveram, n'um dia, depois de uma noite em que tinha havido rixa grossa, ferimentos de vulto, que o ex-eremita seria intimado a sahir da villa, para acabar com tantos escandalos.

A intimarão fez-se n'esse dia, pela tarde.

O alcaide bateu á porta da viuva, perguntou pelo mordomo, que logo appareceu.

-- Boas tardes, cavalheiro.

-- Boas tardes, senhor alcaide, disse amavelmente o mordomo, offerecendo uma cadeira. Que deseja de mim, vossa mercê?

-- Sinto ter de ser desagradavel ao cavalheiro; mas, por ordem do dom priôr venho intimal-o a que se retire de Albuquerque no prazo de vinte e quatro horas, sob pena de ter de proceder contra o cavalheiro, como não desejarei fazel-o.

-- Sou expulso de Albuquerque?

-- É como digo ao cavalheiro.

-- Que fiz, para merecer uma tal ordem?

-- O cavalheiro sabe-o muito bem.

-- É o dom prior que me manda sahir d'aqui? Com que direito?

-- O cavalheiro é eremita. Agora não parece, porque mudou de trajo; mas na verdade como para aqui veiu e se apresentou e pedia esmola, foi consentido como tal.

Para nós continua a sel-o e para toda a villa. Como tal está debaixo do poder do dom prior que o manda sahir.

-- O dom prior excede-se...

-- Isso é là com elle. Como alcaide, recebo as suas queixas e obro como -entendo. Fica pois o cavalheiro avisado de que em vinte e quatro horas tem de sahir de Albuquerque, aliás...

-- Aliás? perguntou o eremita meio abespinhado.

-- Terei de o mandar prender, para o conduzir á fronteira, ou para onde melhor fôr.

Levantou-se, dando por findo o dialogo quando a Domingas, que ouvia a conversa na sala contigua, atraz da porta, e se não pôde conter entrou

exclamando:

-- O sr. alcaide expulsa-o? o sr. alcaide não sabe com quem está falando.

-- Ora, menina, metta-se com a sua vida e não venha dar razões onde não é chamada.

-- Mas é que o sr. alcaide não sabe o que está a fazer... se soubesse...

A viuva que ouvia por detraz da outra porta, com mêdo de alguma inconveniência que a Domingas dissesse, porque estava iminente, surgiu tambem.

-- Sr. alcaide... Domingas, então? Faça favor de estar calada. Desculpe, sr. alcaide. Que ordem tão extraordinaria...

-- Minha senhora, observou o alcaide delicadamente... recebi queixa... são os ossos do officio... tenho que proceder. Sinto desgostal-a, mas não está

na minha mão... Tenham muito boas tardes... e foi sahindo, encostado ao bastão, ou vara do officio.

-- Velhacão, resmungava a Domingas; o que tu precisavas era de uma carga de pau que te desfizesse os ossos.

-- Vê se elle te ouve Domingas, avisava a D. Angela.

-- Que me ouça... que mêdo -... nossa senhora. É melhor que olhe para o filho... um bêbedo... um relaxado. Esse é que não vae para as galés. Que filho!

-- Depois, voltando-se para o lado da janella onde a viuva e o mordomo seguiam, por detraz da rotula, o alcaide que se afastava, dizia para o ex-eremita:

-- Tambem lhe digo que se o senhor no dia em que voltar a ser rei, me não faz enforcar este judeu... escreve para mim.

-- Cala-te maluca; replicou com um sorriso amarello o interpellado, deixa lá.

-- Qual deixa lá? Isto tudo são raivas. O filho puliu muito essa calçada com as patas. Coitada da besta.

A ordem produziu um effeito desolador.

O jantar foi triste. A viuva, de vez em quando, dizia, n'uma censura vaga:

-- Eu bem dizia... aquellas serenatas... todas as noites... haviam de dar algum desgosto... não querias acreditar.

-- Em toda a parte se canta de noite; só aqui é prohibido, replicava o eremita aborrecido. Não faz mal. Tudo tem remédio, descança. Eu parto; mas

hei-de voltar quando me apetecer. Não fiz crime nenhum, ninguem me pôde prender. É preciso que deixe de ser eremita? pois bem, deixarei de o ser.

Hei-de vir bispo para a outra vez.

No fundo, estava triste. Aquella vida seduzia-o. Era bem má!... O que iria fazer? Ir para outro eremiterio? para outro logar? Que remedio! Mas

francamente, essa ideia enjoava-o. Perdera o gosto pela vida de saias. Era uma estopada. Tinha compensações, ás vezes; mas por ellas quantos dias e

horas aborrecidas. No momento, porém, o que havia de fazer?

O jantar, por silencios longos, pezava. Durou pouco. A Domingas andava tambem com maus modos, brusca e de poucas fallas.

Entardeceu tristemente. Os dois, muito juntos, na penumbra da sala, conversavam. Em baixo a Domingas descompunha os outros creados em voz

alta.

Com as lagrimas nas olhos, a viuva dizia:

-- Que ha a fazer? o que se póde fazer?

-- Nada, respondia elle. Tenho de sahir d'aqui. Tenho de ir até Portugal. Deixar esquecer...

-- Que tempo? dizia ella doloridamente.

-- O menos que eu puder, dizia elle, abraçando-a. Tu não imaginas quanto me vae custar.

-- E eu? só, de novo. Duas vezes viuva, vê tu.

-- De repente, como se uma ideia subita lhe atravessasse a cabeça, pegando-lhe nas mãos disse-lhe:

-- Queres tu uma coisa?

-- Qual?

-- Tu tens que sahir d'aqui, por força. Dizes que não te demoras, que poderás voltar brevemente... que o poderás fazer...

-- Assim é; assim o creio.

-- Pois bem, ha um meio de tudo se arranjar, de tudo remediar, em bem para ti e para mim.

-- Qual é?

-- Vou comtigo. Leva-me comtigo.

Elle queria lá leval-a para Alcobaça, desfazer-lhe os sonhos da sua grandeza, cahir em reles filho de reles oleiro... Era um perigo. Respondeu com grande firmeza:

-- Não, não, como tu és minha amiga, não. Eu não me demorarei. A tua presença podia prejudicar-me. Depois, eram trabalhos para ti. Para quê?

Não vale a pena. Affirmo-te que não me demorarei, que te não hei-de esquecer, como tu não me esquecerás nunca, não é verdade?

-- Nunca, nunca, dizia ella beijando-o. Elle para não ficar atraz pagava-lhe os beijos, com outros.

-- Como voltarás, tu? como?

-- Como voltarei?

-- Sim; sendo quem? quem és tu? dize-m'o. Não to mereço, agora, n'este momento, em que estás quasi a deixar-me?

-- Que te importa sabel-o? Em breve o saberás. Quando eu voltar e puder dizer a todos quem sou.

-- Quando voltares! mas se tu puderes dizer a todos quem és, n'esse dia, não voltarás mais. Nunca mais te verei... ao pede mim; porque doutro modo hei de ver-te.

-- Ver-me-has, juro-te..

-- Mesmo livre de segredo?

-- Qual segredo? tu és louca.

-- Não és tu o rei? dize-mo. Porque mo não dizes?

-- Tanta vez te tenho dito que não. Não sou. Beijava-a com ternura.

-- Não és! dizia a viuva um pouco abalada na sua crença pela sinceridade da affirmativa;... mas quem és, então? Um fidalgo da sua côrte... um dos que o convenceu a tentar a conquista de Marrocos; um dos que o perdeu e anda fugido?

-- Talvez.

A viuva olhava-o, interrogativamente, á fraca claridade que entrava pela janella. Pareceu-lhe vêr no riso do eremita o quer que fosse de misterioso

e de ironico. Abraçou-se a elle, segredando: Tu mentes, tu mentes, tu és o rei!

-- Não sou, não sou.

-- És, és; eu sinto-o.

-- Pois bem, queres que seja? sou; sou o D. Sebastião, está dito. Não faltemos mais n'isso. A Domingas entrava para accender o candieiro.

Não irei contar aquella noite, a ultima noite.

Quem nunca as passou, as noites de despedida entre dois amantes, adivinha-as. São os protestos de amor eterno, são as juras, as supplicas, os deliquios, as lagrimas, os beijos kilometricos, os arrepios de frio, o calôr exagerado na cabeça, as furias protestantes, os colapsos, até ao bater violento do coração ao chegar da hora, a falta de ar, a acabar

tudo n'um abraço de rebentar costelas e n'um beijo de metter os dentes dentro.

Tal foi a noite, mais uma variante monos uma variante, que passaram, os nossos dois amorosos, á espera que a madrugada rompesse por detraz dos montes de Guadalupe e que dissesse ao Romeu de Alcobaça, pela voz da cotovia, que n'este caso podia ser a da Domingas: já rompe a manhã; é necessario partir.

É que assim fôra combinado.

Ordenara-se que, ao romper da manhã, estivesse o cavallo, o melhor, selado e apparelhado, prompta para viagem.

Assim estava.

Em cima, os dois amantes faziam, em transe doloroso, o apartamento dos corpos com muitas lagrimas da viuva e incitamentos de coragem, do solicito ex-eremita.

Uma maior serenidade, é bom dizê-lo, entrou no espirito do rapaz, quando sentiu que na mão lhe entrava uma bolsa de fio de sêda, pesada, com tinir de oiro.

A viuva era a rainha das amantes. Nada lhe esquecia. Não havia de voltar? Com certeza. Isto o animava para lhe dizer, com resolução:

-- Socega: é um afastamento de dias. Até á volta. Coragem. Para que soffrer assim? Adeus. Adeus. Até á volta.

A viuva reclinara-se-lhe no hombro, pendera-se-lhe do pescoço, desolada.

Pela ultima vez a abraçou e beijou. Desceu. Deu um abraço na Domingas que lhe perguntou:

-- Até breve?

-- Até breve; respondeu convicto.

-- Fico esperando. Lembre-se do alcaide. Montou, no pateo; e, a cavallo, acenou com a mão para o primeiro piso onde o olhavam os olhos orvalhados da viuva Sahiu o portão para a rua. Ella correu a uma janella da frente, a vê-lo ir até se voltar n'um angulo da rua, onde a cumprimentou com o barrete e se sumiu.

A viuva, presa de uma grande dôr, fechou rapidamente a janella e sentou-se n'uma cadeira a soluçar.

A Domingas veiu encontra-la assim, meia hora depois, quando subiu, a começar a limpeza.

-- Ora, senhora, tambem não valem agora esses prantos. Não é morte de homem; credo. Olhe que não vae para a Africa.

-- Não sei, Domingas, não sei. Tenho o presentimento de que não o verei mais.

-- Isso é mania... não ha-de agora vêr. Deixe-o ir arranjar a sua vida. Ia jurar que elle volta... punha a mão no fogo. Porque não ha-de voltar? Tão mal foi tratado?

-- Não foi, é certo, observou a viuva e se voltar, hão-de acabar-se todos os misterios de uma vez.

-- Olhe, se voltar, que volta, fique a senhora certa, ha só uma cousa a fazer. É o que se devia já ter feito.

-- Qual é?

-- É casar com elle, casarem-se. Cala-se a bocca ao mundo. Fica tudo como Deus quer.

-- Casar-mo-nos! já me lembrei... Tanta vez pensei n'isso; mas como?

-- Como? casando.

-- Se elle é quem nós suspeitamos...

-- E que o fosse? volveu a Domingas, com uma convicção forte, na voz... tem-se visto tantas cousas...

-- Tu és doida, mulher, gemeu a viuva, recahindo n'uin choro seguido... foi-se, foi-se de vez e eu não o vereis mais!

A despeito de uma certa pena que não é licito duvidar que tivesse o nosso heroe de Alcobaça, o certo é que quando se apanhou caminhando por entre serras, montando n'um belo cavalo, bem vestido e com a algibeira quente, sentiu um grande allivio na saudade, ao sentir-se na sua liberdade de homem independente.

Não se conteve que não abrisse a bolsa e não verificasse o conteudo.

Ficou contente, pelo ar alegre que lhe veiu ao rosto. Alegre, satisfeito, deu de esporas e duas horas depois, apezar dos maus caminhos, estava na raia.

Parou e dessedentou-se n'uma venda do caminho, mandou tratar o cavallo e deu uma volta pelos arredores. Pela tarde montou de novo e, ao anoitecer, entrava pela vasta planicie de Portalegre.

Subido o monte, entrava pela cidade, noite fechada.

Procurou estalagem, ceou e deitou-se. Tinha, muito em que pensar. Ficava para o outro dia. Dormiu como um abbade e accordou cedo.

Sonhava com a viuva e acordou pensando n'ella. Era uma bela creatura, realmente. Era linda e ainda em cima, dedicada, amorosa, franca. Que penna ter-se perdido. Perdido? Não. Elle havia de voltar. Como? Ia pensa-lo. Arranjar uma posição, um nome, de que ella não pudesse envergonhar-se e que lhe garantisse a immunidade contra o prior e o alcaide de Albuquerque. O que havia de ser? Lembrou-se do padrinho frade. Era homem de ideias, muito entendido na vida. Iria consulta-lo. Elle diria como se havia de resolver a questão. Esta lembrança sorriu-lhe. Está dito; vou até Alcobaça e de caminho sempre vejo os meus.

Levantou-se com todo o vagar e chamou, a porta do quarto. Veiu um creado, a correr. O homem impunha-se pelo cavalo, pelo fato, pelo ar. Julgaram-no fidalgo, ou escudeiro de casa nobre e rica. Pediu almoço; uma garrafa do melhor vinho. Correram a servi-lo. Almoçou com apetite, pagou com generosidade e montou, caminho do Crato. D'ali, foi por Ponte Sôr, Abrantes, Torres Novas, até Alcobaça.

A viagem não teve episodio digno de memoria. A entrada em Alcobaça essa é que produziu sensação.

O filho do oleiro, com tão bello cavallo, fato de fidalgo, dinheiro no bolso... Ali havia cousa.

Para se averiguar se havia ou não o alcaide prendeu-o.

Prendeu-o e interrogou-o.

-- De quem é o cavallo?

-- É meu.

-- Como o compraste?

-- Não o comprei. Deram-mo.

-- Quem t'o deu?

-- Quem me deu este fato e o dinheiro que trago commigo.

-- Mas quem foi?

-- Quem não é da sua conta. Que tem você com isso?

-- Mas quero saber quem foi; emquanto não souber não te solto.

-- Pensa que roubei, não é verdade? Então veja se acha alguem que dê os signaes do cavalo e do fato e que lhe pertençam.

-- Então se os não roubaste, porque não dizes quem t'os deu?

-- Porque não quero- Atravesso meio paiz e só aqui é que embirram commigo. Na minha terra. Olhe, quer saber? Deu-in'o uma mulher.

-- Hein?

-- A mulher mais bonita de Hespanha. Uma coisa como você em toda a sua vida nunca viu... e então apanhar... tó carocho. Deu-lhe uma gargalhada na cara.

-- Estás a divertir-te commigo? pois tens que te divertir sósinho, porque emquanto não explicares d'onde te veiu tanto luxo, não sahes d'aqui.

O alcaide fechou a porta da cadeia e disse-lhe pela grade:

-- Quando te resolveres a confessar, manda-me chamar.

E, foi-se.

O caso era serio. Elle não estava resolvido a passar o dia e a noite n'aquella enxovia da cadeia.

O alcaide era bruto e teimoso. Como havia de explicar-se? Se, dizia quem lhe dera cavallo e dinheiro o que aproveitava? Não o acreditavam, da mesma maneira. Havia de ficar á espera que lhe reconhecessem a innocencia? Como havia de ser? Contar a verdade ou não contar cousa nenhuma era a mesma coisa. Iam a Albuquerque saber do caso?

N'isto, o pae que soubera da prisão do filho apparecia a este lembrando-se de quem lhe poderia valer o padrinho, pediu ao pae para o ir prevenir e pedir-lhe que o viesse vêr.

Assim se fez, e o rapaz tendo contado ao frade todo o acontecido, sob juramento, este pediu ao alcaide que soltasse o afilhado e, sob a sua responsabilidade, o ex-eremita foi solto.

A entrada na sua terra não lhe agradou lá muito; mas, emfim. precisava de conversar com o padrinho, arranjar a vida, vêr como conseguiria um nome. Tinha de se demorar.

O frade que gostava do rapaz, do feitio alegre e aventureiro do afilhado, prometteu e tinha desejo de o servir. Mas como? O que havia de ser?

Os mezes foram passando. Não se descobria solução para o problema.

Para economisar o peculio vendeu o cavallo. Andava a pé. Um dia em que abalara pela estrada de Leiria teve um encontro curioso.

Á borda da estrada, um homem ainda novo, mas avelhentado, sentado à sombra de um vallado, comia um magro almoço.

Tinha ar de mendigo e ar de soldado, a julgar por uma especie de capacete que usava na cabeça e um cinto de couro que lhe apertava á cintura um gabão desbotado e mais que roto.

Quando elle passava o homem pediu-lhe esmola. Parou. Perguntou-lhe quem era? Era filho de Leiria. Ia para a terra, mendigando.

D'onde vinha? Da Africa. Fôra do terço de D, Manuel de Noronha, que era o de Santarem. Ficara prisioneiro, mas como nada esperassem pelo resgate -- d'elle como de tantos outros -- mandaram-no embora, ao fim d'um anno. Chegou a Arzila, a pé, através dos areiaes ardentes, atravessando de novo o sitio da batalha. De Arzilla passou a Ceuta, onde uns hespanhoes o trouxeram n'um

barco para Hespanha, para Cadiz. Esteve, ali mezes a trabalhar, nos cães, para arranjar dinheiro, para pagar a passagem n'um barco até ao Algarve, ao menos. Trouxeram-no uns pescadores de Lagos, e de Lagos partira a pé, terra acima, até ali, pedindo, vivendo de esmolas.

Gastára mezes. Adoecera pelo caminho. Não podia andar.

Tinha febres. Viera de abegoaria em abegoaria; hoje melhor, amanhã peor. Á maneira que se approximava da terra, melhorava. Sentia-se melhor. Se a mãe fosse viva ainda, a velhota, tudo se acalmaria. Um pouco de descanço, os cuidados d'ella, a saude voltava. Deus que o trouxera até ali, lá sabia para quê. Só o prazer e o espanto que ella vae ter em me vendo! E eu? Deus a não tenha morto!

-- E veiu você pedindo pelo caminho, sempre?

-- E não me faltou a esmola, graças a Deus.

Em dizendo que era um soldado de Africa e d'onde vinha e como, todos me soccorriam. Quasi não ha terra onde se não chore alguem morto, lá.

-- Uma ideia luminosa passou pela cabeça do filho do oleiro.

Ser soldado de Africa era uma posição rendosa? ahi estava um officio a aproveitar. Pensava em voltar a Hespanha. Como eremita não se sentia disposto. Como. soldado de Africa, arranjaria de comer pelo caminho. Era o preciso; A bolsa estava a minguar, e de tantas moedas de oiro, tinha uma.

Era preciso ir ter com a viuva, fosse como fosse. Amava-o, perdoar-lhe-hia a Sua origem obscura; viria com elle, talvez ...

Soldado de Africa! não era mal lembrado. Elle faria de escudeiro, de fidalgo de nome. Era mais elevado.

Como percebesse que o homem ia por Aljubarrota, o que era natural, fez-se de ida, tambem, para lá, e foram, de conversa, pelas duas léguas da estrada.

O soldado, como era natural, não fallou d'outra cousa mais do que da sua aventura; e o nosso oleiro filho, ia ouvindo com a maior attenção. Quando chegaram ja Aljubarrota entraram n'uma venda. O oleiro pediu de comer e vinho. Sentaram-se os d is e o ex-eremita fez repetir pontos, explicar passagens, descrever logares e homens, quanto o soldado sabia e como podia, de modo a ficar com uma ideia a mais perfeita da expedição e da batalha.

Era o quo elle precisava, para encontrar lá um logar.

Pela noite, o soldado pediu agasalho n'um palheiro onde se deitou, e o nosso homem veiu para Alcobaça, a construir, a architectar a sua nova incarnação, por entre as sebes dos valados, no silencio propicio da noite.

Tendo conversado, por vezes, com o padrinho sobre o mesmo assumpto, quando imaginou que tinha o papel bem estudado, bem na cabeça, um bello dia desappareceu.

Não causou grande espanto a subita ausencia. O pae considerava-o um vadio incorrigivel. O frade padrinho, quando o soube, limitou-se a sorrir e a

dizer: «Foi ás gatas», pensando intimamente: «O rapaz estava já a dependura, foi dar uma volta por Hespanha.»

Não se enganava. Pelo quasi mesmo caminho por que viera, dirigia-se para a fronteira e, agora, soldado, entrando pelas tabernas, contando historias da batalha, perigos atravessados, soffrimentos, cousas terriveis e nunca ouvidas.

Improvisador habil, ardente de imaginação, bem fallante, ouviam-no por todo o caminho, embasbacados e doloridos os camponezes broncos e as mulheres curiosas e affectivas.

Não faltavam esmolas que soccorressem o pobre soldado, nem camas, mais ou menos rusticas, onde dormisse. Elle pagava em tudo, narrando peripecias dos prisioneiros em captiveiros horriveis, chicoteados pela mourama bravia, cheios de fome e de feridas, aos credulos rusticos sentados em roda das lareiras, e ainda aos ricos, a quem a aparencia de verdade das suas palavras tomava não menos credulos, nem menos generosos.

A vida era, realmente, bôa e facil; mas tinha de ter termo um dia. Não poderia passar o resto da vida a ser soldado de Africa, dirigindo-se para o

norte em busca da casa. O norte havia de aproximar-se um dia. O campo a explorar tinha um termo. De mais, aquelle modo de vida fôra um expediente. Dava os melhores resultados; mas não era o fim. O fim era ir a Albuquerque, apparecer, de novo, á ,viuva; trazel-a, arrebatal-a pela paixão e depois, acontecesse o que acontecesse, que mal não lhe podia d'ahi vir? nenhum.

Que havia ella de fazer? Deixal-o? partir, de novo, para Castella?

Era o que podia succeder de peior. Não era grande cousa, afinal.

Além d'isso a imagem da viuva perseguia-o, com certa temia.

Lembravam-lhe os dias bellos e as noites anda mais saudosas que com ella passara, e o desejo fazia-i sentir intimamente uma vontade energica de a vêr, de a ouvir, de a ter, de a beijar muito, novamente.

Na primeira noite que entrou em Marvão, -- vamos encontral-o subir a ladeira de Marvão, -- no pobre grabato de uma estalagem onde se acolheu, o nosso heroe resolvia-se descer, no outro dia para para os lados da Hespanha e alcançar Albuquerque.

Como não lhe convinha, nem era sem precizo, conservar o feitio que levava, por ser facilmente reconhecivel, comprou uma manta ordinaria, um barrete grosseiro, uns alforges e prevenido para o disfarce quando entrasse em Albuquerque, no outro dia, abalou pela Hespanha dentro.

Mal quo se apanhou entre serras, em sitio apropriado, escondeu o chapeu e o gibão, rasgou e enxovalhou quanto lhe pareceu bastante, manta, barrete e alforges, embrulhou-se na primeira, enterrou o segundo na cabeça até ás orelhas, pôz ás costas os alforges e arrancando a um carrasqueiro um bordão alto, foi mendigando pela estrada caminho de Albuquerque.

Pela tarde em que chegou ao sopé do monte onde, lá no cimo, por entre a folhagem espessa, por vezes se avistava a ermida solitária teve uma certa saudade do sitio por lhe lembrar que fôra alli que conhecera a viuva e a vira pela primeira vez.

Descançou á margem d'um pequeno riacho debaixo de uns salgueiros á espera que o sol baixasse, de modo a entrar na villa ao escurecer.

Sabedor do caminho, calculou tão justamente, que ao toque das Avé-Marias entrava uma das portas da villa gemendo a sua cantilena de pedinte, ao pé de cada porta: seja louvado e adorado Nosso Senhor Jesus Christo! Uma esmola pelo divino amor de Deus.

Foi-se aproximando da casa. De longe, á maneira porque se avisinhava d'ella, sentia um peso no coração. Era alegria, receio, duvida de como seria recebido? O que faria ella, ao vêl-o? Tel-o-hia esquecido! tinham-se passado tantos meses! Ao mesmo tempo o coração batia-lhe apressado e a voz tremia-lhe um pouco na lenga-lenga da esmola.

Mais perto viu que as janellas do primeiro andar estavam abertas, cousa rara n'aquella casa.

Esperava vêr surgir n'alguma d'ellas a cabeça encantadora da viuva ou a cara azougada da Domingas.

Nenhuma apareceu.

Aproximou-se, dentamente, com o passo lento, encostado ao bordão, dando impressão de muito mais velho, de cançado pelo andar, rojando os pés.

Quando passou pelo portão do pateo, olhou e pareceu-lhe que havia lá dentro maior movimento do que d'antes; vozes de creados sahiam das cocheiras; atravessava um, de casa, com uma lanterna acessa.

Não era natural aquelia animação. De novo se sentiu mal impressionado; mas reagindo contra si proprio levantou a aldraba da porta principal e deixou-a cahir, pesadamente, resmungando, com voz soturna: seja louvado e adorado Nosso Senhor Jesus Christo.

Ouviram-se passos, ergueu-se o trinco e a figura da Domingas apareceu, perguntando: quem é?

Ao dar de cara, com o pobre, nem o fixou, voltou-se, caminhando para dentro e prevenindo: espere um instante.

Foi á cosinha e voltou com um naco de pão, onde mettera abrindo-o, um boccado de carne.

Antes, o pedinte deitára o olhar para dentro de casa e não vira differença na entrada, tudo estava silencioso, lá dentro. Os passos da Domingas a ouvirem-se de novo, elle a encostar-se á porta, o corpo meio mettido para dentro, em posição abatida; esperando.

-- Dê-me o seu alforge, disse a Domingas, se não quer antes ir comer isto alli para o pateo.

-- Não, não, antes aqui, dizia o pobre, abrindo com difficuldade calculada a bôcca de um dos saccos, antes aqui.

Não conseguindo facilmente o que queria a creada ajudou-o.

-- Espere ahi; você não tem engenhos. Homem... tire as mãos.

Elle olhava-a sem ella se aperceber; até que tendo deixado cahir no sacco a esmola e erguendo o olhar o viu, de subito, fazer-lhe um signal com a cabeça, como quem pede a outrem que se aproxime.

Instinctivamente, chegou-se para o mendigo. Este, baixando a voz, mas sem a disfarçar, perguntou, compondo os alforges:

-- A senhora D. Angela está bem?

-- Hein? exclamou a creada, recuando um pouco, reconhecendo aquella ivoz.

-- Está bem a minha senhora? perguntou de novo o pedinte, olliando a Domingas.

Esta que o reconheceu não se teve sem exclamar:

-- Virgem Santissima... sois vós? Quem havia de pensar... Mas ide-vos, ide-vos d'aqui. Agora, agora, vindes!...

-- Que me vá?

-- Sim.

-- Porquê? Não me esperavam? Não disse que voltava?

-- Sim; mas voltou o outro... há dois meses...

-- Qual outro?

-- O marido!

-- Com mil diabos, ia a dizer o pedinte, esmagado pela impressão da novidade; mas conteve-se, olhou a creada e aparvalhado ficou silencioso.

A Domingas é que, como mulher não pôde deixar de querer saber mais algum pormenor.

-- Vinheis de todo? Arranjastes as vossas cousas? Vínheis dar essa noticia? Estava tudo prompto?

-- Tudo.

-- Mãe Santissima, o que é o mundo! exclamou a Domingas pondo as mãos.

-- E, agora? perguntou o aparvalhado amante, o que ha a fazer?

-- É irde-vos embora. Mais nada. Que quereis fazer?

-- Se eu a visse! exclamou o ex-eremita, como quem não sabe o que diz.

-- Vêl-a? Deixai-vos de tontices... acabou-se... Não vos demoreis por aqui... Se vos reconhecem... adeus, adeus.

Ia fechando a porta.

-- Dizei-lhe ao menos... clamava o misero...

-- Não tenho nada a dizer-lhe .... Nem vós ... Seguide o meu conselho: ide-vos depressa .... adeus... Nossa senhora vos acompanhe... Maria Santissima, Maria Santissima! e fechou a porta na trinco.

E, esta? murmurava o nosso homem, em pé, defronte da porta fechada, esta é que eu não esperava. O maldito! Não se lembra de apparecer quando todos o julgavam enterrado e podre?! Não houve um diabo de um arabe negro que o estirpasse.

-- Estou servido.

-- Nem mulher, nem dinheiro, nada. Volto a ser soldado de Africa. Não tenho sorte. Por mais que queira socegar, assentar a vida, não é possivel. Até os mortos apparecem...

Com estas considerações o nosso pobre ia caminhando e dírigindo-se para as portas. Não era prudente ficar na villa. Nada tinha que fazer ali...

Era melhor sahir. Passou as portas e pezaroso começou a descer a ladeira que baixa da villa. Por ali passara, mezes antes, a cavalo, bem montado,

rico, feliz. Agora ia, a pé, cançado, meio fugido. Não andava com sorte. Sentia-se fraco... era fome.

Anoitecera. Resolveu ceiar. Procurou um logar abrigado, que servisse de casa de jantar e de quarto de cama. Ceiou com apetite.

Soube-lhe bem o farnel da Domingas. Aconchegado o estomago, voltou-lhe o bem estar.

-- Vamos a dormir... viuvas não faltam... o que não tem remedio está remediado.

Enrolou-se na manta, ageitou-se no chão, deitou a cabeça sobre o braço direito e adormeceu. A inocencia é o melhor dos narcoticos.

Na madrugada, quando acordou e se poz em marcha, resolvera o que não podia deixar de resolver, em tal situação: continuar a vida anterior.

Oue havia de fazer?

A sorte tem muitas vezes estes caprichos; direi melhor, a sina.

Um rapaz tenta reformar a existencia; deseja tornar-se sério, contrahir estado, socegar. Adoravel intento.

Traça o seu plano; escolhe a companheira. O ocaso encarrega-se de deitar abaixo o mais bem urdido calculo o heil-o forçado, de novo, á vida aventurosa, de que queria fugir.

A fatalidade não é uma palavra vã.

Felizmente, esta fatalidade casava-se com o genio aventuroso do perseguido, lançava-o n'um caminho que elle trilhava sem grandes opressões de consciencia.

Chegando ao sitio onde escondera o gibão e o barrete vestiu-os de novo. Atirou fóra a manta, o barrete de lã e os alforges, e novamente, soldado

de Africa, entrou em Portugal.

No outro dia estava em Portalegre a começar a sua interrompida comedia.

De novo as praças e, sobretudo, as vendas, as estalagens, foram o campo escolhido para as suas proezas de narrador. Agora, porém,, a soa palavra

ia ser escutada com mais interesse; a sua figura examinada com mais cuidado.

Á força de repizar factos que elle nunca vira, batalhas em que não entrara, perigos que não correra, como vem sempre a acontecer, o mentiroso, começava a persuadir-se de que realmente todas essas cousas passára.

Isto dava mais calôr ás narrações e mais verosimilhança á lenda.

As saudades, cada vez maiores, de liberdade perdida, corriam dia a dia, augmentavam, tomavam vivacidade tal que em muitos portuguczes degenerava em fanatismo.

O fanatismo é cego.

O filho do infante D. Luiz, o rei D. Antonio, ninguem sabia bem o que lhe acontecia, o que fazia lá fóra.

O povo não o sabia. Imaginava-o proscrito para sempre, impossibilitado de voltar a Portugal, onde tinha a cabeça a premio.

Aonde collocar uma esperança? Nos homens? Que homem havia que pudesse libertar o desgraçado paiz, cada vez mais fraco, mais anniquilado, por um dominio de quatro annos que pareciam quatro seculos?

Não havia um homem? A imaginação popular não parara por isso. Não havia um homem? Appareceu uma sombra.

D. Sebastião não morrera. Esperava-se vêl-o surgir, de novo, fero e redemptor.

Era uma anciedade que havia de ser satisfeita; era uma crença, uma convicção arreigada na alma popular.

Aconteceu, pois, que um bello dia alguem que ouvira falar o rapaz, que lhe vira os modos e a audacia começou a desconfiar d'elle.

Tanta certeza nos detalhes, tanta sciencia em citações latinas, -- restos do convento, -- até falando arabe; -- sabe-se que o velhaco falava por vezes uma algaravia que dizia ser arabe -- não eram de simples escudeiro.

Quem seria? Quem podia ser? E, no pensamento surgiu no cerebro alucinado de um ouvinte: será D. Sebastião?

Uma ideia que nasce n'um cerebro popular e dita, se casa com os sentimentos da multidão, é uma onda electrica que corre n'um fio.

Vôa com uma rapidez de gaivota acoçada pelo temporal: espalha-se, enraiza-se, domina, torna-se uma força invencivel.

Ao primeiro que suspeitou da qualidade do narrador associou-se o segundo, a quem este contou a sua suspeita; ao segundo e terceiro e d'ahi a pouco tempo toda a gente que o ouvia estava convencida que era o rei, disfarçado.

Para que? elle o sabia. Receio de apparecer; plano guardado com cuidado amadurecendo? Fosse o que fosse, no que não havia duvida era em que não fosse o rei.

O povo assentou n'isto e dizia-lho, perguntava-lho:

Sois o rei? Porque o negaes?

Dizei que sois o rei. Todos o advinhamos.

O narrador sorria; não respondendo, ou respondia de modo ambiguo e confuso, de maneira a não poder concluir-se positivamente, se o era ou não era.

Como reparassem que elle não gostava de ser interrogado sobre tal assumpto, guardavam-se de o fazer, não desanimando, por esse facto, a sua crença.

Mas não foram só, os pequenos, os humildes que o acreditavam D. Sebastião; os ricos, os bem colocados, foram na onda e o rapaz via-se de repente -- era a segunda vez -- elevado a rei.

Como tal, as dadivas começaram a afluir cada vez mais grossas e elle começou a ter uma especie de côrte, que o seguia e o rodeava, respeitosa.

De tal modo a generosidade oculta dos ricos começou a protegel-o, que passado tempo, comprava novo cavalo, fato novo e -- o que o fazia inda mais rei no animo popular -- repartia dinheiro, por aquelles que a principio o tinham soccorrido.

Depois de uma pequena ausencia de Penamacor, voltou acompanhado por dois homens.

Quando os apresentou na casa particular de um dos seus maiores adeptos, disse-lhe modestamente os nomes: D. Christovam de Tavora! o dom bispo da Guarda!

Eram os maiores e mais intimos amigos de D. Antonio.

Isto fazia suppôr uma aliança, um'trabalho oculto, com o desterrado.

Desde então, não se recusou mais a acceitar o titulo de rei e deixava que lhe prestassem, com mais ou menos rapidez, as honras de monarcha.

Queriam por força que fosse o rei? pois elle ali estava.

Passava uma vida regalada, cheia de dinheiro e de attenções.

Todos o queriam obsequiar, servir.

Passeava pelos arredores de Penamacor; descia a Portalegre, subia á Guarda.

Levava sempre os dois confidentes e validos, que lhe não eram inferiores em desplante e audacia.

Assim, conta-se, que entrava n'uma estalagem, mandava recolher e tratar os cavallos e pedia de comer.

-- Do melhor que haja, avisava o bispo da Guarda.

-- Do melhor vinho, observava o D. Christovam de Tavora. Tratavam-se, comiam e bebiam, lautamente.

Ahi pela altura das sobremezas, levantava-se um dos commensaes e, disfarçadamente, como quem não mede o alcance do effeito a produzir, dizia para o estalajadeiro:

-- Não tens por ahi vinho mais velho, dôces, mais fructas?

-- O que tenho de melhor já mandei servir.

-- Não é sufficiente..., continuava, como que hesitando, o freguez. É bom o que nos tem servido; mas era preciso que fosse ainda melhor.

-- Ora essa, porquê? O vinho é bom... Chegando-se ao estalajadeiro, com ar de segredo, dizia-lhe a meia voz:

-- Você sabe quem está a servir?

-- Uns fidalgos...

-- Sim, o maior fidalgo da nossa terra... D. Sebastião!

-- O rei?! exclamava o estalajadeiro embasbacado.

-- Silencio, ordenava o astuto revelador, silencio. El-Rei não quer ser conhecido. Veja lá.

-- Ora essa. O homem já não sabia o que havia de fazer. Desrolhava a melhor garrafa do deposito; corria ao convento mais proximo a buscar o ultimo dôce; colhia o melhor fructo do pomar; desfazia-se em attenções, a olhar de soslaio o rei, attencioso, serviçal e infatigavel.

Acabado o jantar, ao pedirem-lhe a conta:

-- A conta? ora essa, nunca! E curvava-se em mesuras para os fidalgos, recurvava-se a bater com as mãos no chão, ante o rei que passava por elle, sorrindo-lhe agradecido e carinhoso.

-- Meu senhor! quando vossa magestade se dignar.

Não podia dizer mais; faltava-lhe a voz.

Este episodio e outros semelhantes renovavam-se todos os dias e o nosso rei e a sua côrte, porque chegou a arranjar uma especie de conselho de estado e de conselho de guerra, viviam já n'uma ampla casa, especie de palacio real, com guardas á porta.

Até ali, nunca imaginara chegar o nosso ex-eremita.

O soldado de Africa subira de posto tão facilmente que ás vezes dizia rindo para os dois validos, na intimidade da ceia:

-- Vocês hão-de ver que ainda me fazem imperador de Marrocos.

No que tudo aquillo iria dar, nenhum d'elles pensava, nem lhe importava muito.

Nem viam, talvez, o perigo futuro de arranjar uma côrte que começava a dar que faltar, no mesmo paiz, onde o cardeal Alberto tinha a sua,

governando em nome de Filippe II.

As eminencias desvairam.

Um dia, porém, acordaram do sonho.

Comprehende-se, que tendo Penamacor dentro dos seus velhos muros nem mais nem menos que el-rei D. Sebastião, andasse alvoraçada a villa.

Tão alvoraçada que mais parecia uma cidade, pelo movimento de todo o dia, nas ruas e praças, que lhe davam os forasteiros que de toda a parte

vinham para ver, para felicitar e presentear o rei.

A romaria crescia, dia a dia.

Um tal movimento, não tardou a dar que fallar. Os que iam ver o rei ficavam encantados e espalhavam na volta a nova por casaes e aldeias.

Uma nova de tal gravidade, começou a correr o paiz com a velocidade que se calcula e não tardou que chegasse a Lisboa.

D. Sebastião apparecera, voltara de Africa ou de Jerusalém onde fôra e estava em Penamacor.

A novidade, se despertou a curiosidade e o interesse popular, não fez grande impressão na côrte.

O cardeal Alberto era homem atilado e prudente.

De mais sabia elle que D. Sebastião estava morto e bem morto e achou até certa graça á noticia.

Imaginou que um doido qualquer se intitulava rei e não viu que d'ahi pudesse resultar mal algum. Cousas do povo, loucura da plebe?

No entanto as noticias chegavam cada vez mais precisas.

O rei creára casa; era recebido e tratado como tal; tinha creados, côrte, guardas.

O cardeal não podia mostrar-se indifferente aos avisos que recebia, mandou ao juiz de fôra de Penamacor, um tal Leitão, que procedesse.

Este abriu a devassa. Os populares interrogados juravam, todos, que aquelle era o rei D. Sebastião.

Chamou ao tribunal o roi, os validos e vários populares.

O rei apresentou-se rotn o semblante alegre, despreocupado, risonho.

O fidalgo Christovam de Tavora e o bispo da Guarda tinham o ar mais serio, mais preocupado.

Lá lhes pareceria que a tranquilidade dos jantares e das ceias não estava muito segura.

O juiz começou o interrogatorio pelo rei, como era justo.

-- Dizem que sois D. Sebastião, sois realmente o rei?

-- Elles o dizem, respondeu altivamente o interrogado.

-- E vós o que dizeis?

-- Nada tenho a dizer-vos.

-- Como assim? Não confirmaes que sois el-rei D. Sebastião?

-- Nada tenho que confirmar, respondeu com a maior placidez o ex-eremita.

-- N'esse caso dizeis que o não sois.

-- Repito-vos que não affirmo nem nego cousa alguma. Tomae-me vós por quem quizerdes. Como vos aprouver.

-- Todos, porém, affirmam que sois D. Sebastião. Todos o dizem. Vós mesmo o confirmaes porque não regeitaes o titulo nem as honras.

-- Isso é com elles; replicou o ex-eremita. É a elles que tendes de perguntar porque o fazem. Elles são os responsaveis pelos seus actos; não eu.

-- Recusaes-vos, pois, a dizer se sois ou não o rei?

-- Nada tenho nem posso dizer-vos a esse respeito. Nada direi.

Assim elle continuava a deixar ficar o povo na crença da sua realeza. Não queria dizer, pensava o povo, bem sabia porquê.

Não era a um juiz qualquer que o rei havia de dar satisfações.

O juiz continuou:

-- Não quereis confessar quem sois? Dicididamente?

O rei calou-se.

Mal vos irá porque terei de proceder contra vós. Não sois o rei porque o rei morreu.

Um sorriso passou pelo rosto de D. Sebastião. O povo teve um murmurio de reprovação.

-- O rei morreu, continuou o juiz, vós, que andaes a usurpar-lhe o nome...

-- Nunca! observou o falso rei.

-- Andaes a amotinar a villa, a desorientar o povo, a produzir a desordem. Dizei quem sois.

O interpelado conservou o mais intencional dos silencios.

-- Como vos chamaes?

O mesmo silencio altivo correspondeu á interrogação mais vibrante do juiz.

-- Nada ganhaes com o callar-vos. Serei obrigado a prender-vos e a enviar-vos para Lisboa, se vos obstinaes em aparentar de rei. Confessae antes que o não sois. Ide para a vossa terra; deixae-nos em paz. Perdoar-vos-hei e aos vossos.

O juiz queria ver se o apanhava pela generosidade, a confessar a mentira.

Prevendo o ardil, o falso rei apenas respondeu:

-- Nada tenho a confessar-vos. Não cometti crime algum que me peze na consciencia.

-- Conffessal-o-heis d'outro modo observou-lhe o juiz; olhae que melhor vos fôra fazel-o, aqui, do que em Lisboa.

-- Porquê?

-- Não terão lá, comvosco, tanta complacencia.

Um ruido que vinha das bancadas populares encheu a sala.

O juiz enrugando o semblante, gritou: callae-vos, vós, lá.

Depois, voltando-so, novamente, para o interrogado, disse-lhe:

- Pela ultima vez, dizei-me: sois D. Sebastião? Não sois? Se o não sois, como vos chamaes e qual é o vosso estado?

- Nada posso dizer-vos, respondeu com a mesma placidez o teimoso. Perdeis o vosso tempo a interrogar-me.

O juiz voltou-se para o que se inculcava D. Christovam de Tavora e perguntou-lhe:

-- Como vos chamaes?

-- Christovam de Tavora.

-- Tendes a certeza d'isso?

Ora, essa; não hei-de saber quem sou?

-- Talvez não, disse o juiz sorrindo. Já vamos vêr isso. Dizei-me primeiro, -- indicou o falso rei -- conheceis este homem?

- Perfeitamente.

-- Quem é?

-- D. Sebastião.

-- O rei de Portugal?

-- Esse mesmo.

-- Mas el-rei D. Sebastião morreu na batalha; viram-lhe o cadaver; como é que está aqui?

-- Se está alli é que não morreu. Se morresse não estava.

O povo riu da maneira de responder, grosseira e brusca.

-- Salvou se da batalha? Viste-lo sahir? disse o juiz.

-- Acompanhava-o eu.

-- Tende-lo acompanhado, sempre?

-- Não. El-rei foi para a Terra Santa, eu vim para Portugal.

-- Tinheis combinado encontrar-vos, aqui?

-- Tinhamos combinado que nos encontrariamos em Portugal.

A terra não é grande. Havíamos de nos encontrar, por força.

-- Foi então o acaso que vos renniu?

-- Talvez.

-- E ao sr. bispo da Guarda, tambem? perguntou o juiz olhando para o segundo valido que se conservava pensativo.

-- Egualmente, respondeu este.

-- Ha casos singulares, cascalhou o juiz, a que o bispo da Guarda respondeu, com uma grande ironia: -- quem se quer bem sempre se encontra.

N'esta altura o juiz estava plenamente convencido de que o rei era um patusco, finório, que aproveitara a credulidade popular e se fôra servindo d'ella.

Quanto aos dois validos, ministros e altos dignitarios, o bispo da Guarda e Christovam de Tavora, não tinha a menor duvida de que eram dois

tunantes.

Era preciso, porém, interroga-los e começou pelo bispo.

-- Diga-me quem é, se faz favor.

Toda a gente o sabe, respondeu o bispo, não o occulto

-- Mas diga-o, mandou o juiz Leitão, imperativamente.

-- Sou o bispo da Guarda, respondeu o interrogado, fleugmaticamente.

-- O amigo, o confidente, o valoroso conselheiro de D. Antonio?

-- Esse mesmo, confirmou o descarado, com o maior desplante.

-- Provae-me o que dizeis.

-- Como posso proval-o? Sou eu; que mais é preciso?

-- Andastes sempre com o pretendente, até elle sahir do reino?

-- Andei.

-- Assististes portanto á sua aclamação em Santarem. Era ali a vossa morada, segundo se sabe. Contae-me como isso foi.

O interrogado guardou silencio: estava apanhado.

- Contae o que se passou, como se passaram os factos. Ninguem melhor do que vós o poderá fazer. Será uma prova de que sois o bispo. Que melhor maneira quereis de vos justificar? accentuava o juiz, com um riso de ironia, na face.

Como ainda não respondesse o atrapalhado bispo, o juiz continuou:

Houve um facto que não nos deve ter esquecido. D. Antonio deveu-vos a vida. Como foi? Deixae a modestia. Contae.

Não tendo previsto esta pergunta, e não sabendo cousa alguma do facto, não tendo as qualidades de improvisador que salientavam a pessoa do eremita quando d'ellas precisava, o falso bispo da Guarda embuchou, lamentosamente.

-- Não tendes boa memoria, pelo que vejo, observou-lhe com serio aspecto o juiz. Pois é pena que tão alto senhor não possa desfazer a suspeita

que pesa sobre a sua identidade.

Em Lisboa vos farão, talvez, apurar mais a memoria, se não quereis dizer-me, francamente, quem sois. Voltou-se para o réu:

Deixemo-nos de comedia, volveu, passado um instante de reflexão; deixemo nos de mentiras, dizei já quem sois, depressa.

O interpellado respondeu com a maior placidez e lentamente:

-- Sou o bispo da Guarda.

-- Amarrae-o, mandou o juiz, enfurecido, ao corregedor, que com dez soldados assistia ao interrogatorio; eu lhe darei o bispado.

Depois voltou se para o pretenso Christovam de Tavora:

-- Quanto a vós, senhor D. Christovam de Tavora, se o sois, dizei-me alguma cousa da vossa familia... dos vossos.

-- Da minha família? perguntoa perplexo o falso Tavora.

-- Sim, replicou o juiz, deveis saber de quem sois filho, creio eu. Dizei me o principio da vossa casa. Quem eram os primeiros Tavoras, d'onde vieram, em que reinado tiveram titulo e nobreza. Ha algum fidalgo que não saiba a origem da sua casa e do seu nome?

O juiz Leitão, como se vê, era homem de boas-ideias. O interrogado, que sabia tanto da casa dos Tavoras, como o que se passava na China áquella hora, começou a balbuciar cousas sem nexo.

- Já vejo que tambem estaes desmemoriado, ali como o vosso amigo o bispo da Guarda, observou o Leitão. Tem graça.

Acho melhor que digaes quem verdadeiramente sois, porque mais facil vos será obterdes perdão das vossas aventuras. Dizei quem sois, vá, deixae-vos de fingimentos. Olhou-o imperiosamente:

-- Quem sois? de verdade.

-- Christovam de Tavora.

-- Amarrae-me tambem este fidalgo, exclamou o juiz para os soldados.

N'este momento, o povo que invadira mais de metade da sala e que já rumorejava á prisão e amarradella do primeiro ministro, começou a barafustar e a soltar gritos:

-- Fóra o juiz!

-- Fóra o vendido!

-- Abaixo o castelhano!

-- Ponde me toda essa genfe lá fóra; exclamou o Leitão levantando-se colerico na cadeira de espaldar; rua e já.

O alcaide tirou da espada, os soldados inclinaram as alabardas direitas aos corpos, caminhando contra a onda.

Um momento depois a multidão vociferava, na rua.

Dentro, o juiz chegava se ao ex-eremita e dizia-lhe:

-- Quanto a vós, aconselho-vos a que vos desmascareis. Nenhum proveito tiraes em sustentar um papel que não podeis representar de modo algum.

Nada vos faz parecer D. Sebastião: nem edade, nem figura, nem rosto. O gracejo vae sahir-vos caro. Dizei quem sois. Para divertimento já basta, e é perigoso. Continuaes a sustentar que sois o rei?

O ex eremita para o não affirmar, positivamente, o que nunca fez, respondeu despreoccupadamente, com esta ingenuidade:

-- Quem quereis que seja?

- Pois sêde o que quizerdes, concluiu o juiz, já farto de teimosias e de embustes. Lavo d'ahi as minhas mãos.

D'ahi a pouco, no meio da escolta, seguidos pela multidão, que vociferava e injuriava, os tres heroes entravam na cadeia de Penamacor, uma casa trrrea e gradeada dentro dos muros do castello, ou forte,

junto á casa da camara.

Aquella primeira noite não agradou, decerto, aos tres martires. Occupar os altos togares cá n'este mundo, tem, por vezes, graves inconvenientes e não menores perigos.

O ex-eremita já fôra duas vezes D. Sebastião. Da primeira, foi-lhe vantajosa a subida ao throno. Entregára-se-lhe uma bella mulher, uma hespanhola ardente e apaixonada.

Da segunda vez, os começos do reinado não tinham sido peiores; honras, dinheiro, uma vida lauta, e, como é de presumir, uma ou outra burgueza que se não desprezasse de partilhar do thalamo real.

Estava gostando de ser rei, ainda que n'uma côrte resumida e modesta. Não era de exigencias.

Não ambicionava tanto; não imaginava mesmo que isto de ser rei, de ter vassallos, de ser tratado por magestade, de ter as honras e proveitos fosse coisa tão facil.

Se o imaginasse já o tinha sido de mais tempo. Por vezes punha-se a pensar: porque não hei-de ser realmente o rei? D. Sebastião já morreu; mas esta gente não quer que elle tenha morrido. Ha-de estar vivo, por força. Esteja.

Precisa d'elle, precisa de pôr na frente um homem com esse nome, para se levantar contra o rei de Castella, para o obrigar a descer do throno de Portugal; porque não heide ser esse homem?

Se não sou o rei, é como se o fosse.

Obtido o effeito, o valor do meu acto é o mesmo que seria o do rei verdadeiro, se elle voltasse e por sua causa Portugal recuperasse a independencia.

Que me pôde acontecer? Ser descoberto como mentiroso? Mas eu posso lá acreditar que toda a gente me chame rei e creia que o sou?

Lá o povo rude, de accordo; mas tanta gente com juizo, gente que sabe o que diz e o que faz a acreditar-me como D. Sebastião, com quem nem me

pareço, podendo com duas ou tres perguntas descobrir o engano!

Não o fazem é porque não querem. Querem que eu seja o rei, lá teem as suas razões, lá teem a sua fisgada.

Rei ou não, poderei ser útil aos seus planos, sel-o-hei.

Se me ajudarem a representar o papel não é difficil fazel-o. Quando não precisarem de mim podem dizel-o; mas eu terei ganho um nome, um titulo, uma riqueza, talvez.

As considerações não eram más, riem faltas de logica.

Antevê-se que na cabeça do intelligente rapaz passou um sonho alto de poderio e de grandeza.

Porque não?

Perante uma credulidade tão estranha, ainda que alimentada pela ferida d'um amor proprio esmagado, ainda que justificada na crença das profecias do Gomes e do Bandarra, o que admirava que elle pudesse subir bem alto, se alguem aproveitasse a illusão e fizesse surgir com ella a brava alma, indomita, portugueza?

Elle teria o seu quinhão depois da victoria. Quinhão alto, porque teria sido, verdadeiro ou falso, -- o libertador.

É logico supor que estes pensamentos dominavam a alma do filho do oleiro e que conversando com os dois cumplices os tivesse convencido a ambos, levado a concordarem que o caminho a seguirem era a firmeza, sustentados pelo povo, preparando assim um futuro tentador.

Se não, porque persistiriam elles em se não retratarem deante do juiz Leitão?

Que esperavam? Presos, envoltos n'um crime grave, não lhes seria melhor confessarem tudo? Pouco ou nenhum mal tinham causado as suas incarnações. Era um gracejo de mau gosto, que a prisão remiria, em dias, em mezes, o maximo.

Um crime de burla, nada mais, por uns jantares comidos; magestaticamente pagos, -- pagos com sorrisos -- e alguns dinheiros arrancados á ingenuidade e ao patriotismo popular.

Porque não confessaram a sua culpa? porque apanhados em clara mentira, em ignorância absoluta. das cousas que diziam respeito a seus nomes e pessoas, não disseram, claramente, que mentiam?

Porque teimavam em ser quem não eram, quem não podiam ser?

É que havia uma convicção já formada, na altura a que as cousas tinham chegado.

A convicção de que o povo era por elles. Que o paiz inteiro iria levantar-se; que tinham o dever de não recuar, de esperar os acontecimentos, de servir a causa da liberdade.

Assim, a aventura combinada entre os tres socios, com um fim mesquinho de uma exploração moderada de hospedeiros e de camponios, tornava-se

n'uma empreza elevada, n'um esforço generoso, de louvavel intenção.

Como sempre acontece, á força de o representarem, começaram e vieram a convencer-se de que lhes estava reservado um alto papel. No meio de allucinados o que poderiam elles ser? A allucinação veiu tambem, contagiosa, fatal.

Por isso negaram que não fossem quem diziam; sustentando nomes que, provavelmente, á força de lh'os darem, já lhes pareciam os proprios.

Em Lisboa

Tinha corrido em Lisboa a ordem, mandada, de prender o D. Sebastião do Penamacor e os seus cumplices. Quando as primeiras noticias do apparecimento do monarcha se espalharam pela capital, foi um nunca acabar de conjecturas, de duvidas, de commentarios. Era possivel. Não era. Uns duvidavam de que fosse verdade; outros acreditavam, piamente, que devia ser.

Os profetas e as profecias não se fizeram para outra cousa, senão para dizerem aos povos as coisas que hão-de vir.

O povo acreditava, firmemente, que o rei apparecera. A novidade, como todas, durou viva ires dias e foi perdendo a força, com a falta de provas, com a ausencia de outras noticias confirmativas.

Quando constou em Lisboa que D. Sebastião se approximava da cidade, no meio de uma escolta, homens, mulheres, toda a vadiagem, todos os curiosos, correram para a estrada de Sacavem a esperal-o.

Os que não podiam ir tão longe, subiram ao campo de Santa Clara, para onde fôra ordenado que o levassem, e encheram-no de lés a lés.

O Campo era então um espaçoso largo que vinha da actual travessa da Verónica, descendo até á margem direita do Tejo.

Só existia o mosteiro de S. Vicente, o convento de religiosos de Santa Clara, o que deu o nome ao largo, e umas casas junto do convento, mandadas fazer pela Infanta D. Maria, filha de D. Manuel, para morar ao pé das suas Claras, que estimava nmito. Algumas moradas, muito poucas, se seguiam aqui e ali, pobres, sem valor.

Este vasto chão estava coalhado de povo, quando um murmurio alto de gentes vozeando, começou a ouvir-se e uma onda de corpos rompia por entre a multidão agglomerada e teimosa na sua impassibilidade. Chegavam os presos.

Entre gritos e pragas, cercado pela cavallaria, que abria com as patas dos cavallos campo para a passagem, appareceu o nosso conhecido rei, montado n'um burro, de mãos atadas atraz das costas, um ar entre curioso e ousado, um pouco palido, pretendendo disfarçar a comoção com um sorriso um tanto contrafeito, mas audaz.

Atraz e a pé, tambem algemados, seguiam na esteira do histórico burro, os validos, o bispo e o D. Christovam de Tavora.

Á maneira porque iam passando, a multidão ondeava, apertando-se na anciã de os vêr, e as exclamações, os gritos, as pragas, as gargalhadas, enchiam o ar d'aquelle confuso e desconexo reboar de vozes, que ondeia como um mar, por sobre a multidão de uma grande feira.

Cada um, ao vêl-o, á primeira vista, sentia uma impressão differente, conforme a tendencia do seu espirito, e não se tinha que a não gritasse, com a liberdade do povo d'aquelle tempo.

No ar corriam as mais contrarias afirmações.

-- É elle! é elle! exclamavam de um lado, ao que outras vozes do lado oposto, respondiam: isto é lá o rei! nunca o foi! Aquillo, D. Sebastião? Estaes cegos!

-- Como vem magro! o pobre rei!

-- O rei? ó bruxa do diabo, vistel-o alguma vez?

Isto levantava protestos.

-- Fóra castelhano! Fóra damnado, fóra!

Havia empurrões, pragas, murros.

Os garotos furaram por entre os grupos, para chegarem ao cortejo, gritando -- arreda, deixem ver o bicho! Algumas mulheres choravam, sem saberem porquê. Eram as mais novas. As velhas discutiam com os incredulos, em altos berros; benziam-se, jurando, que aquelle lambisgoia nunca fôra D. Sebastião; que era muito novo, tinha uma pelugem de barba, nem tinha os olhos azues.

-- Aquillo? Agora! Não o conheciam ellas? Não tinham visto por essa cidade, a cavalo; nos jogos de Xabregas, nos circos das toiradas?

E aquelles marmanjos que o seguiam? O bispo da Guarda, D. Christovam de Tavora? Só o diabo!

E, desatavam á gargalhada.

Alguns começavam a dirigir chufas ao rei:

-- Vossa magestade, de burro? isso é para o rei dos judeus.

-- Foi com esse murzelo que batalhou em Alcacer-Kibir?

O' Sebastião olha para aqui ... se elle olhava começavam a fazer-lhe gestos impudicos, visagens descompostas.

-- Os garotos tiravam-Ihe a lingua de fôra, dando upas, como cavalgando; os mais ousados ladeavam-no, de mãos na bocca, imitando trombetas: tá

ti tá tá... tá ti tá tá.

Na manhã quente, a poeira entrava pelos olhos e pelos pulmões, cegando, asfixiando; a gritaria abalava os tímpanos, os empurrões desequilibravam; choravam creanças, ladravam cães, era um inferno!

O moço rei sorria cada vez mais; os dois ministros, de olhos no chão, seguiam as patas trazeiras do burro, sorumbaticos.

Vinham abatidos, cançados pela jornada a pé e a recepção que encontraram em Lisboa era muito differente da que vinham imaginando pelo caminho.

Turvavam-se os ares.

O ex-eremita encontrava de novo o sangue-frio e achava curiosa aquella avalanche humana, rumorosa, aquelles milhares de olhos que o fitavam, com pasmo, com ironia, com interesse, com troça, com dó alguns, alguns com lagrimas. Percebia uma hostilidade geral e esta irritava-o.

Lá por dentro pensava:

-- Ora aqui está o que é a vida, aquelles querem que eu seja o D. Sebastião; estes, pelos modos não querem. É uma esperteza de tolos. Hão de amargal-a. Que brutos!

A meio do largo, a comitiva parou.

O campo de Santa Clara era o logar onde se justiçavam os criminosos. Tinha, ao centro, uma forca sempre erguida.

Foi junto do respeitavel suspensorio que a força fez alto, abrindo uma clareira circular, arredando o povo.

Do lado da cidade, uma companhia de arcabuzeiros veiu substituir os cavalleiros. O rei pediu licença para se apear. Foi-lhe concedida.

Sua Magestade vinha bastante dorida; o burro não trazia albarda; as espinhas dorsaes dos burros, na sua função de cunhas, não olham á magestade dos assentos.

-- Então ficamos aqui? perguntou o rei, depois de se sentar, um boccado, n'um degrau da forca, para o alferes que commandava a força.

-- Até amanhã á noite. É a ordem.

-- A fazer-mos o quê?

-- Nada.

-- Ah! é para que nos vejam. Estamos em exposição. Pois olhe, sr. commandante. que temos pouco que vêr.

-- É para que o povo veja que não sois quem dizeis, vós e os vossos camaradas, explicou o alferes.

-- O habito não faz o monge, observou, astuciosamente, o ladino rapaz. Como é que hão-de reconhecer-nos? Pelos dentes? Temos pouca vontade

de rir. Inda se nos dessem de comer talvez os vissem.

-- Vá de conversa, intimou o alteres, voltando-lhe desdenhosamente as costas; silencio.

O pobre e desconsitlerado rei voltou para junto dos companheiros, que conversavam em voz baixa.

Dizia o Tavora:

-- Realmente, que grande estupidez, nunca ter eu pensado em saber a historia dos Tavoras...

-- Agora, para quê? observou o rei.

-- Já me tinha servido... lá para Penamacor... e agora, vão tornar a perguntar-ma, pela certa.

-- E a mim, observou o bispo da Guarda, são capazes de me mandarem dizer missa. Isto vae ser bom.

Um riso pallido passou pela face dos tres homens.

-- Já se vê que nos não mandam enforcar, sem mais nem mais, porque, se não, estavamos a espernear a esta liora, disse o rei olhando para a

forca, olhar que os outros dois seguiram, instinctivamente.

Isto quer dizer que seremos perguntados e julgados...

-- O que temos a fazer, agora? perguntou o Tavora.

-- O melhor, ia a dizer o rei... mas não acabou. O alferes dava ordem a um soldado para lhe desatar a corda que lhe prendia os pulsos. Chegou

uma ordenança com novas ordens. Os dois acolitos foram conduzidos para o Limoeiro. O rei ficou só.

Assim esleve aquelle dia, a noite, e quasi todo o dia immediato.

A plebe formava á roda d'elle um circulo fechado. Sabiam uns, entravam outros. A cidade passou deante d'elle.

Uns, desilludidos, desenganados completamente; outros duvidosos, outros crentes. Os ultimos eram o menor numero. Não ha cego como o que não quer

vêr, por isso, a despeito da evidencia clara de que tal homem não podia ser D. Sebastião, ainda houve quem acreditasse que o era. O que seduz o povo é o maravilhoso. Eia uma maravilha que aquelle rapaz fosse o rei? Pois abi está; quem sabe lá se o não era.

Farta a curiosidade popular, bem visto o falso rei, levaram-no no outro dia, de mãos novamente atadas, para o Limoeiro. Isolaram-no dos companheiros. Só, na solidão do carcere, viu bem que o sonho que lhe passara pela cabeça era, apenas, um sonho vão.

O povo limitava-se a ve-lo com mais ou menos espanto, com curiosidade e nada mais.

A realeza ficara-lhe em Penamacor. Viu-se abandonado, perdido.

O que lhe restava fazer? Conservar e teimar na sua qualidade de rei? Era inutil e fatal.

Desdizer-se-bia. Contaria tudo como tinha acontecido e a sinceridade valer-lhe-hia, talvez, uma certa desculpa.

Era o mais sensato. Era o que faria.

Adormeceu, tranquillamente.

Dera-se ordem para que o processo caminhasse com a maior rapidez.

Assim foi.

Logo, no outro dia de manhã, o rei foi chamado á sala onde estavam os juizes, e onde se viam pelo chão objectos pouco tranquillisadores.

Uma especie de cavallo, um banco de pau semelhando o dos nossos carpinteiros, estava a um lado, circundado de cordas. Á direita, no chão, estava um balde cheio de agua e um funil.

Ao banco chamavam-lhe pôtro. Pôtro é o nome do cavallo até aos quatro annos. Não é natural que aquelle pôtro fosse de tão tenra edade, visto

que a sala funccionava desde o tempo de D. Manuel, que apropriara o velho paço a cadeia.

Deram-lhe o gracioso nome, pela vaga semelhança com um cavalo e porque fazia saltar quem lhe estava em cima.

Sob as lages do pavimento viam-se cunhas de diversas grandezas ao pé de pequenos maços. Pendia do tecto uma corda grossa que passava ao alto, pelo eixo girante de uma roldana. Era a polé. Todos estes aparelhos que, desde D. João III, tinham feito "as delicias da raça judaica, continuavam a servir não só para apurar de entre a massa geral, os espiritos corrompidos, as almas de satanaz, nos carceres inquisitoriaes; mas tinham tambem o seu logar nas cadeias onde arrancavam as confissões, precisas, aos criminosos.

Relanceou o rei o olhar interrogador pela mobilia, e não ficou lá muito tranquillo.

Sentaram-se os juizes nas suas cadeiras; o escrivão n'um banco, junto a uma meza ao lado e começou o interrogatorio.

O rei, mandaram- n'o sentar n'um mocho de madeira. Dois homens, com aspecto de carrascos, encostaram se a uma das columnas de pedra, immoveis.

O escrivão preparava a penna; um dos juizes perguntou:

-- Como se chama?

-- Não sei -- respondeu o réu com o melhor dos sorrisos.

-- Não sabe como se chama?

-- Não sei. Na minha terra chamavam-me -- o oleirito.

-- Isso não é um nome.

-- Era como me chamavam, porque meu pae Era oleiro. Como sahi pequeno, não fixei outro nome.

-- A sua mãe, o seu pae, como lhe chamavam?

O filho do oleiro começou a sorrir garôtamente.

Digo a V. s.ª que com toda a verdade o não sei. Talvez fosse Zé. . • tenho uma ideia... o que elles me chammavam era... ó raio... ó maldito...

ó grande filho.

Os juizes não poderam conter o riso e um d'elles interrompeu:

-- D'onde é, então?

-- De Alcobaça.

-- O seu ofíicio?

-- Não tenho.

-- Disse que sahiu novo de Alcobaça. O que tem feito até hoje? Conte lá isso.

-- Vim da terra com um homem que fazia rosarios para Lisboa; elle, quando foi da ultima peste, fugiu, desapareceu. Eu fechei a loja e fiz-me leigo no convento do Carmo.

-- Sahi de há e fui viver para um eremiterio, para lá de Portalegre, n'uma serra que pega com esta villa e lá vivi. Era perto de Albuquerque... Olhem vossas senhorias... ali chamavam-me Pepe.

-- Pepe? Quem lh'o chamava?

-- Uma viuva muito religiosa que lá havia.

Os juizes olharam para o réu a certificarem-se de que elle os não estava a disfructar. O rapaz tinha porém a cara mais alegre e mais sincera que é

possivel ter.

-- Depois?

-- Depois deixei o eremiterio e vim para Portugal...

-- Conviveu com alguns hespanhoes?

-- Poucos. As minhas maiores relações foram com a viuva. Quando vim para Portugal, tão generosa ella era, que me deu um bello fato, um bello

cavallo e uma linda bolsa para a viagem.

-- Porque veiu para Portugal?

-- Com pouca vontade-... tive de vir. Chegou o marido que se julgava morto em Alcacer-Kibir... elle que se tinha salvo da batalha e do carcere...

devia ser homem para poucas brincadeiras.

A maneira jovial e despreoccupada como o rapaz respondia, uma certa graça no dizer, começou a captar-lhe o animo dos juizes.

-- Quando veiu para Portugal ficou em Penamacôr?

-- Inda vim a casa; mas como não achei emprego, modo de vida, que me conviesse; vim para Penamacôr.

-- Fazer o quê?

-- O rapaz titubeou um pouco... Vêr se... fui por ir... passava por lá...

A hesitação admirou os juizes.

-- Passava por lá? aonde ia?

-- Sem destino. Tinha-me feito outra vez eremita...

- Não é isso que consta: ninguem o viu lá de habito.

-- Não viu; mas... ia para Hespanha outra vez...

Os juizes imaginaram ter encontrado o fio da meada; as respostas eram menos claras e menos rapidas.

-- Não fala verdade. A sua ida a Penamacôr tinha um fim, um plano- Com quem esteve antes de ir para Penamacôr?

-- Com toda a gente que calhou. Sei lá.

-- Previno-o de que exijo a maior seriedade nas respostas, -- avisou um dos juizes.

-- Quanto tempo esteve desde que veiu de Hespanha até que foi para Penamacôr?

-- Uns mezes... oito ou nove...

Durante o tempo que esteve em Portugal de que viveu?

- Do dinheiro de D. Angela; não tinha outro.

-- Na sua terra não conviveu com frades, com fidalgos?-...

-- Fidalgos? nenhum. Com frades... falei como meu padrinho, que é frade no convento de Alcobaça.

-- Não foi elle quem lhe deu conselhos...

-- Sobre quê?

-- Sobre a sua ida a Penamacôr...

-- Pobre homem, elle sabia lá que eu ia a Penamacôr; se eu mesmo não o sabia.

O rapaz é habil, diziam entre si os juizes. Consultando-se, baixo, concordaram: aqui está o mysterio, o segredo.

E, imaginando-se no ponto importante da inquirição, perguntou um d'elles:

-- Seu padrinho é amigo de D. Filippe II?

-- Não sei; nunca lh'o perguntei, nem elle m'o disse. Nunca falíamos n'isso. Do que elle é amigo, e deveras, é de um bom leitão assado e de um

cangirão de bom vinho. Nunca lhe vi outros cuidados.

-- Não é d'esses, continuou o ex-eremita com a maior naturalidade, desses de se incommodarem com o mundo. Meza grande e rezas pequenas e o meu padrinho vive no céu.

O rapaz desconcertava a perspicacia dos magistrados.

-- Nunca lhe faltou então em D. Filippe, nem em D. Sebastião...

-- Nunca, respondeu, lealmente, o rapaz.

-- Nem elle nem ninguem da sua terra, ou fôra d'ella.

-- Já disse a Vossas Senhorias que não... Em Hespanha faltava muito, n'essas cousas, a viuva...

-- Bem, deixemos a viuva, mandou um dos juizes, friamente. Quero saber quem o levou a representar o papel que tem feito do nosso fallecido rei?

Quem o instigou? Com quem planeou a farça?

Ignora o papel que tem feito? Os casos graves a que podia ter dado origem?

Explique-se. Diga a quem obedeceu. Diga tudo.

A preoccupação dos juizes era encontrarem, por detraz do criminoso, os conspiradores. Não podiam acreditar, não comprehendiam como é que na cabeça do filho do oleiro de Alcobaça pudesse passar a ideia de se fazer rei.

Havia, de certo, alguem que na sombra tinha a cumplicidade e a maior. O ódio ao hespanhol vivia latente no animo da grande maioria dos portuguezes. A esperança de uma reivindicação de liberdade, occultava-se sob uma conformação, que todos sabiam forçada.

Os aulicos, os amigos de D. Filippe, receiosos sempre, assustavam-se com qualquer rumor; um vento ligeiro que soprasse tinham-no por tempestade. Eram cautelosos, activos, previdentes.

Era justo. Tinham de zelar os seus interesses de vendidos; tinham de servir o senhor, como bons escravos.

Parecia lhes, realmente, que o rapaz fallava com sinceridade; que a coisa não tinha maior importancia de perigo para o dominio hespanhol; mas era preciso esquadrinhar bem, investigar, não deixar ao sentimento qualquer descuido ou confiança, por onde pudesse passar o rasto de uma conspiração.

Por isso queriam investigar bem a verdade; e, n'este caso, era preciso esclarecer, vêr, quem tinham sido os cúmplices do falso rei, se os havia.

Se os houvesse, como era o mais natural, a descoberta de uma conspiração dar-lhe-hia novos direitos aos favores do grande rei.

-- Confesse, então, diga quaes os seus cúmpli- ces. Quem o industriou, o que lhe prometteram, o que lhe deram? Quem foi que o aconselhou a fazer-se rei?

-- Ninguem, respondeu, o ex-eremita, com um gesto de enfado. Quem havia de ser?

-- Não quer confessar? Perguntamos-lh'o a bem. Confessará a mal.

-- O que hei-de confessar?

-- O quê? perguntou um dos juizes, com fera catadura: não se intitula D. Sebastião?

-- Não senhor.

-- Não se intitulava rei?

-- Nunca!

-- Como assim? Nega o que todos viram em Penamacôr.

-- Nunca o disse a ninguem; nunca disse que era o rei; nunca me fiz passar por tal. Começaram a chamar-me D. Sebastião; a principio ainda neguei;

depois deixei-os chamar.

-- Que era, por força; que elles bem o sabiam; eu era o rei. --

Davam-me dinheiro, davam-me cavallos davam-me casa; iratavam-me como a um principe, não exigiam de mim cousa nenhuma que eu não devesse

fazer... deixei-os chamar.

Havia de ser o rei, por força; que lhe havia de fazer? A principio estranhei; depois acostumei-me Não era difficil o acostumar-me.

Elle era bem mau.

E, com um sorriso de confiança accrescentou:

Mais me tem custado, agora, o ter deixado de o ser.

-- É artista, disse um dos juizes para o outro; já se vê que por palavras, não tiramos nada d'elle. Tem o recado na ponta da lingua.

Então nada de espíritos santos de orelha? Vamos lá vêr.

Fez um signal aos dois homens que, se approximaram do rei, com as cordas na mão.

-- Ponham-n'o no pôtro, mandou um dos juizes. Mettam-lhe as talas nas pernas... uma cunha ou duas.

Amarraram-n'o, deitaram-n'o de costas, prendendo-lhe as mãos e os pés e o supplicio começou.

A cada pancada nas cunhas as talas comprimia-lhe horrivelmente as carnes, contra os ossos, em dores fulgurantes.

A cada pancada correspondia uma ou mais perguntas dos juizes.

-- Quem foi que o levou a fazer de rei?

-- Ninguem.

-- Fostes, pois, vós que de tal vos lembrastes? Para quê?

-- Nunca me lembrei de fazer de rei. Já vol o disse. Se consenti em sêl-o, foi porque era bem melhor a posição do que esta em que me collocastes.

As sellas do meu cavallo eram mais macias do que esta.

Apesar das dores, linha força para gracejar, o corajoso rapaz.

A coragem, o sorriso, intrigava os juizes.

Se estaes soffrendo é por vossa culpa, observou um d'elles.

-- Não me parece; se vos digo a verdade; o que quereis saber? a mentira?

-- Não sois então D. Sebastião? perguntou um juiz.

-- Quem duvida? já alguma vez disse que o era?

-- Mas deixastes que vos tomassem como tal e terieis sustentado o vosso papel até dardes origem ás maiores calamidades. O crime é quasi o mesmo.

Se tendes com quem dividil-o, a vossa culpa será menor. O braço que executa tem menos responsabilidade de que a cabeça que manda.

Quem vos ensinou, quem vos levou a intitulardes vos de rei? -- e mandou bater mais as cunhas para garantir a resposta.

Depois de um tregeito doloroso, o ex eremita respondeu, retomando o ar alegre:

-- O que quereis é que vos diga a verdade, ou é partir-me as pernas? A verdade já vol a disse.

Não ha outra, nem pôde haver; quanto ao aleijar-me... se vos dá prazer... tenho o maior gosto em vos ser agradavel.

Os juizes não podiam deixar de sentir o effeito das palavras simples e cheias de sinceridade do suppliciado. A cara, a expressão do olhar calmo

com que fallava, olhando-os, o desprezo pelas dores, tudo revelava que nada havia occulto e que, frivolamente, descuidoso, o falso rei, se deixara prender n'uma aventura que tinha mais de uma rapaziada doida, do que de um grave intuito politico, emancipador, de revolta.

Duas ou tres perguntas mais a que elle respondeu, sempre, repetindo as afirmações feitas e mandaram-n'o desligar, desentalar e sentar-se no môcho.

O pobre rei, depois da operação ia um pouco trôpego: mas lá alcançou o banco e sentou-se, sentindo um verdadeiro prazer ao descançar as pernas.

Conferenciavam os juizes, em voz baixa, emquanto elle apalpava as partes doridas, até que um d'elles, erguendo a cabeça, perguntou ao escrivão:

-- Tendes tomado nota de todas as declarações do réu?

-- De todas.

-- Parece que realmente não tendes cumplices; mas dizei-nos então como é, porque é que começaram a chamar-vos D. Sebastião?

-- Havia de haver uma causa, um motivo. Se-vos parecêsseis com El-Rei que Deus tenha em sua guarda, comprehende-se; mas não vos parecendo.

A voz do juiz tinha uma certa suavidade. Via-se que não pretendia encontrar um motivo para maior severidade, antes semelhava, pela entoação, deixar descortinar uma atenuante para o criminoso.

O astuto rapaz percebeu-o perfeitamente e respondeu:

-- Vai não o tinha explicado ainda a Vossas Senhorias..-. É que me faltou um ponto no contar da minha historia.

Quando, na terra se me acabara o dinheiro da viuva... resolvi voltar á minha antiga vida.

-- Qual? perguntou um outro dos tres juizes.

-- Á de eremita.

-- Continue.

-- É a unica para que tive sempre vocação.

-- É pena tel-a abandonado, disse com voz ironica um dos juizes.

-- Agora o conheço... é sorte de cada um.

-- Mas ia dizendo...

-- Ah! sim, ia dizendo, que tinha resolvido voltar para outro eremiterio qualquer, quando um dia encontrei, na estrada de Aljubarrota, um pobre homem, um soldado de Africa, vindo das prisões de Marrocos e que ia para a terra, para a Nazareth, me parece.

Ia alquebrado pelas febres; mas levava dinheiro em barda.

Perguntei como viera até ali. Esmolando, a pé. Conclui que o emprego não era mau e resolvi experimental-o.

Sahi de Alcobaça, um bello dia, sem dizer nada a ninguem e abalei pela estrada em soldado de Africa.

-- Que grande tunante! disse em voz baixa um dos juizes para os outros dois.

-- Lá isso é, respondeu um d'elles, mas tem graça, o maldito.

-- E, rendia o modo devida?

-- Mais do que o de eremita.

-- Acabe, diga o resto.

-- Assim fui andando pelo paiz fóra... andando... até chegar a Penamacôr. Em toda a parte me davam esmola e me acolhiam bem... como soldado de Africa... já se vê.

Eu conheço, aprendi, todas as cousas da viagem de Africa, desde a sabida de Lisboa até á batalha. Contava aqui, contava acolá e como a cousa de si

é de fazer chorar as pedras... ouviam-me, chorando.

Não se passava d'isto; mas um dia, em Penamacôr, nem sei quem, se bem que o desconfie... eu depois me explico... alguem começou a espalhar que um homem que tão bem fallava, que tinha tanta sciencia -- porque eu, ás vezes, dizia umas trapalhadas em ai, allá, abdalah, AUah, como se fosse

arabe -- não podia ser outro senão o rei.

O' diabo que tal disseste. Não é outra cousa.

Veiu da Terra Santa e anda, occulto, a fazer penitencia. Voz do povo, voz de Deus. Vão lá atraz d'elles. Rei para aqui, rei para ali. .Já te conhecemos... tive de o ser, por força.

Depois, como disse a Vossas Senhorias, a cousa era tão boa, que não tive animo de a negar, a pés juntos.

-- Devel-o-hia ter feito, exclamou um dos juizes, devia ter desenganado essas gentes...

-- Oh! senhor juiz, eu nunca disse que não era o rei e, creia Vossa Senhoria, se lho dissesse era o mesmo que nada. O que é que elles concluiam se eu lho dissesse? Que era disfarce. Pois não andava eu disfarçado?

Os juizes olhavam-se com olhares de concordancia.

-- Não foi você que se fez rei? fizeram-no; disse um d'elles.

-- É como digo a Vossas Senhorias.

-- Ainda agora disse que desconfiava de quem levantára a suspeita de que fosse D. Sebastião. Alguem que tinha interesse n'isso?

-- Decerto.

-- Ah! pessoa grande da terra? Homem rico? perguntou um outro juiz, julgando apanhar uma pista.

-- Não, senhor juiz; eu desconfio dos meus companheiros, o sr. D. Bispo da Guarda e o sr. D. Christovam de Tavora.

-- Falsos - imterrompeu um dos juizes.

-- Como Judas, repHcou o ex-eremita.

-- Ah! disse o juiz desapontado, é possivel que fossem...

- Para viverem á barba longa á minha sombra, acrescentou o rapaz; pois é isso mesmo.

-- Como é que consentia?...

-- Na minha qualidade de rei, tinha de ser generoso.

Os juizes a custo sustiveram o riso.

-- Foram elles então?...

-- Assim o creio. Já se tinha levantado um zumzum de que eu era o rei; já muitos o acreditavam, mas em segredo. Um dia, n'uma romaria a Nossa Senhora do Prado, que fica a meia légua ou pouco mais de Penamacôr... n'uma romaria todos se fallam -- os meus dois companheiros metteram conversa comigo e fômos comer a uma barraca. Muita conversa, muita comida... bom vinho... á sobremeza, o que é bispo da Guarda disse me:

-- Eu e o meu companheiro desejamos ficar ao serviço de vossa magestade.

-- Hein?

-- Nós sabemos que vossa magestade viaja incognita. Nós somos como vossa magestade dois homens que não podem revelar os seus nomes. Somos dois amigos de D. Antonio, prior do Crato, dos maiores, e andamos a sondar os espíritos, a pregar o levantamento, para quando elle vier do estrangeiro reclamar o trono.

-- Olhei-os e, cheio de pasmo, perguntei-lhe:

-- Então quem são vocês? Quando me disseram os nomes, puz-me a rir.

-- Meu senhor, disse-me o D. Christovam não se ria vossa magestade. O meu titulo, e a mitra d'este são tão verdadeiros como a vossa corôa. Vossa magestade nada perderá com a nossa amisade e o nosso auxilio. Daremos grandeza á vossa pessoa e n'um mau momento... tereis dois amigos.

O vinho devia ter entrado muito na razão que eu achei aos dois servos de D. Antonio. O que é certo é que lhes disse, bebidos mais uns copos e

dadas, de lado a lado, varias razões:

Seja assim. Ficaes meus ministros. Logo no fim do jantar experimentei e julguei das suas habilidades. Disseram ao barraqueiro que eu era orei...

e o homem nem á mão de Deus Padre quiz receber o dinheiro.

-- Quem são afinal os vossos companheiros?

-- Não sei, senhor juiz. Nunca mo quizeram dizer, desculpando-se com que tambem eu lhes não dizia quem era. E que me importava quem fossem?

Tal rei, taes ministros.

-- Supõe que foram elles os que espalharam o boato?

-- Creio que sim. O encontro foi bem combinado. Fizeram-me rei para viverem na minha côrte. Espalharam a nova e aproveitaram-na.

-- Nunca lhes perguntou se tinham sido elles os inventores?

-- Perguntei. Diziam que não; disfarçavam muito bem; pareciam cortezãos, a valer.

-- Quem é que em Penamacôr o recebia e tratava como rei?

-- Toda a gente, pobres e ricos. Eu chegava ás vezes a convencer-me de que estavam a mangar comigo, com o Tavora e o bispo; mas qual... Vossa

Magestade para a direita e para a esquerda... dinheiro na bolsa-... Eu, por fim, já dava esmolas e grandes aos pobres. Já tinha de mais. Não pagava cousa nenhuma.

-- Já fazia de rei?

-- Ha de havel-os mais fonas do que eu era. Um dos juizes, chamou o escrivão a quem pediu os assentamentos e pôz-se a lel-os. Os outros dois juizes conversavam surdamente.

O rapaz começou a olhar mais demoradamente para a casa e para os apetrechos das torturas e á vista do potro sentiu as pernas a doerem-lhe, o que lhe tinha esquecido com o interrogatorio.

-- Má cavallaria, pensava comsigo; d'aquelle já eu me livrei ... O que estarão aquellas aves a combinar?

Foi curta a leitura do depoimento apontado pelo escrivão.

Os juizes sentaram-se, de novo. Depois da rapida conversa em que, provavelmente, assentaram que nada mais havia a indagar, o que parecera, sempre, sympatisar mais com o eremita, disse-lhe: levante-se.

O rei levantou-se, com algum custo.

-- Do que acaba de dizer, observou o juiz, conclue-se que nega que alguma vez se dissesse o rei D. Sebastião...

-- Nunca o disse.

-- ... que, porém, se deixou passar por tal, e d'isso tirou proventos pouco licitos, enganando o povo e alvoroçando-o, expondo-se a ser causa de perturbações sérias da ordem publica, na vida do paiz.

-- Era sem querer-... objectou o rei.

-- Fosse como fosse. Que a isto foi levado pela astucia de dois companheiros, que se intitularam grandes do reino com quem dividia os lucros da comedia. Não é isto?

O rei fez um signal afirmativo, com a cabeça, indeciso, porém, como quem tem que dizer alguma cousa.

O juiz ou não viu ou não attendeu. Fez signal a um dos homens de marmore, que se encostava a uma columna, tão perpendicular como elle. Este foi á porta falar; entraram dois soldados que levaram o preso.

Pouco depois entravam o bispo e D. Christovam.

O interrogatorio dos dois não deixou na historia um echo, sequer, do que tenha sido.

Parece que, postos a tractos, logo do principio, não estiveram com meias medidas e confessaram quem eram, como se tinham ligado com o rei, para

comerem e beberem, á barba longa. Este habito é tão natural que ainda hoje, nos paços, se não vê outra cousa.

Era então regente de Portugal o cardeal Alberto, archiduqae, primo de Filippe II, por ser filho de Maximiliano II, de Allemanha; muito do agrado do tio que o tivera sempre na côrte, e que, quando o papa o fizera cardeal, antes dos vinte annos, o presenteou com o arcebispado de Toledo.

Tinha vinte e quatro annos n'este tempo o cardeal e parece que não era de todo mau o rapaz. As circumstancias provaram-no.

Naturalmente, como vice-rei de Portugal, não podia deixar de interessar-se pelos processos dos conspiradores, contra a solidez do dominio do seu tio.

Quiz ver elle proprio o processo e depois de o ler, achou extraordinariamente curioso o depoimento do rapaz, do falso rei.

Tanto se interessou que quiz elle mesmo interrogal-o e no dia immediato foi ao Limoeiro.

O ex-eremita conservou a mesma despreoccupação do perigo, respondeu do mesmo modo, que nunca se intitulara, nem se dissera rei de Portugal e que, já que todos queriam que elle o fosse, e lhe pagavam bem, se deixara ser.

Sympathisou com o rapaz o archiduque e percebou que tudo o que se tinha passado, não tinha importancia séria contra o dominio hespanhol.

A boa impressão que o ex-eremita produziu no archiduque, salvou-o.

No outro dia, a justiça não era morosa n'aquelles tempos, sahiam da cadeia do Limoeiro, entre guardas, dois homens para a forca.

Uma populaça enorme os cercava, dizendo-lhe insultos, jogando-lhe vaias.

Eram só dois, reparavam. Começaram as perguntas, os gritos:

-- Então o rei? Onde está D. Sebastião?

-- Onde é que está Sua Magestade? Safou-se?

-- Então o rei não vem? Foi para o paço?

-- Perdoaram-lhe, explicava um; vem depois, virá amanhã, observava outro. Ficou a fazer testamento... a indicar o successor...

-- Ó farçolas, assim deixastes o vosso rei? ou elle vos abandonou?

-- Quem sabe se era o rei, lembrou um; porque o não trazem?

-- Se fosse o rei... é que não deixava de vir, observou um outro.

-- Isso é certo.

O cortejo caminhava, assim rumoso e brutal.

Os guardas afastavam, á coronhada, os mais chegados, que interrompiam a marcha.

Tristes, abatidos, os olhos no chão, as mãos amarradas por detraz das costas, dir se-hia que nem ouviam as chufas, nem escutavam os insultos.

Pois não faltavam, da arraia, dos marujos, dos mendigos, dos pedintes, dos rufiões, dos soldados, dos vadios, de toda essa matulagem, que surge,

sempre, nas cidades ao pó de um caso estranho, ou barbaro.

Lá foram subindo a encosta até chegarem ao largo de Santa Clara, onde, a já conhecida forca de dois braços, como um animal sedento de vidas, lh'os abria, terrivel.

Pela continuação, o carrasco era homem habil e expedito: passar o laço ao pescoço de D. Christovam, subir uns tantos degraus da escada, deixar-se

cahir de subito nos hombros do corpo, levantado ao seu encontro, saltar d'este para o chão e amarrar o fim da corda n'uma ranhura da haste perpendicular da forca, foi trabalho de poucos intantes.

A mesma perfeição operatoria, pôz a baloiçar simetricamente o corpo do chamado bispo da Guarda.

Então a multidão, que atirava pragas grosseiras insultos, começou a atirar lama e pedras.

N'um baloiçar sinistro, as boccas abertas, os olhos escancarados, as linguas de fôra, os dois miseraveis pareciam sorrir, convulsamente, e cuspirem sobre a multidão uma baba negra e infecta, que lhes cahia dos labios.

Trouxe-lhes a noute um completo socego.

Por altas horas, a lua, como medrosa, espreitando, ergueu-se das bandas do Tejo e atirou uns raios pálidos por cima dos tectos de S. Vicente,

pela amplidão do terreiro.

Ao alto, cortando a luz baça, esvoejavam corvos.

E o rei?

Por mares e ventos

Havia, n'este tempo, dois grandes reis na Europa: o rei Filippe II de Hespanha e a rainha Izabel de Inglaterra.

Grandes pelo poder e grandes pelos talentos politicos.

As formas, os actos de rivalidade permanente, tinham levado os dois soberanos a um odio profundo.

Filippe II era catholico, Izabel protestante.

Filippe ÍI protegia alaria Stuart, catholica; a rainha tinha-a encarcerada com o maior rigor. Izabel secundava as pretensões de D. Antonio, prior do Crato, a Portugal; ajudava em toda parte a lucta contra Filippe, com dinheiro e com homens. Conspirava contra a França, soccorria os Paizes-Baixos.

Era um inimigo terrivel, inteligente, incansavel.

O odio de Filippe foi até á tentativa de assassinio.

A conspiração descoberta em Londres foi afogada em sangue; o odio da rainha exarcebou-se.

Começou a armar navios para atacar o imperio maritimo da Hespanha e suggeriu a expedição de Drak composta de vinte e sete navios, levando dois mil e quinhentos homens, soldados e marinheiros.

A esquadra cruzou algum tempo nos mares de Hespanha onde fez presas de navios hespanhoes e depois dirigiu-se para Cabo Verde.

Drak aportou á ilha de S. Thiago. Desembarcou seiscentos homens que puzeram em fuga os defensores das fortalezas, mal artilhadas, e pôz a cidade a saque, acabando por a incendiar.

As auctoridades e os habitantes fugiram para os montes e os inglezes, carregados de despojos, navegaram para Cartagena e S. Domingos.

Quando a esquadra fundeou, dez mezes depois, em Portsmouth, deixara assoladas as costas da Virginia e da Florida e causara aos hespanhoes prejuizos superiores a quinhentas mil libras esterlinas.

Filippe II recebe a affronta, com a serenidade com que sempre acolheu as novas agradaveis ou terriveis e começa a fazer preparativos navaes.

Constam em Inglaterra; e a rainha, informada pelos seus espiões da peninsula, resolveu dar um golpe audacioso nos preparativos navaes de Filippe.

Manda Drak com quatro naus da corôa e mais vinte vellas de armadores particulares, ás costas de Hespanha.

Sabe este que uma esquadra vae sahir de Cadiz para Lisboa. O terrivel corsario, apparece, de repente, avista de Cadiz, forca a barra, ataca mesmo debaixo do fogo das fortalezas e queima cem navios de guerra cheios de munições e viveres.

Faz-se de vela para o Algarve e vem ao porto de Lisboa desafiar o marquez de Santa Cruz, almirante hespanhol, que não sabe a combate.

Segue o rumo dos Açores e captura o galecão S. Filippe que vinha para a Hespanha, cheio de riquezas.

Drake é recebido em Inglaterra com acclamações e festas.

O orgulho de Filippe sentira mais uma punhalada profunda e a vingança enchia-lhe a cabeça de energias sumas.

Augmentou ainda mais o seu odio á rainha, se mais podia crescer, a morte de Maria Stuart.

Todas as côrtes olharam com censura para a raticida e a rainha Izabel teve n'esse momento, uma má vontade geral dos reis e principes de todas as nações.

Em Paris, os pregadores, o povo, clamavam vingança.

Frio, reservado, dissimulador sujjlime, Filippe II, pensou que era indispensável dar um golpe tremendo e decisivo, no poder da rainha.

A invasão de Inglaterra, concebida e falhada, ia tentar-se de novo, mas com tal poder e grandeza que não deixasse sequer ver a possibilidade de um desastre.

Tão poderosa a queria e havia de ser que seria ridiculo todo o poder da Inglaterra para tentar opôr-se-lhe.

Então, em todos os portos de Portugal e Hespanha, começou um trabalho, incessante, de construcções navaes. Trabalhava-se, sem parar, nos estaleiros e nos arsenaes, dia e noite.

Era espanto de todos a enormidade de navios a construir; a rapidez com que se trabalhava, e raros sabiam, e esses de confiança, a que era destinada tanta força naval.

O rei Filippe, emquanto se preparava, entretinha a rainha Izabel com conferencias entre o seu embaixador e os plenipotenciarios inglezes, para

um tratado de paz que havia de fazer-se em Flandres.

Seis mezes de babeis diplomacias, permitiram que a 27 de maio de 1588, sahisse do porto de Lisboa a formidavel armada, composta de dez esquadras, sob o mando supremo do duque de Medina Sidonia.

Nunca se tinha visto até então tão poderosa armada. Compunha-se de cento e quarenta e seis navios, de grande lote, innumeros de pequeno com duas mil e quinhentas bocas de fogo, levando a bordo dezeseis mil e trezentos soldados de desembarque, afóra as guarnições.

Tal era a confiança do rei n'uma victoria estrondosa, dos capitães na sua força, que a armada foi chamada: Armada Invencivel.

Parecia assim e tel-o-hia sido, se a impericia dos homens e a furia dos mares e ventos, se não tivessem encarregado de a anniquilar.

Quando a rainha Izabel percebeu o perigo em que estava, quando começou -- ainda que admiravelmente -- a preparar a defeza, seria bem tarde se a armada vae direita a Inglaterra e recebe ainda os reforços do duque de Parma, 30:000 homens allemães, italianos e castelhanos, que deviam ir da

Bélgica á Inglaterra.

Como um dos acontecimentos maiores da historia das guerras marítimas, vamos seguir a invencivel armada na sua viagem celebre.

Parte, pois, de Lisboa, a poderosa frota em fins de maio de 1588.

A soma enorme de navios espanta o mar.

Quando a noticia chega ao Escurial, fazem-se procissões e preces e começa a exposição permanente do Santissimo Sacramento, velado pelos frades do convento, que é ao mesmo tempo palacio.

A 26 de junho fez-se uma procissão em que iam cento e vinte pessoas, disciplinando-se. O rei e o principe D. Filippe e a infanta D. Izabel gosavam o espectaculo d'uma janella.

O mau tempo surprehende a esquadra logo á sahida de Lisboa e receioso de perder alguns navios o duque de Medina Sidonia, faz signal aos capitães para que busquem abrigo no Ferrol.

Uma divisão da esquadra das urcas não percebe o signal e continua a avançar. Mais tarde, vendo-se só, volta de novo para o Ferrol, onde reina a maior desordem. Ha brigas continuas entre portuguezes, italianos e hespanhoes.

Depois de mais de um mez de demora, lá se consegue partir de novo.

O Farnesio, que espera vèr apparecer a esquadra e que a não vê chegar, imagina que já se não faz a expedição.

A noticia da vinda, da chegada proxima a Inglaterra, causara enorme espanto. A situação da rainha era critica; mas revelou, então, altas qualidades de governo.

A demora da esquadra, no Ferrol, permittiu-lhe reunir dois exercitos em terra e uma esquadra, que deu de comando ao lord almirante, Carlos Howard.

Curioso, este almirante. Nunca comandara um barco. Era, porém, de grande belleza, herculeo, muito dado, de modo a ser estimadissimo pela

marinhagem.

Ás suas ordens, comandaram, como vice-almirantes, o valente Drake e Hawkins, os heroes das lendas do Novo Mundo.

Uma cousa valeu á rainha. Correram a offerecer os seus serviços dezenas de voluntarios de terra e mar. Um grande amor da patria, talvez a consciencia de um perigo enorme, fez correr ás fileiras milhares de homens.

Inventaram-se mesmo razões de mêdo. Diziam que os hespanhoes traziam uma náu cheia de cordas para prender os homens; outra carregada de chicotes para castigar as mulheres; outras com trez a quatro mil amas para dar de mamar ás creanças de peito. Todas as que tivessem dez annos seriam marcadas, a fogo, na cara.

Comprehende-se a exaltação.

Todavia, arranjado á pressa, o exercito de terra tem falta de tudo: de vestidos, de armas de munições, de pão.

Se os soldados hespanhoes desembarcam, e com os trinta mil homens do duque de Parma, chegam a pisar o solo inglez, a Inglaterra estava, fatalmente perdida.

Restava-lhe a salvação pelo mar.

Só a sua esquadra lhe podia valer, se pudesse.

Vamos vêr.

A 28 de julho o duque de Medina Sidonia encontrava-se a trinta léguas das Sulinges com quarenta e cinco braças de fundo e vento fresco de sudoeste.

Naquelle dia percebeu, pela primeira vez, o que faltava á sua armada.

Já prevista em tudo; para nada lhe faltar, até levava a bordo cento e setenta frades portuguezes, que o rei mandara para se livrar de inimigos incomodos e uma náu só com mulheres, para as exigencias do amor.

Só lhe faltava uma cousa em que ninguem pensara: pilotos.

A esquadra ingleza está em Plymouth; ao menos grande parte.

O duque, porém, não sabe a derrota; não se atreve a entrar no porto. Se entra, se faz como fizera Drake em Cadiz, se ataca a esquadra bloqueada, a enormidade da differença numerica bastaria para lhe alcançar uma victoria certa e desembarcados os soldados, Londres estava perdida.

Medina Sidonia, que já perdera quatro galeões, logo que sahira de Lisboa, nota, com assombro, que lhe faltam quarenta e tres navios. Envia Lizard em busca d'elles e com isto perde dois dias.

Ao verem approximar-se a esquadra de Plymouth, os inglezes tinham resolvido vender caras as vidas, porque não imaginavam possivel a resistencia.

Esperavam com mêdo.

A esquadra, porém, em vez de endireitar ao porto, voltava as proas ao mar largo e desaparecia.

O medo converteu-se em confiança, os capitães mandaram recolher aos navios as tripulações que estavam em terra e a armada ingleza sahiu do

porto atraz da hespanhola.

No sabbado 30, a armada do Sidonia marchava, em ordem de batalha, no meio de nevoeiro e chuva meuda quando pela noite vislumbrou, atravez da bruma, os navios inglezes e parou.

Pelas duas horas da madrugada, a lua, rompendo um pouco o nevoeiro, mostrou, a distancia de um tiro de canhão, os navios inglezes que o seguiam.

De subito, estes, cobrem-se de velas, como gaivotas que, deslizando pela superfície da agua, se elevassem no vôo, abrindo as azas.

Era o ataque. Redobrando de velocidade, ajudados os remos pelas velas, entram por entre as pezadas naus hespanholas, e, sem pararem, a passagem,

largam-lhes uma descarga cerrada das baterias. Correm, fazem-se de volta, de novo se mettemnas alas, de novo as crivam de ferro, de novo se esgueiram rapidas, velozes, como aves maritimas.

Respondem ao ataque os navios hespanhoes; escancaram as bocas fumegantes, por entre a neblina densa, os canhões rugidores; reforçam o arranque dos remos os negros da Africa, amarrados aos bancos, ao lado dos criminosos de Hespanha, em seguimento dos barcos inimigos.

Em balde. O tiro dos canhões, pela muita altura das amuradas, passa por sobre o velame dos barcos ligeiros de Drake e de Hawkins e perde-se no mar; ao avançar pesado dos galeões, riem, furtando-se, volteando prestes, os veleiros barcos inglezes, n'uma manobra habil. A lucta é desegual; a

arte excede a força.

Vendo o perigo, a inferioridade no ataque, os navios hespanhoes apertam-se, para obstar á passagem por entre elles, dos navios inglezes.

Juntam-se; mas o esperto dificulta as manobras e a confusão começa.

A Santa Catharina, de Pedro Valdez, choca com outra nau e fica fóra de combate. Cabem sobre ella a Triumpho e Victoria, inglezas, aprezam-na e saqueiam-na. Encontram quarenta mil ducados e duzentos barris de polvora, que valiam mais do que o oiro, n'aquella hora.

Gritam aos artilheiros os capitães hespanhoes que baixem as pontarias. Miguel d'Oquendo, bom lobo do mar, enraivecido pela inutillidade da ordem, fere, com uma espadeirada o chefe dos artilheiros.

Indignado, este, cala-se, desce ao porão, acende um archote e larga fogo ao navio. O capitão e poucos mais salvam-se.

Começam a amainar as velas os barcos inglezes e a ficarem para traz. Estavam contentes com o resultado do combate; iam descançar um pouco.

No outro dia o tempo era claro, o mar ligeiramente picado por um vento fresco. A esquadra ingleza, pelo meio dia, foi-se approximando e renovou

o combate com as mesmas manobras, correndo, approximando-se, ferindo e fugindo.

Tres dias a seguir, n'esta caçada, n'este seguimento permanente, tinham fatigado a esquadra hespanhola, inutilisado e meltido no fundo algumas embarcações menores.

N'um impeto de raiva, quando os navios hespanhoes queriam lançar-se á abordagem, o vento favorecia sempre a esquadra ingleza e esta fugia.

O duque, para fugir a esta perseguição, endireita para Calais, força a marcha e entra na bahia.

Os inglezes seguem-no e fecham-no lá dentro.

Em Dunquerque, o Farnesio, duque de Parma, espera com a sua esquadrilha de barcos chatos, que possa embarcar os seus trinta mil aragonezes, napolitanos, castelhanos, valões, gente decidida e brava.

Mas duas esquadrilhas hollandezas bloqueiam o porto e quando o Sidonia manda dizer ao duque que o venha soccorrer, este responde-lhe: «quer que

combata uma esquadra com a cavallaria? Que venha desimpedir o porto, elle.»

Era o que havia a fazer. Libertado o duque, embarcados os seus trinta mil homens aguerridos e disciplinados, no momento em que elles pizassem a terra ingleza, a rainha Izabel vacillaria no throno, se é que o não perdia, de todo. Era essa a opinião de Drake e dos mais officiaes.

Era preciso, portanto, anniquillar a esquadra. Como? Atacal-a em globo, era impossivel. Era necessario um ardil de guerra; o acaso favoreceu o

corsario.

De oito para nove de junho, desceu sobre as aguas uma cerração fechada. Conhecedor do mar, o commandante inglez resolve aproveitar as trevas que envolvem a bahia e executar o seu plano.

Pela noite escura, os hespanhoes vêem que uma luz sanguinea se levanta na barra. Em breve, uma columna de fumo e fogo de um clarão espantoso caminha para elles. Atraz d'esta, outra, e mais seis ainda, marcham sobre as ondas, illuminando com uma luz sinistra os céus e a terra.

São oito brulotes -- barcos cheios de materias combustiveis e incendiadas -- que a força dos remos impele, ajudada pelo vento, contra as naus.

Um terror panico se apodera dos hespanhoes, desde o misero remador até ao almirante. Supersticiosos, imaginam que um poder sobrenatural cae sobre elles; que é obra de feitíceria o caminhar tragico d'aquellas colunmas de fogo. Emquanto os galerianos correm aos barcos e empunham os remos, outros cortam as amarras, largam as ancoras e endireitam com a barra. Chocam-se, despedaçam-se, no meio da grita, da confusão mêdonha. Ninguem

se entende; todos querem fugir ás chammas que os cercam e arrojam-se para o mar os que o fogo não queima.

Ahi espera-os a esquadra ingleza que os recebe a tiro e o mar levantado pelo noroeste, em temporal desfeito, que os atira para os bancos de Dunquerque. Assim, o céu, o mar e a terra, são pelos inglezes, que conhecedores das costas, os impelem ou sobre os rochedos do mar ou sobre os penhascos das praias, manobrando ousados.

Impossivel a lucta. Desconhecendo os mares, no meio da cerração, saccudidos pelo vento furioso, rezam e praguejam os hespanhoes como corpos de homens que se sentissem arrastados para as regiões

do inferno. Duas horas, sem fim, luctam contra os homens, contra o mar, contra o ceu.

No meio da escuridão, aqui e alli fulgem os relampagos a que não falta o trovão accessorio, rolando sobre as ondas. São os inglezes que queimam os ultimos cartuchos. A artilharia hespanhola já nem responde. As naus quasi não têem gente; o sangue dos remadores escorre pelos barcos. E preciso absolutamente fugir da costa para onde o vento impetuoso os atira, inclemente e arremessarem-se ao mar.

O vento leva-os para o norte, quando a manhã rompe.

Na luz nevoenta, sobre as altas vagas, os inglezes não os deixam, perturbando a manobra, atacando os barcos dispersos e isolados, mettendo-os a pique.

Nas coleras de leões manietados, á passagem dos barcos inglezes, os hespanhoes gritam, nas amuradas, esqualidos, rotos, encharcados, sujos de polvora.

-- «Eh! cobardes! gallinhas luteranas, se sois homens, vinde pelejar comnosco, corpo a corpo!»

O mar leva-lhes as vozes, batendo com montanhas de aguas negras, os cavernames que rangem.

As naus como a S. Lourenço, que varam nas praias, são assaltadas em busca das riquezas e sobretudo das munições.

Ás tres horas, o commandante Iloward pede polvora, manda por ella á costa, não ha. Dá o signal de suspender o ataque.

A tarde desce rapida, o vento assobia nas cordas, o mar arquejante freme cada vez mais bravo.

No dia seguinte, de manhã, vê-se ao longe, muito distante a esquadra ingleza, luctando contra o vento.

O commandante em chefe da dizimada esquadra hespanhola, reune o conselho:

-- O que ha a fazer?

Diogo Flôres, almirante de Castella, exclama:

-- Nada; estamos perdidos.

Houve um momento de doloroso silencio.

Então o duque de Medina Sidonia voltou-se para Oquendo e perguntou-lhe:

-- Estamos perdidos, Oquendo?

-- Perdidos! exclamou o bravo marinheiro, dizem isso: por mim, respondo: « mande-me vossa excellencia dar balas».

X bravura era inutil. A derrota fóra completa e não estava no lim.

Toda a esquadra pedia para voltar. Officiaes inferiores, marinheiros, soldados, remadores, tinham um só grito: para Hespanha, para Hespanha!

Que fazer? para Hespanha! Era prudente não voltar pelo canal. Costeariam a Escócia, dobrariam o cabo do norte e desceriam, costeando a Irlanda,

pelo canal de S. Jorge.

Tal foi a ordem.

Mas, com a noite, o vento cresce, o temporal levanta-se tão subito e bravio que enche de mêdo todos os corações. A cerração é completa; os raios chicoteiam as nuvens, ululam os trovões e revoluteiando convulso, cheio de anciãs, o oceano arqueja, como se, na phrase de Schiller, quizesse parir outro oceano!

Salve-se quem puder! gritou-se; e, o vento separou naus e galeras!

Implacavel, continuo, dominador, arrasta-as para o norte, no meio de nevoeiros densos. Deixam para baixo a Escocia, passam as Orcades, ladeiam

as Shetland ilhas tenebrosas e inhospitas, alcançam as Feroé.

A corrida é louca. Dura onze dias! Abrem a bocca á agua que cahe das nuvens porque não ha outra; os feridos morrem pelas cobertas; o terror atira uns para o mar, outros para a loucura.

Onze dias e noites!

Acalmou, emfim, o vento e o mar.

Um sol, bem que palido, illuminou o ar e as aguas.

Contaram-se; eram treze naus e vinte e oito galeões o que restava da grande armada! Em que estado!

Desceram, passaram as Helides, costearam a Irlanda soffrendo naufragios.

Que naufragios!

Uma das naus é arrojada a uma praia de Conaught. Os moradores correm a salvar os naufragos. Vêem rotos, sequiosos, doentes e mal se arrastam andando. Doloriza o vêl-os. Os irlandezes começam por reparar o navio e quanto aos homens discutem: é melhor dar-lhes agazalho, ou matal-os?

Depois de breve discussão, assentam que são hespanhoes, inimigos seus. É melhor matal-os.

-- Que se matem; diz o governador, um tal Rinzan.

Dá o exemplo; os hespanhoes são trucidados pela multidão, que os rouba, despe e abandona, nús, na praia.

O governador, acabada a faina, volta-se para o seu povo e diz:

-- «Agora que fizemos um acto de justiça, matando estes naufragos, vamos dar graças a Deus, que nol-o permittiu».

E foram rezar!

Ser homem, cá na terra, custa muito; mas ser Deus, no céu, deve custar muito mais, por causa da paciencia que é precisa para aturar os homens da laia dos Rizans. Estes e outros factos levam-me, ás vezes, a pensar n'uma terrivel heresia: Deus será de gesso? Parece.

Aportaram, emfim, a Santander da Biscaia, no fim de dois mezes!

Estes navios e alguns, muito poucos, que o mar trouxe ás costas de Hespanha, desagarrados, nos primeiros temporaes, foi tudo o que restou da Invencivel Armada.

O resto ficou no fundo do mar, ou nos rochedos, da Mancha, do Mar do Norte e do Atlantico: cem navios e quatorze mil homens!

O mar tinha salvo a Inglaterra de um dominio cruel. O anniquilamento da armada hespanhola festejou-se com banquetes, com bebedeiras interminaveis, no reino da Gran-Bretenha. O primeiro degrau da sua grandeza maritima foi este.

A Hespanha recebeu o primeiro grande golpe, que lhe iniciou a decadencia, e Portugal, a Galliza e a Andaluzia, exhaustas de dinheiro e de homens,

nunca mais se levantaram d*este desastre.

A empreza custou cem milhões de ducados e uma vergonha que rejubilou a Europa, inimiga de Filippe.

Elle sentiu-o profundamente; mas, quando Christovam de Moura, seu confidente, lh'o disse, levantou os olhos e, como se recebesse a nova mais insignificante, observou:

-- «Louvado Deus, se cortaram os ramos não deceparam a arvore. Pouco importa que fuja a agua se não seccou a nascente».

E continuou a escrever.

Outros dizem que elle respondera:

-- «Mandei combater os inglezes e não os elementos». É mais provavel e natural em Filippe II a primeira resposta.

Se elle tivesse dado a ultima deveria ter sentido ao mesmo tempo, que fôra a mão de Deus que o vencera; e reflectido, que ao tendo poupado nem

dinheiro nem homens, fôra talvez parco... em procissões!

Que remorso!

Em Paris

As oito terriveis guerras, entre protestantes e catholicos, que tinham ensanguentado, durante os reinados de Carlos IX e de Henrique III, quasi trinta annos, o solo da França, tinham acabado, com os assassinatos do rei e do duque de Guise.

Henrique IV entrara em Paris, cujas portas lhe abrira o governador Brissac, por vinte mil libras e o bastão de marechal de França.

Bem que socegada, a buliçosa capital de Senna era ainda o acampamento de homens de variadas nações, hespanhoes, alemiães, suissos.

Tinham ficado das guerras; uns fazendo parte das tropas, outros abraçados a misteres varios, aborrecidos da vida guerreira; muitos sem emprego nem beneficio, vivendo como podiam, explorando, roubando.

Havia-os de todas as categorias, desde o soldado humilde, até ao capitão; desde o baixo plebeu, até ao senhor.

De resto, a tranquilidade do rei era momentanea; a guerra com a Hespanha estava imminente.

Não viria longe o dia em que pudesse dar que fazer ás espadas mercenarias.

Os homens de guerra, d'aquelle tempo, como de sempre, eram dados ao prazer no intervallo das luctas. As mulheres e o vinho foram sempre um

dos seus mais dilectos passatempos. Paris regorgitava de tabernas e de mulheres alegres.

N'uma d'ellas, que pelo titulo não perca, hotel e e tavolagem, ceavam por esse tempo, em alegre convivio, quatro ou cinco homens ainda novos, que

pelo pano caro dos gibões, pela finura das camizas e riqueza das armas denunciavam ser de boas familias.

A ceia corria alegre, entre o tinir de copos e risos de mulheres.

Fallava-se muito do rei Henrique, das suas guerras e conquistas, da entrada em Paris, da sua abjuração do protestantismo e da sua celebre frase; «Paris vale bem uma missa», com que desculpava a apostasia.

A proposito das virtudes guerreiras do rei, vieram as historia dos seus amores, nomes de mulheres á balha.

Discutiram-se as amantes, assumto obrigado em ceias alegres, e cada um dizendo a sua opinião, a explicava com um caso.

Um rapaz alto, um pouco magro, mas de rosto energico, olhar vivo, elegante de formas e de fallas distinctas, afirmava que nada lisongeia mais a mulher do que dizerem-na bella de corpo.

Ainda que a afirmação não levantasse senão uma oposição ligeira, Nicolau de Harlay quiz comproval-a com um exemplo.

-- É indiscutível, confirmou. Conheço uma mulher, na mais alta posição a que podia chegar no mundo, que um dia para me provar quanto valia, não citou o seu nome, a sua familia, o seu poder, a sua grandeza, mas mostrou-me o seu corpo.

-- Curiosa mulher, observou um dos convivas, acabando de despejar um copo de vinho, pôde saber-se quem é?

-- É indiscripção, obtemperou uma rapariga, com um ar garoto, pedir a um gentilhomem que nomeie as mulheres que se despem deante d'elle.

-- Viva o pudor, exclamou, rindo alto, um outro conviva. Se te não calas Nicolau, és capaz de fazer uma coisa mais difícil do que tomar Paris de

cêrco.

-- O que? perguntou a companheira, pondo-lhe a mão no hombro e íitando-o.

-- Fazer córar a Alix.

-- Estupido, replicou esta, simulando atirar-lhe um copo, como se eu não córasse quando quizesse.

Riram todos, até que um dos convivas que ao fundo da meza parecia enlevado na conversa com uma rapariga loira, de olhos azues, gestos languidos e dôces, disse com ar emproado e uma acentuação estrangeira na voz:

-- Senhor de Harlay, Margot tem o maior empenho em saber quem foi; e, olhava o loiro par.

-- Margot imagina que é francesa, respondeu Nicolau. Imagina conhecel-a... vocês todos... enganam-se.

-- Não é franceza? disseram vozes.

-- Não; é ingleza.

-- Não sejas maçador; conta isso, observou uma das mulheres.

-- Foi então?... perguntou o gentilhomem fronteiro a Nicolau.

-- A rainha Izabel, respondeu este, com ar altivo.

-- De Inglaterra?

-- De Inglaterra, confirmou de Harlay.

-- Oh! oh! a aventura começa a interessar-me, exclamou Alix.

-- Conta, repetiram vozes.

-- Vocês sabem, começou de Harlay que estive uns mezes em Londres com o nosso embaixador.

A rainha destinguia-me... por ser novo, e... não desastrado de todo.

-- Deixemo-nos de modestias, aconselhou Alix. Estamos a ouvil-o; continue.

-- A rainha distinguia-me, continuou de Harlay, e conversava commigo, por vezes. Um dia depois da audiencia, mais á vontade, veiu a palestra a cahir sobre um assumpto que continuamente se versava no palacio real.

-- Qual era? perguntou alguem cheio de curiosidade.

-- O do casamento da rainha.

-- Essa nunca gostou de casar; interrompeu o cavalheiro da cabeça da meza. Sabem-lhe melhor os amantes.

-- Chamem-lhe tola, redarguiu a rapariga fronteira a Alix.

-- Não é verdade, Margot, que um marido é um traste incomodo e aborrecido, por vezes? perguntou-lhe o parceiro.

-- Ai, sr. de Rieux, respondeu a formosa rapariga fazendo uma mesura desoladamente comica, a quem o dizeis?

-- Conta Nicolau... se fazes caso das interrupções, não chegamos ao fim da historia.

-- Silencio, silencio, gritaram.

De Harlay continuou:

-- Falou-se no casamento, na necessidade que d'elle têm as mulheres e sobretudo as rainhas. Izabel, como sempre, afirmava que desejava casar-se; a dificuldade eia encontrar com quem.

-- Uma rainha não podia escolher, livremente. D'ahi a gravidade do passo.

Lembraram vários nobres e príncipes e a nenhum ella fez boa cara. Este por isto, aquelle por aquillo. Com a maior cortezia lembrei-lhe o nosso

rei. Henrique IV é um gentilhomem, de bom nome e melhor fama. Um rei de França.

Respondeu-me pressurosa: «Nem pensar n'isso meu caro; o vosso gendarme, -- é assim que ella o chama -- não me convém a mim nem eu a elle... Não porque eu não esteja ainda em estado de dar prazer a um homem meu marido, que me conviesse; mas por outras razões».

E, como eu a olhasse perplexo, o que imaginam vocês que ella fez?

-- Ninguem sabe.

-- Sabe-se lá.

-- Julgando, creio eu, vêr no meu olnar qualquer desconfiança, levantou as saias, puchou a camisa e mestrou-lhe as pernas, até acima das ligas.

-- Oh! oh! E, tu? perguntaram dois ou tres convivas.

-- Esta é, decerto, a mais curiosa situação da minha vida, explicou Nicolau de Harlay...

-- O que fizeste?

-- Fechaste os olhos?

-- Puz um joelho em terra e... beijei-lh'as!

-- E, a rainha? perguntou o senhor de Rieux, levantando-se enthusiasticamente; que fez ella?

-- Zangou-se ou fez que se zangava. Acalmei-a, dizendo-lhe: «Senhora, perdoae-me o que acabo de fazer, é o que teria feito o rei meu senhor, no meu logar».

E, cousa curiosa, quando contei a Henrique IV...

-- Contaste-lhe a passagem?

-- Contei. Quando lhe disse a desculpa: que era o que elle faria, riu-se e, batendo-me no hombro, exclamou: fizeste bem; era.

Izabel riu-se e estendendo a mão, que beijei.

-- Andaste como gentilhomem francez, meu bravo; exclamou de Rieux. Encham os copos, até acima, todos, e... á saude de Nicolau Harlay.

-- Viva Nicolau de Harlay, exclamavam os convivas levantando-se, bebendo, tocando os copos.

-- Que tal, a rainha, de roupas baixas? perguntou Alix, curiosamente.

-- Uma delicia, replicou Nicolau... o Monte Branco.

-- Tinha corôa nas ligas? indagou a elegante Margot.

-- Não tive tempo de vêr, respondeu de Harlay.

-- Era bem feita? imprimiu por sua vez o gentilhomem amoroso, levantado a cabeça de sobre o hombro de Cozette a loira.

-- Pequena, mas muito bem proporcionada.

-- Quando foi isso? perguntou Alix.

-- O anno passado.

-- Que edade tem a rainha?

-- Passa dos cincoenta

-- Cincoenta annos! Oh! por isso ella mostra as pernas aos rapazes. Já não tem mais que mostrar.

A endiabrada rapariga deu uma gargalhada divina.

-- Observo-lhes, interrompeu Margot, que não ha nem fructa, nem dôces, nem vinho.

-- Eh! rapaz, gritou de Harlay batendo n'um copo com a lamina da faca; ó tu que serves, estás a dormir?

O moço correu, rapido, a receber as ordens e a executal-as.

-- É uma bella passagem, disse um outro dos convivas a quem chamavam Bignon. Nenhum de nós terá na sua vida um quarto de hora assim.

-- Talvez, replicou de Harlay; a mim mesmo me não aconteceu outra egual.

-- Com certeza, exclamou de Rieux, é difficil e senão, que cada um conte a cousa mais extraordinaria, em amores, que lhe tem acontecido.

-- Bôa ideia, observou Alix; a ceia vae no principio e é preciso entreter até á madrugada.

-- No principio? Exclamou Margot, á sobremeza.

-- No principio... então?: para mim, afíirmou Alix, a ceia começa com os dôces e com o Borgonha.

-- Tu, Rieux conta lá a tua mais estranha aventura, disse Harlay.

-- Não tenho, meu caro. A minha vida é monotona. Como, bebo e bato-me. Os meus amores teem sido vulgares. Nunca estive na côrte.

-- Deixa-te de modéstias, replicou Margot, aquelles teus amores trágicos com a Mme. Duneyer...

-- O que ha de mais vulgar: anuámo-nos; o marido soube, desaíiou-me, batemo-nos, matei-o.

-- Requiescat... concluiu Bignon, despejando o copo, pela decima vez.

-- Então... quem será... quem se segue? Perguntou Alix... Tu, olá, eterno amoroso... lubrico como um bode, tu, hespanhol do diabo...

Referia-se e olhava para o rapaz que, no topo da meza, temos visto falar pouco, mais entretido a abraçar e a beijar a cabeça da loira Cozette e

mal temos observado.

Reparando melhor, via-se que era um bom tipo de meridional, olhos escuros e cabellos, bôcca rasgada, dentes brancos. O bigode usava-o arripiado para o alto, contra as faces. Vestia um gibão golpeado, sobre que assentava um collarinho liso, gomado de linho fino, alto, de bicos abertos no peito.

O calção era de sêda, como as meias. Botas altas e esporas. Apertava-lhe a cintura, um cinto negro com pregueado de prata, d'onde pendia uma

espada de punho trabalhado.

Quando olhava, tinha um ar altivo, ao mesmo tempo que dôce.

Interpelado pela rapariga, ergueu o olhar, levantando o copo, e disse:

-- É comigo que falas?

-- Quem é aqui o hespanhol? É comtigo.

-- Como não sou hespanhol...

-- Então o que é que tu és?

-- Ainda o não sabes? Portuguez.

-- Pois bem, portuguez, hespanhol, o quer que sejas, queremos que nos contes os teus amores.

-- Mais cautella, Alix, observou Harlay, mais respeito, falas a um príncipe de Aviz.

-- Onde hca isso? Lá para baixo? Pois bem, meu principe, dignae-vos contar-nos a historia do vosso mais extraordinario amor... Sem ser o de

Cozette.

-- Não... agora, a serio... tu és realmente um principe? perguntou com voz e gestos de ebrio, Rignon, reenchendo o copo.

-- Sou mais alguma cousa, replicou o interpelado.

-- Ainda mais? olá!

-- Sou um rei!

-- Um rei? exclamou Alix, um rei de quê?

-- De um paiz bem mais poderoso do que a França...

-- Toma! exclamou Bignon.

-- Está exilado, notou Rieux. Anda fugido.

-- De quem? perguntou Bignon.

-- De Filippe II, hoje senhor de Portugal.

-- Então temos dois reis de Portugal, ao mesmo tempo, fugidos em Paris? Quantos thronos tem esse reino?

-- Um só. D. Antonio, aquém vos referis, replicou o senhor de Aviz, tentou e pretende ser rei.

Todos me julgaram, ou quizeram que fosse morto, em Portugal e D. Antonio batalhou pelo throno que lhe pertencia se assim tivesse sido.

-- Morto, aonde? perguntou Cozette.

-- Na Africa, quando ia a conquistar Marrocos.

-- Não o conquistaste? perguntou Bignon... que pena...

-- Ainda bem, observou Cozette.

-- Porquê indagou Alix.

-- Se elle fosse rei de Marrocos ... não estava aqui, agora.

-- Oh! o amor! exclamaram tres ou quatro vozes.

-- Oh! o vinho! berrou o patusco do Bignon erguendo o copo, entre gargalhadas.

Estejam calados, um bocado; gritou Alix. Começa a interessar-me a historia do senhor de Aviz.

-- E a mim tambem, disse Margot.

-- A todos nós, exclamou Bignon. Queremos a vossa historia Sire...

-- Venha a historia, disseratn muitas vozes.

-- É muito comprida, disse o d'Aviz... não vale a pena...

-- Eu pergunto, eu pergunto, gritava a Alix. Silencio, silencio...

-- Cozetto deixa-te de macaquices com o rei. Já estás a sentir-te n'um throno... .

-- De Marrocos, accrescentou Bignon... de sandalias e de cara tapada...

-- Não preciso ainda, replicou Cozette, despeitada.

-- Oh! rainha, exclamou Bignon, erguendo-se e dobrando-se n'um exagerado cumprimento.... o mais humilde dos vossos subditos.

-- O mais bêbedo é que queres dizer.

-- Tu és gentil e vou agradecer-te com um beijo a graça da verdade que disseste; e, caminhou para ella.

Alargot deitou-lhe a mão ao braço.

-- Está quieto, senta-te. Tu imaginas que aquella rainha é a rainha Izabel de Inglaterra? Bignon, convencido, sentou se.

-- Querem ouvir ou não querem? indagou Alix, com enfado.

-- Já se vê que queremos.

-- Então calem-se. Bem, senhor de Aviz, queira explicar-nos como é que sendo, ou tendo sido rei de Portugal, está aqui entre nós.

-- Vim na Armada Invencivel.

-- Contra a Inglaterra? És um amigo exclamou Bignon.

-- Que náu comandavas? perguntou de Rieux.

-- Nenhuma.

-- Vinhas como oficial? perguntou admirado Harlay. Um rei...

-- Vim amarrado a um banco, a remar, entre assassinos e negros. Um galeriano.

E, como o espanto se pintasse na cara dos ouvintes, o d'Aviz saboreou a impressão produzida e continuou:

-- Rei de Portugal, quiz um dia dilatar o meu poder pela Africa dentro e fui combater Muley Moluk, imperador de Marrocos. Fui vencido. Por vergonha não pude voltar a Portugal. Salvo quasi milagrosamente da batalha, fiz o voto de ir a pé a Terra Santa, expiar a minha culpa -- porque eu fôra contra a vontade de todo o mundo.

Fui, corri os logares santos, e, um dia, mais socegado da consciencia, não podendo mais com as saudades do meu paiz, voltei.

-- Percebo isso, interrompeu Bignon, ias como peregrino?

-- Descalço, um bordão e um habito.

-- Um throno é outra cousa.... que tal o vinho por lá?

-- Não interrompas Bignon, pediu Alix.

-- Depois? depois? perguntou Cozette.

-- Interessa-te? disse o narrador.

-- Muito, respondeu ella.

-- Voltei, a pé, como tinha ido, ao frio, á chuva, pelos montes e pelos desertos.

Desconhecido entrei em Portugal e indaguei o que tinha acontecido desde o meu desapparecimento.

Morto ou não na batalha, por morto fui tido e um velho cardeal meu parente, tomou o meu logar. Pouco viveu, era velho e doente. Pela sua morte Filippe II de Hespanha, fez valer os seus direitos á corôa e, pelas armas, aclamou-se rei. D. Antonio quiz oppôr-se-lhe mas foi vencido, uma vez, duas vezes.

Em Lisboa era perigoso estar; os cães de D. Filippe, podiam descobrir-me, farejar-me. De mais não tinha esperanças de poder, ainda, levantar o

paiz. Era preciso tempo, deixar que o rei de Hespanha se tornasse bem odiado.

De peregrino tornei-me eremita, que é quasi o mesmo e fui habitar um pequeno eremiterio, na fronteira de Portugal. D'alli podia saber o que se

passava, vigiar.

-- É bom ser eremita? perguntou Bignon, com um interesse piegas.

-- Cala-te, disse Alix.

-- Custa estar tanto tempo a ouvir.

-- Ora; bebe, calado.

-- Que vida triste devias ter passado, exclamou Cozette.

-- Não tanto, observou o d'Aviz. Houve uma devota que me adoçou os dias de eremitagem.

-- Bandido! exclamou o Bignon... não respeitou o babito!

-- Entremos no assumpto, clamou Alix, siga.

-- Era bonita? perguntou Harlay.

-- Linda. Olhos e cabellos negros... uma hespanhola.

-- Embirro com as hespanholas, affirmou Cozette.

-- Eu não, exclamou de Rieux; são adoraveis.

-- Melhores que nós? perguntou Margot, com despeito.

-- Mais vivas, mais dadas, mais ciumentas....

-- Ciumentas? gosto.... Vivam as hespanholas! gritou Bignon erguendo o copo.

Ergueram-se outros copos, que se despejaram.

-- E, amaram-se? perguntou Alix, que, pelo que se vê, era a mais curiosa das tres.

-- Naturalmente.

-- Era solteira?

-- Casada.

-- O marido era manso? perguntou o Bignon, á gargalhada.

-- Como um cadaver. Tinha morrido na Africa na mesma batalha que eu perdera.

-- Não tem graça a historia. Foi um amor livre e portanto sensaborão, observou a Alix.

-- Ao principio; mas teve um fim engraçado: o morto ressuscitou!

-- Bravo! E, tornastel-o a matar?

-- Não. A esse tempo eu fôra, já, reconhecido. Pediam-me pára voltar para Portugal, para começar a empreza da libertação.

Que havia de fazer? Sacrifiquei os meus amores e fui:

-- Chorou muito a hespanhola? perguntou Cozette.

-- Jesus! exclamou o Bignon... uma Magdalena... um chafariz com duas bicas.

-- Não falo comtigo.

-- Nem eu comtigo.. . isto são reflexões intimas. Desde que subiste ao throno estás insuportavel.

-- Mas não consta de revolta contra Filippe II, em Portugal, senão a de D. Antonio, observou o Nicolau de Harlay.

-- Não se chegou a fazer replicou o d'Aviz. Prenderam-me, logo no começo; a mim e a dois fidalgos que me seguiam, tomos levados a Lisboa e julgados. EUes morreram na forca, eu fui condemnado ás galés.

-- Já percebo como vieste parar a França; não devia ter sido commoda a viagem, disse, rindo, a Alix.

-- Horrivel. Logo ao sahir de Lisboa começaram as tempestades. Vieram comnosco até Calais, d'onde tivemos de sahir para não morrermos assados.

-- Conheço o episodio, observou de Harlay.

-- Meu amigo, tremo ainda hoje, quando me lembram esses dias, sem fim, a remar, encharcado pelo suor e pela agua e essa noite terrivel, entre o fogo dos brulotes, o fogo dos inglezes, o fogo do céu e os arrancos do mar!

Uma noite no inferno deve ser mais serena!

O narrador levou aos labios um copo de vinho e sorveu-o de um trago. A lembrança e a narração espalhara-lhe no rosto uma palidez visivel. O vinho restituiu-lhe a côr.

-- Isto de ser rei tem os seus contras, observou Bignon.

-- Cala-te; deixa contar o fim, intimou Margot.

-- Como vim parar aqui? Continuou o d'Aviz; é facil de calcular, naufragámos.

Pela madrugada, a náu foi arremessada contra a costa e encalhou. Dois navios inglezes cahiram sobre ella para a saquearem. Vieram os francezes,

a disputarem a preza; houve lucta sangrenta.

Os poucos que escapámos, fômos por terra a Dunkerque, onde estava o duque de Parma e alistamo-nos no seu exercito. Quando elle veiu fazer levantar o cerco de Paris ao que é hoje nosso rei, eu fiquei na guarnição hespanhola, cá dentro. Agradou-me a terra as mulheres, e... não sahi mais.

-- Viva o rei! -- exclamou o Bignon.

-- Viva! exclamaram as mulheres.

-- Afinal a historia era curiosissiraa, -- observou a Alix, -- é pena ter acabado.

-- Acabou? -- perguntou o Bignon. -- Não pôde ser, não acabou.

-- Que mais queres? -- observou-lhe Harlay.

-- Não; não pôde acabar assim, -- retrocou aquelle. -- Isso não é fim de historia nenhuma.

-- Acaba-a tu -- disse a Alargot.

-- Com muito gosto. O final ha-de ser este: o bom do rei encontrou em Paris uma linda rapariga, que lhe fez esquecer todas as suas desgraças. Chamava-se Cozette. ... era de uma nobre familia... casaram e tiveram muitos filhos.

Uma gargalhada geral sublinhou as palavras do falador.

A ceia continuou, até pela manhã, mas eu paro aqui.

O leitor nunca lhe passou pela cabeça o ir encontrar o filho do oleiro de Alcobaça, dizendo-se rei de Portugal, vivendo em Paris.

Pois assim foi. Lá foi visto ainda no anno de 1595: aventureiro, vivendo de expedientes e de esmolas dos fidalgos.

É talvez a ultima noticia que existe d'elle.

O rei da Ericeira

Matheus Alvares

Para o convento da Cortiça, da serra de Cintra, fundado pelo fdho do grande D. João de Castro, em 1560, tinha vindo um noviço de mosteiro de S. Miguel, junto a Óbidos.

Era ainda novo; teria uns trinta annos o maximo; de estatura média, o cabello aloirado e os olhos azues.

Era natural dos Açores e filho de um pedreiro.

Possuia uma inteligência aguda, uma certa illustração fradesca e, sobretudo, uma subtileza no pensar e nas obras, que muito perto raiava pela velhacaria.

Era ambicioso. A escolha da vida não fôra n'elle senão um calculo.

Ser frade era n'esse tempo o degrau para honras e valimentos, correspondia nos nossos tempos, á formatura em Direito.

Hoje reina o bacharel, então era o padre.

Como veio dos Açores para o reino não se sabe; como entrou para o convento de S. Miguel, em Obidos, ignora-se. O que é certo é que lá esteve e de lá veiu para Cintra.

O convento da Cortiça é formado de grutas naturaes. As casas são os intervallos que nos rochedos deixaram as terras que as aguas e os ventos desentalaram d'entre elles.

Os tectos são rochas assentes casualmente sobre pedregulhos enormes, lembrando a architectura dos ciclopes.

A vida, ali, era de penitencia, de desconforto, de oração, de arrependimento, talvez; de castigo ao certo.

Seria esta a razão porque ali viesse parar o noviço das ilhas? Talvez. Uma falta commetida pelo rapaz, justificaria a sua remoção para o convento da Cortiça, se não foi o desejo de tornar mais valioso um noviciado, entre rigores monasticos.

A historia do rei de Penamacôr conservava-se, no convento. A singularidade de ser o heroe um noviço a principio, um eremita mais tarde, tornava para os padres mais interessante o episodio.

Assim o caso, desde o apparecimento até á morte do falso rei, serviu longos dias de thema favorito das conversas.

O noviço dos Açores, Matheus Alvares, ouviu conversar os frades, elle mesmo tomou parte nos cavacos e sentiu quanto era profunda a convicção

de que D. Sebastião vivia.

-- Não era aquelle, diziam; mas o verdadeiro aparecerá, a seu tempo.

Não era tarde ainda. A batalha fôra, havia pouco mais de seis annos. Se o rei fôra á Palestina, a pé, como se acreditava, não era estranho que ainda não tivesse chegado.

Não podia, porém, tardar.

Esta convicção profunda que Matheus Alvares via dominar todos os espíritos, mostrou-lhe quanto teria sido facil ao fingido e condemnado rei de Penamacôr o ser acreditado como tal, se uma semelhança maior e mais inteligentes processos elle tivesse tido em seu auxilio.

Se era certo que a aventura do filho do oleiro não tinha tido a faculdade de levantar o animo escravisado do povo, não era menos certo que ella fôra uma chicotada que o fizera tremer, na sua modôrra de escravo.

Filippe II começava a tirar a mascara da afabilidade. Os fidalgos não recebiam o oiro promettido nas cedulas de Christovão de Moura, os plebeus, velhos, mulheres e até creanças, eram enforcados, victimas de qualquer suspeita de revolta contra elle pela miseravel dedicação dos corregedores, da laia infame dos Diogos da Fonseca e outros.

Aquella crença na vida do rei desaparecido, teve um impulso no episodio do rei de Penamacôr.

Recrudesceu a esperança nos corações orgulhosos e muitos lamentavam em segredo:

-- Que pena não podermos ter feito que fosse o rei!

Este sentir era logico. O que era preciso era que o rei apparecesse e como tal fosse tido... fosse elle quem fosse.

Esse alguem seria uma bandeira, a esperança, a independencia, talvez.

Mas as cabeças que assim o pensavam, diziam-no intimamente, sentiam-no em segredo, porque o divulgal-o era grave.

No silencio da sua cella exigua, sobre o catre duro de madeira sem roupas, Matheus Alvares pensava, longamente, no sentir do povo, na frivolidade do seu colega de Albuquerque, na inepcia da aventura, na facilidade relativa de uma outra, coroada de bom exito.

Quem, com habilidade, ousasse tental-a! Que grande seria o feito se se conseguisse.

Expulsar o hespanhol maldito! libertar Portugal!

Pela cabeça passara-lhe mais que uma vez, durante as meditações, sentado no catre:

-- Se eu fosse capaz! Se fosse eu!

Por coincidencia, elle possuia uma certa semelhança com D. Sebastião: era loiro, tinha os olhos azues, semelhante a estatura. Era-lhe quasi egual

na edade.

A coincidencia impressionava-o.

Não estaria, realmente, destinado a representar esse papel?

Porque não? Esta ideia, discutida, analisada, comentada, começou a dominal-o; e, em breve, se lhe apoderou do espirito a tornar-se, persistente, fixa.

Rezava para que Deus o illuminasse e depois das orações parecia-lhe muito mais impetuoso o desejo, mais forte a convicção do bom exito, mais

alegre o espirito.

Concluia que o ceu approvava as suas tenções.

Examinava-se e sentia-se com coragem para todos os acontecimentos; não o amedrontava a morte.

A morte! se morresse, morria pela sua terra, pelo Portugal catholico, pela sua egreja opprimida!

Seria um martyrio abençoado por Deus!

Ao mesmo tempo, a ideia profana dos resultados de uma tentativa de tal grandeza, a ser bem succedida, enchiam-lhe de antegoso o coração ambicioso.

No ceu ou na terra, o premio era infalivel.

Porque não havia de ser elle?

E, um dia, amadurecido o plano, coração ao largo, firme, n'uma vontade inabalavel... resolveu-se.

N'uma das muitas depressões de terreno da cerca do convento, entre duas pedras redondas como ovos colossaes, havia uma cova de um a dois metros de fundura, cavada, natural ou artificialmente, na terra.

Era um buraco simples, sem cobertura, a boca voltada para o céu, cercado de hervas rasteiras.

Dir-se-hia um covil de fera, ou abrigo de um cão. Era a cela de um frade.

Quasi desde a fundação do convento que um d'elles a habitava. Era um homem alto, esqualido, tipo d'esses frades de Zurbaran, de uma magreza esqueletica, a côr terrosa, o olhar febril, iluminado, entre a inspiração e a loucura.

Ali passava quasi o dia inteiro; ali dormia sempre, enroscado no fundo da cova, como um sabujo com frio.

Cahiam sobre elle, ora os raios quentes do sol, ora os nevoeiros da serra, inclementes, gelidos.

A constituição robusta do frade zombava da natureza inclemente e zombou trinta annos.

Tinha por nome Fr. João e atendendo á povoação mutavel do convento, ninguem sabia quem elle era, no tempo em que se passava a nossa historia.

Tinham-no como meio louco, alguns; a maior parte respeitavam-no corno santo.

Falava pouco; raras vezes o viam pela cerca, a não ser a caminlio da capela, para os officios. Como sabiam que não gostava de ser interrogado, deixavam-no viver no isolamento silencioso em que se recreava.

Era exemplar no cumprimento dos deveres do convento, humilde para com todos, de falar grave e pausado, ainda que de porte altivo.

A sua opinião era sempre escutada, quando lha pediam e elle a dava, porque representava, invariavelmente, um alto juizo, um criterio sereno e profundo dos homens e das cousas.

Assim o singular frade vivia no convento como um ser á parte, superior aos mais todos, venerado, querido.

Tinha fama nos arredores; e nada mais sugestivo, de sobrenaturalismo para os aldeãos dos arredores, do que vel-o, ás vezes, por noite luarada, sentado sobre um penedo, a barba longa de apostolo ondeando ao vento, o cabello comprido esvoaçando nos hombros, immovel como a pedra onde se sentava, o olhar ao alto, como se contasse as estrelas ou conversasse com Deus.

-- Lá está o santo, diziam; e, ficavam-se a olhal-o, mudos, como se sentissem que um fenómeno estranho se hia dar; abrir-se o céu e o frade entrar por elle dentro.

O frade descia do serro e entrava na cova.

A impressão de santidade que essa vida tão cheia de penitencia rudissima, exhalava do frade, sentira- a tambem Matheus Alvares, querendo adivinhar, no andrajoso irmão, alguem que, grande no mundo, expiasse com uma energia heroica um crime contra Deus.

E, como as gentes do povo hiam, lá acima á serra, para lhes benzer, abençoar, os filhos nas doenças e acreditavam que as melhoras, quando vinham, lhas dava a benção do padre; como um outro milagre começava a apparecer por intervenção do misterioso freire, Matheus Alvares pensou em lhe pedir a benção antes da partida, recomendação perante Deus, auxilio prestigioso para o bom exito da empreza.

E foi.

N'aquella noite em que deixou a cela havia luar na serra, ainda que velado um pouco pela neblina.

Caminhou, com passos firmes pelos atalhos da cerca, que faziam de ruas, até á beira da cova.

-- Fr. João? perguntou olhando dentro.

O frade estava meio deitado de costas sobre a terra. Ergaea a cabeça lentamente e perguntou:

-- Quem é?

-- Sou eu, Matheus, o noviço.

-- Que é que queres? Alguma novidade vae pelo convento?

-- Nenhuma, padre.

-- Que queres, então, de mim?

-- Vinha pedir-vos a vossa benção.

-- A minha benção?... que lembrança é essa... a esta hora...

-- É que von partir, meu padre; e, antes de o fazer queria levar... queria pedir-vos o favor de me abençoardes.

-- Partir a esta hora? Como? Quem te manda?

-- Ninguem, padre; sou eu que resolvi deixar o convento.

Fr. João, que já se erguera da terra trepou pelo lado mais suave da cova e chegou junto do noviço.

Parecia-lhe estranha a voz do rapaz, como achava impropria a hora da partida.

-- Mas... explica-te claramente, disse olhando-o de perto. Para onde vaes? quem te deu licença para abandonares o convento, tão fóra de horas?

-- Ninguem. Para onde vou? Não sei.

O frade agarrou na cabeça do noviço, voltou-a contra a lua, para lhe vêr bem a cara e perguntou:

-- Estás em teu juizo, ou estás a sonhar um pezadêlo?

Sacudiu-lhe o corpo.

O rosto de Malheus Alvares conservava, inalteravelmente, uma serenidade absoluta.

-- Foges do convento sem saber para onde? Alguem te maltratou?

-- Não, padre.

-- Homem de Deus, exclamou o espantado freire, se não é cousa má que tentas ou vaes tentar, dil-a, claramente, e partirás com a minha benção.

-- Padre, respondeu placidamente Matheus Alvares, quero dedicar a minha vida a uma ideia generosa que me parece que haveis de aprovar.

-- Dize.

-- A empreza é tão grande que duvido, por vezes, que tenha intelligencia e força para a vencer. Espero para isso o auxilio das vossas orações perante Deus e a vossa benção.

Por instantes, o misterioso frade, imaginou que Matheus Alvares desarazoava; mas a sua voz era tão calma, tão sereno o seu olhar, tão natural e de verdade a expressão, que afastou esta ideia e interessado, perguntou:

-- Que empreza é essa?

-- A de libertar Portugal do jugo hespanhol.

A esta resposta é que o frade não duvidou mais.

O rapaz estava doido. Com a bondade da sua alma cheia da comiserações, passado um tempo a olhal-o, disse-lhe:

-- Boa ideia é essa; falaremos de espaço n'ella; amanhã... por agora é melhor ires para a tua cella... vae dormir... vem falar-me amanhã...

falaremos...

Um riso passou pelos labios do noviço:

-- Imaginaes que enlouqueci, Fr. João?

-- Não, amigo... que ideia a vossa... amanhã...

-- Ámanhã será tarde, meu padre. Eu parto, agora. Vede que não estou louco...

-- Quem vol-o diz? interrompeu, cuidadoso, o freire.

-- Deixai-me que vol-o prove, pediu Matheus Alvares. Preciso da vossa benção; não posso partir sem ella; não para a minha loucura, mas para os

meus actos, para que elles possam ser inspirados por Deus e, assim, certos.

-- Cada vez mais impressionado pelas palavras do noviço, Fr. João, dizia-lhe:

-- Pois bem, fala, eu escuto. Encostou o corpo magro e alto contra urn dos pedregulhos, cruzou as mãos sobre o peito e atendeu.

Matheus Alvares começou a falar. Pintou Portugal, vencido, arrumado, insultado a toda hora. Falou da vergonha que esmagava o paiz de tantas glorias passadas, de tão grandes homens e de tão grandes acções.

Falou das sentenças, dos assassinos, das mortes de todos os dias; da miseria geral, das agonias de uma escravidão infame.

Insultou os nobres vendidos, miseravelmente, á Hespanha e insistiu que ao povo pertencia libertar um reino vendido pela sua ambição, pela sua vileza, d'elles.

O frade ouvia. O rapaz falava como um inspirado. Por vezes o corpo do ouvinte estremecia, como n'um choque eléctrico, rapido, nervoso. Dir-se-hia que o alcançavam os insultos.

-- Estaes a ouvir me?

-- Oiço, respondia frei João, continua.

-- Que me dizeis?

-- Continua... acaba.

Matheus Alvares continuou:

-- Padre, não se pôde esperar mais tempo pelo rei. Esperar é morrer lentamente. A escravidão quebranta todas as almas. É preciso que o rei

appareça.

-- Sim, interrompeu bruscamente, o frade: mas como?

-- Eu sei... seria, eu!

-- Tu? Frei João olhou o noviço, espantado pela energia da phraze, e viu-lhe o olhar illuminado; á flôr dos labios um sorriso de altivez energica.

-- Eu! por que não? Deus escolhe muita vez os humildes para as suas grandes obras. O esposo de Maria era um carpinteiro; os apostolos de Christo foram homens do mar. Eu sou filho de um pedreiro, que importa?

-- Nada importa, confirmou Fr. João, arrastado pela palavra quente e suggestiva de Matheus Alvares, imaginando-o debaixo de uma influencia sobre natural. Foi Deus que te inspirou? ouviste a sua voz?

-- Não, padre! Se a tivesse ouvido!... Tenho rezado; e, a oração trouxe-nie a fé, a crença, a esperança firme n'uma victoria que seria a justiça.

-- Esse será o plano de Deus; qual é o teu?

Matheus Alvares repetiu a historia do rei de Penamacôr, para terminar, dizendo:

-- Acreditaram-no, teve adeptos, honras, dinheiro. Foi rei d'uma provincia; se lhe não falta a inteligencia, um fim alto, que dá a coragem, a fé que dá a temeridade, porque não teria sido o rei de todo o reino?

-- Eu creio que Deus te illumina, Matheus Alvares. Ha nas tuas palavras uma convicção que domina; ha nas tuas ideias uma grandeza de que te não supunha capaz, exclamou Fr. João, levantando a cabeça para o céu, como se esperasse que de lá lhe viesse a confirmação do que pensava e dizia.

-- Pensei longas noites, padre; a minha resolução é inabalavel, espero que Deus me auxilie.

-- Não o duvides, que só Deus é justo.

Por um momento guardaram silencio os dois.

O frade foi o primeiro a quebral-o.

-- Deves ter uma ideia para iniciares a tua obra. Como vaes começar?

-- Imitarei o rei de Penamacôr. Era um eremita, far-me-hei eremita. Está achado o principio. O eremiterio protege, facilita a prédica oculta; atrahe os pobres, os miseraveis...

-- É n'elles que é preciso fundar todas as obras do mundo; assim o fez o Christo e a sua palavra conquistou a Terra. Creio em ti continuou o frade, porque a tua vista é clara, porque o teu juizo é recto.

-- Que força me daes approvando-me, exclamou o noviço. Escutae-me ainda. Para irmanar a minha empreza com a de Christo, para a collocar sob a sua santa protecção, penso em ir procurar os que hão-de ouvir a boa nova, entre pescadores.

-- Será uma inspiração do céu, observou Fr. João.

-- Talvez. Como a tive iiiua noite, n'um sonho, seguil-a-hei.

-- Deus revela-se nos sonhos, confirmou o freire.

-- Agora, disse Matheus Alvares, que sabeis o que quero e a que vou, vós que pela vossa vida tão de perto viveis com Deus e na sua amizade, se vos mereço fé, se vos mereço amor, intercedei por mim perante elle e dae-me, para meu conforto, a vossa benção.

-- Irmão, disse o frade, dando ao noviço o nome que o irmanava ternamente com elle, de Deus estou tão perto como tu; e, a sua misericordia jurei

alcançal-a, despindo-me de todas as vaidades humanas e vivendo o resto da vida, no seio da terra, como misero verme!

Espero alcançal-a. Elle é justo, elle é bom!

Como vivo, como jurei viver, como hei-de viver até ao ultimo dia, nada valho, nada posso para as coisas do mundo.

O meu braço que não poderia já levantar uma espada, teria força para erguer, ainda, um crucifixo! Jurei, porém, a paz... e... Deus ouviu-me.

O que posso fazer por ti? pedir a Deus que te faça vencer? A estamenha não matou ainda o coração portuguez que me bate no peito: fal-o-hei dia e

noite. Se a minha benção, anima com mais força o teu coração, se te dá valor e fé, eu te abençô-o, em nome do Padre, do Filho e do Espirito Santo!

Erguendo a cabeça ao céu, o frade traçava no ar as linhas da cruz, por sobre a cabeça de Matheus Alvares que ajoelhara, humilde, sobre os musgos

orvalhados da serra.

Levantou-se o noviço.

Abraçaram-se commovidos os dois.

-- Que Deus permitta que te veja, um dia, voltar aqui cheio de gloria, disse o frade.

-- Se assim fôr, se a alcançar, voltarei. Virei agradecer-vos o quanto me destes de força, de confiança, de coragem. Santo, adeus!

-- Que Deus vá comvosco e a Virgem, murmurou o frade.

Matheus Alvares começou a descer a serra. A lua brilhava com mais luz, no alto, pratejando os cordões de agua que desciam por entre as rochas vincadas, em zig-zagues continuos.

No silencio da noite, os ruidos multiplos das pequenas correntes rumurosas, das quedas de agua, elevava-se n'um conjuncto de sons harmonicos e dôces.

A serra cantava; a serra era um órgão.

O frio da noite excitava o cerebro, tonificava o coração do aventuroso rapaz.

Havia perfumes no ar; perfumes agrestes que animalisam, que dão força. O rapaz sentia uma grande alegria na alma e parecia-lhe que uma estrella que brilhava, ao longe, muito viva, muito alegre, era a sua estrella.

Para os lados de Mafra?... vamos por ali.

Olhou para traz. A serra, nos cumes, toucava-se de nuvens. O convento não se via; mas a imaginação do rapaz mostrou-lhe, no lombo de um penedo, uma figura negra de frade, muito alto, muito alto, a abençoal-o!

O Accordo

Era n'uma noite de maio, clara e serena.

Junto da Ericeira, sobre as rochas, dois homens conversavam, sentados, animadamente. O luar fazia-lhes resaltar os vultos sobre as massas negras da penedia, como se fossem dois calhaus de forma humana. O ar era tépido, a terra tranquilla, e assim o mar que baloiçava indolente, como enorme colcha de sêda bordada a prata, agitada por um vento brando.

Eram pescadores: o fato, os gestos, o modo cantado e dolente de falar, revelavam-lhes a profissão.

Eram, o Manuel Hypolito, velho lobo do mar, reformado, á força, pelo reumatismo; e, um rapaz ainda novo, de formas atleticas, o João Canha.

-- É o que lhe digo, tio Manuel, dizia o João Canha... pelo menos é o que corre ahi pelo povo... e olhe que tem seus geitos de verdade.

-- Imaginaram isso as mulheres, observou o Hypolito. Ouem é que faz caso do que inventam mulheres?

-- É que não é inventado.

-- Pois que é?

-- Já lho perguntaram... e elle não nega.

-- É então, D. Sebastião? Em pessoa?

-- Já se vê que sim.

-- Como veio parar aqui? Que vem cá fazer? perguntou o velho cheio de descrença. Anda a cumprir penitencia...

Qual penitencia?

-- A de ter levado Portugal a esta desgraça em que estamos.

Com a resposta do Canha, o velho ficou perplexo e poz-se a reflectir. Houve um silencio.

-- Olhe, lá está a luz, exclamou de repente, o Canha, apontando com o dedo por sobre os rochedos. A uns duzentos metros, um ponto luminoso,

tremulo, apareceu.

-- É na capela? perguntou o Hypolito, olhando.

-- É, respondeu o Canha. Está aceza toda a noite. Até serve de signal para a barra, afirmou.

Os dois homens, como se a pequena luz fosse coisa extraordinaria de ver, puzeram-se a olhal-a, demoradamente. Pouco depois o Hypolito observava: se fosse D. Sebastião! mas qual? O pobre rei está morto e bem morto, como diz o corregedor de Mafra... quem nos governa é o rei de Hespanha. Somos hespanhoes... e assim ficaremos, para sempre!

-- Quem sabe lá? observou o Canha.

-- Não tem que ver. Esse Filippe tem mais soldados que de areias tem o mar. Os fidalgos são por elle... que hade fazer o povo?

-- Nem todos os fidalgos são por elle.

Os maiores e os melhores, observou o velho.

E, o nosso rei. Vê lá como foi recebido em Lisboa ha tres annos.

-- E não é uma vergonha? objectou o Canha.

-- Mas que se lhe ha de fazer? inquiriu o Hypolito.

-- Voltasse o nosso rei! disse o rapaz, e nós veriamos.

-- Ah! se elle voltasse, confirmou o velho... era outro caso, nem esses fidalgos vendidos teriam coragem de o guerrearem.

-- Era o que faltava, confirmou o Canha... elle os ensinaria.

De vez em quando olhavam para a luz: até que n'uma das vezes, como se uma ideia lhe passasse pela cabeça o rapaz disse para o velho:

-- O tio Hypolilo, vamos nós á capela?

-- Agora, está fechada.

-- Não está nunca, disse o rapaz. O mais que a porta está é cerrada; quem quer empurra-a e entra. Vai lá gente, tambem de noite, rezar.

Ergueram-se os dois.

Uma pequena ermida branqueada pelo luar erguia-se ao longe n'um monticulo dos serros. Uma pequena fresta lateral projectava a luz frouxa e vacilante de uma lampada suspensa.

-- Vamos lá, dissera o velho; e começaram a caminhar, por pequenos córregos abertos nas rochas, que só a longa experiencia poderia ensinar, em direcção á capela.

-- Com que então, dizia, andando, oHypolito, todos acreditam, já, que é D. Sebastião?

Toda a gente; aqui, em Mafra, em Torres Vedras.

Tem vindo gente de toda a parte, vêl-o e ouvilo. É elle!

-- E, conheceram-no? Conbecem-no?

-- Alguns que conheceram o rei, affirmam que é o mesmo.

-- Louvado seja Deus, disse o Hypolito, se é o nosso rei, o que elle hade ter soffrido... em que estado vive! Ha-de estar velho?

-- Tenho-o visto, ao longe, disse o Canha; mas não me pareceu velho... até me parece forte e novo.

Assim conversando, chegaram a alguns passos da capela. Reinava um silencio absoluto lá dentro. Rodearam-na. A porta estava fechada... empurraram-na, ligeiramente; não cedeu.

-- Não estará cá? disse o Hypolito; ou estará a dormir?

-- Isso está e passa a noite a rezar... dizem as mulheres.

Escutaram, chegando-se mais para o portal. Effectivamente pareceu-lhes ouvir falar, lá de dentro.

Não ouve? Perguntou o Canha, de ouvido junto á fechadura.

-- Ouvi o quer que fosse, ouvi.

Como para confirmar o dito, dentro da capela ouvia-se como que um gemer, o ruido de correias batendo, e uma voz Iriste a exclamar, dolorosamente:

-- Portugal, oh! minha terra! a que abismo descestes! sou eu a cansa da tua desgraça! sou eu!

A voz sumia-se, um instante, para continuar:

-- Infeliz Sebastião, com que penitencia has-de expiar a tua culpa, a tua grande culpa!

Outras exclamações identicas seguiam sempre o ruido das disciplinas.

-- Heim? exclamou afastando-se para o largo o João Canha, com a tesla em suor; que me diz, agora, tio Hypolito?

Ainda tem duvidas?

-- Não, rapaz, dizia o Hypolito não menos assarapantado do que aquelle... não ha duvida- é o rei... louvado seja Deus!

Afastaram-se mais para qu8 não fossem ouvidas as vozes a commentaram o caso com phrases de espanto, até que se resolveram a voltar para a villa.

--Um rei... n'este estado!, murmurava o Hypolito ainda não senhor de si. - - para que a gente está reservado no mundo!

-- Quando acabará esta penitencia? perguntou Canha.

Só elle e Deus o sabem, explicou o velho.

Iam a continuar, quando viram que do alto, do lado da villa, vinha descendo para elles um vulto, apressadamente.

-- Vem gente, disse o Canha; quem será?

-- Vem para aqui, notou o Hypolito. Não lhe conheço o vulto.

-- Irá á capela?

-- Está bem de vêr. Se vem a esta hora é que não quer que o vejam; é melhor que não nos encontre. Deixalo passar, não acha?

E, esconderam-se, acocorando-se atraz de uma parede da rocha.

Um homem, de capa longa, de chapeirão molle na cabeça, passou sem os ver, direito á ermida. Os dois ergueram-se e viram-no chegar á porta, bater

e entrar.

-- Não o conheceu? perguntou o Canha.

-- Perfeitamente.

-- Também eu. E o Pedro Affonso, de Rio de Moiro.

-- Conhece-se bem pelo tamanho, confirmou o Hypolito; rnas que diabo virá elle fazer á ermida, a esta hora?

Como não atinassem com resposta acceitavel, emudeceram, emquanto caminhavam para casa.

Em cima, na villa, pararam junto ao chafariz, e emquanto bebiam uma tarraçada de agua, dizia o Canha:

-- Não sei, tio Hypolito... o Pedro Affonso, a esta hora, a visitar o eremitão... aqui ha coisa. E, despediram-se, dando-se as boas noites e o vá-com-Deus por varias vezes.

Logo que os dois pescadores se tinham afastado da ermida, as vozes e os prantos tinham acabado, como se quem os fazia soubesse que eram inuteis, por não escutados.

O astucioso eremita percebera que estava só e qe dou-se silencioso.

D'ahi a uns instantes ouviu bater á porta e foi abrir. Quem batia entrou.

Era um homem alto, de uma robustez atletica, de modos rudes; mas de olhar e phisionomia clara e expressivamente energica. Tirou o chapeu, beijou a mão ao eremita e perguntou, solicito:

-- Como tendes passado?

-- Agradeço-vos; bem; respondeu Matheus Alvares, que o leitor não precisa que lhe apresente e continuou:

-- Espanta-me a vossa presença, a esta hora.

-- Tenho que vos falar...

Tendes que me falar? com urgencia?

-- E, de espaço, respondeu Pedro Affonso. Matheus Alvares correu a fechadura da porta.

Sentaram-se, os dois, em toscos bancos de pinho, um defronte do outro.

-- Estou a ouvir-vos, disse o eremita fixando o lavrador.

-- Senhor, começou Pedro Afíonso, haveis de desculpar o que venho dizer-vos, acreditando que é com a melhor intenção que o faço. Se vos magoar, havereis de perdoar-me, que não está na minha vontade offender-vos, nem em tal posso pensar.

-- Porque haveis de offender-me?

-- Porque poderíeis imaginar que qualquer pergunta que vos faça fosse um laço vil, armado contra a vossa pessoa e vida.

-- Tenho-vos como um homem honrado, não o acreditaria nunca; accentuou o eremita.

-- Agradeço-vos a confiança, replicou Pedro Affonso, e juro-vos que não tereis, nunca, occasião de duvidar d'ella. Por aquelle Deus que ali está,-- Pedro Affonso erguendo-se apontava o crucificado do altar, -- vol-o juro.

-- Basta-me a vossa palavra, observou o eremita.

-- Acceitai-me, porém, o juramento, tornou Pedro Affonso; mais liberdade me dá para vos falar.

-- Seja, disse Alatheus Alvares, se assim o quereis. Falai com a maior franqueza.

-- O que me traz, continuou Pedro Affonso, é o amor do meu paiz, a vergonha do dominio Hespanhol, a cobardia fios fidalgos e a miseria do povo.

Somos uns escravos vis! Os nossos negocios decidem-se em Hespanha; o dinheiro da India para lá vae. O paiz tem fome. O povo anda quasi nú, esfrangalhado, miseravel. Os casaes não teem habitantes, os campos estão incultos; não ha agricultura, não ha commercio. Onde iremos parar? O fisco leva-nos o ultimo cetil, sobre os direitos das alfandegas. Um boccado de pão de trigo por joeirar, uma miseria de peixe miúdo salpicado é um banquete para o pobre. O incendio e o roubo vêem-se todos os dias. Os soldados vivem da rapina ou de esmolas. Os proprios ricos estão pobres. Somos governados por estrangeiros, pizados, insultados, hora a hora, n'uma submissão' de escravos ou de bestas. Quem se revolta? quem se insurge? Ninguem.

Isto é caminhar para a morte. Não é assim?

-- Decerto é; respondeu o eremita, e fatalmente.

-- O que é preciso fazer? continuou o Pedro Affonso, é claro e simples: sacudir o jugo, libertar Portugal do estrangeiro, tornar a ter a independencia, para nos governarmos por nós mesmos. É isto. Vedes outro remedio?

-- Nenhum outro ha.

-- Nenhum, confirmou o lavrador de Rio de Moiro; e se nenhum outro ha, é preciso lançar mão d'este.

Parou um instante, olhando o eremita, como esperando que elle falasse. Matheus Alvares olhava-o mudo, como a esperar que elle acabasse o que tinha a dizer.

-- Os fidalgos, continuou Pedro Affonso, abandonaram, trahiram o paiz que lhes deu as honras e os enriqueceu. Não fazem falta. O grande poder é o povo e esse não falha, sobretudo quando a miseria o empurra. É precizo levantal-o, armal-o, atiral-o contra esses hespanhoes que nos roubam e matam e contra esses portuguezes, tão hespanhoes como os outros. Não é a vossa opinião?

-- Absolutamente, amigo.

-- Pois bem, corpo sem cabeça, é um corpo morto, por maior que seja. O povo precisa de um chefe, a quem ame e a quem siga, em quem tenha confiança e a quem obedeça. Porque esperaes?

O lavrador olhou para Matheus Alvares, que pela rapidez da pergunta inesperada, não respondeu logo e ficou a pensar.

-- Porque esperaes? repetiu Pedro Affonso, para arrancar uma resposta.

Matheus Alvares respondeu:

-- Que chegue o tempo.

-- Qual? retorquiu Pedro Affonso. O tempo é, já. Quanto mais depressa melhor. O escravo acostuma-se ás algemas, o burro á carga. Para que mais insultos, mais soffrimentos, mais crimes? Por mais, depressa que venha a liberdade já não vem cedo.

É tempo de sahirdes, de pregar a revolta, á vista de toda a gente, pelas villas e pelos campos. É isto que venho dizer-vos. Sois o nosso rei, deixae-vos de penitencias e de rezas.

Vesti uma armadura; em vez do rozario pendurae a espada e vinde para a rua. Precisamos de guerreiros e não de frades. Que dizeis?

Erguera-se o lavrador, impondo-se pela sinceridade rude das falas, pela figura agigantada, pelo enthusiasmo que lhe sacudia a alma de patriota.

Matheus Alvares ergueu-se, tambem, como olhar brilhante, e a voz forte:

Pedro Affonso, disse; eu não me negarei, nunca, a trabalhar pela nossa terra; mas é precizo esperar ainda. O povo não está preparado para a revolta... vede a sorte d'esse que se disse rei D. Sebastião e a quem ninguem seguiu nem libertou das galés. Um passo falso é um passo mais atraz. Esperar o momento e proceder é o segredo dos que vencem.

-- Será; mas essa não seria a resposta que devia dar D. Sebastião. Que elle não daria, nunca! É a vossa. porque o não sois!

-- Não sou?... O eremita, olhou Pedro Affonso, espantado.

-- Não. Era a pergunta que queria fazer-vos, de começo; proferi ter occasião de a receber, sem vos violentar a mentir, primeiro.

Porque havieis de responder-me que o ereis... havieis de mentir me; para què. E, continuou:

-- Tendes, é verdade, uma certa parecença com o rei que Deus tenha. Sois loiro, tendes os olhos azues e uma altura pouco menos que egual. Tantas vezes o vi, como vos vejo agora, em jogos e toiradas! Não tendes ossos e elle era grosso e reforçado... bem mais ruivo do que vós... e emquanto ao ar..., amigo, disse, como que paternalmente, o franco lavrador, sejamos leaes, não vim para perder tempo, mas para ver se o ganhamos... cartas na meza.

Toda a gente vos crê D. Sebastião, desde que Antonio Simões, que é homem serio e digno, vos reconheceu como tal e o espalhou.

Qual é o vosso plano fazendo-vos passar como o rei morto? Algum tendes, naturalmente. Adivinho-o. Venho ajudar-vos.

O lavrador calou-se; Matheus Alvares, com uma grande firmeza na voz, começou por dizer:

-- Serei franco como vós; fio-me na vossa lealdade. Não sou o rei ...

-- Sabia-o, interrompeu Pedro Affonso.

-- Mas propuz-me a sel-o, esperando em Deus, que mais feliz do que esse desgraçado de Alcobaça, possa levantar o povo e libertar a nossa terra.

-- É isso, exclama o lavrador.

-- Nada me importa que saibaes, vós, só, que não sou D. Sebastião. Afianço-vos, até, que me apraz mais que o saibacs; porque a minha alma livre da mentira, trabalhará melhor; sinto-me mais livre, mais forte, com um apoio firmado, n'uma confiança mutua, sem falsidade, nem enganos.

Não sou o rei! mas a historia d'esse rei de Penamacôr, veiu mostrar-me que um arrojo bem conduzido pode ser a salvação da nossa terra. Senti despertar em mim a vontade de o tentar; de ser eu o homem destinado a uma grande empreza e quando o pensei e pedi a Deus as suas luzes, entrou-me

na alma a convicção da victoria, pelo desejo que senti do perigo e pelo desprezo que sinto pela morte, se fôr preciso morrer!

-- Entendemo-nos assim, exclamou o robusto lavrador. Pão, pão; queijo, queijo. Não sereis o rei; mas é como se o fosseis, para toda a gente. Dizei-me quem sois.

Matheus Alvares contou-lhe a pequena historia da sua vida; como viera dos Açores, como estivera em S. Miguel de Óbidos, depois no convento de Cortiça, em Cintra; como consultara o santo frade que vivia n'uma cova e como, a exemplo de Christo, desejando que a boa nova fosse pregada por pescadores, viera, por Mafra, até ali, lhe aprazerá o sitio e ficára.

Por seu turno Pedro Affonso, relatou-lhe que era proprietario de uma herdade em Rio de Mouro, que vivia, desafogadamente; que tinha verdadeira

influencia moral sobre os jornaleiros d'aquelles arredores e que estava disposto a entrar n'uma sublevação popular, que não podia deixar de reflectir-se n'outras terras do paiz, para arrancar Portugal ás garras do estrangeiro. Antes de vos ver, disse elle, duvidava de que fosseis ou não o rei. D'aqui até Mafra, até Torres Vedras, toda a gente o acredita e o diz. Que o fosseis ou não, a ideia que logo me veio á cabeça foi de que era preciso aproveitar a crença do povo. Com o seu rei irá até onde fòr preciso.

Está lançada a semente; agora é preciso caminhar sem mêdo; mas depressa.

Por largo tempo, ainda, os dois homens passearam no pequeno ambito da ermida, conversando animadamente. Discutiam, naturalmente, as probalidades do bom exito e a maneira de o alcançarem.

Pedro Affonso pòz ás ordens do falso rei, a sua fortuna e a sua influencia; Matheus Alvares jurou, perante a imagem de Christo, a sua consagração até á morte, ao nobre fim de libertar a patria.

-- Se o conseguirmos, dizia o lavrador, grande será a vossa fortuna e a minha. Ao pensal-o, os dois homens sentiam, como era natural, esse começo de seducção que as ideias de grandeza produzem em todas as almas, ainda as mais bem temperadas.

Além de benemeritos, viam-se grandes, respeitados, poderosos.

Quando o lavrador sahiu da capela era quasi de manhã. A caminho de Rio de Mouro, como o dia ia a nascer, parecia-lhe que tambem para elle raiava uma aurora de felicidades estranhas.

Matheus Alvares no seu grabato de pinho, fortificava-se, pedindo a Deus um claro auxilio para a temeraria empreza, e adormecia, sonhando com uma victoria estrondosa, com uma aclamação, com um thrôno!

N'esse dia, ambos começaram a trabalhar com todas as forças.

Tentando as azas

Matheus Alvares começou a prégar ás damas, pelas aldeias, pelas estradas, pelos casaes.

Era, já, o rei; não o encobria, não era um misterio, pelo contrario o revelar-se atrahia-lhe proselitos, dedicações, dadivas.

Deixava dia e noite a ermida, ás vezes passavam-se dias que lá não hia.

A sua palavra quente, o seu ar, a sua mocidade, grangeavam-lhe simpatias. Sobretudo as mulheres adoravam-no. Achavam-no belo, captivante, ousado.

Quando as mulheres simpatisam com uma causa, essa causa tem mil probalidades de bom exito.

Como era bondoso distribuia pelos pobres o que os ricos lhe davam; e, assim, os homens das classes pobres d'aquellas redondezas, desde Torres Vedras a Mafra, os pescadores da costa, começaram a andar atraz d'elle como se fosse um apostolo, convictos da sua realeza, prontos para darem a vida em defeza do seu throno.

Por seu lado Pedro Affonso catequizava em sua casa de Rio de Moiro, todas as noites depois de ter, de dia, por casa dos amigos de Torres Vedras, das aldeias proximas, andado a pregar a guerra santa contra os hespanhoes.

Apresentava o eremita em sua casa a diversos de quem queria obter o concurso. Alguns d'elles, mais espertos, ou mais desconfiados não tinham acreditado no rei.

E, diziam ao Pedro Affonso:

-- Homem, parece-me que você anda iludido.

-- Em quê?

-- Este homem não é o rei D. Sebastião.

-- Não é? porque diz você isso?

E, começaram a dar-lhe razões: da não semelhança, da figura, de como falava, do que dizia.

Algumas eram de pezo; diziam-nas pessoas que tinham visto o rei e Pêro Affonso ficava atrapalhado.

Quando não sabia como se defender, rematava:

-- Seja ou não seja o rei, isso pouco me importa. Nem vocês se deviam de incomodar com isso. Não é? é como se o fosse; porque precisamos de um rei para nos libertarmos e tanto faz que seja este como outro, contanto que nos sirva para o fim. Para mim é o rei e hei-de pôl-o no throno, seja ou não seja!

Contra estas razões é que os amigos desconfiados nada podiam e, assim, se alguns não acompanharam Pedro Affonso na sua predica revolucionaria, tambem o não hostilisavam, antes o apoiavam, mas com cuidado.

Um dos peores inimigos de Pedro Affonso era, a principio, a mulher: mais tarde, como veremos deixou-se ir na corrente da vaidade, que domina o sexo fraco indistinctamente e acompanhou-o com alma.

Nos primeiros dias, depois das primeiras reuniões em sua casa, não se cançava de prégar ao marido:

-- Não sei para que te andas metendo em cavallarias tão altas.

Tanto fidalgo ahi que devia tomar conta do rei e protegêl-o... nenhum se importa com isso... e tu é que andas a fazer de cabeça de revolta... Deus queira que te não arrependas.

Pedro Affonso replicava, com mau modo:

-- Ó mulher, mete-te lá com as tuas galinhas e os teus patos e deixa-me em paz. Que sabes tu d'estas cousas?

-- Nem quero, respondia ella. Negócios que tiram o socego e que podem dar desgraças, arrenego d'elles.

-- Pois, então, arrenega e deixa-os em paz... a elles e a mim.

-- Mas, volvia ella, é que se te acontecer alguma, não és tu só que a pagas, somos todos.

-- Não te aflijas.

-- Ai, não? Não hei-de afligir-me... se te acontece algum fracasso, cá estamos nós duas, eu e a tua filha, para lhe aguentarmos as consequencias.

Pedro Affonso lá a serenava como podia: mas quem tinha maior influencia sobre a mãe era a tal filha, que, ao contrario, toda genio e temperamento do pae, achava judiciosissima a aventura.

A filha de Pedro Affonso era uma bela rapariga de vinte annos, robusta, sadia, de face corada e dentes brancos, olhos negros retintos, cabello preto, seio amplo, alta, de gestos graciosos, elegante de corpo, de modos simples.

Era bondosa, viva e agradavel no falar, muito dada e inteligente.

Adorava os romances de cavallaria; era muito admiradora de Bernardim Ribeiro e conhecia os Lusiadas de côr.

Era o que chamariamos uma menina romantica, se não fosse a energia de que era dotada, o juizo e o valor que a enalteciam.

A aventura do pae parecia-lhe do melhor gosto; o levantar e entronizar o rei um nobre acto, digno de toda a protecção e elogio.

Por isso, antepunha ás considerações da mãe os seus impetos de sentimento patriotico, que lhe vinham da leitura do poema de Camões, repassado de orgulho e de amor da patria.

Depois via, tambem, o pae elevado ás culminancias honrosas, se vencesse; e, o seu espirito de mulher não olhava, sem inveja, para as distincções humanas, com que se pavoneavam os filhos e as mulheres dos fidalgos.

Era rica, porque não havia de ser tambem, nobre?

Á mãe levavam de vencida as suas razões sensatas; ao pae, enchiam-no de enthusiasmo os seus raciocinios fogosos, as suas esperanças.

Assistia ás reuniões, falava, enthusiasmava os mais novos; encantava os mais velhos.

Era uma aliada de força.

Ao vêl-a defender o eremita, apoial-o, elogial-o, com o fogo com que o fazia, dir-se-hia que um sentimento mais fundo do que o de partidaria, ainda que convicta, animava a sympatica filha de Pedro Affonso.

Dir-se-hia e assim era.

Desde a primeira noite em que Matheus Alvares assistira a uma reunião em casa d'ella, em que fallara animado por estranho enthusiasmo, illuminado

por uma confiança e uma fé extraordinaria, que ella sentira pelo rei eremita uma grande simpatia, uma forte atracção, que não deixava descobrir nas primeiras palavras trocadas, a sós, n'um retrahimento calculado.

Assim, o amor vinha tambem misturar-se na acção, para lhe amenizar os perigos e os receios.

Passados dias, ninguem desconhecia a ligação amorosa que prendia o rei Matheus Alvares á filha Apetitosa de Pedro Affonso.

Nem a elle, nem á mulher desagradava o namoro; aos restantes conspiradores era indiferente, excepto a um.

Era Bernardo Simões, rapaz de vinte e tantos annos, filho do Antonio Simões amigo intimo de Pedro Affonso, e o mais exaltado e dedicado partidario, depois d'este, do Matheus Alvares.

Era um apaixonado de Mariana, com que nunca se abrira, por timidez. Por sua vez, a filha de Pedro Affonso conhecendo os sentimentos de Bernardo, porque lhe eram indiferentes, não o animara nunca a uma declaração, a que daria uma resposta negativa.

Tal facto imcomodaria a ambos. Eila estimava-o, sem o segredo voluptuoso do amor; evitou-o sempre.

Era, pois, Bernardo Simões o unico a quem as denguices, os cuidados, as delicadezas continuas da Marianna para o eremita, incomodavam.

Como amava em segredo, odiou em segredo. Não a mulher; mas o homem que lhe tinha surgido de uma lapa da Ericeira, para arrancar um throno a Filippe II, mas que tinha começado por lhe arrancar a elle -- a noiva!

Noiva, no pensamento, é certo; mas para o orgulho offendido, para o amor magoado, é a mesma coisa.

Perceberia a Marianna, ou Matheus Alvares esse odio? Talvez; mas se o perceberam, não lhe ligaram valor, qualquer importancia.

As predicas de Matheus Alvares encorajando o povo, a propaganda de Pedro Affonso e Antonio Simões por Mafra e Torres Vedras tinham alcançado um numero consideravel de adeptos.

Um milhar de homens estavam dispostos a luctar á primeira voz. Compraram-se, clandestinamente, armas. Uns duzentos estavam já armados na Ericeira.

O movimento propagara-se, animadamente; tudo corria o melhor possivel, quando, uma noite, a casa de Pedro Affonso, chegou um almocreve, vindo de Lisboa, que disse que tinha encontrado, na, estrada uns homens que o tinham interrogado sobre o que havia de verdade na apparição do rei D. Sebastião, na Ericeira.

Eram desconhecidos e tinham ficado em Mafra.

-- O que lhe disseste? perguntou Pedro Affonso.

-- O que lhe havia de dizer? que não sabia e que nunca tinha ouvido falar em tal cousa.

A novidade poz em sobresalto o conselho, que resolveu redobrar de esforço, comprar mais armas e munições e apressar o levantamento.

Por dias não se ouviu falar em cousa alguma suspeita. Ninguem dera com os taes homens que entraram de noite em Mafra e os conspiradores, sem receio algum, continuaram os seus trabalhos. Crescia o espirito da revolta, cresciam os amores de Matheus e de Marianna, crescia a confiança de Pedro Affonso, tudo ia n'um sino.

A agitação, clara e patente, em que viviam as comarcas de Torres Vedras e Mafra, as reuniões, os discursos pelas praças, a aglomeração de gente armada na Ericeira, como guardas do futuro rei, as desordens que um estado anarchico do povo produz sempre, não podiam deixar de chegar a Lisboa, ao palacio do archiduque Alberto, mais cedo ou mais tarde.

Era inevitavel; chegaram.

Foi um officio do dr. Gaspar Pereira, corregedor da Relação, mandado de Mafra ao nosso conhecido corregedor da côrte, o sabujo Diogo da Fonseca, que deu conta do caso. Naturalmente levada por aquelles desconhecidos que o almocreve encontrara na estrada de Mrfra.

O Cardeal Alberto sobresaltou-se com a nova. Na sua posição, com a enorme responsabilidade que tinha, uma tentativa de revolta punha-o de sobre avizo, temeroso, desconfiado.

De mais sabia elle quanto era falsa a submissão dos portuguezes. Nos fidalgos poderia confiar; no povo, não.

Assim, logo que o corregedor Diogo da Fonseca lhe acabou de ler o officio, mandou-lhe que fosse, elle mesmo, á Ericeira com a força que julgasse precisa sindicar do caso, proceder energicamente.

Por cautela, mandou reforçar a guarda do palacio.

Este pormenor, verdadeiro, revela com que desconfiança o vice-rei vivia em Lisboa, onde temia que chegassem os chuços e os manguaes dos revolucionarios da Ericeira.

Como previdencia, é exemplar.

Na manhã em que uns pescadores que estavam em Mafra viram chegar ao largo do convento a força que viera de Lisboa, indagando a que vinha, correram á Ericeira a prevenir Matheus Alvares.

Como fosse surpreza a diligencia de Diogo da Fonseca, nada estava combinado para a resistencia e cada um tratou de se pôr a salvo.

A maior parte da guarda real abalou para os montes; os que eram pescadores meteram-se nos botes e puzeram-se ao largo. De modo que no dia em que chegou o corregedor, nunca a villa estivera mais socegada e tranquilla.

Matheus Alvares desaparecera.

Diogo da Fonseca, por mais que procurasse vestigios da revolta, nada encontrou.

Quando interrogava este ou aquelle, a resposta era sempre a mesma:

-- Isso é uma brincadeira... inventaram que um eremita que para ahi anda, é o rei... é o rapazio que se diverte com elle a chamar-lhe D. Sebastião... elle corre atraz d'elles... é um divertimento.

-- E onde está elle? perguntava o Diogo.

-- Quem sabe lá ... se não está na capela, sahiu por essas terras, á esmola... é um pobre diabo que parece que não tem o juízo todo.

Realmente o corregedor não encontrava vestigio serio de revolta. Lá lhe pareceu que tinham exagerado as cousas.

Quando se convenceu de que o caso não tinha importancia, abalou de novo para Lisboa.

Ao cardeal Alberto explicava:

-- O caso não tem a menor importancia... não ha conspiração, nem coisa parecida.

-- Mas, objectava o cardeal, então esses discursos pelas praças, esses ajuntamentos?

-- São maluquices de um eremita que parece que não está são da cabeça... o povo ouve-o... o rapazio anda atraz d'elle-... é o que é.

-- De modo que tendes a certeza que não tem importancia a informação? perguntou, por fim o vice-rei.

-- Nenhuma. Respondo pelo que digo. Socegado o corregedor pelo que vira, o cardeal

Alberto pelo que este lhe afirmava, esqueceu-se a conspiração da Ericeira e não se falou mais em tal.

Nupcias

A partida para Lisboa do feroz Diogo da Fonseca foi o signal de nova reunião, Encheram-se de maior animo os espiritos dos populares ao sahirem incolumes da primeira arremetida.

Desceram os populares dos montes; os marinheiros saltaram nas praias. O numero dos adeptos duplicou, em breves dias.

Em casa de Pedro Affonso as reuniões eram continuas. Sentia-se a necessidade de apressar o movimento. Em Lisboa dava-se o primeiro alarme; era natural que o archiduque Alberto se não descuidasse; era certo que Diogo da Fonseca, sempre á espera de se tornar prestimoso, não esquecesse a informação do dr. Gaspar Pereira, ainda que não tivesse encontrado motivo para proceder.

Compraram-se mais armas e munições, porque o numero dos populares dedicados crescia sempre. Orçava já por oitocentos o numero dos bem armados; passando de mil os inscriptos.

Matheus Alvares despira o habito, envergara um um fato rico de fidalgo, montara casa. Tinha creados, secretarios e guardas. Apparecia pouco.

Tornava-se assim mais respeitado, menos accessivel, impressionando quando apparecia montado em um magnifico cavallo, mais fortemente, a imaginação popular.

O dinheiro de Pedro Affonso, de Antonio Simões e de mais alguns correligionarios ricos não se retrahia.

Havia uma dedicação sincera. O enthusiasmo propagava-se em todo o districto de Torres Vedras, enraizando-se n'um sentimento de nobre patriotismo, feito de elevados desejos de lucta, pela liberdade, pela redempção de Portugal.

As auctoridades viam, com espanto, este agglomerar de gente armada, este crescer de forças revoltosas, e não tinham coragem para se oporem.

Esta franqueza dava audacia aos chefes da conspiração, fazia, confiados no bom exito da empreza os populares aguerridos e de tal modo encheu de confiança e coragem o animo de Matheus Alvares, que elle se sentiu verdadeiramente rei.

Como tal começou a proceder.

Assim, escreveu a diversos fidalgos dando-lhes parte da sua existência em Portugal, da sua resolução de conquistar o throno usurpado por D. Filippe e ordenando-lhes que se lhes juntassem, ou se prevenissem para secundarem os seus planos, quando fosse preciso.

Estas cartas eram lidas por uns com desprezo, por outros com dó, imaginando-as todas filhas de algum cerebro doente, de algum dementado, de algum louco, visionário e prophetico, que tantos havia por esse tempo, feitos pela miseria e pelos soffrimentos.

Os parciaes de D. Filippe rasgavam-nas, desdenhosamente, e nem n'ellas falavam, tão ridiculas

lhes pareciam as suas palavras e idêas: os que eram contra D. Fillippe, criam-nas, como disse, partos de loucura, e, se as liam, confrangidamente, não lhes ligavam valor.

Alguns, porém, indagando com cuidado, vieram a conhecer o que se passava na Ericeira e Torres Vedras e tremeram pela temeridade dos revoltosos, se bem que resolvessem, dado o caso de um milagre de Deus proteger a revolução, secundal-os como pudessem.

Eram, porém, resoluções secretas, porque a policia da côrte era implacavel nos castigos.

O rei continuava, sempre, dos seus paços da Ericeira a escrever a este e áquelle, continuamente, sem ter resposta.

Porque escrevia Matheus Alvares? para que fosse obedecido? para que o acreditassem como rei? para que duvidando da sua identidade viessem procural-o?

Intelligente como era, o que parece natural é que o fizesse por dois motivos: o primeiro para se dar ares perante os seus, ao verem-no em correspondencia com os fidalgos, que assim parecia conhecer, intimamente; o segundo, esperançado, talvez, em que mesmo conhecedores do ardil, os bons patriotas se lhe juntassem na empreza.

É provavel até que, francamente, lhes communicasse o plano certo de que o não denunciariam. Para quê? Que vantagem teriam em o fazer?

Imaginavam sem importancia os factos.

Parece mesmo que foi o que aconteceu com D. Diogo de Sousa, commandante da esquadra que levou D. Sebastião á África.

Escreveu-lhe Matheus Alvares para que o auxiliasse e para que o almirante o reconhecesse como rei, mandou-lhe a senha que lhe dera quando ao desembarcar partira para a Palestina, em penitencia.

Como tal senha não existia, o almirante não respondeu.

Matheus Alvares explicava aos seus:

-- É um cobarde ou um traidor!

O resultado do facto era para o povo ficar com a certeza de que D. Sebastião vivera, sahira da batalha, fóra para a Palestina e como o homem a quem tinham acontecido estas cousas era Matheus Alvares, este era, indiscutivelmente, D. Sebastião.

Assim se firmava, inabalavel, a crença.

É mais que natural que Matheus Alvares á força de se vêr acclamado e seguido como rei, lisongeado e respeitado; ao vêr levantar-se-lhe ao lado a força popular, acreditasse que o era, ou o seria em breve.

Como os mentirosos acabam por acreditar que as mentiras são verdades, assim os illudidos pela verdade acabam por ter verdadeiras illusões.

Matheus Alvares começava a sentir-se dominado, absolutamente, pela certeza de sua missão libertadora. Não havia duvida. Deus protegia os seus planos. Tudo corria como se desejava. Chegavam adhesões, chegava gente. Não faltava dinheiro. Approximava-se, sem a menor duvida, o momento de operar. Tinha a sua casa, a sua côrte, perante as auctoridades atonitas ou cumplices, em todo o caso conniventes, por isso que não procediam como eram de esperar.

Quando a revolta se fizesse, quando o primeiro grito de independencia se levantasse, porque não havia de seguil-o o paiz inteiro?

O descontentamento era geral: nas provincias, pelos campos, reinava a fome e a miseria; pela capital não a havia menor e havia, a mais, os descontentes, os desilludidos, os ludibriados e os ambiciosos.

Todo o paiz soffria, indiscutivelmente; que muito era que se levantasse quando se erguesse o pendão da revolta, ao lado do rei, do seu rei, do seu D. Sebastião, tão desejado!

O sonho desdobrava-se-lhe na mente, com todo o poder de uma visão, infallivel, inevitavel, certo!

A victoria era fatal; a sua grandeza indiscutivel.

A sua resolução não nascera na terra; baixara do céu. Fôra elle o escolhido. Qão profundos não são os segredos porque Deus rege a vida das creaturas!

Então, sentia-se cheio de uni grande goso, de um intimo prazer, o que lhe (hiva uma altivez nobre; ao mesmo tempo que uma confiança absoluta o invadia na victoria proxima.

Assim, n'uma noute em que na varanda da herdade de Rio de Mouro, conversava a sós com Marianna, n'um impeto amoroso, quando ella lhe confiava magoada os receios de um esquecimento futuro, quando na grandeza, elle respondeu:

-- Eu seria o maior dos ingratos se te esquecesse Marianna.

-- Esquece-se tão facilmente, quando se é grande, o tempo da pobreza... os amores d'esse tempo.

-- Não o esquecerei eu... Tomou-lhe as mãos e disse-lhe:

Tens o presentimento de que eu venha a ser rei?

-- Tenho... tenho uma grande fé no vosso destino... por isso, ás vezes vos vejo tão alto que me entristece o pensar que estarei muito baixo para que me vejaes.

Tambem eu, continuou o futuro rei, se ás vezes desfaleço e intimamente me acobardo deante do combate que é preciso travar, outras vezes, e essas são em maior numero, tenho toda a confiança na victoria.

-- Sereis rei...

-- Pois se o fôr... tu serás a rainha. A minha rainha, no throno, como o és no meu coração... Rainha de Portugal.

-- Como é bom ouvir-vos, exclamou a apaixonada Marianna.

-- Que muito farei? A teu pae, sobretudo a ti, eu devo o throno. Receias que não possas chegar até mim? Elevar-te-hei. Collocar-te-hei a ti e aos teus entre a melhor nobreza, ao meu lado, á minha altura.

-- Como sois bom.

-- Ouve, minha querida Marianna; o teu receio dá-me ensejo para executar uma vontade que ha muito trago dentro em mim. Provar-te-ha que não ha maior sinceridade do que a minha, meu querido amor.

-- Qual é?

-- Espera. Queres tu associar, desde já, o teu destino ao meu? seres minha mulher?

-- Como eu seria feliz, respondeu Marianna, com o mais sincero accento nas palavras.

-- Assim é? jura-mo.

-- Por Nossa Senhora de Belem o juro, disse lhe olhando a egreja que perto alvejava entre arvoredos. Para que é preciso jurar, não vos amo eu mais do que tudo na vida?

-- É que eu não queria que alguem suspeitasse um dia que unindo-te a mim, eu visava o preparar-me contra as eventualidades de uma derrota. Que alguem ousasse pensar que te tinha levado ao meu leito, pela tua riqueza, prevenindo hipotheses mesquinhas: que á sombra d'uma corôa hipotetica eu tinha caçado uma fortuna real.

Que pensassem que tinha seduzido em velhaco; em vez de te ter conquistado em amante:

-- Quando vos amei, disse ella, quando comecei a amar-vos não vi o rei, que ainda não vejo; rei ou escravo ter-vos-hia' amado do mesmo modo, como vos amo.

-- Pois bem, acrescentou Matheus Alvares, beijando-a, cumpra-se a minha vontade se é a tua. Sou o rei, já, n'um pequeno territorio é certo; mas o reino ha de crescer. Esse reino será de amanhã em diante o teu, porque serás minha mulher.

-- Tu o ordenas? disse Marianna, com um riso infantil a bailar-lhe nos labios e os olhos a rirem por um gozo intimo tuteando-o, pela primeira vez.

A que Matheus Alvares, dando-se um ar altivo, erguendo o corpo com uma voz de ironica filaucia, replicou:

-- Pois quem? não sou eu o rei?

Nupcias reaes

Os dois entraram pela casa onde estavam discutindo preços de azeite e carestia de hortaliças o bom do Pedro Affonso e a mulher, a sr.ª Rita Affonso.

Tal era a expressão das caras do rei e da Marianna, tal alegria exprimiam que o Pedro Affonso não se teve que não dissesse, estranhando a entrada cheia de familiariedade não usada:

-- Que caras alegres; parecem-me dois noivos.

-- Essa, agora... replicou, como a desculpar a ousadia do marido, a s.ª Rita... tens cada uma, Pedro...

-- Parecem-lhe? perguntou risonhamente Matheus Alvares; pois, meu amigo, nunca a sua vista foi mais atilada... não parecemos, somos!

O quê? perguntou seria a sr.ª Rita, fitando-os.

-- Meu senhor, disse Pedro Affonso, sorrindo, vêem da egreja?

-- Não, meu amigo, disse com ar mais serio que possuia o nosso Matheus Alvares, não vimos; mas vamos, lá amanhã ou depois.

-- Tem lá hido tanta vez, observou a sr.ª Rita.

-- É verdade; mas para o que iremos fazer esta será a primeira.

-- Vão então?...

Não acabou a pergunta Pedro Affonso, porque Matheus Alvares o interrompeu, respondendo:

-- Casarmo-nos!

Olharam-se todos: a sr.ª Rita intrigada sem saber se o rei gracejava ou não, fitou-o e depois fitou o marido; este olhou-a com um olhar, que queria dizer: desconfio que está a troçar comnosco.

Os dois, Matheus e Marianna, olharam-se, sorrindo, de espanto comico do par.

O rei da Ericeira, continuou, depois de saborear um pouco de tempo a atitude do casal: casarmo-nos! Resolvemos agora mesmo fazêl-o. E, tendo-o resolvido por commum accordo e desejo, eu vou decretar que o casamento se faça com a maior rapidez.

-- Creio que os pães da minha noiva não terão que opor qualquer obstaculo á minha vontade, disse o rei da Ericeira, e por isso lhe peço que manifestem a sua opinião.

A sr.ª Rita levantára-se, dominada por uma sensação de assombro.

Mas se aquelle homem era o rei de Portugal... se ia casar com a Marianna... . a sua filha seria rainha!

Rainha! a filha d'ella-... Ella seria a mãe da rainha! Isto era um sonho... uma brincadeira... podia lá ser!

O olhar espantado revelava a tempestade n'um craneo pouco afeito ás impressões mais fortes do que a perda do meloal ou a má venda dos nabos.

Podia lá ser!

O marido, que sabia que o rei era de gingeira, bem que o estimasse, que se lhe tivesse afeiçoado com o trato, não se pôde furtar a pensar que o golpe era bem dado. Foi a primeira impressão.

O rei prevenia-se para a hipótese de não se sentar no throno, sentando-se á sua mesa.

Em todo o caso havia generosidade no rapaz. Seria ou não, rei; mas se o fôra, como elle acreditava... e apenas debaixo d'essa probabilidade... já era de coração nobre associar á sua quasi certa grandeza a filha d'um humilde fazendeiro.

Oue valeria toda a sua riqueza em comparação de honra que a filha estava ameaçada de alcançar?

E nisto, um sonho de grandeza lhe passou pelo espirito, como um clarão.

Ligada a filha áquelle homem, se elle vencesse, o que seria elle, o que poderia ser?

A vaidade está no fundo do coração de todos os homens e o pobre fazendeiro de Rio de Moiro, foi assoberbado por ella, até á commoção.

-- Que respondeis? perguntava Matheus Alvares, interrompendo o silencio que se fizera á pergunta.

-- Senhor, disse o Pedro Affonso levantando-se; o que hei-de dizer? É uma tal honra que nós... se assim o quereis elle e ella tambem o quer... que se ha-de fazer? faça-se a vossa vontade.

A mulher respondeu, quasi como o echo das palavras do marido:

-- Faça-se a vossa vontade.

O bom do fazendeiro observou ainda mais serenado:

-- Meu senhor, não será precipitada a vossa resolução?

-- Porquê?

-- Não poderá supôr-se que vos lançámos minha filha nos braços, artificiosa e ardilosamente e que, vencido pela bondade do vosso coração, esquecestes o vosso logar, o vosso nome, as responsabilidades que vos esperam no throno?

-- Amigo, disse, com ar magestoso, o rei da Ericeira; a ninguem darei a liberdade de criticar os meus actos- Não a dei nunca, como sabeis; não ousará ninguem, impunentemente, lançar juizos maus sobre as minhas acções.

Apenas á minha vontade obedeço. Ella será feita.

Foi um dia de alegria na casa de Pedro Affonso.

A mulher, essa, andava como doida. Não houve vizinha a quem não fosse contar o estranho caso.

As outras mulheres íicaram-se pasmadas a ouvi-la.

Nunca se vira uma cousa assim: um rei casar com uma rapariga de campo! Mordiam-se de inveja... Era sabido, mais vale cahir em graça do que ser engraçado... Aquelle Pedro Affonso era um poço de fortuna. As cearas d'elle eram sempre as melhores. Tinha vinho como ninguem. Negocio em que se mettesse era dinheiro que lhe entrava em casa... Agora, até. Virgem Santissima! o rei casava-se com a filha!

O rei mandou levar a noticia a Torres Vedras e á Ericeira levou-a elle, n'essa mesma noite, depois da reunião em casa de Pedro Affonso.

Mais se enraizou a amizade, no coração do povo com tal nova.

Que rei aquelle! sem orgulhos, sem toleimas, sem soberbas! Um rei que escolhia para mulher uma rapariga d'aquella classe.

Os maldosos, os descrentes, que alguns havia esses levaram o caso para a chalaça, em segredo,, é claro, por causa das costellas; mas não se fartaram de gracejar:

-- Então o rei vae casar com a Mariana?

-- Arranjou cama e mesa, o velhaco.

-- E, mulher, acrescentava um terceiro, que não é o menos apetecível do negocio.

-- Ora, um rei fazia uma cousa d'estas.

-- Rei, aquillo! só se fôr rei de copas.

Os maldizentes eram poucos e sem importancia os crentes, esses experimentavam um verdadeira prazer e preparavam-se para vir á festa, annunciada pra dahi a dois dias. Essas horas foram da maior azafama. Mandara-se a Lisboa comprar um vestido para a noiva; enfeitou-se a egreja; mataram-se quantas gallinhas havia pelos arredores; colheram-se fructas; limparam-se pateos e ruas da herdade; distribuiram-se convites. Pelas estradas, durante dois dias, passaram grupos de camponezes com os melhores fatos domingueiros, cantando, rindo.

Iam para Rio de Moiro para o casamento.

Tinham-se armado n'uma rua da quinta, debaixo de um parreiral comprido, mezas enormes de pinho. Abarrotavam de cagirões, de canecas, de pratos de

todos os feitios e cores, de copos de estanho, de bilhas pequenas de folha de Flandres.

Aos lados das mesas, aqui e ali, uma pipa coberta de loiro, de hera, de verdura, misturada com flores silvestres, esperava tranquillamente o ataque ao ventre, como um animal engordado que espera o sacrificio.

No dia, de todos os fornos da visinhança chegavam enormes cestos de pães; no pateo esfolavam-se carneiros, descascavam-se montes de batatas, depennavam-se patos e pombos.

A cavallo, vinham chegando os convidados com as suas vestes ricas, e havia abraços, felicitações, á chegada de cada um, como a um grande amiga que ha muito esperasse e que chegava emfim.

Despovoavam-se os casaes dos arredores; os padres das vizinhanças apeavam- se das mulas gordas; o rapazio em correrias doidas, em gritos lançava a desordem nos grupos, luctava, insultando-se com palavras baixas.

Por debaixo das arvores, á sombra dos valados, uma multidão immensa, feita de familias, de vizinhos, deitava-se pelo chão, fugindo ao calôr do sol.

Havia em todos os rostos uma alegria expansiva; falava-se alto, ruidosamente, por toda a parte.

O rei não chegára ainda. Esperava-se que chegasse de momento a momento e alguns homens se tinham ido postar na estrada da Ericeira para dar o signal da chegada.

Amigas dedicadas vestiam a noiva. A mãe a rir e a chorar de alegria, ao mesmo tempo, recebia os parabens dos que chegavam, a dar ordens, e andava, n'uma roda viva, a dispor, a mandar, aprevenir.

De vez em quando ia até ao quarto da filha, abraçava-a, e não se podia conter que não dissesse: estás linda como... uma rainha!

O Pedro Affonso multiplicava-se, por toda a parte, recebendo os que chegavam, gracejando, rindo, acomodando os forasteiros, ralhando com os garotos que lhe furtavam os melões da borda do tanque.

De vez em quando umas badaladas na torre da egreja de Santa Maria de Belem, chamavam o sacristão, preveniam os padres de que era a hora de se paramentarem.

O prior na sacristia, no meio de seis ou sete padres, comentava o caso admiravel do casamento.

-- Era um milagre, dizia. Uma honra para os seus ultimos dias, que visse um tão grande rei, casar-se na sua parochia.

-- Que misterioso, intuito terá Nosso Senhor, perguntava um parocho da visinhança, com ar de cabreiro, em fazer apparecer D. Sebastião, na Ericeira?

Então um outro que já ouvira a explicação a Matheus Alvares, elucidava que os propagadores da boa nova tinham sido doze pescadores, como na Galileia.

A esta explicação todas as cabeças dos padres penderam para o chão na meditação profunda dos cerebros vasios e o silencio, este verdadeiramente

religioso, reinou por instantes.

Mas n'isto começou a ouvir-se ao longe, um ruido surdo como de multidão que avança.

Gritos, exclamações selvagens, voavam pelo ar. Uma nuvem de pó levantava-se da estrada e corria, desfazendo-se sobre os arvoredos.

Por entre o borborinho que avançava começou a distinguir-se o tropel de cavallos; e, batidas pelo sol as armas despediam pequenos relampagos de luz faiscante.

-- É o rei!

-- Abi vem o rei! gritou-se de toda a parte, e, toda a multidão, como um só homem, correu á estrada offegante, anciosa por ver o rei, para o saudar na marcha.

Á frente, corriam Pedro Affonso, Antonio Simões, as auctoridades de Torres Vedras, creadas pelo rei da Ericeira.

Á janella da casa que dava para a estrada appareceu a cabeça de Mariana, anciosa, interrogando com a vista a multidão que chegava.

Começaram a ouvir-se, distintamente, as acclamações;

-- Viva o rei!

-- Viva D. Sebastião!

A multidão aclamava, frenética, abrindo alas ao cortejo, em cuja frente o rei da Ericeira, bellamente montado, ladeado pelo seu estado maior, os seus

alcaides e juizes, marchava, vestido ricamente, com uma grande nobreza, altivez sem orgulho, sorrindo, amavelmente. Vestia meia cota de armas o que lhe illuminava o busto e tornava ao olhar ingenuo dos aldeões como um ser sobrenatural.

Algumas mulheres joelharam-se com os filhos pequenos á borda do caminho, ontras choravam enternecidas.

-- Como é bonito! dizia uma.

-- Que lindo rei! observava outra.

Atraz do rei seguiam uns duzentos homens armados, tropas um pouco descompostas pela variedade dos fatos, pouco aceio do vestuario, mas revelando uma energia selvagem na marcha, altivez e arrogancia.

Depois da tropa vinham centos de pessoas que desde a Ericeira se tinham ido encorporando no cortejo: homens de todas edades, mulheres, creanças

Uma nuvem de pó cobria os fatos; um sol a prumo, quente, fazia ruborisar os rostos, inundando-os de suor.

Mal que o cortejo chegou á vista do portão da quinta os sinos da freguezia repicaram com todas as forças do sineiro e girandolas de foguetes, seguindo-se ininterruptamente, encheram o ar de estoiros e fumaradas.

Entusiasmada a multidão redobrou as aclamações e os vivas e a chegada do rei á casa de Pedro Affonso, foi uma verdadeira entrada triumphal.

Apeou-se el-rei e entrou em casa. Marianna appareceu-lhe tentadora, com o seu vestido de sêda roçagante, levemente decotado, o seio a entrever-se, o cabello negro apertado n'uma corôa de flôres de larangeira.

Levemente palida pela comoção, o olhar brilhante, estava realmente bella a filha de Pedro Affonso.

O rei da Ericeira, com uma galanteria de fidalgo dos saraus da Ribeira adeantou se, curvou-se um pouco e pegando na mão de Marianna, beijando-lha, exclamou:

-- Estaes verdadeiramente uma rainha, D. Marianna!

Os assistentes ficaram deslumbrados e a mãe, a sr.ª Rita, teve de dar, a si propria, um beliscão na nadega direita, para não desmaiar.

Descancado o rei, tomado um refresco, preparado pela mão habil da sr.ª Rita Affonso, que a ninguem quiz ceder esse cuidado, perguntou se tudo estava prompto para a cerimonia.

O prior da freguezia, que correra a cumprimentar Sua Magestade, -- foi D. Sebastião o primeiro rei portuguez que, á moda de Hespanha, teve este titulo, afirmou que as vontades de el-rei tinham sido cumpridas e que se esperavam apenas as suas ordens.

-- Vamos, disse El-Rei, erguendo-se e sem fazer caso das pragmaticas, perguntou a Pedro Affonso:

-- A tua filha?

-- Espera as ordens de V. Magestade.

-- Que venha, disse o rei.

Correu para ella Pedro Affonso e achando-a na sala immediata, para onde se retirara modestamente, troxe-a ao rei.

Este offereceu-lhe o braço. Organisou-se o cortejo. A egreja era a cem metros da casa; o rei quiz ir a pé.

De novo recomeçaram as aclamações, os vivas, o bimbalhar dos sinos, o estrondear dos foguetes.

O cortejo poz-se em marcha. Entre nuvens de incenso á porta da egreja, o clero esperava o rei. Foi com a maior audacia, o mais orgulhoso porte, a mais natural semcerimonia que Matheus Alvares, com a noiva pelo braço, se colocou debaixo do palio.

O orgão rompeu em canticos.

Pela nave central da egreja, ampla e aceiada, o rei da Ericeira caminha sob o palio, com um ar magestoso e grave.

As naves lateraes invade-as o povo, quasi correndo, n'am borborinho alto de vezes, aos empurrões, aos gritos.

Em cima, o orgão enchia de harmonias o espaço emquanto os padres entoavam, fogosamente, a antifona: «Domine salvum fac regem».

O sol entrava radiante pelas janelas: altares de rica talha dourada resplandeciam com os lumes de innumeras velas; cobria o chão um tapete de flôres, o orgão cantava: uma alegria ruidosa e comunicativa excitava a multidão, dir-se-hia a festa a valer da coroação d'um rei verdadeiro, por um povo encantado com o seu soberano.

Tomou o rei o seu logar n'um estrado alto, atapetado, do lado da epistola, emquanto o prior se revestia; e Marianna joelhou-se, rezando, no meio de duas raparigas, que faziam o officio de damas de honôr, no lado contrario, sobre uma almofada de seda carmezim, posta sobre um tapete, no chão.

Em breve o prior apparecia, seguido do seu acolito e, consultando o rei, procedeu ao casamento.

Terminado elle, o celebrante subiu ao altar. O rei e a rainha occuparam as duas cadeiras do trono e a missa cantada começou.

Uma frade subiu ao pulpito. Era um patriota exaltado, ainda que velho.

Felicitou o rei por ter acabado a sua longa penitencia e ir emfim cingir a corôa de seus maiores. Incidentemente, relembrou episodios da sua vida

passada, o desejo ardente que o levara á Africa, pelo amor de Christo, pelo amor da fé.

Exortou-o a que continuasse no glorioso intento de domar e converter os infieis; mas antes pensasse em levantar, no paiz, o clero esmagado, pelos roubos, pelas expoliações do estrangeiro.

Que olhasse pelo povo, clamava, e logicamente começou a desenrolar a longa tela das suas miserias e martyrios.

Ao descrever a miseria popular, ouviam-se, na multidão, chóros altos das mulheres comovidas.

Matheus Alvares sentia entrar-lhe no coração uma grande piedade pelo povo e experimentava um desejo immenso de se sacrificar, de luctar, de morrer pela sua causa.

A alegria d'aquelle momento, a felicidade que gozava, o logar que occupava ao lado de Marianna, tornava-o generoso, bom e ao mesmo tempo dava-lhe como que uma nova audacia, uma força maior, como que resultado de uma grandeza em que se via e que elle não distinguia bem se era verdadeira ou falsa.

Era o rei de Portugal! tudo lh'o dizia: o logar que occupava, o povo que o acclamava, o padre que o casava, o pregador no púlpito apelando para a sua realeza, a Nossa Senhora, até, que dentro da sua maquineta, cercada de luzes e de flores, parecia sorrir-lhe com um sorriso, divino, meigo, aprovador.

Sentia-se rei e escutava o frade como tendo o dever de começar a ouvir os conselheiros e devendo começar por aquelle que era mandado pelo céu.

A Marianna, n'um deslumbramento, assistia áquella cerimonia toda; e, impressionada, por vezes, sentia necessidade de pensar em cousas tristes, para não deixar cahir uma lagrima teimosa que lhe chegava aos cantos dos olhos.

O frade, depois de se dirigir ao povo, fazendo apello para o seu brio de portuguez, experimentado em CGntos de combates, incitando-o a morrer pelo seu rei, pela patria e pela fê de Christo, terminava n'uma prece, voltando-se para o altar mór, para o sacrario dourado que estava aos pés da Senhora.

Pedia-lhe a protecção para o rei, que o mesmo era proteger Portugal, cujos rei e povo tanto tinham dilatado a fé christã.

Rogava-lhe que iluminasse o espirito d'esses fidalgos que estavam contra a patria e desse coragem e força aos que fossem, em breve, á sombra da bandeira das quinas, pelejar pelo seu rei, pela sua terra e pelo seu Deus.

E, pedindo uma oração pelos que tinham morrido em Africa e pelos que houvessem de morrer ao lado do rei, desceu do pulpito festejado e contente.

Continuou a missa e, ao terminal-a, o clero e o povo entoaram, com commovedôra fé, um festivo Te-Deum. Organisou-se a volta e emquanto os repiques dos sinos atroavam os ares, os foguetes estralejavam, aos centos; as descargas de mosquetaria faziam ressoar os vales, os gritos e os vivas da multidão ensurdeciam a todos, o rei da Ericeira, Matheus I e sua esposa D. Marianna I, rainha muito amada, sabiam o pórtico da egreja de Nossa Senhora de Belem, e, da braço dado, por entre alas do povo festivo e doido, caminharam para a casa de Pedro Affonso enfeitada com verduras e flores e cercada de tropas em guarda de honra.

Bôdas

Quem tivesse podido, a sangue frio, assistir á cerimonia nupcial do rei da Ericeira, talvez não tivesse rido.

No meio d'aquelle ruido, aquella comedia quasi inverosimil, mas rigorosamente historica, encontraria um motivo de pesar.

Era uma loucura, uma alucinação geral. Rei, rainha, padres, tropas, povo, ninguem representava.

Todos imaginavam desempenhar um papel a valer; todos o executavam convictamente. A multidão não pensa.

Se havia, e havia realmente, muito de comico em todo o acto. um espirito reflectido e sereno encontraria, no fundo d'aquella série desarrazoamentos, um motivo nobre a produzil-os, e, ao vêr a impotencia do esforço, a nulidade da força que o havia de o recomendar, teria a impressão dolorosa de uma catastrophe que se adivinha. Não havia, porém, ninguem em estado de reflectir; todos estavam presos na loucura geral e a comedia continuou, entre folguedos e alegrias.

Na sala maior de Pedro Affonso tinha-se colocado o estrado e as cadeiras de espaldar que haviam servido na egreja.

Nenhuma outra mobilia havia, para permittir a entrada da côrte e do povo, que havia de correr aa beija-mão.

Alguem da côrte, antes do acto, lembrou que havia uma falta lamentavel.

-- Qual? perguntaram.

-- El-rei, explicou o novo cortezão, não precisa de distinctivos. Os reis portuguezes de ha muito que não põem a corôa em recepções officiaes. A corôa é o distinctivo dos reis e dos nobres...

A rainha, D. Marianna, que distinctivo terá da sua realeza? Nenhum!

Todos concordaram que havia sido um grande esquecimento. Podia-se ter mandado vir uma de Lisboa.

Lamentou-se o caso e falava-se já de outros assumptos, quando o prior de Santa Maria appareceu com um embrulho debaixo do braço.

Desapertando o lenço que escondia o objecto, o prior, sorridente, disse:

-- Está tudo arranjado; a rainha irá coroada.

Mostrou, então, uma corôa de prata, finamente lavrada, sahindo por entre dobras de papel de sêda.

-- Uma corôa? disse alguem.

-- É a de Nossa Senhora de Belem, accrescentou um padre que se adeantou, olhando-a. É a da padroeira.

-- Esta mesma, confirmou o prior. Nossa Senhora não se ofenderá por que a use, umas horas, a rainha de Portugal.

-- Ella protege a nossa causa, exclamou um outro padre; terá prazer em servil-a.

A corôa foi enviada á rainha, com a recommendação de a usar immediatamente. Era uma corôa sagrada.

Assim, D. Marianna, ao lado do rei, ella sentada, elle de pé, no estrado, com a sua corôa luzente de prata lavrada, começou a receber em sua régia mão, os beijos dos seus subditos, respeitosos e humildes.

Durou muito tempo a recepção. Homens e mulheres todos quizeram curvar-se ante os seus reis e deporem-lhe sobre os metacarpos o osculo da obediencia e vassalagem.

A senhora Rita, que envolta em amplo vestido de sêda, estava a olhar a filha e o genro, ainda não acreditava no que os seus olhos lhe mostravam. Era um sonhar accordada.

De vez em quando voltava-se para uma das aias e dizia-lhe: o que a gente vê n'este mundo! Nossa Senhora!... até parece uma rainha de Lisboa!...

Não se continha, chorava.

A pobre mulher, se alguma vez lhe tinham contado as historias de principes loiros e de princezas encantadas, devia reconhecer que a invenção maravilhosa dos antigos não ia além da verdade.

O que via era um conto de fadas.

Mais de duas horas, a orchestra acompanhou o desfilar do povo por deante do estrado real.

Emfim, cangados o rei e a rainha, pediu-se treguas. O povo, os que faltavam ainda para beijar concordaram, tanto mais facilmente quanto os creados espalhavam pelos pateos, que fossem tomando os seus logares por que ia começar o banquete.

Por muito amor que um popular tenha ao seu rei, por muito empenho que sinta em lhe beijar a mão, entre o beijo cerimonioso na regia epiderme e uma boa dentada n'uma perna de cabrito assado, não ha que hesitar, vae pelo cabrito.

Assim, começaram a correr todos para as mesas, debaixo dos parreiraes, em busca de logar.

Nem todos o encontraram já.

Então começaram a sentar-se pelo chão, escolhendo sombras, em circulo, aos grupos, ruidosos e alegres.

As tropas ensarilharam as armas e prepararam os queixos.

Começaram a chegar os cestos de pães e os alguidares com carnes.

Os mais previdentes abriram as torneiras das pipas e faziam correr para as bilhas de folha e de barro os vinhos roxos, que espumavam pelo choque da queda e espalhavam no ar o perfume caracteristico.

Chamavam-se uns aos outros, em grande algazarra, pelas sympathias, pelos parentescos, para comerem juntos.

-- Anda para aqui, Joanna.

-- Para esta sombra, rapaz.

-- Ó primo João.

-- Ó tia Izabel.

Juntos, os mais amigos, em redor de um alguidar de carnes fumegantes, de batatas aloiradas, o pão entallado na cova do braço, d'onde arrancavam

nacos, o bico da navalha ou as pontas do garfo em riste, começava a batalha.

Um ruido de raspagem de ossos, de trituração de cartilagens, de boccas que mascam, de narinas que sorvem, espalha, em roda, um apetite selvagem e imprime aos rostos a expressão beatifica de um grande prazer animal.

Riem, dentro dos corpos, os estomagos não acostumados a tão saborosos manjares; choram as mucosas acariciadas, pelo vinho, quando passa em jorro, a desemtupir a calha.

Um falatorio, confuso, cheio de gritos e de gargalhadas, levanta-se da multidão e esmorece, pulverisando-se pelas comas das arvores.

Um grupo e outro e dezenas, honram, pelo acolhimento fervoroso de consumidores insaciaveis, os guizados da senhora Rita e os vinhos generosos do Pedro Afonso.

Aquelles centos de boccas eram um abysmo onde se sumiam como em sorvedoiro, as arrobas de carneiro, de cabrito, de porco, de gallinhas, de patos, n'nma mistura tetrica, aboborada em vinho.

Duas horas depois, a falada era infernal; os rostos tinham-se enchido de côr, os olhos piscos rebrilhavam á sombra.

Muitos, de pé, cambaleavam; dos sentados, alguns tomavam a posição horisontal.

As mulheres riam, desordenadamente, dadas, cheias de ternuras, de gestos e ditos lascivos.

Havia uma grande liberdade na phrase, uma grande confiança entre todos, e aquella amizade commum, que o vinho impõe.

Os cegos começavam a arranhar nas violas; aqui e ali, um grupo de namorados mais insoffridos e menos comillões, dançava.

Chegou o arroz dôce em pratos grandes como saladeiras: foi uma hecatombe! O dôce secca os labios, o vinho tira o dôce... as pipas soavam cavo, as cabeças zuniam, cheias.

Perseguiam-se uns, outros dançavam, outros cantavam cousas tristes, aquelles altercavam bulhentos, de mau vinho.

O sol illuminava cruamente os fatos de côr; e, aquelle formigueiro humano, sob as arvores, entre cantos e bailes, entre fructas e pipas, lembrava, vagamente, uma festa pagã, a Ceres ou a Bacho.

Durou até á noite.

No vasto celleiro, armado em sala de jantar, as paredes cobertas com hera, realisava-se, á mesma hora, o jantar de nupcias dos reis da Ericeira.

Este tinha, no entanto, um caracter mais serio, mais grave, como é de suppôr, n'um jantar da realeza.

A pragmatica levara o seu sopapo desde a collocação, á mesa, dos convidados; apanhava o seu pontapé no correr do serviço; mas pelo rapar dos pratos, pelo ensopar do miolo de pão nos suculentos molhos; pelo encostar delicado dos cotovellos na mesa, pelo escorrupichar do vinho, até á ultima gôtta, nos copos, pelas costeletas comidas á unha, e outras similhantes maneiras delicadas, logo se percebia que se estava n'um jantar de gala, entre pessoas da côrte.

O serviço se não era delicado era profuso e interminavel, como se usa hoje ainda em casa de lavradores.

Não faltavam os bons vinhos da lavra de Pedro Affonso, novos e velhos, brancos ou tintos, ao gosto dos convivas e cujas excellencias e proveniencia

o lavrador explicava, para mais despertar nos paladares o uesejo da prova.

Não era preciso.

Todos sabem como se bebe e come na província, em jantares de bodas; e, os cortezãos do novo rei não deixaram a sua reputação por mãos alheias.

Depois do leitão assado, ahi pelo oitavo prato do jantar, as libações multiplas tinham feito o seu dever.

A conversa era geral, desafogada, ruidosa.

O rei conservava uma certa prudencia e gravidade que lhe não estava mal de todo. Dava, porém, ampla liberdade ás conversas, e por vezes não se cohibia de entrar n'ellas, dando a sua opinião.

Todos o ouviam enlevados.

Mais do que ninguem a rainha que o comia com os olhos e a mãe da rainha que o olhava com uma alegria tão misturada de espanto, como se contemplasse um Deus.

-- É o momento de proceder energicamente, dizia o prior para um dos convivas, levantando a faca á altura dos olhos.

-- Já?

-- Pois que resta fazer? Não temos mil homens bem armados e outros mil, que ainda que com armas inferiores, não hesitarão em secundar os primeiros?

-- Não será cedo? alvitrou um outro.

-- Não, disse o rei, entrando na conversa. Esperava o momento de regular a minha vida, como n'este dia feliz o alcancei, para entrar, denodadamente, no caminho da acção, sem hesitações, nem contemplações. A lucta começará, amanhã.

Temos por nós, as comarcas de Mafra e Torres Vedras e não podemos levar mais longe, o feito de guerra, senão á frente dos nossos homens a caminho de Lisboa. Os outros que nos sigam.

Poucos mais soldados podemos pôr em pé de guerra e é preciso que as outras comarcas se ergam, denodadamente.

D'amanhã em deante, mandar-se-hão as proclamações aos povos e noticiar-se-ha ás auctoridades que cumpram as nossas ordens; digo, as minhas, impostas por vós.

Emfim, levantar-me-hei, como rei, exigindo a obediencia dos meus subditos e mandando que se preparem todos para a resistência, porque os hespanhoes hão-de jogar as ultimas contra nós.

Vou, emfim, com o vosso auxilio, jogar a tremenda cartada; se alguem ha que tenha receio que me não siga; não o reprehenderei por isso.

A prudencia acabou-se; o segredo, o cuidado tem de morrer, hoje, que liguei o meu destino á rainha (olhou dôcemente para D. Mariannai, minha muito amada esposa, a quem prometti o throno, tão disputado, e pelo qual, por cujo alcance, empenho a minha palavra e a minha vida!

-- Viva o rei! gritaram alguns, de copo em punho!

-- Viva! exclamaram os restantes, erguendo-se todos como n'um impulso collectivo de enthusiasmo.

-- Viva a rainha! exclamou o prior, saudando-a reverenciosamente; viva a nossa rainha! E, ergueu o corpo, mais alto do que a cabeça, onde o licôr aloirado ondeava inquieto.

- Viva a nossa rainha! exclamaram todos, secundando a voz.

O prior pediu venia, e levantou o primeiro brinde.

-- Senhor, -- estava de pé, fez signal aos companheiros para que se sentassem. -- Senhor, permitta-me V. Magestade que seja eu, indigno ministro do Senhor, mas portuguez de alma e de coração, que seja o primeiro a levantar a voz n'este banquete, para saudar-vos.

Este dia, marcará na historia de Portugal uma data gloriosa.

Amanhã, o paiz saberá que o rei de Portugal, o muito amado, o muito querido, o muito desejado D. Sebastião, vive, está entre nós, prompto a deeembainhar a sua nobre espada ao sol das batalhas, pela honra, pela gloria, pela independencia da nossa terra!

Amanhã Portugal acordará do seu letargo, da sua miseria, da sua agonia, para florescer, novamente, entre as nações poderosas do mundo, como compete áquella que, por mares nunca dantes navegados, dilatou, por mundos novos, a fé e o imperio!

-- Bravo! bravo! -- exclamavam dos lados do prior.

O rei acenava approvadoramente, com a cabeça; a rainha pensava nos seus Lusiadas e na ilha dos amores; a rainha mãe choramingava, escondidamente, por detraz do guardanapo, impressionada por aquella aluvião de phrases de que não percebia nada.

Que portuguez, não nos acompanhará. Senhor, na nobre empreza? Quem ha que seja capaz de não affrontar, comvosco, os perigos, até a propria morte? Quem?

-- Ninguem, ninguem -- respondiam os convivas animados pela oratória e polo alcool.

-- Quem não amará a liberdade da sua patria e, portanto, não odiará o hespanhol?

-- Morram os hespanhoes! -- gritou um dos mais enthusiastas.

- Morram os hespanhoes! -- gritaram todos, lançando instinctivamente mão das facas e garfos, como se os hespanhoes, fossem prato que estivesse a chegar.

-- Tende confiança em nós, Senhor, como nós confiamos na vossa espada, no vosso valor e na vossa honra!

-- Viva o rei! exclamaram vozes.

-- Amigos, continuou o prior, este é o nosso rei, aquelle valoroso rei de quem a Moirama treme, cuja espada ílammejante ceifou em Alcacer-Kibir milhares de vidas e cuja vida Deus poupou para redempção do seu povo, depois de ásperas provações.

Este é o nosso rei, guerreiro audaz, pretendente humilde; mas de novo erguido ao logar que lhe compete no paiz que os seus avós conquistaram á ponta da espada e ampliaram sulcando o mar tenebroso.

Este é o nosso rei que me permitto saudar, levantando até á magestade do seu throno a minha debil voz. Que elle se digne ouvir-me e não esqueça nunca, no seu dia de gloria, que Deus trará em breve, os humildes povos d'estes districtos que tão do coração se apressaram a seguil-o, a acclamal-o e a gritar por elle: Viva D. Sebastião rei de Portugal!

Foi um tumulto de vivas, erguidos os copos, os rostos voltados para o rei, que levava aos labios o seu copo de cristal, entre somsos amaveis.

-- Permita-me, exclamou o prior, acalmado um pouco o tumulto, que, para acabar, levante o meu brinde á nossa gentil e bondosa rainha D. Marianna, mulher de El-Rei.

Senhora, não é a primeira vez que a bondade ou o amor dos grandes principes teem erguido até elles, pessoas de nascimentos menos altos, sem pergaminhos, sem nobreza!

Nem é preciso que os tenham, porque desde que um principe associa o seu nome ao de quem quer que seja, esse alguem se lhe eguala. Sois hoje tão grande, tão nobre, como a mais nobre dama d'estes reinos, porque sois a mulher d'el-rei e é elle quem dá as honras, a nobreza!

Saudo-vos pelo vosso alto estado e peço-vos que não esqueçaes nunca aquelles a quem Deus, por sua alta sabedoria, não elevou ás grandezas da Terra, com que vos enalteceu!

Baptisei-vos, casei-vos, como casei vossos pães; orgulha-me o ter-me Deus concedido essa mercê e por taes factos ouso pedir-vos um favor, que é ao mesmo tempo dirigido a el-rei.

-- Dizei, senhor prior, exclamou D. Marianna solicita.

-- Por mim estaes servido, disse quasi ao mesmo tempo el-rei.

-- Deus ha de permittir que a sucessão ao throno seja em breve assegurada; que a vossa união abençoada por mim, junto a um altar, tenha a sua benção tambem.

Peço-vos para que seja eu quem baptise o vosso primeiro filho!

Por entre os risos que a ideia poz em todos os labios a rainha olhou o rei, que lhe acenou amavelmente com a cabeça em signal de approvação, e disse com toda a graça:

-- Senhor prior, está defferido o vosso requerimento.

-- Parabens! disseram os padres mais novos; mas senhor prior, falta-vos pedir ainda uma cousa.

-- Qual?

-- Não a adivinhaes? perguntou um dos presbiteros.

-- Não, disse o prior com ar de riso.

-- É que sejamos vossos acolytos n'esse baptisado.

-- Concedido, disse o rei, que estava ouvindo a conversa.

Os padres inclinaram-se.

N'isto, appareceram enormes travessas de paio com arroz e a oratória teve de ceder o logar á mastigação ruidosa.

O rei não comeu e conversava amável e discretamente com a mulher, que o olhava, por vezes, entre admirada e agradecida.

D'aqui a pouco saberemos qual era a conversa.

No intervallo do pato com arroz e as perdizes com molho de vilão, ergueu-se Pedro Affonso.

Fez-se um silencio fundo. O rei olhava-o enternecido.

-- Daes licença, Senhor?

-- Falae.

-- Mal sei falar; mas sei sentir. É ao que sinto que peço força para vos dirigir a palavra.

Sois o meu rei, nenhum outro parentesco temos, nenhum outro pôde haver entre nós. Sois o Senhor, eu sou o vassalo. Eis tudo. Ha honras que, pelo valor, tornam todo o agradecimento ridículo. Ides ennobrecer o meu sangue; que os meus netos, os vossos filhos, sejam dignos d'elle; que o honrem, para que nunca tenhaes arrependimento de o ter feito. Está nas mãos de Deus, a elle o peço!

Levantou os olhos ao tecto, commovido. Os peitos arfavam, Pedro Affonso estava eloquente, simples, grande, pela sinceridade, pelo sentimento.

Continuou, correndo o olhar pelos convivas.

-- Estamos chegados ao momento grave; aproxima-se o dia da redempção da nossa patria, está para breve o momento de libertar Portugal; e, todos os que aqui estamos, Senhor, confiamos na vossa espada e confiamos nas vossas mãos, as nossas vidas.

É para vol-o dizer, bem alto, bem do coração, em nome dos que me escutam, não é verdade?...

Todos se levantaram, rubros de enthusiasmo, gritando:

-- É assim! É assim!

-- Dizeis bem, Pedro Affonso!

-- Viva o Rei! Viva o Rei!

... que podeis contar comnosco, como contamos comvosco.

E, no meio de uma excitação geral, em que todos falavam e ninguem se entendia, Pedro Affonso terminou o seu discurso clamando:

-- Morram os hespanhoes! Viva D. Sebastião!

Então os morras e os vivas atroaram os ares. Preso de um grande enthusiasmo, o rei levantou o seu copo, dizendo:

-- Senhores! Que dia glorioso este! Sinto-me feliz no meio de vós, amigos fieis e dedicados, ao lado da rainha, minha muito amada esposa, e sentindo vibrar dentro da alma toda a gratidão que vos devo e todo o amor que sinto pela nossa terra, a nossa terra portugueza, tão nobre, tão altiva, e hoje tão humilhada.

Que Deus seja louvado!

Um dia egual a este só será aquelle em que, entrando em Lisboa, á vossa frente, eu possa mandar chicotear os ultimos cães medrosos de Filippe II!

No dia em que a Europa saiba que no throno de Portugal se senta o seu rei! No dia em que a nossa bandeira gloriosa, bordada pelas mãos da rainha, -- fôra uma dadiva captivante da filha de Pedro

Affonso-- , se erguer altiva sobre os paços da Ribeira, o paço de D. Manuel, o paço de D. João III, o paço dos meus avós.

Esse dia egualará, decerto, este.

Mas não será maior o meu reconhecimento, por que de quanto sou capaz o consagro, hoje, ao vosso valor, á vossa dedicação, á vossa lealdade!

-- Viva o rei! Viva o rei!

-- Bebo por Pedro Affonso meu sogro muito querido, coração liberal e alma aberta aos sentimentos mais nobres do mais nobre dos portuguezes. Alma boa, alma energica.

A elle deverei o throno, a vós todos a realisação dos nossos desejos e Portugal a independencia!

Espero em Deus poder recompensar tão valiosos serviços para elle e para os seus descendentes, gloria e honra da nossa terra querida.

-- Viva Pedro Affonso! exclamaram os convivas.

O rei saudou, ainda, em particular o prior de Santa Maria, este e aquelle convidado de maior cathegoria e terminou pelo fatal «viva aos portuguezes e «morra» aos hespanhoes.

A fala do rei, coberta de applausos, concluiu n'um verdadeiro charivari de gritos, de exclamações, entre o tinir furioso dos copos e o arrastar das cadeiras.

Fóra, o barulho dos instrumentos, o sapatear das danças, o ruido das conversas, o disparar de tiros, o rebentar dos foguetes enchiam o ar, já

fresco, do reboar cavo de uma grande feira, no apogeu da vida.

O jantar do rei continuou cada vez mais animado, mais intimo, mais familiar.

Os dôces e os licores completaram a sem ceremonia, de modo que, ao café, D. Sebastião houve por bem, em dado momento, levantar-se, não fosse o á vontade excessivo prejudicar-lhe um pouco a magestade da realeza.

O rei e os convidados sahiram da sala e como de passeio percorreram a rua da longa latada onde estavam as mesas.

Paravam ao pé das danças, junto aos grupos.

O rei tinha frases amaveis para os homens; a rainha ditos alegres para as raparigas.

Entre acclamações foram seguindo, lentamente, como enleiados com as manifestações de amor e de estima dos seus vassalos.

-- Que lindo rei! diziam as raparigas.

-- Que linda rainha! commentavam os rapazes.

Todos se regosijavam em os vêr.

Todos, excepto um. Era aquelle filho de Antonio Simões, que a amava, intimamente, n'aquella teimosia ridicula dos namorados, sem esperança.

Não fôra ao jantar; ficára-se por entre os grupos do pateo, a espairecer; -- a não lembrara scena ha pouco passada do casamento.

Não tivera força para não vêr.

Queria certificar-se com os seus olhos de que a perdia para sempre.

E, viu-a casar, ligar-se a outro homem, alegre, feliz, sem que o seu olhar o procurasse uma vez, sem saber mesmo a que torturas o condemnava.

Emfim, era sorte; estava tudo acabado.

N'essa grande tristeza, deixou-se ficar entre conhecidos, a comer e a beber, a ouvir rir e bailar, para se aturdir, para não pensar, para soffrer menos.

Tinha-se sentado na borda de um tanque, a olhar vagamente para tudo e todos, quando o cortejo sahiu do celeiro, depois do jantar e se misturou com a multidão.

Como ella vinha linda! Como vinha feliz! E elle?

N'isto chegou-se-lhe ao pé um homem dos seus cincoenta annos, levemente grisalho, e olhar vivo e intelligente, de aspecto nobre.

Era o dono d'uma herdade ao lado, homem fidalgo, que vivia isolado, mettido comsigo, sem ninguem saber porque deixara Lisboa, onde floreara, e se recolbera, ainda robusto, a uma vida tranquilla de lavrador rico.

Falavam de amores, de desgostos... ninguem sabia.

Era solteiro o D. José; e, mulheres... dizia-se que lhe serviam as que andavam na monda e na sacha.

Era uma cada anno... Era generoso, delicado... que mais era preciso? Estimavam-no muito.

Quando lhe falaram para seguir o rei, poz-se a rir.

Quando teimaram, respondeu, gravemente:

-- O rei de Portugal, o D. Sebastião, esse está lá para os lados de Arzila, em pó. Já fiz o meu dever. Cada um faça o que entender que seja o seu.

Nem o combato, nem o approvo. Deixem-me era paz.

Nunca mais o tinham procurado.

A curiosidade tinha-o trazido a rondar, por cima dos vallados, as festas do casamento real.

Ia a retirar-se, com um riso de ironia nos labios, quando viu o Bernardo Simões afastar-se da multidão e vir sentar-se, meio escondido por uma sebe de buxo, na borda do tanque.

Conhecia-o. Era dos seus poucos companheiros de caça e sabia-lhe da paixão.

-- Olha o Bernardo a fugir do borborinho, disse comsigo, ao vê-lo.

Pobre rapaz... vou consolal-o.

Saltou o valado e veio por entre um renque de amendoeiras, até elle.

-- Olá, Bernardo, então todos tão alegres e tu aqui a matutar? Em que pensas?

O Bernardo riu-se, riso amarello, e respondeu:

-- Faz calôr para ali-- uma poeira que cega. Vim para aqui descançar.

-- Só, isso?

-- Que mais havia de ser, senhor D. José?

O fidalgo encostou o cotovelo á parede do tanque e poz-se a olhal-o. Depois disse:

-- Deve ser custoso deve... na tua edade uma paixão é cousa séria.

-- O Bernardo olhou-o de frente.

-- Que quer dizer?

-- Quero dizer que tens melhor olho para varar uma perdiz do que tiveste para varar o coração... d'aquella rainha...

Bernardo córou.

-- Não te está mal... Também já tive d'isso... cousa parecida. As mulheres nunca vêem quem as ama. Francamente, ó Bernardo, tu gostavas d'ella?

-- Se gostava!

-- Olha que o teu caso é raro. Um lavrador a quem roubam a noiva para a sentarem n'um trono!-... e deu uma gargalhada alta.

-- O senhor ri-se?

-- Não me rio de ti, rio-me do trono.

-- Do trono?

-- Ou da tripeça... como quizeres.

-- Ah! o sr. D. José não acredita...

-- Tanto como tu, que nunca acreditaste.

-- Eu? não sei... ás vezes...

-- Sim; á força do teu pae te quebrar o bicho do ouvido com o rei... mas no fundo...

-- Isso é verdade... não sei ainda bem o que acredite...

-- O que quizeres, homem, menos n'aquelle rei e n'aquella rainha. O rei de Portugal, D. Sebastião, morreu, vi-o eu morrer-, vi-o morto, nú, coberto de feridas... Os mortos não voltam...

-- Então aquelle...

-- Aquelle é um rei de comedia, um rei de doidos, sendo elle o primeiro.

Isto tudo é uma desgraça. Todos estes cantos, todas estas alegrias, tu verás em que isto vae dar.

-- Parece-lhe?

-- Deixa chegar a noticia a Lisboa.

-- Mas em Lisboa já sabem...

-- O quê?

-- Que está aqui o rei, que vive aqui.

-- Quem o foi lá dizer?

-- Toda a gente. Os homens teem ido á cidade comprar polvora e balas. Quando lhes perguntam para quem são, respondem, com toda a clareza: para o exercito de D. Sebastião.

-- E põem-se todos a rir?

-- Não senhor; até de lá vem dinheiro e presentes.

-- Em toda a parte ha parvos, disse o D. José, pondo se sério.

Mas tu verás em que isto pára. O melhor é não te metteres em barulhos... deixa lá o teu pae que é tão maluco como o Pedro Affonso... afasta-te, sempre.

Calaram-se, por momentos.

-- Ah! disse o Bernardo quebrando o silencio, se elle não é o rei!

-- Lá isso não é; mas que te importa para o caso?

-- Diz isso por estar casado com a Marianna?

-- Que seja rei ou não para ti é o mesmo; é o marido da Marianna... rei ou pastor... é sua mulher.

-- Mas é que se não fosse o rei... disse o Bernardo apertando os dentes, a cousa era outra.

-- O que fazias? disse o fidalgo, sorrindo.

-- Dava-lhe um tiro!

-- Ora ahi estava uma bella asneira, concluiu o D. José.

-- Porquê?

-- Porque elle depois de morto não sentia nada; ella ficava a consolar-se, o que não havia de tardar, nos braços de outro; e, tu passavas o resto dos dias, a remar, atado a um banco de galé.

-- Mas consolava-me.

-- Má consolação... triste. As feridas do amor, são como as de cão, curam-se com o mesmo pello.

Emquanto conversavam augmentava o barulho dos vivas aos reis que passavam, lentamente, por entre os populares avinhados e expansivos.

-- Olha o que ali vae de festa, dizia D. José, rindo-se. Agora ha mais uma razão, é que, além de doidos estão bêbedos.

O rei e a comitiva entravam, novamente para casa.

Viam-se, de longe, subirem os degraus que antecediam a porta, de braço dado, como n'uma apoteose.

-- O diabo do rapaz tem aprumo, dizia o D. José olhando-os. E a Marianna...a Marianna... não vae mal.

Só esta me faltava vêr. Um rei retalhado de golpes, negro, que mal se lhe conhecia o rosto, a casar cinco annos depois, em Rio de Mouro, como uma pessoa viva.

Se não tivesse os olhos abertos dizia que estava a sonhar.

Bernardo nem o ouvia; os olhos iam-se-lhe atraz do par que se sumia, entro uma multidão de cabeças, pelo portal dentro.

D. José olhou para elle e viu-lhe um ar desolado, uma grande tristeza no olhar.

Encolheu os hombros, como quem diz; cousas da edade... todos fazem a via-sacra.

-- Agora que vaes fazer?

-- Eu, respondeu Bernardo, fico para aqui.

-- A matutar? Deixa-te d'isso. Vem d'ahi commigo.

-- Para quê?

-- Para não andares por ahi como um parvo. Tenho lá dois cachorros... da perdigueira... são uma belleza... não me tinhas pedido um?

-- Tinha.

-- Bem; vem d'ahi escolhêl-o.

Saltou o Bernardo do muro, poz-se ao lado do fidalgo, e foram conversando, até se sumirem por entre o arvoredo.

Munificencia Régia

Começou a tarde a descer.

Um vento fresco corria pelas comas das arvores. Agora, a frescura, reaccendia o apetite e o vinho que até então servia para refrescar, passava a servir para aquecer.

O admiravel liquido tem estas qualidades estranhas. O seu efeito terapeutico afeiçoa-se á vontade do momento.

Eis a razão porque os canjirões não deixaram de abrirem as bocas debaixo das torneiras e porque a alegria não deixava de animar os rostos córados dos bebedores.

Muitos, verdade seja, já resonavam, aqui e ali por debaixo das arvores, as cabeças encostadas a um toro, ou apoiadas nas coxas das mulheres, de olhares brilhantes, os lenços desatados, os cabelos cabidos.

Mas a maioria desafiava, valentemente, o poder marinheiro do vinho e para o domar, atirava-lhe, de espaço a espaço, com uma bucha de pão seco, e um naco de pão de ló, ou um pastel de farinha com mel.

Não tinham afrouxado os bailaricos; antes tinham augmentado de numero.

O vinho e o amor pedem dança.

A festa continuava, sempre no mesmo tom, com a mesma animação, emquanto, em casa, el-rei, subindo ao trono e mandando que deixassem entrar os que coubessem na sala, tendo ao lado o seu escrivão e o seu pagem, e na cadeira lateral, a rainha, de pé, assim falava:

-- Antes de me retirar para o meu palacio da Ericeira e dar começo aos trabalhos definitivos, tendo já nomeado alguns dos que me cercam para os logares, de monteiro, de estribeiro, de escrivão, de pagem, de couteiro, emfim, de todos os logares que entendi serem precisos para a minha caza e tendo assim recompensado os serviços que destes leaes vassalos tenho recebido, resta-me, por dever de gratidão, recompensar ainda meu sogro, a quem muito prezo e a vós senhor prior de Santa Maria.

Escutavam todos com grande interesse.

-- A Pedro Affonso, como testemunho da minha muita estima e alta consideração e reconhecimento pelos favores que lhe devo, elevo-o desde agora, a Marquez de Torres Vedras, Conde de Monsanto, Senhor de Cascaes e Alcaide-Mór de Lisboa!

Todos olharam o agraciado, que se conservou immovel e altivo.

-- Assim o quero e ordeno e assim todos o tenham entendido e respeitem como minha vontade.

-- D. Pedro, disse o rei, voltando-se para Pedro Affonso, o meu emissario vos entregará o alvará.

O novo marquez de Torres Vedras avançou para o rei, curvou-se e beijou-lhe a mão.

-- Agradeço-vos, senhor, a honra que me fazeis e eu vos prometto de que serei digno d'ella.

-- Assim o creio e espero, disse o rei.

Depois voltando-se para o prior que lhe estava na frente, disse:

-- Quanto a vós, que ha pouco me pedistes, tão humildemente, mas tão sinceramente, para baptisardes o meu primeiro filho, sabei que vos pertencerá o fazel-o -- era este o segredo que o rei dizia á rainha quando o pedido foi feito -- , porque vos nomeio arcebispo do Lisboa com todas as suas honras e proveitos.

O pobre prior não poude conter a commoção e foi lançar-se aos pés do rei, de joelhos.

-- Senhor, eu nada fiz para merecer tão alto cargo.

-- Eu o sei, disse o rei.

-- Nem sinto em mim forças para tão alto ministerio.

-- Deus vol-as dará, rematou o rei, com um soberbo gesto.

-- Se assim o mandaes, concluiu o prior beijando-lhe a mão... faça-se a vontade... que do vosso serviço eu não posso esquivar-me.

-- Nem eu vos dispenso. Quanto a vós, continuou o rei, dirigindo-se aos acolitos do casamento ficaes priores; vós -- e citava os nomes -- d'esta freguezia, vós daquella, vós d'aqueiroutra.

Eu mandarei que saiam os priôres que as governam de amanhã em deante e estai pois prestes para tomardes as vossas parochias.

Por seu turno os presbíteros foram beijar a mão ao rei.

Todos os mais tinham, já, logares.

As mulheres não estavam menos empregadas, visto a rainha ter escolhido as suas damas, entre as suas amigas mais chegadas.

Estava ali quasi toda a côrte.

N'um momento geral de alegria todos se abraçavam e felicitavam, entre sorrisos e lagrimas.

Pedro Affonso, - D. Pedro Affonso de Menezes como elle se assignou desde esse dia, -- e o prior D. Antonio como o trataram desde logo, eram os mais felicitados.

Tinham subido aos mais altos cargos, em vinte minutos.

Era de embasbacar.

O rei estava radiante com a felicidade dos seus subditos: a rainha beijava, loucamente, a mãe, chamando-lhe senhora Marqueza.

-- Eu sou Marqueza?

-- Se D. Pedro, vosso marido, é Marquez, observava-lhe, gentilmente, um cortesão.

-- Louvado seja Deus! Mas isto não pôde ser...

-- Porquê, minha mãe?

-- Porquê?... tu vaes lá para a côrte... para o teu palacio... mas eu, Marqueza, hei de tratar das gallinhas... dos porcos...

-- Mas isso não será mais assim, minha mãe - Ha-de ter os seus creados, as suas creadas, bem vê...

-- E, eu não poderei mais tratar da minha casa?

-- Como até agora? não.

-- E que hei-de fazer... o que farei em todo o dia?

-- Dará as suas ordens, vigiará...

-- Tenho de ser marqueza por força?

-- Que remedio, minha amiga, disse, interrompendo a quasi secreta conversa entre mãe e filha, D. Pedro Affonso de Menezes, que remedio, se eu sou marquez!

Temos de reformar a nossa vida e, como Deus quer que seja para melhor, não custará muito.

-- Para melhor, Pedro?

-- Quem o não crê? Duvidas?

-- Tantos cuidados... Tantos negocios... Deus te oiça.

A filha beijava-a, emquanto Pedro Affonso, sorria com um ar superior, de cabeça altiva, como a desafiar o destino.

Como não havia boda sem baile, D. Pedro Affonso, senhor de Cascaes, depois de consultar o rei, mandou entrar os musicos.

O rei deu o braço á Marqueza de Torres Vedras, e o Marquez deu o braço á filha, os outros pares, combinaram-se pelas sympathias; e, a dança, a que chamariamos hoje a quadrilha de honra, começou.

Se é facil imaginar as peripécias do bailado, seria longo o descrevel-as.

Imagine-se a graça da Marqueza de Torres Vedras dançando sem saber que fazer, nem para onde ir, guiada pela mão não menos sabedora de Matheus Alvares.

Imagine-se o comico das cortezias, o patusco dos passos, o phantastico das posições, no meio de uma incerteza geral, n'uma confusão de todos os momentos.

Isto entre observações:

-- Para aqui!

-- Para ali! Volte-se!

-- Dê a mão!

-- Cumprimente! Á esquerda!

-- Deixe passar!

-- Lá lhe pisei o vestido!

-- Afaste-se Marqueza! Esteja quieta Majestade!

Fazia rir é certo; mas não é menos verdade que ao presenciarem-se estas scenas, mais ou menos precisas, se sente um mal estar, um aperto no coração como se se assistisse a uma festa de loucos, sobre uma mina que vae rebentar.

A contradança primeira, foi a ultima.

Então, o rei gostando de vêr bailar pediu para que viessem fazel-o um grupo de raparigas e rapazes.

O baile não perdeu a grandeza pela assistencia dos reis e tornou-se mais animado e menos comico.

Durou até ao anoitecer.

Tinha-se combinado que El-Rei e a Rainha retirassem para o seu palacio da Ericeira, á noite.

Fazia luar; a viagem seria agradavel e não fatigante.

Assim, ao romper da lua, o Marquez de Torres Vedras preveniu o rei e este mandou que se preparasse a partida. O commandante das tropas, D. Pedro Affonso, mandou tocar a reunir.

Soaram os tambores; os soldados despejaram o ultimo copo e correram ás armas.

Trouxeram-se os cavallos. Uma mula ricamente ajaezada chegou á porta, conduzida por um pagem.

Era a montada da rainha.

-- Tudo está prompto? perguntou o rei.

-- Tudo, meu senhor.

-- Senhora, disse elle, para D. Marianna, estou ao vosso dispor, quando quizerdes.

-- Deixae-me despedir de minha mãe.

D. Marianna foi dentro e as duas abraçaram-se.

A Marqueza de Torres Vedras, a despeito das grandezas para onde a filha ia, não se teve que não chorasse, esquecendo, pelo fungar alto, a sua gerarchia, que a obrigava a chorar silenciosa e nobremente.

A pobre mulher era mãe, boa mãe, que adorava a filha e nem se lembrava que era marqueza, lembrando-se só de que ia separar-se d'ella.

-- É a primeira vez que nos separamos... não te esqueças de mim.

A filha, menos commovida, embotada, um pouco, a sensibilidade pelos acontecimentos do dia, observava-lhe:

-- Isto é uma separação de dias... voltarei breve a vel-a... quando quizer vá até á Ericeira... é um instante... estaremos, lá, juntas.

-- Sempre é perder-te, minha filha... comtanto que Deus te ajude e que sejas feliz... já será bom.

-- Até breve, até breve, dizia a rainha.

-- Até quando? E agarrava-se ainda á filha a beijal-a como se uma força superior á sua vontade a impellisse.

-- Então, minha mãe, então?

A deante os batedores, atraz o rei e a Rainha, cerrados pela sua nobreza, homens a cavallo; as mulheres em mulas; no couce uns quinhentos homens commandados por um capitão a quem o general Pedro Affonso declinara o cargo, depois de os ordenar.

Por todos os lados o povo das bandas da Ericeira, envolto em pó, saltando regos, subindo encostas, correndo pelos atalhos.

A caminhada até á Ericeira, naquelle entusiasmo, se não era de si grande, menor se tornava.

Ninguem dava pelo caminhar.

Em breve o palacio illuminado do rei, appareceu. lá em baixo á vista do cortejo.

Tambem, na Ericeira, havia foguetes e uma multidão especlante e anciosa.

A recepção foi entusiastica.

El-Rei teve de receber muitos dos que não tendo podido ir ao Rio de Moiro, o esperavam para o felicitar.

Depois de um breve discurso, apelando para o cansaço, delicadamente, foi despedindo os visitantes.

Duas horas depois, pôde recolher aos seus aposentos. As damas tinham tomado conta da rainha. Tinham-lhe vestido um fato mais leve.

Suas Magestades foram tomar chá. Era um vicio de ambos.

No fim do chá, como falasse sobre a posição das janellas dos quartos e o da rainha fosse mais para o norte, afiançando ella que era mais bella d'ali a vista dos rochedos e do mar, o rei, um pouco descrente, quiz ir ver com os seus proprios olhos.

Foi; e tal era a vista nocturna que só sahiu de manhã.

Ao Mar

Não tardou a chegar a Lisboa a noticia do casamento.

A cousa era, porém, tão cómica de si, que ninguem lhe ligou importancia de maior alcance.

O que mais admira é as auctoridades de Torres Vedras e de Mafra não intervirem na desordem que trazia em tão grande alvoroço as povoações.

Ao mesmo tempo, percebe-se-lhes o mêdo, perante a exaltação crescente do povo, o caracter pouco tranquilisador das tropas, feitas na maioria de vadios, de mandriões da peor gente.

A força estava do lado dos amotinados e a força é a suprema da lei.

Assim supportavam tudo e continuariam a supportar até que fossem forçadas a intervir, por ordem superior.

A ordem não apparecia. Matheus Alvares continuava a ser o rei da Ericeira.

Montara casa grande, com o dinheiro do sogro, na maior parte, e com dadivas de outros correligionarios abastados.

Tinha uma secretaria, uma guarda de honra, creados, boa cocheira, um estadão completo.

Era, verdadeiramente, um pequeno rei.

Assim se sentiu no dia seguinte ao do casasamento e como tal decidido a reinar.

Até ali fôra, apenas, o pretendente; n'aquella manhã, quando entrou na sua casa de trabalho onde o esperava, o seu escrivão, Pedro Affonso, commandante das tropas e marquez de Torres Vedras, dois capitães, um de cavallaria e outro de infanteria; Antonio Simões, veador da rainha e outras personagens somenos da côrte, tão altivamente falava, com tal orgulho, que remedava, muito razoavelmente, um rei a valer.

O conselho de estado estava, assim, reunido.

O rei sentara-se e fizera signal aos aulicos para o fazerem tambem.

Depois de uma breve pausa, disse:

-- Vamos começar, emfim, o ataque, meu caro marquez. Não é sem tempo. Que me dizeis?

-- Estamos ás ordens de Vossa Magestade, disse Pedro Affonso, cujo ar, cuja voz, cujo aspecto, parecia ter redobrado de energia; uma energia brutal que se lhe lia no olhar duro.

É preciso trabalhar e, com alma e sem mêdo.

Não poderemos alcançar maiores forças do que as que possuímos, não podemos, pois, esperar.

-- É essa a minha opinião, disse o rei. A demora pode causar-nos graves contratempos. Nem o archi-duque nem os seus mastins ligam importancia ao nosso movimento; estão tranquillos, calmos, n'este momento, ainda.

Ámanhã, prevenidos e tementes, preparar-se-hão, para nos destruirem o plano. Fortalecer-se-hão, a lucta será maior.

-- Qual é o vosso plano, marquez de Torres Vedras?

-- Ainda o mesmo. Levantando o grito de revolta na Ericeira, Vossa Magestade á frente de todos os homens que puder levantar, seguirá para Torres Vedras. Ali o esperarei com o grosso do nosso exercito e seguiremos para Cintra, falando ás povoações pelo caminho, arrastando a que nos sigam os trabalhadores dos campos, armados como puderem.

De Cintra caminharemos para Lisboa, aonde chegaremos em dia e hora propria para podermos entrar facilmente e proclamar Vossa Magestade como rei dos portuguezes.

A cidade oprimida secundará o nosso grilo e será o que Deus quiser, que ha de querer a nossa victoria e o anniquilamento dos hespanhoes.

- Confiaes em Lisboa?

-- Confio na miseria e na desgraça que por lá vão. Confio no odio aos vencedores, no despeito dos illudidos, nos fidalgos empobrecidos, nos soldados não pagos e ainda na lealdade de alguns grandes que se não venderam.

-- E, tendes, dissestes, um dia e hora para entrardes?

-- O dia de S. João. pelas nove horas da noite.

-- Porque será em tal dia e a tal hora?

-- Porque, n'essa noite, a cidade está em fésta. Grande parte dos moradores estará fóra de portas, pelas hortas dos arredores.

Toda a gente entra e sae, em grupos, em descante, sem ser notada.

É occasião de entrar de roldão, chegar ao Terreiro, invadir o Paço, no meio do descuido geral, desarmar a guarda surprehendida.

Toda a gente anda pelas ruas, mais facil é arrastal-a. A multidão é cega, vae para onde a mandam.

Ao grito «Á morte o archi-duque!» «Morram os hespanhoes!» ninguem deixará de seguir-nos. Se Lisboa se levantar em peso, como é de crer, a victoria é nossa. Ha de levantar-se ha de ser!

Rei de Lisboa, sereis rei de Portugal em poucos dias, ou ai dos que se oppuzerem!

Pedro Affonso, dizia essas palavras, com uma convicção funda e o quer que fosse de selvagem no olhar e nos gestos.

O titulo transformara-o, de subito, vincando-lhe o temperamento.

Já de si brusco, tornava-o rude, despotico.

Elle proprio sentia, em si, um desejo de impor, de mandar, de exterminar tudo e todos que não fossem por elle. Era o patriotismo primeiro; era agora a vaidade, a ambição, a turgir-lhe o cerebro, a dilatar-lhe o coração para o dominio, para o poder, para as grandezas do mundo. O sangue plebeu mandava.

Toda a sua alma rude se levantava sequiosa do mando, invencivel na audacia, sem timidez, sem escrupulos.

Era assim que dizia, como se possuísse um grande exercito; ai dos que se oppuzerem! Tinha mil e quinhentos homens e ameaçava. Uma formiga a ameaçar um leão!

Os ouvintes, sugestionados, aprovavam com as cabeças as afirmações do novo marquez.

-- Deus nos ajudará, disse o rei; mas é preciso tornarmo-nos dignos da sua ajuda.

Esse é o vosso plano, marquez e declaro-vos que o acho bom. Vêde agora o meu.

Mandarei ás auctoridades de Torres Vedras, de Mafra e de Cintra que me reconheçam como seu rei, rei de Portugal.

Irão hoje mesmo os officios. Se não quizerem reconhecer...

-- Tira-las-hem-os á forca dos seus logares e poremos as nossas; interrompeu o marquez.

-- Não ha outro remedio, disse o rei.

-- Como poucos dias faltam para o S. João, continuou o rei, hoje mesmo escreverei a D. Diogo de Sousa, o almirante, que nos trouxe a bordo do seu navio coma senha, para por ella ser reconhecido mais tarde, quando voltasse.

O apoio de alguns navios seria d'uma vantagem enorme, da revolta de Lisboa.

-- Seria a victoria, concluiu o marquez, convicto.

-- Creio, absolutamente, que D. Diogo será por mim e como é homem de valor e de honra não duvidará seguir-me.

Não ha duvida, disseram alguns, interrogados pelo olhar do rei.

-- Como a D. Diogo, escreverei a diversos fidalgos, leaes vassalos, que se não venderam nem ás mercês, nem ao ouro hespanhol, a prevenil-os da minha vinda e da minha resolução.

Estas cartas irão hoje. Quem levar a de D. Diogo leva as outras.

-- Esperarei oito dias pelas respostas e, ao nono dia, escreverei ao archiduque Alberto.

-- Ao archiduque? perguntaram duas ou tres vozes, admiradas.

-- Ao archiduque.

-- Que lhe ides dizer, Senhor? perguntou o marquez.

-- Que tendo chegado ao meu reino e resolvido occupar o trono que me pertence, lhe mando que saia de Lisboa com os seus soldados e nos deixe em paz.

-- Não vos obedecerá, observou o marquez. Nem o pôde fazer...

-- Talvez, disse o rei; porque lhe direi que me seguem muitos fidalgos... Elle não sabe a força de que disponho... os hespanhoes vivem n'um perpetuo mêdo. A audacia poderá intimidal-o...

-- Não me parece, replicou o marquez, o cardeal Alberto é valente...

-- E tem uma desvantagem o plano, observou um dos officiaes.

-- Qual é? perguntou D. Sebastião.

-- É de prevenir o archiduque de que se trama a valer contra elle. Prevenir-se-ha... não o surprehenderemos...

-- Não lhe daremos tempo, observou o rei; porque atraz da carta iremos nós logo e augmentará o seu receio a rapidez da revolta. Pode ser até, um elemento de victoria se se estabelecer o panico.

Concordaram com a opinião do rei.

No mesmo dia em que fôr a carta para o duque os nossos correios levarão por todo o paiz a proclamação á guerra e nós partiremos para Lisboa, acrescentou D. Sebastião.

Ninguem discordou.

O plano era tão bom e tão mau como tantos outros. Dada a loucura dos revoltosos era, para elles, uma maravilha de logica e de simplicidade.

A victoria ou a derrota é que qualificam as acções.

As loucuras quando vencem são heroicidades; o mundo está cheio de milhares de exemplos.

Aceitado, pois, o plano por todos os do conselho, foi o secretario encarregado de copiar as proclamações, porque as cartas, essas, começou el-rei a escrevel-as com seu proprio punho.

Pela tarde, um correio partia para Lisboa n'um possante cavallo, n'um trote rasgado.

Tinham-se passado oito dias depois da expedição das cartas a D. Diogo de Sousa e a diversos fidalgos.

Nenhum respondera.

O almirante não "tinha que responder, porque era mentira a tal senha dada pelo rei, rei que nem trouxera a bordo, nem falso nem verdadeiro.

Matheus Alvares tinha d'estas espertezas para convencer algum menos credulo de que era, indiscutivelmente, o rei.

Como não seria assim, se elle conhecia os fidalgos, se elle tinha dado uma senha ao almirante, ao desembarcar?

Não respondia o almirante, não respondiam os fidalgos? O primeiro seria um traidor; os segundos pessoas cautelosas; ou todos elles creaturas reflctidas e prudentes, que, ao facto das cousas, esperassem, em segredo, os acontecimentos e entrassem n'elles, em occasião opportuna.

Eram estas as reflexões que se faziam nos Paços da Ericeira, emqtianto se resolvia que se enviasse a carta ao archiduque e as proclamações pelo paiz.

Nem o texto da carta nem o das proclamações chegaram até nós.

Da carta diz se que era, não podia deixar de ser, cheia de ousadias, grosseira. Dizia ao archi-duque: saia e já!

Das proclamações sabe-se que incitavam á revolta o povo, que o mandavam levantar-se como um só homem, no dia em que soubesse que Lisboa se tinha revoltado e aclamado o seu verdadeiro rei, D. Sebastião.

Uma d'estas proclamações chegou a Coimbra ás mãos do padre Leão Henriques, da Companhia de Jesus, antigo confessor do cardeal Rei, que a mandou a Miguel de Moura secretario de Estado.

Este Miguel de Moura, que fôra mettido no paço de D. João III, pelo conde da Castanheira, era de familia nobre.

Na morte de D. João III, a quem servira a contento, conseguiu alcançar as boas graças da rainha viuva D. Catharina, que o fez seu secretario de

estado e escrivão da puridade. Foi, depois, grande valido do cardeal rei e depois de Filippe II.

Era de caracter tão doble e de tal modo astuto que, havendo tres partidos, (antes do dominio hespanhol) se dizia:

«Uns são da rainha, outros do cardeal, outros do rei e Miguel de Moura é de todos!»

Ferrenho parcial de Filippe, como era odiado, era servil.

Correu, logo, com a proclamação ao archiduque.

Leram-na, com certo espanto; mas sem lhe verem perigo algum.

Chamado Diogo da Fonseca, o nosso conhecido corregedor, resolvea-se que era preciso mandar á Ericeira alguem a sindicar da situação.

-- Parece que tornam a incomodar-nos os doidos, disse o Fonseca. Terá de se lhes dar uma lição séria. D'esta vez, se lá vou, não lhes ha-de esquecer, tão depressa, a visita.

Ordenou-se ao corregedor de Torres Vedras que fosse imediatamente á Ericeira, que puzesse tudo na ordem, se pudesse; e, se não pudesse que mandasse aviso do que lá se passava, sem a menor de moía.

O corregedor de Torres Vedras, mal que recebeu a ordem, avisou o seu escrivão e partiu com elle para a Ericeira.

A meio do caminho encontrou-se com dois homens a cavallo.

Um d'elles era o Antonio Simões um dos mais fervorosos adeptos de D. Sebastião e que, além de proprietario, tinha em Lisboa um logar de escrivão nos armazéns.

O escrivão levava a carta rio rei para o archi-duque.

Ia a Lisboa para lh'a fazer chegar ás mãos.

Quando iam a passar uns pelos outros, o Simões cumprimentou o corregedor, que parou a mula.

-- Para Torres Vedras, sr. Antonio Simões?

-- É como diz, senhor corregedor, e depois, por Alemquer, até Lisboa. Vossa mercê vae até á Ericeira ou até Mafra?

-- Até á Ericeira.

-- Parece-me que vae preocupado... alguma diligencia?

-- O sr. Simões é que me pôde informar... parece que torna a levantar-se o povo pelo tal rei... mandam-me que me informe... alguma cousa ha, séria?

Eu lhe digo, senhor corregedor, aquillo lá não está bom... sobretudo para os que se opõem á subida do rei. Não me parece que faça bem em aparecer lá, como auctoridade.

Nenhum de nós lhe faria mal... mas o povo está excitado e já tem feito das suas...

-- Tenho de ir... sou obrigado pelo meu cargo,

-- O senhor o diz e lá sabe o que tem a fazer.

Eu, no seu caso não ia... Já ha de ter recebido a intimação de reconhecer o novo rei...

-- Isso são brincadeiras, disse o corregedor, sorrindo-se.

-- Serão; mas isso quer dizer que o não reconhecerão lá como corregedor... e...

-- Hão-de reconhecer, replicou o corregedor, com voz energica. Não fui demitido do meu cargo por El-Rei D. Filippe; tenho-o exercido com honra,

hão de respeitar-me...

-- Ou não; observou o Antonio Simões.

-- Ha então grande desordem? perguntou o corregedor.

-- Nenhuma. Tudo está o mais socegado possivel. É por isso que achava melhor não ir perturbar esse socego.

-- Se o houver, não serei eu quem com elle acabe; mas não me parece que seja grande, porque dá origem a proclamações de guerra, segundo uma carta que recebeu o Exmo. Cardeal Alberto.

-- Recebeu? perguntou o Simões.

-- É como me informaram.

-- Pois não era para elle, disse, rindo, o Antonio Simões; isso foi dedicação de algum patriota. Sua Ex.ª tem direito a carta fechada... e de sellos pendentes.

Picando de esporas, levou a mão ao chapeu, em ligeiro cumprimento e abalou, seguido pelo companheiro.

O corregedor ia murmurando: és dos bons. Parece-me que te andas a metter em camisa de onze varas e que d ella não sahes.

Depois, voltando-se para o escrivão dizia-lhe:

-- Veja você que doidice de gente! O que lhes havia de entrar nas cabeças. Pessoas que passavam por gente de juizo!

Está tudo doido! Agora, chegam á ousadia de fazerem proclamações revolucionarias. E, mandal-as para Lisboa!

-- Mas em que se fia esta geirte? perguntava o escrivão.

-- Eu sei lá, homem. Ensandeceram todos! Olhe que isto de aparecer o rei de Portugal, cinco annos depois de morto, num buraco das rochas da Ericeira, vestido de frade, a clamar que é D. Sebastião e acreditarem-no!

-- Então o Pedro Affonso não lhe deu a filha?

-- Isso pode ser esperteza; mas é fraca; tem-lhe custado os olhos da cara e se lhe não custar a cabeça não será mau:

-- Acreditará elle que é o rei, o genro?

-- Parece que sim: senão que ganhava com o casamento! Depois-. Sei lá!

-- Ó senhor corregedor, disse o escrivão, depois de um momento de silencio, em que iam andando, e se fosse o demonio que o tal eremita fosse o rei?

-- Qual rei, homem?

-- O D. Sebastião.

-- Ahi está você, tambem, a toleimar.

O escrivão era homem de considerações politicas firmes. Era por D. Filippe.

Não podia, sequer, admittir a hypothese da existencia do rei, quanto mais de que, vivendo, fosse encafurnar-se nas ribas do mar da Ericeira.

-- O que eu lhe digo, observou elle ao escrivão, é que o caso me parece agora mais serio do que da outra vez.

-- Deve ser, por causa dos manifestos.

-- Refinaram na asneira. Veja você se tem pés ou cabeça querer amotinar o paiz com as pretenções de um doido!

-- Deve ser doido o tal rei.

-- Não lhe reste duvida. Tão rei como o de Penamacôr, que o anno passado esperneou no campo de Santa Anna.

Vamos a vêr o estado em que as cousas estão.

Declaro-lhe que levo pouca paciência para aturar bêbedos. Trago ordens positivas: os cabeças do motim autoados e presos.

Se não concordarem, cá virá o Diogo da Fonseca outra vez; e, olhe que se elle volta, a cousa não se passa tão singelamente como da primeira vez.

-- Muito me admirei eu -- disse o escrivão -- da paciência d'elle quando cá veio. Sim, que elle não é de branduras.

-- Branduras?... tem a alma de um cão damnado.

-- Tem essa fama.

-- E é justa. Quantos não tem elle feito enforcar, em Lisboa?

-- Muitos, hein?

-- Centos.

-- Também o não louvo por isso.

-- Ora, adeus. O reino não pôde estar á mercê de desordeiros.

-- Nem todos se conformam com o estado em que vivemos. Nem todos gostam de D. Filippe -- observou o escrivão.

-- Que gostem. Quem é o rei? Não o foi e é por seu direito? Não são mais patriotas do que eu.

Patriota! Mas patriota é o marquez de Villa Real, D. Jorge de Noronha, D. Pedro de Menezes, D. Antonio de Castro, senhor de Cascaes, D. Diogo e D. Fernando de Castro, D. Ruy Lourenço de Tavora, Bernardo de Tavora, D. Jorge de Athayde, Pedro de Alcaçova Carneiro, a duqneza de Aveiro, a condessa da Vidigueira, offerecendo a D. Filippe as suas casas e bens, D. Catharina de Athayde offerecendo os filhos, como D. Catharina de Tavora e tantas outras e outros que me não lembram e são por D. Filippe. Ora, ora... Patriotas!

Toda a gente, a melhor do paiz, estima menos a sua prosperidade do que uns valdevinos que esperam pelo prior do Crato, ou uns malucos que esperam por D. Sebastião?

É preciso ordem, meu amigo, é preciso ordem.

-- Não ha duvida, concordava o escrivão, complacente.

-- Sem ordem não ha commercio, não ha dinheiro, não ha nada; e o corregedor como que animado pelas proprias e sublimes palavras, sentindo-se uma força, mantenedora da ordem, n'um impeto de coragem mal contida, meteu as rozetas das esporas pela barriga da mula, que de passo entrou em chouto.

Choutando, a Ordem approximava-se da Ericeira.

Cousa alguma perturbára o idilio real nos dias decorridos desde o casamento. Plena lua de mel, nos paços de D. Sebastião e de D. Marianna, primeiros. El-Rei, em familia, perdia toda a gravidade e aprumo officiaes e era um bom rapaz, amigo da mulher, amavel e democratico com os seus intimos.

Trabalhava muito. O dia inteiro passava-o a escrever cartas, a receber um ou outro correio que chegava, a discutir com o sogro Marquez negocios de estado: futuros decretos, leis, planos de administração.

Logo ao romper da manhã, estava a pé e assistia ás manobras que o seu regimento executava, ás ordens de um antigo capitão de Africa. Almoçava frugalmente.

D'alli até ao jantar tomavam-no os trabalhos de secretaria. Jantava. Depois de jantar, até alta noite, discutia as probabilidades do bom exito. Citava aflhesões chegadas de fidalgos que queriam conservar-se na sombra; mas que secundariam o seu plano. Repetia a forma de proceder, o tempo da marcha até Lisboa, como devia ser feita, a entrada por Alcantara, o ataque ao paço.

E, influia-se, exaltava-se, a ponto de impressionar os que o ouviam pela vivacidade, pela convicção de uma victoria certa.

A audacia entrava no espirito dos ouvintes; começavam a crêr-se predestinados, como o rei, para uma jornada gloriosa, ao fim da qual haviam de encontrar os braços d'um povo inteiro a levanta-los, livre, agradecido, generoso, pasmado!

A approximação do grande dia tornava o rei nervoso.

Havia, realmente, em Matheus Alvares, enormes faculdades de trabalho.

Nunca estava parado em todo o dia, escrevendo, recebendo emissarios, enviando outros; conferenciaando com o conselho; distribuindo cargos e mercês; despachando pretenções, governando, emfim.

A Ericeira tinha um movimento desusado de cavalleiros e de peões, o que lhe dava o ar de uma pequena cidade.

Nas proximidades do paço, uma multidão enorme ondeava sempre; marujos, mendigos, populares, soldados, mulheres e creanças.

Havia barracas armadas pela rua principal e pela ladeira ingreme que dava para a praia, vendiam-se peixe, fructas, vinho.

Era um acampamento e era uma feira.

Foi preciso policiar a terra. Por vezes havia rixas, desordens sérias.

As poucas pessoas que não seguiam o rei, tinham abandonado as casas e sahido para outras terras, porque o menos que lhes podia succeder era serem espancados.

Os soldados não se continham na sua furia patriotica. Ouem não fosse por elles tinha de lhes acceitar os argumentos; argumentos de peso, por que lhe entravam pela pelle.

O commandante era o primeiro a dar o exemplo.

O Marquez tornara-se intransigente, cruel, contra todos os que não commungassem nas suas ideias.

Muitas quintas dos arredores, cujos donos tinham fugido á furia dos libertadores, tinham sido assaltadas e saqueadas.

Os celeiros tinham ficado vasios, as capoeiras desertas.

Os soldados, alguns, antigos ladrões, certos da impunidade, assolavam os casaes, assaltavam nas estradas.

O aspero Marquez já começava a não ter mão nos subordinados e foi-lhe preciso mandar varejar alguns.

-- Da primeira vez cincoenta varadas; á segunda enforco-o, seja quem fôr que me desobedeça.

Este aviso salutar, que todos sabiam que seria cumprido, á risca, teve mão em mais graves excessos que a liberdade excessiva tornava imminentes.

Se cohibiu os desmandos não afrouxou os sentimentos de destruição e de vingança que se ocultam, sempre, nas classes baixas, perseguidas, mal tratadas, espoliadas, e que irrompe, fatalmente, quando lhes chega um momento de poder.

Esses eram a alma d'aquella multidão, cuja maioria era composta de vadios, de mandriões, de salteadores de estrada, de miseraveis. A consciencia da força é, sempre, um núcleo de tyrania, ainda nos caracteres mais altos. É da natureza humana, da natureza animal, o desejo do, mando, o orgulho de ser obedecido, a imposição da vontade e da opinião.

Só os grandes espiritos, os indivíduos superiores e sãos teem em si proprios a faculdade de dominar os instinctos baixos da animalidade.

Só nas suas mãos a força pôde ser um bem.

Nos espiritos fracos, nas multidões indomadas, a força é forçosamente uma causa, fatal, de despotismo e de anarchia.

Se houvesse na Ericeira, que não havia, um partido contrario ao do rei, ter-se-hia chegado ao terror.

Mas o estado do espirito que leva até elle, existia no fundo dos organismos d'aquelle corpo de mil cabeças que era a côrte do rei, que era o exercito do rei.

Ninguem se lhe tinha opposto; os dissidentes tinham fugido. Quem ousar affronta-lo, de frente, morrerá.

N'aquella tarde, era já pela tarde, o corregedor e o escrivão começavam a descer a comprida ladeira que, por entre pinhaes, conduzia á povoação.

Tinham notado muito movimento pela estrada.

Alguns homens e rapazes ao ve-los tinham abalado, n'uma carreira louca, em direcção á aldeia,

Já nos conheceram, disse o corregedor para o escrivão; vão levar a nova.

-- E com que pressa.

-- Você não tem notado que a estrada está muito concorrida?

-- E que todos nos olham com caras de poucos amigos, confirmou o escrivão.

Á maneira que se approximavam grupos de individues que estacionavam pela estrada, olhavam-nos provocadoramente, sem respeito, sem os cumprimentarem.

O corregedor começava a sentir-se desconsiderado e, olhando as caras, reconhecia que nunca por ali as tinha visto.

Os fatos, as maneiras dos homens, e a liberdade das mulheres, mostravam-lhe bem que uma população que em nada se parecia com a dos pescadores humildes, assentara por ali os arraiaes. Vinha, de baixo, da villa, um borborinho alto.

-- Isto está muito animado, dizia o corregedor; parece que vamos a approximar-nos de um arraial.

-- É verdade, é verdade, confirmava o escrivão; veja vossa mercê o que lá vae, em baixo, no largo da egreja.

A multidão affluia ao largo, dos caminhos lateraes e pnnha-se a olhar, as cabeças levantadas, para o corregedor e para o companheiro que desciam, lentamente, já intrigados com a recepção.

Uns gaiatos tinham vindo da estrada a gritar:

-- Ahi vem o corregedor! ahi vem o corregedor!

Fôra a voz de alarme.

O corregedor? o que quereria? o que viria fazer?

E tinham corrido, todos, homens, mulheres, ao largo da egreja de S. Pedro, apressados, curiosos.

-- O que quererá de nós? perguntava um.

-- Não vem por bem, não, dizia outro.

-- Pois se não vem por bem, não se irá melhor, replicava com mau ar um terceiro.

O corregedor chegava ao largo. Cumlprimentava, amavelmente, para a direita e para a esquerda, como quem quer captar as attenções. Tirou, por vezes, o chapeu.

Não lhe correspondiam. Um ou outro mais delicado, ou menos contido, dizia com voz rude;

-- Viva lá.

Que diabo vem cá fazer esta azêmola? perguntava uma mulher.

Imaginará, ainda, que manda, aqui, alguma cousa?! exclamava um rapagão de capacete e espada.

-- Pois vae-se desimaginar, não tarda, confirmava a mesma mulher alta e espadauda que perguntara, primeiro, o fim da visita.

O corregedor parara a meio do largo e do alto da mula inspeccionava o arruamento das barracas, o tumultuar da multidão, aciuella vida, aquelle movimento estranho e sentia que tinha que deslindar um caso grave.

Como visse, numa casa alta, a duzentos metros da egreia um soldado de arma ao hombro, passeando, perguntou:

-- Que guarda é aquella?

-- A do rei! respondeu-lhe rapida e insolentemente uma mulher.

-- Qual rei? tornou a inquirir o corregedor.

-- O rei de Portugal, o nosso.

-- O nosso, o rei de Portugal; disseram muitas vozes.

-- E, o vosso tambem, gritaram alguns.

O corregedor conteve-se, para não lhes dizer algum insulto.

A expressão dos rostos que o fitavam não era muito propria para animar uma reprehensão. O corregedor percebeu, n'um momento, a situação grave.

-- Bem, bem, amigos, disse elle, com um riso amarello, será como dizeis; e, picando a mula dirigiu-se a casa do alcaide, a sessenta passos à frente.

Este estava á porta e quando o corregedor chegou levou a mão ao barrete.

-- Tenha Vossa Mercê, muito boas tardes.

-- Preciso falar-vos, senhor alcaide.

-- Ás ordens de Vossa Mercê.

-- Mandae primeiro affastar esta gente que me segue e me está cercando Dispenso guarda de honra.

-- Sinto dizer a Vossa Mercê que me não obedecerão e que é portanto inutil manda-los embora.

-- Não vos obedecerão?

-- Não, senhor corregedor. Não mando aqui nada.

-- Não sois o alcaide? quem vos tirou o logar?

-- El-Rei D. Sebastião.

O corregedor ia a largar uma d'estas phrases decisivas e curtas que são para a raiva a mais segura valvula, quando um ruido maior se ouviu do lado da egreja e o fez voltar a cabeça.

Vestido de general, mais ou menos na ordem militar d'aquelle tempo, vinha para elle, seguido de uma turbamulta, barulhenta, o commandante das tropas, o marquez de Torres Vedras e senhor de Cascaes, o muito altivo Pedro Affonso.

Ao corregedor custou a reconhecê-lo.

Homem habil, comprehendeu que era com aquelle chefe que tinha que haver-se para resolver o problema. Com a multidão não se fala, ordena-se.

Voltou a cabeça da mula para o lado de Pedro Affonso que se approximou, cortejando.

-- Constou-me da vossa vinda, senhor corregedor, e vim saber o que querieis de nós, em que vos podemos ser uteis.

-- Senhor Pedro Affonso, respondeu o corregedor, venho mandado por via de Lisboa saber se eram verdadeiros os boatos que ali chegaram de que lavrava grande desordem n'esta terra.

-- Como vedes, disse rindo o marquez, não ha desordens.

-- Desordens não ha; mas não ha ordem. Todo o meu desejo, senhor Pedro Affonso é de conseguir a paz d'este districto, de acalmar paixões, de evitar desgostos e desgraças.

-- Tendes um bom coração, casquinou Pedro Affonso, por entre os murmurios da multidão.

-- Senhor Pedro Affonso, continuou gravemente o corregedor, sempre vos conheci como um homem de bem, um homem de razão.

Não tenho contra vós o menor resentimento, ou a menor má vontade. Nem contra vós, nem contra ninguem. Vejo, com desprazer, que a pequena e socegada villa da Ericeira é hoje um arraial tumultuoso. Depende de vós o fazer voltar as cousas ao antigo estado. Tendes valor para isso, peço-vos que o façaes... aliás...

-- Aliás? perguntou Pedro Affonso, altivamente.

-- Eu serei obrigado a informar da verdade o corregedor da côrte, D. Diogo da Fonseca, e lavo as mãos do mal que d'ahi nossa vir.

-- Fóra! fóra! gritaram alguns de entre a turba.

-- Silencio! impôz Pedro Affonso. Vossa Mercê começa por saber que, como auctoridade, não tem aqui a menor voz, porque lhe não reconhecemos o cargo. Deve ter recebido um officio de el-rei, mandando-lhe, ou prestar vassalagem, ou demittir-se. Vossa Mercê não respondeu, logo demittiu-se.

-- Só me póde demitir quem me investiu...

-- Perdão, replicou asperamente Pedro Affonso, isso seria assim se nós não mandássemos nas nossas comarcas, nós, sós. Aqui, quem manda é o rei verdadeiro de Portugal, é a quem se obedece e a nenhum outro. A multidão applaudia.

O corregedor sentia-se dominado por uma raiva intima que o affogava. Continha-se a custo.

-- Se Vossa Mercê quer estar entre nós, como outro qualquer, respeitando as nossas opiniões e direitos, esteja a seu gosto; como auctoridade de um usurpador infame, não lh'o consentiremos.

-- Não, nunca! clamava a turba. Fóra! fóra!

-- Estou aqui no direito que me assiste e cumprindo o meu dever, exclamou, já fôra de si, o corregedor. Estaes fôra da razão, estaes fóra da lei, estaes allucinados!

-- Já vos disse que não tendes aqui direitos, nem deveres a cumprir. Não sois ninguem, a não ser um miseravel, como tantos outros, que viveis do sangue dos povos, da escravidão da vossa terra, da miseria geral.

Pedro Affonso sentia levantar-se-lhe dentro do peito todo o orgulho de plebeu que póde insultar, face a face, á vista dos seus, um poder até ali respeitado e temido.

-- Senhor Pedro Affonso, replicou, com colera, o corregedor, porque ousaes insultar-me? Quem vos deu esse direito?

-- Porque m'o viestes aqui fazer primeiro.

-- Quem vos insultou? eu? Porque vos disse que estáveis fóra da razão e da lei? Pois que é isto? Que gentes são estas? que modos tendes para mim? Que é que fazeis, armados, rebeldes aos pedidos, ás ordens, que tendes o dever de acatar?

Devia ordenar e peço, e dizeis que vos insulto?

-- Pedieis, ameaçando. Não vos tolero ameaças e de mais vos tenho ouvido.

-- Lembrei-vos que o meu dever era participar para a côrte o que se passava. Não ameacei; observei, preveni.

Havia já um grande rumor de vozes da multidão que mal deixava ouvir o alcaide.

-- E, porque o participareis para Lisboa? perguntou quasi voltando-lhe as costas Pedro Affonso.

-- Por dever.

-- O dever dos traidores, dos vendidos, replicou Pedro Affonso.

-- Obedecendo ao rei de Portugal; vós aquém obedeceis?

-- Áquelle, exclamou Pedro Affonso, apontando com o dedo, ao longe, para uma janella do paço, d'onde o rei e a rainha olhavam para o ajuntamento.

Áquelle a quem vós haveis de ir saudar como o vosso rei.

-- Eu? perguntou o corregedor erguendo-se na sela.

-- Vós!

-- Nunca!

-- Ha-de ir! Ha-de ir! rugiu a turba.

O corregedor era homem valente. Sentiu que desafiava a morte com a recusa; mas de velha tempera levou a mão á espada e exclamou:

-- Quem me obrigará? Vós senhor general Pedro Affonso?

-- Dizei marquez? dizei marquez, gritaram mulheres furiosas.

-- Marquez de que?

-- De Torres Vedras! de Torres Vedras!

Como se apertasse contra o corregedor a turba furiosa e alguns lhe lançassem mão ás redeas, o escrivão atirou com a montada para a frente, atropelando corpos e gritando:

-- Arreda, canalha!

N'um momento atiraram-no ao chão.

-- Trazei-os. dissera Pedro Affonso aos que o cercavam.

-- A terra! a terra! gritaram de todos os lados.

Precipitaram-se sobre elles, derrubaram-nos das sellas e aos encontrões, aos murros, levaram os dois em trote pela rua, direitos ao paço.

Tinham-lhes tirado as espadas, puxando-as; rasgaram-lhes os fatos.

-- Viva o rei! viva o rei! gritava a turba.

Tropeçavam pela calçada entre gargalhadas, arrastados.

As mulheres diziam-lhes insultos, chufas reles.

-- Olha o escrivão como vae branco... cuspam-lhe na cara; dizia uma.

-- É ver-lhe as ceroulas, dizia outra.

-- Eh! hespanhoes de má morte, vão vêr o seu rei.

Como levavam as cabeças baixas, exclamaram:

-- Levantem-lhe as ventas

Por vezes o corregedor tinha um momento de colera e fincava os pés no chão, contorcia-se raivoso e alguns cabiam. A lucta era inutil; vinte mãos o sujeitavam pelos hombros, pelo pescoço, pelos braços e repelões mais fortes o levavam para deante. Pararam em frente do paço, no meio de redemoinhos de gente.

Em cima, á janella, o rei estava sereno; a rainha Marianna, ao lado, pallida, nem se movia.

-- Tirem os chapéus. Vá... Viva o rei! impunha a turba.

Nem um nem outro se moveu, de olhos fitos no chão. Era o orgulho humano ferido, o sentimento da dignidade invencivel, reagindo contra a força bruta, a tyrannia do numero.

Não victoriariam o falso rei, não o saudariam e... não o saudaram!

-- Dizei, vá, viva o rei! gritavam-lhes perto da cara bôccas avinhadas, negras.

-- Rei de quê? perguntou o corregedor, circumvagando o olhar desvairado de fera engaiolada e batida, rei de quê?

-- De Portugal! Rei de Portugal!

-- Rei de bêbedos e de doidos! exclamou o corregedor, provocantemente, levantando a cabeça, como se este desabafo lhe desse ousadia.

-- Traidor! Morra o traidor!

-- Infame!

-- Vendido! Hespanhol!

-- Dizeis bem; que vos não pôde enforcar a todos, raça de vadios e de malandros!

A vós e ao vosso capitão de ladrões, ao vosso rei de trampa!

Alguém o fará, alguem o fará!

Desafiava com o olhar incendiado e louco.

-- Á morte! á morte! gritavam de todos os lados, erguendo os braços, n'uma convulsão de ferocidade, homens e mulheres.

Alguns batiam-lhe, soccavam-no. Tinha sangue na cara.

A rainha Marianna, cada vez mais pallida, encostou-se, prestes a desmaiar, ao hombro de D. Sebastião.

Passou-lhe o rei o braço pela cinta, fazendo á multidão um gesto como de quem mandava que se afastasse e levou-a para dentro.

Por um momento, Pedro Affonso teve o desejo de livrar o corregedor e o escrivão das mãos da populaça, da morte inevitavel.

Falou, gritou: eh! parem! eh! gente! mas ninguem o ouvia nem via já.

A onda revolta levava no seu dorso humano os corpos amarfanhados do corregedor e do escrivão, como cousas sem peso.

Uma voz tinha gritado:

-- Ao mar! atirem-nos ao mar!

Então, já, como n'um pesadelo, os dois homens deviam ter-se sentido amarrados por uma força, feita de mil forças, que os impellia sobre as rochas, pelos hombros, pelos rins, pelas pernas.

Por vezes não tocavam no chão.

Era uma suave tarde de junho; o ar era claro, o pôr do sol cobria com uma ligeira côr de rosa os homens e as cousas. Que contraste!

Entre gritos selvagens, o grupo sanguinario chegou á beira do precipicio, no fundo do qual, cem braças abaixo, o mar espadanava entre as rochas negras, gemedor e convulso.

-- Ao mar! ao mar! Ao mar, o corregedor maldito! ao mar o escrivão lacaio! Era como um rugir de feras.

Um corpo de homem apareceu sobre as cabeças, depois um outro; descreveram uma curva ligeira no ar, voltearam como grandes farrapos, mergulharam a fundo e partindo-se pelas arestas das pedras, summiram-se entre os flocos de espuma, nos recessos tenebrosos da agua verde negra!

Um grito estranho, de centos de boccas, festejou o desaparecimento dos miseros.

Uma alegria bestial lhes innundou as faces, emqaanto que o sol, como envergonhado, mergulhava na orla do horizonte a cabeça monstruosa e rubra.

No paço, o marquez de Torres Vedras e o rei, tinham seguido de uma janella posterior, o desenlace da tragedia.

-- Deviamos, talvez, ter tentado, dizia o rei, salvar o corregedor.

-- Para quê? observava o marquez; é um exemplo. Quem o mandou cá vir?

A carta ao Archiduque

Tinham-se passado dois dias. Ao segundo, parece que no dia da Ascenção, ou em domingo proximo, o archiduque cardeal Alberto, fôra á Sé ouvir missa.

Naturalmente á Sé, que era onde costumavam ir os reis quando não as ouviam nas capellas particulares dos paços.

Como era natural, á porta da velha egreja accumulava-se muita gente para ver sahir o archiduque e a comitiva.

O archiduque era um rapaz novo e de certo modo sympathico, porque gozava fama e parece que merecida, de bondoso.

O que fazia, as mortes e prisões que determinava eram-lhe exigidas pela solicitude das auctoridades, mais filippinas do que elle proprio.

Sahia, pois o, vice-rei da egreja, rodeado dos seus e conversando amavelmente, quando um rapazito de dez annos, de face innocente, bem vestido, se approximou resolutamente do archiduque, cortejou e lhe apresentou um papel com sellos pendentes.

Olharam todos com curiosidade o pequeno e o archiduque achando graça ao desembaraço com que andava para elle e dissera:

-- Para o senhor archiduque, estendendo o rolo de papel.

Como visse os sellos pendentes, perguntou:

-- O que é isto?

-- Uma carta que me mandaram entregar a Vossa Excellencia.

-- Quem?

-- Quem? perguntou solicito o archiduque.

-- El-Rei D. Sebastião! respondeu a creança, o mais naturalmente possivel. A resposta causou espanto geral.

-- Quem? Tornou a perguntar o archiduque, como se não tivesse ouvido bem.

-- El-Rei D. Sebastião! respondeu de novo o pequeno.

-- Onde está esse rei? perguntou de novo o archiduque, mas já com o rosto sério.

-- Na Ericeira, disse o rapaz.

-- Foi elle, quem te mandou?

-- Foi meu pae, a quem o rei deu a carta para que vos fosse entregue.

-- Quem é teu pae?

-- Antonio Simões.

-- Que officio tem?

-- É escrivão dos armazens de Lisboa.

Bem, disse o archiduque, está entregue.

Voltando-se para os que o rodeavam, disse:

-- Tragam o pequeno, veremos qual resposta tenho a dar. É curioso. Antonio Simões que entre a multidão seguia as peripécias do caso começou a andar atraz do Archiduque, com muitos, que se dirigia ao paço da Ribeira, que era no Terreiro do Paço.

O archiduque chegado aos seus aposentos, mandou a um dos secretarios particulares que lesse a carta.

Nenhum cronista, ou historiador nos deixou a letra da epistola, o que seria um documento curioso.

Dizem o que lhes constou que era a carta, que pouco mais ou menos dizia:

«Que elle, Rei D. Sebastião, tendo sahido da batalha de Alcacer-Kibir a cavallo, fôra á Terra Santa, em penitencia.

Que voltara a Portugal onde se conservara escondido até lhe parecer proprio o momento de se dar a conhecer.

Que assim fizera e que tendo sido reconhecido e acclamado rei pelo povo de Torres Vedras e Mafra, ia seguir para Lisboa, depois de ter prevenido todo o paiz para que se levantasse n'esse dia em peso.

Que estava certo de que a sua marcha até á capital determinaria a perda do governo usurpador de Filippe II, detestado pelo povo, réu dos maiores crimes.

Que para evitar combates sanguinolentos e luctas inuteis, o intimava a que abandonasse imediatamente a capital e embarcasse elle e todos os seus para Hespanha.

Que a sua cabeça e a dos seus ministros respondiam pela desobediencia à sua ordem».

A carta era datada do paço da Ericeira, com armas e sellos reaes.

Como viviam n'um sobresalto continuo, o cardeal archiduque e os seus, ainda que quizessem não ligar importancia á carta, tomal-a como gracejo de mau gosto, ou acto de louco, não puderam.

Demais, tinham chegado as noticias do casamento na Ericeira, dos homens armados que lá se agruparam; e, todos estes boatos de cuja importancia, os que os não presenceiam não fazem ideia perfeita, levaram ao espirito do vice-rei de Portugal uma apprehenção justa.

Mandou chamar o pequeno o Diogo da Fonseca.

A creança entrou com o mais candido ar, sem um ligeiro gesto de receio, o rosto satisfeito.

-- Anda, aqui, disse o archiduque, chamando-o para junto d'elle. Dize lá meu rapaz... Escrivão tome nota.

O pequeno approximou-se, confiadamente.

-- Teu pae foi quem te mandou entregar-me esta carta?

-- Sim, meu senhor.

-- Chama-se, como?

-- Antonio Simões...

-- Escrivão dos armazens?

-- Sim, meu senhor.

-- Quem lhe deu a carta?

-- El-rei D. Sebastião, que está na Ericeira.

-- A fazer o quê?

-- A juntar tropas para vir tomar Lisboa.

O cardeal archiduque teve vontade de rir pela ingenuidade da resposta.

-- Tem muita gente o teu rei?

-- Não sei, meu senhor, é o que ouço dizer a meu pae!

-- Teu pae é então um amigo d'elle?

-- É muito... e minha mãe tambem...

-- E, tu? perguntou, a sorrir, o archiduque.

-- Eu? tambem sou, meu senhor... se me pae e minha mãe são amigos d'elle...

-- Tens razão, és logico, disse com ar risonho o archiduque. E... dize-me, não és meu amigo?

O pequeno olhou para o archiduque, que o fitava sorrindo e, hesitando um pouco, respondeu: se for meu amigo tambem.

Das respostas da creança, da sua maneira de falar, via-se, claramente, a inutilidade do interrogatorio.

Tinham aproveitado a ingenuidade dos dez annos para o encarregarem de uma missão de cuja gravidade a pobre creança não tinha a minima noção.

Não havia n'elle sombra de um criminoso.

Era uma creança de dez annos; nada mais. Nenhuma responsabilidade lhe competia nas audaciosas e irrespeitosas expressões da carta.

-- Bem, disse o Archiduque para os que o cercavam, é inutil continuar a perguntar.

-- Tambem me parece, disse um dos consultados.

-- Estou entregue da carta... esperemos Diogo da Fonseca, que não póde tardar para vêr o que ha a fazer.

-- Quanto a ti, disse, voltando-se para o pequeno, podes ir-te embora; mas diz a teu pae, para seu governo, que lhe fica o nome assente e que se acautele. Já vês que sou teu amigo, porque aviso teu pae.

-- Sim, meu senhor.

-- Vae-te embora, levem-no; ordenou a um oficial.

N'isto, entrava esbaforido o corregedor Diogo da Fonseca.

-- Vindes cançado... sentae-vos disse-lhe o Archiduque e descançae um pouco.

-- Tenho que falar-vos...

-- Sim; mas lêde primeiro esta carta, que me trouxe aquelle rapazito. Podem leval-o, repetiu. O oficial conduziu o pequeno.

-- Quem é elle? perguntou o Diogo.

-- Um filho de Antonio Simões.

-- Ah! é? pois é... perdão... e começou a lêr ¦com rapidez a carta aberta contra a luz da janella.

Mal a acabou, chegou-se ao archiduque, nervosamente:

-- Não me admira a carta... ha peor, ha peor...

-- Pois que ha?

-- O corregedor de Torres Novas, que mandamos para sindicar do que se passava na Ericeira, sobre o tal casamento, os taes revoltosos, foi lá ante-hontem. Foi com o escrivão...

-- E, então?

-- Mataram-nos!

-- Mataram-nos?

-- A ambos! Insultaram-nos, bateram-lhes e atiraram-nos ao mar!

-- Como sabeis isso?

-- Uma carta que recebi, hoje, do juiz da côrte o dr. Gaspar Pereira que está na quinta ao pé de Mafra e que me conta tudo o que aconteceu. Aquillo lá está serio e é preciso remedio urgente.

O rosto dos ouvintes, de todos, denotaram uma certa preocupação, tornando-se graves.

-- O homem, o tal rei, continuou o corregedor, casou com a filha de Pedro Affonso, a quem fez Marquez de Torrres Vedras e conde de Monsanto, montou casa, como paço, com côrte e guarda e tem ás suas ordens mais de mil homens armados, afóra as populações que estão todas por elle.

Depois das proclamações ao paiz, faltava-lhe fazer esta, escrevera Vossa Alteza. Ha de será ultima.

-- O que parece, observou o archiduque, é que ha uma resolução tomada e para breve. É preciso intervir immediatamente.

-- Não ha duvida, observou o Diogo. Elles teem um plano e pela maneira porque se estão portando, tudo indica que teem confiança n'elle.

-- Que confiança? perguntou o archiduque; confiança em quê?

-- Na propria loucura, senhor, explicou o Diogo.

-- Senhor corregedor, observou o archiduque, não me parece que tenha gravidade o estado da comarca onde esse homem governa como rei; mas tambem me parece que devia ter havido todo o cuidado em não abandonar, n'uma liberdade ampla, uns poucos rebeldes que da primeira vez fugiram quando lá fostes.

Não é por elles; mas quem sabe se a conspiração cuja cabeça parece estar alli, não tem já espalhados os seus adeptos por todo o paiz, aqui, na capital?

Olhai que ó arrojo mandar-me dizer que saia de Portugal e depressa, ou responderei com a cabeça.

Para loucos só, parece-me muita ousadia.

-- Pois vereis que não ó outra cousa, senhor, e eu me responsabilizo porque, em oito dias, não reste vestigio de possibilidade para uma revolta.

-- Estaes encarregado de o fazer.

-- Tomo essa responsabilidade. Dignae-vos mandar pôr á minha disposição os soldados de que preciso.

-- Quantos imaginaes que serão precisos?

-- Pelas noticias da força dos inimigos... Bastam-me oitocentos homens.

-- Eu mandarei ao Marquez de Santa Cruz que os ponha, desde amanhã, á vossa disposição. N'isto, reparando n'um official que com outro conversava, junto a uma janella, interpellou-o: sr. de Santo Estevam?

-- Alteza?

-- Dizei por mim ao Marquez de Santa Cruz que Diogo da Fonseca precisa de partir amanhã á noite para a Ericeira com oitocentos homens e que mando lh'os tenha prestes.

O capitão Santo Estevam curvou-se.

-- Se quizerdes de mim mais alguma cousa vinde dizer-m'o, disse para o corregedor Diogo da Fonseca o archiduque, depois de dar ordem para lhe servirem o almoço.

-- Creio que será bastante a força, disse este, lembrando-se de como tinham fugido os sebastianistas na primeira vez... . aquillo não é gente de guerra...

-- Sede energico, mandou, sahindo, o archiduque, que não se sentia bem nunca com os boatos e noticias.

-- Descançae, disse o Diogo seguindo-o com a comitiva; hão-de arrepender-se.

Não era, realmente, necessaria a recomendação: o cruel corregedor tinha, de ha muito, alcançado os foros de cão damnado.

Novas proezas

N'aquella noite, alguns mais timidos ou mais sensatos, que não queriam esperar pelas consesequencias dos assassinatos sahiram da Ericeira e foram espalhando, pelos caminhos, a triste nova.

A maré ia crescer.

O dr. Gaspar do Lago, juiz da côrte, o mesmo que, hoje, juiz da Relação, o que mandara o aviso para Lisboa, estava, no dia seguinte, muito socegado da sua vida a gozar o fresco n'um pomar, quando um creado lhe foi dizer que dois homens de cavallaria, armados, o procuravam.

Foi o juiz até ao portão e perguntou-lhes o que queriam.

A resposta foi um d'elles tirar da algibeira um rolo de papel e entregar-lh'o.

O juiz abriu-o e leu-o a fazer grandes tregeitos com a cara.

Era um officio do rei da Ericeira, a intimal-o a declarar-se por elle, ou a sahir, imediatamente, da quinta.

Homem de brios, ferveu-lhe o sangue: mas teve mão em si. Serenou. Olhou para os homens e disse-lhes:

-- Digam lá a quem os mandou que não recebo ordens de ninguem que não tenha auctoridade para m'as dar. De ninguem, ouviram?

-- É essa a resposta? perguntou um dos homens.

-- É esta mesma. Não tenho outra. Os homens olharam-se, a resolverem o que haviam de fazer, até que um d'elles disse:

-- Nós fizemos o nosso dever, o que nos mandaram; o resto é com vossa senhoria.

-- Vão-se em paz; aconselhou o juiz e voltou-lhes as costas.

Os dois dialogavam pela estrada fôra.

-- Está-me a parecer que esta resposta não ha de lá agradar muito ao nosso commandante.

-- Não sei o que dizia a carta; mas pela cara que o homem fez e por dizer que não recebia ordens, alguma coisa o mandaram fazer que elle não quer. Que reconheça o rei...

-- Sim, parece ser isso... e se é...

-- Não lhe querias estar na pelle? Nem eu.

Meia hora depois, quando estavam a dar conta ao marquez Pedro Affonso do resultado da embaixada á quinta do dr. Gaspar, o que parecia exasperar o pouco paciente commandante, apeava-se á porta do paço o nosso Antonio Simões.

Vinha de Lisboa -- e viera depressa -- a contar do sucedido com a mensagem entregue pelo filho e do mais que sabia.

-- Ah! bem vindo, Antonio Simões... tudo correu bem?

-- O melhor possivel.

-- Espera um momento... é presiso mandar prevenir el-rei de que chegaste. Precisarás falar-lhe?

-- Decerto e a ti tambem.

Mandou para dentro o recado por um creado:

Despediu os soldados.

Contou a Antonio Simões que mandara intimar o juiz da côrte para ficar sob a auctoridade do rei ou sahir e a resposta que tivera, acrescentando:

-- Ámanhã vou mandal-o pôr fóra da quinta. Ha de ir para Lisboa, quer queira quer não.

-- Ainda é pouco para o que elle merece, affirmou o Simões.

-- Achas pouco?

Ia o Simões a explicar-se, quando o creado voltou dizendo que el-rei os esperava.

-- Preciso saber isso, ia dizendo o Pedro Afonso.

-- Vaes saber tudo, porque o tenho de dizer a el-rei, já. São cousas graves.

O rei esperava-os n'uma sala particular, só. Depois dos cumprimentos, indagou com interesse:

-- Que aconteceu, meu caro Antonio Simões?

Foi entregue a carta ao archiduque? o que respondeu? que fez elle?

-- Foi entregue pelo meu filho mais novo. O archiduque recebeu a carta, levou o pequeno preso para o palacio, onde o interrogou.

-- Está preso o teu filho? perguntou o rei.

-- Não, meu senhor, soltaram-no. O pequeno respondeu o que sabia.

Como não lhe achassem crime, mandaram-no em paz.

-- Quem foi da lembrança de mandar uma creança?

-- Fui eu, meu senhor, pensei que a inocencia a salvaria, emquanto que outro qualquer que fosse encarregado, não seria solto tão depressa se alguma cousa de peor lhe não acontecesse.

-- O archiduque recebeu a carta; é isso o que se queria; esperemos agora pelo resultado.

-- Não esperaremos muito tempo. A resposta vem a caminho.

-- Quem a traz?

-- Diogo da Fonseca.

-- O corregedor?

-- O corregedor, com soldados seus e duas companhias hespanholas de Calderon e Santo Estevam.

-- É certo? perguntou o marquez Pedro Affonso.

-- Certissimo.

-- Então o archiduque... ousou opôr-se? perguntou o rei de modo que se não percebia se era ingenuidade, ou velhacaria.

-- Então... meu senhor... imaginastes que vos obedecera, logo?

-- Como soubestes isso? perguntou o D. Pedro.

-- Por Gregorio de Mattos, em casa de quem estive escondido.

-- O ourives?

-- Esse. Foi elle que soube e indagou tudo no paço... a vinda da força e a razão porque veio.

-- Pela carta? disse o rei.

-- Pela carta não viria tanta, naturalmente. Diogo da Fonseca traria os seus e não julgaria preciso trazer mais.

-- Então houve outra razão?

-- Parece, disse Antonio Simões, sorrindo ironicamente, que a Ericeira tem estado n'um socego divino.

-- Ah! por causa das mortes...disse o marquez.

-- Já? disse o rei; já se lá sabe?

-- No dia seguinte, sabia-o Diogo da Fonseca e o archiduque.

-- Ha traidores entre nós: exclamou o rei.

-- Ai d'elles! respondeu Pedro Affonso com voz energica.

-- Não foi traidor, porque nunca foi nosso.

-- Sabeis quem foi? perguntou o rei, apressadamente.

-- Quem? disse, ao mesmo tempo, D. Pedro Affonso.

-- O dr. Gaspar Pereira do Lago.

-- É um espião, exclamou com furia o marquez; mas vae pagar-m'o.

-- É um inimigo, pelo menos, observou Antonio Simões; por isso vos dizia, ha pouco, que merecia melhor recompensa, do que a da simples expulsão.

-- Manda-se prender, disse o rei. É talvez melhor.

-- O melhor, observou o rnarquez Pedro, é mandal-o sahir immediatamente. Se sahir tudo fica remediado: se não quizer obedecer, prende-se.

-- Fica a meu cargo; amanhã de manhã, resolverei a questão.

O rei ficara um pouco pensativo.

D'ahi a momentos, perguntou:

-- Qual é a força com que vem Diogo da Fonseca?

-- Oitocentos homens, respondeu o Simões.

Não é nada; observou o commandante Pedro Affonso.

-- É alguma coisa, observou o rei: mas temos gente de sobra, para lhe opor, não é verdade, marquez?

-- Ora essa, meu senhor, hão de sobejar-nos homens.

A rainha Marianna I, esteve triste ao jantar.

O marido contara-lhe o que se passava e a pobre rapariga não podia desviar a imaginação de pensamentos tristes.

Até ali, tudo ia correndo bem. Os subditos eram admiraveis de dedicação; o marido era um exemplo de noivo; honras, cuidados, carinhos não lhe faltavam.

Ninguem viera perturbar a sua subida ao throno. As horas e os dias passavam, serenamente, agradavelmente.

A ideia, porém, de Diogo da Fonseca, a caminho da Ericeira, com os terços hespanhoes, mau grado seu, perturbava-lhe a serenidade, punha-lhe um nó na garganta, um aperto no coração.

O que iria acontecer? Batalhas são batalhas e ninguem pôde prever o que vae dar-se. Se o pae e o marido eram vencidos? O que aconteceria, então?

O rei que tambem não estava perfeitamente socegado, animava a esposa, dando-se ares tranquillos, falando com perfeita segurança.

-- Não tenhas receio, Marianna; aos nossos mil homens juntar-se-hão muitos milhares d'elles. Para o primeiro encontro temos forças sufíicientes, o paiz nos ajudará, no resto.

A Marianna que não queria desanimar o marido, fingia concordar com elle, convencer-se.

Assim correu o jantar até final, enganando-se, ou querendo enganarem-se um ao outro, no fundo, aprehensivos, inquietos.

O general Pedro Affonso mandava avisar para a noite todos os que formavam o conselho de estado.

Chegara o momento critico, era necessario assentar o que havia a fazer e começar decididamente a revolta.

Assim, quando se achavam reunidos, na sala grande do paço, o rei, o valido Pedro Affonso, Antonio Simões, os dois capitães das tropas insurgentes, antigos soldados desertores, o novo corregedor de Torres Vedras, varios alcaides dos arredores, o arcebispo de Lisboa, ex-prior de Rio de Moiro e outros mais senhores da côrte, o rei tomou a palavra e disse:

-- Todos já sabem porque estamos reunidos.

Soube-se em Lisboa da morte do corregedor de Torres Vedras -- o dos hespanhoes -- e Diogo da Fonseca vem contra nós com oitocentos homens armados.

O dia que esperávamos para estar em Lisboa, que era o de S. João, d'aqui a oito dias, não póde ser aproveitado.

Temos de nos apressar em vista da situação! Vejamos o que ha a fazer. Quanto a mim, a primeira cousa é a de reunir as tropas n'um corpo unico, aqui na Ericeira e esperar o inimigo.

Vencido elle, marcharemos para Lisboa, levantando os povos pelo caminho, por Mafra, por Cintra, por onde passarmos.

Sois da minha opinião?

-- Concordo com V. Majestade, disse o Marquez Pedro Affonso.

-- E vós, senhores?

Todos concordaram.

Assim, ficou resolvido que n'essa noite, ainda, partiriam para Torres Vedras os capitães e trariam o forte da tropa que era lá que estava. N'um dia, em dois dias? No menor espaço de tempo possivel.

Na Ericeira estariam todos promptos para partirem logo que chegassem os de Torres Vedras.

Houve, porém, uma observação do Arcebispo de Lisboa.

-- Quem vae a Torres Vedras buscar essa gente? perguntou.

-- Os capitães, respondeu El-Rei.

-- Irei eu tambeni; interrompeu Pedro Affonso percebendo, de subito, qual era o receio do arcebispo.

-- Deveis ir, senhor Marquez; e não só vós como El-Rei tambem.

-- Não será necessario, aventou Pedro Affonso.

-- É indispensavel, retorquiu o prior.

-- Porque o julgais assim, perguntou o Rei?

-- Meu senhor, respondeu o esperto padre, o que se vae fazer não é uma simples conducção de tropas, é mais algnma cousa, é muito mais.

Pelo menos é o que deve ser. Vae levantar-se o grito de revolta em Torres Vedras e é preciso que elle seja ouvido e applaudido por todo o povo, em

peso.

Tendes razão; disseram vozes.

-- Revoltado o povo, a vinda para a Ericeira tem de ser uma marcha de victoria, de acclamações, de applausos, por toda a parte, por onde se venha. Tem de ser asshn, por força, ou ai de nós!

O rei de Portugal, por quem o paiz se revolta, sois vós! Como comprehendeis que possa fazer-se uma marcha triumphal sem que venhaes á frente?

O povo precisa de ver o rei: se o vir seguil o-ha; sem elle, o enthusiasmo de um momento pôde esmorecer n'um momento mais curto ainda.

É preciso que vades a Torres Vedras, que vos mostreis, que faleis ao povo e que o inciteis á lucta, á resistencia.

A vossa presença dar-lhe-ha a fé e a coragem.

A vossa marcha será o rastilho da revolução em todo o Portugal.

Se o não fizerdes, tereis talvez que arrepender-vos, mais tarde. É isto o que me manda dizer a minha amizade e a gratidão que vos devo pelos vossos favores.

-- Dizeis bem, dizeis bem, disseram vozes.

-- Tendes toda a razão, ajuntou Pedro Affonso, convencido do bom juizo das palavras do arcebispo... de Rio de Moiro.

-- Será assim, disse o rei. Concordo, absolutamente, comvosco e vejo que é a vossa a opinião geral.

Não tinha visto o alcance da minha ida, mas é, absolutamente, bem pensada e precisa.

Ninguem mais do que eu anceia por começar a lucta, aberta, clara, intransigente, a lucta final, de vida ou de morte!

É esta a occasião? Eis-me prompto com todas as minhas forças, com toda a minha alma!

Houve murmurios de approvação.

No conselho da minuscula côrte as palavras do rei tinham impressionado os assistentes e houve, por tempo, um ruido de vozes, baralhando-se confusamente, em phrases soltas.

-- Meus senhores, disse o rei, impondo ordem, não percamos tempo em considerações inúteis.

Que cada um de nós, os que temos de ir, se vá preparar para a partida, que deve ser ao romper da manhã.

É preciso que durmamos, já, amanhã em Torres Novas.

Meu caro marquez, ordene a quem fiquem entregues os duzentos homens que aqui temos, para guarda e defesa da rainha.

-- Estava encarregado d'isso o capitão Machado.

-- Que não esqueça mandar homens novos ao encontro de Diogo da Fonseca, para que venham adeante prevenindo da marcha. Qualquer novidade que haja na Ericeira deverá ser-nos mandada immediatamente. Para isso, será bom collocar correios, de quatro a quatro léguas, até lá.

-- Deixar-se-hão, senhor, respondeu o marquez de Torres Vedras.

-- Senhores, disse o rei despedindo-se, ide repoisar um instante, e até logo.

Cortejaram todos e el-rei sahiu.

Nova proeza

Se o jantar dos reis da Ericeira tinha sido triste a ceia foi lugubre. Quando o rei recolheu a aposentos e contou á esposa que tinha de partir pela madrugada, a pobre rapariga esqueceu-se da corôa, do throno, da majestade, e poz-se a chorar.

Era a primeira vez que iam separar-se.

Não tinham acabado a sua lua de mel e a rainha Marianna presentia que acabava n'aquella noite. Fora tão curta!

O rei animava-a sinceramente. A sessão do conselho despertara-lhe a vontade um pouco entorpecida pelos carinhos da mulher e pelos commodos da nova vida.

Tinha de começar-se a guerra; chegava o momento, sentia-se disposto para a lucta, confiado, crente.

Por isso, quando a Marianna, abraçando-o, chorosa, se lamentava da solidão e tristeza em que ia ficar, elle dizia-lhe:

-- Não estejas a apoquentar-te, sem razão. Que tempo poderás estar sem mim? Dois ou tres dias?

-- Só?

-- Então? Não é preciso mais tempo para estar de volta.

-- Para nos separarmos de novo... Deus sabe por quanto tempo, volvia a lacrimosa rainha.

-- E essa será a ultima vez, exclamava confiado o rei, acariciando-a.

Então não nos separaremos mais, minha querida Marianna. Não mais chorarão por mim os teus lindos olhos... que eu não quero vêr assim tristes e afflictos.

-- Não nos separaremos mais?

-- Não, nunca!

Havia uma tal sinceridade e convicção nas palavras do rei, que D. Marianna foi serenando pouco a pouco, e pôde emfini, reclinar a cabeça tranquilisada no peito do real esposo.

Pouco dormiu e o acordar redobrou, com maior intensidade os receios da noite, uma angustia lhe tomou o peito.

Era, porém, a hora da partida e enérgica, como era quando a razão lhe dizia que devia sel-o, aparentava de serena.

Continha as lagrimas que teimosamente lhe vinham ás pálpebras e ajudava o marido a vestir-se. Compunha-lhe o gibão, assentava-lhe cuidadosa o colarinho largo, apertava-lhe o cinto, calçou-lhe as esporas.

Era uma dedicação intima, apetecível, dolorosa, que a fazia assim serviçal, porque o prestar estes pequenos favores lhe desafogava o coração.

O rei parecia alegre.

-- Que bela manhã para um passeio, minha querida Mariana, dizia elle. Que pena que tu não possas vir!

-- Porque m'o não disseste, porque o não queres; respondia ella.

-- Gostarias de vir?

-- Porque não? Gostava imenso.

-- As mulheres não foram feitas para as longas marchas, para os trabalhos da guerra; observava, carinhoso, u rei.

-- Quantas as não tem tido? Quantas não ha na nossa historia?

-- Padeiras de Aljubarrota?

-- De todos us generos de valentia.

-- Eu não gosto, dizia o rei, calçando uma luva, não gosto das mulheres guerreiras. íiosto das mulheres como tu, boas, meigas, simples.

Cada um para o que nasceu. Não é verdade? Tomou-lhe a cabeça contra o peito e beijava-lh'a.

-- Quando eu voltar, dizia o rei, depois de amanhã, verás como será belo o nosso encontro, como será dôce o nosso primeiro beijo!

Em baixo, á porta do paço, sentia-se grande algazarra, vozes de homens, escarvar de cavallos na calçada, tinir de armas.

O rei chegou a uma janella e olhou.

-- Está tudo pronto, disse; esperam-me.

N'isto ouvia-se a voz de Pedro Affonso que, na sala contigua, perguntava por el-rei.

-- Dize-lhe que vou já, disse para Marianna, e, tomando o chapeu e a luva que lhe faltavam, seguiu a mulher.

-- Tudo em ordem?

-- Tudo, meu senhor, respondeu o marquez beijando-lhe a mão.

-- Pois vamos; estou pronto.

Um creado entrou com um copo de leite, n'uma bandeja, que o rei bebeu, sem parar.

-- Com respeito ao dr. Gaspar Pereira, perguntou o rei, o que fizeste?

-- Está tudo determinado. Depois do almoço uma força de vinte homens de infanteria irá levar-le a ordem de sabida. Em caso de desobediencia, tral-o-hão preso para aqui.

-- Bem, disse o rei, partamos.

O marquez beijou a filha, familiarmente, e sahiu.

A sós os dois, rei e rainha, abraçaram-se, comovidos.

-- Não te esqueças nunca de mim, dizia ella, com voz tremula.

-- Em dois dias? muito pequeno seria o meu amor se te esquecesse tão depressa.

Ella sorriu, contente com a resposta. Deram-se um beijo, maior, mais apertado, mais longo.

-- Adeus, adeus, disse o rei, caminhando para a porta.

-- Adeus, disse ella, pedindo um ultimo beijo.

Ao recebêl-o, o rei sahiu, e ella correu á janella.

Uma guarda de honra de cincoenta cavalleiros esperava na rua a chegada do rei,

Uma multidão compacta se apinhava em volta.

Quando D. Sebastião appareceu, altivo, arrogante, um fremito passou na populaça e ergueram-se vivas estrepitosos.

Com um grande ar fidalgo, D. Sebastião agradeceu, tirando, altivamente, o chapeu emplumado.

Montou. Imitaram-no o marquez e os que haviam de acompanhal-o. Tocaram cornetas, rufaram tambores e, depois de lançar um ultimo olhar á janella onde a rainha se debruçava, el-rei partiu.

Seguiram-no os seus cavalleiros, por entre os vivas do povo.

Depois do rancho da manhã, vinte homens armados esperavam no largo da egreja as ordens do oficial que ficara de ir á quinta do dr. Gaspar Pereira do Lago intimar-lhe a partida.

O povo, em roda, criticava o acto do juiz; e, indignado pelo que chamava uma traição, vociferava, praguejando:

-- É não ter respeito nenhum pelo vendido.

-- É dar-lhe uma lição, como a do corregedor de Torres Vedras.

-- É mandal-o para os quintos dos infernos! exclamava uma mulher desgrenhada, a levantar os braços.

-- O maldito, gritava outra, é a elle que devemos a visita do corregedor de Lisboa... que tambem as ha-de pagar... deixa...

Os soldados faziam coro com os populares, affirmando que a cousa ia ser seria... «Ou elle demanda caminho de Lisboa sem olhar para traz, ou leva-lhe o diabo a alma»!

Estas e outras expressões indicavam o estado de excitação do povoléu contra o juiz da côrte.

-O que elle merecia é que nós lá fossemos... Comnosco é que elle havia de ajustar contas, exclamou um rapagão alentado e com cara avinhada.

-- E, porque não havemos de ir? perguntou um outro.

-- Vae lá a tropa.

-- Pois vamos com ella, clamaram vozes.

-- Vamos todos, vamos todos, gritaram de todos os lados.

Muitos, afastando-se, voltaram armados com paus uns, outros com fouces roçadoiras.

Quando chegou o oficial e mandou formar os soldados, perguntou:

-- Que faz aqui esta gente?

-- Vamos com vocês; não dá licença?

-- Pois venham; que me importa?

Uma hora depois, junto ao portão da quinta do dr. Gaspar Pereira a força fazia alto.

Um dos creados que pela estrada vira caminhar, entre nuvens de pó, a numerosa caravana, correra a avisar o patrão, que da janella do primeiro andar, viu a chegada.

Estranhou o caso e comprehendeu logo que de alguma cousa grave se ia tratar.

Adivinhou, quasi, por que imaginou que iam prendêl-o, como paga á resposta mandada no dia anterior.

Chamou á pressa um creado e disse-lhe que se armasse com os outros e que viessem para junto d'elle.

O oficial entrara pelo portão aberto, deixara junto do pateo os soldados, formados, e subia as escadas da varanda quando ao alto lhe apareceu o juiz.

A multidão insoffrida subia atraz d'elle.

Ao chegar ao topo o juiz, perfilando-se, com o olhar colerico, perguntou-lhe:

-- Quem é e o que quer?

O oficial respondeu-lhe, friamente:

-- Venho, por ordem de El-Rei D. Sebastião, intimar a vossa senhoria para que ou siga o nosso partido, ou saia immediatamente da comarca para Lisboa.

El-Rei e o sr. marquez de Cascaes acham que vossa senhoria, estando aqui, nos prejudica. A ordem que trago é terminante, ou vem para a nossa bandeira, ou sahe, sem perda de uma hora, para fóra d'aqui.

-- Nem uma cousa nem outra, exclamou o juiz. Repito que não recebo ordens senão de quem mas pode dar e que não reconheço o tal vosso rei como D. Sebastião, nem como rei de cousa nenhuma.

A multidão grunhiu.

-- Que quereis aqui? exclamou o juiz no auge da colera. Ah! canalha, para baixo... fóra... e empurrando, n'um movimento nervoso, os mais proximos, fez oscilar a columna humana, pelos degraus da escada.

-- Vilão! disse um.

-- Judas!

-- Traidor! exclamaram muitos.

-- Sr. Juiz, disse o oficial, peço a vossa senhoria que me responda prudentemente. Que se não exalte. Bem vê que trago ordens precisas que tenho de cumprir e quem manda aqui sou eu.

-- Já respondi.

-- Não quer ser dos nossos?

O juiz olhou para o pseudo oficial com um ar de extrema ironia e disse:

-- Nunca! dos vossos? nunca!

-- N'esse caso, queira vossa senhoria mandar aprontar immediatamente a sua mula ou o seu cavallo e sair sem demora alguma.

O juiz calou-se, olhando o mandante e as cabeças dos populares que se apinhavam ao lados e por detraz d'elle.

Corria-lhe no peito a colera. Não o amedrontava o perigo; via-se humilhado na sua dignidade, no seu amor proprio, insultado vil e cobardemente.

Não podia contemporizar com aquella sucia; não queria.

Como que marcando as palavras perguntou:

-- E se eu não quizer obedecer-lhe, se não obedecer, como estou no meu direito de fazer, o que acontecerá?

-- Leval-o-hei preso, disse o oficial, ao mesmo tempo que apanhava na cara a mais valente bofetada que nunca um juiz dera n'este mundo.

Cambaleou com o choque o emissário de D. Sebastião; mas endireitou-se, rapido, gritando aos soldados:

-- Prendam-no.

O juiz recuara perante o primeiro impulso do povo, que gritava: matem-no! morra! Olhara para traz e nenhum creado o amparava. Pensou alcançar a porta a meio da varanda, por onde sahira, e recuava pressuroso.

Não teve tempo; antes que os soldados subissem até alli, vinte braços de homens o tinham agarrado, dominado, vencido.

Debateu-se debalde; atiraram-no ao chão, esmurraram-no, cuspiam-lhe na cara, rasgavam-lhe os fatos.

Debalde o oficial gritava que o largassem, que elle se responsabilisava por elle.

A multidão não ouvia, no seu instincto de destruição e de morte.

-- Uma corda!

-- Enforquemo-lo!

-- Morra! morra!

E appareceu, como por encanto, uma corda, que lhe passaram ao pescoço, com que o puxaram pela escada abaixo, aos saltos, aos tombos, entre chufas.

Mais morto do que vivo suspenderam-no na primeira arvore e viram-no estrebuchar, dizendo-lhe injurias, atirando-lhe á cara lama e pedras.

Os criados tinham fugido todos, com mêdo, quando viram entrar a justiça de el-rei D. Sebastião. São correlativas: a morte e os roubos.

A quinta estava só; a ideia da pilhagem, do saque, rebentou logo que o morto deixou de baloiçar.

Como n'um mesmo impulso a onda espalhou-se pelo pateo, partindo portas e janellas, subindo ao primeiro andar.

Arrombaram gavetas, arrebanharam pratas, roupas, tudo o que tentava a vista. Partiam, estragavam moveis, espelhos, loiças.

Soldados, paisanos, faziam obra commum.

Invadida a adega, o vinho correu a jorros pelas gargantas e pelo chão.

Já cantavam, ébrios, carregados com despojos da victoria, quando, pela estrada de Mafra, dois cavalleiros correm n'uma desfilada louca.

São ambos rapazes; vinte a trinta annos.

Um é o filho, outro o sobrinho do juiz Gaspar Pereira.

Um homem na estrada prevenira-os:

-- Invadiram a quinta de seu pae, os homens de D. Sebastião, vae lá o inferno!

Davam de esporas, anciosos, dominados por um presentimento terrivel, cheios de angustia.

Os cavallos voam, que não correm.

Chegam; entram de arrancada pelo portão, param ao pateo.

A multidão ebria, agita-se em movimentos incoherentes, disputa-se, atropela-se, barafusta, grita.

O cadaver do juiz da côrte pende, sinistramente, da corda!

-- Miseraveis! grita o filho ao topar com o cadaver do pae, miseraveis! Turva-lhe a vista uma onda de sangue

Arranca do arção as pistolas e, uma depois da outra, desfecha-as sobre os primeiros corpos que mal vê.

O primo fez outro tanto o quatro corpos rolam no chão, gritando, contorcendo-se, com dores.

Era quanto podiam fazer.

Cerca-os immediatamente, a multidão rugindo.

Um soldado aponta a espingarda, desfecha e deita abaixo do cavallo o filho do juiz. Um homem, com uma foice, prosta o cavallo do sobrinho, sobre quem cahem milhares de golpes. As feras embebedavam-se com o cheiro do sangue. N'um pronto, dos dois rapazes, novos, cheios de vida, não restam senão os cadaveres, que os mais furiosos despojam do fato e do dinheiro.

Como se fosse bastante, para o dia, a lugubre façanha, o oficial mandou pôr em ordem os soldados cambaleantes e deu ordem de marcha para a Ericeira.

Com odres de vinho, com gallinhas, patos, embrulhos de toda a especie, os populares, seguiam a tropa, um a um, aos dois, como um formigueiro que fosse pela estrada, carregado, em busca do buraco.

Pela tarde, o alcaide de Mafra chegava á quinta solitaria, fazia transportar n'uma carroça os cadaveres, mandava atravancar as portas e janellas arrombadas, fechava o portão e participava para Lisboa, o tremendo successo.

Esta noticia fez partir a toda a pressa o corregedor Diogo da Fonseca.

Tanto tinham irritado o tigre que elle saltara do antro.

Era esperar-lhe pela garra.

Mãe e filha

Quando, n'essa tarde, foram chegando á Ericeira os heroes da quinta do juiz da Corte, o povo teve mais uns momentos de alegria feroz, ao contarem-lhe os episodios da lucta e do saque.

Todos os que tinham ficado se sentiam pesarosos por não terem tido a boa ideia de irem.

O espectaculo fôra, realmente, atrahente e sensacional.

Dois dias depois as praças e ruas tinham uma animação maior do que do costume, a despeito de ser usualmente grande, desde que o rei ali fizera a côrte.

Agora, sim, é que o caso ia ser serio e cada um tratava de se animar, animando os outros.

Indifferente aos ruidos da praça, muito entregue ás suas saudades, a rainha conservava-se na sua casa de trabalho conversando com duas damas de companhia.

Estava triste, intimamente triste!

Falava pouco, e o pouco que falava era sobre os perigos que o marido e o pae iam correr e de quanto desejava decidido o pleito, a favor ou contra.

Que lhe importava a ella que se perdesse?

Não era para aquella vida, para aquelles sobresaltos, para aquelle mal estar.

Sorria-lhe a vida socegada e tranquila, ainda que menos alta, ao lado do marido, n'uma quinta cheia de aguas e arvores, como a do pae.

O mundo, na grandeza, é de certo bello e ella tinha a comprehensão d'essa belleza; mas o que era certo é que um nó se lhe tinha metido na garganta, um peso no coração que a não abandonava e a pobre rapariga começava a ter mêdo de tudo, até da sua propria magestade.

Incommodava-a a scena do corregedor de Torres Vedras arrastado, com o escrivão, pela calçada; agora a noticia da morte do dr. Gaspar Pereira, do filho e do sobrinho, tinha-a enchido de temores, de presagios sinistros.

Rainha, com aquelle côrtejo de mortos, não tinha coragem para vêr e não se sentia bem; parecia-lhe que tomava parte nos crimes, que tinha responsabilidade nas mortes.

Estava triste, intimamente, triste!

Assim passou a tarde e chegou a noite. Mandou que lhe dessem a ceia mais cedo.

Queria ir-se deitar, recolher-se, estar só. Precisava pensar no marido, socegadamente; tinha vontade de chorar, queria chorar sem que a vissem.

Assim se fez; mas quando despedia as aias e se recolhia ao quarto de cama, ouviu-se na rua, no silencio relativo da noite, um tropel, junto á porta do paço.

A rainha mandou saber o que era; e a resposta foi entrar-lhe a mãe esbaforida pela porta dentro, a agarrar-se a ella aos beijos e aos abraços.

Passada a surpresa do primeiro instante, a rainha mandou pôr a ceia na mesa para a mãe, que pouco comeu.

Parecia sobre brazas a Marqueza de Cascaes; com pressa de acabar de ceiar... de dizer, de falar.

A filha attribuiu esta atitude ao desejo de estar a sós com ella,--- era a primeira vez que serviam depois do casamento -- de lhe perguntar pela sua vida e felicidade, perguntas inevitaveis na primeira visita de mãe depois do casamento da filha.

Era, porém, outra a razão do mal estar da marqueza.

Engulido, á pressa, o ultimo gole de chá, levantou-se, dizendo-lhe:

-- Tenho que te falar a sós e depressa.

Filha e mãe foram para o quarto de dormir da rainha.

-- Estou anciosa, minha mãe, por saher a causa da sua visita inesperada. Porque me não preveniu? Foi para ter mais valor a sua vinda? Para me fazer a surpresa.

-- Não tive tempo. Tencionava vir esta semana, mal tivesse o milho sachado e o feno recolhido. O recolher das ceholas ficam para depois assim como a tosquia dos carneiros. Contos da vida... Tive de vir quando menos o esperava . Antes de tudo a tua felicidade.

-- Veiu por minha causa?

-- Por ti, por teu pae, por teu marido.

-- Então?

-- Sabem do que estão ameaçados?

-- De quê?

-- Ah! não sabes que o corregedor Diogo da Fonseca com uns mil homens passou por Rio de Moiro e está em Cintra?

-- Sabiamos que tinha partido ou ia partir de Lisboa. Aonde estava não sabiamos.

-- Pois bem passou lá por perto de casa. Mandei saber a que vinha por ter um presentimento de desgraça e soube.

-- Vem para aqui?

-- Vem para aqui; mas resolvido a acabar de uma vez com os revoltosos, custe o que custar. Dizem que vem feroz, jurando castigos tremendos.

A rainha parecia estar desasocegada como se fosse para ella uma novidade a vinda do corregedor. Perguntou á mãe:

Que tempo poderá levar o Diogo a chegar aqui?

-- Sei lá! Antes de dois dias está cá. Lá para depois de amanhã... com a pressa com que vem...

A rainha fez-se palida.

-- Que tens tu? perguntou a mãe, solicita.

-- Não é nada, foi uma vertigem. Ás vezes dão-me...

Bebeu um copo de agua, roburisou-se-lhe de novo, o rosto.

-- Está por aqui depois de amanhã... Eu vinha justamente para os prevenir, se o não soubessem, e para te levar para casa.

-- A mim?

-- Então a quem?

-- Eu não posso deixar meu marido.

-- Então queres ficar, aqui, para apanhares por ahi, alguma bala que te mande para melhor vida?

-- É o meu dever, emquanto meu marido me não mandar o contrario.

-- Qual teu dever, nem qual carapuça. Tu não tens aqui nada que fazer. Isso de tiros é lá para os homens. Has-de ir comigo.

-- Não vou minha mãe. Meu marido não tarda, elle dirá.

-- Quando chega elle?

-- Deve chegar amanhã.

-- E se não vier?

-- Paciencia. Esperal-o-hei.

-- Qual paciencia; isso é bom para doentes. Se, antes d'elle, chegar o corregedor, o que vaes tu fazer? Isso é uma tolice. Não ficas, has-de vir comigo á força.

A rainha calou-se e empalideceu, de novo. Fôra aquella ideia que da primeira vez a fizera perder a côr, no que a mãe reparara.

-- Olha, minha filha... eu para te dizer a verdade... não está aqui o teu pae e posso falar á vontade... o que era de razão era, tu, o teu pae e o teu marido, deixarem-se uma vez de asneiras, mandarem para o diabo toda essa tropa fandanga que para ahi está, e meterem-se na sua casa, na nossa, muito socegados.

Olha que isto não dá bom pago. Isto acaba mal.

-- Agora é que diz isso?

-- Eu? sempre o disse e sempre o preguei ao teu pae... Tu bem o sabes. Elle tem aquelle genio...

Vocês lá mo fizeram, tambem, perder o juizo. Lá me meteram na dança... mas olha que melhorei já e bastante.

-- Melhorou?

-- Melhorei; porque isto de a gente ensandecer é uma doença. Eu sou lá marqueza de Cascaes, e teu marido é lá D. Sebastião, o teu pae é lá general, nem marquez, nem conde?

Aquillo foi um ar que nos deu! aparvalhou-nos a todos! Credo!

A rainha não poude deixar de esboçar um sorriso ao ouvir e vêr a mãe discretear com tanta convicção.

É o que te digo; mas tudo corria bem se não viesse agora ahi o Diogo da Fonseca com as suas tropas.

Onde é que aqui ha gente para conbater com elle? E se elle vence, como é natural, o que vae sêr d'essa gente que elle agarrar, e de vocês se lhe cahirem nas mãos?

Olha filha, o que eu te digo é que tenho pena de cá não estarem nem teu marido nem teu pae... havia de convencel-os a deixarem isto, a fugirem...

-- Isso não conseguiria, minha mãe.

-- Tanto peor para elles; mas vaes tu, que não podes ficar, aqui, sósinha, exposta a tão grande perigo.

-- Não estou só e estou bem guardada. Ha, ali, mais de duzentos homens para me defenderem, se fôr preciso.

Duzentos homens! mas que são duzentos homens, mulher! contra os terços hespanhoes?

-- Meu marido, o rei, chega amanhã. Traz comsigo todo o exercito. Eu é que não posso sahir d'aqui, sem elle chegar. Talvez m'o não deixem fazer.

-- Quem?

-- O homem a quem me confiou e que teria de responder por mim.

-- Mas se tu vaes para tua casa!

-- A minha casa é esta. A ordem é defenderem-me e não me deixarem fugir. El-Rei não deu outra.

-- Mas, então, ha alguem, aqui, que governe mais do que tu?

-- As ordens de meu marido valem mais do que a minha vontade ou a sua.

-- Mas teu marido não sabia o perigo que ias correr, aliás, seria o primeiro a dizer-te que fugisses.

-- Não sei, não sei.

-- Sei eu; se o não dissesse era asno. Ora esta! Já se viu uma teimosia assim? Váe dormir que isso é somno, rapariga. Que tal está a tonteira!

Amanhã has-de levantar-te com melhor cabeça e abalaremos ambas por ahi abaixo.

-- É possivel, minha mãe, é possivel; mas talvez amanhã pense de outro modo, disse a rainha para não desgostar a marqueza de Cascaes que se amofinava em excesso.

Levou-a ao quarto de cama, deu-lhe um beijo, recomendou-lhe que dormisse socegada, que se precisasse de alguma cousa que tocasse a campainha e voltou para o seu quarto.

Deitou-se; mas não poude dormir. A mãe tinha razão; mas que havia de fazer? O que diria, o que faria, mesmo, toda essa gente, se soubesse por que motivo o fazia?

Era lançar o desanimo, a desconfiança, no meio dos insurgentes, atemorisal-os por mostrar mêdo, não confiar na sua dedicação ou na sua força.

Não podia fugir.

Depois, o marido chegava n'esse dia. Pela tarde devia estar de volta.

Ao pé d'elle, nada teria a receiar. Se elle entendesse que era bom ella ir para casa do pae, iria; se não fosse preciso, ficaria na sua.

Por gosto, até não gostaria de ficar ali, durante a jornada de Lisboa; em Rio de Moiro estaria mais perto do rei, para o acolher, victorioso, ou para o consolar, vencido.

Sentia, porém que o seu dever era ficar: ficaria.

Tão desencontrados pensamentos, estes e outros levaram-na, de olhos abertos até á madrugada:

Só então a cabeça lhe cahiu sobre o travesseiro e descançada, dormiu umas duas horas.

Deixou-se ficar no quarto até ao almoço, que era ahi pelas oito.

Á mesa a mãe não a deixou de importunar com a partida.

Dava as mesmas razões e accrescentava:

-- Olha que por mêdo de te não deixarem partir não te detenhas.

-- Porquê, minha mãe, posso partir?

-- Quando quizeres.

-- Foi indagar?...

-- Fui. Mandei chamar o official, esse mal encarado, de casaco com galões e perguntei-lhe: a minha filha, se fôr preciso, não pôde ir comigo até minha casa?

-- E elle?

-- Elle respondeu-me, sem gaguejar: ora essa quando quizer; manda mais do que eu. Já vês...

-- Fico sabendo... se fôr preciso, irei.

-- Qual se fôr preciso? é. Voltas á tua teima?

A rainha que sentia começar a indispôr-se com nova discussão atalhou:

-- Pois bem, minha mãe se até esta noite El-Rei não vier ou meu pae, amanhã, de madrugada, partiremos.

-- Era, melhor, já, hoje... esta noite... As noites estão de um luar lindo... como de dia.

-- Porque não partiremos hoje? ficava mais descançada.

-- Hoje não, minha mãe, hoje não. Se El-Rei viesse e eu tivesse partido, sei que teria um grande desgosto, por não me encontrar.

-- Iremos amanhã.

-- Ámanhã haverá desculpa, de certo modo... hoje não ha.

-- Pois bem, concordou a Marqueza de Cascaes, não querendo mais contrariar a filha, seja amanhã. Muito cedo, hein?

-- Ao romper do dia.

-- Ou antes, ou antes. Foram, as duas sentar-se ao pé de uma janella que dava para o mar, a ver entrar e sahir os botes do pequeno porto, cuja praia minuscula lourejava entre penedos negros que se debruçavam, no alto, ruidos na base pelas lagrimas corrosivas das ondas.

O mar é um espectaculo que deprime, que cancã, por tempo. Olhando-o, falando baixo, passaram ámanhã.

Tinham jantado ao meio dia, como era uso do tempo.

A tarde corria, lentamente, abafadiça, quente.

A marqueza de Cascaes, como tinha por habito, dormira uma hora de sesta e fôra para o quarto da filha para ajudar a meter n'um bahú a roupa precisa, os objectos de que ella não quizesse apartar-se.

Feita a arrumação, conservavam-se sentadas, uma defronte da outra, á espera que parasse o calor que lhes permitisse irem de passeio á praia grande.

A mãe nunca a tinha visto; a filha queria dar-lhe esse prazer, n'aquella tarde. Talvez não voltasse á Ericeira.

A conversa era frouxa: o ar quente enlanguesce o corpo, empasta as palavras.

O calôr empurrara para as casas, para as tabernas, a população fluctuante da villa. Havia um silencio grande. Ouvia-se, distinctamente, o ruido do mar minando as costas.

De subito, no meio d'este silencio, começou a ouvirem-se vozes longiquas, gritos dispersos, aqui e ali o tropel de um cavallo pela calçada.

Quasi ao mesmo tempo, vibravam cornetas, os tambores rufavam com furia e um ruido feito de mil ruidos se levantou nos ares.

Espantadas a rainha e a mãe, correram a uma janella da frente.

Uma confusão indescriptivel enchia o largo e as ruas.

Homens e mulheres corriam para todos os lados, surgiam de todos os pontos, empurravam-se, chocavam-se na carreira.

Pela ladeira em frente, uns cavalleiros desciam a toda a brida, gritando:

-- Lá vêem elles! Lá vêem elles! ás armas! ás armas!

Atraz d'estes precipitava-se uma multidão assustada e vozes clamavam medrosas:

-- São os hespanhoes!

-- Lá vêem os hespanhoes!

-- É Diogo da Fonseca, com a sua gente.

Os soldados corriam ás armas; os populares que as não tinham, armavam-se com paus ferrados, com fouces, com croques, com tudo o que achavam á mão.

-- Onde vêem? Onde vêem? perguntava-se.

-- Estão a chegar. D'aqui a um quarto de hora estão cá.

A rainha e a mãe, pregadas na janella, não diziam palavra, olhando as evoluções desvairadas do povo, que gritava, incitando-se, dando-se coragem, rogando pragas.

A multidão convergia para o lado da estrada, que desembocava no largo, por onde vinha o corregedor.

Garotos tinham subido aos telhados e de lá espiavam o caminho, dando novidades.

-- Já os vêem? perguntavam debaixo.

-- Não se vêem, não se vêem, ainda.

-- É avisarem, logo que os virem, hein?

Eram, ao todo, uns duzentos os revoltosos que tinham armas.

Tinham-se agglomerado na bocca da estrada, carregando as espingardas, esperando. Os populares mal armados, agrupavam-se por detraz. As mulheres chamavam os filhos, gritando.

-- O! minha mãe, minha mãe! pôde em fim dizer, tremula, a rainha. Não estar aqui el-rei!

-- Eu não t'o dizia? Exclamou a marqueza, com uma voz entre colerica e medrosa. Agora ahi tens.

-- Quem havia de esperar uma chegada tão rapida?

-- Eu bem te disse que o lobo vinha com pressa... teimaste... teimaste...

-- E, agora?

-- Agora, é ter coragem. Se pudéssemos fugir... lembrou de repente a marqueza.

-- Talvez possamos. Correu a uma das mesas tocou uma campainha, appareceu uma creada,branca de cera:

-- Ouem está em baixo nas cavallariças?

-- Não sei, senhora.

-- Quem quer que esteja que aparelhe, já, duas mulas e as traga á porta. Veja se está alguem, primeiro.

Não estava ninguem! Apenas a sentinella do paço olhava encostada á esquina o grupo numeroso que ao fundo se remechia como um vespeiro.

Na desordem, todos tinham abandonado os seus logares; uns para correrem á lueta, outros, naturalmente, para se safarem a tempo.

No paço, havia a rainha, a mãe e os creados.

Era como se estivessem sós.

-- Feche as portas todas, gritou, de cima, á sentinela, a mãe da rainha, e voltando-se para os creados ordenou: vão por dentro, corram-lhe as trancas, apertem bem as cunhas.

Isto feito, um pouco mais tranquila, rainha, mãe e creados puzeram-se a espreitar por detraz dos vidros das janellas, o movimento da praça.

O povo e soldados tinham-se acumulado no angulo do largo fronteiro á entrada.

Por detraz um formigueiro, inconstante, de mulheres e de creanças juntavam pedras em montes.

Minutos depois, uns rapazes correndo, avizavam de que a tropa vinha no alto da ladeira.

Começavam a ouvir-se como que vozes soltas trazidas pelo vento que começava a soprar, e uma nuvem de pó branco erguia-se, de vez em quando, mais grossa e desfazia-se de encontro ás comas das arvores, dissolvendo-se pelos ares como uma gaze tenuissima.

Em breve, o ruído do andar cadenciado de muitos homens começou a tornar-se distincto e, ao alto.

Por entre a poeira, esboçavam-se os chapéus largos de cavalleiros.

-- Sentido, gritou o oficial sebastianista á sua tropa, que carregara as espingardas.

A esta voz, fez-se no arraial popular um silencio lugubre.

Todos olhavam, com a respiração comprimida, o avançar da serpente negra que descia a encosta como um monstro de centos de cabeças, coleante, com o dorso cheio de reflexos metallicos.

Á frente, a cavallo, caminhava um homem alto, de grandes bigodes, a cabeça levantada, provocadora, audaz.

Era o corregedor Diogo da Fonseca.

Ladeavam-no diversos cavalleiros, cobertos de pó, recebendo ordens.

Estavam a duzentos passos; pararam.

Diogo da Fonseca adeantou o cavallo, só, pela estrada, direito aos insurgentes.

Era mau, mas era valente.

A distancia de se ouvir bem a voz, clamou:

-- Eh! rapazes, que é isto? O que quer dizer estarem assim armados, como se andassem em revolta? Vá, toca a dispersar e a deporem as armas.

Ninguem respondeu.

-- Quem é ahi o chefe? perguntou, de novo, o corregedor. Elle que venha, aqui; ninguem lhe fará mal. Havemos de entender-nos.

Continuou o mesmo silencio. O grupo popular conservava-se quedo ouvindo, mudo.

Apenas, em voz sumida o official dissera de novo: sentido, rapazes!

O corregedor a quem não sobrava paciencia, fez ainda um esforço para se mostrar sereno, dizendo:

-- Vá, deixem-se de asneiras. Cada um que vá para a sua vida e tudo se fará em paz. Ouvem?

Como continuasse a mesma mudez o corregedôr já sem paciencia voltou o cavallo e mandou avançar a tropa.

Quando esta ia chegando junto d'elle, gritou, intimitivamente:

-- Rendam-se, ou não escapa um com vida.

A resposta foi uma descarga de fusilaria que lhe fez empinar o cavallo.

-- Fogo! ordenou, por sua vez o corregedor, a elles.

Uma descarga cerrada secundou a voz de Diogo da Fonseca.

Alguns populares cahiram.

-- Animo rapazes, gritava o official sebastianista, animo!

Mal tinham carregado, de novo, as espingardas, uma segunda descarga dada pelos terços hespanhoes começou a abalar a coragem dos revoltosos, mettidos entre nuvens de pó, entre gritos estridulos das mulheres, vendo cahir, como tordos, os companheiros.

Responderam ainda, fracamente, com um ou outro tiro.

Á terceira descarga, fez-se o pânico, foi uma debandada, cada um fugiu por onde achou caminho, uns direitos ao matto, outros direitos á praia.

Como por encanto a praça ficou deserta.

Diogo da Fonseca mandou fazer um cordão de tropa e cercou a villa. Alguns escaparam-se pelo mar.

Em terra, os que tentavam fugir, á má cara, cahiam mortos.

Os soldados invadiam as casas, prendiam, matavam á menor resistEncia.

Ouviam-se, por toda a parte, gritos e chôros.

Implacavel o corregedor ia prendendo; e aos primeiros, forçou a indicar o sitio onde havia madeiras.

Os soldados levantavam forcas, com grande pressa. Era o instrumento mais do gosto de Diogo da Fonseca.

D'ahi a duas horas havia umas oito ou dez erguidas, com os respectivos adornos pendentes.

N'uma d'ellas esperneava o oficial sebastianista.

Oitenta prisioneiros esperavam, no largo, guardados á vista, a sua vez.

Um terror indiscriptivel reinava na villa.

As mulheres desgrenhadas, corriam como doidas, chamando pelos maridos e pelos filhos.

Aqui e ali uma lucta desesperada entre um prisioneiro gritando e os soldados que o arrastavam, augmentava o pavor.

Ás vezes, uma mulher atirava-se aos soldados, unhas á cara, mordiaos: cahia atravessada por uma espada, ou com a cabeça aberta á coronhada.

Terrivel, como um demonio, Diogo da Fonseca, mandava enforcar, matar, como se uma necessidade intima, lhe pedisse agonias, tormentos.

A menor resistencia, a menor hesitação n'uma resposta, o menor gesto de altivez ou de enfado, era a morte!

Mandou vir um banco e sentou-se a meio da praça.

Chamou um dos presos, que lhe pareceu mais inteligente.

-- Responde claramente, disse; ou mando-te açoitar como um cão antes de te enforcar.

-- Quem foi que matou o corregedor de Torres Vedras e o escrivão?

-- Senhor, foram todos.

-- Quem mandou?

-- Ninguem, senhor, foi o povo.

-- Não foi o tal vosso rei, nem Pedro Affonso?

-- Não, meu senhor.

-- Não estavam aqui quando os mataram?

-- Estavam, sim, meu senhor.

-- Mas não o impediram. É a mesma cousa.

Quem mandou matar o dr. Gaspar Pereira? Quem mandou lá essa gente, á quinta?

-- Quem os mandou matar?

-- Foi o sr. marquez de Cascaes.

-- Quem?

-- O sr. Pedro Affonso.

-- Pedro Affonso. Ah! elle é marquez, o bebedo?

O corregedor não poude conter um sorriso cruel.

-- Quando partiu elle e o tal para Torres Vedras?

-- Anteontem, de madrugada.

-- O que foram fazer?

-- Buscar as tropas que lá teem.

-- Souberam que eu vinha, não é verdade? Quando vêem?

-- Sim, meu senhor, sabiam. Não se sabe quando vêem.

-- Quantos homens estão, lá, armados?

-- Dizem que uns seiscentos, meu senhor.

-- Tragam d'ali outro homem, mandou; e vejam os que estão já mortos nas forcas. Ponham outros nos seus logares.

Um outro pobre diabo veiu tremulo para dfronte do corregedor.

Fez-lhe as mesmas perguntas que ao primeiro e obteve eguaes respostas.

-- Bem, disse o Diogo para o primeiro interrogado; podes ir-te embora. Valeu-te a franqueza... e não te metas n'outra.

O pescador correu, a galope, a meter-se em casa.

-- Tu tambem és por D. Sebastião, hein? Contra D. Filippe?

-- Eu sei lá o que sou, meu senhor... eu não sou por ninguem... nunca fiz mal nenhum...

-- Agora reparo... que diabo de casaco usas tu? E o corregedor puxou o homem por um braço para junto d'elle. O que quer dizer este debrum prateado.

-- É que eu, disse o homem atrapalhado, eu sou creado da sr.ª marqueza de Cascaes.

-- Qual marqueza?

-- A da mãe da rainha.

-- Ella está cá?

-- Está ali, disse o homem apontando para o paço, que conservava hermeticamente fechadas portas e janelas, silencioso, como uma casa deshabitada.

-- Quem está lá, mais?

-- Está a rainha.

O corregedor levantou-se, exclamando:

-- A rainha? Oh! Oh! vamos visital-a.

Caminhou para a casa e mandou bater. Não se ouviu o menor ruido no interior; ninguem respondeu.

-- Olá, gritou o Diogo, arrombem esta porta. Duas machadadas com alma racharam uma das metades de alto a baixo. Toro de pinho á guisa de ariete meteu-a dentro. Pela metade aberta, destrancou-se.

Nas casas terreas não estava ninguem.

Subiram ao primeiro andar. Na primeira sala duas creadas estavam acocoradas a um canto, cheias de mêdo, na sombra.

-- Abram essas janelas mandou o corregedor.

As raparigas levantaram-se, palidas, a tremer.

-- Onde está a rainha? perguntou o Diogo da Fonseca.

-- No quarto; respondeu uma das raparigas apontando para uma porta.

Abriu-se a porta; não estava ninguem.

Correu-se o andar inteiro, estava deserto.

-- Que é da tua ama? perguntou o corregedor aborrecido, a uma das creadas.

-- Se não está no quarto não sei aonde está, meu senhor.

-- Mando-te chibatar se não falas a verdade. Onde está tua ama?

Meu senhor, estava ali.

-- As portas estavam todas fechadas... não a sentimos sahir, disse a outra serva.

-- Procurem-na bem, ordenou o corregedor. Ha de estar cá dentro.

Correram todos, remexendo moveis, ao sótão, á cozinha.

De repente ouviu-se dizer em baixo: estão aqui, estão aqui.

O corregedor desceu. Um homem apontava para uma porta baixa na parede, ao lado da chaminé.

-- Onde estão?

-- Ali. Ouvi tossir lá dentro.

-- Abre a porta, mandou o corregedor.

O homem puxou o trinco. Era a carvoeira. Sentadas n'um monte de carvão a rainha e a mãe olhavam aterradas para fôra.

-- A rainha na carvoeira, pensou o corregedor não contendo o riso, tem muita graça.

Chegou-se á porta e mandou, com uma ironia grosseira:

-- Queira Vossa Magestade sahir, cá para fóra. Com os vestidos manchados, esfumados de carvão, os rostos sujos de pó negro, as duas mulheres, sahiram, meias curvadas, pela porta baixa do deposito.

Havia um riso alvar nos rostos dos assistentes; só o corregedor se conservava sério e grave.

-- Quem é esta mulher? perguntou indicando a mulher de Pedro Affonso.

-- É minha mãe, respondeu a rainha.

-- Estão presas, disse o corregedor. É melhor subirem para uma sala do primeiro andar. Um guarda para a porta, mandou o corregedor a um dos oficiaes que o seguia.

-- Que mal fiz para me prender? perguntou a mulher de Pedro Affonso, excitada, com raiva. Que fiz eu?

-- Tem razão, disse o corregedor. Você não terá culpa, se a não tiver será solta.

-- E eu? perguntou a rainha.

-- A senhora, disse o corregedor, tem um titulo que lhe não pertence; tem secundado o homem que se diz rei, é uma das causas da desordem e da revolução d'estes povos. Acha pouco?

-- Está posta a guarda, avisou, chegando, o oficial que fôra com a ordem.

-- Bem, responde-me por ellas, disse o corregedor voltando as costas e encaminhando-se para a porta. É negocio para tratarmos á volta.

O oficial fez evacuar a casa toda.

Ao verem-se sós, as duas mulheres cahiram, nos braços uma da outra, chorando.

O Encontro

Sahiu o corregedor do palacio do rei da Ericeira deixando atráz d'elle uma ameaça, pesando sobre a imaginação das pobres mulheres.

Lá fóra continuavam as prisões, os assassinatos dos que resistiam, a morte pela forca aos pacificos.

Não havia senão lagrimas, soluços comprimidos; porque ali era perigoso chorar alto. Descia a noite.

A soldadesca invadira as casas, aprehendera os comestiveis que havia nas pobres casas dos pescadores e ao redor de amplas fogueiras cozinhava a ceia.

Os oficiaes não reprimiam os excessos, de qualquer natureza; ao roubo juntava-se a violação, os atentados contra o pudor das mulheres indefesas.

Era um castigo terrivel, brutal; a vingança do corregedor pelos trabalhos que lhe tinham dado e davam.

Os que pendiam, inermes, das forcas eram atirados ao mar, para simplificar o trabalho; com os mortos foram alguns vivos, porque havia pressa de socegar completamente a vila..

Não levou muito tempo.

O terror anniquilava os mais ousados; os prudentes e medrosos tinham abalado, pelas rochas, pelos pinhaes, a esconderem-se.

Nomeiou Diogo da Fonseca um juiz ad hoc e um escrivão para continuarem o drama, na sua ausencia; indicou a força que devia ficar na terra e o official que a commandaria.

Feitos estes preparativos, mandou que lhe arranjassem de comer.

Preveniu de que se marcharia para Torres Vedras logo de madrugada e contente comsigo e com o dia, foi para o palacio, futuro, dos condes da Ericeira onde lhe tinham arranjado aposento e deitou-se.

Este palacio e quinta eram de D. Antonio Prior do Crato, fôra lhe dado pelo pae e, sequestrado por Filippe II, foi dado a Luiz Alvares de Azevedo, com a vila.

Este morreu e o palacio e vila ficaram pertencendo a sua filha, religiosa do convento de Odivellas, que o vendeu a D. Diogo de Menezes por 8:000 cruzados, sendo mais tarde reedificado.

A este D. Diogo de Menezes, um dos fidalgos que o apoiavam, deu o rei de Hespanha em 1622 o titulo de conde da Ericeira.

Deitou-se o corregedor, pensando em como lhe correra hem o dia e desejou de acabar com a comedia realenga.

Não lhe metia grande receio a resistencia das tropas do rei da Ericeira. Acabou de ver como se tinham portado aos primeiros tiros.

Não era de esperar outra cousa de gente indisciplinada e baixa.

Fôra, é certo, um partido das tropas que vencera e em Torres Vedras estava o grosso do exercito... mas quando se lembrou de que o commandava.

Pedro Affonso, assomou-lhe ao rosto um ar de riso e como quem se arrepende de estar a estragar o pensamento com cousas vãs, tapou a cabeça com a roupa e adormeceu.

Mal rompia, a manhã, as companhias de Santo Estevam e Calderon, esperavam unidas e firmes, no meio do largo, a ordem de marcha.

O corregedor appareceu, montou e os oito centos homens, como um só homem, cá voz dos capitães, entraram pela estrada que levava a Santo Izidoro, pela orla do mar, com marcial arreganho.

A marcha fez-se com a maior rapidez.

N'esse dia, chegaram ao Turcifal, onde bivacaram; no outro dia, de manhã, estavam a meia legua de Torres Vedras.

Como era natural, a chegada do rei a Torres Vedras tinha produzido uma agitação enorme, sobretudo quando se soube a que vinha.

Aclamaram-no loucamente.

Toda a população, porque os raros dissidentes não ousaram manifestar-so, nem as auctoridades impediram, o victoriou desesperadamente.

O rei explicou que vinha, emfim, pôr-se á testa dos seus vassalos, dos seus leaes amigos, para se dirigir a Lisboa.

Não escondeu que contra elle marchava, áquella hora, o corregedor Diogo da Fonseca, que iriam procurar ao caminho», esmagar e correr a Lisboa, onde a noticia da sua chegada victoriosa faria levantar os mais timidos ou os mais prudentes.

Pintou a miseria geral, o que tinha feito para preparar a revolução, as adhesões com que contava, verdadeiras e falsas, e acabou por declarar que o esperava ou a victoria ou a morte!

As palavras do rei cahiram como um balsamo sobre a chaga dos corações patrióticos, enthusiasmaram os valentes, lançaram no povo espesinhado uma luz de redempção e de esperança.

Inteira a vila cercava o rei, n'uma manifestação de confiança e de carinho inegualavel.

O dia da chegada passou-se em festejos; emquanto se reuniram as tropas, á voz de Pedro Affonso, e se preparava a marcha para o outro dia.

Mal se descançara a noite em festas e prazeres, quando, pelo romper d'alva, os almocreves chegados á vila trouxeram a nova de que Diogo da Fonseca se approximava, a marchas forçadas.

A nova produziu uma desordem incalculável.

O rei levantou-se apressado e com Pedro Affonso correu ás tropas para as ordenar.

Viu-se que alguns soldados não appareciam: a proximidade do perigo levára-lhes a coragem. Tinham fugido.

Na propria vila, receiosa, as manifestações de incitamento, de vontade de combater, de resistir, pareciam afrouxadas.

O corregedor era homem temido e, naturalmente, os habitantes tinham pensado, de repente, na sua entrada, em colera.

Assim poucos appareciam a reunirem-se ás tropas.

Um ou oalro vadio, mal encarado, armado como podia, uma faca, um pau, rondava em volta dos soldados a inicitalos, a dar-lhes coragem.

No resto, as casas conservavam-se fechadas, as janelas não se abriam e aqueile enthusiasmo que precede os grandes lances, o« grandes perigos que se desejam arrostar, não appareceu, não havia.

Sentiu o rei um frio no coração.

Não se teve que não dissesse a Pedro Affonso, na azafama em que andavam:

-- Toda esta gente parece que está morta!

-- Dormem, respondeu este, que tambem o notara já, mas cujo animo rijo se não acobardava facilmente.

-- Com este barulho? disse o rei.

Calou-se e começou a pensar no caso. Elle esperava vêr ao seu lado o povo inteiro, gritando, os braços ao alto, os chapéus erguidos, dizendo-lhe que ia com elle batalhar, soffrer es seus azares, correr o mesmo perigo, pela patria.

A incita-lo, a anima-lo, a enche-lo de fé e a correr ao seu lado para o deffender, para morrer com elle se fosse preciso.

Em vez d'isto, uma povoação, hontem ruidosa e agora indifferente, acobertava-se indifferente com um somno fingido e deixava-o, quasi só, entregue á sua sorte.

Se o resto do paiz fizesse o mesmo!

O que seria então d'elle? das suas esperanças? do seu sonho de redemptor?

A villa começava a acordar, lentamente; muitos homens assistiam, no largo, á distribuição da aguardente aos soldados; mas tinham ares tristes, desconfiados, frios.

Uma impressão de desanimo se apoderou do rei, meditativo, quando a voz de Pedro Affonso he disse:

-- Podemos partir. Tendes alguma cousa a ordenar?

-- Não, amigo, partamos.

Como que acordara, respondendo; chegou-se ao cavallo que tinha ao lado e montou.

Então, ouviram-se algumas vozes gritando:

-- Viva o rei!

Respondeu a gente que estava; mas a aclamação era fraca, sobretudo comparando-a com a da vespera.

Pedro Affonso deu a voz de marcha: o rei olhou, pelo largo, as raras janelas abertas onde um ou outro lenço lhe acenava, sentiu um mal estar, vago, indefinido.

Aquelles adeuses tinham um ar lugubre. Teve frio.

Lembrou-lhe a mulher, e esta ideia fe-lo erguer a cabeça, abrir a bocca, respirar bem fundo o ar fresco da manhã e sentir-se animado, momentaneamente, endireitar-se no cavallo, e marchar. Iam na sua frente uns oitocentos homens.

Á frente d'elles caminhava Pedro Affonso, com grande ar guerreiro, conversando, dando ordens do alto do seu cavallo negro.

O rei conversava com o ajudante que o ladeava.

-- Andou com anciã Diogo da Fonseca, para já vir perto.

-- E veiu pela Ericeira, observou o ajudante.

-- Hein? disse o rei, tomado de subito receio, veiu pela Ericeira?

-- Sim meu senhor.

-- Quem te disse isso?

-- Disseram-no uns homens que chegaram, alta noite.

-- Mas... disse o rei; se Diogo da Fonseca veiu pela Ericeira... o que fizeram os nossos homens?

-- Fugiram.

-- E a rainha? disse o rei já perturbado.

-- Está presa.

-- Porque me não avisaste logo?

-- Era tarde; vossa magestade dormia. De mais intimámos esses homens, sob pena de morte, a não dizerem a ninguem uma palavra do succedido.

-- Pedro Affonso sabe-o?

-- Não, meu senhor. Era melhor que ninguem o soubesse. A elle não tive tempo de lh'o dizer... aos soldados... bem vedes que uma tal noticia, n'este momento...

-- Fizeste bem... mas, que mais fez Diogo da Fonseca?... sim, que elle não se ficava a prender a rainha?...

-- Matou e enforcou quantos lhe cahiram nas mãos.

O rei ficou profundamente concentrado.

D'ahi a um instante, disse:

-- Sabes, de certo, que a rainha foi poupada... que nenhum insulto recebeu?

-- Ficou presa no palacio, até á volta do corregedor... guardada á vista.

-- É preciso contar ao a Pedro Affonso, disse o rei

-- Achaes melhor?

-- Acho melhor que o saiba. Ide chama-lo.

-- Olhae, quantos homens traz o corregedor?

-- Duas companhias... uns oitocentos.

-- Oitocentos! o rei empalideceu. De repente disse:

-- Ide chama-lo.

O ajudante galopou até ao general Pedro Affonso:

-- El-rei deseja falar-vos.

Pedro Affonso de Menezes, como se assignava sempre, desde que fôra elevado a marquez e conde, voltou de redea e veiu ter com o rei.

-- Que tendes? perguntou fitando-o. Estaes branco.

-- Nada, disse o rei, talvez do frio.

-- Tendes frio?

-- Algum.

-- Pois o sol começa a aquecer, observou o general. Marquez de Cascaes... O vento é que vem rijo, do mar... Que me quereis?

Os soldados marchavam, com menos algazarra do que do costume pela estrada qne ladeava uma extensa planicie, cultivada, cheia de vinhas e de pomares.

Para deante, ao longe, n'uma comprida várzea, ondulavam, batidos pelo vento do oeste, os trigos altos que começavam a lourejar.

O rei falava, agitadamente, com o Pedro Affonso que o ouvia entre pasmado e colerico.

Não acabara ainda, quando muito ao fim da estrada lhe pareceu que caminhavam cavalleiros.

Ao mesmo tempo o olhar apurado percebeu o luzir de armas. As dobras do terreno occultaram-nos, por momentos, até que de novo reappareceram.

-- Vem alli tropa, disse o rei apontando ao fundo.

-- Muitos soldados já o tinham percebido e falavam alto.

Pedro Affonso olhou e exclamou:

-- É a tropa do corregedor e correu a dar ordens aos officiaes.

Parou um instante o pequeno exercito. Carregaram-se as armas. O marquez disse-lhes umas palavras rapidas de incitamento e terminou, clamando:

-- Viva o Rei!

-- Viva o Rei repetiram os soldados, mas sem emfase, sem brio.

Formados, começou a marcha.

Pedro Affonso veio ter com o rei.

-- Vossa Magestade ficará n'este primeiro cabeça com a sua guarda. Não tem necessidade, nem deve entrar no ataque, senão em caso extremo.

-- Eu o prevenirei se fôr preciso.

Esta resolução pareceu não ser desagradavel ao rei, porque não protestou e foi demorando a marcha ao lado do seu estado maior.

Pedro Affonso correu, de novo, á frente do regimento e cheio de enthusiasmo, clamou:

-- Rapazes, vamos ter um bello almoço. Ao que cortar as orelhas ao corregedor faço-o capitão.

O vento continuava a fazer ondular os trigaes; o sol fazia brilhar os canos das espingardas, emquanto os soldados do rei D. Sebsstião caminhavam pela estrada arienta ao encontro de dois cavalleiros que se distinguiam perfeitamente.

Atraz d'estes, a mais de mil passos, uma pequena força parecia immovel.

De subito, os dois cavalleiros pararam com a que a consultarem-se. Era Diogo da Fonseca e um ajudante.

Já perto, ao vê-los sós, dando ordem á sua gente para que acelerasse a marcha, Pedro Affonso, com quatro cavalleiros, corre a elles e sae-lhes á frente, gritando:

-- Rendei-vos senhor corregedor, rendei-vos, ou...

-- Quem sois vós? perguntou, com o maior sangue frio, Diogo da Fonseca.

-- O marquez de Cascaes, Pedro Affonso de Menezes...

-- Ah! disse Diogo da Fonseca, não o deixando terminar... o general de D. Sebastião da Ericeira... tenho muito gosto... e com mão de ferro voltou, subito, o cavallo, partindo a galope seguido do ajudante. rapidos alcançaram o regimento que tomava posição de combate.

Pedro Affonso esperou a sua tropa que chegava, e, cheio de animo, avançou contra o pequeno regimento que o esperava, firme.

Trocaram-se os primeiros tiros de parte a parte, sem resultado.

O rei ficara, atraz, n'uma iminencia, contemplando o combate.

Pareceu-lhe pouca a gente do corregedor. Diziam que eram oitocentos homens... nem duzentos eram.

Os tiros succediam-se mais continuados, os soldados de Pedro Affonso aqueciam. O inimigo não mettia mêdo.

Não mettia mêdo e parecia recuar...

-- Animo, rapazes, gritava-lhes o marquez, d'aqui a um quarto de hora vamos ver-lhe as solas, aos que puderem fugir.

Effectivamente, escalonando-se com os vallados, aproveitando barrancos e troncos de arvores, os soldados de Diogo da Fonseca, recuavam, visivelmente.

O rei, da iminencia, sentia um grande interesse pela lucta de que não despregava os olhos e o avançar dos seus soldados e o recuar dos inimigos enchia-o de uma alegria estranha.

O recuo, era quasi uma fuga, dos soldados hespanhoes; iam fugir em breve, não havia duvida.

Perseguindo-os, não os deixando descançar, os soldados de Pedro Affonso descarregavam com furia as espingardas, caminhando, carregando-as de novo.

Era uma victoria, certa, indiscutivel.

Todos a viam; o rei do seu cabeço, Pedro Affonso de cima do seu cavallo, os soldados com os seus olhos, gosando desvanecidos a fuga do inimigo. Mas, de subito, de entre o trigal, ergueram-se quinhentas cabeças, quinhentos corpos, mil braços apontando espingardas e uma descarga á queima roupa, unisona, vibrante, terrivel, echoou nos ares.

Dezenas de sebastianistas cahiram varados pelas balas.

Foi um pasmo, uma imbecilização, um terror!

Rarefeitos, um pouco, do espanto, incitados por Pedro Affonso, os soldados, aterrados, carregaram ainda as espingardas levados por uma esperança ultima.

Mas, mal tinham dado os primeiros tiros, incertos, para o trigo onde os hespanhoes se occultavam, acocorando-se, uma segunda descarga retumbou, varrendo a estrada e não houve mais ter mão nos soldados do rei.

Cada um abalou como ponde, correndo pelas encostas, mettendo-se pelas regueiras, desfilando por detraz dos vallados e largando as espingardas, em carreiras loucas, furiosas.

Pedro Affonso viu, n'um relance, tudo perdido.

Deu de esporas em direcção ao sitio onde o rei estava: mas só encontrou o logar.

O rei tivera a mesma impressão á primeira descarga e voltando atraz, enfiara pela primeira azinhaga que lhe cahiu á mão.

A ratoeira fôra bem armada e o grande general Pedro Affonso de Menezes, marquez de Torres Vedras e governador de Lisboa, cahira, n'ella, como um pato.

A batalha, ou melhor, a escaramuça não durara um quarto de hora e atirara por terra todo o poder de D. Sebastião.

Uma hora depois, Diogo da Fonseca á testa das companhias victoriosas, entrava em Torres Vedras, ordenava devassas e mandava levantar as forcas.

Escusado será dizer que muitas dezenas de populares e homens da mais elevada posição, espernearam as suas opiniões atados pelo pescoço.

Como na Ericeira, os largos e ruas offereceram o espectáculo miserando de corpos humanos, baloiçando ao vento, por dias consecutivos.

Enforcaram-se dezenas de patriotas, mais ou menos ingenuos.

Emfim, restabelecido o socego, dada força ás auctoridades, com o exemplo dos castigos, o corregedor marchou para Mafra, uns dias depois, ia radiante.

Abriu tambem, ali, devassa e as scenas da Ericeira e de Torres Vedras tiveram terceira edição.

Ao mesmo tempo, mandava celebrar exéquias por alma do dr. Gaspar Pereira do Lago.

Ao terceiro dia, resolveu-se a ir á Ericeira a buscar o destacamento que lá tinha deixado e a preparar a prisão do rei e do seu valido que andavam, não se sabia por onde.

Sem a sua captura a obra não seria completa.

Foi. Havia ainda cadaveres nas forcas, um silencio de cemiterio pelas ruas, uma mulher de luto a cada canto, uma creança esfaimada a cada porta.

Reinava a paz, a tranquillidade, o socego, sob o sceptro piedoso de Fillippe II, pela dedicação canina do corregedor Diogo da Fonseca.

Pelas furnas das ribas o mar entoava os officios dos mortos!

A rainha

Todas as novas auctoridades tinham ordem de continuar as devassas e de não pararem senão quando o ultimo criminoso tivesse morrido na forca.

Dos presos da Ericeira nenhum tinha escapado ao supplicio.

Apenas um havia cujo julgamento e sentença o corregedor não confiara a ninguem, como sabemos.

Era a rainha.

A sua qualidade de mulher, de mulher bonita, o que nunca é indefferente para o juiz mais carrasco, preserverava-a de ter formado ao lado dos seus subditos na sinistra avenida das forcas? Não fôra compaixão: fôra falta de tempo.

E, ainda bem que assim foi, pensou Diogo da Fonseca, porque posso servir-me d'ella, como armadilha, para apanhar o rei.

No outro dia, pela manhã, entrava pelo paço e mandava, graciosamente, pedir a D. Marianna o favor de o attender.

A pobre rapariga que tinha passado seis dias a chorar, com a mãe, a sua desgraça, n'uma grande aflicção, sem saber novas do pae nem do marido, ainda que tremente, correu á sala.

O corregedor cumprimentou-a com o seu melhor modo, um sorriso agradavel nos labios:

-- Como tem passado, minha senhora? Espero que não lhe tenham agravado, com quaesquer faltas de respeito, o desgosto da prisão?!

Assim o recommendei.

A D. Marianna olhou-o um pouco espantada com a amabilidade e respondeu:

-- Agradecida, não me teem tratado mal.

-- Queira sentar-se, minha senhora. Temos que conversar um instante, disse o corregedor; e sentou-se, depois de D. Marianna o ter feito.

A pobre rainha tinha os olhos no chão e esperava o que Diogo da Fonseca lhe iria dizer, com certo temor intimo.

-- Minha senhora, começou elle, a senhora não ignora que tem a responsabilidade de um grande crime.

-- Eu? disse D. Marianna, espantada.

-- A senhora.

-- Um grande crime? Mas que fiz eu?

-- A senhora, seu pae, seu marido, tomaram um logar que lhes não pertencia, insultando a majestade de El-Rei D. Filippe II e provocando a desordem e a rebelião contra o legitimo rei.

-- Mas eu...

-- A senhora fez se rainha, como tal tem sida recebida e acclamada; se essa subida ao throno nãa passasse de uma pura comedia; se não tivesse dado origem a casos graves, eu poderia perdoar-lhe a loucura.

-- A loucura? disse a rainha, levantando a cabeça, que loucura fiz eu?

-- Foi El-Rei que quiz casar commigo... amava-o, casei.

-- O rei?

-- El-Rei D. Sebastião, pois quem?

-- Minha senhora, observou o corregedor, com sorriso ironico, não vale representar mais. Seu marido é um aventureiro, um especulador que se serviu da credulidade popular para viver á larga, para lhe apanhar a mão, para enriquecer. De mais o sabe a senhora; de mais o sabe seu pae.

-- Eu não! creio que elle é o rei... que veiu da Terra Santa...?!

-- Acreditou, talvez, isso um dia. Teve tempo para se desenganar. Não quiz; custava-lhe deixar o trono, confesse. O logar é bonito...

-- Acreditei e ainda hoje o creio. Meu marido é o rei; nunca tive razão para o duvidar. Sou só eu a acredital-o?

-- Seja assim; consciente ou inconsciente, a senhora foi uma rainha de comedia... como seu marido foi o rei.

-- Foi? Matou-o? perguntou Marianna, erguendo-se.

-- Fugiu; nem o vi combater. D. Sebastião não fugiria.

-- Ah! disse a pobre rapariga, cahindo, abandonada, na cadeira... e meu pae?

-- Seguiu-o, disse, velhacamente, o corregedor.

Os bons vassalos não abandonam o seu rei, na desgraça.

A ex-rainha soluçava.

O corregedor olhou-a por algum tempo, a deixar passar a crise, e, ao vel-a um pouco mais serena, continuou:

-- A sua cumplicidade na comedia, torna-a ré de um crime de rebelião, de lesa magestade.

A D. Mariana olhou-o, sem comprehender onde elle queria chegar. Elle sustentou-lhe o olhar e perguntou:

-- Sabe o castigo que a lei manda dar a crime de tal ordem?

A pobre rainha conservou-se silenciosa.

-- Sabe? perguntou de novo o corregedor. E, como ella não respondesse, respondeu elle: -- o de morte!

Palida, a rainha fitou-o. O rosto do corregedor repremir o quer que fosse de um prazer satânico. Tremendo, D. Mariana, baixou os olhos, de novo; o rosto embranqueceu-lhe, cadavericamente.

-- Ouviu, minha senhora? interrogou de novo o corregedor.

-- Ouvi, disse D. Mariana com voz sumida.

-- A lei é clara, iniludível. A senhora foi cumplice de todas as proezas de seu marido e de seu pae, tem a mesma responsabilidade que elles teem, alcançou-a a mesma pena.

A impressão profunda que Mariana sentia dava-lhe ao rosto uma expressão de error.

-- Oiça, disse o corregedor, a lei é severa, a senhora está perdida; mas condôo-me da sua mocidade e quero, até, acreditar um pouco na sinceridade das suas palavras com relação a seu marido e venho salval-a

-- O senhor...

-- Eu. Está na minha mão decretar o seu castigo, aquelle que me apetecer; pois venho colocar esse poder debaixo da sua vontade e do seu bom senso.

Vae fazer-me um favor... que eu lhe pedir.

-- O quê? disse a D. Mariana, olhando-o desconfiada.

-- Nada receie, volveu o corregedor, sorrindo-se; o que lhe vou pedir em nada offende a sua dignidade de mulher.

D. Mariana poz-se a fital-o, com insistencia.

-- Eu poderia exigir, disse o corregedor; teria maneira de obter o que peço... prefiro pedir.

O olhar de D. Mariana perguntava: o que é?

-- Minha senhora, assentimos e garanto-lhe, ainda que a possa magoar a minha afirmação, sob a minha palavra de cavalheiro, que seu marido é um burlão, um aventureiro, um miseravel. Réu de alta traição, deu causa a mortes, impeliu a crimes. É preciso que pague as suas audacias e as consequencias terriveis que d'ellas nasceram.

A justiça necessita d'elle e tel-o-ha, mais cedo ou mais tarde. É porém vantajoso que o tenha mais cedo, para socego completo de todos e para exemplo a futuros doidos.

Fugiu, mas não tardará em fazer-lhe saber onde está. N'esse dia chamal-o-ha aqui e prevenirá o alcaide.

-- Eu? disse a ex-rainha, levantando o olhar indignado, eu? É isso que me propõe? que eu traia meu marido! que o entregue ao carrasco?

-- É isso, simplesmente. É o seu dever de subdita de el-rei D. Filippe, é a sua vida que salva.

-- Nunca! disse D. Mariana, nunca!

-- Lembre-se que se condemna, que se mata.

-- Não importa; respondeu a pobre rapariga, n'um impulso de generosa indignação; nunca faria tal. Era uma infamia.

-- Chame-lhe o que quizer. Observo-lhe que o seu rei não tardará, cedo ou tarde, a cahir-me nas mãos e que a sua recusa lhe augmentará o castigo.

-- Mais do que a morte? perguntou desvairada; pois ha maior castigo do que a morte?

-- Ha; os tormentos... antes.

Um calafrio horrivel percorreu o corpo da pobre rapariga; mas uma indignação subita, como reacção, a tomou.

Com uma voz, seca, fria, histérica, olhando o corregedor, face a face, disse:

-- Seja como fôr, não o farei, não o faço.

-- Minha senhora, observou-lhe elle, com grande placidez, levantando-se, eu não posso perder mais tempo em conferencias desnecessárias.

Pedi; a senhora não acede, vou mandar. Fica assente que entregará seu marido á justiça, no dia em que ao seu pedido elle aqui vier? Ou que denunciará, como lhe cumpre, o logar onde souber que elle se acoita?

-- Não senhor, nunca!

-- Nesse caso, usarei de meios convincentes... aos que a sua teimosia me obriga a usar e de que tenho pena. A lei ordena-os, cumprirei a lei... mandal-a-hei chicotear pulicamente... na rua.

D. Mariana, ao ouvir tal sentença, deu um grito e cahiu desmaiada na cadeira, ao mesmo tempo que uma porta de lado se abria, de chofre, e D. Rita, a mãe, se atirava aos pés do corregedor, gritando, em lagrimas: -- Senhor, tenha compaixão de nós, tenha dó da minha filha. A pobre mulher ouvira, em anciãs, a conversa.

-- Levante-se mulher, mandou elle em tom áspero. Levante-se; levante-se. Demais tenho sido condescendente; demais ouvi as recusas de sua filha. Depois, como indo a retirar-se:

Aconselhe-a você; dê-lhe juízo.

-- Senhor, oiça, dizia a pobre mãe... Mariana,, Mariana, ouve filha... ser açoitada, meu Deus... diz que sim, minha filha, diz que sim e abraçava-a e chorava-lhe sobre o rosto palido.

-- Não, rainha mãe, não, dizia Mariana com voz surda... Não posso... não posso.

-- É uma loucura filha... pensa... olha... Depois, virando-se para o corregedor que assistia, frio como uma estatua, á emocionante scena, dizia-lhe:

-- Ella faz, sr. corregedor... ella faz o que vossa mercê deseja... eu aconselharei... eu lhe pedirei... Não é verdade filha?

Marianna não respondia, anniquilada, o olhar, vago, rodeando a casa, como n'um pesadelo, como n'um delirio.

-- Senhor corregedor, voltava a pobre mãe, afianço-lhe... suspenda a sua tenção... Em ella socegando... eu falo-lhe... Ella ha-de ouvir-me. Açoitada, na rua! que horror!

-- Tem mais juizo do que ella, disse o corregedor, pondo o chapéu.

Espero até amanhã que a convença. Até amanhã ao meio dia... Se persistir... não lhe valerão lagrimas nem pedidos. A justiça será inflexivel. Convença-a... adeus.

Dizendo, caminhou para a porta e lançando um ultimo olhar ás duas mulheres abraçadas, sahiu.

Á força de beijos e lagrimas a pobre mãe desolada conseguiu serenar, um pouco mais, a filha.

Levou-a para o quarto, fèl-a deitar sobre o leito, sentou-se-lhe ao lado.

-- Eu bem sei, dizia-lhe d'ahi a pouco, eu bem sei que não é facil, que não é bonito, entregar o teu marido... o tal rei ...

-- O tal rei! disse a Marianna.

-- O tal rei, sim. Elle é lá rei... eu sempre o disse; mas é justo; não foi elle que nos meteu n'esta aflicção? Não foi elle que nos enganou? Aguente-se... elle é que arranjou a alhada...

-- Enganou!

-- Pois quê? Deixemo-nos de mais tolices, minha filha. Vê o que te espera por causa d'esse maldito...

-- Ó minha mãe, minha mãe, não fale assim.

-- Pois como hei de falar? Teu pae fugido da forca! tu em vésperas de seres chicoteada... n'esta desgraça.. n'esta miseria... presa... ameaçada... o que queres tu que eu diga?

-- Foi elle....

-- Pois quem foi? Não viviamos nós socegadas na nossa casa, contentes, felizes? Nossa Senhora... has de dizer que sim... escreve-lhe quando elle te escrever... se souberes onde pára, dil-o-... dil-o logo... quem as fez que as desfaça... quem faz a cama que se deite n'ella.

A senhora Rita argumentava com toda a sinceridade e com todo o egoismo do seu amor maternal.

D. Marianna sentia que ella tinha certa razão; mas amava o marido, muito, e não podia conformar-se com a ideia de o trahir, de ser causa da sua prisão e da sua morte certa.

Elle seria apanhado, talvez, julgado, morto!

Talvez fosse; mas não seria ella quem o havia de entregar, deslealmente, torpemente, miseravelmente!

Isso não podia fazer. O seu espirito leal rejeitava, absolutamente, uma tal cobardia.

Elle nunca lhe tinha feito mal; pelo contrario, fôra sempre bom, sempre altencioso, sempre delicado.

E havia, ella, de o trahir, de lhe pagar os bons dias que lhe dera de felicidade, de amor, com a sua traição ignobil?

Não podia ser, não podia ser.

E, por mais que a mãe, no resto do dia, exgotasse o arsenal dos seus argumentos, apelasse para o seu amor, Marianna não teve nunca a coragem, nem para a enganar, nem a de prometer associar-se ao plano revoltante do corregedor.

-- Queres a minha morte, dizia-lhe a mãe como ultimo argumento, queres a minha morte!

Teu pae, quem sabe o que será feito d'elle e o que lhe virá a acontecer... matam-no tambem...

É melhor assim; ficas só com os teus remorsos e a tua compaixão!

D. Marianna, ainda que comovida, replicava, sempre, a razão contra a qual não ha argumentos:

-- Não o posso fazer.

-- Mas promete-o, ao menos, dizia-lhe a mãe, promete.

-- De que servirá? É prolongar um suplicio... eu não o faria nunca, chegado o momento.

Chorando, indignando-se, rogando, a senhora Rita não deixou a filha a tarde inteira, até que a noite chegou e a hora de dormir.

-- O travesseiro aconselha, disse despedindo-se; pensa; amanhã espero encontrar-te de melhor humor... pensa minha filha o que vais fazer... o que fazes com a tua teima... Adeus, adeus. Beijou-a muito, sahiu.

Foi para o seu quarto rezar; emquanto a pobre D. Mariana, voltando-se no leito, sem poder conciliar o somnb, a lembrar-se do marido, do seu destino d'elle, d'ella propria, do pae, do corregedor, desabafava em lagrimas ardentes, a aflicção intima que a sufocava.

Era manhã, quando a cabeça exhausta e desfalecida tombou no travesseiro e... adormeceu!

Pelos montes

Depois da batalha, o rei e Pedro Affonso tinham fugido cada um para seu lado, como tinham podido.

De nenhum se sabia.

O corregedor offerecera perdão e dinheiro a quem entregasse o D. Sebastião ou o sogro. Qualquer d'elles valia boa conta.

A Pedro Affonso ninguem perseguia, então; ao D. Sebastião, houve quem lhe começasse no encalço, no dia seguinte ao do desastre. Foi Bernardo Simões.

O filho de Antonio Simões soube da ameaça do corregedor a D. Marianna. Vêl-a açoitar em publico, descomposta... só o pensal-o fazia-o estremecer.

Amava-a ainda; resolveu salval-a.

Foi ter com o corregedor e disse-lhe:

-- Antes de tres dias, trago-lhe aqui o tal D. Sebastião. Peço a V. s.ª que suspenda até lá qualquer procedimento contra a senhora que é sua mulher.

-- Sois capaz?

-- Dê-me v. s.ª dois homens de confiança para me acompanharem, a cavallo.

N'esse mesmo dia tres cavalleiros sabiam da Ericeira para os lados do Monte Junto. Pela noite immediata pararam á porta de uma taverna, onde entraram; pediram poisada e de comer para os cavallos e para elles.

Recolhidos os cavallos n'uma arribana, sentaram-se os tres a uma mesa onde o taverneiro collocara pão, queijo e vinho; ao lado umas sardinhas fritas.

Havia mais dois freguezes, camponeos, n'outra mesa.

Começara a conversa.

Falou-se do tempo que ia correndo, do máu anno, das más colheitas, das contribuições, até se entrar no assumpto obrigado da desgraça do reino, da miseria.

-- Então, dizia o Bernardo, para o taverneiro, isto vae mal, hein?

-- O peor que pôde ser, meu senhor, então por aqui, que tem andado tudo alvoroçado, vae uma desgraça.

-- Alvoroçado com as cousas do rei?

-- Então com quê?

O taberneiro e os dois freguezes olhavam sempre o Bernardo e os companheiros com desconfiança.

Esta ia, pouco a pouco., a desfazer-se porque o desconhecido tinha uma grande naturalidade no falar, como os companheiros.

O aspecto agressivo, que o seu apparecimento brusco, mais do que os seus modos, tinha despertado, desaparecia.

Assim, o Bernardo poude perguntar sem despertar suspeitas:

-- O que sabem vocês do rei?

Houve um silencio em que se percebia que nenhum dos homens queria ser o primeiro a responder.

-- O que sabem? interrogou de novo o Bernardo, olhando o taberneiro.

-- O que vossa mercê saberá já, respondeu este, retrahindo-se à resposta.

-- O que eu sei não me basta, disse o Bernardo, vocês hão de saber mais alguma coisa. Eu ando em sua procura, d'elle; sou um amigo que o quer proteger...

A mulher do taberneiro fazia de dentro da casa interior sinaes ao marido; signaes que elle não percebia bem, mas que lhe punham um nó na garganta.

A mulher tinha sido um apostolo fervente da nova realeza e estava a vêr nos hospedes uns perseguidores do fugitivo. O marido comprehendia que ella devia manda-lo calar; mas, ao mesmo tempo, receiava desagradar aos freguezes cá cinta dos quaes elle via, de vez em quando, luzirem as coronhas de grandes pistolas de cavallaria.

Interrogado pelos olhares, ia a falar quando a mulher surgiu de dentro e dirijindo-se aos dois camponezes lhes disse:

-- Vocês já acabaram de beber, hein? É tarde... é melhor recolherem-se a suas casas.

Os homens levantaram-se, sahiram e ella fechou a porta.

-- Vossas Mercês, disse, indo perto da mesa, são de verdade amigos do nosso rei que fugiu?

-- Já lhe disse, mulher, que sim, affirmou o Bernardo.

-- Pois Nossa Senhora permitta que assim seja, que elle bem precisa que o escondam e lhe dêem agazalho.

-- Sabe onde está? Diga que é para bem d'elle.

-- Não sei aonde está, mas sei que passou aqui com dois companheiros, que venderam dois cavalos 6 que depois voltou para traz um d'elles para procurar quem quer que fosse, com um recado.

-- E os outros dois?

-- Os outros dois foram-se, a pé, para o lado da serra logo que se fez noite bastante.

E quando foi isso?

-- A noite passada.

-- Então não podem estar longe... a pé e andando só de noite...

-- Não devem estar, não; tanto mais que os pobres não se haviam bem com os fatos pezados que levavam...

-- Não eram os d'elles?

-- Essa agora... então se fossem de fatos ricos quem os não conhecia? Vestiram fatos nossos, um de meu marido, outro de um filho meu... pagaram-nos bem, porque deixaram os d'elles... até á volta, já se vê... é um penhor.

-- Coitados! exclamou um dos dois companheiros, que raras vezes falava; como não hão de ir!

-- Como dois pobres de Deus, confirmou a mulher; mas antes assim do que vestidos de senhores, por esses caminhos, onde todos reparariam n'elles e lhes deitariam a mão.

-- Isso decerto, interrompeu o Bernardo. Então, agora, que as justiças teem ordem de os perseguir, em qualquer parte eram apanhados.

-- Os senhores, então, são seus amigos? perguntou, depois de um pequeno silencio a taberneira... sempre com uma ligeira desconfiança, que ella não podia dissipar de todo.

-- Dos melhores; acompanhámo-lo sempre e como soubéssemos da desgraça que lhe aconteceu, vimos em sua busca até podermos faze-lo entrar em Hespanha.

-- Deus os ajudará, disse a pobre mulher com convicção... já que não quiz que ainda d'esta vez não puzessemos fôra esses hespanhoes do inferno.

-- Que estrada seguiu elle, pouco mais ou menos?

-- Para as bandas do Arneiro, disse o homem.

Uma hora antes do dia, refeitos pela ceia, descançados os cavallos e tratados os tres viajantes punham-se a caminho, na esteira dos fugitivos.

-- Temo-lo nas mãos antes de vinte e quatro horas, dizia o Bernardo.

-- É preciso irmos devagar e indagando sempre. A's vezes o andar muito depressa é poior. Podem ficar para traz.

-- Onde hão de elles estar? De dia acoitam se ahi por qualquer bosque; mas vou hão-de precisar de comer, luto de vir ás vendas.

Caminharam, devagar, pelos caminhos, olhando os casaes e abeirando se de quem encontravam.

-- Viu por aqui dois homens assim e assim?

Davam os signaes.

Durante a manhã ninguem os tinha visto.

Pela tarde um camponez informou:

-- Vi-os passar, ás ave-marias... iam para os lados da serra... pediram agua, ali, n'aquella caza...

Um outro, mais adeante, explicava:

-- Em assim mais novo, outro mais velho... vão ahi adeante... cortaram pelo vale... não lhe levam uma hora de caminho. Apressaram a marcha dos cavallos.

O vale era um d'estes corredores áridos e pedregosos, entre montes, com um pequeno carreiro ao centro calçado de pedras brancas que indicam que de inverno a agua corre por ali.

Prolongava-se por kilometros.

As abas dos montes que os formavam eram cobertas por uma vegetação rasteira, de tojo, de urze, de rosmaninho, e de diversos arbustos silvestres.

N'um ou n'outro morro mais alto havia umas ruinas de casal abandonado, ou de moinho cahido.

N'um ou n'outro sucalco de terra, aqui ou ali, n'uma fenda das pedras uma arvore enfezada balouçava, lenta.

Paisagem monótona da charneca, que permitte a visão a uma grande distancia.

Se os fugitivos tinham enveredado por ali, aproveitando a solidão do caminho, estavam, em pouco descobertos.

Assim foi; depois de meia hora de caminho, ao longe, os cavalleiros viram distinctamente os vultos de dois homens caminhando, como os camponezes, vagarosa, pachorrentamente.

-- São elles, disse um dos cavalleiros que primeiro os avistou... lá vão...

Minutos depois, os fugitivos voltavam-se surprehendidos pelo barulho das patas dos cavallos sobre os seixos do algar e paravam medrosos vendo approximarem-se, n'um trote rapido, os tres cavalleiros.

-- Estamos perdidos, disse com voz de mêdo o rei da Ericeira... isto não é caminho de cavallos... perseguem-nos.

-- Quem sabe? disse o companheiro. São talvez amigos... que nos procuram...

-- Amigos? interrompeu o rei, com nm riso amarello... amigos... agora?

-- Se fugissemos! disse o ajudante, olhando em roda, a procurar um refugio, uma vereda escusa.

-- Para onde?

Os dois homens olharam os tombados escuros dos montes difficeis de subir e só viram, para deante, o corredor estreito, sem fim, entre cabeços intermináveis.

Fugir, por alli, a cavalleiros, era uma loucura, um impossivel.

-- Vamos a ver o que é, disse o rei... paremos.

Pararam, emquanto os tres cavalleiros se approximavam, rapidos.

Quando o rei conheceu o filho de Antonio Simões teve um momento de esperança.

Seria um soccorro? Mas breve pelo ar e modos se persuadiu do contrario e se lembrou que alguma cousa ouvira dizer d'elle com relação á mulher.

Bernardo Simões não se associara nunca com o pae; era um apaixonado infeliz, era, portanto, um inimigo.

De chofre, sentiu isto a que nunca ligara importancia e percoljou que a sua ultima hora de liberdade ou de vida ia soar.

Uma altivez, feita de colera, de amor proprio esmagado, fez-lhe responder a Bernardo Simões, quando este lhe ordenou que o seguisse;

-- Ao senhor? seguil-o? para quê?

-- Não é você o rei? perguutou-!he ironicamente o Bernardo.

-- Sou eu.

-- Então é preciso partir para Lisboa, que está lá o trono, á espera.

Matheus Alvares sentiu que o invadia uma, d'estas coleras, subitas, indomáveis. Se elle pudesse esmigalhar aquelle homem.

-- Que miseravel! Porque me prende? exclamou.

-- É para salvar sua mulher de ser açoitada, publicamente, pelas suas proezas, disse-lhe o Bernardo com o maior desprezo. Que os aventureiros, como você, paguem as suas audacias é justo; mas que uma pobre rapariga illudida, seja enxovalhada pelos crimes dos outros não se deve consentir.

Tem entendido? Então é andar para a frente, que temos pressa.

A cabeça baixa, os olhos no chão, uma tempestade dentro da cabeça, o rei da Ericeira poz-se a caminho á frente dos cavallos.

Tudo perdido!

O reino, a mulher -- tão interessante e tão meiga -- tudo se perdera n'um dia,

Parecia-lhe um sonho aquilo tudo. Onde estava então a certeza d'essas vozes intimas, d'aquelle sentir que sugerira a ideia de uma victoria estrondosa sobre os inimigos, os desvastadores do paiz, d'aquelle avizo que parecia ter-lhe vindo do céu, como decreto divino?

Elle fizera o seu dever; quanto pudera fazer, quanto lh'o tinham permittido as suas forças.

Levantara parte de uma provincia, porque se não tinham levantado as outras? Não era sua a falta.

Ah! o povo! o povo! raça de miseraveis, de escravos, supportando com protestos as algemas, e quando apparece o momento de as despedaçar, funde-o o mêdo, abate-o a cobardia perante o hespanhol e deixa-se ficar inerme, a gemer magnas e dores!

Que miseria! que miseria!

E o pensamento martelava-lhe a cabeça, mostrando-lhe os seus primeiros impulsos, o frade da cova, em Cintra, profetisando-lhe a victoria, os primeiros passos para a propaganda, o auxilio de Antonio Simões, a sua generosidade, o seu patriotismo.

Que seria feito d'elle? Te-lo-hiam apanhado, tambem? Estaria, áquella hora, preso como elle, nas mãos do corregedor Diogo da Fonseca, te-lo-hiam enforcado, já?

A filha... oh! a filha! Pobre Marianna, tão bella, tão sua amiga... ter de a perder, para sempre!...

Uma dôr funda lhe apertou o peito. Que sonho tão bom! e que illusão tão rapida!

Assim, como fóra de si, alheiado, o pobre rei caminhava, entre os cavallos dos dois companheiros de Bernardo, emquanto o ajudante, mais atraz, ladeava o cavallo do Simões.

Tinham sabido dos montes e endireitado para Torres Vedras.

Em certa altura, o ajudante do rei da Ericeira dirigiu-se ao Bernardo Simões, dizendo-lhe:

-- Queria pedir-lhe um favor, se me desse licença.

-- Qual é?

-- Vossa Mercê não tem de mim agravos nem queixas; mal me conhece, não é verdade?

-- Assim é.

-- Logo, não me tem odio algum, nem nenhum bem lhe resulta de me entregar á justiça do corregedor. Tem algum interesse?

-- Nenhum.

-- Como criminoso, não mereço a morte. Puz-me ao serviço de um homem que imaginava rei. Fui-lhe fiel nas horas de ventura, não o abandonei na desgraça.

-- É isto um mal?

-- O que quereis concluir?

-- Que Vossa Mercê não comete acto algum censuravel, porque não é beleguim nem alcaide, dando-me a liberdade. São fui culpado dos crimes que se cometteram e para nenhum concorri. Responda Vossa Mercê.

O homem tinha uma certa razão. Não tinha crime. Bernardo sabia que entregue ás justiças, era mais um homem na forca.

Elle dizia bem: não era beleguim, nem prendia por officio. A prisão do rei, tinha uma razão de ser, a d'elle não tinha nenhuma. Se era um revoltoso as justiças do rei que o prendessem e o castigassem como entendessem. Repugnava-lhe entregal-o ao carrasco.

Voltou-se para elle e disse-lhe:

-- Tem razão, não me compete nem prendel-o, nem julgal-o. Fique para traz; está livre.

O homem levou a mão ao chapeu e com uma voz entrecortada pela comoção disse:

-- Que Deus o faça feliz como merece, sr. Bernardo Simões e se um dia lhe puder ser util na sua vida -- se eu for vivo, disse como que emendado uma proposição arrojada -- conte comigo; e, disse-lhe o nome e onde morava, junto de Mafra.

-- Fique com Deus, respondeu Bernardo, e continuou o caminho.

Pela noite, entrava preso, em Torres Vedras o rei da Ericeira.

Mandou o Bernardo Simões que o tivessem bem guardado por causa da populaça. Era inutil. Os que o iam ver dirigiam-lhe chufas que o alcançavam por entre as grades do cárcere.

Os amigos, os sectários, tinham desapparecido.

Bernardo Simões corria á Ericeira a prevenir da prisão do rei, não fosse alguma precipitação enxovalhar a rainha.

O fim de um sonho

No dia 12 de junho de 1585 entrava pelas portas de Santo Antão, montado n'ama mala, guardado por soldados de Santo Estevam, o ex-rei da Ericeira.

Mal que soube da noticia, o povo, em chusma, correra, fora de portas, para ver e acompanhar o novo D. Sebastião, cuja entrada devia ter enorme semelhança com a do primeiro.

Porque a crueldade popular com os desvalidos, com os que cahem vencidos, com os que a sorte desprezou, é sempre a mesma e manifesta-se em insultos e maus tratos.

Entre estes, entrou o rei da Ericeira, mas é preciso dizer que o fez com superior desdém respondendo ás chufas com chicotadas.

-- Cobardes! Em vez de virdes insultar-me melhor fôra que vos batêsseis pela vossa liberdade!

Sois como os escravos, humildes com os fortes, insolentes com os fracos.

El-rei de Hespaiha ha de pagar-vos a dedicação, cães esfaimados.

Muitos que o viram passar, a cabeça erguida orgulhosamente, o olhar vivo, a expressão sarcastica do rosto, sentiram como que um remorso intimo, ainda que passageiro.

O que levava ali aquelle homem fôra uma ideia nobre: e, não se podia negar que elle tinha uma coragem que o resto da nação não possuia.

Se todos fossem como elle!...

O prestito chegou á cadeia.

No outro dia, applicaram-lhe as torturas.

Supportou as com o maior animo, dizendo:

-- Não é preciso, senhores; eu confesso, claramente, tudo o que fiz e o que queria fazer. Tendes motivos de sobra para me matardes; não precizaes dos tormentos para a minha confissão plena.

Estas e outras palavras impressionaram os juizes.

Começou o interrogatorio.

-- Como vos chamaes?

-- Matheus Alvares.

-- De onde sois?

-- Da Villa da Praia, nos Açores.

-- Não sois, ou melhor confessaes que não sois o rei D. Sebastião?

-- Nunca o fui.

-- Mas fizestes-vos passar como tal, com que intenção?

-- Nenhuma mais clara; tomei o nome de D. Sebastião para vêr se conseguia libertar Portugal do jugo castelhano.

-- Tal poder imaginastes chegar a possuir?

-- Eu? porque não? Se o povo me secundasse. Quem fez rei de Portugal D. João I? Quem decretou para ser primeiro rei D. Affonso Henriques? O povo não o quiz, peor para elle.

-- O vosso plano era, pois, revolucionar o paiz...

-- Naturalmente... O primeiro passo seria o de entrar em Lisboa, ardilosamente, na noite de S. João, com a força que já me acompanhava, tomar de surpreza o paço, prender o archiduque e os seus e proclamar-me rei.

Se o tivesse podido fazer Lisboa não se recusaria a seguir-me.

Se não toda ao menos uma grande parte, não d'essa população que me insultou, mas de muitos cujo coração santírae a que uma tyrania férrea não permite manifestarem-se.

Acreditae que ha muitos e que um dia apparecerão.

As palavras altivas de Matheus Alvares levaram á alma dos juizes uma impressão de remorso e de mêdo.

Quem era digno, ali, a dois passos da morte certa, era elle.

Elles, os juizes, eram uns vendidos, escravos de um rei opressor, portuííuezes renegados e cobardes.

-- Que farieis, perguntou um d'estes, se alcançasseis ser proclamado rei, não sendo D. Sebastião?

-- O que faria? N'esse dia, diria a todos: olhae para mim; em que me pareço com D. Sebastião? Em cousa alguma. Olhai bem, não o sou, nunca o fui.

Agora, porém, sois livres. Um povo livre escolhe o seu rei: escolhei o vosso! Ha, ahi. ainda alguns nobres fidalgos que se não venderam, que o merecem ser; escolhei o que achardes mais digno de vos governar... tendes esse direito, escolhei!

Foi assim que falou o homem que fugiu cobardemente aos primeiros tiros do unico combate a que assistiu.

Com esta simplicidade e nobreza, com esta altivez e coragem ante os suplicios, ante a morte!

Por isso eu afirmava que era um valente aquelle cobarde, porque a valentia é uma consciencia de força e perante a morte certa o cerebro humano revolta-se contra o mêdo do inevitavel e despreza-o.

A historia relata a impressão de pasmo que as palavras de Matheus Alvares produziram nos juizes.

É que elles sentiatn que uma causa que dictava taes palavras d'um simples popular, que o erguia tão alto, acima da vulgaridade dos homens, dos portuguezes, mão era uma causa morta e, pelo contrario, um sentimento, profundo, arreigado na alma do povo, cVonde nascem todos os grandes arrojos, todos os grandes feitos da historia da humanidade.

Ah, havia um juiz -- o réu; havia criminosos, dizia-lh'o a consciencia, -- eram elles!

O processo incomodava-os; era precizo que acabasse depressa.

Assim, foi sumario.

Matheus Alvares entrou em Lisboa no dia 12 de junho, no dia 14 era supliciado.

Cortaramlhe a mão com que assignara -- D. Sebastião e depois foi pendurado na forca.

Mal morto; separaram-lhe a cabeça do tronco e espetaram-na n'um gancho do pelourinho.

Como não bastasse, para exemplo a futuros D. Sebastiões, cortaram-lhe o corpo em tantos pedaços como o numero de portas da cidade e em cada, uma d'ellas, os puzeram, pendentes, um mez a apodrecerem!

Assim acabou o segundo rei impostor.

O sogro, o nosso Pedro Affonso, marquez de Torres Vedras, conde de Monsanto, senhor da Ericeira e governador de Lisboa não tardou a seguil-o.

Esse foi enforcado na Ericeira.

Andou a monte, uns dias. O corregedor offereceu o perdão áquelle que o entregasse e um dos partidarios teve a infame fraqueza de o trahir para poupar a cabeça.

Foi preso, uma tarde, quando entrava n'uma venda, para comer, ás escondidas.

Tinham-lhe sabido do habito e escondidos os soldados, nos arredores, quando comia tranquilamente, cercaram no e levaram-no para a Ericeira.

Não o puzeram a tormentos. Contentaram-se com o enforcamento -- classico.

Foi deante do paço, onde a filha já não estava, livre da prisão e dos açoites, por Bernardo Simões.

Um romancista mais acabado e respeitador de desfechos sensacionaes não passaria, aqui, sem noticia de D. Marianna e de Bernardo.

Levaria os dois a uma entrevista, onde a Marianna de joelhos agradecesse a Bernardo a sua intervenção salvadora.

Elle levanta-la-hia, comovido, e dir-lhe-hia palavras muito boas sobre a sua desgraça.

Como consolador, de vez em quando, iria aparecendo pela quinta de Rio de Moiro. O antigo amor de Bernardo refinaria e D. Marianna já por ella propria, já aconselhada pela mãe, já por gratidão, deixar-se-hia envolver pelo carinhoso affecto de Bernardo e um dia... um anno depois... iria casar, sem corôa de prata, na egreja de Nossa Senhora de Belem, ao pé da herdade, com o salvador.

Seriam felizes, teriam muitos filhos, chegariam a velhos e morreriam na paz de Deus.

Talvez fosse assim. A liistoria não o diz. A pobre Marianna, rainha da comedia, não lhe mereceu mais cuidados nem attenções; mas se o leitor gosta d'este final, adopte-o, faça como eu. Nem a historia nem o romance ficam prejudicados e ao menos o drama tem um fim consolador.

É bom que alguma cousa acabe bem no meio de tantas mortes. Tantas houve, durante mezes, em Torres Vedras, Mafra e Ericeira, que foi o proprio archi-duque quem mandou ao Diogo da Fonseca suspender as furias e arrazar as forcas.

Este foi o final da segunda tentativa popular, mais seria do que a primeira; mas sem uma base que a pudesse fazer poderosa e chegar ao fim alto da mira.

A sua repressão foi tremenda; tão cruel que todo o paiz a soube e mais nenhum eremita se achou com forças de se disfarçar no morto de Alcacer Kibir.

Ora, como não era possivel fazelo, cá dentro, tentou-se conseguil-o lá fóra.

O rei de Madrigal

Um frade de altas idêas.

No dia 19 de setembro de 1578 o templo dos Jeronymos, em Belem, era pequeno para o numero de pessoas que o continha.

Recebera-se, havia dias, a noticia da derrota de Alcacer Kibir, da morte de D. Sebastião, faziam-se exéquias pelo rei e pregava frei Miguel dos Santos, frade de grande fama, justa, provincial dos agostinhos, pregador de D. Sebastião e confessor de D. Antonio, o prior do Crato.

A fama do padre, o desejo de desabafar maguas na oração e nas preces em conmium, levara ao templo de Belem uma multidão de homens e de mulheres, sem filhos, sem pães, sem irmãos, todos mortos em Africa.

N'um grande silencio. Fr. Miguel dos Santos, homem de nobre figura, robusto, lançou no latim da praxe, a invocação de Daniel, que diz:

«A justiça é tua ó Senhor; a nós resta-nos a confusão do rosto, como hoje teem os homens de Judá e os habitantes de Jerusalém... os nossos reis e pães que peccaram».

Traduzido o latim, assentando que a Virgem Nossa Senhora era a suprema esperança, saudou-a com uma Ave Maria.

Falou nos peccados de Israel e como por elles Deus consentira que fosse tomada e saqueada por barbaros, a sua querida cidade de Jerusalem e castigados com as maiores vergonhas os seu filhos, que se confessavam criminosos, no captiveiro.

«Vede, accrescentou, com quanta maior razão poderá dizer, isto, por si, hoje, n'este dia, o triste e desventurado reino de Portugal! Vêde-o, pois, vós.

«Desde que o mundo é mundo, não houve desventura egual a esta...

«Que triste, que lamentavel historia se compara agora á d'este reino, em outro tempo tão glorioso, que sendo tão pequeno em gente, era tão grande em esforço e animo, que lá na India, tantas mil léguas d'aqui, fazia tremer a barba a nossos inimigos!

Quando se escrever que seu rei com toda a flôr do reino, em menos de tres horas se consumia de todo, á vista e faro da nossa terra, ás mãos de inimigos barbaros e cobardes a quem só nossos peccados fizeram reforçados

«Que deshonra esta do nosso rosto! de nossos reis! de nossos príncipes! de nossos bispos! de nossos pregadores! de nossos pães!

- Que deshonra esta para vós, rei D. Affonso Henriques, pois as vossas armas com que libertastes este reino, com que vencestes cinco reis mouros no campo onde Jesus vos appareceu no céu crucificado, no campo de Alcacer Kibir não sem grande deshonra vossa ficaram.

«Que afronta esta para vós, D. João II de gloriosa memoria, cujo governo deu a este reino Ceuta, chave de toda a Hespanha!

«Que afronta para vós, senhor rei D. Manuel, a cujos pés todos os reis do Oriente vinham, com as mãos cruzadas, dar obediencia!

«Que direi de vós, D. João III... cujo neto veiu a ser despido entre os mortos no campo de Alcacer e sem sepultura!

«Que vergonha esta e que deshonra!

Citou O caso do cadaver de Saul procurado até ser encontrado, por homens fortes, para opor ao caso do D. Sebastião perdido; e ainda o de David entrando na tenda de Saul, inimigo adormecido, levandodhe a lança que tinha á cabeceira, sahindo e pondo-se a gritar ao longe n'um monte:

como guardaes o vosso rei. Olhae se esta é a sua lança.

Como tinham os portuguezes guardado o seu rei?

E exclamava:

«Cuidar n'isto parece um sonho. Quem viu ha tres mezes Portugal e o vê agora! Tanta festa! tanta galanteria! tanta formosura!... Amigos, tudo isto é acabado. Tremem as carnes cuidar n'esta desventura, cançam os espíritos, enlea-se o entendimento, antepara o juizo, embaraça-se a razão!

«Cuidar que um rei que lagrimas pediram, lagrimas crearam, lagrimas sustentaram, acabou assim da maneira que vedes!

Explanou-se sobre os intuitos e juizos inexplicaveis de Deus, sobre os seus castigos que não é dado aos homens perceberem, sobre a morte heroica de D. Sebastião, frizando a desculpa da pouca edade e a responsabilidade de todos os outros.

«Pois quem vos matou, meu formoso? Matou-vos o bispo, matou-vos o clérigo, matou-vos o frade, matou-vos a freira, matou-vos o grande, matou-vos o pequeno, matou-vos o privado, matou-vos o alto, matou-vos o baixo, matou-vos o povo, matei-vos eu, matámo-lo todos quantos somos porque entre nós não houve um tanoeiro que lhe tivesse mão na redea, como já se fez a outro rei d'este reino.

Compugida a assistência chorava e o frade carregava nos tropos censurando-lhe a cobardia. Áquelles que podiam perguntar porque tinham culpa os pães, maridos ou irmãos que lá tinham ido força, o padre respondia que tinham pago os pecados dos paes.

Os padres explicam tudo, com estas clarezas.

Falou do orgulho dos fidagos, que se antepunham até Deus; do luxo com que só numas calmças gastavam uma fortuna e então veio castigo do Senhor que fez «com que as pernas acostumadas a calças d'aquellas tragan adôlos de ferros».

Não podiam dormir senão em camas moles, e defumadas, com polvilhos á cabeceira, leite dourados, cortinas rendadas com prata e ouro «pois agora o leito são dois palmos de chão d'infecta masmorra fedorenta, cobertos de palha, debaixo de uma manta rôta».

As mulheres choravam alto, o frade, cruelmente continuava:

«Não podieis comer senão bocadinhos, queijadinhas e beber vinhos preciosos e aguas resnoitadas? louvae a Deus se tiverdes pão de farelos e agua que mate a sêde».

«E vós, senhoras minhas, que vos vejaes na necessidade de pedir esmola á misericordia para resgate dos vossos maridos e que vos não ouçam. E vós, mimosa que por dormir até ao meio dia não vinheis ao domingo á missa, que percaes o somno e vades de noite e de madrugada, descalça, buscar as santas reliquias e que vos não ouçam.»

«E vós, namoradiçoa, que vos direi?... Não quero mais dizer.

Fala depois nos castigos terríveis que Portugal tem soffrido; a peste Grande de 1569 que matou em Lisboa mais de 8:000 pessoas; na perdida frota completa de D. Luiz Vasconcellos de 1570 indo para o Brazil com trinta e nove missionarios; no temporal do Tejo que anniquilou outra grande armada; na fome de 1574; no terremoto de 1575; no incendio de [...] de 1575.

Os males da patria e os castigos de Deus, claramente expostos por frei Miguel, arrancaram n'um choro convulso, as lagrimas dos ouvintes, mais facilmente imprecionaveis pelas dôres intimas.

Falou dos castigos do Egypto e notou: «Vêde se vos não castigoa como ao Egypto... e se vos não emendaes, muito deveras tereis castigo maior do que este... e não duvido que tarde muito, pois ainda ha agora homens tão encarniçados no odio como d'antes e tão grandes ladrões como d'antes. Tempo é este para se não comer pão alvo em casa nenhuma e vós fazeis marmeladas?»

Ante este crime da marmelada redobraram os prantos, a que fr. Miguel respondeu:

«Não choreis que me não fio nas vossas lagrimas, quando vejo que são lagrimas de Saúl, de Ezaú e Judas, que choram mais as proprias perdas que as offensas que a Deus tenham feito.

Não vejo chorar mais que ai meu pae!, ai meu filho!, ai meu marido!, ai meu irmão!, ai meu amigo! Quizera que chorasseis a honra de Deus, a sua gloria, as blasfemias que agora dirão os moiros ao nome benditissimo de Jesus, havendo que é melhor o seu Mafaméde, pois nem nos livrou suas mãos!

Chorae as bandeiras de Christo arrastadas pela areia! Chorae a honra de Portugal perdida! Chorae a infamia d'este reino sempiterna! Chorae com igrimas o vosso rei, que com lagrimas pedistes, com lagrimas houvestes, com lagrimas perdestes!

«Fazei volta á vida -- ou para outros maiores trabalho estaes guardados. E terminava dizendo com voz poderosa:

Ponde os olhos n'aquelle Senhor Crucificado e acabae de vos desenganar que tudo é mentira ó elle é pae, elle é marido, elle é filho, elle é irmão, elle é parente, elle é amigo, elle nos é amparo, elle nos é remedio, elle nos é abrigo, elle nos é consolação, n'elle ponhamos as nossas esperanças» porque assim d'elle receberemos n'esta vida a graça e na outra a gloria!

- Mais uma vez, fr. Miguel dos Santos conquistava pela palavra convicta e incisiva um aplauso intimo dos fieis.

Os extractos do serm.ão dão ideia clara do caracter do padre: audaz, sem receio de ferir grandezas nem vaidades, opinioso, ousado.

Combatera tenazmente a expedição e por suas previsões e juizos alguns lhe chamavam doido.

Ao que elle responde no sermão: -- ainda mal que o não fui porque menos mal me fôra -- .

A loucura é o invariavel epitheto com que a chateza geral ou o servilismo alcunham a intelligencia ousada, ou a independencia critica. Fr. Miguel dos Santos devia tel-o.

Ao lado dos amigos, dos partidarios convictos e valentes de D. Antonio prior do Crato, do Vimioso, de D. Manuel de Portugal, de Diogo Botelho, de D. D. Duarte de Castro, do corregedor Nóbrega, de Fr. Estevam Pinheiro, do bispo da Guarda e outros enfileirou-se Fr. Miguel dos Santos.

Esteve na acclamação de D. Antonio em Santarem, bateu-se por elle em Alcantara e se o não acompanhou no exilio, o seu amor e dedicação pelo pretendente, não vergou nunca, ao oiro, ás promessas, ás ameaças.

Como lhe servira de secretario, escrevendo-lhe as cartas justificativas do seu direito ao throno, para o papa, continuava a pugnar por elle no pulpito, em toda a parte, sem rebuço nem mêdo.

Homem de auctoridade, a sua palavra era ouvida com respeito pelos grandes e com veneração pelos pequenos.

Avisado, mais que uma vez, para moderar as suas considerações patrióticas e as suas predicas a favor do D. Antonio, o frade reciisou-se sempre a obedecer.

Até que uma noite os quadrilheiros bateram-lhe á porta e prenderam-no.

Foi levado para Madrid e encerrado n'uma prisão.

Não se sabe o tempo, o numero de annos que esteve preso; mas alguns foram, porque Fr. Miguel só nos appareceu restituído á liberdade dezeseis annos depois d'aquelle sermão que lhe ouvimos em Belem.

Não quero dizer que tivesse sido preso n'esse anno; mas deve-se suppôr que não tardou muito a sêl-o, visto o seu temperamento, logo depois da batalha de Alcantara, que se deu a 28 d'agosto de

É natural que a derrota do seu rei e a sua fuga lhe exacerbassem as phrases e que os servos do archiduque houvessem por necessario fazê-las acabar.

Esteve naturalmente preso uns dez ou doze annos.

O que é certo é que em 1594 Filippe II, que tinha em muita conta o seu talento de pregador, o mandou soltar, naturalmente persuadido de que os annos e o cárcere tinham domado o altivo partidario de D. Antonio.

Mandou-o soltar e nomeou-o vigário de um convento de freiras de Santa Maria La Real, na villa de Madrigal, em Castella a Velha.

Enganava-se, porém, o rei.

Fr. Miguel não só não se esquecera, no carcere, do seu principe mas redobrara de amor por elle.

Era um patriota exaltado. Detestava Filippe II e soffria, do coração, com a situação humilhante de Portugal.

Se nunca, na prisão, deixara de acariciar a ideia de que D. Antonio seria, um dia, rei de Portugal, ao vêr-se livre, mais essa ideia se lhe ferrou na mente, obrigando-o a cogitar, a pensar nos meios de se poder conseguir. A liberdade dava-lhe azas á phantasia.

Conhecia a historia dos reis de Penamacôr e da Ericeira? É natural.

O seu plano é egual ao do rei da Ericeira; encontrar um homem que passe por D. Sebastião, fazel-o acclamar e depois desvendar a verdade, a favor de D. Antonio.

Taes eram as ideias que tornavam pensativa a cabeça do Fr. Miguel dos Santos, durante o dia, durante as longas noites, que passava na pobre casa de Madrigal, ao lado do convento do vicariato, presente de Filippe II.

Dezeseis annos de oppressão tinham feito nascer os maiores despeitos e raivas entre os portuguezes.

Não seria difficil com um bem combinado plano fazer erguer o paiz da somnolencia em que jazia e obrigal-o a reconquistar a liberdade.

A primeira cousa a arranjar, era um rei, um D. Sebastião e o frade embalde procurava á roda de si homem que quizesse e pudesse prestar-se a papel tão alto, de tanta responsabilidade, exigindo extrema finura e audacia.

O resto do plano estava feito e nós veremos que não era de todo máu no conjunto; mas o rei? O D. Sebastião, como encontra-lo?

O Pasteleiro

Isso a que nós chamamos acaso, coincidencia, é o maior resolvedôr de problemas que ha na Terra.

N'um dia em que fr. Miguel dos Santos sahia, pensativo como sempre, a porta do mosteiro de Santa Maria, um homem que passava encarou n'elle, fito, parou.

O frade, vendo-se observado, parou tambem e poz-se a olhar para a cara do homem que lhe parecia, vagamente, conhecer.

Este não se demorou, que tirando o chapéu lhe não disesse; guarde Deus a Vossa Reverendissima.

-- Deus seja comvosco, respondeu o frade, nãa despegando o olhar do rosto do homem, que, levemente, sorria.

-- Estou tão mudado que Vossa Reverendissima me não conhece? perguntou amavelmente o desconhecido.

-- Tenho uma ideia... mas não posso saber onde o vi já... não posso ligar...

-- No convento da Graça, em Lisboa, disse o homem.

-- Ah! o Gabriel, disse fr. Miguel, indo a elle e abraçando-o. Estaes mudado estaes... um pouco mais velho.

-- Bem mais, replicou o Gabriel, retribuindo o abraço.

Como se conheciam?

Quando o duque de Alba, depois do inglório recontro de Alcantara, entrou era Lisboa, a soldadesca entrou pela cidade, de impeto, roubando casas grandes e egrejas.

Ao sabêl-os a caminho do seu convento da Graça, fr. Miguel dos Santos, ainda a cavallo, coberto com o pó da batalha, correu lá, em redea abatida.

Arrombavam-se as portas a machado e a invasão e roubo do convento estava por instantes.

Fr. Miguel com a sua voz de estentor gritou á turba, interpondo-se a uns, brandindo a espada; esconjurando outros, com temiveis anátemas.

Tudo seria inutil se um dos soldados, mais respeitado ou mais temido, não gritasse aos companheiros para pouparem o convento e correrem a um palacio proximo, sitio provavel de melhor presa.

Ouviram-no, abandonaram o assalto do convento pelo do palacio.

Fr. Miguel recompensou largamente o auxiliar que fez entrar no seu quarto e a quem deu uma bolsa com oiro e salvou assim a sua egreja de uma profanação e roubo sacrilegos.

O soldado chamava-se Gabriel de Espinosa e era o homem que cumprimentava fr. Miguel e que este, reconhecendo-o, abraçava como a um amigo que ha muito se não vê.

-- Como folgo de vos vêr, disse o frade-... por onde tendes andado desde que nos encontrámos?

-- Contos largos, disse o Gabriel. Vossa Reverendissima calcule que depois de ter andado por França e pela Allemanha, fui a Portugal, d'ahi á India... d'onde voltava quasi rico... quando...

-- E estaes?

-- Não, não... foi-se-me tudo no naufragio da S. Thomê, onde vinha avençado com D. Paulo de Lima Pereira.

-- Vinde cá, vinde cá, temos que conversar; dizia-lhe fr. Miguel dos Santos tomando-lhe o braço e levando-o, mansamente, para casa.

Muitas cousas deveis saber que me interessam e se vos não estorvo nos vossos negocios... dae-me uns momentos.

-- Com o maior prazer; ás ordens de Vossa Reverendissima.

Entraram para casa do frade.

Uma serva, de edade, poz n'uma pequena mesa um prato com dôces e uma botija com vinho.

-- É de Portugal? perguntou, com olhos gulosos, o Gabriel apontando a botija.

-- Não; d'isso não se apanha cá. Bons tempos, hein? quando eu o podia beber.

Encheu um copo, offereceu pasteis do convento, perguntando:

-- Então de Portugal fostes para a India?

-- Quem resiste á tentação de la não ir? Tanta riqueza lá ha e de lá vem, que um dia alistei-me e fui.

-- Fostes infeliz na volta? pelo que dissestes.

-- Fiquei sem nada; mas não desanimo ainda; o mundo é grande e Deus ainda maior. Olhae que tenho passado annos a combater por paizes diversos, até na India; pois não me falta nem força nem

coragem para arcar com a vida. Pobre e rico, amado e desprezado, contente e triste, senhor hoje, creado amanhã, todos os cargos me servem, de todos se vive e em todos se pôde ser grande.

O frade olhou fito para o aventureiro e uma ideia lhe passou pela cabeça. Aquelle homem, com os seus conhecimentos do mundo e da vida, valente, naturalmente, sem escrúpulos, homem de aventuras, homem capaz de tudo por dinheiro, era o homem que elle procurava, que lhe convinha, que lhe cabia do céu.

Era preciso saber como e de que vivia.

-- Que fazeis, hoje, por aqui, por Madrigal?

-- Sou pasteleiro.

-- Pasteleiro?

-- Aprendi a arte no Porto, onde fui parar na volta da India. Desamparado, fiquei-me creado da viuva de D. Paulo de Lima; que casou com um creado, um tal Henrique Homem Carneiro e que

nos despediu a mim e a outro por não nos poderem ter.

-- Sim, disse fr. Miguel, esse casamento não foi de interesse.

-- Foi de doidice, assentou Gabriel, esvasiando o copo.

-- Depois?

-- Depois... achei-me desempregado e por ali andei, sem eira nem beira, a prestar os serviços que me exigiam e pagavam, até que um bello dia, indo jantar a uma estalagem da Ponte Nova, veiu

a servir-me uma rapariga hespanhola, linda como os amores.

-- Uma patricia.

-- Isso. Entrámos em conversa; voltei no outro dia e, para encurtar razões, prendi-me de tal modo por ella que não descancei emquanto a não tirei da estalagem.

Era uma pasteleira eximia, tinha umas economias e fômo-nos estabelecer com pastelaria.

Foi-me preciso aprender o officio.

-- Porque vieram para aqui?

-- Não fômos felizes no Porto. Viemos por ahi acima á procura da sorte.

-- E, por aqui, o negocio?

-- Muito mau. É trabalhar para comer.

A situação do homem convinha, absolutamente, ao frade.

Olhou-o, tornou a olha-lo. Achava-o bom de figura, mas um pouco velho de mais para D. Sebastião. Estava muito branco.

Tudo tinha remedio: pintava-se.

-- Tendes então que trabalhar?

-- Muito.

Houve um silencio depois do qual fr. Miguel disse:

-- Pois, meu amigo, estimei bem encontrar-vos.

Talvez vos possa, de novo, pagar mais generosamente o favor que me fizestes em Lisboa.

-- Beijo as mãos a vossa paternidade. Já recebi boa paga; e, o mais, será generosidade a que não serei ingrato.

-- Talvez, talvez. Dependerá de vós. Creio bem que não vos atemorisaria o encarregar-vos de uma missão perigosa, mas que, tendo bom exito, vos daria honras e riqueza de principe.

O Gabriel do Espinosa olhou para fr. Miguel dos Santos a certificar-se da seriedade da proposta.

O rosto do frade tinha a mais completa serenidade e franqueza.

-- O perigo deve corresponder á grandeza do premio, disse com ar valentão e confiado o Gabriel, estou pronto a afronta-lo.

O frade rejubilou; offereceu-lhe mais dôce e mais vinho.

O Gabriel ia aproveitando e louvando os pasteis como entendido, emquanto frei Miguel dos Santos, por momentos, se ficara de novo silencioso.

Atropelavam-se-lhe as ideias na cabeça.

-- Digne-se, vossa paternidade, dizer-me o que terei a fazer, propoz com modo humilde o pasteleiro.

-- Agora, não ... Amanhã. Dai-me o gosto de virdes almoçar commigo... é caso para conversa longa... Conversaremos á vontade.

Está combinado?

-- Como vossa paternidade quizer. A que horas?

-- As dez, pouco mais ou menos.

Levantou-se o pasteleiro, agradeceu a recepção e sahiu.

N'essa noite fr. Miguel não pregou olho.

Tinha achado o seu homem. Era aquelle; destemido, pobre, ambicioso, aventureiro, completo.

Que alegria! Ia, emfim tentar a gigante empresa, pensada, meditada, durante tantos annos de prisão e de silencio! Emfim!

E, assentava todos os pontos do seu plano, criticava novas ideias que lhe acudiam, aceitava umas, rejeitava outras.

Ia ter um cumplice habil e ousado. Era precizo escrever a D. Antonio, pôr-se em comunicação certa com elle, avisa-lo, preveni-lo.

O misero rei havia de ter ainda quem o auxiliasse, apesar dos seus desastres sucessivos, das suas tentativas malogradas.

E que não tivesse? Portugal revoltado bastaria para o sentar no throno d'onde a má sorte o expulsara.

Dezesseis annos de escravidão haviam de te-ia preparado para a revolta, invencivel, dominadora.

O seu sonho ia ter uma realidade; a sua alma enchia-se de alegria na confiança da victoria!

Deixara em Portugal amigos, fieis sectarios do rei exilado, seriam prevenidos, estariam a postos.

Toda a energia do seu caracter se reanimava e lhe fazia pulsar desordenado o coração dentro do arcaboiço amplo do peito.

Era um patriota, era um portuguez e todo o velho odio accumulado contra o Filippe se resolvia n'uma decisão intima e n'uma vontade enérgica, indomável, que era uma reivindicação, uma vingança!

Ah! ajudasse o Deus! e a desforra seria completa.

Não se deitou, a passeiar na pequena sala, a tomar notas, a monologar, sentando se, levantando-se, indo por vezes á janella a respirar o ar mais fresco da noite, que lhe refrescava a cabeça febricitante.

Dormir não podia; podia lá dormir!

Pelas sete horas, foi-se ao mosteiro a dizer missa, n'um estado de excitação visivel.

Voltou a casa. Mandou preparar mais um prato para o almoço, em attenção ao hospede e esperou.

Antes da hora marcada o pasteleiro apparecia.

Sentaram-se á mesa, conversaram sobre Portugal, como o tinha visto e deixado o Gabriel Espinosa, o estado do povo, o estado dos espiritos.

O pasteleiro contou a animadversão geral, o geral odio ao dominio hespanhol, a miseria das classes populares, o despeito dos fidalgos pela falta de cumprimento das promessas de Filippe II.

Esta foi a conversa emquanto comiam, emquanto a creada tirava e punha pratos, enchia os copos ia e vinha.

Mas, acabado o almoço, o frade levantou-se, convidou o hospede a segui-lo ao quarto e fechou-se com elle.

O pasteleiro intrigado e curioso esperava a confidencia.

Pouco esperou.

Fr. Miguel dos Santos offerecera-lhe uma cadeira, sentara-se-lhe em frente e começou, pedindo o juramento do segredo da conversa:

-- Amigo, preciso primeiro saber se tendes repugnancia em trabalhar a favor de Portugal contra Filippe II. A missão que vos quero confiar exige-o.

-- Em meu beneficio?

-- Como já vo-lo disse.

-- Trabalho para quem me paga, fr. Miguel dos Santos... e nunca trahi um amigo.

-- Bom é. Agora, escutae. Ao almoço destes me as informações precisas sobre Portugal. É um paiz nobre a quem a desgraça levou ao estado em que o conheceis.

Tão bem como eu lhe sabereis a historia. Entrastes com o duque de Alba em Lisboa no desgraçado dia da batalha de Alcantara. Vistes o exercito de D. Antonio; una pobres, sem disciplina, quasi sem armas, agarrados ao acaso, vadios, miseraveis.

Foram batidos, naturalmente, e D. Antonio perseguido e com a cabeça a premio fugiu, paiz fôra, até que poude embarcar para a França.

Fui o seu secretario, amigo do coração, confidente, confessor.

É a mais nobre alma que conheci, como é o mais desgraçado dos reis que tem tido Portugal.

Amigo, em Paris, onde está, passa fome, vive de esmolas, escondido, assaltado no seu proprio palacio pelos assassinos de Filippe II, como se fôra uma fera que seja preciso matar.

Sou portuguez, eu. Adoro a minha terra, odeio Filippe II e quereria coUocar no throno de seus avós, o meu amigo, o homem que tem direito a ser rei de Portugal, o miserando e nobre prior do Crato.

Cada um pela sua terra, cada um por seu rei; não é assim?

-- Decerto, fr. Miguel, respondeu o pasteleiro, intrigado, sem poder alcançar onde o frade queria chegar.

-- Se fosseis portuguez havieis de odiar o tyrano que vos escravisasse, a mão que vos oprimisse, o poder que vos humilhasse, vos roubasse, vos empobrecesse, vos reduzisse á miseria.

Paiz de gloriosas emprezas, de feitos de universal fama, Portugal é hoje um provincia hespanhola, esmagada como os Paizes Baixos, prestes a morrer de todo se mão poderosa não quebrar, n'um impeto, as cadeias que a prendem ao imperio de

Filippe II.

É preciso quebrar essas cadeias, sentar no throno portuguez o seu rei, tornar Portugal ao seu antigo estado, ao seu esplendor, ás suas antigas liberdades.

Ha doze annos que o penso, que ornedito, que o desejo, que a tanto aspiro, revolvendo no silencio da ininh'alnia todas as hypoteses, todas as ideias e planos que possam consegui-lo.

Prohibia-me o trabalhar, n*esse intuito, o carcere, onde me tiveram mais de dez annos: hoje, livre, quero dedicar toda a minha actividade e força e vida a essa empreza. É para ella que me sois preciso; é para ella que desejo saber se quereis colaborar comigo, arrostando os seus perigos e alcançando recompensa digna dos vossos serviços.

O pasteleiro não comprehendia ainda. Como podia elle, tão pouco valioso, ser preciso a fr. Miguel para tão grande empreza?

A sua espada que valia? Era pobre, era humilde... Bater-se, combater... estaria prompto; mas que grande peso teria na aventura a sua colaboração modesta?

Por isso quando fr. Miguel lhe perguntou, de novo, se podia contar com elle, sob juramento sagrado, o pasteleiro respondeu:

-- Mande vossa paternidade... mas em que posso eu ser-lhe, assim, util?

-- O mais possivel, respondeu fr. Miguel... como ninguem.

-- Não sei como... mas diga-o vossa paternidade.

-- Amigo, volveu o frade, chegando mais a cadeira para junto de Gabriel, a primeira coisa que é preciso ter para um povo que precisa de um rei é esse rei. Não morto, nem fugido; mas vivo, que todos vejam, que lhe fale, o anime, o levante, o conduza á revolta, á victoria!

Não o tinha, encontreio-o...

-- Encontraste-lo?

-- Aqui, sois vós, vós!

-- Eu? exclamou o pasteleiro, olhando o frade, desconfiado das suas faculdades mentaes, eu?

-- Não o sois, sel-o-heis. D. Sebastião não morreu em Alcacer-Kibir, andou peregrinando pela terra, desconhecido. Fui eu que o descobri, que o reconheci. D, Sebastião sois vós! Comprehendeis?

-- Não comprehendo bem... eu, D. Sebastião, e depois?

-- Pois é bem facil. Sois D. Sebastião. Revelalo-hei aos meus amigos de Portugal, que prepararão a nossa ida. Dar-vos-hei uma recomendação que afastará todas as duvidas e entraremos pela Beira, alçando o pendão da revolta e da independencia.

Dizei-me, porém, sois casado?

-- Não sou.

-- Essa mulher com quem viveis não o é, á face da egreja.

-- Não é.

-- Melhor. Porque não casastes?

-- Porque me exigiam que mostrasse os meus papeis de familia e eu não sei quem é a minha familia, nem sabia como obte-los.

-- Não sabeis quem foram vossos pães?

-- Uma mulher que tinha, em Toledo, como minha mãe, dizia-me que o não era, dizia-me que eu era de familia nobre. Não sei como era isso... deixei-a, morreu, nunca o sube.

-- Melhor ainda, observou fr. Miguel dos Santos, porque precisarei casar-vos e é menos uma difficuldade a vencer.

-- Casar-me?

-- Com pessoa de mais alta posição. Será uma maneira pratica de impor a todos a vossa identidade. Depois vos direi com quem. Dizei-me, pois, que estaes disposto a ajudar-me.

Fareis de D. Sebastião, até ao momento de conquistarmos o trono de Portugal. N'esse dia deixareis de o ser, para serdes simplesmente um dos grandes do reino, porque merecereis e vos

serão dadas honras e dinheiro.

-- E quem será o rei?

-- D. Antonio. Estará prevenido para chegar no momento proprio; ninguem discutirá a troca.

Eis a recompensa da vossa dedicação: uma mulher da primeira fidalguia, um titulo, a riqueza! Aceitaes? Respondei clara e lealmente. Nada vos obriga, nada vos força a aceitar ou não.

E um negocio em que jogaremos a vida. Quereis jogal-a comigo?

O pasteleiro que percebera já toda a grandeza da proposta e o resultado que poderia tirar de tal encargo não hesitou e respondeu:

-- Aceito.

-- Tenho o juramento do vosso segredo de tudo o que se passar entre nós. Uma traição de nada vos valeria e destruíeis a vossa felicidade.

-- Como vossa paternidade bem disse, nada me obriga. Mande vossa paternidade, obedecerei.

Uma hora depois ainda conversavam, fechados no quarto. O contracto estava, porém, feito. Tinham-se discutido particularidades.

-- Quanto ao vosso aspecto... estaes um pouco avelhantado para serdes D. Sebastião, mas ha um remedio facil.

-- Qual é?

-- Pintareis a barba... e o cabello de ruivo... não perfeitamente... D. Sebastião devia ter hoje quarenta annos... Os trabalhos deveriam tel-o envelhecido... Deu-lhe dinheiro para um fato novo e para o frasco de tintura e despediu-o até ao dia seguinte, com muitos agradecimentos.

Ao sahir, o pasteleiro dizia comsigo:

-- Só isto me faltava. Tenho sido tudo no mundo e tudo me tem lembrado de ser... mas rei... é a primeira vez.

O frade teve uma ideia esplendida ... Vamos a ver como nos sahimos da caçada.

Tambem o que me póde suceder? Se vencermos, subo cás nuvens; se perdermos, o mundo é grande para fugir. Ainda não fui á Africa, vou até lá.

N'aquelle dia não fez pasteis.

A Filha de D. João d'Austria

Carlos V, um grande imperador e um grande queixo, teve, como era da praxe para os reis e imperadores d'aquelles tempos, alguns filhos naturaes. Entre outros, o mais distincto, foi o que o grande imperador fez n'uma rapariga de Ratisbona, Barbara Blomberg, alguns annos depois da morte da imperatriz sua mulher.

Foi o pequeno confiado, em grande segredo, a D. Luiz Queijada, senhor de Villagarcia, mordomo, intimo e confidente do imperador, entregue por este a um respeitavel clerigo de Leganés e mais tarde a D. Magdalena de Ullòa mulher de D. Luiz.

Quando morreu o imperador encarregou D. Luiz de apresentar o filho a D. Filippe II para que este o reconhecesse, o que se fez no mosteiro de Espina.

Foi mandado estudar para Alcalá e como mostrasse grande inclinação para as armas e, nenhuma para a Egreja, como tinha desejado Carlos V, foi nomeado capitão geral das frotas.

Logo na primeira expedição limpou as costas hespanholas de piratas; dois a tres annos depois, ganhou a famosa batalha naval de Lepanto contra os turcos em que se cobriu de gloria e em que mais se entenebrece de ciume o espirito invejoso de Filippe II, que nunca o pôde tolerar, e que em tudo revelava ter-lhe fundo odio.

Durante os nove annos antes da sua carreira de guerra creou um dos maiores nomes da Hespanha em terra e mar e esse nome lhe valeu, segundo todas as suposições, o envenenamento, dado por ordem de Filippe II.

Tinha trinta e tres annos.

Deixou duas filhas naturaes: uma casou na Sicilia com o principe de Butera; a outra D. Anna, ainda victima da má vontade de Filippe II ao irmão foi metida no convento de Santa Maria de la Real, aos seis annos e obrigada a professar.

Tinha n'esta ocasião vinte e annos a filha de D. João de Austria.

Era formosa, meiga, de uma grande bondade

para todos, respeitada pela sua origem, pela delicadeza e finura do trato, pelo alto caracter, por tantas virtudes que a ornavam. Enclausurada desde os seis annos, a pobre menina conservava na phisionomia dôce e branca um ar de tristeza resignada, como de quem sente a pena de um bem que se não pôde alcançar, ou a saudade amarga de uma felicidade perdida.

Era inteligente, lida em cronicas sacras e profanas. A sua livraria possuia quasi tudo de melhor que se havia publicado: Guia de pecadores, Meditações, e Memorial da Vida Christã, de fr. Luiz de Granada; A perfeita casada, Exposição do Livro de Job, de fr. Luiz de Leão; a Noite escura da alma, de fr. Juan de la Cruz; O caminho da perfeição, de Santa Thereza de Jesus e os Conselhos para as monjas.

No profano tinha a Historia natural e geral das Indias, de Gonzalo de Oviedo; a Historia geral da Hespanha, em latim de Marianna; Eglogas, de Garcilaso; versos de Padilla, de Montemayor, de Espinosa, de Fernando Herrera, o divino, entre as quaes a celebre ode A morte de D. Sebastião.

Dos antigos, tinha as obras de D. João Manuel, do cronista Ayala, de Juan de Mena, do terno Jorge Manrique, do marquez de Santillana, de Perez de Gusman, de Baena.

Não faltava na estante o Amadis de Gaula, de Lobeira.

A pobre reclusa versejava tambem.

Creara para si um mundo pequeno, intimo, já que não podia vêr, se não mal, atravez das grades conventuaes, o outro que fôra lhe parecia brilhante, cheio de alegrias e de festas.

A sua alma acustumara-se. Como nunca voara livremente, afizerase ás grades da gaiola onde a tinham encerrado desde pequena. Só sabe o que é a liberdade quem a perdeu um dia.

Ás vezes, o sangue novo, despertava-lhe desejos da vida; mas a reflexão dominadora que vem do longo habito, da disciplina inalterada por annos, fazia-a mandar para o coração mal desperto, essas vagas ameaças de revolta que se esvaiam como fumo ao vento.

Vinte annos de claustro eram bastantes para conservar o corpo da filha de D. João d'Austria, n'uma quietação exemplar. O convento era grande, mas frio, humido e triste, e as flores para a sua completa expansão, necessitam de ar quente e de sol luminoso.

Não entravam lá homens. Os confessores eram sempre velhos.

Os cavalleiros das novelas só os vira com a imaginação: os seus nervos de meridional nunca tinham sido atravessados pela corrente de um olhar apaixonado ou d'um beijo quente.

Dormiam.

Fr. Miguel dos Santos gozava no convento da fama de homem austero, sabedor e virtuoso.

Respeitava-o a comunidade inteira e mais que todas as suas confessadas, D. Anna de Austria, que se lhe afeiçoara intimamente.

A sciencia do frade, a sua honestidade, a seriedade do seu porte, a sua palavra quente e energica de pregador tudo isso tinha concorrido para a afeição de D. Anna.

Um motivo, porém, havia, maior, mais poderoso para fortalecer e vitalisar esta amisade -- era o odio comum a Filippe II.

Odiavam-no ambos, do fundo da alma.

Ella, porque lhe matara o pae -- era a crença geral que viera da inspecção do cadaver, cheio de manchas, de D. João -- e porque, não contente, a obrigara a professar; elle, porque era o tirano do seu paiz, o déspota, o carrasco dos portuguezes.

Imagine-se quantas horas os dois não deviam ter passado, a analisar e criticar, dia a dia, a vida d'esse funebre senhor do Escurial, para arrancar dos seus actos, tantas vezes infames, o alimento do seu odio.

Que prazer não tinham sentido, no isolamento, que as suas posições permitiam, de longas conversas, ao confessarem-se, mutuamente, o quanto mal lhe queriam, quanto esse homem, apezar do seu grande tacto politico, era asqueroso e baixo.

As grandes horas, as unicas, talvez de felicidade para a pobre freira, teriam sido essas.

Não é nobre odiar? Oh! a natureza humana é e será sempre o mais recto, o mais implacavel juiz.

Um habito de monja ou de frade pôde mascaral-a; anniquilal-a nunca.

Estimavam-se os dois; e assentemos que a sua amizade vinha de odio ao rei. Eram duas victimas; não ha para irmanar como a desgraça.

Comprehende-se bem a auctoridade e força moral que podia exercer sobre D. Anna o seu confessor respeitado e estimado ao mesmo tempo.

No dia seguinte ao do almoço com Gabriel de Espinosa, confessava-se D. Anna, como custumava, todos os mezes. Fr. Miguel dizia-lhe;

-- Depois da missa necessitava falar-vos; podeis receber-me?

-- Bem sabeis que mio precisaes de solicitar audiencia, disse D. Anna, sorrindo. Estou sempre ao vosso dispor.

Olhando para a cara de Fr. Miguel pareceu a D. Anna que o achava um pouco mal de parecer.

-- Estaes doente? perguntou.

-- Tenho dormido mal... a noite passada... uma noite só.

-- Alguma dôr ou febre?

-- Não... eu logo vos direi.

Tocava para a missa; separaram-se.

Mal ella acabou, Fr. Miguel entrava pelo corredor da cella de D. Anna e batia á porta.

-- Posso entrar?

-- Entre, disse de dentro a voz seráfica de uma creada. Entrou.

Revelação

Com o rosto visivelmente transtornado, sentára-se fr. Miguel dos Santos, a convite da freira.

É preciso dizer que, talvez já sonhando na futura tentativa egual á da Ericeira ou de Penamacôr, o frade nunca dissera a D. Anna d'Austria que D. Sebastião tinha morrido.

Pelo contrario: falara-lhe sempre d'elle, como se fosse vivo e andasse peregrinando.

O interesse que a sua palavra sentida devia ter despertado no espirito da filha de D. João d'Austria é facil de perceber.

O que, e como, elle falaria do seu rei querido, tão nobre, tão valente, tão infeliz! Longas horas se tinham passado em confidencias, que a pobre freira ouvira com o maior interresse e dó.

De mais, tambem ella era uma vergontea da casa real, condemnada a uma prisão perpetua e miseranda.

A simpatia que ha sempre entre desgraçados, forte, intima, entrara no coração da pobre menina.

Frei Miguel dos Santos levara-a á admiração o amor que tinham pelo seu infeliz rei os sebastianistas, cada vez mais crentes.

Imagine-se, pois, qual seria o espanto, a surpreza, a alegria misturada de pasmo, quando fr. Miguel dizia a D. Anna de Austria que a causa de não haver dormido a noite fôra: a chegada de D. Sebastião!

-- De D. Sebastião?

-- Sim, minha senhora.

-- Mas qual? o vosso? o rei?

-- Esse mesmo!

-- Mas chegou a... Portugal... veio da Palestina?

-- Não, minha senhora, chegou... está aqui.

O espanto da freira redobrou.

-- É caso, realmente, para se não dormir, disse meditativa; mas como o encontrastes? veio procurar-vos?

-- Encontrámo-nos... olhei-o, reconheci-o. A principio negou. Levei-o para casa... pedi-lhe que me acompanhasse.

-- Aceitou?

-- Conversámos longas horas . no fim, concordou comigo em que era tempo de trabalhar pela sua corôa, de ir a Portugal pôr-se á frente dos seus.

Assim ficou combinado, assim se fará.

Uma grande ternura invadiu a alma de D. Anna por esse miseravel proscrito, vagueando pelo mundo n'uma penitencia terrivel que a si proprio impuzera.

Indagou de tudo o que dizia respeito a D. Sebastião, o seu ar, o seu modo; como vivia, como podia viver em tão más circunstancias e acabou, naturalmente, por offerecer os seus serviços a fr. Miguel.

Elle não queria outra cousa.

A filha de D. João d' Áustria, ainda que freira professa, gozava de regalias. Tinha casa, servos, dinheiro.

Tinha, sobretudo, um nome de alta nobreza, respeitado, glorificado pelo pae. Este é que fr. Miguel havia de explorar.

Agradeceu o frade, aceitando a offerta, e levou habil a conversa ao ponto de despertar na boa menina o desejo de vêr o rei.

Era naturalissimo o desejo.

Quem, menos dado á piedade, á curiosidade mesmo, não teria vontade de vêr tão celebre aventureiro?

O frade satisfez, no dia immediato, o desejo de D. Anna, levando ao parlatorio, depois, da missa, o Gabriel de Espinosa.

O falso rei, -- conta-o ella depois, -- entrou uma manhã no parlatorio, n'uma atitude grave e respeitosa e pondo um joelho em terra, exclamou:

-- Que manda de mim, sua Excelência?

A princeza fêl-o levantar, apressadamente, reagindo elle.

Então, ella para o ouvir, perguntou-lhe se elle era bem o Gabriel Espinosa, pasteleiro, ao que elle respondeu evasivamente:

-- Para servir a Vossa Excelencia.

-- Sêde bem vindo, explicou ella; mas parece-me que o officio de que menos sabeis é esse de que usaes.

-- Ah! observou elle, se eu tivesse n'outro tempo exercido melhor outro offiicio, não estaria reduzido a exercer este que exerço.

Alusão que podia interpretar-se: se eu tivesse sabido reinar, não seria, agora, pasteleiro.

Durou pouco a primeira visita; mas como eram diárias, sempre depois da missa, começaram a tornar-se cada vez mais longas.

Ponco a pouco o pasteleiro foi afivelando mais a mascara de rei e levou a pobre freira a perguntar-lhe, bem persuadida de que era D. Sebastião:

-- «Porque estivestes tanto tempo em Madrigal sem me prevenir?

«Porque vos descobristes primeiro a outros e não a mim, que sou do vosso sangue e que tanto tenho pedido ao céu por vós, com lagrimas e suspiros?

«Em alguem podereis confiar mais do que em mim?

«Não sabeis que eu sou capaz de dar o meu sangue para vos evitar uma desgraça?

«Não vos teria sido melhor passar aqui os longos annos que tendes andado em peregrinação, por mares e terras?

Estas perguntas davam a entender o estado de espirito da filha de D. João d'Austria, com relação ao primo D. sebastião.

A freira começava a sentir o encanto de proteger o parente, a quem poderia facilitar um trono e nelle se sentar ao seu lado. Um trono, elle e ella!

Porque não?

Professára á força; adorava o mundo e as suas alegrias, que mais do que conhecia, adivinhava.

O primeiro homem com quem havia convivido, falado, longo tempo, era seu parente, não em plena mocidade, é certo, mas homem viril ainda, de boa figura, de bom falar, distincto.

Porque não havia de ser sua mulher? A dispensa de voto ser-lhe-hia retativamente facil vista a má vontade com que professára.

Uma dispensa de Roma, era uma questão de dinheiro.

Mais e mais o aventureiro começou a tornar-se-lhe caro e não ha duvida que pensava em desposa-lo, porque um dia lhe perguntou:

-- Sois casado?

-- Não, Excelencia.

-- Sei que tendes uma filha.

-- É assim; mas tenho-a de uns amores que tive no Porto com uma fidalga.

A princeza quiz ver a menina, que lhe levou a mãe, Ignez Cid mulher do pasteleiro, que consentiu em fazer de ama.

A creança tinha, por coincidencia, uns traços fisionomicos austriacos, que fizeram notar a D. Anna e mais lhe confirmou a opinião de que o pae era rei.

A creança contiauoii a frequentar o convento, animada e acariciada pelas freiras.

O plano de fr. Miguel transparece claramente.

Gabriel de Espinosa diz-se D. Sebastião e assim passa aos olhos da prima D. Anna d'Austria que, dia a dia, mais se apaixona por elle.

Por sua conta escreveu já a D. Antonio e a alguns amigos de Portugal.

No momento, que não virá longe, D. Anna sahirá do convento, casará com D. Sebastião e tomarão os dois o caminho de Portugal.

Quem duvidará que não seja o verdadeiro rei o homem casado com a sobrinha de Filippe II?

Este facto daria ao impostor uma extraordinaria força.

Fr. Miguel contava com elle, esquecendo-se da pobre menina a quem arrastava a uma situação humilhante, no mais alto grau, quando se visse mulher de um aventureiro ordinario.

Este era, porém, o plano que o frade trabalhava com o maior segredo e o maior amor.

E, caminhava bem. O falso rei era amado. D. Anna estava prompta para todos os sacrificios e dedicações pelo seu amor, quando um caso imprevisto veiu perturbar a marcha natural do enrêdo.

O processo

Fôra para Valladolid, por tempo, o nosso Gabriel de Espinosa, mandado por fr. Miguel, parece que para o defender de qualquer exame minucioso que lhe fosse feito, ou por qualquer outro motivo desconhecido e necessario.

O certo é que depois da despedida, em lagrimas, dos dois no parlalorio do convento o Gabriel fôra para Valladolid a tres leguas de Madrigal e lá vivia.

Ura, poucos dias depois da chegada, D. Rodrigo de Santilhana, o alcaide da cidade, era procurado por uma mulher que lhe dizia que tinha tido relações com um homem que, apesar de não estar mal vestido, lhe tinha mostrado uma porção grande de joias, que lhe parecia pouco natural que fossem d'elle.

Lembrando-se de que podia ser um roubo, vinha contar o caso.

-- Quem é o homem? perguntou o alcaide.

-- Não o conheço; viu-o uma vez só; mas... E deu-lhe os signaes todos.

N'essa noite o alcaide poz-se em campo, fazendo rusga nas casas de pasto e hospedarias e descobriu o Gabriel n'uma d'ellas. Prendeu-o.

Encontrou-lhe grande quantidade de joias, um retrato de Filippe II, um relogio de oiro com diamantes, um retrato, que mais tarde soube que era o de D. Anna d'Austria e uma mecha de cabellos.

-- Quem é você? pergunlou-lhe o alcaide.

-- Gabriel de Espinosa, pasteleiro em Madrigal.

-- É muito rico?

-- Não senhor.

-- A quem pertencem estas joias que traz?

-- A D. Anna d'Austria.

-- Roubou-as, então?

-- Entregou-mas Sua Excellencia para as vender.

Para vêr, o alcaide conservou-o preso e poz-se a trabalhar para apurar a verdade.

Quatro cartas que lhe cahiram nas mãos, para o prisioneiro, abriram-lhe a porta da intriga.

As duas primeiras eram de Fr. Miguel dos Santos, falando da pequenina e da ama e tratando-o por Majestade.

As outras duas eram da princeza freira e fizeram o alcaide abrir a bocca espantado.

Eram cheias de saudade, de delicadezas, de amor-

«Ah! Senhor, como a ausência é dolorosa, dizia ella na primeira, tão dolorosa que eu preciso escrever-lhe para alcançar algum consolo... O que sinto hoje sinto-o sempre quando me lembram os momentos felizes, tão deliciosamente passados, que já não vivem».

Attribue as suas penas a um castigo do céu; mas observa que as maiores desgraças ainda passaria com prazer para poupar um desgosto a Sua Magestade.

É-lhe insuportavel a ausencia e exclama:

«Pertenço-vos, senhor, bem o sabeis! A fé que vos jurei é como se fosse promettida no baptismo, para a vida e para a morte ... porque a morte, mesma, a não arrancará da minha alma immortal».

Manda-lhe que se divirta e não soffra; fala-lhe da filha com quem esteve toda a manhã; quizera possuir «o mundo inteiro» para lh'o lançar aos pés.

Dá-lhe conta de que Fr. Miguel está com febres, pede-lhe que lhe escreva e termina:

-- «Adeus, meu bem e meu Senhor»!

Na segunda carta, depois de lhe exprimir o prazer que teve em receber' a d'elle, escreve:

- «Que Deus me permita viver no meu céu, isto é, no poder de meu Senhor e Amo, pelo resto dos meus dias».

Como elle lhe fizesse, na carta, qualquer censura, ella comenta, dizendo que lhe perdoa, que não quer que uma carta seja motivo de discordia e que a unica cousa que não pôde perdoar-lhe é o elle dizer que lhe vae mandar tudo menos o retrato e o cabello! Pede-lhe que não lhe faça tal affronta!

Repete que não deixe de lhe escrever; que está a exercitar-se na escripta para que elle a entenda bem.

No fim, acaba sempre com palavres ternas: -- «meu senhor, minha consolação».

O alcaide começava a intrigar-se com o titulo de Majestade.

Majestade? quem seria?

Até que, afinal, á força de parafusar, descobriu:

-- Já sei quem é; é D. Antonio prior do Crato.

Sentou-se e escreveu a Filippe II.

Dois dias depois, vinha um correio com as ordens do rei encerrar D. Anna numa cella, prender e julgar o rei e ofe cumplices.

D. Anna foi encerrada n'uma simples e unica cella, sem poder falar com pessoa alguma; acompanhada para os officios.

Prendeu-se fr. Miguel, a ama e a pequena. O rei já estava preso. Foram postas cm cellas separadas Luiza Grado, uma irmã e Maria Neto creadas da princeza.

Quando D. Anna soube da prisão de Gabriel escreveu ao alcaide de Santilhana uma carta energica, mandando-o soltar.

Era tarde; o alcaide não podia, já, dar liberdade ao preso envolto n'uma conspiração politica.

Fizeram-se os interrogatorios.

O de Gabriel de Espinosa é pouco interessante. Depois da chegada do Porto com a amante e a filha estabelecera-se em Medina-del-Campo. O negocio corria mal; fôra para ali.

De manhã ouvia a missa de fr. Miguel; até ao jantar ia para o parlatorio do convento falar com D. Anna; ás vezes voltava já de noite.

Santilhana apertava-o com perguntas.

O pasteleiro era intelligente e conservava uma altitude. Séria e energica.

Ás vezes respondia claro; a maior parte das vezes era obscuro, enigmatico, propositadamente.

-- Diga-me, perguntava Santilhana, fr. Miguel dos Santos acreditava que fosse D. Sebastião?

-- Creio que sim.

-- E D. Anna de Austria?

-- Egualmente.

-- Enganou-os você?

-- Nunca lhes disse que o era. Como tal me tinham... era com elles.

-- Assentaram em que era D. Sebastião, sabia para quê?

-- O que affirmo a vossa mercê é que nunca o que fiz foi em prejuízo do serviço de Sua Majestade. Não o consentiria.

-- Reconhece estas cartas?

-- São de D. Anna d'Austria.

-- De quem é a menina que tão acariciada é no convento?

-- É minha filha e de Ignez Cid.

-- Que vinha fazer a Valladolid?

-- Vinha procurar o filho natural de D. João de Austria para o levar a sua irmã.

Fr. Miguel dos Santos foi, por sua vez chamado a depor.

Declarou que era crença geral em Portugal de que D. Sebastião não morrera. Encarregado, affirma elle, de pregar o sermão nas exéquias do rei, um alto personagem, o abeira antes de subir ao pulpito e o adverte que tenha conta no que vae dizer, porque o rei é vivo.

-- Estaes persuadido de que D. Sebastião vive, ainda?

-- Absolutamente. Tenho pedido a Deus, fervorosamente, o favor de me dar a certeza. Deus ouvi-me. Durante a missa, tenho visto o rei, em espirito, tal como o conheci em vida, armado, a cabeça descoberta, ajoelhado deante de um crucifixo.

Vejo-o tendo na mão uma bandeira, d'um lado bordada a imagem da virgem, do outro uma cruz.

Um dia, a visão em espirito, fez-se carnal e D. Sebastião apareceu-me á porta da egreja.

-- É esse pasteleiro?...

-- É o rei; reconhoci-o pelas semelhanças do corpo e pelo conhecimento que tem de cousas particulares da vida do rei.

-- Porque se escondeu tanto tempo o vosso D. Sebastião?

Por vergonha da derrota; pelo voto que fez de correr o mundo em penitencia da sua culpa; porque o papa Gregorio XIII, mais tarde, se recusara a desobrigal-o do voto.

-- Que tencionaveis fazer com o vosso rei?

-- Protegê-lo na sua desgraça e, mais tarde, ir a Madrid contar o que se passava a Christovam de Moura.

Por aqui se ficou o primeiro interrogatorio.

O alcaide vae á cela de D. Anna d'Austria interrogal-a.

Reservada e altiva, a nobre senhora pouco fala, de modo que o alcaide não consegue vêr claro na intriga.

-- Vossa Excelência, dizia-lhe Santilhana, vê bem que, depois do que disse Fr. Miguel, eu tenho de concluir que está ao facto do que se tentava fazer.

-- Fr. Miguel, respondeu a princeza, é o depositario dos segredos da minha consciencia, que elle não violou e a ninguem é permittido o pretender penetral-os.

-- D. Filippe deseja que v. ex.ª diga a verdade..- o que é.

-- A verdade é que esse homem é o rei D. Sebastião de Portugal.

Santilhana tirou do bolso as cartas que ella dirigira a Gabriel e, mostrando-lh'as, disse:

-- Reconhece estas cartas?

-- Em subita colera D. Anna deitou-lhe as mãos. arrancando-lhes bocados.

O alcaide guardou, rapido, na algibeira, os restos que lhe tinham ficado entre os dedos e deu por finda a conferencia d'esse dia.

A qualidade de religioso de fr. Miguel dos Santos e os rigores tomados com as freiras, indignaram os religiosos agostinhos, que se viam menos considerados pela auctoridade civil, que os vexava.

Houve lucta entre o provincial da ordem e o alcaide.

Era acabar com a contenda, mandou Filippe II o doutor em teologia, seu esmoler e comissario apostolico do Santo Officio, para continuar o processo. Chaniava-se D. Juan de Llano.

Gabriel da Espinosa foi mandado para a prisão, mais segura, de Medina-del-Campo, onde mandava Diogo de Santilhana, irmão do alcaide.

Estava já lá fr. Miguel dos Santos.

Logo que chegou, D. Juan de Llano visitou a princeza.

Esta foi pouco explicita: limitou-se a dizer que estava convencida de que aquelle homem era D. Sebastião. Tinha escripto uma carta para Filippe II, em que, dizia, lhe contava o que se tinha passado.

Pediu-lhe para a fazer chegar ao seu destino.

Antes de instarem com Gabriel de Espinosa fortemente e com fr. Miguel dos Santos pelos processos de tortura que a lei facultava então, os juizes tinham querido rodear-se de todos os elementos que pudessem fazer luz sobre o caso.

Prenderam os dois creados de D. Anna, Juan Roderos e Blas Nieto, e o medico portuguez João Mendes Pacheco, que estava em Madrigal.

Foi o primeiro a ser interrogado.

Ditos, nome, filiação, profissão, naturalidade, um dos juizes perguntou-lhe.

-- Conhece frei Miguel dos Santos?

-- Desde a Universidade de Coimbra. Só uma vez o vi depois d'então; todavia escrevi-lhe para aqui para me arranjar trabalho pela minha profissão.

-- Respondeu-lhe, elle?

-- Respondeu-me e vim.

-- Nunca fr. Miguel lhe disse nada sobre D. Sebastião?

-- Um dia, perguntou-me o que acreditava eu sobre o caso: se cria o rei morto ou vivo. Respondi-lhe que o rei estava morto e bem morto.

-- Conhecia, falava ao supposto rei?

-- Falava.

-- Como se relacionou com elle?

-- Pouco depois de eu chegar apresentou-me fr. Miguel dos Santos a esse homem e fômos os tres ao convento de Santa Maiia de la Real onde me pediu que contasse a historia de eu ter curado D. Sebastião, tres mezes depois da batalha de Alcacer.

-- Como é isso? Então o rei morreu na Africa e o senhor cura-o mezes depois?

-- Eu conto. Tres mezes a quatro depois da batalha de Alcacer uma senhora D. Francisca Calvo, viuva de Christovam de Tavora, o amigo de D. Sebastião pediu-me para ir á Serra do Carneiro, entre Porto e Guimarães, a uma certa casa, tratar de um doente, ferido.

Chegada a primavera, um individuo depois de se informar de quem eu era, levou-me a uma casa onde, numa cama, com o rosto tapado com uma especie de grandes oculos de tafetá preto estava estendido, ferido numa perna, um homem. Tratei-o oito dias e no fim d'elles estava quasi completamente curado.

-- Não falava com elle?

-- Raras vezes lhe ouvi uma ou outra palavra.

-- Nunca desconfiou de quem fosse?

-- Nunca pude senão conjecturar que era pessoa de alta posição. Não conheci os que o rodeavam. Ao despedirem-me pediram-me para agradecer a D. Francisca Calvo o grande favor que lhes tinha prestado.

Assim fiz. Fui participar o resultado da minha missão e ousei insinuar que o ferido talvez fosse... um rei... D. Sebastião.

D. Francisca não negou, pareceu até dar signaes de alegria e pediu-me, com insistencia, noticias circumstanciadas do doente e do seu estado.

Foi esta a historia quo pediram para eu contar no convento.

Os juizes firaratn um pouco preoccupados. Um d'elles perguntou, d'ali a instantes:

-- A sua opinião é de que era o rei?

-- Desconfiei, nunca tive a certeza... podia ser... não era.

O cadaver de D. Sebastião foi achado e reconhecido no campo de batalha. Hoje creio que não era.

-- Gabriel de Espinosa nunca lhe foi apresentado como rei?

-- Nunca.

-- Não é crivel.

-- Um dia, fr. Miguel dos Santos perguntou-me:

-- Não acha que este homem se parece com D. Sebastião?

-- Absolutamente nada, respondi. O quê? elle diz-se o rei?

-- Diz, respondeu fr. Miguel.

-- Pois se o diz é um impostor, um pantomimeiro.

O frade calou-se; mas n'um outro dia D. Anna instou comigo para dizer a verdade, confessar que o reconhecia. Respondi-lhe do mesmo modo.

Então sua excellencia, despeitada, disse-me:

-- Vós outros portuguezes serieis capazes, por excesso de vaidade, de não reconhecerdes o vosso soberano pelo estado em que vive e pelo fato que veste.

Desde esse dia nunca mais me procuraram, nem conversei com qualquer delles.

Tal foi o depoimento do medico Pacheco, que segundo parece já tinha contado esta historia do ferido mysterioso em Portugal, o que lhe valera ter sido mandado prender pelo Cardeal D. Henrique e condemnado ás galés, onde o tinham liberto dos trabalhos forçados, com a condição de tratar dos doentes.

Não lançou luz sobre o caso e pouco valor lhe deram os juizes no processo.

É, n'este momento que apparece uma testemunha Gregorio Gonzalez creado do conde de Nyeba que vem lançar luz sobre o processo em que os juizes se viam sem um fio, certo, conductor.

Gregorio Gonzalez contou que estando, haveria seis annos, ao serviço do marquez de Almuzan, em Madrid, necessitando de serviçaes para um banquete que tinha de ordenar, dado pelo amo, lhe tinha apparecido como ajudante de cozinheiro um tal Gabriel de Espinosa.

Ia acompanhado de um rapaz de 15 a 16 annos que elle dizia ser seu filho.

Nunca mais os vira. Ora, estando em Valladolid am setembro ultimo, com a mulher Maria Torres, esta lhe disse um dia que tinha encontrado um homem que vira em Madrid, mas que não era capaz de se lembrar quem fosse.

No dia seguinte, ao passar pela rua da Comedia, viu Gabriel de Espinosa e reconheceu o antigo cozinheiro. Era de estatura vulgar, o cabello salgado. Vestia um fato que, não sendo rico, não era de homem de condição inferior.

-- Fui ao pé d'elle, disse o Gregorio e chamei-o pelo nome, e perguntei-lhe a quem servia, agora.

Reconheceu-me; pareceu-me um pouco embaraçado; pegou-me na mão e levou-me para um desvio da rua.

-- Amigo Gregorio, disse-me, os tempos mudaram; não sirvo a ninguem e, pelo contrario, preciso de alguem que me sirva.

-- Então qual é o teu estado, agora?

-- Não te inquietes com o que sou. O que te digo é que se tens alguma necessidade, talvez encontres quem te sirva.

-- Quem?

-- Eu.

Foi até minha casa, consigo. Estavam ali varias pessoas e minha mulher que o reconheceu imediatamente.

Então o Gabriel começou a falar com grande aprumo, em si, na sua vida passada, contando historias, cousas que todas tinham por fim fazer-se acreditar como personagem importante.

Entre outras coisas, disse: que tinha servido em Navarra e que se eu quizesse ficar a seu soldo me daria 50 ducados, imediatamente e quatro por mez, além d'outros beneficios.

-- Mas, disse-lhe eu, não me disseste em Madrid que tinha sido pasteleiro em Ocana?

-- É verdade, respondeu elle; mas quantos reis e principes não tem sido obrigados a adoptar toda a qualidade de disfarces?

Foi-se, depois d'esta rajada, ficando todos a rir, tomando-o por doido, ou patusco.

Dias depois voltou, mostrando dois anéis de grande valor e um relogio.

N'um dos anéis, na pedra, estava o retrato de Filippe II.

Na conversa, tirou do peito um outro retrato, tamanho d'uma carta de jogar, imagem de uma religiosa, tendo um cão pequeno no colo.

-- É bonita? perguntou.

-- É muito, responderam.

-- Oh! exclamou elle, bonita! a mais bela mulher da Hespanha!

Mesmo religiosa pôde casar se quizer e nenhum principe a terá mais bela!

As mulheres que estavam perguntavam-lhe:

-- Se é monja como pôde casar?

-- Para os reis, respondeu, não ha leis. Além d'isso, quando entrou para o convento disse ao bispo que a acompanhava:

-- «Peço-lhe para se não esquecer nunca do que lhe digo. Eu não tomo o habito por minha vontade».

Depois d'esta visita, concliu o Gregorio Gonzalez, comecei a não gostar da convivencia do Gabriel e fiz tudo para lhe evitar o contacto.

Dias depois, disse-me um creado do senhor alcaide D. Rodrigo de Santilhana que tinha sido preso um ladrão de joias; imaginei logo que fosse elle.

Este foi o depoimento, interessante, de Gregorio Gonzalez que iluminou a figura do Gabriel, com uma luz muito pouco favoravel para o aventureiro.

Veio a vez de Juan Roderos, uns dos creados presos de D. Anna e que por ordem d'esta acompanhara o Gabriel a Valladolid.

Tinha 22 annos. Declarou que conhecia Fr. Miguel dos Santos havia cinco annos e Gabriel haveria tres mezes.

Disse que este ultimo era muito estimado por D. Anna e todas as religiosas, porque todas o tinham por pessoa de qualidade.

De importante, declarou que, uma noite, pelas oito horas, lhe tinham' mandado chamar Gabriel de Espinosa que estava na cela de Fr. Miguel e que o tinha levado ao parlatorio.

Ali esteve o Gabriel até ás 10 horas com D. Anna d'Austria, acompanhados por D. Luiza de Grado.

Que ouvira dizer a Fr. Miguel que Espinosa se parecia com D. Sebastião e que devia vir de Madrigal acompanhado com um irmão da princeza.

N'outro interrogatorio declara qnQ, quando se soube no convento, da prisão de Espinosa, Fr. Miguel despedaçara e queimara um cofre com papeis.

Perguntando o que sabia sobre um projecto de viagem de D. Anna d'Austria, declara que ouvira dizer a D. Luiza de Grado que D. Anna tencionava ir á festa do Santo Crucifixo de Burgos, acompanhada pelo provincial Goldaraz.

-- O que te parece que queria Fr. Miguel dos Santos de Gabriel de Espinosa? não era o de o fazer passar por D. Sebastião?

-- Assim o creio.

-- E, porque esperariam? O que ouvias dizer?

-- Que morresse, talvez, D. Filippe II!

-- Ouviste isso?

-- Não, senhor juiz; mas quando o acompanhei a Valladolid elle disse-me que devia taes favores a Fr. Miguel que só lh'os poderia pagar fazendo-o sentar na cadeira de S. Pedro, em Roma. Como eu lhe perguntasse se tinha esperanças de o poder fazer, respondeu-me:

-- Os reis vivos morrem; os reis mortos vivem.

Acabou por contar que assistira no parlatorio á despedida de Gabriel d'Espinosa de D. Anna d'Austria

e que um e outro tinham a cara cheia de lagrimas, emquanto a princeza lhe falava com imensa ternura.

Depois d'este depoimento o juiz apostolico sentiu-se já rasoavelmente elucidado para poder interrogar, com vantagem, o falso rei e o seu cumplice.

O primeiro que mandou chamar foi Fr. Miguel.

O padre adoptara um plano de defeza novo. Tinha-lho sugerido a febre e o cárcere.

Perguntado de como conhecia e de quando Gabriel de Espinosa, respondeu:

-- Só o conheci em Madrigal, no dia em que o encontrei.

-- Como sendo D. Sebastião?

-- Não. Só mais tarde acreditei que o fosse, e hoje sinto-me envergonhado por ter reconhecido como tal um impostor de tal arrojo e quilate.

-- Como o podestes acreditar?

-- Foi Sua Excelencia D. Anna d'Austria que me levou a crêl-o.

O miseravel descarregava para cima da pobre senhora as suas culpas.

-- Como assim? perguntou-lhe o juiz, ella conhecia-o, sabia quem era? como?

-- D. Anna, explicou o frade, gostava que eu lhe repetisse a historia de D. Sebastião, assegurando-lhe, sempre, que vivia ainda.

De tal modo se lhe afeiçoara, que rezava todos os dias por sua intenção e tinha uma lampada aceza, sempre, ante o Santissimo Sacramento.

Vendo um homem á minha missa, persuadiu-se que era D. Sebastião. Porquê? Sei que julgou vêr n'elle o rei portuguez. Era uma ilusão? N'ella se aferrou tanto que me pediu para lh'o levar ao locutorio.

Lá foi e conversaram muitas vezes.

Um dia perguntou-me, mesmo, se eu não acreditava que este homem fosse D. Sebastião? Respondi-lhe que me parecia sel-o, mas que era bom não o acreditar, absolutamente, por falta de provas.

D. Anna quiz recebel-o sempre; e, um dia, soube que entre os dois se falava de um possivel casamento, e que Espinosa escrevera, n'um papel:

«Eu D. Sebastião pela graça de Deus, rei de Portugal, recebo por minha esposa a serenissima D. Anna d'Austria, filha do serenissimo principe D. João d'Austria, com a dispensa de dois soberanos pontifices».

Assinou «El-Rei».

D. Anna leu o papel e não se mostrou muito satisfeita, porque o atirou fôra, dizendo: «Isto não vale nada... são garatujas».

Creio que o dizia, referindo-se á má letra de Espinosa.

Adoeci, n'este comenos, e durante a minha ausencia, fizoratnse promessas serias de casamento.

Quando melhorei pediram-me a minha opinião.

-- Concordou? perguntou o juiz.

-- Concordei.

-- Era um acto criminoso...

-- Fil-o por duas razões, disse Fr. Miguel.

Primeira, porque imaginava Gabriel Espinosa, o rei de Portugal; a segunda, porque a princeza tinha n'isso o maior prazer, vivendo como vivia triste na sua clausura.

Ella pensava em ser rainha um dia; eu não queria de modo algum ser-lhe desagradavel. Porque o não poderia ser? Merecia-o.

Interrogado sobre o caso do medico Mendes Pacheco, diz que foi D. Anna quem, tendo sabida que um medico tratara um doente misterioso o mandara vir para se convencer de que era D. Sebastião, o doente.

Confessou que queimara papeis ao saber da prisão de Espinosa, mas declarando que eram sem importancia.

Sustentou que a menina era filha de Espinosa e de Ignez Cid e se chamava Clara Eugenia.

- Porque não revelou tudo á justiça? perguntaram-lhe.

-- Imaginei que com a retirada de Gabriel da Espinosa tudo se acabasse, sem compromissos.

D. Juan de Llano procurou D. Anna d'Austria, depois dos depoimentos de fr. Miguel.

-- É verdade, Excellencia, perguntou-lhe elle, que havia entre Vossa Excellencia e esse homem promessa escripta de casamento?

-- É verdade; mas foi um artificio de que me servi para ter o original da sua escripta e por ella indagar se era ou não o rei.

-- Não lhe deu Vossa Excellencia palavra de casamento, por seu lado?

-- Nunca.

-- Onde está esse documento?

-- Como era inutil e não lhe ligava importancia alguma, queimei-o.

-- Porque tomastes conhecimento com Gabriel de Espinosa?

-- Porque ouvira dizer que servira meu pae.

-- Acreditastes, logo, que era D. Sebastião?

-- Duvidei, assim como fr. Miguel; este, porém, por fim, convenceu-me.

-- Falaveis com Gabriel na vossa cella.

-- Nunca.

-- Diz-se...

-- É falso. Nunca lhe falei senão á grade.

-- Sempre com testemunhas?

-- Algumas vezes, não; mas que importava isso?

Depois de D. Anna d'Austria, D. Juan de Llano, ainda que só encarregado de interrogar os religiosos, quiz ouvir Gabriel de Espinosa, esperando apanhar-lhe quaesquer confidencias e comprovar os esclarecimentos já alcançados.

Lembrou-se de um ardil.

Uma noite, ao sabe-lo já deitado, entrou-lhe de repente, pelo quarto.

Quiz levantar-se e vestir-se o Gabriel, mas D. Juan disse-lhe:

-- É inutil vestir-se para o que se quer de você.

Gabriel concluiu que lhe iam applicar a tortura e começou a barafustar:

-- É impossivel, o rei não podia ordenar o que dizeis. Sou um homem honrado, não devo morrer n'um cavalete. Já disse tudo o que sabia, não posso dizer mais nada.

-- Você contradiz-se, disse-lhe D. Juan; umas vezes é homem de baixa origem, outras vezes, como agora, é pessoa cuja dignidade impede que lhe seja applicada a tortura.

Vá, acho melhor evita-la fazendo declarações completas e formaes.

O Gabriel, porém, que percebeu que não era intenção de D. Juan de Llano o applicar-lhe os tormentos, mas de o intimidar, negou-se a dizer qualquer cousa a mais, de novo, do que tinha dito.

Como não viera a ordem da tortura o inquisidor teve de deixar em paz, o prisioneiro.

Uma cousa, porém, notou durante a entrevista. O preso ficara entre duas luzes e elle viu que a barba e os cabellos, que até então lhe tinham parecido ruivos, eram brancos ao sahirem da pelle.

Era uma revelação.

Comprehendeu que Espinosa se pintava de ruivo para se dar semelhanças com D. Sebastião.

Espinosa comprehendendo, d'ahi a pouco, o perigo de deixar crescer a barba sem a poder pintar, cortou-a.

Peor foi o cabello, á falta de tintura, embranqueceu quanto era, e o rosto denunciou um homem de sessenta annos feitos.

Esta desgraça enraiveceu-o a ponto de uma noite dizer ao guarda, que n'um interrogatorio, levantava deante d'elle um archote accêso: «tire-me isso de deante ou dou-lhe com elle na cara».

Por fim, um dia recusou-se a responder a D. Juan de Llano sob o pretexto de que o rei tinha confiado a missão de o interrogar a um juiz civil.

-- Tenho esse direito dado pelo rei e pelo papa.

-- Pelo papa? exclamou Gabriel; então consideram-me um heretico? Ainda que o Papa vos desse esse poder, pensaes em obrigar-me a dizer qualquer cousa contra a minha honra, a minha vida ou a dos outros?

De resto disse quanto sabia, as vossas ameaças não me fazem mêdo; de uma só cousa tenho espanto, é de mim mesmo.

D. Juan de Llano não desanimou e, antes de appellar para os meios extremos, quiz mais uma vez procurar resolver o criminoso a uma confissão leal.

A 17 de fevereiro de 1595 interrogou-o de novo.

-- Vamos a dizer toda a verdade e só a verdade. Ser vos-ha melhor. Diminuevos a vossa pena. El-Rei tel-o-ha em conta. Vamos, aconselhava, com as maneiras mais dôces, o esmoler de Filippe II, confessae tudo, Gabriel de Espinosa.

-- Começo por vos prevenir, d'uma vez, agora, e para sempre que me não chamo Gabriel de Espinosa.

-- Não?

-- Não.

-- Qual é então o vosso nome? Como vos chamaes?

-- Não posso dizer-vol-o.

-- Porque?

-- Porque jurei, e por cousa alguma quebrarei o juramento, de o occultar, até á morte.

-- Mas como delegado do Santo Padre possa desobrigar-vos d'elle.

-- Eu é que não quero esaa concessão.

-- Sois então fidalgo?

-- Dos maiores.

-- Quem eram?

-- Não os conheci: sei que eram nobres e que morreram, sendo eu novo.

O delegado do rei, olhou com certa attenção para Gabriel de Espinosa e não lhe foi difficil admittir a possibilidade de que fosse filho de boa familia.

Nem se comprehende que, sem certos dotes de corpo e de espirito, pudesse um simples pasteleiro, tendo atravessado uma vida aventurosa e baixa, impressionar e fazer-se amar de D. Anna d'Austria,

Pensando no caso, D. Juan de Liano perguntou-lhe:

- Porque é que depois de ter dito sempre ao alcaide D. Rdrigo de Santilhana que se chamava Gabriel de Espinosa -- nome porque todos o conheciam -- agora negava?

-- Adoptara-o para o officio de pasteleiro; era o que tinha no passaporte.

-- Como conheceu fr. Miguel?

-- Por lhe levar uma encommenda de pasteis, em junho passado.

-- E D. Anna d'Austria?

-- Porque ella me quiz vêr. Offereci-lhe uma cruz e um relicario. Quiz agradecer-m'o.

-- Conversava com ella no locutorio, á grade?

-- Muitas vezes. Ella gostava de me ouvir falar.

-- Sobre quê?

-- Sempre, sobre a sua vida de soldado, aventuras, cousas insignificantes.

-- E, com fr. Miguel, em que falava?

-- Ninharias da vida, cousas, bagatellas.

-- Porque é que a princeza e todas, no convento, lhe protegiam e amimavam a filha?

-- Naturalmente, porque era muito bonita e experta.

-- Fez-se passar alguma vez por D. Sebastião perante D. Anna ou frei Miguel?

-- Nunca. Elles tinham-me por tal. Conhecendo o perigo de tal incarnação e ainda depois de uma carta do provincial dos agostinhos a D. Anna, sobre as conversas á grade, resolvera fugir de Madrigal, como ia fazendo.

-- Houve algum projecto de casamento entre você e D. Anna?

Nenhum. O que fr. Miguel e D. Anna pensavam não o posso saber. Quem poderá esclarecer Vossa Senhoria, são elles.

-- Nunca falou com D. Anna no interior do convento ou fóra d'elle?

-- Nunca, affirmou cathegoricamente Gabriel; nunca lhe falei senão á grade e com testemunhas. Nunca me passou pela cabeça cousa alguma...

-- Deixou então Madrigal, para ir a Valladolidi d'onde voltaria, acompanhado por outras pessoas, com outro fato, não é verdade?

-- É falso. Deixei Madrigal para não voltar mais.

-- Deram-lhe, á partida, cem ducados e objectos de valor, para quê?

-- Para mim; para dispor d'elles como quizesse.

-- Quaes eram?

-- Já me não lembra.

-- Ha tão pouco tempo...

-- Não me lembra.

-- De Valladolid mandou um tal Rodriguez, dono d'uma estalagem, com uma carta para D. Anna e recommendou-lhe que dissesse no convento, que o conhecia de Burgos, onde o vira com casa grande e creados seus.

-- Não é verdade. Disselhe que dissesse que não era a primeira vez que eu entrava na sua hospedaria e que era servido por creados meus.

Não era mentira nenhuma.

Como se vê, Espinosa esqui vava-se habilmente, nas respostas, a responder claramente.

N'este tempo recebeu D. Juan de Llano umas cartas anonimas aconselhando-lhe circumspecção e cuidado no negocio.

Gabriel de Espinosa podia ser D. Antonio de Portugal e fr. Miguel era um homem que dificilmente se deixaria enganar pelos seus conhecimentos e experiencia do mundo.

As cartas visavam a enganar a justiça, a leval-a por caminho errado.

Desconfiou-se que fossem de um padre fr. Antonio de Sousa, muito ligado com o provincial da Ordem quem por amizade por fr. Miguel, ou por salvar um correligionario, ou por se livrar de qualquer responsabilidade no negocio, as fizesse escrever.

Os juizes não lhes ligaram importancia.

N'este ponto estava a instrucção do processo e nada mais se podia adeantar, visivelmente.

Então, os juizes que tinham pressa de liquidar a questão que interessava Filippe II, por envolvida n'ella a sobrinha, resolveram empregar os argumentos que a legislação de seculo XVI preconisava e permitia como mais ferteis em resultados praticos.

Resolveram applicar a tortura.

O primeiro que a sofreu foi Gabriel de Espinosa.

Entre as dôres que o retezar das cordas lhe faziam nas articulações confessou que era, realmente, Gabriel de Espinosa; mas que não conhecera os pães; que conhecera fr. Miguel em Lisboa no episodio do convento da Graça; que o encontrara em Madrigal; que lhe propozera fazel-o rei deixando-se passar por D. Sebastião e que para isso escrevera a pessoas influentes de Portugal e das Indias.

Que haviam devir emissários do duque de Aveiro e do Conde de Redondo, para se certificarem de que era elle D. Sebastião. Nunca vieram.

-- Engana-se, disse-lhe o padre que o interrogava, vieram, viram-no e foram muito satisfeitos.

-- Sabeis mais do que eu, replicou o Gabriel.

Confessou mais: que, de accordo com fr. Miguel, manobrara para se fazer acreditar D. Sebastião por D. Anna: que lhe fizera promessa de casamento, nos termos dictados por fr. Miguel por escripto ao que a princeza respondeu com promessa verbal; que a pequenita era bem sua filha, nascida a 2 de outubro de 1582, no Porto, de Ignez Cid, baptisada com o nome de Clara Eugenia, em Nossa Senhora das Victorias.

Disse que nunca tivera a menor liberdade com D. Anna d'Austria, nem ousara, sequer, pegar-lhe na mão.

Tal foi a confissão arrancada, pelas torturas sucessivas, a Gabriel de Espinosa.

A este seguiu-se o fr. Miguel.

A lucta, a prisão, a doença, tinham-no alquebrado.

Não parecia o mesmo de gasto e envelhecido.

Como o corpo, o espirito perdera a energia, e ás primeiras dores, cemeçou a fazer entrar na conspiração pessoas que mais tarde se viu que lhe eram absolutamente extranhas.

Confessou, porém, a captação de D. Anna, as promessas do casamento, o ter escripto para diversos, dizendo o reapparecimento de D. Sebastião, e o seu casamento com D. Anna d'Austria.

Eram o duque d'Aveiro, o conde de Redondo, D. Rodrigo de Lencastre, o arcebispo de Lisboa, e fr. Antonio de Santa Maria, tio do Duque, que se encarregou de mandar as cartas a fr. Alvaro de Jesus, procurador da Ordem de Santo Agostinho e as fazia chegar aos seus destinos.

Falou d'um Francisco Gomez, vindo da parte do duque e do conde a assegurar-se da identidade do rei e que d'ella fôra convencido para Portugal.

As forças faltaram ao frade, na primeira sessão.

Interrompeu-se. Dois dias depois fez-lhe interrogatorio previo.

Fr. Miguel aterrado com a renovação do suplicio começou a citar pessoas a quem escrevera e lhe haviam respondido, favoravelmente.

E citava em Lisboa: D. João Coutinho, D. Martinho Mascarenhas, D. Rodrigo de Noronha, presidente da camara; Jorge Barbosa, em Coimbra; Alvaro Medeiros, em Kvora; Jorge d'Albuquerque, na India.

Era um artificio; implicava averiguações, sugeria buscas, para protelar o processo, evitando a tortura.

Filippe II, desconfiado, mandou dizer a D. Juan de Llano:

-- Veja não sejam invenções do frade. Saiba ao certo se elle andava em relações com D. Antonio; note bem as respostas.

Quando D. Juan o procurou de novo, com o interrogatorio escripto, fr. Miguel começou a retratar-se do que havia dito.

Era um inferno. O magistrado apostólico furioso ameaçou-o com torturas ainda maiores para o dia seguinte, e, para começar, pôl-o em jejum completo, afim, dizia, de o dispor melhor.

Fr. Miguel dos Santos aterrou-se. Confirmou o o ter escripto as cartas a quem dissera, e, tambem, o que era falso, que tivera uma entrevista com D. Antonio.

A entrevista foi contada de tal maneira, com tantas minucias, que o esmoler de Filippe esteve a julgal-a verdadeira.

Segundo o frade, tinha escripto a D. Antonio que viera a Madrigal em agosto, disfarçado.

Vinha com um frade, fr. Diogo, á paizana.

D. Antonio contou-lhe o que tinha feito até então; elle dissedhe o plano e mostrou-lhe o Gabriel, que elle achou bom para passar por D. Sebastião.

Disse-lhe o fim do casamento, emfim, tudo o que o principe concordara ser dificil, mas tratavel e que elle se prestara a secundal-o.

Que dois dias depois partia para Lisboa para casa de^Manuel Tavares, e que ali trabalhara falando, entre muitos outros, a D. Antonio de Castro ao conde de Monsanto, a João Gonçalves de Athaide.

Todas estas historias lançavam a perturbação nos espiritos de D. Juan de Llanos e D. Rodrigo Santilhana.

Começaram a imaginar que o frade era o auctor de um vasto e complicado plano de revolução.

Mandaram dizer tudo a D. Filippe e este mais fino ou menos crente respondia: apliquem-lhe a tortura.

Assim o fizeram e fr. Miguel confirmou o que tinha dito.

Á medida que fr. Miguel contava cousas e citava nomes, escrevia-se para Lisboa a D. João da Silva, conde de Portalegre, para proceder a diligencias policiaes. Era o capitão geral do reino.

Dos citados, uns eram desconhecidos, outros mortos, outros acima de qualquer suspeição.

O conde via-se atrapalhado.

Emfim, lá foi mandado para Madrid o licenciado Antonio da Fonseca, o homem do conde de Redondo.

Quanto á estada de D. Antonio em Lisboa o conde de Portalegre negava-a, como, absolutamente, impossivel.

Como era natural não se esqueceram de interrogar Ignez Cid.

A mulher do pasteleiro foi chamada, perante os juizes.

Disse chamar-se Ignez Cid, ser natural de Orense, amante havia quatro annos, de Espinosa.

Que com elle tinha andado por Hespanha e Portugal, vivendo, a maior parte do tempo do officia de pasteleiro, até que do Porto tinham vindo para Medina-del-Campo e de lá para Madrigal.

Confirmou o que Gabriel dissera sobre a filha; declarou que nada sabia da intriga do marido e do frade.

Quando lho por perguntaram porque se fazia passar por ama da filha, sendo mãe, replicou:

-- Foi Gabriel que me pediu, dizendo-me que era para nosso bem, por quem feriamos a protecção de uma grande senhora.

-- De D. Anna d'Austria?

-- De sua excelencia, D. Anna d'Austria.

Alguma vez Gabriel de Espinosa lhe disse que era um grande fidalgo? um rei?

-- Ás vezes dizia-me; se soubesses quem sou, se fe pudesse levar para a minha casa de Castella, serias feliz.

-- Como explica essas palavras?

-- Elle imagina-se filho de boa família; mas elle proprio não sabe quem foram os pães, segundo me parece.

O depoimento de Ignez não deu maior clareza ao assumpto; não tornaram a incommodal-a.

A rapariga parecia falar sinceramente.

Um negocio d'esta monta, tinha impressionado, altamente, a opinião publica,

Os commentarios, as duvidas, surgiam de toda a parte.

Uns, diziam que o homem era D. Sebastião; outros, que era D. Antonio; muitos que não era nem um nem outro, mas um refinadissimo intrujão.

Para que não faltasse o maravilhoso da imaginação popular, alguns o consideravam feiticeiro ou bruxo.

Citava-se, em apoio d'esta crença, o facto de elle ter lido de sitio e distancia, d'onde não podia ver as lettras, o que o alcaide ia escrevendo no papel.

A este juntou-se caso mais estranho.

A amiga, Ignez Cid, teve um filho no dia em que elle foi preso.

N'essa occasião um dos guardas perguntou-lhe se o filho era d'elle, a que o Gabriel respondeu:

«Se fôr meu filho, ha de ter dois signaes, um em cada espádua: n'iima uma espada, na outra um anel.»

Ora, é claro, que não deixaram de aparecer, nas espáduas do rapaz, postos pela imaginação do povo, os signaes referidos.

O povo vivia nas suas divagações, emquanto as justiças faziam caminhar o processo para o seu fim tragico.

No Convento

D. Juan de Llano parece que era homem de genio fogoso e que, em suas atribuições de juiz, respeitava pouco ás freiras os seus direitos.

Sob pretexto de vigilancia do mosteiro, entrava lá dentro, continuamente, e começou a dar-se com algumas, em modos pouco conformes com a seriedade da casa.

Para atemorizar a communidade, um bello dia, 3 de julho de 1595, com o secretario D. Francisco de Satander, apresentou-se no convento e este em nome de D. Juan, mandou reunir as religiosas todas no coro de baixo.

Então o secretario falou por elle, altivamente, dizendo que:

-- Ficavam prohibidas, sob pena de ex-communhão maior, de falarem, ou de entrarem na cella de D. Anna, ou de terem com ella quaesquer relações, fossem de que ordem fossem; assim, como de se referirem ao processo pendente, ou ainda á questão das freiras encarceradas, D. Anna Belon, D. Anna de Tulia e D. Izabel de Aubes, auctoras, de uma correspondencia, libelo difamatorio, segundo D. Juan de Llano.

-- D. Juan de Llano, acrescentava o Satander, sabia que muitas tinham infringido as suas ordens, contra a vontade de Deus, do Papa e de Sua Magestade.

Entre estas apropria abadessa, a vice-abadessa.

O vigario do convento devia consideral-as como excommungadas, prohibidas de apparecerem no coro, nos officios divinos.

Accrescentava, que no dia seguinte, D. Juan Llano viria, depois do meio dia, para a sala do capitulo e ahi attenderia as que se julgassem ex-commungadas, em consciencia, e daria absolvições impondo as penitencias.

Este rigor tinha por fim affectar uma grande benevolencia de juiz e encobrir ou fazer esquecer os actos do proprio Llano que escandalizavam as freiras. Veremos quaes foram.

As recommendações e ameaças não sortiram o effeito. D. Anna era muito estimada e protegida por todos e tanto que escrevia a Filippe II n'essa mesma occasião.

Pedia-lhe que lhe perdoasse uma falta commettida por ignorância, que reparasse nas calumnias que cabiam sobre o seu nome; que lhe desse um advogado e um procurador que a livrassem dos rigores de D. Juan de Llano, e que esses fossem pessoas de boa e sã consciencia; que visse que era preciso esclarecer-se a sua innocencia, porque usava o nome de seu irmão, d'elle.

Como se vê D. Juan Llano era mal visto, abusava do seu cargo; e tornara-se antipathico e odiado, pelos ares de despota e pelo comportamento livre.

As religiosas, em coro, resolvem queixar-se ao rei. É fr. André Ortis, o novo vigario, que por ellas escreve a Christovam de Moura, o das cedulas, já, então, conde de Castello Rodrigo e conselheiro de estado de Filippe II.

Entre varias cousas pede o vigario:

«Em nome das freiras e no meu ouso supplicar a V. Magestade que mande a D. Juan de Llano que não entre mais n'este mosteiro, onde vem todos os dias para galantear com uma religiosa nova e bonita, emquanto o seu secretario faz o mesmo com outra.

Teem-lhes offerecido saias de côres garridas (tornasol) e outros fatos elegantes. Beijam-nas continuamente, pegam-lhes nas mãos, estão com ellas, até cá noite, sem luz.

Hoje D. Juan, colerico, lançou ex-communhões, para bter o silencio sobre os seus actos.»

Tal era o feitio do esmoler de El-Rei.

-- A 17 de julho D. Juan de Helano notificava á filha de D. João d'Austria, o acto de accusação, levantado contra ella.

Era accusada de acreditar em D, Sebastião; e de ter tratado com elle de casamento, sendo religiosa; e de tudo ter occultado contra os interesses de Sua Magestade.

D. Anna escreveu ao rei uma carta cheia de dignidade e de razões. Defende-se como pôde das accusações graves que lhe fazem.

De todas; e, com respeito á cahunnia de ter amado o falso rei a ponto de ter d 'elle um filho, exclama:

-- «Não commetti, nunca, a este respeito peccado mortal, nem por palavras, nem por pensamentos, sequer. Auctoriso os meus confessores a revelarem as minhas confissões».

Terminava por solicitar-lhe a clemencia, visto que o rigor que houvesse de ter contra ella, justificaria as más cousas que corriam a seu respeito.

O rei não attendeu a carta.

Filippe II consagrava, vê-se, á filha do seu glorioso irmão, que mandara matar, o mesmo odio que concedera ao pae.

A pobre senhora era, evidentemente, uma victima da vida a que a tinham forçado, da sua edade, da falta de piedade de fr. Miguel dos Santos.

A conspiração estava morta; nada fizera de mau, nada podia fazer.

Filippe II tinha um coração de pedra; a sobrinha havia de sentir-lhe os instinctos ferozes.

A 21 de julho o juiz apostolico D. Juan Llano, lia a D. Anna d'Austria a sentença condemnatoria, confirmada pelo tio.

Era condemnada a ser transferida para o mosteiro de Avila, para ahi ficar quatro annos, presa, sem poder sahir senão para ir á missa, nos dias de festa, acompanhada por duas religiossas velhas.

Nenhumas relações podia conservar ou ter fóra da cella.

Jejuaria a pão e agua todas as sextas feiras e não poderia, jamais, exercer qualquer cargo religioso e não teria differença alguma, no tratamento, de qualquer simples freira.

D. Luiza de Grado e D. Maria Neto, amigas e confidentes de D. Anna, foram transferidas uma para Toledo, outra para Saragoça, condemnadas a oito annos de reclusão, jejuando, a pão e agua, ás sextas feiras.

De novo, escreveu ao rei a pobre D. Anna. Pede perdão. «Estou quasi cega á força de chorar», diz a pobre menina.

O rei foi inflexivel.

Escreveu á rainha para ella interceder perante o marido. É de crer que esta fizesse o pedido; mas o rei não o satisfez.

A oito de setembro fr. Pedro Manique, encarregado pelo rei, levou-a n'uma carruagem, acompanhada por tres religiosas, para o convento de Nossa Senhora da Graça, em Avila.

A principio indignada, a pobre senhora conformou-se, emfim, com a sentença, resignou-se.

É possivel que com a morte de Filippe II, lhe fosse minorado o rigor do carcere.

É certo que muito viveu ainda porque parece averiguado que morreu em 1630, trinta e cinco annos depois da condemnação.

De Blas Nieto e Juan Roderos, seus creados, o primeiro foi posto em liberdade, o segundo condemnado ás galeras por quatro annos.

Este ficara aleijado de ambos os braços com a tortura, razão porque o presidente, D. Juan Llano, escrevia ao rei: «é melhor expulsai o do reino, porque, nas galeras, como está aleijado, nada pôde fazer e custa o sustento».

Admiravel justiça a d'esses tempos! Como horrorisa tanta crueldade junta a tão grande cinismo!

Pobre humanidade, seculos e seculos nas mãos dos Llanos e dos Filippes.

O fim de Espinosa

A 24 de julho Filippe II manda que se execute a sentença de Espinosa com a maior brevidade.

Era a de ser enforcado na praça principal de Madrigal.

Quatro dias depois entrou pela prisão de Gabriel o padre fr. Juan de Fuenrailda, jesuita, homem de D. Rodrigo de Santilhana.

Com palavras unctuosas, começou a querer dispor o preso para a noticia.

Este, desconfiado, disse-lhe:

-- É melhor dizer a que vem... perde o seu tempo a falar.

O padre leu-lhe a sentença.

Gabriel de Espinosa começou a barafustar, aclamar, cheio de colera.

A execução era marcada para quatro dias depois, com a esperança de que, n'esses quatro dias, o preso fizesse declarações completas e novas.

Viu-se fr. Juan em grande difficuldade no primeiro dia para socegar Gabriel.

Como bom jesuita, cheio de paciência e manha infinitas, a pouco e pouco o foi verenando.

Ao terceiro dia, já tinha recebido os sacramentos e estava calmo; mas a respeito da confissão clara e de revelações, nenhuma fizera.

Certo da morte, parece que se divertiu com o padre respondendo, evasivamente, ambiguamente, com reticencias e exclamações.

Na vespera da execução foi o Santilhana, por experto, conversal-o.

O que tinha dito repetia; de novo, nada.

No primeiro dia de agosto, ao romper da manhã, passeava no carcere, cheio de pensamentos que se atropelavam: o que diriam delle, da sua aventura; ia morrer, o que seria de Ignez, da filha, do fdho recemnascido?

Entrou o fr. Juan de Fuenrailda e quiz voltar o espirito do condemnado para cousas mais santas.

-- É preciso pensar na salvação da sua alma, Gabriel.

-- Tenho pedido ha tres dias perdão a Deus, dos meus peccados; devo estar perdoado.

Mereço a minha sorte, exclamou; mas se soubessem quem eu sou...

-- O que faziam? perguntou o frade.

-- Ter-me-hiam tratado d'outro modo. Imagina que nasci n'um curral? Tenho porventura modos de pessoa vulgar?

-- É certo que não.

-- Se assim fosse como poderia ter-me lançado em aventura tão alta?

-- Quem sois então?

-- Saber-se-ha quando eu morrer. O rei arrepender-se-ha de não ter mandado, nos dez mezes em que me tem tido preso, alguem que me reconhecesse!

D'alli a pouco, procedia-se ao vestir do condemnado. N'isto entra na prisão um funccionario de Medina-del-Campo.

Ao vel-o, Gabriel de Espinosa teve uma inspiração. Levanta-se e dirigindo-se aos guardas e aos padres que o cercavam, exclama:

-- Sabeis quem é? A que vem este homem? «É o rei que o manda para me reconhecer, porque fr. Miguel deve ter dito quem eu sou».

Todos o olharam com curiosidade.

Então, com ar enfatico, abeira-se do recem-chegado, dizendo-lhe:

-- «Dizei a meu tio, elrei, do que modo D. Rodrigo de Santilharia trata as pessoas do seu sangue».

Tal aflirmarão fez impressão nos padres, oliia-

ram-se indecisos e concordaram, rapidos, que um

d'elles fosse avisar Santilhana.

Este correu ao alcaide, que lhe respondeu:

-- O homem quer adiar o dia da morte, engana-se; apressem todos os preparativos, som um momento de demora.

Correu o frade a transinittir a ordem e fr. Juan de Fuenrailda dizia a Gabriel:

-- Irmão, é chegado o momento; pensae na vossa alma e encommendae-vos, firmemente, a Deus.

As ruas do Madrigal, pelas quatro horas da tarde, estavam cheias pela multidão excitada e curiosa.

Abriram-se as portas do carcere e, em alas, foi sahindo grande numero de religiosos de muitas confrarias.

Á frente, um arauto, gritava, de quando em quando:

«Justiça que o rei, nosso senhor, e, em seu nome o alcaide D. Rodrigo de Santilhana manda fazer na pessoa d'este homem, como traidor ao rei, e como impostor, porque, sendo de baixa e vil classe se fez passar por pessoa real. É condemnado a ser arrastado até á praça publica d'esta villa, onde será enforcado; o seu corpo será cortado em bocados e a cabeça espetada n'um poste».

Seguiam-se os soldados da guarda e atraz, com uma corda ao pescoço, envolto n'um panno grosseiro, vinha, arrastado pelo chão, o pasteleiro.

Morreu bem o homem.

Chegado ao cadafalso, desembrulharam-no do panno e subiu com passo firme a escada para a pataforma.

Olhava com grande serenidade o povo e as damas que o viam das janellas, e ao vêr n'uma d'ellas o alcaide exclamou:

-- Sr. D. Rodrigo de Santilhana...

Não o deixaram continuar. O padre pos-lhe deante dos olhos o crucifixo, pedindo-lhe com fervor:

-- Orae a Deus! pedi-lhe misericordia!

Mal acabara de attender o padre, sentiu-se erguido no ar momentos depois estava morto!

O terceiro impostor, rei de Portugal, acabava a sua rapida carreira no primeiro dia de agosto de 1595, na praça de Madrigal.

Quem era? Positivamente, não se sabe; nem admira porque parece certo que elle proprio o não sabia.

Os auctores do Manuscripto da Bibliotheca do Escurial e da Historia de Gabriel Espinosa, querem que elle tivesse sido exposto á porta de uma egreja de Toledo, e creado pela caridade publica; que tivesse exercido um officio manual n'uma fabrica de veludos e que se tivesse homisiado, por lhe imputarem um crime de assassinato.

É talvez a verdade, que não impede as suas perigrinações pela França, Allemanha e Portugal, justifica a sua vida aventureira e não prohibe de acreditar que fosse filho de pessoa nobre e de mulher de mais baixa condição e abandonado pelos paes.

É um ponto que ficará sempre escuro; de pequena importancia. O importante ahi fica. Começa no seu encontro com fr. Miguel dos Santos e acaba no dia um de agosto.

Filippe II tinha-se libertado de mais um competidor. Portugal perdera o seu terceiro rei!

Fr. Miguel dos Santos

Que fôra feito do nosso fr. Miguel?

Fôra mandado para Madrid, a fim de ser acareado com Francisco Gomes e Antonio da Fonseca, os enviados, para alli como se disse, pelo conde de Portalegre.

A 28 de agosto Francisco Gomes o enviado do conde de Redondo, foram interrogados pelo alcaide D. Diogo de La Canal.

A Francisco Gomes perguntou o alcaide:

-- Conhece fr. Miguel dos Santos?

-- Conheço.

-- De onde?

-- De Madrid onde lhe falei varias vezes, haverá seis annos, na egreja de S. Filippe.

-- Correspondiam-se?

-- Nunca, e nunca mais o vi.

-- Como é então que veiu a Madrigal para reconhecer se Gabriel de Espinosa era ou não D. Sebastião?

-- Nunca fui ao Madrigal, nem podia ser encarregado de tal missão.

-- Porquê?

-- Porque fui dos expedicionários de Africa e sei perfeitamente que o corpo de D. Sebastião foi achado por ordem do irmão de Abdel-Mulek. Assisti ao officios funebres que lhe fizeram os gentis-homes portuguezes. Não podia ir reconhecer um cadaver enterrado de tantos annos.

O licenciado Antonio da Fonseca, declara que conhecia fr. Miguel, que tinha sido encarregado por elle de varias comissões insignificantes, mas nunca fôra intermediario para qualquer correspondencia entre elle e D. Antonio, o prior do Crato.

Foram tão naturaes e claras as deposições que os dois portuguezes foram mandados em paz.

Para concluir os interrogatorios, no dia seguinte a esta disposição, D. Juan de Llano e D. Diogo de la Canal, resolveram que fr. Miguel dos Santos fosse ouvido, pela ultima vez.

Foi chamado a depor, e, com espanto dos juizes, negou tudo o que tinha dito, antes.

-- D. Antonio, diz, nunca esteve em Madrigal?

-- Nunca, affirmou o frade.

-- Gomes e Fonseca nunca estiveram na conjuração? Nada sabiam?

-- Nada sabiam.

-- A ninguem escreveu cartas procurando adhesões partidarias?

-- A ninguem.

-- Então porque affirmou, fez, taes declarações?

-- Para evitar os tormentos... receando, sempre, maiores, cada dia!

D. Juan de Llano, escrevendo a D. Filippe, dizia-lhe:

-- Se não acabamos com este homem, não sahimos do circulo vicioso das suas afirmações e retractações.

O rei foi da mesma opinião. O processo assim nunca acabava. Era o que o fr. Miguel queria; demorar, adiar.

Não lhe valeu a manha; a 16 d'Outubro foi levado á egreja de S. Martinho e degradado.

Perdida a qualidade de religioso, foi entregue ao alcaide, que de novo o metteu na prisão.

N'esse mesmo dia lhe leram a sentença: estava condemnado a ser levado á praça maior de Madrid e ahi enforcado.

A cabeça seria separada do corpo e mandada para Madrid para ser exposta, publicamente, por dez horas, n'um poste.

A 19 d'Outubro, um pouco mais de um anno depois do começo d'este laborioso processo, na praça maior de Madrid, apinhada de povo, esperava-se a execução de fr. Miguel dos Santos.

Com o cerimonial d'estes actos o frade appareceu, sereno e firme.

Ao pé da forca chamou o confessor e disse-lhe:

-- Morro innocente; julguei Gabriel de Espinosa verdadeiramente o rei D. Sebastião; nunca conspirei contra o rei catholico , nem escrevi a D. Antonio ou a qualquer outra pessoa, contra o serviço do rei.

Dito isto, mentindo mais uma vez, subiu os degraus da forca e morreu, animosamente!

Assim acabou a ultima personagem do drama de Madrigal.

O que parece ser a verdade a concluir d'este episodio trágico da historia, é esta:

Fr. Miguel dos Santos era um patriota.

Soffrendo, sem paciencia, a vergonha do paiz que amava, do seu paiz, pensava, como muitos, em collocar a corôa portugueza na cabeça de D. Antonio, Prior do Crato.

Os casos da Ericeira e de Penamacôr deram-lhe o plano: encontrar um falso rei que fosse apresentado em Portugal, mas bem apresentado de modo a ser acreditado e provocar com elle o levantamento popular.

Era preciso encontrar um homem proprio.

Appareceu-lhe o pasteleiro, ousado, atrevido, de mysteriosa vida; lançou mão d'elle, instruiu-o, levou-o a fazer-se amar por D. Arma d'Austria.

Qual o fim? Iriam os tres para Paris; D. Anna forneceria os meios.

A ida á festa de Burgos daria occasião para a fuga.

Em Paris diria tudo a D. Antonio e este, no segredo, aceitaria o Gabriel como rei, até tempo oportuno.

Quem o não acreditaria rei?

Então, iria a Portugal trabalhar para a chegada dos dois e levantada a nação e ganha a causa. D. Antonio tomaria o logar de Gabriel, se o não tomasse antes.

O que seria da pobre princeza? O frade não pensou, nunca talvez, inmierso no seu sonho, o sacrificio enorme a que ia sujeitar a pobre menina, a vergonha, o horror da situação que a alcançaria, se o projecto tivesse bom exito.

Ella seria a mais miseranda das victimas.

O frade não escrevera, realmente a ninguem; a intriga da peça estava no começo; a policia hespanhola não a deixou continuar.

O frade não conseguiu o que queria; mas não deixou de sobresaltar o animo desconfiado de Filippe II, nos ultimos annos da vida.

Comoeccoariam em- Portugal estas noticias? Que effeito produziria no espirito dos portuguezes o saberem que havia quem trabalhasse, lá fôra, pela liberdade da terra que elles consentiam cobardemente, sem protesto, que gemesse debaixo do calcanhar de Filippe, o Prudente, quem trabalhasse e quem morresse?

Nenhum historiador o indica; por mim imagino-o nulo ou quasi nulo.

A era das surpremas humilhações vinha ainda longe e os portuguezes blazonavam de escravos.

Clara-Eugenia

Não foi, realmente, fr. Miguel dos Santos a ultima personagem interessante d'esta novela, de cujo fim sei.

O leitor ha de ter desejos de saber o que aconteceu áquella Ignez Cid, mulher do pasteleiro, abandonada com a filha.

Com a filha? ora realmente sua filha?

Eis um problema interessante, de minúcia historica.

Logo no começo das inquirições, o esmoler D. Juan de Llano sugeriu a Filippe II uma suspeita, dizendo-lhe que era possivel que a pequenita Clara Eugenia fosse filha de D. Anna d'Austria, isto por vêr os carinhos com que a tratavam, no convento.

Nunca mais Fillippe II se esqueceu d'esta hypothese, e tal cuidado lhe dava que aconselhava a tortura se fosse preciso para apurar a verdade:

-- «Recommendo-lhe muito o averiguar o que fôr verdade sobre a fdha, porque é o que importa».

Nos tormentos, Gabriel de Espinosa sustentou, sempre, que a pequena era fdha d'elle e de Ignez, nascida e baplisada no Porto em l592.

D. Anna defende com vontade o seu bom nome, clamando que nem por pensamentos peccára mortalmente.

A mãe, a Ignez, declara que a pequena é sua filha e que se passava por ama é porque lh'o tinha pedido o pae, para beneficio dos dois.

O sr. Miguel d'Antas cujo estudo magnifico, o mais completo, tenho seguido, passo a passo, concorda em que D. Anna amou profundamente o Gabriel, julgando-o primo, e como, pelas declarações successivas, nada faz suspeitar de outra maternidade á pequena Clara Eugenia, nem sequer discute a ideia de D. Juan de Llano.

Na historia do aventureiro ha, porém, lacunas.

Não se diz o dia, o mez, o anno em que entrou em Madrigal.

Não se diz se quando chegou já tinha a filha. O principio da narração começa em outubro de 1594.

Em outubro de 1594, sabe-se, a pequenita tinha dois annos.

Á declaração de que a pequena fôra baptisada no Porto, em outubro de 1592, oppõe Camillo Castello Branco a informação de que não achou tal assento no livro de baptismos da dita egreja.

Observa o grande escriptor que este facto não é prova concludente contra o baptismo de Clara Eugenia, porque os pobres até pelos padres eram desprezados e podia o padre não ligar importancia ao pae para estragar com o nome reles uma pagina do livro.

Em todo o caso, é uma coincidencia contra.

Fere o ouvido o nome de Clara Eugenia, visivelmente um nome de pessoa de alta familia.

O ardor de Fillippe II em descobrir a verdade não pára com a morte do Gabriel.

Estas considerações levam o nosso espirito á duvida, tanto mais que parece que D. Anna podia sahir do convento.

Se a estada de Gabriel de Espinosa, em relações com o frade e com a freira datasse de mais de dois annos, eu não teria duvida nenhuma em aceitar a filiação de Clara Eugenia.

Nenhuma: porque dado o amor intenso que sentiu pelo aventureiro a filha de D. João d'Austria, a promessa do casamento e tnesrno sem ella, o natural era que a amorosa senhora se tivesse entregado, completamente, ao amado.

As expressões de extrema ternura das suas cartas confirmam-no absolutamente.

Quem ama assim, não tem receios, nem hesitações -- entrega-se.

Se eu não gostasse de conservar aos factos historicos, de gravidade, a sua verdade singela e respeitavel eu teria o direito, como romancista, e tel-o-hia feito, de, pelas cartas, apenas, pintar scenas intimas de amor entre o falso rei e a apaixonada freira.

Duvidei, abstive-me. Pois perdi umas scenas de efeito seguro.

Porque duvidei?

Primeiro, por não saber o tempo preciso que Gabriel habitou Madrigal, em relações com D. Anna; e por me parecer que o tempo que mediou entre o começo da intriga e a intervenção da policia, hespanhola, foi de uns ires mezes ou pouco mais.

Esta convicção veiu-me da declaração do creado de confiança da princeza, na tortura, João Roderas.

Disse: que conhecia fr. Miguel havia cinco annos (era o tempo que fr. Miguel vicariava em Santa Maria de la Real); e Gabriel ae Espinosa havia tres mezes, (o tempo em que este visitava o convento).

Esta informação tem todo o cunho da verdade, porque é certo que a conspiração, permita-se-me o nome, foi travada logo no começo.

Nem podia deixar de ser assim: porque se Gabriel de Espinosa estivesse estabelecido mais de dois annos em Madrigal, um pequeno burgo, seria conhecidissimo e o menos proprio dos homens para ser escolhido por fr. Miguel dos Santos para tal empreza.

O seu desconhecimento na terra, o misterio da sua vida, foi o que o recomendou, secretamente, ao padre na primeira vez em que o viu.

Em dois annos não o teria encontrado nunca?

Se, pois, Gabriel de Espinosa não estava, antes de encontrar fr. Miguel ha mais de dois annos em Madrigal, a filha não seria de Ignez, mas não era de D. Anna.

A uma aventura d'esta ordem não falta a colaboração do maravilhoso.

Um pasteleiro amado por uma princeza! A historia não ficava completa se não houvesse um filho.

Quem conhecia Ignez Cid? Ninguem. Quando a viram foi como ama de uma menina que era o enlevo das Madres de La Real.

Filha de Ignez Cid? assim amada e acariciada, sendo o pae o amante da princeza que a mandava buscar todos os dias para o convento?

Ora! quem não percebe? É que era sua filha.

No meu espirito fez-se a convicção de que não era; ainda que me repugne acreditar que entre o Gabriel e D. Anna houvessem as mais intimas relações... sem fructo.

Isso não vou jural-o; nem pelas declarações do heroe, nem pelas indignações da freira.

Isso é um segredo que as paredes do mosteiro de Nossa Senhora de La Real teem guardado, até hoje.

O leitor está em concordar comigo que Clara Eugenia era filha de Ignez Cid. Obrigado Agora oiça Camillo Castello Branco, que alcançou seguir a vida da filha do enforcado.

Conta elle:

Em 1815 havia no mosteiro benedictino de Paço de Souza um monge de setenta e oito annos.

Chamava-se fr. Felizardo da Mãe dos Homens.

Era filho de Manuel Bento da Costa e de sua mulher Mariatina Mendes, naturaes do Porto, com loja de loiça na calçada dos Clerigos.

Este monge dizia descender da casa d'Austria.

Quando lhe perguntavam como, e lhe pediam que satisfizesse a desconfiada curiosidade de amigos, respondia:

-- Quando eu morrer o saberão.

Morre o frade; vão-lhe aos papeis e lêem uma memoria, que resumo:

-- «Sem duvida sou filho de Manuel Bento da Costa e de Marianna Mendes, moradores em 1728 a 1780 na calçada dos Clerigos, do Porto, onde venderam loiças.

De meu pae pouco ha que mereça contar-se.

Minha mãe era filha de José Mendes, procurador das freiras de Monchique.

Este era filho natural do arcediago de Barroso, Pantaleão Mendes de Abreu, e de sua prima D. Eduarda Lopes de Aragão, fidalgos ambos.

Pantaleão Mendes d'Abreu era filho de Pedro d' Abreu, general de artilharia no reinado de D. Pedro II e de D. Thereza, filha do 3.° conde de Miranda, governador do Porto.

Pedro d'Abreu (meu trisavô) era filho, natural de D. Luiz de Sousa, decimo arcebispo de Lisboa e de sua prima D. Brites de Abreu.

D. Luiz de Souza (meu quarto avô) era filho de Diogo Lopes de Souza, 2.° conde de Miranda.

Diogo Lopes de Souza (meu quinto avô) era filho de D. João de Souza, geral dos cónegos regrantes de Santo Agostinho e de uma dama nobilissima da côrte de Filippe III.

D. João de Souza (meu sexto avô), era filh do deão da Sé do Porto, D. Pedro de Souza e de Clara Eugenia de Espinosa, oriunda de Castella.

Não é interessante?

Ouçamos a historia, contada pelo frade Felizarda na sua memoria.

Em 1596 appareceu, no Porto, Ignez Cid com a menina nos braços e procurou os antigos amos, que a receberam.

Paredes meias com a estalagem da Ponte Nova, morava o cónego João de Souza que interrogava varias vezes Ignez sobre os amores de Gabriel com D. Anna d'Austria, instigado por Filippe III.

-- Isto parece-me, e creio bem que ao leitor, muito fôra do natural. Que Filippe II se interessasse, mas Filippe II? Para quê? Adeante.

Clara Eugenia cresce em graças e beleza e o conego João de Souza afeiçoa-se-lhe e põe casa ás duas.

Ignez Cid, passado tempo, adoece e prestes a morrer, declara ao padre que Clara Eugenia é filha de D. Anna e de Gabriel de Espinosa. Que lh'a haviam entregado logo que nascera. Que o proprio Gabriel era filho d'um dos maiores fidalgos de Hespanha, natural de Toledo, e que escondera sempre os apellidos porque, muito moço, fugira de casa por ter matado um irmão, por ciumes.

O deão guardou segredo absoluto da revelação, até á mãe de seu filho, a nossa Clara Eugenia; mas desde qne soube quem era, começou a querer-lhe com tal amor que renunciou n'um sobrinho a dignidade da Sé portuense e partiu com ella para Roma, levando todas as suas riquezas para obter dispensa de ordens para casar com ella.

Lá esteve annos, explorado pelos cardeaes, até quasi aos ultimos cruzados, sem nada conseguir.

Quando voltou a Portugal, trazia vestido o habito de frade de S. Francisco.

Vinha só. A lindissima Clara Eugenia morrera em Roma, aos trinta annos, «requestada pelos anjos», como dizia o franciscano.

Recolheu-se no convento de S. Francisco do Porto o fez vida penitente, com o nome de frei Pedro de Jesus Christo.

Não descuidou a educação do filho, que foi meu sexto avô D. João de Souza, que professou entre os cruzios de Grijó e rejeitou as mais rendosas mitras de Portugal.

Aqui tendes como a louceira Marianna Mendes, da calçada dos Clérigos, era descendente do imperador Carlos V. Kis a vida e o fim de Clara Eugenia de Espinosa.

O leitor embuchou? Tambem eu.

Camillo Castello Branco crê na veracidade d'este documento, a que havia juntos outros justificativos.

Eu fico-me a pensar... como o leitor, talvez.

O que é certo é que aqui termina a historia pitoresca da mais nova das personagens do drama de Madrigal, e com ella, a mesma historia.

O rei da Calabria

Em Paris

De D. Antonio, o prior do Crato, disse eu, ao acabar um capitulo, na primeira parte d'este trabalho, contando, para o caso do rei de Penamacôr, os rapidos sucessos da historia d'esse tempo, falando da batalha de Alcantara, da fuga do pretendente, do seu exilio e morte:

«A sua vida do exilio é um poema de trabalho, de lucta, de sacrificio, de miseria, de honradez, de pobreza.»

N'ella morreu, em Paris, sem pão, nem para elle nem para os filhos, o 18.° rei de Portugal, D. Antonio I e prior do Crato, o filho da Pelicana, o mais calumniado, o mais infeliz rei da nossa terra.

E, nem rei lhe chamam os historiadores! A subserviencia vil levou a contar, apenas, como misero pretendente, um rei popular, tanto como D. João I e mil vezes mais nobre do que este, um dos mais dignos homens, um dos mais valentes, dos mais nobres caracteres de Portugal.

Isto, dito assim, sem mais rebuço, é uma heresia, perante a opinião de todos os historiadores da nossa terra, sem excepção de um só.

Era; não é.

Um estudo, superiormente feito, sobre a vida eactos de D. Antonio, por Manuel Bento de Sousa, que a sorte não quiz que fosse um historiador, porque o teria sido tão insigne como foi medico, fez vir á luz de uma analyse minuciosa e alta, a verdadeira grandeza politica e moral do grande e infeliz prior.

O leitor lembra-se que, depois da batalha de Alcantara, D. Antonio fugiu, ferido, obrigado pelos companheiros a abandonar a batalha, já perdida, e onde a sua teimosa valentia acabaria por comprometer-lhe a vida.

O prior fugiu. Era em 1580.

Fugiu para o norte, onde o foi perseguir e desalojar D. Sancho de Avila, de Coimbra, de Aveiro, do Porto. Tem a cabeça a premio.

Filippe II promette prémios avultados a quem o entregue vivo ou morto.

Salvando-se da perseguição, por vezes milagrosamente, o vencido de Alcantara, depois de mezes de fugas permanentes, disfarces, aventuras de toda a especie, consegue embarcar, para França, a bordo de um navio commandado pelo capitão Cornelio d'Egmont.

É então, no exilio, que começam os seus quatorze annos de trabalho, de lucta incessante, de uma energia combativa assombrosa.

Consegue, pelas suas altas qualidades, jogando com os despeitos da França e da Inglaterra contra Filippe II, a protecção de Izabel de Inglaterra e de Henrique III de França, ou melhor, de sua mãe Catharina de Medicis:

Depois de longas negociações D. Antonio consegue ter em Belle Isle uma esquadra onde embarca a flor da nobreza franceza e os nobres exilados portuguezes que o seguiam.

Essa esquadra sahe de Belle Isle a 26 de junho de 1852 e dirige-se aos Açores. O marquez de Santa Cruz sahe de Lisboa para a combater a dez de julho.

Não contarei o combate. Filippe Strozzi commandante da esquadra fraiiceza, tão valente como imprudente, aceitou a batalha nas peores condições e perdeu-a, apesar dos actos heroicos dos fidalgos francezes e portuguezes. A traição, ainda mais do que a temeridade, entregava-os. M. de Saint Solina vendera-se por 60:000 ducados. Commandava dezoito navios.

Filippe Strozzi e o conde Vimioso, um dos maiores amigos do prior, morreram, ali.

D. Antonio volta a França e a despeito da boa vontade de Catharina de Medicis, não alcança socorro imediato. Filipe II tenta assassinal-o por vezes.

Parte para Inglaterra, onde a rainlia Izabel, depois de ameaçada pelo punhal de Filippe, ameaçado o seu reino e o seu trono pela Armada Invencivel, cujo fim vimos, enraivecida contra o hespanhol, resolve secundar D. Antonio como desforço, como vingança.

A Armada Invencível partira de Lisboa em 1588. Em 1689, em Abril, a armada ingleza com onze mil soldados de desembarque, sabia de Plymouth e a 16 de maio estava em frente de Peniche, onde desembarcou as tropas.

As povoações não se levantaram. O prior do Crato percorria as terras em que o rei da Ericeira fizera o seu campo de batalha que não estavam ainda livres da lembrança dos castigos tremendos, com que o seu patriotismo as brindara.

Em Lisboa o archi-duque Alberto apressou-se a tomar as medidas mais rápidas e energicas.

Entregou o commando da cidade ao conde de Fuentes, recolheu as tropas dentro dos muros, queimou os armazéns dos arredores, prendeu todos os portuguezes suspeitos de dedicação a D. Antonio, reparou as fortificaçãeSj entrincheirou os sitios mais expostos, proclamou a lei marcial, levantou forcas permanentes onde começou a prender homens, mulheres e creanças á menor suspeita de traição ou, mesmo, sem suspeita nenhuma.

Quiz estabelecer o terrror e conseguiu-o.

Começou pelos fidalgos e enforcou D. Rodrigo Dias Lobo, tio do barão d'Alvito.

O povo, entre o receio dos invasores e a forca, não se moveu.

Quando os inglezes chegaram ás portas de Santa Catharina tentaram o primeiro assalto e foram repelidos.

A sublevação que se esperava não appareceu.

A cidade era neutral á lucta. Os inglezes não traziam artilharia de sitio; começou a faltar a comida; uma doença contagiosa apanhada na Corunha entrou a dizimal-os.

Tentaram ainda, sem efeito, um assalto, a ver se os portuguezes se animavam e os secundavam e, como fosse inútil, levantaram o cerco e foram embarcar em Cascaes na esquadra de Drake, que não pudera forçar a barra contra as dezoito galés de D. Affonso de Bazan.

Esta foi a ultima aventura guerreira de D. Antonio.

Escriptores portuguezes, muitos, dão como razão maxima do não levantamento das povoações por onde passou D. Antonio, ou do povo da capital, o ter D. Antonio feito um tratado com a rainha Izabel, que quasi enfeudava Portugal á Inglaterra e sobretudo serem os invasores protestantes.

Á primeira razão responde-se que não é assim e que ainda que o fosse o povo não o sabia.

Quem é que o sabia em Portugal? D. Antonio mandava para cá annunciar o contracto se fosse máu? Fosse o qual fosse?

Quanto á razão do odio pelos inglezes é de arripiar o senso comum.

Nunca em Portugal houvera inglezes batalhando ao nosso lado? Alguem quer saber da religião do que o soccorre, providencialmente?

É que o povo portuguez era um vergonhoso e timido rebanho, abandonado pelos fidalgos que o tinham vendido, e nunca um rebanho faminto e chibatado tem movimentos de ousadia e de revolta.

Era preciso mais meio seculo de esmagamento; era preciso que os primeiros a sofrer com o jugo fossem os fidalgos para que estes se levantassem, não pela patria, mas pelos seus interesses e clamassem ao povo: seguide-me! A patria! como elles a amavam depois de Alcacer-Kibir!

Então o povo os seguiu e então foi grande.

Imaginaes que D. Antonio desanimou? Aquelle era da velha raça portugueza... só a morte o venceu.

Despediu-se da Inglaterra em 1890 e veiu para Henrique IV de França. O que elle fez, o que elle trabalhou, para depois de duas tentativas tão tristes ser capaz de conseguir a ordenação da outra esquadra, que sob o commando de Clermont d'Ambroise devia vir a Portugal!

Estava-se a armar, quando morreu, em Paris, aos 63 annos, de calculos renaes.

Estava pobre, pobrissimo, como já estivera por vezes, sem pão, sem dinheiro para mandar chamar um medico.

E este miseravel, este traidor, que podia, com a sua assignatura, receber milhões de Filippe II, morre n'esta miseria, a escrever á rainha Izabel e Henrique IV, recomendando-lhes os filhos e os amigos fieis e a redenção patria!

Este sim, este tinha uma patria bem dentro do coração.

Morreu o prior a 26 de agosto de 1595.

Ao pé do seu leito tinham ficado, mudos, n'aquella concentração apática das grandes dôres os seus dois filhos D. Christovam e D. Manuel e varios, entre os quaes D. João de Castro, D. Antonio de Menezes, Diogo Botelho, Santos Paes, o padre João Gonçalves, e outros.

Fr. Estevam de Sampaio e tantos, que os azares das guerras e uma amisade e dedicação absolutas, tinham congregado em volta da figura adorada do grande morto.

O exilio reunira-os; a morte de D. Antonio ia separa-los. Eram muitos; cada um tinha de procurar a vida; assim era precizo.

Já muitos havia espalhados por outras cidades da Europa; a alguns iremos encontrar na nossa historia.

Uma cousa, porém, surprehende ainda que justificada pelo desanimo, pela falta de guia e de auctoridade do dirigente, é qae aparecem, logo depoisda morte, entre alguns, a.ideia de uma approximação de Filippe II, de transigência com a situação.

Houve discussão entre os partidários e parece que um dos não menos convictos da vantagem d'esde passo era D. Christovam, um dos filhos de D. Antonio, o filho segundo.

Elle dizia:

-- O que nos resta? A protecção dispensada a meu pae, pelo seu longo convívio n'esta côrte e na de Inglaterra, morto elle, se não desapparece de todo,

vae diminuir altamente. Que nos resta fazer?

-- Emquanto essa protecção não desamparar a nossa causa, temos obrigação, nós, de a não abandonar-mos, respondiam.

Que exemplo dariamos?

O irmão não concordava; mas o que é certo é que os descontentes encarregavam o Padre João Gonçalves de se entender com um agente hespanhol. Se alguma cousa se fez, não deu resultado a tentativa. Morto D. Antonio, a força, o trabalho, a energia, a cabeça, D. Filippe pouca importancia ligaria aos filhos.

Elle era o perigo e esse estava morto.

Continuaram, pois, os emigrados junto de Henrique IV os seus pedidos, mas sem que o rei de França tivesse grande pressa em os servir: até que um dia o contracto de paz feito com a Hespanha, alcançado pela habil politica de Henrique, acabou com todas as esperanças dos portuguezes.

Alliado com D. Filippe, Henrique IV não podia guerrea-lo.

Que restava aos emigrados? Aceitar as coisas como ellas eram; transigirem com o vencedor.

N'uma rua, que pelo nome não perca, da capital franceza, um homem ainda novo, mas de aspecto envelhecido, trabalha n'uma ampla mesa, em casa rodeiada de estantes cheias de livros, de velhos códices, de massos de manuscriptos. Ha montes de papeis em redor d'elle, na mesa, onde sumido lê e escreve.

Passa alli os dias, as noites; tem passado annos, quasi só, meditando, lendo.

Nada o distrahe, nada o interessa, além dos seus livros, dos seus papeis, das suas indagações e vigílias com que se arma para a sua obra futura.

É um concentrado, um excentrico visionario talvez, um maniaco, de certo.

Interpreta profecias; todas as profecias populares que corriam em Portugal, em prosa e verso, dos sapateiros Simão Gomes, do Bandarra, do preto do Japão.

Estuda os reveladores, S. Cyrillo, S. Theophilo, S. Claudio, S. Angelo, Fr. Gil, o Beato Antonio da Conceição, Santa Thereza de Jesus, Santa Leocadea, a carmelita Leonor Rodrigues, a irmã Martha, até a pagã sibila Krithréa.

Todos os que podem dar luz sobre o rei D. Sebastião em seus proféticos dizeres, todos, o curioso e invariavel escrutinador tem á roda de si, lê, e compulsa e critica.

Trabalho de derrear, trabalho de estragar a cabeça mais bem conformada.

Quem é o sabio? um exilado, Um dos firmes amigos de D. Antonio, na vida e na morte; um fidalgo portuguez da mais alta linhagem -- é D. João de Castro, neto do illustre vice-rei das Indias, do mesmo nome.

Fôra intendente de D. Sebastião. Educado na Universidade de Evora fez alli o curso de humanidades e de theologia.

Não foi padre; mas os hábitos sedentarios da provincia, tornaram-o de apaixonado pelas cousas extraordinarias e maravilhosas, em contemplativo, dirigindo-lhe o espirito para uma falsa direcção atrofiadôra e mistica.

Viveu sempre só. D'ahi o saber-se que o seu genio era aspero por vezes, irregular, teimoso.

Não foi á Africa com D. Sebastião, sendo novo, n'aquelle tempo; aos trinta annos, quando não houve rapaz nobre portuguez que não fosse.

Porquê? Bizarria de caracter, talvez.

Não foi, mas quando D. Antonio organisou a resistencia contra á invasão hespanhola, D. João de Castro poz-se-lhe ao lado, conspirou e bateu-se com elle corajosamente e segui-o no exilio.

Foi um amigo certo e um trabalhador infatigavel.

Já, durante a vida de D. Antonio, que muitas vozes lhe aturou o mau iíonio o os amuos, se dedicava, longamente, nos intervallos dos seus trabalhos polticos, ao estudo predilecto das profecias sebastianistas; morto elle, D. João de Castro, menos occupado, dedicava todos os momentos ao predilecto estudo.

Vivia, como disse, quasi só.

era-lhe companheiro de casa D. Antonio de Menezes, outro fidalgo e outro amigo de D. Antonio, com quem conversava sobre o eterno assumpto:

-- Portugal, D. Antonio, D. Sebastião.

N'uma tarde estavam os dois na casa da bibliotheca, n'uina das conversas habituaes.

Tinha-se feito a allianca da França com a Hespanha, como disse, a lõ de junho de 1598, tres annos depois da morte do prior.

O contracto desanimara, absolutamente, os emigrados. O filho de D. Antonio, D. Manuel, não se sentaria no throno de Portugal.

-- Não assenta, não; dizia o D. João de Castro. Nem elle, nem outro que não seja D. Sebastião.

-- Que já não aparece ha vinte annos, observou D. Antonio de Menezes.

-- Isso que tem? replicou D. João de Castro. É mais uma razão para que se cumpram as profecias.

-- As profecias...

Que dizem que elle voltará a tomar o throno e não outro.

-- Quando?

-- Quando Deus quizer, respondeu, com mau modo, o D. João, que não gostava que duvidassem da sua crença.

-- Que assim seja, disse D. Antonio que conhecia o genio exaltado do amigo; ninguem o deseja mais do que eu.

-- E eu?

-- Ou tu; mas cança tanto esperar e vem a duvida...

-- Não ha que duvidar...

E começou a abrir livros, a levantar papeis e a ler citações, trechos comprovativos, da sua opinicão: em prosa, em verso, em latim, em grego.

-- Não te cances; mas eu desejava assistir á sua

volta, queria vêr sua chegada, e então como S. Thomé, acreditaria.

-- Homem sem fé, dizia-lhe, erguendo-se D. João de Castro, é preciso que as coisas te entrem pelos olhos para as acreditares. Mas, então, o testemunho, este serie de testemunhos, conformes, de tanta gente, em tantos pontos do mundo... nada significam para ti? Combinaram-se para dizer a mesma cousa, pessoas, a milhares de léguas de distancia, em annos diversos, que nem se conheceram, ao menos?

-- Não duvido, mas...

-- Crê, crê! dizia-lhe imperativamente, D. João de Castro: D. Sebastião vive, em logar incerto e viverá até quando fôr preciso, pelas idades fôra, para aparecer no momento proprio, formar o 5.° imperio do mundo e reinar cheio de grandeza, da maior magestade da terra!

-- Assim seja, dizia D. Antonio, complacente, com a excitação patriótica do amigo, assim seja.

-- Será e não vem longe o dia... oh! não vem longe!

Nisto assomou á porta, um dos amigos fr. Estevam de Sampaio, exilado tambem; e, entrando saudou apresentando a D. João de Castro uma carta.

-- Este tomando-a perguntou:

-- D'onde vem?

-- De Veneza, respondeu o frade.

-- De Veneza?... Rasgou-lhe o envolucro e leu... quando, de subito, os olhos brilhantes, a face congestionada, a voz tremula, estendeu a carta para D. Antonio de Menezes, dizendo:

-- Lê! lê!

-- Que é? perguntaram os dois, sobresaltados com o aspecto de D. João de Castro.

-- O que é? É D. Sebastião!

Correram os dois á carta e leram.

Era uma carta de um emigrado portuguez, de Veneza, um compatriota, Antonio de Brito Pimentel, que dizia:

«Está, n'esta terra, um pobre homem, chegado ha pouco e que se diz o rei D. Sebastião de Portugal».

A carta dizia «um pobre homem».

Esta maneira de dizer, notada por D. Antonio de Menezes fez esmorecer um pouco a alegria de D. João de Castro.

Todavia a sua crença não lhe permittia duvidar de que fosse, emfim, o rei que aparecia e exclamava:

-- Um pobre homem... decerto... um homem humilde... mal vestido . Como querem que elle ande? Ricamente vestido... e que se apresente em senhor? Deve ser elle... é elle!

Os dois amigos não ficaram muito crentes, mas não quizeram desgostar o D. João de Castro.

Calaram-se.

Elle é que começou a fazer planos, a planear viagens.

Veneza, como a HoUanda nos tempos de D. João III e de D. Ahmuel recolhendo os judeus expulsos, recolhera muitos emigrados portuguezes. Em 1598, além de Brito Pimentel, estavam alli entre outros, Pantaleão Pessoa de Neiva, Nuno da Costa, negociante; fr. Chrisostomo da Visitação, chegado de Roma, bernardo de Alcobaça.

Ora, pouco tempo depois, recebe D. João de Castro outra carta de Pantaleão Pessoa, mais circumstaciada e mais seria.

Dizia este que falára com o homem que lhe affirmara a existência do rei e do duque d'Aveiro e que terminara por lhe dizer que o -- rei era elle!

Esta carta é que produziu nos tres uma impressão mais profunda.

Todavia, escreveu-se, e como não vieram mais noticias, por tempo, affrouxou, um pouco, o alvoroço.

D. João de Castro, esse espalhou, por toda a parte, a nova, que foi acolhida com a maior desconfiança pelos portuguezes emigrados.

D. João de Castro era, porém, de uma tenacidade illimitada e de uma tal crença que arrastava os menos firmes.

Assim, voltando-se um dia para fr. Estevão Sampaio, que elle convencera, dizia-lhe:

-- É preciso irmos a Veneza.

-- Pois vamos.

-- É preciso ir vêr se esse homem é realmente o rei.

-- Duvidaes? vós?

-- Não; mas tenho uma preoccupacão. As prophecias dizem que o rei deve estar em Africa, na costa da Mina. Lá o fui procurar, mas não o encontrei.

Interpretaria eu mal as prophecias ou terá o rei abandonado a Africa e chegado á Europa? Seria esta a razão porque o não pude encontrar?

-- Talvez.

-- Não me enganei, murmurava o maniaco, não pôde ser; as prophecias são claras: o rei deve vir da India ou dos lados da Ethyopia. É preciso vêr... é preciso partir.

Isto ficou assente.

Marco Tulio

Em Veneza, havia, n'este anno de 1598, na Côrte Cantarina, o mais pobre e mais mal afamado bairro da cidade, uma taberna ou tavolagem da peior especie.

Era o coito dos vadios e dos rufiões.

Alli se i)lanoavam roubos, d'alli se partia para elles, alli se dividiam.

Á fama de tal taberna correspondia, naturalmente, a freguezia numerosa, porque em toda a parte as casas de má nota abarrotam de freguezes.

O dono era um tal sr. Francesco, natural de Chypre, que accumulava as funcções da sua arte com outras não menos productivas de protector de malandros.

Entre os diversos freguezes, havia um certo Alessandro, cujo cadastro se não conhece, mas de cuja importancia não é difficil julgar, e um outro cavalheiro de industria, Gerolamo Megliori, que morava n'outro ponto da cidade, em San-Benedetto.

Estavam, estes dois, abancados na taberna do mestre Francesco, quando entrou pela porta dentro um homem, de altura media, muito magro, largo de espaduas, barba castanha, rala, cortada rente, como os cabellos, e com um pequeno bigode levantado.

A testa era larga, os olhos vivos, encovados, nem pequenos nem grandes, as maçãs do rosto salientes, o nariz comprido e atilado, a bòcca vulgar, os labios finos. Vestia de fidalgo pobre.

Cumprimentou a sociedade e sentou-se ao lado dos dois, pedindo vinho.

-- Então perguntou Alessandro, nada de novo, Marco?

-- Nada, respondeu o recem-chegado, nada de novo.

-- Esse Marqueti quer talvez que vamos a Messina obrigal-o a ser generoso, observou Gerolamo.

-- Talvez, disse Marco.

-- Parece-me, observou o Alessandro, que tu não sabes escrever.

-- Não sei escrever...?

-- Sim... ninguem te responde. Que diabo! Vê se te arranjas de qualquer modo, olha que precisamos de dinheiro... e muito... bem sabes.

-- Não faço o que posso?

-- Não sei, replicou o Gerolamo, arranja-te como quizeres, se não deitamos-te a caranguejola abaixo.

O tal Marco ficou silencioso e com cara de mau humor, pela ameaça.

-- Parece-me, disse, d'ahi a instantes o Alessandro, que tu na primeira incarnação eras mais feliz.

-- Ia-se a acabar, já, a sorte; replicou Marco e a prova é que vocês acceitaram, com o maior empenho, a minha nova transformação. Não sei de que se podem queixar.

-- De certo modo é verdade, disse o Gerolamo, a fidalguia hespanhola rendia pouco... era preciso mudar de rumo. Estão muito por baixo os fidalgos de Aragão.

A conversa continuava n'este pé, incomprehensivel para o leitor.

Ás vezes, quando algum freguez passava por junto dos tres, olhando aquelle a quem chamavam Marco, desbarretava-se, com grande respeito.

N'uma das mesas do lado onde um homem e uma rapariga conversavam, esta disse, de uma vez, para o companheiro, olhando Marco:

-- O rei está hoje com cara de poucos amigos.

-- O rei?

-- O rei D. Sebastião de Portugal, nem mais nem menos.

Vamos perceber a conversa.

Havia mezes que chegara a Veneza este homem, de aspecto afidalgado pelo fato, ar fanfarrão, fino no fahir, comidetamente desconhecido.

-- Intitulava-se D. Diogo de Aragão, fidalgo de primeira nobreza, a quem a sorte pouco amiga lançara nas garras de uma pobreza rude.

Vivia da protecção que implorava dos grandes a quem a sua posição despertava sentimentos de piedade.

Como D. Diogo de Aragão viveu por tempo, até que um dia, declarou que era mais do que D. Diogo, que era rei: -- o rei de Portugal, D. Sebastião.

Porque lhe viera tal idêa?

Por calculo, era dotado de alto espirito religioso, o que o levava a frequentar muito os officios nas egrejas, fosse para se tornar visto e estimado pela sua

devoção fosse para fazer colheita de bolsas ou de joias nos ajuntamentos dos templos. Ora, um dia, estando n'uma egreja tinha ao lado um capitão que o olhava continuamente, com um modo de pasmado.

Não conhecia o capitão, não fez caso.

Este, porém é que não deixava de o fitar primeiro com interesse, depois com respeito, até que, de repente, lhe disse:

-- Guarde Deus a Vossa Magestade.

-- Com quem fala?

-- Com Vossa Magestade, meu senhor.

Pasmou o homem do tratamento; mas quiz alcançar-lhe a razão.

-- Porque me trataes por magestade?

-- Não sois vós el-rei D. Sebastião de Portugal?

-- Não sou.

-- Não o podeis negar.

-- Se o não sou...

-- Para outro qualquer sim; mas para mini, não, que bem vos conheço.

Achou curiosa a affirmação o Diogo e disse-lhe.

-- D'onde me conheces?

-- Da Africa.

-- Hein?

-- Da Africa. Tantas vezes vos vi e estive ao vosso lado, antes d'aquella fatal batalha em que desapparecestes. Fui n"um dos terços que mandou o sr. duque de Toscana, a vosso pedido.

-- E, combatestes...?

-- Quanto pude e emquanto pude. Comandava-nos o nobre Hernuile Marquez de Leinster e era seu immediato o capitão Hercules de Piza. Não vos recordaes d'enes?

-- Muito bem; disse Marco, não querendo desfazer a illusão do soldado --adivinhar já uma fonte de dinheiro a explorar.

-- Como estaes aqui, meu senhor? Agora vejo que não morrestes, como disseram; mas que viveis, como outros afirmam, em peregrinação pelo mundo.

-- Tende cautella, disse o aventureiro, como se receiasse que ouvissem o que o official dizia, sahiamos.

Sahiram da egreja e andaram pela praça passeiando por muito tempo.

Da conversa resultou que Marco Tulio, era este o nome do supposto D. Diogo de Aragão, ficou sabendo quem era o D. Sebastião com quem se parecia, o que tinha feito, o que lhe tinha acontecido.

No outro dia foi a uma galeria onde havia o retrato de D. Sebastião com os dois amigos Alessandro e Gerolamo e parando deante da tela, perguntou-lhes:

-- Com quem se parece este retrato?

Olharam os dois para a pintura e não responderam. Não conheciam pessoa com quem se parecesse.

-- Olhem bem, recomendou o Marco Tullio. Não lhe adiam parecença com uma pessoa com quem convivem muito?

O Alessandro olhou o retrato, olhou o Marco e disse, fitando-os, alternadamente:

-- Sim... realmente... ha uma certa semelhança entre ti e elle.

-- Ha muita, disse com ar de orgulho o Marco Tullio; nem admira porque somos o mesmo eu e elle.

-- Hein? disse o Gerolamo, que nova historia é essa? e, de caminho para casa d'este, a San-Benedetto. Marco Tullio contou a historia do capitão.

Uma hora depois estava feita a metamorfose, Marco

Tullio, transformara-se, com pasmo de todos os conhecidos a quem se garantia a verdade da noticia,

de D. Diogo de Aragão -- simples disfarce -- em D. Sebastião de Portugal, o rei salvo de Alcacer-Kibir.

Com este nome, começou a nova exploração.

Como era natural, o rei dirigiu-se aos emigrados estrangeiros portuguezes que habitavam Veneza e d'ahi o conhecimento que tiveram do pantomimeiro Antonio de Brito Pimentel e Pantaleão Pessoa, que escreveram para Paris a D. João de Castro e mais tarde fr. Chrysostomo e Nuno da Costa.

A noticia sobresaltou-os, procuraram o rei, viram-n'o, soccorreram-n'o, naturalmente, por descargo de consciencia; mas das entrevistas, habilmente dadas pelo impostor, nenhum pôde fazer qualquer ideia clara, da identidade do sujeito.

Ouasi que o esqueceram.

Dava-se, porém, o caso de que o novo estado de Marco Tullio lhe dava mais dinheiro e os tres amigos, logo que sentiam a bolsa quente, alvorotaram a cidade com esturdias nocturnas, banqueteavam-se á larga com mulheres faceis, provocavam desordens e rixas.

O nome de D. Sebastião, rei de Portugal, em plena vida airada, começou a correr pela cidade, a tornar-se sympatico ao povo, como o de todos os grandes malucos, ricos ou nobres.

D. Inigo de Mendoça, embaixador de Hespanha, homem sollicito em alcançar as boas graças de Filippe II, impressionado com taes factos e desejando prestar serviços ao seu senhor, pôz-se a inquirir de quem fossem o tal rei e soube, pelo duque de Maqueda, governador da Sicilia, que não era mais nem menos de que um tal Marco Tullio Catizoni Calabrez, nascido em Machirano, perto de Taverna, casado com uma mulher, Paula Galhardete, e filho de Hypolito Catizoni e de Petronia Cortez.

O duque soubera que elle escrevera a um homem de Alessina, Raymundo IVJarquetti, uma carta em que se assignava rei de Portugal.

D. Inigo de Mendoça, a despeito da opinião do embaixador hespanhol junto da Santa Sé, o duque de Sessa, e d'outros ministros de Filippe que lhe aconselhavam o não fazer caso do charlatão, pediu á Senhoria de Veneza que procedesse contra elle.

Um dia, em Padua, onde estava. Marco Tullio foi intimado para deixar os estados da Republica no prazo de oito dias.

A sete de novembro D. Inigo de Mendoça sabendo qne o intimado não tinha feito caso da ordem, pediu providencias ao Collegio e o falso rei foi preso.

O embaixador reclamou perante o Conselho dos Dez, que se lhe instaurasse processo, allegando que era preciso aclarar se o homem era ou não o rei.

Se o fosse, el-rei D. Filippe restituir-lhe-hia o seu reino; se não fosse devia ser castigado como impostor, perturbador da ordem.

De volta a Veneza, quando um dia, 24 de Novembro, conversava com o arcebispo de Spalato e um conego de Padua, Barram, os esbirros deram-lhe a ordem de prisão e, com grande surpreza do arcebispo e do conego, levaram-n'o.

Este facto, teve por principal consequencia fazer dar ao homem uma importancia que elle não tinha.

Os portuguezes que quasi o haviam esquecido sentiram nascer dentro de si uma curiosidade nova, um novo interesse.

Preso e interrogado eis o que elle responde no interrogatorio e segundo conta D. João de Castro.

-- Quem sois?

-- O rei de Portugal, D. Sebastião I.

-- Não podeis ser tal rei. Está provado que elle morreu na batalha; viram-n'o morto os portuguezes, reconheceram-lhe o cadaver.

-- Foi um engano; salvei-me com o duque de Aveiro, o conde de Redondo, o conde da Sortelha e D. Christovam de Tavora.

-- Como?

-- Sahimos a cavallo, da batalha, e embarcamos n'um navio da esquadra que, em segredo, nos pôz nas costas do Algarve. Depois, não querendo nenhum de nós apparecer, por certo tempo, puzemo-nos a andar pelo mundo.

N'esse caminhar, entrei em guerras, sobretudo na Persia, contra os turcos, onde recebi muitas feridas.

-- Visitei toda a Europa e grande parte da Asia; fui aos estados do Preste João das Indias.

N'essa occasião resolvi, de vez, deixar o mundo e fazer-me ermita. Escolhi para companheiro um outro das maiores virtudes e assim vivi tempos. Deus, porém, que não queria que assim acabasse os meus dias, revelou-me que viesse tomar conta do meu reino.

Julguei ser victima do demonio; o meu companheiro teve as mesmas vizões e avisos para me mandar correr o meu destino. Percebi que era a voz de Deus e deixei, cheio de pezar, o meu retiro.

Sempre a pé, vim até á Itália, com tenção de ir confessar tudo ao Santo Padre. Na Sicilia, mandei a Portugal, com cartas para diversos fidalgos. Marco Tullio Catizoni, um calabrez.

Resolvi ir a Roma, ter com o Santo Padre; mas, no caminho roubaram-me tudo o que levava, até o fato.

Com mêdo de me apresentar com pobres roupas esmoladas, metti-me pela Itália dentro e peregrinando cheguei a Nossa Senhora do Loreto. d'ali vim a Verona e d'aqui a Veneza.

Todos estes pormenores, tinha o rei já contado aos emigrados portuguezes antes da prizão.

É preciso notar que o homem só falava em italiano, para nilo quebrar uma promessa que fizera de não falar portuguez senão depois de certa época, dizia elle.

O italiano falava-o, perfeitamente.

Por este tempo D. João de Castro, depois de ter enviado para Veneza fr. Estevão de Sampaio, partiu para a Inglaterra e para os Paizes Raixos a procurar o apoio da rainha Maria e dos Estados Geraes, a favor do rei apparecido, o que não alcançou.

Fr. Estevam era muito ligado com a familia Vimioso, cujo chefe fôra feito condestavel de Portugal, por D. Antonio, e lhe fôra amigo leal, até á morte, como vimos.

Este facto explica a sua entrada para o partido do pretendente.

Chegado a Veneza, poz-se em relações com as pessoas que protegiam o prisioneiro.

Mandou-the livros de novelas e livros portuguezes, roupa e dinheiro. Fosse como e por que fosse, d'ahi a pouco, acreditava que o preso era D. Sebastião.

Não se comprehende como tal aconteceu a fr. Estevam, homem intelligente e illustrado, em vista do que se sabia e do que dizia o proprio impostor; mas o odio á Hespanha e sobretudo as affirmações de D. João de Castro, peremptorias e sinceras, arrastavam, convenciam.

Um dos senadores, o unico todavia, Marco Quirini, foi arrastado na crença da realeza do calabrez.

Fr. Estevam tendo debalde tentado conseguir falar ao preso, voltou a Portugal por conselho de Marco Quirini, a procurar todos os signaes que D.

Sebastião tinha no corpo para justificar a sua identidade.

Muitos portuguezes tinham ido a Veneza, com a tenção de vêr o rei e reconhecel-o. Não o conseguiram tambem.

Nos ultimos mezes de 1599 fr. Estevam desembarcava em Lisboa, á procura dos signaes do corpo de D. Sebastião e dirigia-se ao conego Rodrigues da Costa que elle julgava que os poderia obter, por D. Nuno de Mascarenhas, intimo que fôra do rei.

Não os tinha este: mas alcançou-os á força de muito interrogar pessoas velhas e, naturalmente, de muita imaginação, Thomé da Cruz, notario apostolico.

A relação, em extremo curiosa, era esta.

Tem o corpo de El-Rei D. Sebastião dezeseis signaes:

«A mão direita maior do que a esquerda.

O braço direito mais comprido do que o esquerdo.

O corpo, das espaduas á cinta, tão curto, que o seu gibão não pôde servir a outra pessoa, da mesma altura.

Da cintura aos joelhos muito comprido.

A perna direita mais comprida do que a esquerda.

O pé direito maior do que o esquerdo.

Os dedos dos pés quasi eguaes.

No dedo minimo cresce-lhe uma verruga (um callo?) que parece um sexto dedo.

O peito do pé alto e levantado.

Sobre uma espadua um signal do tamanho de um vintem de Portugal, ou de uma moeda de tres francos de França, das pequenas e antigas.

Na espadua direita, na base do pescoço um signal negro como uma moeda pequena.

No rosto e nas mãos manchas (sardas) tão pouco apparentes, que quem o não sabe as não vê.

A metade esquerda do corpo é mais pequena do que a direita, de modo que coxeia sem se perceber. (sic).

Falta-lhe um dente do lado direito no maxillar inferior. Em nota, falava-se de uma marca secreta e varios outros signaes secretos que se dirão quando for preciso.

Tem a mais os dedos das mãos, longos, e assim as unhas. O labio austrico de Carlos V seu avô, e de D. Catharina sua avô. Pés e mãos pequenas e as pernas hirtas. Todos estes signaes são de nascença. Tem ainda o signal da arcabuzada que levou em Alcacer e duas cicatrizes, uma na testa e outra na sobrancelha direita.»

Esta é a nota.

Com ella e com o conego Rodrigues partiu fr. Estevam para Veneza em maio de 1600.

Depois de tentar, debalde, vêr e falar ao prisioneiro, fr. Estevam escreveu aos seus amigos para o virem ajudar. D. João de Castro estava, de volta de Inglaterra, em Paris.

Um pouco em baixo dos fundos, Diogo Manuel Lopes e Miguel do Canto, abonaram-lhe o dinheiro preciso e a 28 de julho eslava em Veneza.

Então começou um verdardeiro trabalho extenuante. Fr. Chrysostomo, fr. Estevam e D. João de Castro, não largaram mais a «Senhoria» de Veneza a pedirem para ver o rei, para confrontar os signaes do corpo, para restabelecer a sua identidade e livral-o do carcere.

Duas vezes fr. Estevam e D. João foram recebidos em audiencia, estando na primeira o proprio Doge.

Como lhe recusassem a terceira, postavam-se nas ruas por onde passavam os membros do tribunal e asarravam-se a elles, a pedir-lhes permissão para visitarem o preso, para se lhe fazer a confrontação com os signaes obtidos, para que lhe fosse feita justiça.

Mas todos os pedidos, todos os esforços, todo o trabalho era em vão.

Então escreviam para toda a parte a todos os amigos, a Diogo Botelho, a Cypriano de Figueiredo, a Miguel do Canto, a pedirem que alcançassem recommendações e que lh'as fossem levar.

A questão tomou, assim, luiia notoriedade europeia.

Por intermedio do padre Joseph Teixeira, amigo do D. Antonio, emigrado que Henrique IV fez seu esmoler, este rei, interessou-se, por Marco Tullio, mais tarde, como veremos.

Diogo Botelho, fidalso, que já conhecemos, amigo de D. Antonio, homem de superiores qualidades, assim como Cypriano de Figueiredo foram attrahidos para trabalhar a favor do falso rei.

Como se vê, moviam-se todas as molas possiveis para comprar a liberdade do calabrez; mas a falta de exito começava a desanimar os mais teimosos.

Foi n'esta occasião, 20 de setembro, que chegaram a Veneza dois portuguezes, Rodrigo Marques e Diogo Manuel Lopes, com cartas de recommendação da Hollanda e de França.

A alta cotação de Diogo Botelho em Londres estava na iminencia de lhe alcançar, por interferencia de amigos, a recommendação de Maria Tudor, quando uma carta inconveniente de D. João de Castro á rainha, fez rir a côrte e a indispoz a ella.

Diogo Botelho não descançou e alcançou outras dos Paizes Baixos do conde de Nassáu e de seu genro D. Manuel, filho de D. Antonio, e resolveu ir leval-as a Veneza e reconhecer o rei.

A doença não lh'o permittiu e encarregou d'isso a Cypriano de Figueiredo, acompanhado por um velho gentilhomem, Manuel Paez, que conhecera muito bem D. Sebastião.

Não puderam estes ir e foi então designado Sebastião Figueira, emigrado tambem, que servira na India e estivera na batalha da Africa, onde fôra ferido e feito prisioneiro e que era -- para o caso muito conveniente -- dos que não acreditava que o rei tivesse morrido.

Sebastião Figueira chegou a Veneza a 3 de novembro. Foi recebido pelo Doge, a quem entregou as duas primeiras cartas, em audiencia de collegio, e pelo conselho dos Pregadi, que evocou a si a causa e a discutiu amplamente, por dias.

O ataque fazia-se em toda a linha.

Mas se os portuguezes trabalhavam com animo D. Francisco de Vera e Aragon embaixador hespanhol, que succedera ao Mendoça, não lhes ficava atraz.

O rei Filippe pedia-lhe que exigisse da Senhoria o castigo do impostor; que este fosse mandado para as galeras do Genova, como Nuno da Costa um dos auctores de toda a intriga.

O tribnal dos Pregadi dividia-se.

Uns queriam qne se devia considerar como um doido e deixal-o em paz na cadeia.

Outros, que se devia reconhecer quem fosse, precisamente; se fosse o rei libertal-o e protegel-o, se fosse um impostor, punil-o.

Outros, emfim, eram de parecer que se lhe abrissem as portas do carcere, pura e simplesmente.

O embaixador falando com o Doge pedia-lhe que qualquer das resoluções fosse adoptada.

O Doge respondeu-lhe:

-- A opinião geral do collegio é de que o homem não tem todo o juizo. O que é extraordinario é a leviandade com que todos acreditaram que esse maniaco fosse o rei de Portugal.

-- Leviandade...

-- Decerto. Um homem que não sabe uma palavra de portuguez, que não tem nem o accento, nem a pronunciação d'essa lingua, como póde imaginar-se portuguez?

-- Mas fala, na perfeição, o italiano, respondeu o embaixador.

Despedindo-se certificava ao Doge, que os passos que dava eram de sua resolução e alvedrio, por que D.Filippe não ligava importancia a taes ninharias.

O Doge, despedia-o, sorrindo-se.

Estavam as cousas n'este pé, quando chega a Veneza, D. Christovam, filho 2.° de D. Antonio que já conhecemos, acompanhado por Pantaleão Pessoa de Neiva, Manuel Brito d Almeida, e um seu creado Francisco Antonio.

Os portuguezes agarraram-se a elle.

O principe tinha, já, um anno antes, passado por Veneza, mas não quizera metter-se no negocio.

Fôra a Roma por intermedio do papa, negociar a alliança d'elle, do irmão e de outros portuguezes com a Hespanha, mediante certas condições que lhes fossem favoraveis.

Nada alcançou e era pois a segunda viagem que fazia.

Agora, resolveu-se por pedidos, talvez por dinheiro, porque a comitiva chegou a Veneza «muito pobre e em lastimavel estado» segundo escrevia o embaixador hespanhol, a interessar-se pelo calabrez.

Pediu uma audiencia ao Doge.

Foi lhe concedida a 11 de dezembro. Á porta da ante-camara um secretario o recebeu e o levou a uma sala de espera onde ficou só.

D'ahi a pouco foi introduzido na sala do conselho. O Doge tratou-o como filho de rei. Mandou-o sentar á sua direita e felicitou-o pela sua visita.

O principe respondeu com palavras eguahnente amaveis e gratas e pediu licença para lhe apresentar a memoria que trazia escripta.

Esta era a repetição de outras que tinham sido entregues á Senhoria, aludindo ás cartas de recommendação ultimamente recebidas.

Um secretario leu-a, em voz alta, á assembleia.

Lida, o Doge despediu com as melhores palavras o principe, garantindo-lhe que o tribunal se ia occupar, com o maior empenho, da sua pretenção.

A 15 de dezembro o prisioneiro foi chamado, pelas 10 horas da manhã, perante o Senado e foi-lhe lida a sentença.

Era mandado abandonar Veneza em 24 horas, e os estados da Senhoria no prazo de tres dias.

O não cumprimento da ordem tinha por castigo, as galeras.

O impostor, rejubilando com a sentença, agradeceu ao tribunal a sua alta justiça, exclamando:

«Affirmo-vos que sou tão verdadeiramente D. Sebastião, como é certo que Deus está no ceu».

Ninguem sabia que a sentença era dada n'esse dia.

Nenhum portuguez estava no tribunal quando foi lida e, assim, o calabrez logo que se viu solto, metteu-se pela multidão que enchia o pateo do palacio ducal e internou-se pela cidade, direito a casa de mestre Francesco.

Ao apparecer, mestre Francesco correu a elle, de braços abertos:

-- Bom Deus, Santa Virgem, o Rei!

-- O rei! exclamaram dois portuguezes que alli estavam, Sebastião Figueira e Rodrigues Marques.

Mas Sebastião Figueira que falara, muitas vezes, com D. Sebastião ficou-se a olhal-o pasmado.

O Rei? D. Sebastião? Dizia para si: mas não ha a menor semelhança entre este e o outro! O Rei?

Mas se o era... emfim... lá lhe pareceu encontrar uma ou outra parecença... Resolveu-se a dizer a Rodrigues Marques:

-- Vai prevenir os nossos.

Este sahiu, de corrida, dando a boa nova e d'ahi a pouco entrava com Pantaleão Pessoa.

Os tres assentaram que o rei não estava em casa apropriada e resolveram leval-o para a de Diogo Manuel e D. João de Castro.

Estes, quando o viram entrar e attentaram no rei, ficaram pasmados, a principio; depois considerando que a primeira condição de um vassalo é ser delicado, seja para que rei fôr, desfizeram-se em actos de respeito e consideração.

D'ahi a pouco entrava D. Christovam e D. Manuel de Brito d'Almeida.

D. Christovam mandou, antes de entrar na sala aonde estava o rei, chamar D. João de Castro.

-- Diga-me, D. João, qual é a sua opinião?

-- Sobre quê, alteza?

-- Sobre o rei que ahi está.

-- Que quereis saber?

-- Se elle é realmente o rei D. Sebastião.

-- Sem a menor duvida, replicou o Castro, sem nenhuma duvida.

D. Chrystovam entrou e cumprimentou o calabrez.

Estavam, pois, reunidos em casa de D. João os mais importantes vultos da emigração portugueza da cidade, os mais incansaveis trabalhadores pela liberdade do homem que julgavam ser o seu rei.

Generalisou-se a conversa. O monarcha falando sempre em italiano, por causa da tal promessa, os portuguezes, D. João de Castro á frente, ouvindo respeitosos uns, outros desconfiados.

-- Sei, dizia o calabrez que fr. Estevam trouxe de Portugal a lista dos signaes do meu corpo.

Nenhum melhor meio ha de verificar se eu sou ou não D. Sebastião, visto que seria impossivel que um homem reunisse, por casualidade, tantos signaes eguaes e nos mesmos sitios. Não é verdade?

-- Decerto, disseram alguns.

-- Por isso, permiti-me que, se tendes ahi a lista, se a não tendes tenho-a eu e levava a mão ao bolso, eu vos mostre como os signaes indicados condizem com a verdade.

O rei fez menção de despir o gibão.

Então D. João de Castro adeantou-se para elle dizendo:

-- Não o consentiremos, Senhor. Reconheci-vos immediatamente pela voz e alguem mais... talvez...

-- Eu tambem, disse Francisco Antonio, creado de D. Chrystovam.

Então todos protestaram, gentilmente, contra a intenção do rei, não permittindo que se despisse.

D. Sebastião, n'este momento, agradecendo com um sorriso a prova de confiança, disse:

-- Como não permittis, ou exigis, que vos mostre o meu corpo, vêde: fez ver que a mão direita ora mais comprida do que a esquerda, assim como o braço, a coxa, a perna e o pé do mesmo lado.

Para mostrar que a metade esquerda do corpo era mais curta do que a direita, ajoelhou-se e pediu a Diogo Manuel que lhe desse um livro ou um chinelo. Como estava um, perto, metteu-o debaixo do joelho esquerdo e viu-se o corpo perfeitamente direito. A prova era real!

Fez vêr palpar a marca da ferida da cabeça e da sobrancelha e a falta do dente da maxila inferior.

Perguntou por Sebastião Netto, seu barbeiro, que lh'o arrancara.

Pediram-lhe que repousasse e não quiz obedecer. O mais que Pantaleão Pessoa, que é quem conta a scena, conseguiu foi que elle lhe deixasse tirar sapato do pó direito.

Isto foi muito útil porque o Pantaleão, passando-lhe, disfarçadamente, a mão pelos dedos do pé, percebeu, perfeitamente, a tal verruga ou callo, que sobre o dedo minimo semelhava um outro dedo.

O leitor está em dizer que esta companhia de emigrados ou era de mistificadores ou de parvos.

A segunda hypothese não me parece aceitavel; e resta, naturalmente, a primeira.

Um tal exame de comprimentos por cima do fato, mettendo cousas por debaixo dos joelhos para provar a desegualdade da metade do corpo; o ser preciso palpar a cicatriz de um estilhaço de ferro de uma arcabuzada em plena testa... o tal setimo dedo... francamente seriam prova d'uma estupidez geral, se fosse estupidez.

Não acredito n'ella, nem ninguem de boa fé o poderá acreditar.

Um ou outro enlouquecido como D. João de Castro, ou ingenuo como Francisco Antonio, poderia tomar a serio este homem.

O resto da companhia estava a disfructal-o, deixando-se passar como convicto; o mesmo fazia o calabrez que não poderia crer que o acreditassem

D. Sebastião, pessoas que tinham visto e convivido com o verdadeiro.

Era uma comedia bem desempenhada; uma farça de enganos que não devia deixar de ter uma graça infinita para um espectador indifferente, como tem para nós que a estamos a vêr, com toda a serenidade, a seculos de distancia.

Como se tivesse sahido, admiravehnente, da prova dos tamanhos relativos das partes do seu regio corpo, o rei, diz o mesmo Pantaleão, que começou a conversa, a perguntar por muitas pessoas da côrte e por coisas de Portugal.

Sempre em italiano, está claro. De portuguez, nem palavra.

Dirigiu-se a D. Christovam a perguntar-lhe pelo irmão e informado de que estava casado e de que passava bem (muito obrigado) exhortou-o a que fosse egual em virtudes ao avô D. Luiz, duque de Beja.

Já lhe não bastavam as virtudes do pae; pelo que se vê era exigente, em virtudes, o destemido farçola.

Aqui, porém, foi caso, na conversa.

O calabrez não dizia Beja, mas Béga, á hespanhola; isto é, dando o som gutural ao j.

Observaram-lh'o: não o sabia. Em vez de França, dizia Franca: e, como lhe fizessem notar o erro, respondeu, todo senhor de si: ora essa? então nós não dizemos Villa Franca, Salamanca?

Este cavalheiro tinha sahido aos vinte e quatro annos de Portugal!

Os livros e as lições de fr. Estevam e de fr. Chrisostomo tinham dado este portuguez «misturado com palavras estrangeiras» como o classificava o Pêssoa.

Desejosos de lhe ouvirem a historia da vida, desde que sahira da batalha, os portuguezes pediram-lhe que contasse alguma aventura que lhe tivesse acontecido.

Então, o rei, nobremente, disse:

-- Deixemos isso para outra ocasião; dêem-me antes noticias dos amigos e de cousas que mais me interessem.

-- Perguntaram-lhe pelo duque de Aveiro, pelo conde de Redondo e de Sortelha, por D. Fernando de Menezes.

-- Que sabia aonde estavam e que os mandaria chamar quando fosse occasião.

Disse que Christovam de Tavora (que morrera na batalha) o tinham morto, á sua vista, os ladrões.

Tanta falsidade, tanta cousa imaginaria, inverosimil, fazia dizer ao embaixador hespanhol, para o seu paiz:

-- «Nunca vi impostura mais destituida de fundamento, tão facilmente acreditada».

Nem elle, nem ninguem.

De repente, o rei, ao vêr os diversos fatos dos que o cercavam, poz-se a olha-los.

Uns vestiam á franceza, outros á holandeza, outros á italiana e Francisco Antonio, em peregrino, de habito e bordão na mão.

-- Que diversidade de costumes! exclamou com tanta graça, diz o Pantaleão, que nisto os consolou a todos e lhe fez vêr que elle era realmente o rei»! Não havia duvida.

Chega o fato novo que lhe tinham mandado buscar e ao despir o velho, o rei tirou das algibeiras muitos objectos, sobretudo cruzes e reliquias; cartas que lhe tinham mandado, rascunhos das que escrevera e um tinteiro, que tudo deu a D. João de Castro.

Quando se pretendia que elle passasse para um quarto contíguo, afim de repousar umas horas, aparecem fr. Estevam e fr. Chrisostomo, vindos do convento, prevenidos da liberdade do rei.

Fr. Chrisostomo, que nunca vira D. Sebastião, cumprimentou, respeitosamente.

Fr. Estevam, que conhecera o rei, olhou para o homem e não lhe achando semelhança alguma, exclamou, em latim: -- «Vimo-lo e não é o mesmo.»

Todavia, ajoelhou-se e reconheceu-o como seu rei.

-- Vai sua magestade ficar, aqui? perguntou fr. Estevão para D. João de Castro.

-- Ha alguma inconveniencia?

-- Não o julgo bastante seguro, afirmou o frade.

-- Não me parece, objectou D. João, que alguem ouse, aqui, tentar contra a vida ou a liberdade de el-rei.

-- Não sei. O embaixador hespanhol tem força e dinheiro.

-- Mais seguro estará no convento, objectou fr. Christovam; parece-me melhor que vá comnosco, para lá.

-- É melhor, concordaram todos.

Fr. Chrisostomo lançou-lhe aos hombros uma capa e os tres foram para o convento.

Eram quatro horas da manhã.

Logo de manhã os portuguezes reunidos em casa de D. Christovam resolveram o caminho que o rei teria a seguir, para o livrar dos espiões do embaixador hespanhol e de qualquer tentativa.

Devia ir direito a Florença, d'ali a Livorno, e ahi embarcar para França.

Na noite de 16 de dezembro de 1600, o rei, disfarçado n'um habito de frade, acompanhado por fr. Chrisostomo, sahiu de Veneza.

No dia seguinte escreveu fr. Chrisostomo, dizendo que tinham chegado a Padua.

Despacharam-lhe Pantaleão Pessoa que os não encontrou já em Padua e soube que tinham partido a caminho de Ferrara.

Voltou a Veneza e participou o caso, que encheu de inquietação os vassalos.

Não era aquelle o caminho que deviam seguir, o que Pantaleão levava para indicar. O mal estava feito; era ter esperança no bom exito da viagem.

O que havia a fazer, agora? O que era melhor fazer?

Irem encontrar o rei em Florença; acompanhal-o na viagem.

Não havia dinheiro. No fim de quinze dias, D. Christovam pôde arranjar cem escudos. Partiram.

Em Florença

O rei logo que desembarcou em Chioggia, despiu o habito de franciscano que levava vestido, por cima do outro e poz-se de capa e espada.

Assim chegaram a Pádua. D'aH partiram para Ferrara e de Ferrara para Florença, onde chegaram a 20.

Como chegassem ao entardecer procuraram hospitalidade na primeira hospedaria que encontraram.

A casa não era conveniente.

Fr. Chrisostomo foi a um convento de Bernardos, da sua ordem, contou a aventura e solicitou entrada para os dois.

Foi-lhe concedida. Entraram.

Instalados, esperavam a chegada dos portuguezes, que não tardariam.

N'um dia proximo, o sexto da chegada, á noite, bateu á porta do convento um homem pedindo para falar ao geral. Na sombra da portaria, ocultavam-se quatro soldados.

Veiu o geral, a quem o homem entregou um papel.

Era uma ordem de prisão. O portador era Asdrubal de Monteagudo, que em Florença representava o granduque Francisco de Toscana. A ordem viera do granduque e mandava que fossem presos os viajantes acoitados no convento.

A policia do embaixador hespanhol não descançara.

Leu o geral a ordem e observou:

-- É uma ordem de prisão contra um padre e n'um convento; não me parece que Roma possa vel-a realisar, sem protesto.

-- Ha um secular, replicou o representante do Medicis.

-- Mas está sob a protecção do mesmo convento, desde que ahi foi recebido.

As auctoridades não teem poder para tanto, contra as nossas regalias.

-- Faça como entender Vossa Paternidade; mas a ordem de sua excelencia o gran-duque é positiva e de sua absoluta responsabilidade.

-- N'elle a declino, absolutamente, tornou o prior; e não faltarei com o meu protesto, junto do núncio de Sua Santidade.

-- Vossa Paternidade fará como entender, volveu o Monteagudo, eu é que não posso deixar de cumprir a ordem de meu amo.

Foi-se o padre para dentro do convento e pouco depois voltava acompanhado pelo rei e por fr. Chrisostomo.

Monteagudo dirigiu-se aos dois, dizendo:

-- Por ordem de sua ex.ª o grã-duque da Toscana, em cujos estados vos achaes, estaes presos.

-- Porquê? interrogou fr. Chrisostomo, com voz colerica.

-- Nada tenho a explicar-vos. Acompanhae-me.

Seguiram os dois com o enviado, seguidos por sua vez pelos soldados até á prisão de Borgello, onde foram internados.

Isto passava-se a 27 de dezembro de 1600. A 4 de janeiro chegavam os primeiros amigos, Pessoa e D. Christovam.

Cahiram do céu quando souberam da prisão.

Era, realmente, para estranhar atentas as recomendações de França, do Henrique IV, o de varios principes.

Henrique IV acabava de casar, havia um anno, com Maria de Medicis e esta aliança com a casa ducal, fazia prever que as recomendações de Henrique IV fossem do maior valor para o gran-duque.

No entanto soltavam fr. Christovam, que veiu contar os principios da viagem e da prisão.

-- O que ha a fazer? perguntava Pantaleão. É preciso proceder e depressa. Vê-se que o rei tem um inimigo terrivel no rei de Hespanha. É preciso soltal-o, fugir com elle.

O gran-duque trahiu a nossa confiança, é contra nós.

-- Como poderemos captal-o?

-- Só falando-lhe, observou fr. Chrisostomo. É preciso que um de nós lhe fale.

-- Como?

Pensaram e resolveram que um d'elles se diria um gentilhomem francez, que de passagem em Florença desejava apresentar-lhe as suas homenagens.

Chegaram os restantes emigrados. Foi escolhido, por recusa de D. Christovam, que dizia não ser capaz de tal artificio, Diogo Manuel Lopes.

Escreveu-se uma memoria para ser entregue se o duque não estivesse para palestrar e o Lopes apresentou-se a requerer audiencia e foi recebido.

Mas, assim que percebeu o fim da visita, Francisco de Medecis disse para o supposto gentilhomem francez:

-- N'isso não conversemos. Peço-lhe, se tem interesse pelo prisioneiro, que se dirija ao arcebispo de Piza. Elle o attenderá; e despediu o.

O arcebispo fez peor do que o duque.

-- Ouvida a memoria, friamente, a seguir á recepção, não menos fria, disse para Manuel Lopes, que lhe perguntava o que o aconselhava a fazer:

-- Aconselho-o a que se vá embora.

-- Sem resposta do senhor Duque?

-- O sr. Duque fará o que fôr de justiça.

Este cheque, dado pelo arcebispo, conselheiro do Medicis, não desanimou ainda os portuguezes.

Eram de boa tempera. Resolveram D. João de Castro e Manuel de Brito falar ao arcebispo.

Foi trabalho perdido. Recebeu-os com máu modo e aconselhou-os, tambem, a que se fossem embora, porque o sr. Duque, não podia tratar, agora, d'esse negocio.

-- Diga-me v. ex.ª perguntou D. João de Castro com uma altivez fria, o que havemos de responder aos principes que se tem interessado por el-rei D. Sebastião?

-- O que quizerem, respondeu o arcebispo.

-- O sr. Duque da Toscana...

-- Ao senhor duque, concluiu o rude prelado, ser-lhe-ha completamente indifferente o que disserem.

Terminou por lhes garantir que não obteriam solução agradavel, por mais que se demorassem e importunassem o duque.

Em taes condições resolveram separar-se. Pantaleão Pessoa já o tinha feito- Fr. Christovam ficou, até que pouco tempo depois o intimaram para sahir.

D. João de Castro veiu para Paris e começou a sua obra, estranha, louca, em que D. Sebastião é o heroe: Discurso do sempre bem vindo e aparecido D.

Sebastião, nosso senhor, O Encoberto, desde o seu nascimento até ao presente, feito e dirigido por D. João de Castro aos tres Estados do Reino de Portugal; convém a saber ao da Nobreza, ao da Clerezia e ao do Povo.

Não deixa nunca de trabalhar pelo rei, nos escriptos, nas prédicas, nos pedidos.

Ali, junta-se com o padre Teixeira, o esmoler de Henrique IV, historiador por seu turno «Da mais celebre aventura dos seculos passado e presente» -- e dá largas ao seu genio de conspirador.

A decepção de Florença, teve um grande effeito no espirito de alguns emigrados.

Fr. Chrisostomo ou desilludido do calabrez, na viagem que com elle fizera de Veneza a Florença, ou cançado de trabalhar por uma cousa que via perdida e que já o levara ao cárcere, metteu-se n'um convento de Parma.

Pantaleão Pessoa, que como vimos fôra o primeiro a separar-se do grupo, dirigiu-se á Allemanha, passando outra vez por Veneza.

O embaixador de Hespanha escrevia que: elle affirmava que, em breve, D. Christovam e D. Manuel seu irmão, iriam submetter-se a D. Filippe, com os outros portuguezes.

Nuno da Costa, esse declarou, claramente, que o calabrez tinha uma vaga semelhança com D. Sebastião; mas que elle o examinara attentamente e que concluirá sêr um impostor completo.

Fizera-o logo á chegada de D. Christovam e de outros portuguezes na vinda de França.

Até 23 de abril de 1601 o rei esteve preso em Florença. N'este dia metteram-no n'um carro, escoltado; levaram-no a Orbiello, cidade do rei de Hespanha, e entregaram-no ao governador.

Este mandou-o para Ponte-Escola, de lá n'uma galera para Napoles, onde foi mettido na fortaleza de Castel del Novo.

Este procedimento do gran-duque revoltou os emigrados e os proprios venezianos.

A entrega do preso ao rei de Hespanha era uma sabujice do duque.

Henrique IV, o leal espirito, exclamou quando soube da entrega:

-- «Em Florença negoceia-se com toda a especie de mercadorias.»

Em Napoles

O vice-rei, conde de Lemos, recebeu ordem, logo que em Madrid se soube da chegada do preso a Napoles, para constatar a identidade do rei.

No dia primeiro de maio (1601) o conde entrava na prisão de Marco Tullio resolvido a interrogal-o, a saber a verdade, núa e crua, fosse por que meio fosse.

Começou por repontar com a figura do homem.

O conde de Lemos estivera, em Lisboa, n'uma commissão qualquer de Filippe II.

Vira D. Sebastião, falara-lhe varias vezes.

Aquelle homem não tinha a menor semelhança com o rei.

-- «Fiquei espantado, escreve elle a Filippe III, de que algum homem de vulgar entendimento pudesse acreditar que este pudesse ser D. Sebastião: porque, mais differente homem, em rosto, em corpo, em barba e cabello de D. Sebastião, nunca vi na minha vida. Mandei-lhe tirar o retrato que envio a V. M. pelo qual verá a differença entre um e outro».

Só os portuguezes se illudiam!

O conde bastou-lhe ver o impostor para ficar convencido de que não era o rei.

Não precisava de mais.

No entanto, fez-lhe algumas perguntas:

-- Quem era o embaixador hespanhol junto de V. M. no tempo em que se fez a expedição da Africa?

Era D. Juan da Silva que ficou prisioneiro no campo.

O calabrez a quem nunca tinham dito quem era, respondeu:

-- Não me lembra... mas lembra-me que Francisco de Aldana, o duque de Medina Coeli e Christovam de Moura foram embaixadores em Portugal.

O conde poz-se a rir. O homem mettia o capitão Aldana, que vimos que commandava tropas hespanholas em Alcacer-Kibir, como embaixador.

Mais duas perguntas a que o falso rei respondeu com tolices e o conde disse-lhe, sahindo:

-- Até breve, amigo. Nem o tractava como rei.

-- «O homem, escrevia elle para Filippe III sabe umas cousas geraes de Portugal que lhe ensinaram; mas sabe-as ao acaso, falla mal, estropiando a lín- gua e quando se descuida mette palavras calabrezas. Parece-me um insensato, sem juizo nenhum, a quem metteram na cabeça que era rei de Portugal.»

O processo começou.

O interrogatorio primeiro que se fez deante de juizes e escrivães foi interessantissimo.

É preciso dizer que o conde de Lemos a despeito da sua convicção sobre a falsidade do preso, o tractava bem e lhe deixava, até, certa liberdade,

talvez julgando aproveital-a.

Um dia em que o conde tinha um certo numero de elementos para confundir o charlatão -- vamos vêr quaes fossem-- foi este chamado a declarações.

Entrou com grande ar, na sala. Mandaram-no sentar.

Então o conde de Lemos, a postos os escrivães, começou o interrogatorio, exigindo o juramento da verdade, sobre um crucifixo.

-- Diga, de uma vez para sempre, com a verdade, quem é?

-- D. Sebastião, rei de Portugal, respondeu o calabrez.

-- A principio, em Veneza, assignava-se D. Diogo de Aragão.

-- Era um disfarce.

-- Depois dizia-se o «Cavalleiro da Cruz».

-- Era ainda um disfarce, menos falso, porque assim me intitulei eu proprio, n'outros tempos.

-- Teima então em se dizer o rei de Portugal, não tendo com elle semelhança alguma, ignorando completamente a lingua que falou 24 annos, não tendo, emfim, cousa com que se possa provar a sua identidade?

-- Todos me teem reconhecido.

-- Todos, quem?

-- Os meus partidarios, os meus amigos.

-- Vejamos se estes o conhecem. Dizendo, o conde fez signal a um official, que introduziu dois homens.

Eram dois negociantes portuguezes que tinham convivido com D. Sebastião, quando do arranjo e vestimenta de tropas, e que muito bem o conheciam.

-- Conhece estes homens? perguntou o conde ao calabrez.

-- Não conheço.

-- Este homem é D. Sebastião? O vosso morto rei? perguntou aos portuguezes. Reconhecem-no?

-- Nunca foi o rei, disse o primeiro.

O segundo ria-se, com a maior semcerimonia, tal o effeito que lhe produzia a figura do pretenso monarcha.

-- É curioso, disse o conde, ninguem o reconhece a não serem os taes seus amigos. Muito mudado está.

-- Naturalmente, observou com a maior fleugma o impostor.

-- Deve estar, deve; mas parece-me que encontrei quem o conheça bem.

A um novo signal do conde o official introduziu um homem, alto, de barba e olhos negros, de ar resoluto.

Á vista d'este homem, o falso rei empalideceu, de subito; mas, com esforço, dominou-se.

-- Conhece este homem? perguntou o conde.

O intruzo não o deixou responder, adeantando-se:

-- Conhece... tão bem como eu o conheço a elle. Não é verdade?

Somos patricios. Eu chamo-me José Branco e elle chama-se Marco Tullio Catizoni, de Machirano, a nossa terra, perto de Taverna, filho de Hipolito Catizoni e de Petronia Cortez. Casou em Nessina com uma rapariga chamada Paula Galhardeta. Ha muito que desappareceu... Se nos conhecemos!

O calabrez, palido, mudo, olhava o depoente.

O conde aproveitou o momento de abatimento e disse-lhe:

-- Vamos Marco Tullio, confesse tudo, diga a verdade, salvar-lhe-hei a vida.

Marco Tullio não pôde mais, levantou-se, correu direito é cadeira do conde, deitou-se-lhe aos pés, exclamando:

-- Tenha compaixão de mim, senhor conde, tenha piedade de mim.

-- Bem, bem; levante-se, disse o conde amavelmente. É isso... confesse... vamos diga:

-- É el-rei D. Sebastião de Portugal?

-- Não sou, não sou.

-- Diga quem é.

O calabrez repetiu e que dissera o Branco, até ao casamento.

-- Porque deixou Messina?

-- Para correr aventuras; viajar era o meu fraco.

-- Assim veiu ter a Veneza?

-- É verdade.

-- Com o nome de D. Diogo de Aragão?

-- É isso mesmo.

-- Como lhe veio á ideia dizer-se D. Sebastião?

-- Começaram a dizer-me que me parecia com elle. Um... muitos. Eu quiz dissuadil-os...

-- Teimaram? resolveram-no?

-- Assim foi. Obrigavam-me, beijavam-mo as mãos... concordei.

-- Quem foram esses? os nomes?

O Marco Tullio disse o nome de todos os que o tinham cercado, até então.

-- Nunca esteve em Portugal, ao menos?

-- Nunca!

-- Bem se via, disse o conde. Como sabe, então varias coisas d'esse paiz?

-- Ensinaram-m'as em cartas e em livros que me deram.

-- Quem?

-- Fr. Chrisostomo e fr. Christovam.

-- Bem, disse o conde. Fez bem em confessar tudo. Essa é a verdade. Tinha ainda outro argumento para o convencer; mas não é preciso. Todavia quero ser-lhe agradavel -- e sorria ironicamente -- apresentando-lhe alguem que de certo desejará vêr e que por sua causa foi mandada vir aqui.

O conde fez de novo um signal ao official, que abriu o reposteiro e disse: entrem.

Entraram duas mulheres e um homem.

Eram a sogra, a mulher e um cunhado de Marco Tullio.

-- Conhece-os? perguntou o conde.

O calabrez não respondeu.

-- Conhece, conhece, interrompeu a sogra, no seu sempre conciliador papel. Adeus, Marco. Então é pelas tuas poucas vergonhas que somos incomodadas? Ora, louvado seja Deus!

Voltando-se para o conde:

-- Aquillo, um rei? Só se fôr o rei dos tratantes. Casou com a minha filha, porque nos enganou.

Convenceu-nos de que tinha quinhentos ducados de renda, o maráu.

Quinhentos ducados! Quinhentos diabos que o levassem! Mas labia... isso é um artista. Veja v. ex.ª... a fazer de rei e a acreditarem-no! Cousas que a gente vê, na vida.

Todos sorriam, até o conde, da atrapalhação do impostor.

O pobre diabo, calado, olhava a sogra, a mulher o cunhado, o conde, com ar de pavor. As surprezas tinham-no morto.

-- Vejamos, disse o conde, interrompendo a verbosidade da dama: conhece estas mulheres e este homem?

-- Sim, senhor conde.

-- Quem são? diga.

-- É minha mulher, meu cunhado Paulo e minha sogra.

-- Levem-no, disse o conde aos guardas.

Marco Tullio voltou para o carcere.

Um artificio habil fôra empregado por Marco Tullio, naturalmente aconselhado por fr. Chrisostomo, ou qualquer outro, em 1589.

Escreveu elle duas cartas, assignando-se rei D. Sebastião, uma a um gentilhomen de Messina Raymondo Marquetti e outra a sua mulher.

A Marquetti pedia noticias de um tal Marco Tullio Cartizoni a quem entregara cartas do papa, que o protegia, para o rei de Hespanha.

Na carta ia inclusa a outra, que elle pedia o favor de entregar a Paula Galhardeta, mulher de Marco Tullio, para quem pedia proteção.

N'esta, dizia a Paula que, tendo encontrado o marido em Roma, onde era muito estimado na côrte papal, o encarregara de uma missão para o rei de Hespanha.

Que, na hipothese de elle ter voltado, lhe diga que o vá procurar a Veneza a casa de Francesco Maglioni -- o tal cosinheiro -- em San Benedetto.

Estas duas cartas foram o cavallo de batalha de muitos que se persuadiram que realmente o rei fôra o primeiro apparocido; que fôra morto pelos hespanhoes e que este Marco Tullio, seu mensageiro foi dado como rei e condemnado, para encobrir o desaparecimento do rei verdadeiro.

Estas cartas tinham por fim fazer de um só individuo duas personalidades.

Vê-se bem a vantagem que de futuro tal confusão podia ter, D. João de Castro que escreveu a Biblia do Sebastianismo, inventou para confirmar a verdade das duas personagens, deturpa frases interpreta a seu modo os acontecimentos, mente, até.

Assim as testemunhas são compradas; a mulher não reconhece o marido; o rei confessou o que confessou, por altivez, ao vêr que o não consideram e o não interrogam de boa fé!

O estilo das cartas, nega, absolutamente, o poderem ser de D. Sebastião.

As afirmações de testemunhos falsos contradizem-nas os despachos officiaes do vice-rei de Napoles

D. João, inventa até, um portuguez que vem renegar o seu rei, e que o insulta por palavras; mas, generosamonte, não diz quem é.

Não é o mesmo homem, sustenta tambem o padre Joseph Teixeira, o esmoler de Henrique IV.

Afirma que Marco Tullio morreu em Portugal, e fala n'uma carta que um tal Marquetti escreveu para Marco Tullio, para Veneza em 1589.

Ainda que fosse verdadeira esta carta, nada provaria. Era a resposta do Marquetti a um homem que se dizia D. Sebastião, que não conhecia, nem elle

rei o conhecia a elle, como se vê de uma outra carta que o duque de Maqueda interceptou.

É natural que fosse feita pelo proprio Marco Tullio, na occasião em que soube que o governo hespanhol podia affirmar á Senhoria de Veneza que elle era um calabrez. A intenção enganosa das primeiras cartas, destroe a seriedade de todas as outras. Vê-se a continuação de um plano.

O processo, porém, continuava; mas com muita lentidão, talvez porque outros negocios mais graves tirassem o tempo ao vice rei de Napoles.

Como escrevesse a Filippe III sobre a vantagem de ser mostrado o prisioneiro, para que não houvesse duvidas de que não era o rei, Filippe III

achou boa a ideia, e logo recomendou que o não matassem, que fosse condemnado ás galeras, onde podia bem ser visto, em Portugal, em Lisboa, onde fosse mandado, de proposito.

Por desejo do rei e opinião do conde de Lemos, o prisioneiro gosava de uma certa liberdade.

Podia se ir vel-o, visital-o, falar-lhe.

Muitos curiosos se aproveitavam da concessão para conhecerem o rei, e não havia portuguez que passasse em Napoles que não fosse vêr o seu principe Desejado e convencer-se de que era ou não era.

A despeito de ter deixado de ser rei para o conde de Lemos, para o povo continuava a dar-se ares de o ser. Custava-lhe a deixar o logar, tanto mais que a elle devia, ainda, a vida boa que levava.

Tinha um quarto confortável e um creado fazia lhe a comida no mesmo quarto, onde, diz o seu chronista D. João de Castro, tinha -- um barril de vinho, além de varias eguarias e outras bebidas.

Como era facil falar-lhe, o que aconteceu?

Muitos dos seus partidários se puzeram em relações com elle e pensaram, o que era natural, em libertal-o.

O processo corria morosamente e dava tempo para se poder trabalhar.

Fr. Estevam, D. João de Castro, um tal Soeiro e esse terrivel conspirador fr. Boaventura, vinham a Portugal, influiam os velhos adeptos, creavam outros, juntavam dinheiro para protegerem a fuga do prisioneiro.

Fr. Estevam, com bom pecúlio, foi por Marselha e ahi contratou com um francez, um navio, que devia achar-se no momento combinado, em Napoles, e a bordo do qual embarcaria o proscripto.

Já se vê que os partidarios não eram pouco generosos porque o dinheiro não faltava para grandes despezas.

Como havia facilidade de comunicações com o preso vê-se que o plano não seria difficil de executar.

Muitos portuguezes iam visitar o calabrez; conversavam com elle, dirigiam-lhe perguntas, uma ou muitas vezes, pelo tempo que queriam.

Isto servia ao heroe para ouvir e falar portuguez, e saber de uns as coisas com que respondia ás perguntas dos outros.

Um dia chegou a Napoles um peregrino. Sacco ao pescoço, chapeirão com conchas e páu nodoso, e foi á prisão.

Falou com o Marco Tullio, tratou-o como rei, deu-lhe esperança de melhores dias, entregou-lhe uma bolsa com dinheiro, disse chamar-se Francisco Soares e que estava ás ordens de el-rei para tudo.

O intrujão não perdeu tempo, e d'ahi a dias mandava-lhe pedir dinheiro e cartas para pessoas nobres de Portugal.

Era assim que o falso rei vivia.

Um dia, porém, a auctoridade hespanhola, por boatos mais ou menos vagos que corriam, talvez prevenida, percebeu que não era vantajosa a maneira de viver do preso, e que era prudente acabar com o processo.

Tinha morrido o conde de Lemos, uma das razões da demora no julgamento, naturalmente, e fôra D. Francisco de Castro, o filho, quem avocara o processo.

Deu a sentença.

O calabrez foi condemnado ás galeras, por toda a vida.

Immediatamente, foi conduzido a bordo de uma das que estavam no porto de Napoles.

Estas galeras iam partir, em breve, para Hespanha.

Pensava D. Francisco que era de toda a vantagem que não se recusasse, antes se facilitasse, a toda a gente que quizesse vêr o condemnado, o poder fazêl-o.

Assim todos poderiam certificar-se de que o homem não era o D. Sebastião, tanto em Hespanha, como em Portugal.

As galeras vinham para Lisboa.

A D. Pedro de Toledo, o general das galeras, recomendou-se que poupasse o cavalheiro nos trabalhos e o alimentasse bem.

Comprehende-se a intenção: era de que não fosse o homem morrer antes de bem visto. Inventar-se-hiam, logo, mentiras; o rei teria sido mandado matar pelo governo, indiscutivelmente.

Logo que se pronunciou a sentença, tanto era o cuidado de o tornar bem visto, o calabrez sahiu da prisão e foi, montado n'um burro, passeando por toda a cidade de Napoles, com um arauto, á frente, clamando:

«Justiça que manda fazer S. M. El-Rei D. Filippe III contra este homem que, sendo calabrez, e tentando fazer-se passar por D. Sebastião de Portugal, foi condemnado ás galés por toda a vida».

No caes metteram-n'o n'um bote, ao lado da galera almirante, onde esteve tres dias exposto ao publico.

No quarto dia, subiu para a galé, raparam-n'o, vestiram-lhe o fato dos forçados e puzeram-lhe a corrente aos pés.

Foi collocado no banco decimo setimo do lado esquerdo; mas dispensaram-no de remar.

Em escala pelo Mediterrâneo, a esquadra sahiu de Napoles para o porto de Santa Maria, perto de São Lucar de Barramèda, na embocadura do Guadalquivir.

Por toda a parte onde fundeavam, os curiosos affluiam a verem o rei galeriano.

A esquadra ia e vinha do porto de Santa Maria para outros portos.

Marco Tullio estava satisfeitissimo a bordo.

Tinham-lhe permittido usar um fato sem ser da ordem e não remava.

Estava talvez contente. Socegado parece que estava.

Quem o não estava era fr. Estevam de Sampaio, que lhe não perdera a pista e o havia de libertar por força.

Em San-Lucar de Barramêda

Como vimos, fr. Estevam sahira de Portugal, com muito dinheiro, para tentar a fuga do calabrez.

Em Marselha encontrou-se com fr. Boaventura e pai tiram ambos para S. João da Luz.

Ali combinaram separar-se. Era preciso que um d'elles se internasse na Hespanha e soubesse para que ponto iam as galés que vinham de Napoles.

Fr. Estevam offereceu-se para ir e foi par Valencia.

Como era exaltado de genio e pouco prudente não se teve que não falasse de Marco Tullio.

Começaram a fazel-o falar, por velhcaria e elle começou a apregoar a realeza do forçado.

Foi o que lhe quizeram ouvir: prenderam-no.

Meteram-no n'um convento e decretaram-lhe o castigo: cem chicotadas, em camisa.

No outro dia, em presença de toda a comunidade, fr. Boaventura teve de suportar na pelle a resposta ás suas afirmações.

O frade; era porém, da pelle do diabo, porque quando lhe perguntavam se lhe agradara a licção, respondia, invariavelmente:

«Podem chicotear-me á vontade; as chicotadas que me derem não farão, nunca, que elle não seja o rei, porque o é.»

Tal arrojo e teimosia tinham creado o proposito de lhe infligirem mais severo castigo.

Ora, no dia em que o foram procurar á cela para o levarem para o carcere do convento, como preliminar de mais larga expiação viram que o nosso fr. Boaventura deixara o logar.

Tinha fugido.

E, fugiu em direcção a Portugal, porque percebeu que em Hespanha não estava seguro.

Fr. Estevam em S. João da Luz debalde esperou noticias do companheiro.

Mal imaginava o que lhe estava succedendo.

Farto de esperar abalou direito a Lisboa.

A bolsa de Bernardino de Souza mais uma vez se abriu em soccorro do rei e Fr. Estevam partiu para Sevilha com dois mil cruzados.

Acompanhava-o um homem de confiança do Bernardino, um Salvador Moreira.

Assim que chegou a Sevilha -- o preso estava a bordo da galera da capitania de Napoles ancorada no porto de Santa Maria -- Fr. Estevam entrou em relações com Marco TuUio.

No mez de Janeiro não o poude vêr e falar-lhe quando queria; mas escreveu-lhe, repetidamente.

Dizia-lhe tudo o que se tinha passado até áquelle momento, desde a noite em que o vira em Veneza em casa de D. João de Castro; a dôr dos partidarios ao sabêl-o entregue pelo duque de Toscana, os esforços para o livrarem da prisão e, emfim, a sua viagem a Portugal e os seus resultados.

Falava-lhe do paiz e curiosamente. Dizia-lhe: «o Vice-rei Christovam de Moura não vê nem emprega senão os parentes; adoptaram-se os usos e costumes castelhanos; as mulheres estão bem longe de serem virtuosas; os inglezes apoderam-se dos galeões da India e do Brazil; os gentilhomens fieis e honrados retiraram-se para as suas terras; os tratantes tornaram-se ladrões publicos, o povo geme e chora pelo seu rei».

O quadro é simples, rapido e não deixa a desejar.

Em outra carta dá-lhe conselhos politicos: que deverá não consentir os escravos, diminuir as ordens religiosas, suster o envio continuo de dinheiros para Roma, adoptar a lei salica.

Indica-lhe, para de futuro, a vantagem de realçar a casa de Aveiro a competir com a de Bragança em honras e poderes.

Descreve n'outra carta a forma de evasão.

Não haja receio de falta de dinheiro. Tem uma boa somma de bellos dobrões de ouro e ao dinheiro «todos obedecem». Aconselha-o a que disfarce bem os intentos porque «quem não sabe dissimular não saberá reinar».

Era um amigo de todos os instantes, para tudo.

O rei quer um chapeu; mas um chapeu de tal forma, de tal pano. Não o encontra, incommoda-se, diz-lhe que o vae mandar vir de Sevilha; mas como

lhe parece que o rei dá em presumido, aconselha-o a que não faça ostentação alguma. Diz-lhe que coma bem e use boas roupas de baixo; mas que o fato seja modesto para não dar nas vistas.

Como percebe que o rei nunca deu uma prova real da sua realeza e que isto o prejudica perante muita gente, elle, mais rei do que o seu rei, pede-lhe que lh'a dê a elle, como prova de estima... Mas se lh'a não der a elle, dê-a a outros a quem escreva.

Uma prova precisa, o lembrar um facto, passado com este ou com aquelle, vale mais para o credito do rei do que todos os discursos.

Então, nas cartas, elle ensina-lhe factos, como que a perguntar-lhe se se lembra d'elles.

Exemplo: Não se lembra vossa magestade de ter um bobo? Não se lembra de João de Sá?

Estas indicações eram ás dezenas. O rei não se lembrava, nem podia lembrar-se de cousas que nunca vira e era d'este homem que o D. João de Castro e o padre Joseph Teixeira, diziam e affirmavam, escrevendo-o, ter dado as provas mais evidentes e satisfatorias da sua personalidade regia.

Fr. Estevam foi o exemplo do mais dedicado amigo, do mais ferrenho trabalhador, do mais cuidadoso sequaz, do mais attencioso côrtezão.

De Portugal levara-lhe a chronica de D. João II e alguns volumes de poesias dos poetas portuguezes, e um pote de marmellada!

Mandava-lhe as cartas que elle havia de escrever; indicava-lhe os amigos a premiar, as cruzes, as pensões, a repartir, porque, dizia-lhe elle, as profecias dizem que a V. M. levantará os humildes e abaixará os soberbos».

Não cançou, nunca.

Fugido do carcere fr. Estevam, disfarçado ora em homem do campo, ora em mendigo, atravessa a Hespanha.

Quando chega a Lisboa continua no seu trabalho improbo.

Liga-se com o conego Tavares, com Bernardino de Souza, o mais generoso dos amigos e com Thomé da Cruz, o notário que fornecera os signaes caracteristicos de D. Sebastião.

Para a correspondencia, tinham combinado uns nomes curiosos para o Rei de Inglaterra, de França e de Napoles.

O primeiro era, Fernão Peres; o segundo: Sol Gracioso; o terceiro: Belvedere.

Parte o frade novamente para Sevilha, volta de lá com massos de cartas e uma memoria escripta por Anibal Balsamo, secretario do calabrez.

Distribue essas cartas pelos indigitados e certo de que em Portugal tudo está bem preparado para a recepção do rei, volta a Sevilha para trazer o monarcha.

Marco Tullio gosava de muita liberdade a bordo, os frades tinham grande facilidade em entrar nas galés.

Um dia, pela manhã, o frade pôde communicar com o rei.

Olharam-se o rei e o amigo.

-- Quanto folgo em vos ver disse o calabrez, dirigindo-se amavelmente ao frade. Vindes de Portugal?

O frade curvou-se, beijando-lhe a mão.

-- De Portugal, meu senhor.

-- Quando chegastes?

-- Ha dois dias. Estive em casa de Antonio Mendes, até que elle pudesse falar a Luiz Morgado.

Luiz Morgado ora o guarda dos galerianos: o homem que poderia ligar ou desligar as correntes.

-- Tendes a certeza de que vos é fiel?

-- Não tem duvida; é um amigo.

-- Que nos pôde ser da maior utilidade? É preciso não deixar arrefecer a sua dedicação... podeis contar comigo.

Isto indicava que fr. Boaventura trazia mais dinheiro e a cara do rei alegrava-se, sempre que recebia esta noticia.

-- Luiz Morgado é um amigo disse o calabrez; mas bem sabeis que estes amigos, não o são completamente, despidos de interesses. De resto elle joga uma cartada seria e é precizo animal-o.

-- Tendes razão, disse o frade, e passou-lhe para a mão um pequeno embrulho com ouro.

-- Precizamos de combinar, agora, com o maior cuidado, a vossa evasão. Contaes com mais alguem que vos possa soccorrer?

-- Quem mais será preciso?

-- De ninguem mais, é certo; mas é bom sempre ter amigos, que n'um momento de suspeita nos não compromettam.

-- Quanto a isso, descançai. Tenho amigos com que posso contar no momento preciso: Fabio Corveta, Horacio Guido, Manuel Macedo, Antonio Fernandez, João Paz, Hercules Broquettin, e outros.

Era a côrte do rei a bordo da galé almirante.

Uma sucia que vivia o melhor que podia á custa de dinheiro que o frade esportulava, generosamente.

O rei era um sorvedouro.

Pedia dinheiro continuadamente e gastava-o sem se comprehender como e em quê.

Fr. Estevam nem reparava n'esta pequena cousa.

Era para o seu rei, o futuro libertador da patria, o desejado D. Sebastião, que elle levaria n'um navio, em breves dias, ás aguas do Tejo.

O frade em nada reparava durante os dias em que se seguiram as visitas e em que se combinava a fuga, nem mesmo na pouca pressa que o rei mostrava em sahir de bordo.

Na verdade, o calabrez, não parecia muito animoso de libertar a sua patria. Ia espaçando, sempre, a noite da fuga.

Sahiria de noite, protegido pelo guarda Morgado; desembarcaria pelo escuro e teriam bestas para os internarem pela Hespanha, n'um andamento o mais rapido.

Era o plano.

Quando dessem pela fuga, no dia immediato os fugitivos teriam o avanço de uma noite e não seria facil alcançal-os.

Quando o frade teimava por apressar a partida, marcar o dia, a hora, havia sempre uma difficuldade imprevista, uma inconveniência, uma desculpa.

É que o cavalheiro de industria custava-lhe a deixar o logar socegado, de bordo.

Era ali, um pequeno rei, com a sua côrte de criminosos, vivendo com a maior comodidade, comendo, bebendo, tendo dinheiro á farta e sem trabalhar.

Era mau logar?

Lá fóra, não sabia elle o que lhe iria aconterer. Não fôra já muito feliz na sua aclamação em Florença; o seu reconhecimento, corno rei, leva-o até ali, ao banco dos forçados, onde na complacencia inexplicavel o não forçava a sentar-se.

Vivia bem, feliz, satisfeito.

Torna de novo a ser rei em liberdade lá lhe parecia corar com seus perigos e percalços.

Assim, ia entretendo o padre com desculpas, gosando e apanhando-lhe o dinheiro, de que era insaciavel e tanto que o perdeu a anciã.

Não contente com o que ai)anhava a fr. Boaventura, importunava continuamente as grandes pessoas, os nobres, homens ou mulheres com pedidos.

Andava n'estes ajustes com fr. Boaventura, tinha o superfluo e não lhe chegava.

Um capuchinho, fr. Arnaldo, com quem se relacionara e que era um crente na sua magestade oprimida, foi incumbido de entregar, fazer chegar ás mãos da duqueza de Medina Sidonia uma carta de Marco Tulio.

A carta era uma lamentação pezada das suas desgraças, dizia que estava reduzido à miseria pelos seus inimigos, que vivia na maior penuria a que Deus queria sujeital-o para penitencia e apelava para a generosidade da duqueza pedindo-lhe dinheiro.

Era o bordão final de todas as cartas do impostor.

Foi o capuchinho com a carta ao palacio da duqueza e pediu para lhe falar.

Appareceu-lhe o secretario do duque, dizendo:

-- A senhora duqueza não lhe pôde falar; acha-se doente; tinha grande urgencia em lhe falar?

-- Alguma.

-- Eu posso transmitir-lhe o recado se não ha inconveniente.

Pensou uns momentos o capuchinho e não vendo mal em que o secretario pudesse levar a carta, disse-lhe:

-- Far-me-ha, então, o favor de entregar esta carta á sr.ª duqueza.

-- De quem é?

-- De alguem que não quer que se saiba.

-- Será entregue, disse o secretario. Ámanhã podeis vir pela resposta.

O capuchinho foi-se e o secretario, intrigado com o desejo de não ser conhecido o epistolografo, resolveu entregar a carta ao duque.

Este abriu, leu e ao ver a assignatura de D. Sebastião foi dizel-o ao alcaide.

O homem continua com a mania da realeza, exclamou este, temos de lh'a tirar de vez.

E tem proselitos, como se vê, observou o duque. Acho melhor mandal-o sahir d'aqui. Queira dar ordem para que seja levado para San Lucar de Barrameda.

No outro dia o rei foi levado para San Lucar e revistado encontraram-lhe cartas parafr. Boaventura, para o duque d' Aveiro, para a duqueza de Bragança, para o arcebispo de Lisboa e muito dinheiro.

O duque encarregou a Francisco de Mandojana, alcaide á audiencia real de Sevilha, de proceder á instrucção do novo processo.

Aquelle Antonio Mendes, em casa de quem fr. Boaventura se hospedava foi preso com um filho de 16 annos.

Procuraram, debalde fr. Boaventura, por muito tempo.

O frade tinha parece que uma faculdade extrema: a de se disfarçar completamente.

Escapava-se sempre, sabe-se que, em secular, ora como Julian de la Puebla, ora como Vicente Mendes.

Mas era dificil o não ser descoberto pela perseguição continua com que o cercavam e lá foi preso em Sevilha, no bairro de Triana a 25 de fevereiro, denunciado pelo filho de um tintureiro qualquer.

Quando o levaram para a cadeia, ao cheirar ao quarto que lhe destinavam foi revistado.

Fr. Estevão oppoz uma certa resistência a deixar ver um bolso interior do casaco. De nada lhe valeria.

Ao perceber a inutilidade da resistência, tirou com a mão rispida uma carta, meteu-a na boca, mastigou-a e enguliu-a, com furia. Tinha sessenta annos e a energia de um rapaz.

O caso causou tanta impressão que não escapou no processo.

Tal era a importancia do escripto.

Pouco antes, passava-se, n'uma terra do Minho, uma scena curiosa com outro amigo do rei, o frade S. Boaventura.

A' porta de um Christovão Pantoja, appareceu o nosso frade pedindo para falar á mulher.

A mulher de Pantoja parece que era irmã de leite de D. Sebastião.

Appareceu o marido.

-- D. Filippa? perguntou o frade.

O Pantoja que parecia que não era lá muito amigo de frades, ou que não gostava das relações d'elles com a mulher, respondeu-lhe:

-- Não está.

Ficou o frade pensativo e tornou:

-- Demorar-se-ha muito?

-- Algum tempo. Uma hora ou mais.

-- N'esse caso, disse fr. Boaventura, vou á Egreja de S. Francisco e volto d'aqui a uma hora.

-- Como quizerdes, disse Pantoja. A essa hora deve estar.

O frade a despedir-se e o homem a ir ter com o alcaide.

-- Sabeis quem está ahi, de novo, senhor alcaide?

-- Não sei.

-- Fr. Boaventura.

-- Outra vez?

-- Outra vez.

-- Que andará fazendo?

-- O que ha-de ser? Anda a conspirar; a arranjar adeptos. Já sabeis o que haveis de fazer.

Uma hora depois, quando o frade se aproximava da casa de Christovam Pantoja, dois esbirros lançaram-lhe a mão.

Revistado, encontraram-lhe cartas do rei, para D. Filippa em que lhe dizia:

-- Sei que viveis e tenho muito prazer em o saber. Eu vivo para Deus e como a Deus lhe apraz.

Peço-vos que digaes aos nossos amigos que em breve estarei com elles. Quando ali chegar afirmai-lhes que lhes farei o maior bem que possa. Hei-de voltar, porque as profecias não mentem e ellas o dizem.

Rogo a Deus e a Nossa Senhora da Oliveira que seja em breve. E assinava-se, como sempre, D. Sebastião.

Jubilou o alcaide com a prisão e participou-a a Christovão de Moura, então o vice-rei de Portugal.

Este mandou-o dizer ao rei, que mandou ir o frade para Hespanha e deu ordem para se procurarem e prenderem o conego Tavares e Bernardino de Sousa.

Vem D. Affonso de Aguilar buscar o fr. Boaventura com arcabuzeiros e leva-o para S. Lucar de Barrameda, onde se encontrou com fr. Estevam.

Estavam, assim, os tres debaixo do mesmo tecto, reunidos a 25 de março.

O licenciado Molina trata do processo dos padres com Luciano Negrou arcediago e conego de Sevilha, Mandojana, do processo civil.

O rei foi de novo chamado a depor; mas d'esta vez, indignado, enraivecido por se vêr novamente preso e processado, confirmou-se rei e não se desdizia.

-- Seja então o rei.

-- Já vo-lo disse.

-- Mas já o negastes.

-- Forçaram-me a isso; fui obrigado. Sou o rei. O conde de Lemos vo-lo pode dizer, se quizer.

-- O que?

-- Quem eu sou.

-- O conde de Lemos, sustentava que o não eras.

-- O conde de Lemos reconheceu-me, sempre como rei; e se o não tornou publico foi por obediencia ao seu rei, como muita vez o disse.

Falava, altivo, aborrecido n'uma mistura de linguas, de italiano, de hespanhol, de portuguez.

O portuguez falava-o, agora, melhor. Até o escrevia, já.

Quando o não tratavam por magestade, não respondia.

Quando lhe perguntavam se era casado negou.

-- Mas esteve em Florença a vossa mulher, a vossa sogra, um vosso cunhado, que vos reconheceram.

-- A mim? Quem me reconheceu? A mulher de um forçado e um tal Marco Tullio? Que engraçado!

-- Era a vossa mulher.

-- Nunca! Compraram essa gente para vir representar o papel. Nunca conheci taes pessoas nem ellas a mim.

Teimava energico e orgulhoso, com um ar cheio de colera e de desprezo.

-- Depuzeram testemunhas de vista, que o rei D. Sebastião morrera em Alcacer-Kibir.

-- Devem ter fé nas testemunhas que me viram morto em Africa, estando eu, aqui, vivo.

Sorria-se com ar desdenhoso, superior.

Não foi possivel fazel-o desdizer-se, por mais artificios, razões e provas empregadas.

O calabrez condemnava-se, agora, irremediavelmente.

Bem percebia elle que estava perdido e muitas vezes a colera da impotencia, fornece uma coragem desusada.

Tal era o caso.

O carcere, a vida amargurada que lhe davam; a previdencia de um fim escuro, tornavam-n'o irrespeitoso e audaz.

-- Queria ser rei, morrer como tal, agora.

Ao mesmo tempo caminhava o processo dos dois padres.

Fr. Estevam era interrogado.

-- Sois accusado de conspirar, ha longo tempo, para a evasão d'um homem que se diz rei, protegendo-o por todas as formas, pondo-o em relação com os inimigos de D. Filippe, rei de Hespanha. É certo?

-- É verdade.

-- Escrevieis-lhe as cartas, fornecieis-lhe dinheiro, empregastes, emfim, quanto humanamente se pôde fazer, a vossa actividadse, o vosso poder, a vossa intelligencia, em seu favor.

-- Assim é.

-- Para proteger esse mentiroso, esse miseravel especulador.

-- Nunca o acreditei como tal.

-- Como o verdadeiro rei o acreditaveis?

-- Como o verdadeiro D. Sebastião.

-- Como assim? Conversando com elle, nunca vos feriram a sua ignorancia da lingua, dos costumes, dos usos, das coisas portuguezas? Como podereis explicar tantas faltas?

-- A memoria ter-lhe-ha sido prejudicada pelos trabalhos, pelas miserias soffridas.

-- Mas vistes bem esse homem, olhastes bem para elle?

-- Muitas vezes?

-- Conheceste-l'o antes da partida para a Africa?

-- Conheci.

-- E, reconheceste-lo, agora.

-- Perfeitamente.

-- Pois tem o homem alguma semelhança com o retrato -- e mostráram-lhe um retrato.

-- Tem, toda.

-- A barba d'esse calabrez parece-se com a de D. Sebastião?

-- Parece-se.

-- Mas a do rei era ruiva, a d'este é negra.

-- Talvez dos climas que percorreu.

-- Emfim, a edade? Pois não é este homem bem mais velho, dez annos ou mais, do que o seria o rei se vivesse?

-- Questão de soffrimentos.

E, não negando cousa alguma de tudo o que tinha feito, o frade sustentava a sua crença na verdade da realeza d'aquelle homem, a quem tinha respeito e sirvira como rei.

Foi este o primeiro interrogatorio de fr. Estevam que deixou perplexos os juizes, sob se seria ou não verdadeira a crença, ou se finamente, dizendo-se crente, o frade diminuia, assim, a gravidade dos seus actos de conspirador audaz.

O que fazia suppôr sinceridade era a convicção com que falava, a facilidade das respostas, a naturalidade da expressão.

Os juizes não comprehendiam esta sinceridade.

Era realmente difficil de perceber, n'um homem de dotes tão altos como os de frei Estevam; mas o que elle dizia e como o dizia intrigava e causava espanto.

O depoimento de fr. Boaventura é mais simples.

Confessa tudo logo á primeira vez; mas parece-lhe estranho o ter-se tão facilmente enganado.

-- Conhecia o rei em Portugal?

-- Nunca o tinha visto senão uma vez, no convento de Alcobaça e mal. Era o rei muito novo. Tinham-se passado tantos annos!

-- Como pôde então acreditar na sua veracidade, não o conhecendo e vendo todas as falsidades e erros em que elle cahia?

-- Custou-me a crer, é certo, pelo que sabia e pelo que imaginava que o rei fosse.

Tanto que á primeira vez que o vi fiquei pasmado.

-- Onde foi?

-- Na galera almirante.

-- Estranhou o homem?

-- Duvidei de que fosse o rei.

-- Porque acreditou, depois?

-- Foi fr. Estevam que me convenceu. Elle tinha elementos que eu não tinha para o acreditar... Não vi... deixei-me levar... acreditei, tambem.

-- Está, porém, convencido, hoje, de que esse homem não é o rei?

-- Estou, amplamente convencido de que o não é.

Perguntado, largamente, sobre tudo o que tinha feito a favor do intrujão, confessou, lealmente, quanto fizera.

Deixaram-n'o depressa em paz.

Todos estes fados produziram em Portugal uma grande agitação.

Lançaram-se as ordens mais severas para serem presos os cumplices como o conego Tavares e o Bernardino de Souza; mas não os encontraram.

Estes, Thomé da Cruz, Salvador Moreira e outros indigitados criminosos tinham fugido para o estrangeiro.

Christovam de Moura enfurecia-se. O rei mandava para S. Lucar de Barrameda a ordem de proseguirem os processos com a maior rapidez e energia.

Era preciso acabar com o escândalo.

Marco Tullio não confessava? Deu se-lhe a tortura e levaram-n'o para o cavalete.

O calabrez que era amador de bons bocados e de boa vida não suportava a tortura, como compensação dos gosos. Era dura de mais.

Á primeira volta da corda, no cavalete, confessou tudo, claramente, sem a menor hesitação ou falsidade.

Estava farto de enganos, de mentiras, de ficções. Sentia-se perdido, talvez cançado, incapaz de continuar o papel, ou querendo, talvez, minorar a sua sorte futura por uma confissão plena.

Aos que diziam que elle era o rei, deante dos juizes, era elle proprio quem os contradizia.

Um sapateiro Dias Xardo que era natural de Santarem e exercia o officio em Sevilha, um dos furiosos adeptos, foi preso e quando confrontado com o rei, lançou-se de joelhos -- nunca o tinha visto -- clamando:

-- «Bemdito seja Deus que me deixou ver o rei, por que tanto suspirava.»

É o vosso rei!

-- É elle! É elle! bemdito seja Deus.

-- Vêde o que dizeis, disse-lhe o alcaide. Este homem não é o rei, é um calabrez: elle proprio o confessou.

-- É o rei, voltou o sapateiro.

-- Não sou, não sou, emendou o Tullio; sou um calabrez; nada mais; estaes enganado.

Parece que o sapateiro era doido, porque elle proprio escrevera ao alcaide dizendo-lhe que vira o rei na galera e que era tal como o vira em Africa... e nunca o tinha visto senão nas profecias que sabia de cór.

O processo do rei estava completo: as indagações e investigações terminadas.

D. Luciano Negrou tinha pressa de concluir os dos padres.

Chamou fr. Boaventura e, a principio a bem, e depois com energia, exigiu-lhe que dissesse toda a verdade, que acabasse com mentiras e falsidades.

O padre explicou: que não tinha mais nada a dizer.

Far vos-hei falar, replicou agastado o Negrou, e mandou chamar Juan Martin, o carrasco.

Mestre Juan Martin com a pericia que dá a pratica, n'um pronto, despiu o padre, e, com outro ajudante, deitou-o no potro.

Ás primeiras dores fr. Boaventura começou a gritar, horrivelmente.

-- Fale, dizia-lhe o alcaide.

-- Convulso, os olhos fôra das orbitas, torcendo-se, ficava mudo.

Uma, outra vez, seis vezes, recomeçando a tortura, levantava gritos; mas clamando sempre:

-- Não sei mais nada, disse a verdade.

Á sexta vez, em que a corda lhe lacerava as carnes, desmaiou e levaram-no, em braços.

Os processos dos dois padres lenninados, foram (20 de agosto) relaxados ao braço secular.

A degradação ou exauctoração fez-se, publicamente, na praça da egreja de S. Lucar de Barramêda, no primeiro dia de setembro.

Em face do templo armou-se um cadafalso de madeira, muito amplo. Em cima armaram-se dois altares.

Sobre um, colocaram-se vestes sacerdotaes; sobre o outro uma mitra episcopal, uma credencia e diversos objectos de culto.

Pelas dez horas da manhã, chegou monsenhor Gomes de Figueirôa, arcebispo de Cadiz e Algeciras, seguido pelo seu clero.

Sentaram-se conforme suas gerarchias.

O arcebispo revestiu se com as suas insignias pontificaes e o alguazil foi buscar os padres, entre arcabuzeiros.

Vinham com fatos da prisão. Vestiram-lhe os habitos sacerdotaes e andarani-nos sentar, defronte do altar, em face do arcebispo.

O notario apostolico leu as duas sentenças.

Acabada a leitura, mandaram-nos levantar e aproximaram-nos do altar.

Puzeram-lhe, a cada um, na mão direita, um cálice.

O arcebispo tendo na frente o pontihcal da degradação, começou por lhe tirar os calices, depois os vestidos, depois os insignas ecclesiasticas, até ficarem em fatos seculares.

Mandaram-nos sentar e appareceu um barbeiro, de toalha no braço e bacia na mão.

Ensaboou-lhes o alto da cabeça e rapou o cabelo, de modo a fazer desapparecer as corôas.

O juiz apostólico, acada a rapadela, levantou-se e abraçou-os, alternadamente.

Em seguida entregou-os ao juiz civil Mandojana pedindo-lhe -- pro fóma -- que os tratasse com benignidade e sem derramamento de sangue, como ecclesiasticos que tinham sido.

Eraquanto o arcebispo e a comitiva, tomava o caminho do paço episcopal, o alcaide reconduzia á prisão os dois ex-padres, no meio de enorme concurso do povo atonito e intrigado.

Ainda, na prisão, quiz o juiz ver se podia obter algumas declarações de fr, Boaventura.

Uma cousa nova este lhe disse: era que Christovam de Moura protegia o calabrez.

Era um ardil; talvez uma ideia com que pretendesse espaçar a execução da sentença.

Justificava a sua afirmação por uma frase de Christovam de Moura, a respeito dos sebastianistas. Diz-se que elle dissera a um corregedor de Lisboa, que o incitava a persegui-los:

-- «Deixa-los, coitados, teem desculpa em suspirar pelo rei que amam».

D'ahi a proteger o rei vai uma distancia enorme; mas o frade lembrou-se, talvez, de dar boato a uma intriga, que pela pessoa envolvida seria de grande pezo para a Hespanha.

Não lhe deu resultado.

Mandojana tinha terminado o processo dos padres em abril.

A sentença estava lavrada. Restava informar Filippe III.

Assim o fez. A sentença sujeita á aprovação do rei mandava que os padres fossem enforcados e depois partidos em bocados.

O rei dispensou o retalho das carnes sagradas, achando bastante o enforcamento.

Quanto a Marco Tullio, depois de enforcado devia cortar-se-lhe a cabeça e ser conduzida a Lisboa, n'uma gaiola de ferro.

O rei não concordou com a leva da cabeça a Lisboa, porqiio, dizia (jiie o criminoso era italiano,

O crime passára-se na Italia e nada linha Portugal que ver com elle.

Quando as sentenças chegaram, modificadas pelo rei, veiu, tambem, ordem para suspenderem a execução dos padres.

Marco Tullio ficou só, para o suplicio.

Quando lhes leram a senteça, aos tres, fr. Boaventura, exclamou:

-- «Bemdito seja Deus; tenho a minha consciencia tão limpa como agua limpida em vaso de cristal.»

Marco Tullio, esse ficou altamente impressionado. Um pouco depois serenando pediu papel e tinta e escreveu, em latim:

«Eu, condemnado á morte, depois de ter appellado para o rei catholico irado e para o rei catholico tranquillo, appello para Deus.

E, vós não appellaes como Marco Tullio? perguntaram a fr. Boaventura. -- Para Deus? não é preciso. Elle conhece toda a minha vida e penetra até ao mais intimo dos meus pensamentos.

Depois olhando pela janela aberta, d'onde se viam arvoredos, exclamou:

-- «Se debaixo d'aquellas arvores estivessem ou o papa ou o rei de Inglaterra ou o da Allemanha, appellaria para elles, pelas minhas razões e pela minha tranquila consciencia.»

Depois, voltando se para Marco Tullio, altivamente, disse-lhe:

-- Homem, calabrez, quem quer que sejas, porque te não conheço, pede-me perdão! porque Deus sabe que não tenho motivo para t'o pedir a ti. Enganaste-me! Não era melhor para nós, pobres desgraçados, não me terdes enganado quando vos procurei na galera!

O calabrez, triste, respondeu:

-- É verdade, era melhor; teria sido melhor o que dizeis; mas não ha remedio. Peçamos a Deus pelas nossas almas; encomendemo-nos a elle pelos nossos pecados. E ficou pensativo e mudo.

Taes foram as ultimas palavras trocadas entre o desiludido frade e o miseravel falso rei.

Separam-nos para quartos diferentes. Nunca mais se haviam de tornar a ver.

É no dia 23 de setembro de 1603.

A praça principal de S. Lucar de Barrameda está eheia de uma enorme multidão, ruidosa, bulharenta.

A meio da praça ergue-se um tablado de madeira com a forca ao lado.

É o dia da execução de Marco Tullio, o calabrez, o falso rei, que vai pagar os cuidados que deu ao governo de Filippe III e do pae, Filippe II.

Em breve elle apparece, amarrado, arrastado pelo chão, dentro de um pano grosseiro, levado pelos soldados.

Levantaram-no e subiu as escadas do palanque.

Ali, bem alto, pedindo silencio á multidão, disse:

-- «Em nome de Deus, confesso que sou Marco Tullio calabrez, natural de Taberna, casado com Paula Gallardeta, de quem não tive filho ou filha».

«Confesso, assim, que não sou o rei de Portugal, D. Sebastião, que nunca vi; mas que me levaram a fingir sê-lo com dadivas e promessas.

«Nunca, sequer, estive em Portugal.

«Por ser verdade, na presença de Deus me confesso, para que elle me perdoe os meus pecados, como espero que me perdoe algum de vós que de mim tenha ofensa ou aggravo.»

Acabada a confissão, chegou-se a elle o mestre Juan Martin, desligou-lhe os pulsos e mandou-o ajoelhar junto ao cepo que estava ao meio do palanque.

Tomou lhe do braço direito, que assentou no madeiro e com um machado curto, com um golpe, separou-lhe a mão direita.

Era a que tanta vez, criminosamente, assignara D. Sebastião, rei de Portugal.

Mandaram-no levantar. Marco Tullio serenamente segurando com a mão esquerda o coto d'onde jorrava o sangue, ergueu-se e dirigiu-se á escada encostada ao poste da forca.

Um momento depois, um ajudante lançou-lhe o laço de linho ao pescoço e desviando a escada escarranchava-se-lhe nos hombros.

Decompôz-se horrivelmente a physionomia do calabrez; injectaram-se-lhe os olhos sahindo das orbitas, pendeu-lhe a lingua fôra da bocca, estava morto! Tiraram-no da corda e, levado ao cepo, foi partido aos bocados. A cabeça e a mão foram espetadas no alto de umas varas e estas cravadas no chão. Os pedaços do corpo foram levados para as estradas.

O quarto e ultimo falso rei de Portugal deixara de viver!

Mal déra o ultimo arranco, entraram na praça tres homens algemados entre guardas.

Eram Annibal Bálsamo, galeriano, que lhe servira de thesoureiro; Fabio Carveta, galeriano que lhe servira de secretario e Antonio Mendes, tintureiro portuguez, residente em Sevilha, em cuja casa fr. Estevam estivera hospedado e escondido e onde fizera o seu quartel general. Sem demora subiram para o patamar de madeira e foram pendurados ao lado da forca de Marco Tullio.

A estes a sentença mandava tambem que fossem cortados em bocados e assim foi que, um depois do outro, mal mortos, ainda quentes, foram levados juntos do cepo e, com arte de eximio magarefe -- o carrasco lhe separou os membros ás machadadas.

O governo hespanhol, segundo as tradições de Filippe II, guardou silencio sobre a execução de Marco Tullio. Não lhe ligaria, já, importancia. Isto deu em resultado que só vagamente se sabia do destino do homem e a lenda e o misterio começaram a envolver a figura reles e ambiciosa do mesquinho calabrez.

Não ha, porém, duvida da morte do heroe em setembro de 1603 porque um diplomata francez, o conde de Barraul, embaixador, escreve para o seu governo a 1 de outubro:

«Mandaram enforcar o homem que se dizia D. Sebastião, tendo este confessado a verdade de que era calabrez».

Os romancistas é que não perderam o episodio para phantasiar misterios e d'ahi veiu que o mais prosaico de todos os pretendentes á corôa portugueza foi o que alcançou mais notariedade e fama.

É sempre assim.

Um mez depois, no mesmo sitio, na mesma praça de S. Lucar, os dois padres fr. Estevam de Sampaio e fr. Boaventura de Santo Antonio, eram por sua vez enforcados.

Mostraram o mais resoluto animo, a maior serenidade, na morte.

Os mortos foram estes; mas a lista dos condemnados é longa. Os cumplices subalternos foram poupados pela corda, mas pagaram, por outros modos, a sua cumplicidade.

Horacio Guida, calabrez; Tenreiro de Maestro Pietro e Cczario Carpio, napolitanos, foram condemnados a seis annos de galés.

Juan Perez, castelhano; Manuel Macedo, portuguez; Giovani Camarra e Paulo Pola, napolitanos e Antonio Fernandes, portuguez, foram mimoseados com cem açoutes cada um.

Aquelle Pedro Xardo, napolitano, maluco, que vimos se lançou aos pés do rei beijando-lhos e reconhecendo-o tal qual o vira em Africa, soffreu cem acoites e foi para as galés por oito annos.

Francisco Fernandes, portuguez; Hercules Broquetin de Cremona e Elvira Sanches cujo crime era ser mulher de Antonio Mendes, tiveram cem açoutes e o exilio.

João Mendes, filho do tintureiro, de doze annos, foi exilado.

Heitor Antunes e Gaspar Gonçalves, portuguezes, o primeiro multado em 100:000 maravedis, o segundo em 150:000.

As sentenças como se vê, não desdizem da brutalidade da justiça n'aquella epocha, em Hespanha: são o que ha de mais cruel, attingindo até, os innocentes.

O leitor quererá saber o que foi feito de algumas das personagens d'esta tragedia que ha tempo deixámos esquecidos.

Fr. Chrisostomo da Visitação, o bernardo de Alcobaça, esse abandonara o pretendente e os adeptos, pouco depois da fuga de Florença, e entrou para um convento em Milão, onde naturalmente morreu, porque não mais se soube d'elle.

Envergonhado, como é natural, não mais voltou á patria.

O conego Antonio Tavares, íoi um bello dia, prezo em Roma e metido no castelo de Santo Angelo.

Ahi esteve um anno. Passado um anno foi passado para Civita Vechia e afinal para S. Lucar de Barramêda, para a prisão onde tinham estado os dois frades enforcados.

A questão não tinha já interesse de primeira ordem, o processo corria com a maior lentidão, ameaçando eternisar-se.

Os amigos do frade começaram a trabalhar, em Lisboa, pela sua liberdade, junto de Christovam de Moura.

Acontecia que o pae e familia do Tavares eram e tinham sido, sempre, dedicados á pessoa dos Filippes, o que posto na balança, contra a seu crime lhe valeu a liberdade.

Foi solto, ainda assim, nove annos depois, em 1613.

Solto, voltou para Lisboa, onde vivia, cauteloso, odiando os Filippes.

Vinte e tres annos depois, fez-se a revolução de 1640; o Tavares entra bravamente n'ella.

D. João IV para o recompensar dá-lhe uma mitra e fal-o seu esmoler. N'este cargo morreu depois dos 80 annos, em 1642.

D. João de Castro, a escrever, a decifrar, a descobrir, a inventar profecias, morre em Paris, velhissimo, convicto de que tinha assentado em argumentos indiscutiveis a verdade do seu D. Sebastião, em que elle proprio não podia ter fé, se tivesse juizo!

O que é certo é que o apparecimenlo, do melhor a razão do apparecimento de Marco Tullio, como rei de Portugal, está envolta em misterio.

O facto que contava o aventureiro de que estando á missa um capitão italiano o cumprimentara como D. Sebastião, nada explica.

D'ahi o tranformar-se de D. Diogo de Aragão em cavalleiro da Cruz e em D. Sebastião, vai uma distancia que não é facil saber prehencher.

O que é natural é que alguem, com interesse em encontrar um rei D. Sebastião, se lembrasse do aventureiro, por ousado e sem escrupulos, para o caso.

Quem foi esse alguem?

Um dos portuguezes emigrados em Veneza? É o mais natural.

Qual dos quatro mais falados, na emigração, n'esta cidade?

Brito Pimentel? Fr. Chrisostomo, de Alcobaça? Pantaleão Pessoa? Nuno da Costa? Talvez nenhum d'estes fosse; todos de conbinação mais tarde para o fazerem passar como rei, se associaram a fingir acreditál-o, mas o que é certo é que, pelo que se sabe, a nenhum se pôde atribuir a paternidade da invenção.

N'esse tempo, a historia contava-se oralmente e eram os aventureiros de todos os paizes que a espalhavam pelas suas terras, ao voltarem das guerras e dos combates.

Tres a quatro mil italianos tinham ido a Alcacer-Kibir e alguns tinham voltado á Italia.

Sabia-se, pois, a historia do rei; e, os emigrados, na sua crença, ou na sua duvida, haviam de ter dado a conhecer, falado, discutido, as suas esperanças.

Extremamente religiosos, o que significa ingenuos, o conhecimento das profecias dispô-los hia a acreditarem, sinceramente, n'um resurgimento da patria.

Não é dificil encontrar na historia politica de todos os povos, aventureiros habeis explorando situações ambiguas ou mal conhecidas, nomes alheios, nomes de mortos, casos escuros.

Na sociedade do hospedeiro Francesco, a turba mal afamada dos frequentadores, permitte-nos supor que lhe pertenciam homens de todas as especies e classes, vivendo de expedientes, de dolos, de mentiras, de roubos.

Ali nasceu com certeza a ideia da exploração.

O Marco Tullio viu-se que era homem habil para transformações, decerto modo educado com as Humanidades e estudo da Poesia.

Já era grande de Hespanha; um pouco mais e encontrava-se rei de Portugal.

Assim se combinou e assim se fez.

Talvez elle proprio se decidisse a tal empreza, com a conversa do capitão italiano que o reconhecia como rei, ao conhecer o espirito dos emigrados portuguezes e com a mira em os explorar.

Talvez; mas custa a acreditar que assim fosse, porque era impossivel, só com o descaramento e a audacia, fazer-se acreditar.

Não; houve alguem e portuguez que lh'o sugeriu; que lembrado das historias dos reis de Penamacôr, da Ericeira e de Madrigal, pensou que mais feliz ou melhoramento trabalhando, podia arranjar um rei.

O homem prestou-se á experiencia, enquanto a julgou de pouca responsabilidade; varias vezes, mais tarde, se arrependeu quando um tinha meio de retroceder.

Prestou-se á experiência, esse homem, esse frade, esse jusuita como a tradição indica, ao transformal-o em rei, deu-lhe o conhecimento que pôde dos homens e das coisas que elle devia saber e imitou-lhe, no corpo, os signaes que D. Sebastião possuia. Os signaes seriam os mais conhecidos, os conhecimentos os mais importantes.

Mas como a sciencia foi mettida rapidamente e á força, o pobre diabo baralhava tudo, esquecia-se, ridiculamente.

Como era impossivel que um homem que fala, desde pequeno, vinte e quatro annos, uma lingua a esqueça nunca mais na sua vida, veiu o expediente de a não falar, por motivo de promessa.

Mas quando um dia a falou, falava bundo.

A natureza, os trabalhos, não podiam fazer de um homem mediano de estatura, robusto, louro, de olhos azues, um tipo baixo, magro, de cabello e olhos escuros e barba.

Ouer dizer que um homem se lembrou de inventar o rei, que os emigrados aceitaram -- a vêr o que acontecia.

Emquanto o engano não ameaçou tornar-se escandaloso e perigoso, seguiram-no, deram-lhe dinheiro, ajudaram-no.

Quando a burla desandava em manifesta imbecilidade, alguns o deixaram, o abandonaram á sorte.

Houve, porém, quem não quizesse recuar; tanto trabalho, tanta lucta, tão bem dispostos os ânimos em Portugal, para acceitarem um rei, fosse qual fosse, não podia perder-se.

Fizeram-se as ultimas tentativas, exgotaram-se os ultimos recursos.

Era já, a teimosia, a raiva, a mania, a loucura.

Em Paris, D. João de Castro e o padre Joseph Teixeira, auctoridades em cousas misticas, proclamavam a realeza indiscutivel do aventureiro; pela Hespanha fr. Estevam, em paladino intemerato, levava-se á forca.

O acaso não quiz que elle salvasse o rei e o trouxesse a Lisboa. Devia ter sido um caso interessante, pelo menos; talvez gravissimo.

A corrente historica dos povos, ás vezes partida dramaticamente, dá origem a considerações curiosas.

O que teria sido Portugal se D. Sebastião vence em Alcacer-Kibir? Se em vez de ficar morto no areal, se ergue, victorioso, como imperador de Marrocos? O que seriamos, hoje? Como estaria formada a nossa nacionalidade?

Como a historia de Portugal teria sido diversa da que foi, desde esse dia.

Por mim tenho a convicção de que seria maior.

A India foi o nosso orgulho e foi a nossa ruina o seu oiro serviu para nos corromper; quando digo oiro, refiro-me aos seus productos tão apreciados e tão valiosos na Europa.

Perdido o Brazil, como havia de succeder, cedo ou tarde, quem sabe o futuro de Portugal d'aquem e d'alem mar em Africa. A conquista, ao pé da porta teria sido mais facil de sustentar e as riquezas de Marrocos, as suas florestas, os seus portos ligados com o interior, os seus vales fertilissimos, formariam com a parte europeia uma verdadeira nação moderna, poderosa e rica.

O abandono das praças d'Africa por D. João III tenho-o como o mais desastrado acto politico.

Voltando ao caso do calabrez e de fr. Estevam de Samaio, dizia que seria talvez um caso grave a sua aparição em Lisboa, com muitas dedicações occultas, com dinheiro ás ordems, e, sobretudo com o estado de miseria desolada, de raivas surdas e de profundos odios a Hespanha.

O estado de Portugal era miserando.

A decadencia que se iniciara grandemente no reinado de D. João III, que avassalara o de D. Sebastião, completara-se cruelmente com o dominio hespanhol. Lisboa dissuluta e pobre afundava-se na miseria dourada.

O aspecto do paiz era pavoroso.

As terras incultas prolongavam-se sem fim. Apenas á roda das villas ou das cidades uns miseros bocados de terra agricultados, denunciavam a existência do lavrador.

De longe em longe, leguas extensas, aparecia o vulto esqueletico e enegrecido de um solar rodeado de hortas inexploradas, os palheiros e celeiros a desabarem e em volta raras cabeças de gado grosso, comendo a herva que invadira os pomares e as vinhas.

Os camponezes viviam em miseras cabanas, de colmo, de tectos esburacados, sem pão, quasi sem lenha, ao lado dos rebanhos famintos.

Faltavam as alfaias; as rendas, na sua exageração, não permitiam lucros.

A carestia dos artigos de primeira necessidade multiplicava os encargos domésticos. O fisco, as febres, a má alimentação, o mau fato, dizimavam a população dos campos. O pão era detestavel, de centeio e milho meudo, o peixe raro, a carne rarissima, o vinho detestavel. Os roubos, as violencias, as extorsões, matavam o estimulo.

Os homens novos e validos iam para a India.

As conquistas levavam o vigor, a força do caracter nacional, e milhares de vidas, todos os annos.

A côrte matava o campo.

O fidalgo vivia e morria sem ter visto o seu solar, que desprezava.

As corporações piás e religiosas, a quem pertencia a quarta parte do paiz; administradoras negligentes, ou arrendavam as terras com clausulas leoninas, que esmagavam o rendeiro, ou sem terem quem as quizesse, deixavam-nas ao abandono.

Com a expedição de D. Sebastião os fidalgos tinham empenhado todos os bens ruraes, e vendido herdades por todo o preço.

Empenharam-se comendas e morgados por muitos annos, com a ideia de se resgatarem com os despojos da victoria.

A victoria não veiu, e ás despezas loucas da partida juntaram-se os milhares de cruzados, dados para o resgate dos prisioneiros.

Centenas de fidalgos estavam na miseria.

A emigração era enorme. Os escravos, aos milhares, vieram substituir, nos trabalhos, os vigorosos emigrantes.

A viciosa organisação da propriedade, rendas elevadas, salarios altos, falta de gado ou de estrumes, mercados pobres e difficeis, as extorsões feitas pelos fidalgos, levaram o paiz a gastar 500:000 cruzados por anno em cereaes, só os vindos pelo mar.

N'esta miseria geral abundavam, como um flagelo, os mandriões, os vadios, os mendigos e os ciganos.

Em Portugal havia tres regiões apenas onde havia cultura: as lezirias do Tejo, os campos de Coimbra e os lameiros de Traz-os-Montes.

As providencias de Filippe II não bastaram para modificar a situação economica do paiz.

A agricultura com a conquista, agonisava pelos tributos cada vez maiores e pelas levas continuas de soldados arrancados ao solo portuguez.

A industria de lanificios que tivera certa extenção matou-a a importação de panos de Hespanha, niolhoros do qiio os nossos.

O fabrico da seda que vinha já do seculo XII, em que éramos habeis, matou-a a concorrencia das sêdas orientaes, que afluiam copiosamente a Lisboa.

A industria do linho, a mais prospera, decahira na sujeição, ao mais lastimoso estado, a ponto de virem da liollanda cordas e velas.

As industrias dos couros, da cortiça, do sabão, do papel, dos azuleijos, tão celebre, do barro, das explorações mineiras, da pescaria tão rica, todas

estavam agonisantos, durante os Filippes, pelos impostos, pela exploração, pelo desleixo.

A expulsão dos judeus e dos mouros fôra-lhes o primeiro e terrivel golpe.

N'este estado, os industriaes, os officiaes e operarios morriam de fome.

Povo esfaimado e nobreza faminta eis ahi a mais bella semente para uma revolução.

Em 1580 o duque d' Alba proclama Filippe II; em 1598 começa por morte do pae, a governar Filippe III, o nosso segundo; estava-se em 1604, isto é, a vinte e quatro annos de dominio, de opressão, de vergonha.

Tinham desapparecido, mesmo para os vendidos a Christovam de Moura, as ultimas illusões de pos-se de riquesas promettidas, de honras.

O despeito enchia as classes altas, a miseria agrilhoava as baixas.

Era, talvez, tempo, era já tempo de não acontecer ao rei que apparecesse o mesmo que sucedera ao infeliz prior, com o seu exercito inglez, à roda de Lisboa, debalde gritando aos corações surdos dos portuguezes?

Era talvez tempo.

Por isso, a chegada a Lisboa da noticia de que D. Sebastião se dirigia para Portugal, a sua entrada no reino, a sua marcha para a capital, deviam ter um singular relevo, um alcance qne é difficil prever.

Este seria acreditado como verdadeiro rei, vindo do exilio, livre, emfim, das perseguições do governo hespanhol, por milagre, solto.

O que fez a revolução de 1640? A fidalguia descontente, mandada servir lá fôra, obrigada a contribuir com homens e dinheiro, para as tropas que iam para o estrangeiro, individada, escarnecida, desprezada pelo governo de Madrid.

O clero expoliado nas suas prerogativas e bens, enganado nos seus rendimentos, obrigado a contribuições continuas, amesquinhado, empobrecido.

O povo indignado porque vivia na miseria e ainda ia para o campo da batalha de Flandres, do Roussillon e da Italia combater por um rei odiado, ás levas, preso, de noite, nas suas casas de aldeia ou nas suas choupanas miseraveis, acorrentado como negro, como escravo.

Ora se a situação de 1640 era esta, a de 1603 não era senão um pouco inferior, talvez na intensidade, mas de resto absolutamente egual.

E tanto assim era que tres annos depois d'este anno, em 1617, quando entrou no porto de Lisboa, a armada do Marquez de Montes Claros com enorme thesouro vinda do Novo Mundo, a muitos passou pela ideia, o apoderarem-se d'essa esquadra e d'essa riqueza e fazerem a revolução com ambas.

Os espiritos estavam n'uma excitação e n'um desejo de revolta que não tinham, quando o prior os viera procurar.

Por isso, parece-me que a chegada do calabrez e de fr. Estevam a Portugal teria colocado em serios embaraços, o Filippe III e o seu governo.

Não quiz a sorte proteger o frade e a aventura terminou como devia terminar em relação às qualidades inferiires do aventureiro, por um desastre humilhante -- a forca.

Para todas as pessoas prudentes e sensatas D. Sebastião estava morto e bem morto e o rei da Calabria era tão impostor como os tres primeiros colegas.

Mas esse sentimento intimo da alma de um povo oprimido, essa raiva de escravidão, depois da grandeza, essa anciã de desforra que não é senão o anceio natural pela liberdade, esse odio ao tirano todo esse sentir que vivifica a esperança -- ultima energia da reação -- não abandonara muitos dos portuguezes.

Os que perderam as noticias do rei e dos sectarios, os que o souberam morto, que poucos deviam ter sido, não desanimaram.

Concluiram que não era ainda aquelle e continuaram a esperar.

Crearam até uma nova lenda. O rei andava nas galés. Ora, um dia, no alto mar, uma outra galé, com a bandeira portugueza, velejou para aquella e deu-lhe caça.

Como se receasse matar alguem que fosse dentro, não disparou um tiro; mas lestos e habeis os marinheiros lançaram-lhe os harpeus e uniram-na á d'elles.

As galés começaram a correr de conserva, juntas, pela imensidade do mar.

Para onde? Não se sabe ao certo; mas acreditou-se que pararam junto de uma ilha encantada.

D'ahi virá um dia o rei cumprir o seu destino.

Quando? Não ha que pensar no tempo. É quando fôr. Para o caso não contam os annos.

D. Sebastião passou assim de ser o Desejado a ser o Encoberto.

Epilogo

D. Sebastião passou completamente para a lenda, quando os annos decorridos não podiam permitir a hipothese de uma existencia humana.

Similhante ao rei Artus ou Arthur inglez, da Gran Bretanha, que viveu no seculo VI da nossa era e a quem attribuiram, os bellos, o papel de futuro libertador da nacionalidade, esmagada pelos saxões.

A lenda collocou-o, tambem, n'uma ilha, a ilha d'Avalon, onde o guardavam sete fadas, até ao dia em que tivesse de vingar as duas bretanhas.

A lenda celtica deu origem a uma serie de romances e de poemas que formam o ciclo da Tavola Redonda.

A lenda sebastianista, não produziu em Portugal senão insignificantes romancelhos poeticos, sem fogo, sem vida, sem valor.

A seita sebastianista, essa atravessou os seculos e foi ainda no principio do seculo XIX combatida e ridicularisada por José Agostinho de Macedo, como enervadora e dissolvente, no momento em que a invasão franceza requeria os maiores esforços, de valor e de coragem.

Hoje está morta.

A ultima vez qae deu que falar foi no Brazil.

Em 1838 na provincia de Pernambuco, um João Antonio, um fanatico e um louco, anuncia que D. Sebastião despertara do encantamento na ilha mysteriosa e ia enfim, aparecer na America, meridional á testa d'um exercito numeroso e terrivel.

Destaca da aldeia da Pedra Bonita, onde vivia, o emissario João Ferreira e este tão louco, ou tão velhaco como o mestre, proclama-se o rei, e decreta ritos sanguinarios.

O irmão de João Antonio mata o falso rei e toma-lhe o logar.

Então persuade os pobres sertanejos de que é invencivel e todos os que se lhe agregarem, e reune um corpo de guardas.

Proclama que lhe basta bater com o pé no chão, para surgirem da terra milhares de guerreiros e sacrifica vinte e tantas mulheres e creanças em holocausto ao idolo.

A tropa marcha contra estes fanaticos sanguinarios, mata parte d'elles, destroça os restantes.

João Antonio interna-se nos matos, fugitivo.

Nunca mais se soube d'elle.

E é o ultimo vestigio da seita; não sendo o menos singular, nem o menos inofensivo.

Como se viu dos quatro impostores que se fizeram, ou levaram a fazer o papel de reis, nada de nebuloso nem de occulto resta.

A lenda, as tradições envoltas em mysterios, as duvidas acabaram.

O rei de Penamacôr é um patusco incarnando-se em D. Sebastião pela ideia de explorar a crendice popular generosa e esmoler.

O rei da Ericeira tem a mais uma certa grandeza moral.

Devia ter pensado a serio no seu papel de redemptor: o seu desplante na figuração de rei, a sua morte altiva e heroica, tornam-no sympatico e interessante.

O rei de Madrigal é um baboso inferior, joguete de fr. Miguel dos Santos, um automato que este move e engana até o levar á forca, em sua propria companhia.

O rei da Calabria é um aventureiro, interessante e reles a quem seduzia o dinheiro e a quem os frades fr. Estevam e fr. Christovam debalde ensinaram um papel difficil de representar.

Nada tem de singular o homem, nem como similhança, nem como verosimilhança, com o D. Sebastião. O estudo perfeito do sr. Miguel de Antas aclarou, absolutamente, com a inspecção e publicação dos documentos diplomaticos e da letra dos processos todos os episodios da vida do falso rei e dos seus sequazes.

Este, que passou ainda por muito tempo como verdadeiro rei, morto pelos hespanhoes, não foi senão o ultimo impostor, talvez o menos sympatico, dos tres colegas.

Tendo contado os episodios mais curiosos da vida e morte dos quatro farçantes, e visto o fim de quasi todas as personagens d'esta veridica historia, indicando, rapidamente, o sebascianismo, a sua causa, a sua decadencia e desaparecimento, esta historia acabou.

O sebastianismo é, porém, uma doença dos povos adormecidos na miseria moral da ignorancia ou da superstição.

Terá de dar-se-lhe outro nome: o de Messianismo.

Dê-se-lhe.

Portugal de hoje não é menos messianico do que o de então.

O povo não espera de si, nem crê, para o remedio dos males que o afligem, na sua propria força, na sua audacia ou energia: entrega sempre a sua causa a um homem extraordinario, que o ha-de levantar, guiar, engrandecer e libertar.

Os charlatães, os pedantes, ousados tem n'este phenomeno, talvez de raça, o segredo do seu valor.

Os sebastianistas antigos viram em D. João IV o D. Sebastião, como o viram mais tarde no Marquez de Pombal; os modernos, andam a procural-o com vontade e não será dificil que dentro em pouco o comecem a esperar pelas margem do Tejo n'uma manhã de nevoa.

Talvez venha, talvez.

Todavia, parece-me, que não será bem n'uma galera, com a cruz de Christo nas velas que elle haja de chegar; mas -- longe vá o agouro -- n'um navio negro, pesado, brutal, de ferro e aço, dos que andam aos centos no mar e que, em linguagem vulgar se chama um couraçado... inglez.

Sua alma, sua palma.

FIM


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TextGrid Repository (2023). Portuguese ELTeC Novel Corpus (ELTeC-por). Os quatro reis impostores: Edição para o ELTeC. Os quatro reis impostores: Edição para o ELTeC. . ELTeC conversion. https://hdl.handle.net/21.T11991/0000-001C-F442-4