Ao Illustrissimo e Excellentissimo Senhor ANTONIO AUGUSTO TEIXEIRA DE VASCONCELLOS Bacharel formado em direito pela Universidade de Coimbra, Membro do Real Conservatorio da Arte Dramática, e do Instituto de Coimbra, Socio correspondente da Academia Real das Sciencias de Lisboa, membro effectivo das Sociedades de geographia de Paris e de S. Petersburgo e de varias outras sociedades nacionaes e estrangeiras Deputado da Nação Portuguesa, eleito por Bardes na india, e director politico da Gaseta de Portugal etc.
III.mo e Ex.mo Sr.
Foi v. ex.a quem primeiro que abriu as portas da imprensa, convidando-me para ser um dos fundadores e redactores da Gazeta de Portugal, honra que eu acceitei com tanto maior alvoroço quanto menos me era devida. Não era eu então escriptor, nem o sou agora, posto que tenha trabalhado tanto que o pudera ser. No desempenho das obrigações d'esse difficil cargo, posso dizel-o com a mão na consciencia, e v. ex.a não terá de certo duvida de m'o confirmar com o seu testemunho, procurei ser justo com todos, e liberal sempre.
E valeram-me sem duvida a verdade e os principios que sustentava paraque o publico me perdoasse a falta de pompa nas palavras, e para que fosse menor a desesperação que eu sentia de não poder imitar os vóos dos meus collegas na redacção, tão cabaes nas sciencias como admiraveis no estylo.
O livro que offereço a v. ex.a é uma collecção de artigos escriptos a lapis e em tudo similhantes a esses que eu enviava, da camara dos deputados, para a typographia da Gazeta, e que v. ex.a tinha depois o incommodo de illuminar.
O romance, digo-o aqui em segredo, é apenas a fórma, o disfarce com que pretendo introduzil-o nas estantes, e obter-lhe pousada mais larga do que é costume conceder aos jornaes, que aos primeiros raios do sol se derramam por toda a parte, mas que em nenhuma ficam de assento mais de vinte e quatro horas; quanta luz tinham se lhes apaga, quanto valor possuiam se lhes deprecia; eil-os confundidos, no dia seguinte, com as var reduras, e colhendo só desprezos. Sobre esta razão accrescentava outra para mim de maior momento : é que o romance tem dominios seus, vastos e exclusivos, e o jornal não pode entrar n'elles senão disfarçado, como os missionarios do christianismo entravam algum dia nas terras dos pagãos. Se pelo mal imitado dos trajes eu não puder lograr o meu fim, podem os guarda-barreiras rir-se da minha ousadia, mas peço-lhes que tenham consciencia e coração bastante para me respeitar a intenção; que em nobre empresa a mesma que da é nobre.
É necessario que os principios da liberdade, igualdade e fraternidade, eternos na sua duração, sejam tambem universaes na sua applicação; que traduzidos em instituições, leis e costumes, se estendam por toda a superficie do globo, e penetrem até as suas ultimas camadas.
Só então a regeneração do homem será completa.
Proclamando-o aqui em alta voz, e desejando-o com toda a energia do meu coração, não cuido que seja seduzido por uma miragem social. E que o fosse, mesmo assim eu não ganharia pouco, porque é esta uma das taes utopias beneficas e esplendidas que despertam com grande poderio o nosso animo, que elevam os misera veis acima das suas miserias e os afortunados acima do seu egoismo, e transportam a uns e outros ás alturas do Synai, d'onde só se descortina a bandeira hasteada no cume do Calvario, que é a bandeira da humanidade.
O germen d'este romance é um fado historico.
Desenvolvi-o, pintando os costumes da sociedade anglo-indiana, e creando alguns personagens è episodios, menos pelo desejo de crear do que forçado pela pobreza do assumpto. Não sei se fiz mal ; se mais valera ao facto a sua natural pobreza do que as minhas chamadas galas, com as quaes, sem hVa remediar, talvez o tornas-se ridiculo.
Sou eu o primeiro a reconhecer e confessar os defeitos d'este livro. Novidade e grande dar-me-ha o leitor se disser o contrario. V. ex.a sabe que não sou romancista; e os que o não sabem, sàbel-o-hão agora, quando repararem nos traços pouco firmes, e nas còres pouco vivas com que são desenhados os personagens e os quadros d'este livro, a que me afoito a chamar romance, com a mesma liberdade cora que ha por ahi muita gente que se chama Napoleão ou Newton.
Quanto á phrase, não me saiu ella pura e correcta como o merecia a lida que n'isso puz; fôra preciso para tanto, mais largo conhecimento da lingua portugueza, que não cabe a quem não a fallou desde a infancia, nem a exercitou depois com mestres.
Isto de ser romancista não é cousa tão facil como de fora e á primeira vista parece. Nunca tãe claro o senti como agora, e já bastante para não cair em outra, e para admirar ainda mais os que, entre nós, n'esta parte da litteratura têem colhido coroas e obtido triumphos.
Voo pois contar a v. ex.a lisamente e com ver dade o que me acontecia ao urdir o enredo d'este romance. Creava dois, tres, quatro personagens» insuflava-lhes vida, vestia-os o melhor que podia, ensinava-lhes fallas, gestos e maneiras; de pois contemplava-os com ineffavel prazer, e direi mesmo, com certo orgulho. Pareciam-me tão bellos! N'isto tocava ao almoço, e eu ia almoçar.
Não me demorava nem meia hora, porque tinha saudades da minha gente. Voltava, mas, santo Deus, que mudança ! Os personagens eram todos feios; os trajes assentavam-lhes como mascarada, e as suas fallas sentia-as frias como o gelo. Indignado e cheio de furor, pegava no cutelo, e zás trás, zás trás, matava tudo. Era horroroso o espectaculo que tinha então diante dos olhos: cabeças decepadas, braços amputados, dedos partidos, sangue, minas, vesperas sicilianas, emfim!
No dia seguinte tornava-me ao logar da carnificina. Parecia-me horroroso como um campo de batalha, e triste como um cemiterio. Chorava lagrimas de dôr e de arrependimento sobre os personagens que alli jaziam, e dizia-lhes:
-- Oh! por que não sou eu rico como Sakspeare, que sustenta populações inteiras! abastado como A. Herculano, Castilho, Mendes Leal, A. Augusto, Rebello da Silva, que alimentam familias, sem que similhante liberalidade lhes cerceie a abastança! rico como Castello-Branco, cujos bem providos celleiros bastariam só por si para matar toda a fome de Cabo-Verde!
O mais bello dom dos romancistas e poetas, a sua grandeza é a liberdade de crear. Que ha ahi que se aproxime mais das attribuições de Deus, do que esse poder de inventar heroes, e conquistar para elles desde logo a fé dos espiritos, o enthusiasmo dos corações, e o privilegio da immortalidade! Pois esta liberdade, tão cara a poetas e romancistas, era-me incommoda a mim, que não podia respirar debaixo do seu immenso ceo, nem governar-me na anarchia do seu infinito. Pela primeira vez na minha vida tive saudades da escravidão da mathematica, e da servidão da economia politica. E só depois que moderei os meus instinctos homicidas e agrilhoei os meus braços, é que pude andar e terminar este romance, que, se não tiver para v. ex.a nenhum outro merecimento, têl-o-ha, n'isso não cabe a duvida, o de provar a gratidão de quem tem a honra de ser
De v. ex.a Collega e amigo obrigado
Francisco Luiz Gomes.
I
No districto de Oude, ao sul do famoso Gográ, e a breve distancia de Lucnoa, está situada Fizabad, a antiga capital do reino. Opulenta outr'ora, as suas muralhas tinham sido famosas antes de 1775, mas jazem hoje desmoronadas; o seu palacio de Sujá Doulá fôra magnificente mas caiu em ruinas; a sua população rica emigrou para Lucnou; fugiram d'alli os reis, os principes, a côrte, o luxo e as paixões, cedendo o seu logar aos lavradores, aos rouxinoes, á amenidade e ao trabalho. E campo o que fôra cidade.
Na epoca em que succederam os acontecimentos que vamos narrar, Fizabad pertencia ainda á dynastia Doulá. Tinha escapado á voragem do famoso tratado de 1801, em que o nababo Asof, escravo do destino e victima da propria fraqueza, vira com resignação a poderosa companhia das índias quebrar-lhe em bocados a coroa, e retalhar o reino, conservando-lhe apenas, em premio de tanta humildade, um titulo vão e uma soberania phantastica. Este golpe tão profundo, como robusto era o braço de lord Wellesley que o vibrara, tornou-se cancro. E Oude, que encerra as origens dos quatro rios sagrados da India e a famosa Benares, que é a Roma do bracmanismo, desmoronou-se e caiu em 1856 no vasto sorvedouro do imperio britanico.
No recosto de um teso, no centro de Fizabad, viam-se em 18..., como as do solitario eremiterio suspenso no cimo da montanha, as alvissimas paredes de um bangaló, cercado da ramagem de umbrosas mangueiras, que depois de o guarnecer de uma densa e viçosa cinta de verdura, colleava e se estirava pelo teso abaixo até se perder nas extensas campinas. Para mais realçar este quadro, á esquerda as aguas do Gográ resplandeciam com a luz do brilhante sol dos tropicos.
O bangaló visto de perto dava idéa do luxo oriental, e do estylo leve e gracioso da architectura indiana. Era uma casa alta com tecto de forma conica e achatado, sustentado sobre quatro renques de pilares. As suas paredes, construidas de pedra, eram grossas como as muralhas de uma fortaleza. Cercava-a em todo o ambito uma varanda com balaustres de pau sandalo, abrigada dos ardores do sol pelas redes tecidas de raizes aromaticas, flores perennes, que, orvalhadas pelo ar da madrugada, exhalavam todos os dias perfumes suavissimos. O jardim, as cascatas, e os pankás conservavam nas diversas salas d'este vasto edificio uma frescura eterna. A longa escada que conduzia para o bangaló começava na raiz do teso e acabava no gradeamento.
Era toda de pedra, e ladeada de duas ordens de frondosos arbustos, cujos ramos entrelaçando-se formavam um sobreceo continuo e ondulante.
Não são raros na índia similhantes bangalós, em que o luxo rivalisa com as commodidades, verdadeiros templos onde o nababo, o rajá e o sahib, reclinados em riquissimas ottomanas, e n'uma somnolencia voluptuosa, recebem as adorações de turbas de servos submissos, e indolentes. Não pôde deixar de ser conhecido do leitor, pela fama, o bangaló Constância do general Clau de Martin, sendo monumento da magnificência e bom gosto e uma das maravilhas de Oude.
Custara mais de cento e sessenta mil libras a sua eonstrucção.
II
O Griffin
No referido anno de 18... o bangaló de Fizabad pertencia a uma familia irlandeza chamada Davis. Compunha-se esta de Mr. Davis, velho octogenario e paralytico, e de Roberto seu sobrinho e futuro herdeiro. Mr. Davis era natural de Dublin, d'onde viera de poucos annos para a India, em companhia de seu pae, que era official do exercito de Bengala. Sem nenhuma propen são para as armas e para os cargos publicos, Davis separou-se de seu pae e partiu para Oude, onde se estabeleceu como cultivador de tabaco.
E tão bom maneio deu a esta industria, até alli nova no paiz, que em breve praso ajuntou immenso cabedal. A sua avidez, que crescia a par da sua riqueza, prendeu-o por tal modo á India, que n'ella veiu a envelhecer-se, sem nunca haver realisado o projecto que concebera de voltar para a Europa. Um ataque de paralysia veiu finalmente cerrar-lhe para sempre as portas da patria e tolher a realisação de um projecto tantas vezes espaçado. Havia dois annos que Davis jazia no seu leito, reduzido á sua segunda infancia, e como tal assistido e tratado. Fôra antes d'este inopinado acontecimento e para perpetuar sua prosapia, que elle mandara chamar o sobrinho que o leitor vae conhecer agora.
Era Roberto bem apessoado, de gentil semblante, e com todos os dons que dão agrado. Tinha trinta e dois annos, e havia apenas mezes que estava em Oude, administrando os bens de seu tio, dos quaes depois da morte d'este devia ser senhor, em virtude de testamento. N'uma edade tão nova, tão cheia de vida, e de movimento, tão vaporosa como a propria Londres, Fizabad devia horrorisal-o como o claustro horrorisa a donzella que n'elle vem sepultar, amortalhadas no grosseiro burel, a mocidade e a formosura. Roberto padecia e esperava no seu purgatorio. Os que haviam conhecido o moço sobrinho de Davis, no viço das suas vinte e tantas primaveras, radiante da alegria e entregue a todos os prazeres, desconhecel-o-hiam agora. Mudara completamente. Já não tinha aquellas maneiras delicadas e finas, creadas pela boa educação e aperfeiçoadas com o uso da sociedade. O seu caracter azedara-se na solidão. Havia só um momento em que o veo sombrio da muda tristeza que lhe entenebrecia o rosto se rompia, e um sorriso assomava aos seus labios: era quando tirava da algibeira o retrato da sua Helena, e o cobria de beijos. Na sua solidão era-lhe este retrato unico allivio. Com elle falava e até criaque o retrato lhe respondia. Helena era linda como o sol, e orphã de mãe, a quem o seu nascimento custaraa vida. Roberto deixara-aem Londres, em casa de uma familia irlandeza de abonada probidade, de quem recebesse a educação que elle com avultados cabedaes não conseguiria quejunto d'ellelhe fosse dada.
A vida de Roberto corria monotona entre os deveres e as lembranças. O dia de hoje passava-se como o de hontem, o de amanhã havia de passar-se como o de hoje. De manhã trabalhava no escriptorio; das cinco para as seis dava um pequeno giro, montado no seu lindo cavallo arabe; ás sete jantava; á noite tomava chá com frei Francisco, missionario portuguez de Oudo. Não lia porque todos os livros lhe pareciam tristes: jornaes, nem os abria. Outro teria recusado a herança por tal preço ; elle não, que tinha uma filha, cujo futuro unico lhe pejava o coração, distrahindo-o por instantes da sua tristeza. Roberto conservava todos os habitos e costumes que trouxera da Europa, com tanto maior rigor quanto lhe parecia extravagante e ridicula a vida molle, a que na India se habituavam os seus conterraneos, sobre a qual não raro resvalavam os seus chascos entremeados com o juramento de que havia de manter sempre a pureza e austeridade de griffin Os conductores do palanquin o preparador do uka, os criados do pankà, o porta-chapeo, o botler, o moço do divan, o amassador, eram para o austero Roberto outras tantas sinecuras, tão ridiculas como importunas, que deviam ser supprimidas, e tel-as-hia cerceado de facto se não fôra a condescendencia que lhe cumpria ter com seu tio, que era ainda o senhor da casa.
Roberto não havia conhecido senão a sociedade no meio da qual se educara, e mancebo tivera todos esses defeitos que os annos corrigem depois, e que ás vezes até transformam em virtudes. Quando chegou á Índia, estava já enfermo seu tio e ausentes da cidade os poucos inglezes, que eram obrigados a residir n'ella em razão dos seus emprégos. Afastado de todos, triste e esmagado debaixo do peso da saudade, nem animo nem paciencia lhe sobravam para estudar os costumes da India, e mais não cuidava fossem tão diversos dos da Europa.
O spleen, que devorava o moço sobrinho de Davis, revelava se não só no seu ar triste, e nas suas maneiras seecas, mas no modo um pouco sobranceiro, com que tratava os numerosos criados. Poucas vezes lhes dirigia a palavra; ás perguntas respondia com enfado, e aos seus salamalecks com desprezo. Não exceptuava d'estaregra nem o fiel brahamane Magnod, que possuira a confiança do velho Davis, e lhe merecera sempre particular estima e consideração.
Quem era esse Magnod? E o que o leitor vae saber.
III
A puresa dos brahamanes
Os brahamanes são uma dynastia e uma casta. Brahama é o sol, e os brahamanes os seus raios. Os brahamanes sairam da bocca de Deus, como o mais puro dos seus verbos, e os sudros nasceram dos seus pés, como o mais vil pó. Não é dado ao sudro nem ao paria tocar no brahamane, como não é dado ás raizes tocar nas flores, nem á planta do pé tocar na bocca.
As mãos do paria que tocarem no brahamane imprimem n'elle o sello indelevel do inferno; o sangue da vacca que se esparzir sobre o seu corpo, penetra-o até á medulla dos ossos. A pureza do brahamane é como o orvalho pendente da folha, o qual desapparece para sempre, apenas n'elle se toca.
Ha quedas que são augustas transformações.
Cae Job no abysmo de miserias e encontra n'elle a magestade e a grandeza. Asualepratorna-se purpura; as suas lamentações convertem -se em hymnos; a sua solidão povoa-se de anjos; as suas trevas alumiam-se do esplendor da sua fé; ea sua dôr adormece aos embalos da esperança. Cae Saulo e levanta-se Paulo; cae o timido galileu e levanta-se Pedro, inflammado no amor e purificado pelas lagrimas; cae a Magdalena infame e levanta-se Magdalena sublime. A. queda do corpo é o infortunio; a queda do espirito é o peccado. O arrependimento é a medicina do peccado, como o infortunio é o leite da santidade. Só para o brahamane que fôr uma vez tocado das mãos profanas do paria, ou do sangue da vacca, não ha salvação. Cae como Carthago, Ninive e Jerusalem. Nunca mais se levanta. A sua queda chama-se o inferno.
O brahamaneé comparado ao diamante de Golconda, quenuncafaz sombra ; e ao.arminho branco daBretanha, que morre daprimeira mancha. A sua pureza deve ser, como a virgindade, uma inteireza perfeita, intemerata, que não pode crescer nem minguar. Pode a lua, totalmente escurecida, restituir-se outra vez á sua natural luz e formosura; não assim o brahamane, que uma vez infamado, nunca volta á sua pureza; não assim a honra da virgem, que uma vez perdida nunca mais se recupera.
Eis ahi o brahamane, qual o pintam as superstições, o orgulho e o fanatismo, e não os vedas; que o brahamane d'estes é menos puro e mais humano.
Magnod era brahamane como o queriam as superstições e não como o definiam os vedas.
Entrara em tenra edade na casa do velho Davis, e ahi fôra recebido com os braços abertos pela fama que tinha de esperto e de muito versado na lingua ingleza. Dotado da mais clara intelligencia, da perspicacia natural á sua casta, e de actividade pouco vulgar na índia, facil lhe fôra ganhar dentro de pouco tempo a intimidade e conliança de seu amo, que o respeitou sempre como o instrumento da sua fortuna e o tratou como seu amigo. Magnod teria trinta a trinta e cinco annos; bem proporcionado e robusto, tez bronzeada, olhos pretos, nariz aquilino, um bigode denso e azeviche cobria-lhe os beiços delgados e tintos, de betle ; o seu olhar era profundo, e escrutador ; na sua physionomia havia não sei que de grave. Vestia, por cima de uma especie de blusa branca, um casaco de casimira escura, tendo do lado esquerdo uma algibeira, da qual pendia uma linda corrente de oiro; uma peça de lençaria , atada na cintura e posta com tanto geito que affectava a forma de calças, cobria-lhe as coxas; as pernas estavam nuas; nos pés trazia sapatos encarnados, de bico revirado; e na cabeça sobresaía uma touca da mesma cor.
Magnod não tinha cubiça de dinheiro. Atormentava-o a sêde de honras e distincções. No dia em que Davis o afagava com uma caricia e lhe dirigia um comprimento affectuoso em inglez, o coração não lhe cabia no peito de contente. Queria ser tratado como socio da casar tal era o seu dizer. Davis, a quem fazia mais conta pagar os serviços e a fidelidade de Magnod com palavras do que com dinheiro, não poz estorvos, antes alimentou o fatuo orgulho do brabamane, que já por tal modo estava habituado ás attenções de seu amo, que as requeria quasi como um dever. Em tudo mais o caracter de Magnod era reservado. Ninguem sabia dissimular melhor um resentimento, disfarçar uma ira com um sorriso, adiar uma vingança e esconder uma lagrima.
Magnod, posto que esclarecido, era de uma logica teimosa, e inflexivel em tudo quanto diz respeito á sua religião. 0 seu pantheismo, porém, nem era tão grosseiro que o arrastasse a uma vida material e voluptuosa, nem tão sublime que o alçasse a espantosas macerações, cilicios e abstinencias. Cego de fanatismo, e escravo da fatalidade da sua logica, recusava aos parias e sudros a sympathia que concedia aos irracionaes. O principio das castas, defendia-o, já se vê, com todas as forças. Era dogma. Fora Deus quem concedera aos brahamanes o privilegio d'essa rehabilitação da queda original, que o ebristianismo estende a todas as creaturas como um direito, e que promette a todos os infelizes como a melhor esperança do futuro, e a mais doce consolação do presente.
O conhecimento da civilisação europea, a convivência com Davis, o longo tracto com fr. Francisco, não tinham, nem levemente, modificado a rigidez das crenças de Magnod. Os principios, as imagens e os sentimentos sublimes que lhe apresentava o veneravel sacerdote do christianismo, ora estampados nas paginas sacrosantas da biblia, ora copiados fielmente no seu coração e vida exemplar, não poderam abrandar, sequer, o orgulho do altivo indio.
Ha pouco um brahamane transportou-se ás margens do Ganges, e alli caiu desfallecido. As ondas do rio sagrado deviam arrebatal-o para o ceo. Um inglez, julgando-o victima de algum accidente, recolhe-o em sua casa, e ministra-lhe cuidadosamente todos os soccorros. -- A casta brahamane declara infame o seu correligionario por haver bebido com os estrangeiros, e a justiça britanica condemna o inglez a alimental-o.
Não podendo resistir a tanto opprobrio, o braha mane quer matar-se, e o inglez deixa-o em paz consummar o suicidio. Magnod era brahamane d'esta tempera.
Facil nos é comprehender, com o caracter que conhecemos a Magnod, quanto o de viam incommodar os maus modos de Roberto, e quanto lhe devia ser difficil acanhar, os gestos de dignidade, que o habito demandar vertera em toda a sua pessoa. Roberto poucas vezes lhe falava em inglez, e muitissimas o escarnecia chamando-lhe gentleman of colour.
Com apparente indifferença ouvia Magnod taes motejos; mas em seu peito fervia um volcão e lavrava-lhe pelas veias fogo devorador.
O momento da explosão não era chegado ainda.
IV
A queda
A sala de jantar no bangaió era uma espaçosa galeria com cinco janellas que davam sobre o jardim. Uma pequena cascata de agua nativa tornava aqui mais viçosa a vegetação; o chão era todò alcatifado de relva'; e as jasminaceas, baloiçando-se lascivamente com a brisa da tarde, exhalavam suaves fragancias. Na parede opposta á das janellas, via-se um riquissimo panká de seda, com grandes frocos fluctuantes. Dois robustos criados o agitavam sem descançar.
Eram sete horas, dia quinta feira, mez de bril. Á roda de uma mesa, onde brilhavam finissimos crystaes, pratas de Scinde e loiças de Japão, estavam assentados tres homens. Dois lustres pendentes do tecto illuminavam os convivas eom um clarão tão brilhante como a luz do dia.
Um era Frere, joven official do exercito da India, e exercendo as funcções de residente na côrte de Asof ; outro, que tinha a fronte calva, suissas brancas e rugas na testa, era Smith, o primeiro magistrado de Oude, e a todas as luzes o mais douto da companhia. O terceiro, que estava sentado no meio d'elles, era Roberto que fazia as honras da casa.
Frere tinha começado a falar acerca do espolio da ultima rainha fallecida em Fizabad. Fazia a descripção das riquissimas joias d'esta princeza e dos seus thesouros, avaliados em mais de dois milhões de libras esterlinas. O magistrado e Roberto escutavam-o em silencio. N'isto abriu-se uma porta e entrou um sipai, que, depois de fazer tres profundos salamaleks, entregou a Roberto um papel fechado que trazia na mão. Era um despacho telegraphico.
Roberto, depois de inclinar-se em signal de pedir venia aos seus hospedes, abriu a carta e percorreu com avidez as poucas linhas que ella continha. Depois, voltando se para o sipai, disse com vivacidade.
-- Magnod que venha aqui quanto antes. Preciso falar-lhe.
O sipai partiu, e momentos depois voltou com a resposta que Magnod não queria vir.
Ou muito de proposito, ou por engano, o sipai dava um recado que não era exacto. Magnod dissera que não podia vir. De querer a poder vae muitas vezes uma insolencia.
Roberto, vivamente contrariado com esta inesperada resposta, lançou os olhos aos hospedes.
Estavam indignados. Assaltou-o a colera por tal modo, que sem se lembrar do logar onde estava, e quasi fora de si, bradou batendo o pé e dirigindo-se para os hamales:
-- Trazei-m'o aqui já e já... ainda que seja de rastos.
Mal estas palavras foram pronunciadas, os ha males desappareceram como um raio.
D'ahi a pouco assomou á porta Magnod com um joeliio em terra e oulro no ar. Dois criados Traziam-no agarrado pel s braços. Fazia horror vêl-o. Com os vestidos em desalinho, os cabellos soltos, a cabeça sem o inviolavel turbante, as faces lividas, arfava-lhe violentamente o peito, alvejava nos cantos da bocca a escuma, e nos olhos lampejavam brilhantes chispas.
A um acceno de Roberto, os criados largaram os braços de Magnod. O brahamane foi collocar-se á esquerda de seu amo. Alli deixou descair os braços, curvou a cabeça sobre o peito, e ficou immovel por alguns instantes.
-- Não sabes que deves a obediencia ao teu senhor? Perguntou-lhc Roberto entreabrindo os labios tremulos.
-- Perfeitamente ! respondeu o brahamane com uma tranquillidade fulminante ; assim como sei que um brahamane a deve primeiro que tudo a Deus; que nobre e senhor tambem eu sou.
Smith e Frere ouviam em silencio, mas com impaciencia, este dialogo. Conheciam sobejamente o caracter violento de Roberto, e já haviam percebido assás a altivez do brahamane, para não recearem alguma occorrencia desagradavel.
-- Que me importa a mim o teu Deus? O que me importa são os meus criados; redarguiu Roberto com violência.
-- Senhor, replicou Magnod, erguendo a cabeça e com os labios tremulos de colera. Depois que os vossos baixos hamales puzeram mãos impuras no meu corpo Isagrado, não posso nem devo trocar comvosco uma só palavra. O vosso procedimento foi indigno.
-- Cala-te, miseravel! rugiu Roberto atirando á cara de Magnod um prato com roast-beef que tinha diante de si.
Os convidados saltaram nas suas cadeiras, como se cedessem a um movimento mechanico; os numerosos criados que cercavam a mesa, nem pestanejavam; Magnod cobriu o rosto com as mãos murmurando com voz afogada:
-- Estou perdido.
-- Tirae-m'o de diante! proseguiu Roberto, cuja colera tocava as raias da demencia.
Dois criados ladearam o brahamane, que tinha ainda a cara tapada com as mãos.
Magnod caminhou com passos lentos para a porta. Ahi parou. Pareciameditar. Depois, virando para traz, olhou para Roberto com os olhos que fais cavam furor, soltou um rugido e desappareceu.
Que olhar! E que rugido!
Naquelle olhar fundira Magnod o odio, a raiva, a vingança e a desesperação que lho lavravam na alma e jantara os olhares de mil pantheras. Aquelle rugido era a terrivel interjeição que rompe das entranhas do condemnado, como o ruido de uma explosão. O olhar e o rugido juntos eram a chamma da escorva e o ribombo do canhão, o relampago e a trovoada das paixões humanas, que tambem teem as suas tempestades terriveis.
Silencio de sepulchro reinou por alguns momentos na sala de jantar. Crer-se-hia que o olhar de Magnod tinha feito gelar o sangue de todos.
Passado o primeiro impeto, Roberto estava corrido e arrependido do seu procedimento, e não sabia como desculpar-se d'elle para com os seus hospedes, a quem tinha incommodado com uma scena tão desagradavel. Frere estava estupendo.
Só o magistrado, perfeito conhecedor dos costumes da índia, atinara com a verdadeira causa d'este desastroso successo. Não ousava revelal-a para não aggravar a situação de Roberto.
-- São insupportaveis esses indios com o seu genio altivo, disse por fim Frere, quebrando o silencio que começava a ser longo.
-- Ou antes com as suas superstições, atalhou Smith.
-- Como assim? interrompeu Roberto.
Smith hesitou alguns instantes... depois continuou:
-- É que os brahamanes nunca se aproximam de nós quando estamos a jantar.
-- É verdade! acudiu promptamente Frere.
Roberto fez um signal aos criados para continuarem a servir o jantar e não deu mais signal de si. De quando em quando levava o punho cerrado á fronte, como se quizesse esmagar uma idéa. Já lá estava o remorso.
Em quanto isto se passava na sala do jantar, Magnod entrou no gabinete de Davis, fechou-se dentro d'elle por alguns minutos e depois saiu do bangaló.
Era meia noite. Os convidados levantaram-se da mesa. O jantar durara cinco horas.
V
A viuva do indio não se consola; mata-se
Tres dias depois dos factos que relatamos, um homem rodeava a modesta casa de Magnod, parando de espaço a espaço, e sem ousar entrar.
Hesitava entre a consciencia que lhe dizia «anda» e o orgulho que lhe aconselhava «volta». A sua altivez espinhava-se com violencia tal. que era impossivel calcular-lhe a força. Perseguia-o a idéa de que poderia inspirar comiseração, e outra mais horrorosa ainda a de ser despedido, depois de aturadas insolencias e humilhações.
-- Terei eu forças para supportar taes affrontas a um indio que foi ha pouco meu criado? Oh! isso não! Seria degradar-me aos olhos d'esta gente; seria perder o prestigio dos europeus, que é a sua unica força n'estas terras. Não... mil vezes não... Voltarei...
Mas não voltava! Havia alguem que o retinha alli de sua mão, que lhe esmagava o coração, que havia de povoar logo de visões as suas noites.
Esse tyranno era a consciencia, e a sua victima, como o leitor já terá percebido, o moço sobrinho de Davis.
Roberto armou-se finalmente de valor e subiu com precipitação os poucos degraus da escada da casa dc Magnod. Parou defronte da porta e escutou. A quietação era completa. Bateu repetidas vezes : ninguem lhe respondia. Olhou pelo buraco da fechadura, c recuou de espanto e horror. Vira um cadaver. Correu a dar parte á policia; veiu esta c arrombou a porta. Triste espectaculo se apresentou então aos olhos de todos. Em espaçoso aposento, e pouco claro como ao apontar da aurora, via-se um corpo dc mulher suspenso da corda, presa numa das vergas do tecto. A infeliz trajava de branco. Tinha a lingua de fora e as feições inchadas ; dois fios de saliva negra e ensanguentada pendiam-lhe de cada canto da bocca. Logo abaixo duas creanças nuas dormiam profundamente, abraçadas a um cão. Todos ficaram petrificados diante d'este grupo, em que viam confundidos o homem e o animal, a morte e a vida, o crime e a innocencia.
Muphti, era esse o nome do cão, apenas deu comosolhosemRoberto,chegou-scparaaopéd'elle e começou a olhal-o fito. O orgulhoso inglez curvou a cabeça, e os cabellos eriçaram-se-he todos.
Ouvira a sua sentença. E que o juiz de todos nós é a consciencia, e esta transforma as pedras em testemunhas, os animaes em magistrados, o leito em patibulo, a vida em inferno, mas nunca o reo em innocente. Muphti era n'este momento severo censor, porque a consciencia de Roberto se convertera em tyranno.
Foi grande o alvoroço que este desastroso caso fez em Fizabad. Ondas de povo succediam-se em casa de Magnod.
Em quanto a policia procedia ao auto do corpo de delicio, procurando inteirar-se de todas as particularidades do facto, Roberto, assentado em uma cadeira, parecia estranho a tudo quanto se passava á roda d'elle.
A monotonia das indagações foi interrompida de repente pela voz de um sipai, que, entregando ao chefe da policia uma carta aberta, lhe disse:
-- Achei-a n'uma alcova. Não sei o que ella contém.
As palavras do sipai divertiram a attenção geral. Roberto poz-se immediatamente em pé.
O chefe leu primeiro a caria para si, e depois para os que, acercando-se d'elle, esperavam anciosos saber o seu conteudo. Rezava ella assim :
Minha querida Biraa.
«Nasci rei e senhor de todas as creaturas; «agora vago foragido no meio das selvas, e rojo pela terra como a ave altiva que cae ferida das eminencias do espaço, tendo ainda no peito a setta peçonhenta. A luz que fora accesa por Brahama, para illuminar o mundo, apagou-se com o sopro impuro do baixo paria, e com as gotas do precioso sangue da vacca.
«A minha alma despenhou- se nas profundezas do inferno para nunca mais emergir. As minhas lagrimas, ainda que tão sagradas e copiosas fossem como as aguas do Ganges, não lavariam a nodoa do inferno que a malvadez cuspiu na minha augusta fronte de brahamane.
«Luctar com a desgraça ó nobre, combater com a fatalidade é loucura. O impossivel é invencivel. A minha sorte hade cumprir-se.
«Tudo para mim é negro. Branco, branco, só me parece esse malvado allumiado pelas faiscas « da minha immensa colera.
«Quero morrer e não posso. Fico suspenso entre os horrores da eternidade que me apavoram e os festins da vingança que meattrahem.
«Deus! Deus! Porque me negaes o aniquilamento?
«A minha vida deve ser uma noite continua illuminada a intervallos só pela estreita magica «da vingança. Todos me voltarão as costas; todos me apontarão com o dedo; ninguem me falará; os parias zombarão de mim; o sarcasmo encontrar-me-ha sem a purpura da casta e sem o brazão da raça; as seitas penetrar-me-hão até ás carnes. Deus não ouvirá as minhas supplicas, porque eu perdi o primeiro dos direitos do brahamane, quec o direito de orar; comtudo preciso viver e quero, para ganhar com o martyrio a vingança, que é o meu unico ceo.
«Querida Bima! Triste de ti e dos nossos filhos! Quando o tronco tomba no lodaçal immundo, impellido pelo braço do vil paria, as folhas e fructos não podem ficar puros. Desamparados dos parentes, dos vizinhos e dos amigos que vida será a vossa?
« A viuvez com degradação, a orphandade com desprezo não ha peito que as supporte.
« Todas as separações tcem um fim em que o amor crê firmemente, e pelo qual suspira como o desgraçado pela estrella amiga, que vem a es «paços fulgurar nos abysmos do horisonte; a minha condemnação é eterna... eterna, Bima!
«Adeus para sempre. -- Teu do coração, Magnod.
Durante a leitura da carta, Roberto esteve com a vista no chão, e immovel como uma estatua.
Cada palavra d'ella atravessara-lhe o coração como um punhal. Não ousou levantar os olhos por que temeu que lhe adivinhassem no sem blante o que se passava no intimo da sua alma, e que todas as boccas se abrissem para lhe repetirem: -- Tu és a causa de todas estas desgraças!
O chefe da policia dobrou a carta e metteu-a na algibeira, muito contente d'esta descoberta.
Não era preciso indagar mais. Estavam explicadas as causas do suicidio. A verdadeira policia tem d'estes acerbos prazeres. Para ella, adivinhar onde está o criminoso, e atinar com a causa do crime é resolver um problema.
Antes de concluir o auto, perguntou o chefe da policia voltando-se para os circumstantes:
-- Quem quererá encarregar-se d estas creanças?
-- Os parentes de certo que não; acudiram promptamente os sipais.
-- Eu! exclamou um homem atravessando o circulo dos sipais.
Voltaram-se. Era frei Francisco, missionario portuguez do reino de Onde. Um raio de sol illuminava o semblante pallido e macerado do frade, e reverberava na sua lustrosa calva como na superficie prateada do mar. Parecia coroado tio mais brilhante diadema. A virtude tambem tem os seus reis. Roberto apertou a mão de frei Francisco e disse-lhe ao ouvido :
-- Nós!
Uma hora depois frei Francisco recolhia-se a sua casa.
Seguiam-no um cão e duas creanças. Era o que restava da familia do infeliz Magnod.
No mesmo dia foi enterrado o cadaver de Bima. A religião brahamanica negou-lhe as preces, e a christâ não pôde conceder as suas.
Deu-lhe lagrimas a caridade que é a religião de todas as religiões, e uma como Deus de quem procede. Porém, só a esperança póde cobrir de galas a horrorosa nudez da morte.
VI A reparação
A melancolia de Roberto tornou-se desde então profunda. O remorso perseguia-o sem cessar, retratando-lhe ao vivo todas as funestas consequencias do successo da casa de jantar. O suicidio de uma mãe, a demencia de um pae, a orphandade de duas creanças, a perda de uma familia que vivia inoffensiva e feliz, eis o terrivel quadro que elle via ante si, de dia e de noite, agora e sempre.
O ferro do remorso rasga melhor os corações delicados e sensiveis. Roberto não era nenhum malvado. O seu corarter estaria azedado na solidão, as suas idéas acerca dos indios seriam pouco liberaes; os seus impetos seriam violentos ; o seu respeito pela opinião publica seria maior do que pela propria virtude; mas a sua indole não era má, e a sua educação fôra toda evangelica.
Acção feia podia elle commettel-a por que era homem e tinha paixões ; mas approval-a nunca.
Uma manhã em que Roberto estava no seu gabinete assentado em frente de um grande bufete, foi-lhe annunciadaa visita de frei Francisco.
Mandou-o entrar immediatamente.
-- Louvado seja Nosso Senhor Jesus Christo, disse o frade adiantando-se para Roberto.
-- Rom dia, frei Francisco , respondeu Roberto, levantando-sc cia sua cadeira e estendendo a mão ao frade.
Frei Francisco sentou-se, e depois de um momento de silencio disse, dirigindo se para Roberto :
-- Peço-vos só alguns momentos de attenção.
-- Estou á vossa disposição; replicou Roberto fechando um livro que tinha diante de si.
-- Trata-se, proseguiu o frade, dos dois orphãos de que nos encarregámos. Eu desejava mandal-os para Londres, para serem alli educados em algum collegio irlandez; mas de que servem desejos? Não vão tanto acima as minhas posses que possa pagar estas despezas ; vejo-me portanto obrigado a pedir o vosso auxilio. Deus vos pagará o que fizerdes pelos pobres.
-- Padre, disse Roberto com visivel commoção, pedis aquillo que podieis exigir cm nome da justiça de Deus e dos homens. E immensa a minha divida para com os orphãos de que me falaes. Nunca poderei solvel-a cabalmente. Roubei-lhes os carinhos da mãe, a protecção do pae, a amizade dos parentes, e a companhia dos vizinhos; possa ao menos poupar-lhes a miseria. A minha Helena está em Londres em casa de uma familia irlandeza que me merece toda a confiança ; para lá irão tambem os orphãos, se assim quizerdes. Helena terá dois irmãos, e eu mais dois filhos. Enviareis a mezada que eu fico de entregar-vos pontualmente todos os mezes. Ninguem deve suspeitar sequer do nosso projecto. Sabeis quanto é perigoso o fanatismo d'estes indios.
Frei Francisco ergueu-se. Na physionomia, grave e magestosa do sacerdote, reluzia uma alegria celeste, e dos seus olhos rebentavam lagrimas de prazer. Que consolação ha ahi similhante á da alma do santo quando vê um peccador arrependido? E o reflexo d'essa festa com que é recebida no ceo a alma que descera ao charco immundo da depravação e que o arrependimento lavando-a de todas as manchas, reconduz pura para Deus.
O frade levantou os olhos para o eco e depois abaixou-os para Roberto.
Não pôde proferir palavra. O silencio é a linguagem das grandes commoções.
Houve largo espaço de profundo silencio.
Um criado veiu dizer a Roberto que o almoço estava na mesa. Frei Francisco despediu-se do seu amigo para ir dizer a sua missa do costume na egreja de Santo Xavier.
Seis mezes depois d'esta visita, partia para Londres o magistrado Smith com os dois filhos de Magnod. Haviam recebido na vespera as aguas do baptismo, e os nomes de Thomaz e Emilia.
Foram seus padrinhos Roberto e frei Francisco.
VII
Os Thogs
Pluet super peccatores laqueos A maldição de David realisou-se. Os terriveis laços choveram na India e chamam-se thogs.
A civilisação brahamanica tem a sua pustula.
Criam-se n'ella vermes que com o contacto da luz se tornam serpentes horrendas. Da desorganisação do bracmanismo organisa-se um monstro que mata sem ser carrasco, que mata sem ter odio, que mata sem ser por interesse, que mata por matar, que mata com os olhos abertos, com o coração puro, com o nome de Deus na bocca. Bovami é a deusa da morte ; thog o seu sacerdote.
Blasphemia diante de Deus!
Barbaria diante da humanidade!
Demencia diante da razão !
O pão encerrado nos subterraneos humidos cria bolor e torna-se veneno; o iridio azedado pela miseria e opprimido pelo despotismo faz-se thog. O sentimento de criminalidade desapparece n'essas tribos de selvagens, n'essas familias de assassinos em que o criminoso se julga philosopho e moralista, em que o crime adquire os foros e o esplendor da doutrina, em que o mal assume a augusta magesfade de Deus.
Toda a doutrina tem a sua logica, todo o sophisma se reveste das apparencias do raciocinio, como a moeda falsa traz o cunho da verdadeira.
O thog é doutrinario. Inverte tudo. E na inversão é logico Chama ao mal bem, ao crime virtude, ao criminoso santo, ao inferno ceo, ao demonio Deus.
D'ahi nasce maior perigo para a sociedade. A organisação torna forte o erro.
A sêde dos homens é saciavel; a sede dos deuses deve ser infinita. A missão do thog ha de durar em quanto Bovami fôr antropophaga.
O thog que caenas mãos dajustiça caminha para o patibulo com a serenidadedo justo, com afronte radiante de esperança, coroado de flores como um vencedor, e por entre os respeitos e admiração da multidão que o proclama santo. Á policia ingleza cruza os braços, envergonhada da sua impotencia, diante da rebeldia d'esses infelizes que, com as forças que lhe dá o fanatismo, affrontam lodos os poderes da terra. Não os apavoram as trevas da morte por q'ie lá está a aurora da eternidade para lhas dissipar Que matcria ha ahi que possa vencer o espirito?
Os thogs vivem nos antros medonhos das feras, debaixo da atmosphera do vicio, do crime e da fome, e são alli retidos pela sua tenebrosa razão, que é ao mesmo tempo a sua senhora, e a sua escrava, a sua fyranna e a sua victima. Qual Nabuohodonosoros caidos da graça de Deus e da dignidade do homem, os thogs rojam como as ser pentes, voam como as aves de rapina, sibillam como as boas, formam matilhas como os cães.
O cholera e o thog nasceram na mesma terra e no mesmo anno. índia é a sua patria; 1818 a data do seu nascimento. Filhos da corrupção, a natureza fadou-os para identica missão. Vivem da morte. São pestes ambos. Ocholeraéa exhalação dos cadaveres putridos que derivaram pelas aguas do Ganges; o thog é a emanação pestilenta da liberdade e da independencia que se corromperam. São os mortos que se vingam.
O cholera correu a Europa toda ; despovoou cidades, desolou aldeias, e recolheu para a sua patria com as maldições do mundo. O thog não saiu ainda das suas selvas; alli espera o inimigo. O cholera é general e gigante como Napo leão. O thog é salteador e pequeno como Nanã.
E necessario acabar com os thogs, atacando-os na sua origem e evitando por todos os modos que elles cresçam na sociedade como o joio por entre o trigo, como a cicuta por entre os agriões.
Em vez de arrancar os laços das mãos dos thogs, trate o governo inglez de lhes desarmar a razão dissipando os erros que a entenebrecem. Ver claro é salvar-se.
Os thogs são tanto mais perigosos quanto lhes é facil fazer proselytos. Os vagabundos que dormem ao sereno da noite, e que pedem ao acaso o pão quotidiano ; os malvados que teem no coração um odio, e na intenção um attentado ; todas as paixões que ardem; todas as miserias que bramam : eis os thogs de todas as terras e de todos os tempos. Na índia juntam-se elles aos thogs-sacerdotes. Formam uma ordem.
Magnod, havia seis mezes que vagueava pelas selvas sertanejas de Goracpur, vestido de pelles e sustentando-se de fructas. As barbas densas e crescidas, e os cabellos longos e pretos que caíam desordenados sobre os hombros, velavam-lhe a face quasi toda e deixavam apenas ver os olhos, que brilhavam como dois carvões accesos. Ás vezes, quando os ultimos raios do sol doiravam os cerros altos e escalvados das montanhas, os pastores de Goracpur viam-no em pé sobre uma rocha, com os punhos cerrados, a fronte estendida, escuma na bocca, olhos afogueados, a longa juba fluctuando ao vento, bramir por entre os dentes cerrados o nome de Roberto, e depois arrancar com furor os cabellos e as barbas. O sangue começava então a gotejar-lhe do alto da cabeça, e a condensar-se nas faces.
Eram as lagrimas do desgraçado. Não tinha outras.
De noite, quando todos recolhem ás suas moradas e repoisam das amarguras do dia, Magnod ás vezes velava encostado ao tronco de uma arvore, muitissimas arquejava e gemia affligido por terriveis visões que o perseguiam... E que visões! Um racxá (demonio) branco como a neve devorava duas creanças; tres parias mais negros que a noite contemplavam aquella scena rindo com satanica alegria; ouviam-se os gemidos e soluços das victimas, entremeados com as risadas dos algozes. Aqui acabava a visão e Magnod despertava. As fontes batiam-lhe então violentas e desordenadas ; a respiração era rapida; copioso suor inundava-lhe o corpo aquecido por febre ardente; e o socego das selvas, quebrado a espaços pelos rugidos do tigre, parecia-lhe antes o silencio dos demonios que a paz do ceo. Levantava-se insensivelmente indignado contra tudo que dormia ; e os seus labios murmuravam : Abençoadas selvas que gemem commigo, abençoado tigre que vela como eu, abençoadas arvores que choram sobre mim as suas doces lagrimas de orvalho!
Uma d'essas manhãs que se seguiam ás noites crueis, Magnod sentiu-se desacoroçoado. Apagara-se-lhe na alma o ultimo clarão da esperança.
Tinha provado quantas dôres do espirito é possível padecer na vida, tinha invocado em seu auxilio todas as furias e demónios, mas sempre em vão, sempre debalde! Cinco longos mezes haviam volvido, e ainda nem sombra da vingança! Resignar-se na impotencia, padecer sem fim, eis o futuro que tinha diante de si. Viver sem esperança era impossivel. N'esta extremidade lembrou-lhe a morte, como aos encarcerados lembra o degredo. Era uma mudança. Com este pensamento subiu a um elevado pinaculo, que dominava profundo precipicio. Alli, curvando a cabeça sobre o peito, e fechando os olhos ao abysmoque tinha ante si, desceu a outro não menos fundo, qual é o coração. Pensou, reflectiu, luctou e venceu.
Viver? que importa a vida sem a vingança?
Contrahia-se o infeliz para se atirar ao precipicio, quando sentiu mão estranha;agarrar-lhe o braço.
-- Que me queres ? Quem és? perguntou Magnod perturbado.
-- Fazer-te uma proposta. Queres morrer, não é assim? Pois permitte que eu te mate com este laço. E um instantinho. Conseguirás o teu fim, e eu farei uma acção meritoria. Foi Bovami que me trouxe aqui.
Uma idéa passou então pelo espirito de Magnod.
-- Vejo que és thog, continuou Magnod. Podes dizer-me aonde está a tua communidade?
-- Que te importa a ti a minha communidade? O que queres é dar te a morte e para isso estou eu. Verás a minha destreza. Vamos.
-- Obrigado! Mas eu queria fazer-me thog antes de morrer.
-- Pois bem ! Apresentar- te-hei hoje mesmo á communidade, mas com uma condição : quando quizeres morrer has de preferir-me a todos os meus companheiros. Não sejas ingrato. Promettes?
-- Prometto.
Os dois deram as mãos e desceram.
VIII
A iniciação
Quando o brahamane lançou os olhos para o bosque deu com o seu Muphti, que ha cinco mezes o seguia. Mettia dó o pobre animal. Dedicação como a sua não a tivera nem esse cão dos Pandovos, tão celebrado no Mahabarat, e para o o qual o deus Indra não duvidara abrir as portas do ceo. Afagou-o o brahamane com caricias e festas, e lembrou-se dos tempos em que era feliz, em que tinha Deus... e esperança!
Sumiram-se os dois indios entre os rochedos, caminharam algum tempo e eil-os defronte de uma cabana. Cercava-a muralha de verdes e ramosas piteiras.
O silencio e a solidão do sitio mostravam a Magnod que estava perto de um esconderijo dos thogs. Assobiou o seu companheiro e e esperou. Não foi necessario mais.
-- Quem é? perguntou uma voz, emquanto a cabeça apparecia fora da estacada.
-- Eu! respondeu Ramac; (era este o nome do companheiro de Magnod.) -- Que pretende?
-- Falar ao gurú (sacerdote).
-- Elle foi para muito longe, retorquiu a mesma voz depois de alguma hesitação; póde estar de volta só á noite.
Ramac disse a Magnod que esperasse n'este mesmo logar, e desappareceu.
O brahamane assentou-se e adormeceu com a cabeça reclinada sobre a estacada. Ao seu lado enroscou-se o fiel Mnphti.
Seriam tres horas da tarde, quando um mancebo, que pelos modos e trajo não parecia thog, veiu acordar Magnod e disse que o seguisse.
Tomaram por sendas estreitas e tortuosas, caminharam longas horas por apertados carreiros, até que sairam n'um valle entre duas grandes montanhas, coberto de muito arvoredo e com copiosa agua, que se despenhava ahi ao pé em pequenas e numerosas cataractas. A um signal do mancebo saiu de dentro do bosque um homem. Vestia-se com toda a simplicidade dos botos (sacerdotes do bracmanismo) ; um veo amarello cobria lhe a cara, e do alto da cabeça descia até aos hombros guedelha negra como azeviche. Era o guru.
-- Queres ser thog? Perguntou o guru dirigindo-se para Magnod com toda a gravidade.
-- Sim; lhe respondeu o brahamane com firmeza.
-- Cumpre, continuou o gurgú com a bocca cheia de betle ; que sejas sincero. Tens diante de ti a deusa Bovami que não perdoa aos traidores.
-- Podeis confiar em mim, atalhou Magnod.
-- Pois bem! tomarás primeiro que tudo um banho, despirás esses fatos que trazes, para vestir os habitos brancos da ordem, e, assim purificado de todas as manchas, entrarás no templo da poderosa deusa Bovami.
Meia hora depois, ouviu-se um som similhante ao da busina, e mais de quarenta homens appareceram á roda de Magnod. O aspecto d'estes abutres, que tantas vezes se teriam banqueteado em cadaveres dos seus similhantes, nada tinha de feroz. A tranquillidade da consciencia reflectia- se-lhes nos semblantes serenos e placidos.
Eram demonios com as vestes candidas dos anjos. Uma congregação das irmãs da caridade não infundiria maior respeito. Apinhados em redor de Magnod, não tiravam os olhos d'elle. Não lhes escapava o menor gesto ou movimento do brahamane. Para disfarçar este exame minucioso, faziam repetidas perguntas. Tinham razão para desconfiar de todos e de tudo. Tantas vezes haviam sido sobresalteados pela policia, que cada folha que rangia, cada arvore que se baloiçava, cada confrade que se aproximava, lhes parecia o policeman. Entretanto chegou um thog, que pelo modo como foi recebido dos outros, logo se viu que era o principal d'elles.
O desconhecido, apenas deu com os olhos em Magnod, recuou soltando um grito.
A esta voz ergueram-se de salto os thogs como se fossem movidos por uma mola e todos ao mesmo tempo desenrolaram os seus laços. Era tremendo o espectaculo que apresentava o Valle n'aquelle subito transformar de mansas ovelhas em ferozes tigres.
-- Este homem, bradava o recemchegado, é brahamane. Serve os inglezes. Bem o conheço. Não pode ser thog.
-- Fôra inutil negar o que todos sabem, acudiu promptamente Magnod. Fui brahamane, é verdade, mas não o sou agora, que perdi a casta.
Abomino todos os inglezes, todos os sahebs (europeus) menos dois, de quem recebi o sal, o velho Davis e frei Francisco.
A firmeza e o tom seguro com que foram proferidas estas palavras abrandaram a tempestade.
-- Haveis de sujeitar-vos ás provas, bradaram todos.
-- Prompto; replicou o brahamane.
No lado direito do valle via-se uma immensa rocha preta. O seu interiorera todoescavado como a celebre gruta de Elefanta, e muitas outras que se encontram na índia, e são obra dos troglodytas.
Dizem os indios que foram os deuses que laboraram as entranhas das montanhas, e fizeram estes templos subterraneos debaixo de um systema uniforme e symbolico. A porta d'esta gruta era escondida por uma multidão prodigiosa de pequenas rochas, sobreposta de maneira que era impossivel descobril-a sem guia. O interior, sustentado por seis pilastras, era dividido em duas metades. Via-se no centro umcandeeiro de cobre, cuja luz fraca e baça, alumiando as cabeças hediondas de tigres, leões e boas, que cobriam os fustes e as bases das columnas, dava a este esconderijo as pecto sinistro e medonho. N'essa meia claridade branquejavam as alvas roupas de quarenta thogs.
Á roda da gruta ouvia-se o agoirento guincho do mocho, e dentro o infernal zumbido deenxâmes de insectos que volitavam incessantemente.
No fundo da gruta estava a capella e dentro d'esta a imagem da deusa. O sacerdote, assentado sobre uma pedra e com a cara voltada para a deusa, repetia em voz alia as orações mais agradaveis a Bovami. Magnod vestido de branco aguardava á porta da capella a resolução da sua pretenção. Findas as orações, o sacerdote convidou a confraria a aproximar-se da capella para esperar alli o signal da approvação ou reprovação que a deusa devia dar. Assim estiveram alguns minutos, silenciosose immoveis, até que se ouviu o guincho do mocho. A deusa approvava a iniciação de Magnod.
Depois, o guru, adiantando-se para o meio da gruta, recebeu das mãos do thog mais graduado o laço sagrado, examinou-lhe escrupulosamente as dimensões, e recitou uma curta oração. Magnod jurou sobre estas insignias ser fiel á deusa Bovami eácommunidade. Acabado o juramento, o sacerdote entrego» ao novo thog uma porção de sal e uma vara de ferro. Com isto deu-se por finda a ceremonia.
Magnod estava iniciado.
Lavravam ainda nos animos dos thngs suspeitas ácerca da fidelidade de Magnod. Longe estavam de soregal-os os protestos que lhe ouviam.
Era prudencia tentar novas provas. Houve deliberação na comrnunidade ácerca das cautelas que cabia tomar, e assentou -se que um thog chamado Guirâ seria chefe de Magdod e encarregado de examinar os seus movimentos. Abonava a escolha o rancor que os parias teem aos brabamanes e que era profundo em Guirâ.
Na primeira correria que fizeram juntos, Guirâ e Magnod, poz aquelle á bocca uma taça d'agua, cheia até trasbordar e depois offereceu-a a Magnod. Ao recebel-a, tremeu o braço do brahamane. Não estava preparado para tão dura provança. Era-lhe veneno aquelle innocente liquido, tocado dos labios do infame paria. Mil vezes o levou á bocca, e outras tantas o retirou.
Engolia era secco, e cuspinhava. Lembrou-se finalmente de Roberto, e emboccando a taça, sorveu-a até á ultima gota, como teria sorvido, se podesse, o sangue do seu inimigo.
Guirâ não se mostrou comtudo muito satisfeito com a prova. No seu juizo concertava novos projectos encaminhados a humilhar Magnod e a vingar-se n'elle. São tão raras estas occasiões!
Um dia em que Magnod estava só com o seu Muphti, deitado á sombra de uma frondosa figueira da índia, aspirando com avidez o ar vivificante das selvas, emquanto a sua alma se baloiçava em dolorosos pensamentos, Guirâ adiantou-se para elle com aspecto bastante carregado, e disse-lhe:
-- Ha seis mezes que és thog e ainda não adquiriste a necessaria destreza em atirar o laço, nem valor para encarar com os perigos... Se tu és um brahamane !
-- É falso! acudiu Magnod, a quem a injuria de Guirâ tinha ferido no rosto como o golpe de mão aberta. Sou tão destro como o mais destro dos vossos thogs. Estou prompto a provar-vos a minha destreza, proseguiu elle lelevantando-se e desenrolando o laço.
-- Pois bem! Façamos uma experiencia, replicou Guirâ.
Depois, lançando os olhos em roda como quem procura alguma coisa, disse detendo-os sobre Muphti.
-- É verdade! Estrangula o teu cão.
-- Meu cão! Não foi este o meu juramento.
O brahamane abafava de furia.
-- Ordeno-o eu.
-- Pois eu não obedeço.
-- Recusas? Vê lá o que fazes... Ámanhã podes estar nas mãos da policia.
Magnod caiu depressa em si. Inclinou a cabeça, como se temesse de ter fallado de mais, e accrescentou com simulada resignação :
-- Senhor! Estou prompto; peço-vos que...
-- Vamos a isto! -- interrompeu Guirâ.
Muphti, enroscado sobre uma pedra, dormia somno tranquillo. Que bem arredado estava do que lhe aconteceu! N'um triz Magnod passou-lhe o laço á roda do collo, e depois voltou-se para Guirâ. Pedia-lhe piedade, elle.
-- Então! bradou o cruel chefe batendo o pé.
Magnod puxou o laço, e caiu desmaiado para o lado.
Muphti estava estrangulado.
-- Bravo! excellente ! -- clamava Guirâ, estorcendo-se entre risadas.
Magnod quando voltou a si e deu com os olhos no corpo do seu Muphti, exclamou, apertando com ambas as mãos a fronte :
-- Sou bem desgraçado!
Duas lagrimas lhe correram pelas faces. Eram como duas gottas d'agua no sahara, que está estuando seculos debaixo do sol ardente da Africa.
IX
Os tres irmãos
Em 15 de dezembro de 18... chegou a Londres James Smith, ex-magistrado de Oude, com os dois orphãos Thomaz e Emilia. Levou-o logo, segundo as instrucções que tinha de frei Francisco, para a casa de um irlandez chamado Hartman, onde ficava Helena. A presença dos dois indiosinhos não devia causar espanto a Hartman, que já havia sido prevenido d'esta visita com bastante anticipação pelo pae de Helena. Recebeu-os e a James no gabinete com muito agrado e patriarchal affecto.
Hartman parecia ter vivido mais de sessenta annos. Era alto, magro, e de cara oval. A melancolia estendia-lhe um veo sobre a fronte. Juntava elle a bom juizo grande uso do mundo. Desgraçados azares o trouxeram á profissão de que fazia vida. Sua mulher, gorda, rechonchuda e pequena, de cabellos loiros, de nariz vermelho como um tomate e de bochechas redondas, tinha o aspecto de uma taberneira, e todas as qualidades de uma Xantippe.
Era n'ella perfeita a harmonia do moral como physico. Apenas deitou a sua luneta e mediu de alto a baixo os dois pequenos que estavam sentados em um dos angulos do gabinete, disparou-lhes na cara estrepitosa risada.
-- Ah! Ah ! Que figuras! Querem ver que se metteu na cabeça a esse doido do Roberto civilisar os indios? Quanto promette elle pagar por estes dois creoulos?, perguntou ella voltando-se para o marido e sem reparar em Smith, que ainda não se tinha retirado.
E taes olhos poz nas creanças que as acanhou.
-- O sr. Smith que volta da índia, disse o marido apresentando-o a sua mulher.
-- Peço desculpa, continuou ella ; não tinha reparado em vós. Estes meninos devem ser filhos de gente muito rica... de algum nababo talvez...
-- Não sei, minha senhora, respondeu Smith um pouco enfadado dos motejos da mulher de Hartman. Foi um veneravel sacerdote que m'os confiou e pediu a Roberto para os ter na companhia de Helena.
Contrariada com esta resposta, ateimosa da mulher fez novas tentativas para tirar da bocca de Smith o segredo que elle queria occulíar. Era demasiado esperta para acreditar que o ex-magistrado ignorasse quem eram os paes dos dois pupillos. Mas Smith procurou com arte evitar as impertinentes perguntas da mulher de Hartman.
Rosa ralhou devéras com o marido, quando soube que as mezadas dos orphãos haviam de ser eguaes ás de Helena.
-- Pois que! dizia ella abrazada em colera; só seis libras por mez para domesticar estes bichos de matto, que falam uma lingua que nem o diabo entende ! Isto é um ovo por um real.
-- Socega-te, minha boa Rosa, peço-to eu; tem dó dos infelizes; educando-os, nós fazemos também uma obra de caridade. Emquanto elles não falarem inglez, eu serei seu interprete.
N'isto entrou uma creança loira, e linda como o sol. Era Helena. Hartman apresentou-lhe os dois orphãos dizendo :
-- Minha filha, aqui estão teus irmãos.
Helena deu um passo para traz.
-- Dá-lhes um beijo, continuou Hartman baixinho, impellindo-a para elles.
Helena toda corada deu um beijo em Emilia, e outro em Thomaz. Os dois indiosinhos voltaram a cara para o lado, e trataram logo de limpar cóm a manga do vestido o beijo de Helena. Não sabiam o que aquillo queria dizer.
Rosa deu uma risada tão estrondosa que Helena desatou a chorar.
-- Ah! Rosa! exclamou Hartman com impaciencia. Quando perderás tu esse gesto chasqueador que desmente da tua edade?
Emilia tinha cinco annos como Helena, e Thomaz pouco mais. Helena, com a superioridade que lhe conferia a sua antiguidade na casa, tomou-os logo debaixo da sua protecção e dividiu com elles as suas bonecas. Helena não falava o bingalí nem os dois orphãos sabiam o inglez, mas entendiam-se como os passaros dos bosques.
Privados de todos os parentes, estes tres meninos, que a desgraça tinha aproximado, encheram-se de sentimentos os mais ternos. A harmonia dos gostos e das indoles os tornaram mais irmãos do que os houvera feito a natureza. Cingira-lhes os animos o mesmo assomo de sympathia.
Os primeiros nomes que Thomaz e Emilia aprenderam em inglez foram de irmão e irmã.
Hartman estava encantado da indole dos seus pupillos. Eram tão doceis, tão submissos e tão applicados ao estudo, que rarissima vez tinha a fazer-lhes alguma advertencia. E coisa singular, o castigo e o premio, quando os mereciam, tinha de repartil-os sempre por todos tres. Eram irmãos em tudo. Roberto e frei Francisco folgavam do muito que promettiam as tres creanças, e afoitas esperanças punham no futuro d'ellas.
Helena era um anjo de bondade. Possuia, com o semblante mais vivo e sympathico, a alma mais nobre e candida. Rasgos da sua bondade contavam-se aos mil, e sobre todos um que fizera arrancar lagrimas á propria Rosa, o que não era menor milagre do que arrancal-as ás pedras.
A mulher de Hartman padecia molestia de pelle, que, quando o calor era intenso, lhe invadia o nariz e o tingia de vermelho por tal modo que ella se via obrigada a usar de pós de arroz. Dm dia que estava no seu toucador entretida n'este trabalho, entrou Helena mansamentesobreosbicos dos pés, e escondeu-se atraz de uma cadeira, reparando attentamente no que fazia Rosa. Saltou de prazer com a descoberta e correu a juntar-se aos irmãos. Tres dias depois fechou se no quarto com Emilia, fel-a assentar n'uma cadeira, e começou a empoar-lhe a cara com os pós que tinha tirado do toucador de Rosa, exclamando repetidas vezes com verdadeiro jubilo:
-- Oh! minha irmã! Não fazes idéa como estás bonita !
Finda a obra, correu a buscar um espelho e mostrou-o a Emilia, que daria tudo para se parecer com a irmã. N'isto entrou no quarto Anastacia, a criada de Rosa. Arrancou immediatamente a caixa dos pós das mãos da filha de Roberto e passou um lenço pela cara branqueada de Emilia. Helena mal que viu a sua irmã tão escura como d'antes, lançou-se-lhe ao pescoço, e desfizeram-se ambas em pranto. Anastacia destraira com o seu sopro a obra fragil e pequenada um coração grande.
Com os annos, as qualidades d'estas creanças foram-se desinvolvendo, e o seu mutuo amor roborando-se cada vez mais. Hartman queria-lhes como a seus filhos, e consolava-as quando andavam desgostosas de Rosa. Havia differença de opiniões entre o marido e a mulher. Rosa encarrava a educação das creanças como uma pura industria. Queria ganhar muito e trabalhar pouco.
Hartman punha acima da industria a missão de professor, e o amor que já tinha aos seus pupillos. Dava logar a divergencia a altercações frequentes e muito debatidas.
Assim chegou a edade de estudos mais serios. Thomaz teve de frequentar a escola de latim, que lhe ficava mesmo ao pé de casa. As horas que devia passar longe das suas irmãs pareciam-lhe seculos. Quando eram tres horas da tarde, Helena e Emilia iam esperal-o á porta com os braços abertos e os corações abalados de saudade.
É preciso que o leitor trave conhecimento com a criada de Rosa. Anastácia, era este o seu nome, pertencia á secção das solteironas, que, depois de terem combatido muitos annos nas fileiras das aspirantes ao casamento, depois de terem perdido muitas batalhas, recolhem-se em uma cozinha para alli chorarem o seu infortunio e tirarem uma impotente vingança, declarando guerra a todos e a tudo. São insupportaveis esses Carlos quintos de saias, que resmoneam sempre, e falam mal de tudo. Os francezes chamam-lhe com muita razão chats du grenier. Não admira pois que Anastacia fosse o desmancha prazeres das pobres creanças. Foi ella quem lhes revelou que não eram irmãos, e desfez uma convicção que n'ellas era profunda. Foi temeridade e loucura de Anastacia romper laços tão sagrados e já tão estreitos.
Para resistirem a uma nova que lhes despedaçava os corações, abraçaram-se as tres creanças, diremos antes, ennovelaram-se, e assim, juntando as suas boccas, unindo as frontes na mesma aureola, entrelaçando os braços, formando um só corpo como os pintos que se refugiam debaixo das azas frementes da mãe, quando se vêem ameaçados pelo terrivel milhafre, juraram diante de Deus que haviam de ser sempre irmãos. O jura mento foi sellado com as lagrimas, que são a agua benta que santifica as effusSes do coração.
Helena não era uma menina muito perspicaz, mas o seu coração nobre inspirava-lhe finezas que pareciam filhas de madura reflexão. Ha nos pensamentos da creança o que quer que é de extraordinario e de superior á sua razão. Inspira-lh'os o ceo. Toda a creança é um anjo. Helena tinha o instincto do sublime, como acontece a todas as creaturas privilegiadas. Logo que soube que Thomaz e Emilia não eram seus irmãos, não sabia como eleval-ose procurava por todos os meios cobrir com o seu coração a distancia que d'elles a separava, distancia que boccas alheias annunciavam e que ella na sua innocencia nunca sentira.
Os philosophos que declaram que um homem é egual a outro como um angulo recto é egual a outro angulo recto ; os publicistas que ensinam que todos os cidadãos são eguaes; que aprendam com esta innocente creança a verdade que ella proclama, ou antes que Deus ensinapelabocca d'ella, que a egualdade é uma realidade quando é um sentimento do coração. De que serve a egualdade theorica e legal quando ella não penetra até aos costumes? quando é necessario um sacrificio para a observar?
X
As flores fazem-se fructos
Transponhamos alguns annos e veremos adolescentes os que até aqui temos visto infantes.
Thomaz chegou aos dezesete annos. Tinha completado os preparatorios e estava para entrar na escola do commercio. Desferidas com vantagem, as proporções do seu corpo, davam-lhe garbo e altivez. A sua côr bronzeada, as suas feições regulares, os seus contornos graciosos e delicados, os seus olhos pretos e vivos, o seu rosto oval faziam lembrar o mato do typo arabe com o indiano. Distinguira-se em todas as escolas, pela sua applicação e grande talento. Era geral a estima de que gozava.
Dois sentimentos haviam formado o coração de Thomaz : o amor e a gratidão. Esse inspirara-lh'o Helena; esta devia-a a Roberto. Não percebia entre estes dois sentimentos a menor contradicção, nem esta lhe parecia possivel. Eram o seu protector e a sua irmã adoptiva as duas divindades que elle adorava no santuario do seu coração com egual veneração e fanatismo. Quando ás vezes lhe parecia que o seu culto não era egual, que pendia mais para uma que para outra, pedia perdão d'esta involuntaria differença.
Dissereis que este mancebo reunia a rigidez de Bruto ao coração da pomba. Todos os actos da sua vida, todos os seus pensamentos, todos os seus desejos eram repassados da luz e calor d'esses dois sentimentos, com que se compozera a sua indole e se cunhara a feição da sua alma.
Fóra Hartman que lançara no coração delicado e absorvente do mancebo os germens da gratidão, que caidos em boa terra não tardaram a ser frondosos arbustos.
Emilia não era nem podia ser uma belleza; mas possuia a gentileza que vale muito mais, Uma graça que escapa ao pincel e resiste á penna corrigia a belleza classica d'aquelle rosto, animava a rectitude glacial d'aquelle perfil, e illuminava o trigueiro d'aquella côr. Os seus cabeilos pretos desciam em suaves ondulações e brincavam pelos hombros. Nos seus olhos negros luzia um coração oriental -- Nigra sed formosa -- E a tudo isto juntava maneiras tão distinctas, intelligencia tão clara, espirito tão vivo, que todos gostavam mais de conversar com Emilia do que com Helena.
E que direi de Helena? O limpido azul dos seus grandes olhos, no qual parecia que o ceo reflectia como cm espelho, o seu nariz delicado o direito, o aveludado e frescura da sua tez, a sua bocca pequena, onde resplendiam duas ordens de perolas, o seu lindo cabello loiro-claro levemente ondeado, a sua barba torneada, a sua estatura alia e esbelta, realisavam o ideal mais perfeito da belleza. Não tinhao espirito de Emilia, mas possuia talvez mais ingenuidade nas suas maneiras e mais affabilidade no seu trato.
Os caracteres d'estas duas meninas tinham entre si grandes similhanças e algumas differenças. Na pellc transparente de Helena, reflectia o seu coração. Não podia ter um segredo por que o purpurear fugitivo, assomando-lhe ás faces, o denunciaria logo. A sua pelle era a epiderme da sua alma. Rescendia em virtudes como as flores em perfumes. Eram-lhe naturaes. Se é licito crer na existencia de anjos na terra, Helena era de certo um.
Emilia podia ter segredos porque o trigueiro da sua côr lhes daria abrigo; podia disfarçar por que a sua tez era como o sari que encobre os lindos olhos das houris, ou como o veo impenetravel da Isis. Fiel, leal e grata, era-lhe a virtude raciocinio, sacrificio ás vezes, lucta quasi sempre. Sem deixar de ser uma mulher de sentimento, era-o com tudo menos que do dever.
Tinha este caracter mais de varonil que o de Helena.
Rosa e Anastacia, com a preferencia que davam a Helena e com os louvores que lhe tributavam, tinham despertado no coração da indiana os instinctos altivos da sua raça, e d'ahi o desejo de vencer e triumphar. Emilia, se lesse o que se passava no fundo do seu coração, teria conhecido que tinha pena, que Helena fosse tão bella. Essa belleza, desejava-a a indiana tanto mais quanto menos lhe era possivel obtel-a.
Nos seus rarissimos arrufos dizia ella a Helena :
-- Tu és bella!
E a filha de Roberto desatava a chorar.
Thomaz e Helena conheciam-se bem e ambos se estimavam. Nenhum o dissera ao outro. Thomaz leu-o nos olhos limpidos de Helena ; esta adivinhou-o. Não tinha este amor settas nem fogo.
Era a fragrancia de duas flores que abriam de baixo do mesmo ceo'; era o reflexo da alegria, da innocencia, e da ventura de dois corações.
A felicidade corre rapida como o navio que fende as aguas e a aguia que corta o espaço. No seu calendario os seculos são instantes. No ceo da ventura d'estes tres irmãos foram raras as nuvens. A'sua juventude era ainda a continuação da sua infancia, descuidosa do futuro e descartada do presente. A innocencia é a convivencia dos anjos da terra com os anjos do ceo. As bençãos de Deus desciam sobre esta trindade, que o amor fundira n'uma unidade angelica e sagrada. Por muito felizes se dariam se lhes podesse ser eterna a infancia.
Os domingos, os unicos dias que Thomaz podia passar agora em companhia das suas irmãs, eram de verdadeira festa; cada qual contava o que tinha sentido durante a semana, e depositava no altar sagrado da fraternidade os pensamentos que lhe brotavam na alma como as primeiras flores da primavera. Outro dia tambem de festa era aquelle em que recebiam as cartas de Roberto e de frei Francisco e nos animos lhes lavrava a anciã de responder. Liam-nas em pleno consistorio e em pleno consistorio lhes respondiam. Havia infelizmente bastante tempo que não tinham este prazer. Nenhumas cartas lhes trouxera a ultima mala da India.
XI
Quantum mutatus ab illo!
Era o mez de maio. Os campos abrazavam com os ardores do sol dos tropicos; as folhas seccas rangiam; as palmas do coqueiro trocavam o seu verde festival pelo amarello, queé nos vegetaes a côr dos mortos; o veado corria com a lingua pendente, e arquejando de cançaço para a fonte amiga; as aves volteavam á roda dos seus ninhos; o homem abafava de calor.
Se fôrdes, caro leitor, n'esta estação para a índia, encontrareis pelas praças e estradas homens semi-nus deitados á sombra das arvores e gozando do dolce far mente. São os hamales ou boiãs que transportam os homens e as coisas.
Acordae-os, se precisaes d'elles, e perguntae-lhes se querem transportar a vossa bagagem ; assentados mas ainda carregados de somno, com as palpebras semi-abertas e cabeceando, responder-vos-hão.
-- Não pode ser.
Se lhes offereceis dobrado salario, deitar-se-hão immediatamente; se triplicaes, adormecerão: se quadruplicaes, somno profundo!
Se não tiverdes um sipai da policia que faça mover esses indolentes que o calor entorpece, ide-vos e tende a paciencia de carregar com a vossa bagagem. São as consequencias do caor.
Como o oasis no deserto, assim creou Deus o arccal para abrigo contra as ardencias e actividades do sol da índia. O arecal tem a magestade do templo e a frescura do jardim. Os troncos brancosecylindricos dasarequeiras tem quarenta a cincoenta pés de comprimento; as suas copas verdes e unidas formam um toldo, do qual pendem amarellos e grandes cachos dcareca, e que cobre de frescas sombras um immenso espaço. O solo é coberto de um tapete de relva fôfo e matizado de flores e de serpes de crystal. Nos troncos alvissimos da sarequeiras se enleia a pimenteira com os seus ramos verdes e sarmentosos, que depois cruzando-se no ar formam uma rede continua. Por entre os vãos d'estas mil columnas vê-se ao longe o sol dos tropicos abrazando com a sua chamma extensas planicies, d'onde saem como fumo nuvens de pó. E ardente meiodia lá fora; aqui começa apenas a manhã ; aqui cantam sempre os gallos ; aqui são perennes as perolas d'orvalho ; aqui nunca murcham as flores nem seccam as fontes ; aqui é a guarida das aves contra o sol que as queima; aqui encontram brandura as feras; aqui repoisa o pastor da fadiga do dia; aqui exclama o homem : cest le site de mes rêvcs; fy reviendrai tons les jours.
Com o ligeiro impulso da viração treme todo este edificio; agita-se toda esta massa de folhas; suspiram todas estas arvores; chove flores todo este tecto ; e desperta o pastor no seu macio teito de relva, que a natureza, qual mãe carinhosa, lhe embala ao doce sopro d'aragem e ao suave canto das aves.
Na mais espaçosa varanda do bangaló de Fizabad, estava o ex-estoico Roberto baloiçando-se na sua rede e fumando o tikâ. que assentava sobre uma linda jarra de Japão, onde o fumo vinha banhar-se em agua de rosas, antes de correr pelo tubo coberto de seda, e ir sair por um riquissimo pipo de ambar de Roule. Por cima da rede desfraldavam-se os amplos folhos do pannká agitado por dois criados. Á cabeceira via-se uma estatua de admiravel execução, sustentando nas mãos uma coroa d'onde caía um cortinado cor de rosa. Ao seu lado direito estava o botler, tendo diante de si uma mesa de ebano com uma garrafa de cognac, uma bilha de barro da China e copos.
Á esquerda, além do criado que atiçava de quando em quando a braza do ukâ, estava em pé um brahamane alto, vestido de branco, cantando o resgate da linda Sita. Nos quatro angulos da varanda estavam riquissimos vasos de marmore de Paros, cheios das mais bellas flores de jardim, e ardiam os pivetes de sandalo, cujo fumo ia involver em veos alvacentos e perfumados o novo Epicuro. No centro, um repuxo vomitava perolas em bacia de marmore branco, guarnecida de uma bordadura de violetas. A varanda era pintada de verde claro em todas as portas e grades.
O nosso nababo inglez tinha a cabeça apoiada sobre uma almofada de damasco amarello; vestia largas calças de setim verde, camisa de linho por cima de uma camisola de cór de rosa ; trazia finas meias de seda, e sapatos de veludo escarlate bordado de oiro.
Ao som da voz do brahamane e ás oscillações suaves da rede ia Roberto adormecendo, quando foi despertado pelo rangido de uma porta que se abria. Entrou o doutor Carter. No rosto do medico estava pintada a mais viva e afflictiva inquietação. Grave motivo devia elle ter para perturbar a voluptuosa embriaguez de Roberto. Vendo-o, o sobrinho de Davis rompeu n'uma exclamação:
-- Doutor! Que temos?
-- O sr. Davis está muito mal. Sobreveiu-lhe um novo ataque de paralysia depois de seis annos. Este deve ser fatal por que é o terceiro.
Nenhumas esperanças tenho. Está a expirar.
Aquelle golpe receava-o Roberto todos os dias, mas nem por isso deixou de lhe fazer grande sensação. O sobrinho de Davis mandou immediatamente chamar frei Francisco, e voltando-se para o doutor, disse-lhe :
-- Estou certo de que o doutor ha de fazer o que lhe fôr possivel para salvar o seu amigo.
Carter apertou a mão de Roberto e saiu precipitadamente.
O quarto de Davis era sombrio como o calabouço, e triste como o tumulo. O silencio era alli apenas interrompido pela respiração estertorosa do moribundo. Á luz mortiça de um candeeiro alvejavam as roupas brancas do leito, que se agitavam como as ondas encrespadas pela brisa. A figura do doutor, com a fronte reclinada sobre o travesseiro, destacava do fundo d'este quadro aterrador.
Entrou frei Francisco com o ciborio, e atraz o sachristão com a lanterna e aambula. Ajoelharam todos diante de Deus, que alli appareciasó, mas acompanhado da sua propria magestade. Depois de se assegurar de que o moribundo não estava em estado de se confessar, frei Francisco subministrou-lhe a extrema-unção, e, em voz baixa e com os olhos elevados para o ceo, rezou uma oração fervorosa pela alma que estava prestes a desprender-se da terra e a voar para a eternidade, que é o seio de Deus.
Ás seis horas da tarde terminou Davis o seu dormitar de doze annos.
Morreu.
XII
O testamento
O homem põe e Deus dispõe.
No quarto de Davis, oito dias depois da sua morte, ás dez horas da manhã estavam reunidos o novo magistrado de Oude e os seus empregados.
Momentos depois appareceu Roberto vestido de lucto. Acompanhava-o frei Francisco. Á sua chegada ergueu-se o magistrado, que estava assentado ao pé de uma papeleira, e entregando-lhe um molho de chaves disse:
-- Peço-vos que abraes ás gavetas d'esta papeleira por que preciso saber as ultimas disposições do vosso tio.
Roberto, fazendo com a cabeça um leve comprimento aos circumstantes, abriu a primeira gaveta da secretaria, tirou uma folha de papel, e entregou ao magistrado. Um dos empregados presentes começou a lêl-a em voz alta. Rezava assim:
«Na gaveta 2 estão as contas dos rendeiros, as correspondencias dos agentes, as contas com as casas commerciaes e diversos documentos até o anno de 1840 em que sahèb adoeceu.»
«Na gaveta 3: as apolices do banco de Bengala, os titulos das companhias e proximamente tres mil libras em dinheiro e um testamento feito a favor de Ricardo Davis.»
«Na gaveta 4: um cofre fechado contendo sete pedras preciosas, sendo uma do valor de dez «mil libras e um testamento a favor de Roberto «Davis.»
Assignado. -- Magnod.»
Quando Roberto ouviu este nome sentiu um frio percorrer-lhe todo o corpo. O coração tem ás vezes instinctos admiraveis !
Abriu-se a segunda gaveta e acharam-se to dos os objectos mencionados na relação.
Abriu-se a terceira. O juiz rompendo os sellos do testamento começou a lêl-o para os que o rodeavam. Era instituido herdeiro universal Ricardo Davis, filho do irmão mais velho do testador, com a condição de casar com a filha de Roberto. Quando esta não quizesse consentir no casamento, os bens cairiam todos a Ricardo. Além d'estas clausulas, Ricardo era obrigado a pagar a seu primo Roberto uma tença de quinze libras por mez. Os outros artigos tratavam de legados pios.
-- Este não é decerto o ultimo testamento do senhor Davis; disse o juiz voltando-se para Roberto.
-- Foi revogado, atalhou este immediatàmente, no anno em que eu cheguei á índia. O outro tem muitas mais clausulas, como logo vereis.
-- Vamos á quarta gaveta, disse o juiz, aproximando-se, com os seus empregados, da papeleira.
Roberto metteu a chave na fechadura e puxou com toda a força. A gaveta saiu sem resistencia. Estava completamente vazia !
Como sacudidos por uma corrente electrica, todos deram um passo para traz. Era extrema a sua turbação. Roberto parecia ter perdido o sentimento da vida. No meio das negras idéas que o cercaram apparecia-lhe o nome de Magnod flammejando como o Thecel Manes Phares nas paredes de Balthasar.
-- Frei Francisco exclamou:
-- Louvado seja Deus!
XII
O veneravel frei Francisco de Santa Catharina
Descendente de uma antiga familia do Algarve, frei Francisco vestira em verdes annos o habito de frade, não para cobrir e dissimular com elle uma abominavel vida passada, como a campa esconde os cadaveres, mas para se abrigar debaixo de uma armadura, que defendesse a sua alma do contacto impuro do mundo. Moço, rico e gentil, fugira para as solidões do claustro, involvido no burel, que é muitas vezes amortalha do corpo e a gala do espirito; a noite da vida e a aurora da eternidade.
Para os verdadeiramente vocados, para os escolhidos do Senhor, o convento é a sepultura de uma vida e o berço de outra ; o principio de uma existencia e o fim de outra ; a soledade dos homens e a immensa companhia de Deus ; o somno do corpo e a vigilia da alma ; o nada das grandezas humanas e o tudo das delicias espirituaes.
Ao ver esses infelizes, silenciosos como os cadaveres, e pregados pelos joelhos ás lageas frias do templo como os anjos curvados em roda do tumulo, esses espectros da vida com os olhos sempre fitos no ceo, com as mãos estendidas e com os rostos radiantes de doce alegria, dir-se-hia que as sublimes miragens da eternidade os haviam fascinado, que o extasi da esperança os tinha petrificado, que todos esses desgraçados se tinham submergido n'essa lethargia para emergirem d'ella, á voz da trombeta, no seio immenso de Deus.
É a fé que os veste d'essas mortalhas, -- é a fé que os fecha n'essas sepulturas, dizendo-lhes, como o sacerdote dizia algum dia ao leproso, cobrindo de terra o seu leito : = Sis mortuus mundo vivens iterum Deo =.
Honra aos que sabem esperar!
Gloria aos martyres do convento !
Para os não vocados, e é d'estes o maior numero, o convento é uma industria sem a decima, o lucro sem o trabalho, o vicio sem a vergonha, o crime sem a deshonra, a veneração sem a virtude, a alma sem a fé, o futuro sem a esperança, o osculo de Judas, a hypocrisia do phariseu, as pedras de escandalo cobertas do amiculo da virtude.
Vergonha aos traidores !
Muitos são chamados e poucos os eleitos. No mundo abundam os maus e são raros os bons.
A liberdade deve ser regra; a clausura excepção.
O direito do convento é o paraizo, e, seu avesso o inferno. Cuidado com as instituições que teem duas faces!
Os conventos, as ordens, a egreja emfim, embalou a civilisação moderna na sua infancia.
Protegeu-a e defendeu-a. O estado foi por muito tempo servo da egreja. Hoje está adulto e pede a sua carta de emancipação. Deve tel-a. Querer obrigal-o a tornar a vestir os trajes que trouxera na infancia, é absurdo. Peça-lhe a egreja veneração e independencia ; tel-as-ha. Não peça mais: pode ser desobedecida.
Voltemos ao nosso frei Francisco. Escusado é dizer que era dos frades bons. Em verdes annos passara para Goa, onde a ordem dos eremitas de Santo Agostinho possuia um grandioso convento, e o collegio chamado de Populo.
Tinha quarenta e sete annos quando as ordens religiosas foram extinctas, e as portas d'aquelles tumulos chamados conventos se descerraram para o mundo. Frei Francisco não quiz acceitar a liberdade que lhe davam, por que nunca ninguem lh'a arrancara. Fôra espontanea a sua escravidão. Tinham acabado os conventos ; mas para elle restavam ainda as missões, os eremiterios, os sacrificios voluntarios e sem apparato. FreiFrancisco pediu que lhe trocassem a vida pacifica e os ocios fartos do convento pelas pobrezas, perigos, trabalhos, fomes, sêdes e martyrios do cargo de missionario, onde podesse campear o forte, o fervoroso e o perfeito do seu espirito.
Fez-se-lhe a vontade. O antigo frade foi nomeado pelo arcebispo de Goa, missionario do norte da India. Frei Francisco deixou a sua cella sem que dos seus labios escapasse um queixume, um gemido só. 0. convento considerava-o elle como uma fórma. Extinguindo-o, os homens não haviam proscripto a religião, nem condemnado o sacrificio. Que importa o convento ou o ermo, se Deus está em toda a parte !
As unicas coisas que frei Francisco trouxe do seu convento foram um crucifixo, uma biblia, um breviario e uma gaiola com dois canarios.
Depois de correr muitas terras da India, frei Francisco veiu para Oude a instancias de Davis e de mais alguns catholicos, que estavam sem pastor. A sua habitação era uma barraca. Nem mais era necessario para este divino Diogenes, que vivia para padecer por amor de Deus. A mobilia consistia no indispensavel: um leito, duas cadeiras e uma mesa.O serviço da mesa erauma especie de museu que a caridade tinha ido compondo em casa do veneravel sacerdote; a livraria não passava do breviario e da biblia, que é o livro de todos os livros, de todos os tempos, e de todas as intelligencias, por que o é da eternidade. A familia de frei Francisco compunha-se de um criado, do sachristão que vinha fazer-lhe companhia de noite, e, digamos com a devida permissão do leitor, de dois canarios. Depois que saira de Goa, frei Francisco nunca tinha deixado de ter dois canarios. Quando morria algum, era logo substituido; e assim os nomes de Sabaio e Typû, que tiveram os primeiros canarios, tornaram se perpetuos como acontecia antigamente aos appellidos de certas familias que tinham vinculos. Era sempre ao canto harmonioso destes passarinhos que o bom do padre acordava do seu tranquillosomno; eram elles que lhe annunciavam os primeiros raios do sol; eram elles que o despertavam da sua curta sesta, indo poisar-lhe nos hombros como a pomba de Mahomet; eram elles que, apenas o avistavam, corriam a recebei- o á porta, como os filhos saudosos correm a abraçar o pae, que volta depois de longa ausencia; eram elles que oentretinham, esvoaçando pelo quarto e cantando. Frei Francisco era tão amiguinho d'elles que nunca se esquecia de os afagar, que ás vezes com elles se arrufava, eaté com elles chorava. Ohomem precisa de amor para viver. E oamor tem as suas sublimidades e as suas pieguices ; o seu lado nobre e o seu lado ridiculo. Saibam respeitar aquelle, e desculpem este.
O amor é menino, e os que amam são creanças.
Frei Francisco recebia annualmente da fazenda de Goa trinta libras, como os credores recebem de uma massa fallida a sua escassa quota.
Juntava a isto mais vinte libras que lhe pagava a casa Davis para uma missa e sermão no dia 3 de dezembro. O rebanho que pastoreava não excedia a trezentas ovelhas, e limitados eram os proventos que d'ahi lhe podiam vir. Eis ahi o seu orçamento da receita; o da despeza nunca o excedia, porque, como todos os homens de principios rigidos, frei Francisco temia-se das dividas. Aquillo a que elle chamava o seu jantar nunca passava de uma parca refeição. A despeza que mais lhe custava eram as tres horas que tinha de pagar por artno ao vizinho que lhe alugava o cavallo. Tinha já tentado por vezes supprimil-a, mas sempre em vão ; nem a sua edade adiantada em annos, nem as suas poucas forças eram para grandes estafas. Sujeitou-se finalmente a esta despeza não pelo amor que tivesse á vida, mas pela necessidade que tinha de viver para o bem do seu innocente rebanho, que juntara com a voz e ensinava com a palavra e o exemplo.
A vida de frei Francisco corria assim singela e monotona como no convento. Todos os dias ás sete horas dizia a missa na egreja de Santo Xavier; ás tres lia a biblia e rezava; e ás seis fazia uma visita á familia Davis. O resto do tempo empregava-o no ensino da doutrina, enas consolações e soccorros aos freguezes.
Pelas cinco horas da tarde, quando o sol vinha doirar com os seus ultimos raios os cumes das montanhas, saía frei Francisco vestido de sotaina preta, abordoado a uma canna da India, arrastando com os pés as grosseiras sandalias e tremendo-lhe na cabeça o chapeo de tres ventos. Quando os trabalhadores, ao voltar do campo, topavam com as barbas brancas de frei Francisco, fluctuando sobre a sotaina como as aguas da cascata que se destorcem em milhões de fios pela rocha preta ; quando viam os olhos d'elle sumidos pela vigilia, as faces sulcadas pelas lagrimas, o corpo magro e curvado pelo martyrio, descobriam-se e paravam. O parocho levava então a mão tremula ao chapeo e saudava-os murmurando :
-- Boas tardes, meus filhos.
Os proprios pagãos veneravam a frei Francisco, e attendiam com recolhimento ás praticas que fazia na egreja de Santo Xavier, as quaes eram tão suaves e intimas que pareciam antes paginas da biblia repetidas pelas boccas dos apostolos. Muitas vezes a palavra morria-lhe nos labios, e do peito saía um gemido. O auditorio estremecia.
Frei Francisco era liberal. Aprendera a sel-o no evangelho. Para elle não havia classes nem condições, escravos nem senhores, parias nem rajuputros ; todos eram filhos do mesmo Deus. A sua politica era o christianismo. Nascido durante o regimen absoluto e educado n'uma casa onde não havia senão uma pessoa livre, que era a ordem, frei Francisco rompera as ligações com as velhas instituições e idéas, como a borboleta de pois de adulta sacode as membranas que a prendem á chrysalida impura.
Não approvava frei Francisco o regime inglez na India, mas preferia-o ao despotismo dos nababos e dos rajás. Applaudia os melhoramentos materiaes que se iam introduzindo na presidencia de Bengala. São tambem um meio de civilisar.
Com Magnod, que o tratava como amigo, frei Francisco discutia largamente as castas e a es cravidão. Os Sheridans e os Wilberforces falariam mais eloquentemente; mas nunca com maior indignação nem com maior sinceridade do que falava o humilde padre de Fizabad ; que vale mais a convicção do que guapos requintes de eloquencia .
-- Em quanto, dizia elle, não destruirem a unidade da raça humana, não posso admittir nem a escravidão nem as castas.
Tinha a intuição de uma verdade que hoje está levada até á evidencia.
Na questão do padroado da India, as suas opi niões eram tão claras como firmes. Sustentava o padroado com todas as forças do seu patriotismo; achava-o incontestavel, assim pelo direito cano nico geral, como pelas concessões da santa sé.
Mas entendia tambem que quando o padroeiro fosse negligente no cumprimento dos seus deveres devia perder o padroado, por que não ha direito acima do que teem as christandadcs ao bem das suas almas, nem dever superior ao que tem o pae commum dos fieis de curar da salvação dos seus filhos. Trate pois a propaganda fide de provar que Portugal tem sido um padroeiro pouco zeloso ; que tem desamparado as egrejas e descurado o bem espiritual da christandade, se quer disputar-lhe o padroado pelos meios legaes e honestos. A violencia prejudica e desacredita os que a empregam; as calumnias refluem sempre nos que as assacam.
Se a propaganda demandasse os penhascos estereis para os trazer á cultura; se procurasse as trevas para as dissipar ; se buscasse as almas para as resgatar; se tivesse valor como Jonas para trocar os applausos vãos de Jerusalem pela pre gação importante de Ninive, louvavel e digno de bençãos fôra o seu empenho ; porém infeliz mente os eccos das vozes d'estes prégadores não se ouvem senão nas cidades, as suas pégadas não se encontram senão nas ruas, o seu zelo não se desperta senão onde não é preciso.
XIV Os Mal cuidados O futuro de Thomaz e Emilia dava serios cuidados ao padre. Em virtude das disposições testamentarias de Davis, o seu sobrinho Roberto ficava só com a modica mezada de quinze libras, da qual era-lhe de certo impossivel dispensar doze para Helena e para os dois orphãos.
Por emquanto Rpberto continuaria a administrar a casa de Davisi e a vencer por este trabalho uma gratificação de quinze hbras. Mas depois?
Não iam tanto acima as posses do padre que podesse com esfa despeza.
O negocio era tal que tirava o somno a frei Francisco.
-- Obrigar Thomaz, dizia elle consultando comsigo mesmo -- a dar por findos os seus estudos, seria loucura agora que falta um anno para acabar o curso ; tirar Emilia e Helena do collegio quando mais precisam d'elle, seria aniquilar em parte o fructo das despezas até ahi feitas. Roberto não pôde ceder mais de seis libras. E as outras seis? Como arranjal-as?
Frei Francisco examinou o seu orçamento de despeza, artigo por artigo, com o rigor que os nossos ministros da fazenda ainda não conheceram ; achou algumas verbas tão reduzidas, que tinham chegado ao non plus ultra descendente.
Mais, era nada. Outras havia que podiam muito bem com um corte. Começou pela cerveja a que estava acostumado desde que saira de Goa; supprimiu-a in limine ; reduziu as esmolas ; e acabou com uma determinada quantia com que entrava todos os mezes no chamado monte pio; mas todas estas reducções não importavam em mais de tres libras. Onde iria elle buscar o resto? Aqui começou a enrugar-se-lhe a fronte, e os olhos erguidos para o ceo imploravam uma inspiração. De repente, como se vira uma luz de esperança, exclamou:
-- Deus é grande! Uma subscripção em Delhi e a caridade dos meus freguezes, murmurou elle, podem dar o que falta.
Quem crê em Deus, não desespera nunca.
Apromptava-se uma manhã frei Francisco para ter uma conferencia com Roberto, a quem havia semanas não vira, quando appareceu á porta da sua casa um homem quasi nú. Vinha pedir a extrema-unção para um moribundo.
-- E muito longe? perguntou frei Francisco sem se impacientar.
-- Na antiga villa de Oude. São boas quatro léguas, respondeu o desconhecido.
O sachristão, apenas ouviu tão desanimadoras informações, teve subito ataque de rheumatismo na perna esquerda. Eil-o arrastando-se até á porta do quarto do parocho, para lhe dizer entre muitos gemidos :
-- Estou prompto, senhor padre, para vos acompanhar.
-- Que! exclamou o bom do sacerdote, que nunca fôra capellão de um regimento e não sabia que n'este mundo havia manhosos, não consinto; vae-te deitar.
Frei Francisco enfiou as botas, vestiu a sotaina, cobriu se com um capote que Roberto lhe tinha dado, despediu-se dos canarios, montou a cavallo e partiu.
Oude foi outr'ora uma cidade muito importante. Tinha, segundo o testemunho de Abul-Fa-zel, mais de 290 milhas de comprimento. Hoje está em ruinas, e os seus densos bosques de bambús servem tão sómentepara abrigar as feras e os thogs.
Eram quatro horas da tarde. Depois de haeer caminhado por sendas tortuosas, e debaixo de um sol ardentissimo, frei Francisco chegou ao pé das ruinas de um pagode, e alli en controu um homem que lhe deu a noticia de que o moribundo, para quem o sacerdote levava as ultimas consolações, tinha acabado ao meio dia. Frei Francisco cruzou os braços sobre o peito, e os seus labios murmuraram imperceptivelmente uma oração pelo defunto. Cumprido este dever, desenfreiou o cavalloe deixou-o pascer; estendeu o capote no chão ao pé de uma arvore e deitou-se. Poucos momentos depois dormia tranquillamente.
XV
Á noite todos ou gatos são pardos
Magnod tinha chegado ao posto de cabo de thogs, não tanto pelo seu valor como pelo genio caviloso que tinha. Havia dois mezes deixara as brenhas de Goracpur, e andava com a sua quadrilha vagueando pelo interior de Oude.
Um espia correu a dar-lhe parte de que junto ás ruinas do pagode se achava um saheb (europeu). A esta nova, feroz alegria luziu emtodos os semblantes.
-- Será Roberto? exclamou involuntariamente Magnod, levantando-se a toda a pressa.
Tomou o mais valente dos seus thogs e partiu.
Magnod seguia em silencio o seu companheiro.
Caminhavam passo a passo, e alongando a vista, ora para a direita ora para a esquerda. Magnod deu de repente um passo para traz e um grito.
-- Esse Roberto que assassinou minha mulher e filhos, que poz sobre a minha felicidade uma campa que nunca mais se deve levantar, eil-o finalmente nas minhas mãos. Não me enganavam os meus presentimentos quando me promettiam a vingança. E elle. Bem o conheço. É aquelle o seu capote. Não ha tempo a perder.»
Magnod atirou com toda a destreza o laço fatal, mas não quiz estreital-o sem gozar da agonia da sua victima. O coração do brahamane trasbordava de fel c de contentamento. Era a alegria feroz do criminoso que vê chegar o momento do crime. A embriaguez da felicidade matava-o. N'isto o desconhecido descobre a cabeça que tinha involvida n'um lenço. N'uma polida calva começavam a reflectir os fracos raios do facho. Era frei Francisco. Magnod reconhece-o. Fôra tudo uma illusão. Asssim que o frade sentiu o pescoço dentro do terrivel laço, puxou do crucifixo, olhou para elle com angustia e disse depois, voltando-se para o lado, com voz sumida :
-- Peço-vos dois minutos só.
-- Para que? perguntou-lhe Magnod, dissimulando a voz, e apagando immediatamente os fachos.
-- Para pedir perdão a Deus.
-- E que esperaes de Deus?
-- A eternidade.
-- D'onde sois?
-- De Fizabad.
-- Conheceis Roberto?
-- Conheço.
-- Como está elle?
-- Como ha de estar? Passou da opulencia á pobreza. Magnod furtou o testamento em que Roberto era nomeado herdeiro de Davis.
A impressão que fizera em Magnod o recente engano era tal, que ouviu esta noticia quasi com indifferença.
-- Conhecestes Magnod?
-- Oh! se conheci ! Era até seu amigo.
Aqui prendeu-se a voz do frade e estancou.
-- E que é feito da mulher e filhos de Magnod?
-- A mulher suicidou-se; os filhos foram mandados para longe, murmurou frei Francisco em voz fraca que mal se ouvia.
Magnod ficou silencioso por alguns momentos. Aquellas palavras soavam aos seus ouvidos como o dobrar dos sinos. Esteve quasi atirando-se aos braços de frei Francisco, que, bem o sabia, estavam sempre abertos para receber os desgraçados.
-- Não vos posso dar a vida, por que ella não me pertence já; adiar a morte é quanto vos posso fazer. Prometteis-me voltar a este mesmo logar, de hoje a seis mezes, e tão só como agora estaes?
Frei Francisco, antes de responder, consultou a sua consciencia. Pareceu-lhe ouvir uma voz mysteriosa, que lhe dizia: «Acceita o prazo: assim o pede o bem dos orphãos.
-- Prometto; tornou frei Francisco.
-- Jurae sobre o vosso Deus.
Frei Francisco ficou pensando alguns instantes. Tinha escrupulos. Depois, pondo a mão sobre o crucifixo, repetiu em voz clara.
-- Prometto debaixo de juramento voltar a este logar de hoje a seis mezes, ás quatro horas da tarde.
-- Quero ver quanto vale a palavra de um christão. Se faltardes a ella, pagarei eu com a vida a minha confiança. De todo o modo, Bovami ha de ter sangue. Prometti-o.
A estas palavras seguiu-se profundo silencio, apenas interrompido pelo ramalhar das folhas.
Magnod, antes de despedir-se, perguntou a frei Francisco:
-- Precisaes de alguma coisa?
-- Tenho sêde e fome.
-- Pois cá vos mandarei agua e fructas.
Ditas estas palavras, Magnod tirou o laço do pescoço de frei Francisco e retirou-se com o seu companheiro.
O que n'aquelle momento se passava no coração de frei Francisco não haveria ahi linguagem humana que exprimisse. Ajoelhou. Não podia fazer larga oração. Deu um gemido.
O companheiro de Magnod tornou sem demora com agua e um açafate cheio de bananas. Foi a ceia de frei Francisco n'essa noite.
No dia seguinte, que era domingo, o parocho de Fizabad estava á hora do costume sacrificando a hostia do cordeiro na egreja de Santo Xavier.
Quando acabou a missa, o sachristão achou humido o altar. Copiosas lagrimas vertera o sacerdote.
XVI
As consequencias do jogo
O jogo é a contracção de todos os vicios em um só; a transformação rapida e successiva do passatempo em vicio, do vicio em crime, do crime em attentado; o culto a uma divindade impia que primeiro pede dinheiro, depois os bens, depois a honra, depois a familia, depois a vida, finalmente a alma; a fortuna que conduz a sua victima credula e confiada por entre caminhos bordados deflores, para depois a despenhar n'um precipicio, ao som d'uma estrondosa gargalhada.
O jogo é o circulo vicioso da esperança; o infinito da cubiça; o idolo do deserto, fundido dos dotes das filhas e das joias das mulheres ; o despotismo do acaso ! O jogador perde a primeira parada, espera na segunda; perde a segunda, espera na terceira; perde a terceira, espera na quarta; esperaria na quinta se quinta houvesse. Acaba a esperança quando acaba o jogo.
Mas por que joga o jogador? Será porque tenha amor ao dinheiro como o avarento? Ninguem é mais prodigo do que o jogador. Fora da banca, onde o dinheiro lhe é divindade, ninguem o despreza mais desabridamente. O jogador joga pelo prazer de jogar como o caçador caça pelo prazer de caçar. São as commoções pungentes e desordenadas, o receio, o odio, a expansão do prazer, a concentração da dôr, os lanços da sorte que deleitam o jogador.
Banca de jogo ! Mercado horrivel e immenso dos patrimonios das familias, dos capitães das industrias, de todas as riquezas do corpo e da alma! A carta levanta e desloca n'um momento, como a alavanca de Archimedes, fortunas collossaes! E que sensações, que anciedades, que sustos, que sobresaltos se não sentem a roda d'aquella pequena mesa! Jogam alli as fortunas de mão em mão ; jogam as tristezas e alegrias de semblante em semblante; jogam as iras de coração em coração; jogam os sarcasmos pungentes debocca em bocca; joga a sorte; joga o acaso; joga o demonio! Alli não ba razão nem direito, justiça nem injustiça; o que é, é o que deve ser. As sentenças da sorte não teem appellação. Não ba no mundo praça de commercio com maior movimento, nem tbeatro com scenas mais variadas do que uma banca. O que se perde menos no jogo é o dinheiro. A perdição é maior que a perda.
O jogador vive só emquanto joga. Não ha para elle senão uma só idóa, um só sentimento, um só amor, uma só paixão -- o jogo. Oh! como a sua respiração se suspende, como o seu coração se contrabe, como o seu corpo estremece, como os seus olhos se fitam, como a sua lingua se emmudece, como elle se aniquila ao despontar d 'esse numero ou carta que o deve fazer feliz por instantes ou desgraçado para sempre! Ide dizer-lhe que a sua casa está a arder, que a sua unica filha está moribunda, que a sua idolatrada esposa o trahe ; nem sequer vos ouvirá. Não vos admireis d'isto. Os espectros não ouvem.
As raras alegrias do ganho não compensam as angustias e furores da perda. O dinheiro baixa de valor quando se ganha, e sobe quando se perde. O dinheiro que se ganha, esquece; o que se perde, é mil vezes contado, mil vezes pesado, mil vezes chorado. O jogador que ganha não é um feliz; o que perde é um desgraçado. 0 ganho não tem historia nem arte; a perda tem os seus fastos e a sua critica. O jogador que perde, examina se jogou bem ou jogou mal: critica as suas paradas : tira conclusões edificantes. 0 somno do jogador feliz é profundo e pacifico; o do infeliz é atroz. Revolvem-se-Ihe na mente phantasmas e visões. O valete que era a sua carta favorita e que o fez perder vinte paradas, o agiota que vem exigir o pagamento de uma lettra, o criado que vem pedir dinheiro para as despezas do dia, a mulher que com a severidade do seu gesto vem perguntar pelo resultado do jogo da vespera, tudo persegue o infeliz. O acordar d'este somno é ainda peior: é a realidade. Oxalá podesse elle dormir sempre!
Uma consequencia do jogo verá o leitor no que vamos narrar.
Frei Francisco, depois de dizer a missa, estava assentado n'uma cadeira, triste e pensativo.
Revolviam-se-lhe na mente rapidos e indistinctos os factos da vespera. Imagens confusas é o que lhe restava do seu encontro com os thogs. A unica coisa porém que lhe não tinha esquecido era o juramento. Qual fosse o valor d'esta promessa, nem elle o poderia explicar; não sabia, e quasi que tinha medo de entrar n'este exame com o receio de descobrir o abysmo.
O relogio dera tres horas. Roberto entrou no quarto de frei Francisco. Estava de rigoroso lucto.
Nos traços do seu semblante, rapidos progressos tinham feito os pezares ; que nas azas do infortunio voa veloz a velhice. Nodoas fundas e azuladas cercavam os seus olhos encovados; as faces estavam pallidas e sumidas; as sombras que cobriam o rosto harmonisavam com o lucto que trajava o corpo. Era completa a expressão da tristeza.
-- Que tendes, meu amigo? lhe disse frei Francisco apertando-o nos braços.
-- Que tenho? O meu opprobrio, a ruina da minha filha, o desamparo de dois orphãos. Deus castigou-me. Estou expiando os desatinos da minha mocidade, e todo o mal que fiz a Magnod .
Frei Francisco contemplava-o com assombro e terror.
-- O terrivel vicio do jogo, continuou, fez a minha ruina. Estraguei os annos juvenis no tumulto de um vicio tempestuoso. Puz sobre uma carta a fortuna que possuia, e uma parte da que podia ter com a morte de meu tio. Perdi. Foi tudo obra de um momento. Fiquei desde então escravo dos agiotas, a quem vendi a tranquilidade do meu somno, a alegria do meu rosto, os sorrisos da minha innocente filha. Para estar longe d'estes tyrannos, fugi para esta terra; elles calaram-se com a esperança da grossa herança que me devia caber depois da morte de meu tio. Se algumas vezes me escreviam, era só para saberem noticias do senhor Davis. Mas agora, meu padre, elles hão de vir sobre mim com todo o rigor da lei. Irei acabar os meus dias n'uma cadeia talvez, marcado com o ferrete de ladrão, sem ter uma voz amiga que me console! A ignominia subindo pelos seculos irá marcar o lustre de vinte avós distinctos, e descendo cairá com todo o peso sobre a minha Helena ! O meu anjo! E a só por quem feneço.
A dôr embargava-lhe a voz. Copiosas lagrimas lhes resvalavam pelas faces.
-- Não desespereis da misericordia divina, disse frei Francisco, alimpando as lagrimas. Ha mais grandeza de alma em sujeitar-vos aos decretos da Providencia que em rememorar erros que vos assoberbam. Façamos o que está nas nossas mãos para reparar passadas faltas. Deus ha de ajudar-nos.
-- Desculpae, meu bom amigo, tornou-lhe Roberto, se na minha dôr me escaparam palavras de desesperação. Sem a fé em Deus, que seria hoje de mim? A desgraça grangeou-me a experiencia, e com ella a fé.
-- Tratemos então seriamente de prevenir os males que receamos.
-- Parece-me isso tão difficil, meu padre! As minhas dividas excedem a cinco mil libras, e eu não tenho nem cem. O que mais me despedaça o coração é não poder ser util aos infelizes que amparava o meu cuidado. Segundo as ultimas noticias que recebi de Hartman, tenho de continuar a pensão para Helena, c para os dois orphãos, pelo menos por mais oito mezes. Emquanto não chegar o meu primo, não me dá isso cuidado; do meu ordenado posso bem dispensar doze libras; mas depois? E-me impossivel...
Dizendo estas palavras, Roberto apoiou a cabeça sobre as mãos e assim permaneceu.
-- Quanto ás mezadas, já pensei no que havia de fazer. Não vos dê isso cuidado. Agora pelo que respeita ás dividas, é provavel que o vosso primo as tome a si. E dever de bom parente.
-- Meu primo! Oxalá que eu me engane, e seja temerario o juizo que d'elle formo!
Somos tão propensos a crer o que nos agrada, que, apezar das duvidas que lavravam no animo de Roberto ácerca da generosidade de seu primo, a fala que energica proferiu fr. Francisco não deixou de o tranquillisar. Quanto ás mezadas, Roberto não pensou mais n'ellas ; ficou completamente descançado em frei Francisco.
O resto do tempo, passaram-no Roberto e frei Francisco a ler as cartas de Helena, Emilia e Thomaz. Applaudiam-se dos cuidados que d'elles tinham tomado.
-- Não sei dizer, meu amigo, continuou Roberto, quanto me anima a vossa presença. Vim afflicto, e agora sinto-me tão socegado, que me parece que alguem tirou o peso que eu tinha sobre o coração. Deus vos dê muita vida para consolar os afflictos.
Frei Francisco apontou com o dedo para o ceo.
-- A Providencia!
XVII
O judeu Sobal
Dois mezes depois do que acabamos de narrar, estabeleceu-se um homem em Fizabad. Chamava-se Sobal. Teria seus cincoenta annos ; andava involto n'um albemoz, cujo capuz lhe encobria as feições, vendo-se-lhes apenas a barbanegra e cerrada.
Trazia grandes oculos verdes, epor cima uma pala da mesma côr, que, cobrindo grande parte do semblante, vinha completar esta mascara. Não se sabia ao certo qual era a sua raça, nem d'onde viera ; não assim a sua occupação, que era de todos conhecida como cambista e agiota. Vivia com dois criados, que eram tão impenetraveis á curiosidade como o amo. A entrada de um estrangeiro n'uma terra pequena, ésempreum acontecimento.
Não descança o povo em quanto não saiba quem é, d'onde vem, e para onde vae. Pergunta, indaga, espia, e afinal, quando nada consegue por estes meios, traça historias, e suspeita aventuras.
E muitas vezes a invenção entra em circulação e passa a correr desde logo como moeda de lei.
Assim aconteceu com Sobal. Não podendo o povo descobrir donde vinha este homem mysterioso, conjecturou que era judeu e rico negociante de Delhi. A conjectura fundava-se, sobretudo, na correspondencia que tinha Sobal, com as casas dc negocio mais importantes de Bengala.
Sobal vivia vida solitaria. Saía só duas vezes ao dia : ás cinco horas da manhã e ás seis da tarde, antes de nascer o sol e depois do seu occaso. A escuridade era o segundo albornoz com que se cobria e se disfarçava. Os seus passeios dava-os sempre pelos mesmos sitios. A gente que o encontrava na rua dizia que nem sequer a olhava. Com a cabeça sempre baixa, com as mãos nas algibeiras, e no mesmo passo continuava o seu caminho.
A casa em que morava Sobal era uma das melhores de Fizabad. O seu gabinete era pintado de verde e tinha sempre pouca luz, por que diziam os criados que seu amo padecia dos olhos.
Em pouco tempo, Sobal tornou-se o centro de todo o movimento industrial de Oude. Os ope rarios, os rendeiros das terras, os pequenos negociantes, os criados de servir, iam todos entregar-lhe as suas economias, que opportunamente retiravam acerescidas. Sobal era de uma pontualidade exemplar nos seus pagamentos, e, diga-se em abono da verdade, a sua taxa de juro não era das mais subidas.
Com a honradez com que se havia nos negocios e com os beneficios que derramava largamente, Sobal adquiriu a estima e a admiração geral. Desde então os habitantes de Fizabad deixaram de lhe suspeitar tratos encobertos, e acreditaram sinceramente que Sobal era um homem de bem. Mal sabiam elles que as virtudes que admiravam eram apenas um formoso manto com que se cobria a alma d'este homem.
Mais um facto veiu confirmar os habitantes no conceito que formavam de Soba!, e augmentar a fama das suas virtudes. Foi o seguinte.
Certo dia em que Sobal saira mais cedo para dar o seu passeio, viu uma nuvem de pó da banda da estrada e ouviu gritos de afflicção. Parou.
Um cavallo desbocara-se do freio e vinha a toda a brida ; o cavalleiro mal se via. A estrada, no ponto onde se achava Soba!, continuava por uma estreita ponte de madeira sobre profundo fosso.
Era imminente o perigo. Sobal reconhece Roberto e exclama involuntariamente. -- E preciso que elle viva! -- Depois, saltando como um relampago para o meio da estrada, trava com esforçado braço das redeas e segura o cavallo. O cavalleiro cae atordoado e enterra-se no pó.
Eil-o salvo e desaffrontado. Junta-se o povo, e apparece uma luz.
-- Roberto! exclamam todos.
Sobal desapparece.
No dia seguinte em Fizabad não se falava senão da animosa acção de Sobal.
Cada qual contava-a a seu modo e todos exaggeravam. O povo é sempre pessimo historiador. Roberto foi no dia seguinte a casa de Sobal agradecer o distincto favor que recebera, mas um criado, que parecia estar prevenido d'esta visita, declarou-lhe que seu amo estava muito incommodado. Robe rio voltou no diaimmediatoe teve a mesma resposta. No terceiro dia chegou no momento cm que Sobal descia a escada; correu para elle e beijou-lhe a mão. Sobal deu um passo para traz como se fôra mordido por uma serpente, e, balbuciando algumas desculpas subiu immediamente a escada. Roberto voltou admirado da modestia de Sobal.
-- Este homem, dizia elle, esconde-se com maior cautela, que se suas virtudes fossem delitos. A sua caridade é despida de apparatos e de todas essas affectações com que se enfeita a hypocrisia. Não quer que ninguem lhe toque a mão beneficente, nem lhe veja a cara. Vive no silencio e segredo, como o diamante se esconde nas entranhas da terra. Teme talvez que os agradecimentos dos homens sejam encontrados na recompensa que espera de Deus. Tem razão. » Em quanto Roberto discorria d'cste modo, Sobal fechava-se no seu gabinete, e olhava repetidas vezes á roda de si paraseaffirmarse alguem o via. Alli, a sós comsigo. depoz a mascara da virtude e acerbo prazer sentiu em ver-se na horrenda nudez de monstro. Apalpou-se: era ainda o mesmo. O coração estava repleto de colera; a virtude, resvalando pelo corpo, não tinha exhaurido a vingança que lavrava no fundo da alma.
Depois, como se duvidasse de si proprio, correu afflicto para uma janclla, que estava fechada, ha mezes, e abriu-a. Debruçou-se e viu mui distinctamente as ruinas de uma casa, d'onde surgiam como do sepulchro uma mulher e dois filhos e bradavam vingança. Sobal ficou fora de si. Esgazearam-se-lhc os olhos, eriçaram-se-lhe os cabellos, tornaram-se lividos os beiços, e o corpo começou a tremer. Fechou a janella exclamando com prazer:
-- Ainda bem! Sou o mesmo. Sentiria horror de mim proprio se me julgasse capaz de esquecer a vingança; salvei-a, salvando a Roberto!
Sobal temia as seducções da virtude. Estremecia com o receio de que o prazer de fazer o bem usurpasse no seu coração o posto que devia ser só da vingança. Amava o odio como um thesouro. Quando sentia no coração menos fel, abria a janella e n'aquellas pallidas e solitarias ruinas, como n'uma copiosa fonte, bebia-o a largos tragos. Depois, julgava-se seguro.
Desde esse dia Sobal nunca mais saiu de casa.
Queria evitar que Roberto lhe repetisse os seus agradecimentos. A modestia tornou-o ainda mais veneravel, e o seu nome começou a ser repetido como o de um santo.
XVIII
O Dandy
Não se deve entender por dandy um homem da moda, um d'esses bonecos perfumados que nascem do lixo dos cafés e das salas, como o gaiato nasce do pó da rua ; um d'esses infelizes que devem tudo quanto comem, vestem e fumam ; um d'esses tafues que disfarçam com as galas e com a alegria do rosto, os tratos da dura escravidão que padecem dos alfaiates e sapateiros.
O dandy não é degeneração. E uma indole.
Veiu ao mundo como vieram os poetas e os pintores. A historia dos seus erros, das suas aventuras e dos seus crimes forma um dos capitulos brilhantes dos annaes moraes do homem. Alcibiades na antiguidade, Byron nos tempos modernos, são os typos d'esta raça, á qual a humanidade deve algumas coisas bellas e grandes, muitas más, nenhuma boa. A virtude é incom pativel com o elemento diabolico da sua natu reza. O dandy só de si se occupa : L'univers, c'est moi, diria elle, se houvera aso para isso.
O dandy é orgulhoso por essencia. D'ahi lhe vem esse egoismo cego e rebelde a todos os deveres sociaes, esse supremo desprezo da humanidade, essa altivez insolente diante de todos os poderes, mas que se abate aos primeiros golpes da desventura. 0 dandy não sabe luctar com a adversidade. E-lhe desconhecida a arte de Job. Não crê na Providencia. Basta uma molestia, um amor mal correspondido, uma hora só de pobreza para lhe converter toda aquella soberba em desesperação e em triste anhelar pela soledade do claustro, ou pela morte. Mais de um dandy tem desapparecido no segredo e silencio do convento ; mais de um dandy tem buscado na morte o termo para seus males. Mas n'esse proceder do dandy, não ha covardia nem contradicção com a altivez do seu caracter. A desgraça esconde o braço com que vibra os seus tremendos golpes. Atraz d'ella está a Providencia. E diante d'esta que se curva e humilha o dandy, que nenhum inimigo visivel seria capaz de vencer sem tenacissima resistencia, que nenhum perigo seria capaz de afugentar.
Se a morte não vem pôr termo á existencia do dandy e ás suas paixões impetuosas, e se a desgraça o não reconcilia com a humanidade e com Deus, elle chega á velhice em todo o vigor dos seus instinctos depravados. Velho ! elle ! o dandy!... Escandalo em carne e osso! Que solecismo moral! Os seus vicios, que o remorso não pôdeconsumir, concreta -hYos o tempo, e torna-os dormentes para elle, mas dobradamente escandalosos para o mundo. A sua soberba, transforma-lh'a a impotente velhice em cynismo e as suas doutrinas cm systema de Machiavello. Os vicios e a virtude repellem-no egualmcntc. E o infeliz tem de coar gota a gota as tristes horas da sua tormentosa existencia. São os dandys velhos como esses carvalhos do norte, que, despidos de folhas, padecem a triste nudez da sua grandeza.
Não são todas as nações fecundas de dandys. Abundam elles em Londres. São raros no Sul da Europa.
Ricardo era dandy. Como o sol, ria-se ao mesmo tempo para todas as raparigas. Era muito moço, talvez não tivesse vinte e cinco annos, e passava por idolo e terror das bellas. O seu retrato não era feio : a bocca pequena, testa alta e desafogada, barba longa, cabelloloiro, estatura mediana, corpo delgado, peito largo e porte gentil.
Apenas teve noticia do testamento de seu tio, Ricardo partiu para a índia, onde chegou muito antes do tempo em que era esperado por seu primo Roberto. Tomou immediatamente conta da casa e offereceu ao seu primo uma parte do bangaló para n'elle habitar. Não era decoroso a Roberto continuar a administrar a casa o primo, nem este lhe podia fazer tal proposta sem moles tar o seu pundonor.
Ricardo declarou que estava prompto a casar com a prima para cumprir a vontade do tio; mas que, repugnando-lhe os casamentos de conveniencia, desejava que esta clausula do testamento ficasse em segredo. Roberto acceitou com alvoroço aproposta do primo, e ficou por isso ainda mais contente d'elle.
XIX
O justo ama a Deus sobre todas as coisas
Corria o mez de outubro, e no dia 26 frei Francisco tinha de remetter para Londres vinte e quatro libras, sendo doze da mezada de setembro, que ficara atrazada, e doze do mez corrente. Tinha recebido de Roberto metade d'esta somma. No seu montepio havia só dez libras.
Como arranjar mais duas?
Frei Francisco passeava a passos apressados no seu quarto; de quando em quando passava a mão pela fronte escandecida, d'onde não surgia uma só idéa. A sua imaginação era tão pobre como tudo quanto o cercava. Se cravava os olhos no tecto, via traves velhas e carcomidas ; se os abaixava, dava com elles n'um pavimento nú e desegual; se os volvia para os lados, causavam-lhe horror os moveis quebrados.
A pobreza é esteril para a terra e fecunda só para o ceo. Buscava o sacerdote duas libras como o naufrago, no seu afflicto bracejar, busca uma taboa a que se agarre. Se alguma esperança lhe apparecia, morria apenas brotava. N'esta lida se haviam coado longas horas sem se encostar a nenhum conselho, quando de repente parou no meio do quarto, como se um obstaculo lhe embargasse os passos. Inspirara-lhe o ceo uma resolução.
-- Por que não hei de ir eu, disse elle a Sobal que é tão caritativo, e pedir-lhe as duas libras que faltam? Elle, que é tão bom não m'as pode negar.
Ditas estas palavras, frei Francisco pegou no chapeo, abotoou a batina e encaminhou-se para casa de Sobal. O pobre sacerdote estremecia com o receio de ver frustrada a sua unica esperança. Bateu á porta. O proprio Sobal veia abril-a elevou a visita para o gabinete que estava quasi ás escuras. Frei Francisco olhonjor alguns instantes para Sobal sem falar; depois começou:
-- Senhor, queria dizer-vos duas palavras. Peço mil perdões , se estou incommodando!
-- Daes-me sempre muito gosto; respondeu Sobal com um gesto em que transparecia o espanto.
Frei Francisco puxou uma cadeira para ao pé da mesa e continuou :
-- Tenho ouvido falar tanto na caridade que usaes, que não duvidei vir pedir a vossa protecção para tres orphãos, que precisam de duas libras para se tirarem de grandes embaraços em que se acham. Posso assegurar-vos que são dignos da vossa compaixão.
-- Onde estão esses infelizes? perguntou Sobal, procurando dissimular a sua anciedade.
-- Em Londres.
Sobal ficou silencioso por alguns momentos, e depois, fazendo uma cortezia a frei Francisco, retirou-se para um quarto proximo. Ouviu-se o rangido de uma gaveta que se abria.
Um raio de esperança veiu illuminar a physionomia amargurada de frei Francisco. Cuidara que Sobal fora buscar dinheiro.
Sobal voltou, e tornando a sentar-se no seu logar, perguntou com anciedade.
-- Um d'esses infelizes chamar-se-ha acaso Helena, e será Hartman o homem que a educa?
-- E verdade, replicou frei Francisco cada vez mais animado.
-- Se tendes algum interesse por esses infelizes, disse Sobal, previno-vos de que Hartman é um traidor.
-- Traidor ! exclamou frei Francisco saltando da cadeira.
-- Exactamente, continuou Sobal, em cujos olhos scintillava o contentamento por ver a impressão que as suas palavras faziam no padre; é um perverso, que recebe os orphãos em sua casa, e os vende depois á sociedade propagadora da religião reformada.
-- Oh! desgraçados! exclamou frei Francisco n'um transe horroroso de angustia. Estão perdidos se os não amparaes com a vossa caridade. Peço-vos por Deus que sejaes o salvador d'estes infelizes.
-- Sinto infinito não poder valer-lhes, tornou Sobal com a mais cynica indifferença. Se me tivesseis falado mais cedo!...
-- Louvado seja Deus ! respondeu o padre levantando as mãos ao ceo.
Depois de um momento de silencio, fr. Francisco fez uma leve cortezia a Sobal e saiu do gabinete com o peito dilacerado. Ia mais triste do que viera. Os pés pesavam-lhe arrobas, e horrorisava-o o pensamento de entrar no seu quarto, onde novas luctas o aguardavam. Tinha perdido a unica esperança.
A passo lento foi caminhando o padre, todo absorvido nos seus pensamentos. Apenas assomara ao primeiro degrau da escada, correram o Sabaio e o Tipu a recebel-o, segundo o costume. Frei Francisco fez-se pallido. Com os dois passaros viera adejar-lhe na mente uma idéa incrivel e monstruosa. Repelliu-a com uma estrondosa risada. Entrou no quarto, poz o chapeo sobre a mesa e assentou-se. A idéa outra vez a desenhar-se nas paredes do quarto como uma sombra e a menear-se no leito e banca como um espectro ! Exorcisava-a, ella tornava-se divina; impunha-lhe silencio, ella bradava ; matava a, ella resuscitava; zombava, ella ria-se; a idéa e sempre a idéa! « Vender os meus canarios! dizia o padre com voz suffocada em pranto e apertando a cabeça entre as mãos ; os meus amigos, os meus companheiros de vinte annos!... Impossivel!
-- E por que não? -- respondeu-lhe uma voz; Abrahão não recusou a Deus o seu unico filho, e recusas tu dois canarios? Não sabias, homem fraco, que o amor de Deus exige sacrificios? É assim que o amas?
Tremulo e ancioso, frei Francisco olhou em roda de si. Ninguem estava no quarto. D'onde vinha essa voz? Não podia ser do inferno por que era suave como as vozes da harpa de David. A angustia fez vergar o sacerdote sobre os joelhos, e caiu unindo a fronte ao pavimento. A voz que ouvira era de quem está em toda a parte, e os eccos que a repetiam eram a consciencia, que está sempre com o homem. Quando frei Francisco se levantou, tinha o semblante allumiado com o mais puro contentamento. O amor de Deus devorara a affeição de vinte annos.
Como se praticasse o acto mais ordinario da vida, o virtuoso frade metteu os canarios n'uma gaiola e olhou para elles com paternal affecto. Parecia dizer-lhes. -- Voae até Londres. Salvae aquelles tres infelizes. Nunca maior missão vos coube na terra.
Depois, chamando o seu criado, disse-lhe:
-- Vae vender estes canarios.
Pedro hesitou.
-- Vae vender, repetiu com Grmeza o padre.
Pede por elles duas libras, mas acceita o que te offerecerem.
Em quanto dava estas ordens, o frade não desfitava os olhos do ceo. A sua imaginação representava-lhe alli o vulto venerando e triste de Abrahão, erguendo o cutelo em nome de Deus contra o innocente filho.
O criado tinha dado alguns passos, quando appareceu no limiar da porta do quarto um sipai com algumas cartas.
-- É a minha correspondencia de Delhi, disse o padre com indizivel alegria; os canarios podem ainda escapar. E o anjo salvador que desce do ceo.
Fez um signal ao criado e quebrou com anciedade os sellos das cartas A subscripção aberta a favor dos orphãos não tinha produzido mais de uma libra. Frei Francisco deixou o criado continuar o seu caminho.
Ás seis horas da tarde voltou Pedro sem os canarios e com duas libras. Estava completa a conta. Frei Francisco mettera n'ella o seu coração.
No dia seguinte veiu a voz de Pedro acordar a frei Francisco ; já não se ouvia o canto suave dos passaros. N'essa mesmamanhã, saindo para dizer a sua missa de costume, o parocho de Fizabad passou pela casa de Sobal e parou defronte da jauella onde se via uma gaiola com dois canarios. Eram Tipú e Sabaio. Não chorou. As lagrimas que a saudade arrancava do coração, vinha a constancia seccal-as.
O animo do santo é elastico. Torce-se, mas não quebra; cae, mas levanta-se; contrahe-se, mas logo se dilata. Não ha soledade nem viuvez para os desposados de Deus. Frei Francisco nunca esteve menos só que agora. Nunquam minus solus, quam solus. Jesus Christo habita a solidão. O infinito mora no infinito.
XX
O Gethesmani
Uma noite de inverno na India é horrivelmente bella. Teem-na descripto muitos escriptores, mas ainda nenhum com perfeição. Nós daremos apenas uma ligeira idéa.
Avizinha-se a noite, toldada de castellos de nuvens negras e cerradas, que surgem do sul e se confundem logo como as vagas do mar. As aves fogem cruzando-se e pipilando. Reina silencio lugubre e o ceo forra-se todo de lucto. Uma lufada de vento quente, e algumas raras gotas de agua annunciam a tempestade.
Á rajada do duro sudoeste ajunta-se logo o susurro das arvores, o gemer profundo das selvas, o ribombo prolongado do trovão que se repete de ecco em ecco nas solidões do espaço, e finalmente o despenho incessante de copiosa chuva O relampago vem a intervallos allumiar com o mais brilhante clarão, os cumes das montanhas, as brancas torres das egrejas e a superficie prateada do mar, para depois sepultar tudo no mais cerrado negrume. O raio desce das nuvens rapido como o pensamento, destrue quanto encontra, derruba arvores e edificios, faz mil feridos earrrebata cem vidas. Parece que a abobada celeste se converte em machina fervente, que vomita bombas que zumbem, luzem e estoiram no ceo. Nãohalucta mais sublime nem mais magestosa do que a d'esses gigantes chamados elementos. E a immensidade da natureza declarando e publicando com o seu verbo eloquente e portentoso a jurisdicção e fama da Omnipotência divina. A fera,, recolhida na sua toca, assiste espavorida a esta lucta das feras de cima. O homem, a mais forte e perfeita das creaturas, sente-se pequeno diante de tanta grandeza, e corre a ajoelhar aos pés de uma imagem velha e afumada. Alli. cruza as mãos, invoca o auxilio de Santa Barbara e entoa o cantico da humildade -- o suave Magnificat.
Sereno, esplendido e saudado pelo grasnar das rãs, amanhece o dia seguinte, e os olhos são deslumbrados por uma scena bella e encantadora : campos transformados em mares e no meio d'elles ilhotas improvisadas e toucadas de viçosas arvores; troncos de bananeiras boiando sobre as aguas quaes pequenos barcos sem remos, e conduzindo como passageiros, inesperadas colonias de reptis e insectos; os coqueiros onde ando ao sopro da aragem as suas verdes palmas; as aves redemoinhando no ar e mostrando nos seus vôos vagarosos a alegria; os pastores, os rebanhos, o viço co alvoroço voltando a festejar o dia; tudo obra de um momento ; tudo primavera preparada no inverno e segredo de uma noite; tudo espanto para os olhos e para o sol; tudo poder da natureza !
E o menino travesso, desertor da escola n'esse dia, embarca no mais proximo vallado, n'uma d'essas flotilhas que navegam no improvisado oceano, põe-lhe a bandeira branca que é a da innocencia, e lá vae, mar em fora, em demanda de novos mundos.
Desembarca no primeiro porto que selhe deparar e fôr seguro. E eil-o passeando logo em terra como Vasco da Gama nos seus Calicutes e Mombaças,e enviando com a mão saudades á irmã, que não teve animo para o acompanhar, mas que assentada na praia e com os olhos pregados no irmão, já de lá lhe promette os beijos, com que logo ha de pagar as Canellas e cravos que espera receber dentro em pouco das Indias descobertas.
O lavrador transforma-se em pescador para acompanhar a natureza que lhe transformou os campos em mares; e os pobres peixes logram por pouco tempo os dominios usurpados aos rebanhos.
Era por uma d'essas noites tempestuosas de inverno, que se via uma frouxa luz atravez das frestas das janellas da humilde habitação de frei Francisco. Em humido e cerrado aposento debatia-se o padre contra si mesmo. Não dera pela tempestade de fóra, por que maior era a que passava dentro da sua alma. Idéas oppostas surgiam-lhe dos abysmos da consciencia e luctando como as vagas no meio de grande procella, voltavam despedaçadas para as profundezas d'onde tinham saido, e d'onde outra vez surdiam ainda mais fortes, e medonhas. E no meio d'estes Titans a razão do sacerdote ora tremia como uma creança, ora se sentia animosa como David, ora fortissima como Sansão. Deus prepara d'essas luctas em que o espirito se debate no infinito, que é o seu oceano, e nas quaes se collocam frente a frente a carne e o espirito, o inferno e o ceo. Os vencedores chamam-se santos.
No dia seguinte, 30 de outubro, ás 4 horas da tarde, frei Francisco devia estar em Oude, para entregar o pescoço ao laço dos estranguladores. Assim o havia jurado. Mas podia elle dispôr de uma vida que lhe não pertencia? de que era apenas usufructuario e não senhor?
Deixar-se assassinar por esse modo não seria suicidar-se? E depois, que validade pode ter um juramento arrancado pela coacção, e que versa sohreuma coisa de que se não é proprietario? E a palavra? dal-a aos thogs não seria o mesmo que prometter ás feras que não teem fé nem sentimento?
Frei Francisco fazia a si mesmo estas perguntas, passeando no quarto, com a cabeça baixa e as mãos cruzadas.
-- Está decidido, disse, deixando-se cair n'uma cadeira. Ficarei. E Deus que quebra o meu juramento. Devo obedecer-lhe.
ínstantes depois passou-lhe pela mente uma duvida; logo duas... em seguida tres. A resolução não fôra boa. Levantou-se e tornou apassear.
A sua situação era horrivel.
Os martyres que se deixaram despedaçar pelas feras; os santos que depozeram a cabeça sobre o cadafalso e a offereceram ao alfange dos moiros, tambem não eram proprietarios da vida, mas não hesitaram quando os tyrannos lh'a exigiram. Perder a vida por uma virtude é restituil-a a Deus. Não ha coacção para quem crê em Deus com fé viva e o ama de todo o coração. Não valeu a coacção para que as lagrimas de arrependimento deixassem de alagar os olhos de Pedro. Os fracos coagem-se; os fortes resistem. A palavra é sempre sagrada para quem a dá, por que é um compromettimento com apropria consciencia, um contrato coma propria dignidade. A palavra valida para com os bons, nulla para com os maus ! Que commoda theoria! Para com os maus sêde mau! bella doutrina!
Frei Francisco envergonhava-se da sua resolução e ainda mais das razões d'ella. Batendo o pé como se quizesse calcar todos os maus pensamentos que o tinham assaltado, exclamou com toda a força :
-- «Devo partir. E esta a minha ultima resolução.
Era meia noite. Frei Francisco estava fatigado.
Da fronte veneranda corria-lhe copioso suor, o coração parecia não caber no peito, as carotidas pulsavam com violencia. Abriu ajanella. Os borrifos da chuva começavam a afagal-o como a suave brisa.
Refrigera o ardor do frebicitante, quando á luz rapida do relampago alvejaram as paredes das habitações e a cruz da egreja de Santo Xavier. Lançavam-lhe todas em rosto o desamparo em que iam ficar e o mal que d'ahi podia resultar para a religião.
-- E verdade, disse frei Francisco fechando rapidamente ajanella; não tinha ainda pensado n'isso. Não me havia lembrado a mocidade que fica sem os conselhos, os moribundos que ficam sem as consolações, as creanças que ficam sem o baptismo, a egreja que fica sem o pastor, os orphãos que ficam sem o pae, os mancos que ficam sem os pés, os nús que ficam sem o vestido, os cegos que ficam sem os olhos, os perseguidos que ficam sem a defesa. A minha vida pertence-lhes. Pesam sobre mim grandes responsabilidades, e devo dar de todas estreitas contas a Deus.
Aqui uma nova e cruel desconfiança passa-lhe pela idéa fulminando-o. Estremece. Não sabe se todas aquellas ponderações veem da força da razão ou da fraqueza da carne. Não sabe se pela janella entrara um anjo para o esclarecer ou um demonio para o tentar. A consciencia fica suspensa, já subindo ás estrellas, já descendo aos abysmos, já pondo-se entre os anjos, já mettendo-se entre os demonios, já dizendo como Job peccavi, já dizendo non peccavi. Uma vaga traz o inferno; outra traz o ceo: todas trazem a eternidade .
A noite ia já muito adiantada; a candeia mortiça começava a espirrar; não se ouvia nem o trovejar da procella, nem o fustigar da chuva.
Os elementos, cançados da lacta, dormiam somno tranquillo; só para frei Francisco não havia bonança. Debruçado sobre uma mesa, apertava a cabeça com as mãos para espremer uma resolução, mas a caleça era esteril como o sepulchro. Quando se levantou d esta attitude, para saber que horas eram no relogio aquellas que haviam sido para elle eternidades de padecer, a luz da candeia estava apagada, e as trevas dos olhos sobrepunham-se ás trevas da razão. Pegou no relogio na maior afflicção, e abriu a janella.
Era ainda noite. Pediu ao ceo um relampago ; o ceo negou-lh'o.
Nem uma luz na terra, nem uma estrella no horizonte !
Ninguem vê, ninguem ouve este naufrago que.
agonisa no meio da tempestade I Podiam ser quatro horas da manhã; ás cinco devia estar tudo resolvido! E ainda nenhuma resolução ! Tempo, suspende o teu curso.
Uma hora só!... Uma hora, e depois quem sabe seoinferno por toda a eternidade... Grande Deus!
No monte das Oliveiras ha quasi dois mil annos houve uma angustia maior. O filho de Deus curvou-se quando sobreoseu amor infinito começou a pesar a colera divina, tambem infinita. Foi sublime esse duelo sem testemunhas, da justiça de Deus com a dedicação de Christo. A natureza humana sossobrou, e suou sangue. Veiu do ceo um anjo para confortal-a.
As trevas exteriores são a luz da alma. O espirito recolhido cm si mesmo torna se foco. Descobre então verdades que a pequenez tornava imperceptiveis e que estavam sumidasnos arcanos.
Frei Francisco, andando pelo quartu ás apalpadellas, começou a ver melhor pela alma. Parou repentinamente. Diante d'elle, visão ou realidade, havia uma estrada e no meio d'esta um thog.
Crêra ouvir-lhe estas palavras:
-- « Pediste-me a dilação da morte, e concedi-t'a. Confiei no teu juramento, por que cria na tua virtude, e acreditei que a bocca que prégava a verdade aos homens, não era capaz de mentir a Deus! Enganei-me; eo engano vou pagal-o com a vida, como tu me pagaste com o mal todo o bem que te fiz. Agradeço-te a morte sublime que vou morrer, e não te invejo a vida comprí da com o perjurio, paraser logo vendida ao remorso. O sacerdote de Christo fez-se demonio para converter cm anjo o ministro de Bovami. Christão, portuguez, presbytero, pastor! Curva-te aos meus pés como a covardia, a deslealdade e o perjurio se devem curvar sempre diante da magnanimidade. Era o que tu ensinavas do alto do pulpito, relendo as paginas sacrosantas do teu evangelho. Vive, vive seculos, traidor, para teu castigo e para a minha vingança.
A consciencia do sacerdote, combatida de duvidas, voltou-se para a direita, viu uma montanha! voltou-se para a esquerda, encontrou outra. O caminho que descobrira era um valle, louvado Deus!
Não havia que hesitar por que não havia que optar. Seguiu.
Cantou o gallo. Acordava a natureza do seu somno e frei Francisco do seu extasi. Para aquella findara o descanço, para este apenas começava.
Frei Francisco tratou depreparar-se para a morte.
Outra agonia.
Ajoelhou a victima no meio do quarto, e segurando com ambas as mãos a imagem do Crucificado, levou-a aos labios. Ouvia-se apenas um cicio. Era o reo de setenta e dois annos, accusando-se dos peccados de todos os instantes ao juiz severo, e pedindo d'elles perdão a Deus clemente ; era o gemido da fraqueza timida cruzando-se com a voz de conforto da esperança; era a alma crente sacudindo no limiar do mundo todas as miserias, elevando -se acima do universo e aspirando já as suaves auras do paraizo; era a confissão epilogo de Iodas as confissões ; era a oração final do christão.
Frei Francisco levantou-se. A sua physionomia estava serena e animada. Nem uma nuvem na sua espaçosa fronte. Era como se não houvesse coração n'aquelle corpo em que tudo cedia a uma vontade que estava longe.
Nascera o dia. Á luz dos primeiros raios do sol frei Francisco escreveu uma longa carta a Roberto ácerca dos orphãos de Londres. Fechou-a com todo o cuidado e socego. Era o seu testa mento. Não tinha que fazer outro. Depois, abriu um bahu muito velho, tirou d'elle o habito que tinha ainda o pó do convento de Goa, e vestiu a mortalha como se fora gala. Quando ia para pôr o chapeo, o criado trouxe-lhe duas cartas que haviam chegado n'aquelle instante.
Eram de Londres. Abriu e leu-as com anciedade.
A mulher de Hartman queixava-se do atrazados pagamentos, e declarava que quando não os recebesse no mez seguinte, mandaria os orphãos para algum asylo de caridade.
-- Vae vendel-os! exclamou frei Francisco, caindo n'uma cadeira.
E depois de estar calado alguns infantes, proseguiu n'um gesto de angustia.
-- Se eu podesse viver até o dia tres de dezembro, tudo ficaria remediado com as dez libras, que Ricardo me deve pagar; mas assim! Meu Deus! Não me atireis outra vez ao fundo do abysmo. Não posso...
A sua oração foi ouvida. Frei Francisco não teve nenhuma duvida acerca da sua resolução.
Escreveu mais duas linhas a Roberto, no sobrescripto da carta, e entregou-a ao criado, recommendando-lhe que só no dia seguinte a levasse para a casa de Roberto. Poz o chapeo e saiu do quarto.
Antes de transpôr o limiar da porta, chamou o criado e o sachristão. Quiz falar, mas não pôde. Olhou para ellespor alguns instantes. Finalmente, partiu.
Consumatum est.
Ouviam-se ao longe uns soluços... Seriam d'elle?
XXI
Deposuit potentes
Em quanto frei Francisco ia pela estrada de Oude, um homem subia os degraus da escada do bangaló de Roberto. Gobria-lhe a cara, a grande pala verde, que deixava apenas ver as longas barbas que lhe desciam até os hombros. O corpo estava involvido emtunicaroxa, e por cima d'esta pendia, similhante ao escapulario, finissima manta de cachemira. O guarda portão assim que o avistou, deu um pulo de medo c fechou a porta.
O desconhecido bateu com toda a força; e uma voz que saía da janella perguntou o que queria.
-- Pretendo falar ao senhor Roberto, respondeu o recemchegado.
Depois de alguns minutos, abriu-se lentamente a porta e um criado conduziu o desconhecido para o gabinete dc Roberto, que habitava no bangaló uns quartos que haviam sido antigamente armazem de algodão.
Ao atravessar os corredores, ao passar pelas salas, o recemchegado sentiu-se tão fora de si que apenas se lembrava dodesignio com que alli viera.
A sua razão não podia reprimir os movimentos do coração, que batia com violencia, sob o peso das mais tristes recordações. Sentou-se junto á mesa, palpou o panno escuro que a cobria, examinou a escrevaninha e a campainha.
Eram ainda as mesmas! Só elle havia mudado.
A voz de Roberto despertou-o com sobresalto.
-- Folgo muito de o ver n'esta casa, senhor Sobal, disse Roberto, chegando-se ao pó do recemchegado.
Sobal inclinou-sc respeitosamente sem dizer palavra. Roberto puxou uma cadeira e sentou-se ao pé da visita. Houve um momento de silencio em que os dois se miraram. Quebrou-o Sobal dizendo:
-- Eis uma carta que recebi hontem de Londres.
Roberto, lançando os olhos ao sobrescripto, franziu o sobr'olho como quem receia. Abriu-a e percorreu com avidez as poucas linhas que ella continha ; quando chegou ao fim empallideceu, e deixou-se descair exhaustona cadeira.
Alegria feroz scintillou nos olhos de Sobal.
A carta dizia assim:
Meu amigo «O portador d'esta é Sobal Josephat, a quem pagarás, dentro de dez dias, as tres mil libras que me deves. Se te fór absolutamente impossivel realisar este pagamento dentro do prazo marcado, deves entender-te com o mesmo Sobal, a quem eu por escriptura publica vendi o meu credito.» Teu amigo Jacques Mathew.
Depois de breve pausa, Roberto levantou o rosto como quem desperta de um pesadelo, tomou uma longa respiração e disse com voz commovida:
-- Senhor, é-me impossivel por emquanto pagar-vos este dinheiro. Não o tenho. Não sei mesmo se o terei. Peço-vos que me concedaes o prazo de quatro mezes, que é bastante para eu saber se o meu primo se determina a pagar as minhas dividas.
Sobal replicou em tom firme :
-- Por mais sympathias que me inspire a vossa situação, é-me impossivel annuir ao vosso pedido.
A severidade é assim : laconica sempre.
-- Não é possivel, bradou Roberto, que o homem que me salvou a vida queira agora torturar-m'a. Fostes magnanimo, peço agora que sejaes apenas generoso. Livrae-me do carcere. Não vol-o imploro por mim, que iria com resignação sepultar n'elle a minha vida e o meu nome ; os meus rogos são por este anjo innocente, que eu adoro, por minha filha.
Estendia as mãos unidas como um culpado que implora compaixão.
No rosto immovel de Sobal parecia a vida paralysada. Um sorriso assomara aos seus labios, mas recolhera-se receioso de ser indiscreto. O demonio que trazia no coração pulava de alegria feroz. As lagrimas de Roberto, compradas por tres mil libras, caíam como uma gota de balsamo sobre ulcera antiga e dolorosa. O homem que estava com mãos postas e pedindo com tanta humildade, era esse que ha onze annos, debaixo d'estes mesmos tectos, humilhara a um aceno seu o orgulho de uma raça, e abatera a dignidade de uma casta.
Insondaveis segredos de Deus!
-- E muito pouco ainda, dizia Sobal comsigo, para eu estar satisfeito! Dilatar-lhe-hei a vida para lhe alongar os tormentos ! !
-- Senhor, dou-vos o prazo de um mez.
-- Um mez só ! exclamou Roberto.
-- E quanto posso fazer. Mais, é-me impossivel.
Dizendo estas palavras, Sobal saiu precipitadamente do quarto, deixando Roberto entregue á sua desesperação.
Pobre Roberto!
SEGUNDA PARTE
I
A familia anglo-indiana
Sopravam as primeiras e brandas bafagens dos terraes ; as flores brotavam viçosas ; as folhas ornavam-se de brilhantes perolas que o orvalho da madrugada, mais fertil que o mar de Ceilão, n'ellas creava todos os dias e que os raios do sol deviam logo desfazer com o seu primeiro osculo ; o ceo despia os seus fatos negros e luctuosos do inverno para vestir as galas da estação, que é na índia a primavera dos europeus.
Era o mez de dezembro, em que Fizabad se torna alegre e frequentes vezes visitada pelos estrangeiros. N'uma sala vasta, clara, adornada de quadros riquissimos e guarnecida de espelhos, de estatuas, demobilia deebano, de poltronas, de sophás, de consolas, de flores e porcelanas, via-se ao péde uma janella, que estava aberta, um homem que, apezar de ter quarenta annos, parecia passar dos sessenta. Tanto os desgostos o tinham avelhentado. Vestia fato branco de linho, e tinha na cabeça um barrete de veludo. Estava assentado e conversava com uma menina de 17 para 18 annos, tendo a mão d'ella entre as suas.
-- Vê, dizia o homem, que deliciosa manhã!
-- Em dezembro um tempo assim! Parece impossivel ; respondia Helena, abanando a linda cabecinha.
-- Cuidas que estás ainda em Londres? continuava o homem, que o leitor já deve ter adivinhado que é Roberto.
-- Não fazeis idéa, meu pae, replicou Helena, quanto me agradam estes sitios.
Falando assim, a gentil menina traduzia em linguagem sincera e verdadeira a sua commoção. Deleitavam-se-lhe os olhos quando os profundava por estes extensos horisontes. O contraste d'estes campos verdese risonhos com a austera e sombria Londres, a grandeza d'estas linhas, a magia d'estas paizagens, a graça d'estes contornos, a immensidade d'estes espaços pelos quaes a imaginação corre livre, se exalta e engrandece, a tranquillidade d'estes povoados, os vislumbres com que este sol faz rutilar todas as côres do prisma nas cascatas, nos rios e lagos, esta natureza, em fim, tão fecunda de riquezas, como moça e louçã, tinha vivamente impressionado, a donzella , que não conhecera senão o sol sempre triste da Inglaterra, e esse nunca o vira senão atravez das vidraças da janella do seu quarto.
Não incommodaremos o leitor, obrigando-o a assistir a este longo dialogo entre o pae e a filha. E facil adivinhal-o. Helena ia com o seu meigo sorriso, relendo, iilustrando e confirmando uma a uma todas as paginas da longa historia, que tinha escripto nas cartas que dirigira a seu pae. Roberto não desfitava os olhos da filha, annellava-lhe os cabellos á roda da testa fazendo-lhe como que uma corôa debaixo da linda toca de filó que cobria metade da cabeça.
Beijava-a com transporte, gravava na alma as palavras que lhe ouvia, e meneando a cabeça, mirava-a com o mesmo desvanecimento e orgulho com que a pastora se mira ao claro espelho do regato. Roberto era pae. Está dito tudo.
N'esta pratica, Helena não se esquecera de falar de Thomaz. Ha seis mezes, dizia ella, Thomaz veiu ter comnosco ao gabinete. Estava triste e pensativo. Perguntámos-lhe eu e Emília, se lhe acontecera alguma coisa.-- « Nada, respondeu elle; uma resolução bem simples. Amanhã vou largar os meus estudos e entrar em uma casa de commercio. » Mal estas palavras foram pronunciadas. --Váe separar-se de nós! exclamámos ao mesmo tempo. -- Não, minhas irmãs, replicou elle pronptamente; mas com uma voz tremula, delatora de quanto se lhe a alma attribulava.
Estranhámos o desamor com que nos deixava, e elle só com ternas caricias respondia ao que lhe arguiamos. Desde esse dia, Thomaz levantava-se ás oito horas e saía; voltava ás onze e tornava a sair até ás cinco da tarde. De noite, assim que tomava chá mettia-se no quarto e escrevia até á madrugada. No fim de alguns dias, percebemos que Thomai estava pallido e abatido. Pedimos-lhe com as lagrimas nos olhos, que deixasse de trabalhar tanto e sustentámos o pedido, allegando que as mezadas que recebiamos chegavam bem e até sobejavam. Não nos respondeu ; e n'essa noite, para nos fazer a vontade, deitou-se cedo. Se vós, meu pae, nos não houvesseis mandado buscar, o mano Thomaz de certo teria caido doente.
-- Chamas-lhe mano? perguntou Roberto com assombro.
-- Sim, meu pae; Thomaz é digno d'isso.
-- Em familia, disse Roberto franzindo o sobr'olho, pódes dar-lhe este tratamento; mas em publico, não...
Helena fez um gesto de espanto e abaixou os olhos. Um rosado esparziu-se-lhe pelo rosto. Roberto beijou-a affectuosamente.
Emquanto Roberto conversava com sua filha, frei Francisco e Thomaz passeavam pela sala ; este ouvira as ultimas palavras de Roberto.
Para satisfazer a curiosidade do leitor, diremos que frei Francisco voltara da villa de Oude, sem encontrar um só thog. Apenas um vulto de capa escura o seguira por algum tempo, e depois desapparecera.
Estava pois o frade passeandonasala deRoberto com as mãos cruzadas atraz das costas e dizendo:
-- Tive tão más informações de Hartman, que muito receei que elle te mandasse a ti e a tua irmã para algum collegio da propaganda protestante, logo que deixasse de receber as mezadas. Empreguei todos os esforços para arranjar o dinheiro, mas não foi possivel. Ha tão poucos catholicos em Fizabad !
- Meu bom padre! assim que me constou por um jornal que o senhor Roberto havia sido vilmente roubado por um brahamane, previ os embaraços em que elle se havia de achar para pagar as mezadas e tratei de os atalhar. Nada disse ás minhas irmãs; e de que servia dizel-o? Fui offerecer-me para escripturario da casa Forbes & C.ª, e tive a fortuna dc ser logo admittido com o ordenado de dezoito libras, em attenção ás minhas habilitações. Pouco era isso para o que eu queria. Comecei a dar lições de mathematica das oito horas até ás onze, e de noite a copiar musica ; assim pude arranjar mais sete libras. Parte d'estes sacrificios foram imiteis, porque, desde o mez de outubro, um cavalheiro que se dizia vosso amigo, nos enviava regularmente tres libras por mez.
-- Meu amigo! interrompeu frei Francisco.
-- Assim se intitulava, continuou Thomaz.
-- Como se chamava ?
-- Parece-me que Sobal.
Frei Francisco ficou pensativo. Não lhe era facil rastrear o motivo por que Sobal lhe não confiara aquelle dinheiro.
-- Desconfiou talvez da minha probidade. Paciencia! disse elle comsigo.
Depois, voltando-se para Thomaz, accrescentou, -- Deus te abençôe, meu Thomaz; mostraste que eras bom filho, e bom irmão.
Nos olhos do virtuoso sacerdote brilhavam duas lagrimas. Eram de prazer.
Thomaz pegou na mão de frei Francisco e beijou-lh'a com effusão. Depois ergueu para elle os olhos como que para lhe dizer: Roberto, e vós tirasteis-me do nada. Sou-vos reconhecido.
Depois de curto silencio, proseguiu Thomaz, animado pela affabilidade de frei Francisco:
-- O que eu não sei, bom padre, é como o senhor Roberto arranjou dinheiro para pagar as nossas despezas da viagem. E não foram pequenas.
-- Foi o sr. Ricardo quem fez todas essas despezas, e quem agora vos hospeda. Não lh'o agradeças; por que com isto molestarias a sua modestia.
-- Que bondade! murmurou Thomaz. Não é só o que faz, mas a maneirapor que o faz que mais obriga. Queira Deus que antes de eu deixar Fizabad, possa provar-lhe o meu reconhecimento.
-- Como assim? Pretendes voltar para Londres?
-- A casa Forbes tem uma succursal em Calcutá; eu para acompanhar as minhas irmãs solicitei e consegui uma transferencia. Não posso demorar-me em Fizabad mais de quinze dias. Desejava levar commigo Emilia, mas vejo que é impossivel separal-a de Helena. Ellas amam-se tanto!
-- Vae descançado.
Ditas estas palavras, frei Francisco pegou no seu chapeo e saiu.
Nestas conversações, que se repetiam todos os dias, frei Francisco folgava da bizarria e nobres sentimentos do seu pupillo, como o agricultor logra ufano os primeiros fructos da arvore que plantara.
Ver o resultado de um trabalho em que se tem consumido cuidados, actividade e vigilias , e ao qual se tem sacrificado muitos prazeres, é uma verdadeira festa do coração. Thomaz pela sua parte esforçava-se por provar que comprehendia os sacrificios que frei Francisco e Roberto tinham feito para o educarem.
II
Termina a infancia
Thomaz desceu ao jardim. Uma vaga melancolia cobria-lhe o coração. Nem o murmurio da fonte, nsm o perfume das flores, nem o susurro da ramagem, nem os gorgeios dos passaros o despertavam da tristeza em que estava abysmado.Na sua mente agitavam-se rapidas e tempestuosas, como as ondas do mar, as ultimas palavras que ouvira a Roberto. Combinava-as com a estranheza ou antes com o espanto que se pintara nos semblantes dos seus companheiros de viagem inglezes, quando pela primeira vez o viram conversar com Helena e dar-lhe o tratamento de irmã. A conclusão era terrivel. E ainda para mais o atormentarem não se lhe haviam escoado da memoria os conselhos que Hartman lhe dera, quando pela ultima vez lhe apertara a mão.
-- Olha; a sociedade na índia, não é como na Europa. Lembra-te de que és indio e procura mostrar-te docil se queres ser estimado.
O filho de Magnod achava dentro em si uma apprehensão. um receio, cuja causa ignorava, e cujo effeito combatia debalde.
Thomaz desde tenra edade consagrara a Helena todo o seu coração. Era uma paixão secreta, silenciosa, submissa, cujas dôres só as conhecia quem as padecia. Como a timida borboleta, o moço indio volitara á roda da sua flor, aspirara-lhe os primeiros perfumes, vivera de a ver, de. a contemplar e de a adorar atravez do veo da innocencia que a cobria como o vapor húmido cobre as flores. De dia e de noite, no silencio do escriptorio, e no bulicio das ruas, na immensidade do ceo, e no ondulante prateado do mar, na desolação do presente e na incerteza do futuro, era a imagem de Helena que o alentava e sustinha, como a esperança confortao crente nos transes da agonia. Sem nome paterno, sem familia, sem tradições, arremessado ao meio da sociedade, como o naufrago que as ondas arrojam á praia deserta, o infeliz suspendia-se das azas d'este anjo, que o colhera n'um d'esses olhares celestes e fataes que tem o poder magico de accender no coração humano uma chamma, que para uns é o fogo do inferno, e para outros a luz do paraizo. O amor de Thomaz era uma adoração; era Dante aos pés da Beatriz; a virgindade adorada pela virgindade. Nunca um pensamento, um gesto sequer, menos puro, manchara a candura d'este sentimento. Se o amor deve ser puro de todo o sensualismo, uma união angelica e sagrada de dois seres, as azas de um só espirito ; se o interesse, o fim, a perfeição do amor deve ser o mesmo amor, devemos confessar que Thomaz era o modelo dos amantes.
Mas por que era que Thomaz escondia o seu amor como o avarento esconde o seu thesouro?
Por que era que se angustiava quando percebia que o nome de irmão não bastava e que era precisa essa phraze sem segunda, esse eu amo, que unico podia exprimir o sentimento absoluto, ardente, que o agitava, e diante do qual sentia fugir a imagem candida da innocencia? E que o infeliz era escravo da gratidão.
Thomaz estimando a filha do homem a quem devia a sua educação, cumpria um dever; estava certo d'isso; mas amandoa, quem sabe se o tomariam por um ingrato, e se o seu bemfeitor o amaldiçoaria um dia ! A gratidão comprimia, abafava e atrophiava um coração que nascera grande, e condemnava o mais puro dos amores ao silencio antes do primeiro suspiro, á morte antes mesmo do primeiro volver dos olhos. O infeliz pedia aos dias doirados eás lembranças tão vivamente recordadas da infancia, que o deixassem; aos pensamentos fagueiros que o poupassem ; ao amor, que se compadecesse d'elle; por que a alma que uns e outros attrahiam não era sua. Ha muito a gratidão a comprara, e tinha como sua escrava.
A sociedade, que Thomaz crera sempre se governava pela lei do evangelho, parecia-lhe agora hypocrita e egoista. Obcecada pelo seu amor proprio, surda pela sua vaidade, e cruel sempre, essa sociedade não ouve nem as maldições dos condemnados do inferno, nem os arrulhos das innocentes pombas. Como reconduzil-a para o verdadeiro caminho? Como tornal-a mais humana?
Quando Thomaz fazia estas perguntas e não lhes achava resposta, sentia gelar-se-lhe o coração. Oh! sociedade ! Sê mais compassiva; não te interponhas entre mim e a minha divindade. Tu és forte eeu fraco ; se continuares na tua crueldade... adeus felicidade! adeus amores ! adeus Helena!
Quando aconteciaque Thomaz, tremulo de commoção, pallidodeterror, atormentado de mil duvidas, com a bocca fremente de suspiros, deixava escapar hos olhos uma centelha da chamma que o queimava até ámedullados ossos, Helena abaixava os seus para depois os erguer em todo o esplendor da innocencia, erestituia virginisado oolhar que recebera, acompanhando- o da doce palavra de irmão, que, dita n'esta conjunctura, fazia a Thomaz o effeito de uma porção de gelo que caisse sobre ocoração. Oseutimido amor retrahia-se aos limites da amizade, dos quaes se arredara involuntário.
A filha de Roberto não sabia se o affecto que sentia por Thomaz era amor ou simplesmente ternura de irmã. Podia ser uma e outra coisa, o mais uma que outra. O amor que succede á amizade não toma desde logo um caracter pronunciado. E o crepusculo em que se confundem as sombras da noite com a claridade do dia. O amor que não assalta com toda a sua impetuosidade, o amor, que não assignala desde logo os seus rasgos, confunde-se na sua marcha lenta, vagarosa e serena com a amizade. Não cae como o raio ; lavra como o incendio.
Havia quazi dez annos que Thomaz e Helena se adoravam em silencio, e nunca haviam trocado uma só palavra a este respeito. Os seus suspiros encontravam-se na brisa da tarde, os seus olhares cruzavam-se nas estrellas, e os seus osculos juntavam-se nas flores. A natureza era a sua confidente. O tempo, descobrindo aos dois amantes novas virtudes, creou-lhes novas obrigações de se estimarem e de se presarem.
Thomaz ora passeava nas ruas do jardim com o passo apressado, ora assentado no banco que ficava defronte das janellas da sala, contemplava por entre a ramagem a formosa Helena, que, recostada sobre o cotovelo, com a face reclinada na mão, conversava com Roberto. As fitas da touca brincavam pelos hombros da gentil donzella e a manga larga e ornada de espiguilha descobria-lhe o braço mimoso e torneado até ao cotovelo. O moço indiano, com os olhos fitos no seu amor e aspirando-o como um perfume, dizia comsigo:
-- Não querem que em publico eu lhe chame irmã! Enveigonham-se talvez... Como podem querer que um dia lhe chame esposa á face da egreja?... Impossivel.
Engolphado n'estes pensamentos, deixava pender a fronte; o seio palpitante suffocava-o e a bocca não achava sequer um gemido.
Como elle amava!
Como elle temia!
III
Festina lente
Em quanto Thomaz se embalava nos seus pensamentos, descia ao jardim Ricardo dando o braço a Jimilia. Seguia-o um criado trazendo na mãp uma caixa de costura. Apenas tinham dado alguns passos, a filha de Magnod parou e disse voltando-se para o seu companheiro:
-- E Helena?
-- Não deve tardar; respondeu Ricardo.
Trocadas estas palavras, tomaram o caminho do lago, e foram-se assentar n'umas cadeiras de junco, á sombra d'uma frondosa figueira.
A beldade do sitio, as exhalações balsa- es, o doce frescor do lago, sulcado de lodão, e cercado de bananeiras, é de molde para os dialogos do amor.
chamou a attençâo de Emilia para uma que estava morta ao pé do lago. Depois, conversação foi-se deslisando por assumptos bem frivolos.
Emilia era indiana. A educação aperfeiçoara lhe os dotes, mas não corrigira os seus instinctos de altivez. Orphã de paes, educada por mestras que podem esclarecer o espirito, mas nunca formar o coração, e desfavorecida da fortuna, preoceupava-se muito do seu futuro, que mais duvidoso e triste se lhe afigurava depois que presenceara as differenças é preoceupações que trazem dividida a sociedade anglo-indiana. Emilia julgava-se com uma circumspecção superior á que se encontra geralmente no seu sexo, e confiava em si para dominar o coração. Sabia que assim como ha fascinações que dão a vida á mulher, ha outras que lhe levam a morte.
Ricardo era um d'esses habeis galanteadores para quem o cortejo ás mulheres é um passatempo, prompto em advinhar o caracter d'aquellas a quem queria cortejar, e esperto nos meios de as conseguir. Na chronica dos seus feitos liam-se poucas derrotas e muitas conquistas. O amor era-lhe arte, e a mulher a comparsa que com as suas lagrimas e ás vezes com a sua honra lhe preparava os trinmphos. Passara os primeiros annos da mocidade a disputar as mulheres aos maridos e as filhas aos paes. Nas suas aventuras não sentia senão o prazer da victoria. Apaixonava-se comoumloucopelamulher quco desprezava; mas apenas era senhor d'ella, cançava-se de a possuir.
Era como o caçador que persegue a caça pelo prazer da fadiga, da lacta e das peripecias, e apenas a alcança, esquece-a no campo . A sua palavra destra e perfida penetrava no coração das mulheres; o seu olhar fascinava-as; os seus dotes physicos deslumbravam-lhes os olhos ; e o alarde que fazia das virtudes inspirava a todas confiança. O milhafre tinha visto uma pomba.
Perseguia-a. Emilia estava entre duas viboras.
Ricardo e a indiana estiveram silenciosos por alguns instantes.
-- Como é bello este lago! disse Emilia, que estava assustada do silencio.
-- Nunca o achei tão bello como hoje, respondeu Ricardo sem levantar os olhos.
Uma nuvem passou pelos olhos de Emilia. Era receio.
Roberto percebeu-a.
-- A satisfação do coração reflecte-se em tudo quanto nos cerca e realça-lhe a belleza. Duvidaes de que eu esteja hoje alegre?
Emilia fez um gesto de espanto.
-- Não o entendo; respondeu ella, algum tanto perturbada.
-- Tendes razão, replicou Ricardo, porque não adivinhaes o segredo que tenho no coração.
-- Senhor ! Vamo nos; Helena não apparece.
-- Vou mandar-lhe um recado.
Ditas estas palavras, Ricardo falou em hindostani ao criado . Emilia percebeu que tinha pronunciado o nome de Helena e ficou descançada.
-- Sabeis qual é o meu segredo? continuou elle, lançando-se desfigurado e tremulo aos pés de Emilia.
-- Muito ha que espreito a occasião de vos poder dizer que vos amo, sim, que vos amo com toda a pureza e ardor da primeira paixão. Aproveito este lance em que ninguem nos ouve, ninguem nos vê, para vos confessar este segredo que me queima o peito. Não condemneis unia affeição que não tem outro fito senão a vossa ventura.
-- Senhor! Tende dó de mim! disse Emilia levantando-se, pallida e afflicta.
-- Sei que sois orphã, sei que pertenceis a essa raça que conquistámos ; mas que me importa isso ? Um abysmo que se interpozesse entre nós, o meu amor saberia vencel-o. Vinde pois, Emilia, ser a doce companheira dos meus dias, a luz e o enlevo da minha alma.
E impossivel descrever o que se passava no coração de Emilia.
-- Fazeis-me tremer com o vosso ar, Emilia!
Dizendo estas palavras, Ricardo cingiu-lhe o collo com as mãos. A indiana deu um grito e caiu desfallecida nos braços do mancebo.
Thomaz appareceu como um raio perto do lago.
Ricardo, segurando com um dos braços o corpo de Emilia apontou com o outro para a vibora.
Foi susto, disse comsigo Thomaz.
Quando Emilia recobrou os sentidos, estava indignada do procedimento de Ricardo.
Affligia-se de que elle imaginasse que só por ser rico e de illustre nascimento poderia determinal-a facilmente em seu favor. Graças dava ao ceo que a atalhara nas orlas do precipicio. Ao acaso devera a salvação.
Emilia abominava a Ricardo.
IV
As festas em Caumpore
O general da brigada de Caumpore dava um baile no dia dos annos da sua filha. Roberto e Ricardo haviam recebido convite, e tratavam dos preparativos da jornada, que devia durar pelo menos oito dias.
Um inglez costuma viajar na India como os nababos. Vinte ou trinta criados, dez a quinze bahus, duas barracas de campanha, quatro cavallos, oito cães, vinte camelos, grandes tinas de banho, largos cestos com soda water e pale ale: eis o sequito e a bagagem a que um modesto official do exercito britanico chama sem receio da hyperbole o seu trem indispensavel. Na ultima guerra da índia, um dos grandes obstaculos para o rapido movimento das tropas era a immensa bagagem dos regimentos europeus. Cada corpo levava atraz de si uma caravana.
Não seremos pois exagerados se dissermos, que no dia em que Roberto saiu de Fizabad com sua filha, primo e os dois indios, a velha cidade ficou quasi despovoada. Tão numeroso era o seu dorbar (côrte!) Esta jornada foi uma boa distracção para Helena, Thomaz e Emilia. A paizagem toma na índia um caracter particular e novo para os europeus. Os arrozaes estendem-se pelos campos como um panno verde ligeiramente ondeado, e coroam-se de bosques cuja verdura contrasta com os alvissimos frocos que pendem dos algodoeiros; as brancas e esguias arequeiras formam grandes pavilhões, e com as suas folhas fluctuantes saudam os viajantes; no ar vêem-se passar immensos bandos de aves de diversas côres ; e ondas de luz banham esta immensa creação.
Chegaram os viajantes a Caumpore ás quatro horas da tarde, e dirigiram-se immediatamente para a casa que previamente tinham mandado alugar. O nababo (principe) convidou-os n'essa noite para um natch (dança) das bailadeiras, ás nove horas da noite.
A mulher que vende a belleza, que negocea a honra, que deixa profanar as suas graças, chama-se na Europa prostituta. Senhora, virgem, virtude ainda hontem,é escrava, meretriz, trevas, vicio, demonio hoje. Dignidade, vergonha, coração, perdeu-os a desgraçada; a aureola da sua for mosura desfez-se como o fumo; o seu pudor tornou-se o cartaz da sua prostituição. Resta-lhe o corpo em quanto o vicio onão cobrir de hedionda lepra, para o entregar depois á caridade de algum hospital. Corruptos o espirito e o corpo, a sua des graça será então completa. Restar-lhe-ha ainda uma esperança, uma só, que não morreu porque é eterna. Chama-se Deus.
A mulher que nunca soube o que era honra, quenunca conheceu a dignidade, que nunca presou a virgindade, que nunca sentiu pudor, chama-se na índia bailadeira. E prostituta por direito de nascimento. Nada perdeu por que nada recebera; não caiu por que nuncasubira. Aceitou a prostituição como uma herança materna, triste e fatal ; cultiva-a como arte ; exerce-a como profissão. A bailadeira dança na praça publica, canta no pagode, e prostitne-se em casa. Zela, com toda a energia de que é capaz, a pudicicia das suas noras que aborrece, mas offerece no mercado do lupanar immundo as suas filhas que estremecei Tristes contradicções !
Entre essas infelizes que se tornaram mulheres sem nunca haverem conhecido a edade da innocencia, e foram educadas para a prostituição, encontram se algumas que se horrorisam da sua triste condição e que detestam o esposo caprichoso, inconstante, perverso e carnal, chamado mundo, que o mau fado lhes impoz,oqual mundo não lhes offerece senão o dinheiro e o desprezo. O brahamane que adora a bailadeira no silencio do gyniceo, na rua nem sequer a olha ; e ella, a infeliz, é obrigada a abaixar a fronte, a desfraldar immediatamente o cas , e a curvar-se humilde diante da sombra do hypocrita sacerdote de Brahamá.
Libertar-se do mundo para se dedicar a um só homem é para a bailadeira um progresso, a sua unica aspiração. Sentir-se amada, que ventura para quem nunca o foi! Ser escrava de um só senhor, que honra para quem o era de todos !
O coração, tanto tempo murcho, começa depois o seu desabrochar mysterioso, e a transbordar de serenidade e de alegria.
A casa de Zemidar era terrea; tinha no centro um saguão cercado de varanda, na qual esta vam collocadas, em duas ordens, cadeiras e sophás para os inglezes. Os indios estavam assentados no chão.
Quatro bailadeiras dançavam no saguão e desprendiam melodiosas harmonias por entre catadupas de luz, que se entornavam de centenares de lampadarios.
Estas mulheres vestiam saias de setim de grande roda; uma especie de camisolas tambem de seda, com peitilhos bordados a oiro, revelavam o desenho do peito ; traziam nos tornozelos finas correntes, das quaes pendiam pequenos guisos de metal amarello;ornavam-lhes os braços ricas pulseiras, e cingia-lhe o pescoço um collar de perolas com diversas medalhas ; no nariz brilhava o not (arco de oiro, engastado de brilhantes). A orchestra compunha-se dos sarongs especie de rebeca) e de alguns instrumentos de pancada. As dançarinas, ao som da musica e cantando sempre, ora avançavam em linha, ora recuavam, sendo este movimento acompanhado com tregeitos e visagens.
Eram dez horas quando Roberto entrou com a sua familia. Os olhos voltaram-se todos para Thomaz e Emilia. Os indios olhavam-os com desprezo e os inglezes com espanto.
Findo o natche, vieram as bailadeiras offerecer aos convidados, n'uma bandeja de metal amarello, o masticatorio indiano, que se compõe de areca, cal e cravo, enrolados em folha de betle.
Os inglezes que estavam presentes pagaram com boas rupias este mimo. As bailadeiras não se atreveram a offerecel-o aos brahamanes.
Depois do natche, seguiu-se o combate dos tigres. N'uma especie de carro triumphal, coberto de flores e puxado por dois ligeiros poneys, entre nuvens do fumo das velas misticas que ardiam por todos os angulos, entrou no circo o filho do nababo, rapaz de doze para quatorze annos.
Vestia cabaia branca e trazia um collar de esmeraldas de subido valor; na mão segurava um terçado de oiro. Os indios levantaram-se immediatamente, e os inglezes inclinaram-se para o cortejarem. Só o general teve a honra de lhe falar.
D'ahi a poucos momentos appareceram na arena duas gaiolas com dois tigres de grandeza desconforme; um sipaicollocou-as, uma á direita, e outra á esquerda, na distancia de vinte pés. O principe, apeando-se então do carro, montou n'um lindo cavallo arahe, e deu uma volta pela praça, na qual já não se via se não elle, o sipai e as duas gaiolas. ía começar o combate. Assim o dizia o arruido d'esse cortejo delirante, que, postado na varanda, esperava applaudir o seu principe. A um signal do sacerdote que estava presente, o sipai abriu a porta de uma gaiola, e logo depois a da outra. Os tigres avançam immediatamente um para o outro, qual mais feroz e medonho. Reina silencio nas varandas; todos os rostos empallidecem ; todas as boccas se calam.
O principe esporeia com violencia o cavallo.
Eil-o a dois passos dos animaes, mais sereno e animoso do que o heroe de Sauncotola ! Vibra golpes com indizivel destreza e admiravel seguridade; a lamina do terçado reluz á pallida luz das velas ; as cabeças dos tigres rolam pelo chão ; e a cabaia branca do audaz luctador apparece tinta de sangue. Um alarido de acclamações sauda o principe ; o sacerdote cinge-lhe a fronte com uma corôa de flores.
Momentos depois, os troncos dos tigres come çam a agitar-se e de dentro d'elles saem dois rapazes de oito a nove annos, do que ficam todos tanto mais espantados quanto de nenhum modo o esperavam. Mas nem por isso resfria o frenetico enthusiasmo dos espectadores.
N'uma parte da varanda estava armado um camarote, no qual se achava a irmã do nababo, princeza de rara belleza. Ninguem a podia ver n'esse dia. Tapava a bocca do camarote um veu verde, que não se levantou durante o espectaculo, nem mesmo quando o general, subindo a um estrado, foi comprimentar a princeza.
Da casa do nababo dirigiram-se ós convidados para o pagode, que era um edificio pequeno e nada tinha de notavel. Chamava a attenção geral uma figueira da índia, arvore monstruosa de cujos ramos pendiam lanternas e festões.
Pintae na idóa uma arvore immensa, extraordinariamente alia, de folhas largas, de innumeros ramos que partindo do tronco se estendem a distancias taes, que, conta a tradição e os olhos não contestam hoje, já deram sombra e formaram tecto para um regimento ; imaginae grossas raizes rompendo d'esses ramos seculares, e ora fazendo portas arqueadas no ambito, ora dividindo em cellas e andares o vasto interior desta arvore-edificio; supponde as rolas, os dominicos os pintasilgos, os verdilhões, os reis das gralhas aninhando-se pelos nichos d'estas paredes vegetaes, e todos formando uma orchestra, em que cada qual, tocando o seu instrumento e desempenhando a sua parte, concorre para a execução do hymno da alvorada; figurae os christãos, os fakirs e os jogues dormitando debaixo d'estas abobadas, e começando de manhã em diversas linguas e religiões as suas preces matutinas, as quaes se lhes não reflectem em eccos, antes parece que vão direitas ao caminho do ceo; figurae um edificio crescendo todos os annos como a humanidade que quer conter, um templo reunindo a symetria da basilica á extravagancia do pagode, illuminando-se do sole dalua, abrindo-se para todos, e não se fechando para ninguem: ahi tendes a tigueira da índia: ahi tendes a habitação de todos os viventes, o templo de todas as religiões, a hospedaria de todos os peregrinos, a arca de Noé, que a Providencia construiu para recolher todos os infelizes.
Do natche passemos ao baile do general, que foi no dia seguite.
V
O baile
Era numerosa a reunião em casa do general. Compunha-se dos officiaes da brigada, suas familias, magistrados e ofíiciacs da marinha. Uma musica mareial tocava á porta do ediOcio, e dentro uma orchestra enlevara com as suas harmonias os convidados, A sala do baile era um vasto paralleiogrammo, dividido em tres naves, por duas series de pilares.
Do tecto pendiam mais de trinta lustres, cujas torrentes de luz involviam o tropel ondeante de cavalheiros e as senhoras, que assentadas era riquissimas cadeiras, agitavam com indizivel graça os seus leques da China. Sobresaíam a todos pelas suas roupas de tisso alguns nababos, que assistiam ao baile, e que se similhavam a pavões, cujas pennas doiradas contrastassem com a singela alvura dos pombos.
A familia de Roberto entrou depois de romper o baile. As duas senhoras foram-se assentar nas cadeiras, que ficavam no topo da casa. Ambas trajavam com simplicidade c graça. Traziam vestidos de gaze. Emilia conhecia os primores do enfeite, e possuia todos os segredos d'elle. Apresentava-se sempre bem. O corpo flexivel cedia a ondulações graciosas e desaffectadas, e as formas elegantes davam-lhe realce á formosura. Se a sua côr fosse menos trigueira, seria bella como uma andaluza. Helena tinha menor vivacidade no olhar e maior gravidade no porte. A pelle finissima e transparente, as faces mimosas, os olhos azues, os cabellos loiros, faziam um contraste com os cabellos negros, os olhos pretos, a pelle cobreada d'aquella que a sorte lhe tinha dado para companheira e irmã.
Instantes depois, a orchestra começou a tocar uma quadrilha. Os cavalheiros que estavam reunidos no centro da sala dispersaram-se como as borboletas pelo jardim. Uma especie de estremecimento percorreu a fileira das damas. Cada qual esperava o par da sua escolha. O general dando o braço a Helena, conduziu-a para o logar de honra. Os outros pares seguiram-no.
No topo da sala via-se uma senhora assentada, e á porta um homem em pé. Ambos estavam sem par. Eram Thomaz e Emilia.
Olharam um para o outro e curvaram a cabeça.
Ricardo, escondido atraz de um reposteiro, observa esta scena e procura tirar partido d'ella.
Circula pela sala como quem está procurando par, e quando chega perto de Emilia, esta diz-lhe no mais expressivo olhar:
-- Salva-me !
Ricardo faz uma cortezia e offerece-lhe o braço.
A gentil indiana encosta-se com a maior graça e languidez ao braço do seu par, e o mancebo velhe no rosto a expressão de felicidade agradecida.
De que coisas depende ás vezes a sorte de uma mulher !
Durante a dança, Ricardo falou a Emilia nos sentimentos do coração, e admirou a discrição e graça com que ella sustinha a conversação sobre assumpto tão grave e delicado.
-- E mulher esperta, disse elle comsigo, mas é mulher... E basta.
Acabada a quadrilha, Ricardo conduziu o seu par para uma sala proxima, onde se serviam os refrescos. Alli se demoraram, entretidos na mais animada conversação. Entretanto a orchestra começara a tocar uma valsa. Ricardo e Emilia entraram no turbilhão e lá se foram arrastando no giro vertiginoso. De repente Os outros pares, que estavam dançando, ficaram parados como se fossem penetrados de uma corrente electrica. Só um par dançava. Era Ricardo e Emilia. A filha de Magnod valsava admiravelmente. Todos os olhos estavam suspensos do vôo d'esta sylphide. Ninguem respirava. Nos passos que serviam de preludio ao giro, imprimia ella a seu corpo mais flexivel do queolyrio ondulações tão graciosas, e tão languida morbidezza, que parecia o cysne derivando-se em harmonioso balanço pela corrente do lago ; depois, desapparecia por entre as ondas do gaze, deixando apenas ver a cabeça, que se erguia altiva comova aurora que surge magestosa das aguas do Ganges. O seu pé ligeiro, nervoso e infatigavel, era uma mola de aço. Quasi que se não poisava no chão. Ella não dançava: voava. Era uma sombra.
Quando acabada a dança, rompiam as palmas, o coração de Emiria palpitava com força, um arripio corria-lhe pelas veias. O seu olhar ardente encontrava o de Ricardo, e as mãos dos dois se juntavam.
Emilia tinha esquecido.
Emilia tinha perdoado.
Emilia quizera amar.
A walsa causa vertigens.
Humilhada ainda ha pouco, Emilia julgava-se agora rainha do baile. E a quem devera ella esta ventura? A Ricardo.
O nosso coração nunca quer mal a quem lhe; proporciona um prazer. A atmosphera estimulante do baile e o triumpho tinham embriagado Emilia.
As grandes alegrias tocam a demencia. E as flores ornam e escondem muitas vezes as bordas dos precipicios.
Antes de começar a segunda quadrilha, Thomaz dirigia-se para Helena a fim de a tirar para par, quando um joven official de cavallaria, adiantando-se para elle, lhe disse com precipitação:
-- Esta senhora tem par.
Helena corou, e o official, dando-lhe o braço, levou-a para o meio da sala. Thomaz retirou-se contrariado para a galeria proxima. Era a segunda quadrilha a que elle dançava com Helena nas soirées de Hartman. As quadrilhas teem tambem a sua linguagem. A primeira pertence de direito aos noivos, ou aos que estão para o ser; a segunda é mercê que se faz aos namorados que temem a vigilancia paterna; a terceira é favor aos amantes que temem o ciume dos maridos. A galeria, para onde entrara Thomaz, estava transformada em um pomar, cheio de arvores exoticas e de plantas raras, e cortado de ruas de laranjeiras verdes e copadas.
No centro, via-se uma fonte, cuja agua, saltando de rocha em rocha, caia em larga bacia. O chão era coberto de areia tão fina e secca que parecia um tapete da Turquia. Pequenas lanternas escondidas por entre a folhagem das laranjeiras espalhavam baço e languido luar. Mal o mancebo se havia sentado, ouviu conversarem dois homens muito perto de si, mas que a ramagem do bosque lhe occultava completamente.
Escutou.
-- Sabes que mais, dizia um d'elles: Jorge faz a côrte á filha de Roberto.
-- E tempo absolutamente perdido, respondia o outro.
-- Não entendo.
-- Eu te digo. Ella é obrigada a casar com Ricardo para herdar a fortuna de Davis, e para pagar as dividas do pae.
-- Isso são as contas que o pae deita. Veremos.
-- Mas ella não quererá de certo ver morrer o pae em alguma masmorra. Não lhe faço a affronta de suppôr...
-- Mas Jorge é bastante rico para pagar as dividas de Roberto, e assegurar a felicidade de Helena.
-- Dizem tambem que ella gosta muito de Thomaz, que foi ainda agora tiral-a para par.
-- Loucuras de creança! Hão de passar com o tempo. Casar com um brahamane! Uma Obrian!
É o que faltava.
N'este momento entraram mais alguns cavalheiros na galeria, e o dialogo acabou.
Foram essas palavras como horrivel clarão do corisco que esclareceu a Thomaz. O infeliz viu do primeiro lance de vista quão contrariado devia ser o amor que consagrava a Helena.
O sangue accendeu-se-lhe com os sopros do ciume, e tornou-se incendio aquelle fogo mal acceso que lhe ardia no peito. Diante do idolo que adorava com fé, e com cegueira, aniquilou-se-lhe a consciencia, apagou-se-lhe o sentimento do dever e turvou-se-lhe a razão.
-- Não! não! exclamou elle pondo-se de pé subitamente ; não posso !
Thomaz tornou a entrar na sala. Procurou com os olhos Helena. Estava dançando a polka com Jorge.
-- Não ha duvida, disse elle, olhando-os com furor, amam-se. Foi Helena, que não quiz dançar commigo.
Em um momento o seu pensamento corria no vôo impetuoso os innocentes e risonhos dias da infancia. Com que dor os não recordava elle agora !
O amor esmagava o coração do mancebo, onde o ciume derramara todo o seu veneno, todas as suas tentações infernaes, todos os seus sonhos delirantes.
Acabada a dança, Jorge aproximou-se de Thomaz e disse-lhe que Helena queria falar-lhe. O mancebo foi ter com a sua companheira da infancia. Estava pallido. Helena deu mil desculpas e convidou-o para dançar uma valsa. Thomaz recusou-se a tudo obstinadamente, e retirou-se.
O baile acabou ás tres horas da manhã.
Roberto com a sua familia, foram os ultimos que sairam.
Jorge veiu acompanhar Helena até á porta. Seguiu-os Thomaz, cuja tristeza contrastava com a alegria de Emilia, que até ao fim do baile não largara o sceptro de rainha. Não houve mancebo que não fosse convidal-a para par, nem cavalheiro que não tivessse com ella assignalados resguardos e melindrosas preferencias.
Embriagada pelo triumpho, nem sequer imaginava que o devera em parte á novidade de haver sido ella a unica indiana que se achara no baile.
Se ella percebesse!
VI
O ciume
Thomaz entrou no seu quarto, acabrunhado pelas duvidas e receios. Não sabia como passar o resto da noite. Dormir não o deixavam nem as tristes reminiscencias do baile, nem as torturas do ciume. Era impossivel.
Não ha nada mais mysterioso, mais tyranno, mais immenso do que este monstro chamado ciume, que nasce do amor, como a raiva nasce do mais fiel dos animaes. E a tempestade em que luctam como gigantes o odio e o amor, a dôr e a vingança, e em que os abysmos do coração humano apparecem illuminados com os clarões do inferno. Recear tudo, desconfiar de todos, duvidar sempre, analysar os nadas, interpretar as bagatelas, abraçar-se aos phantasmas, penetrar nos antros, descer ao chãos, perder-se nas chimeras, crer e descrer, dizer e desdizer, amar e desamar, chorar como uma creança e rugir como um tigre, andar do paraizo para o inferno, e do inferno para o paraizo: eis o ciume.
Thomaz passeava pelo quarto como um louco.
Recordações negras, horriveis e desesperadas passavam-lhe pelo cerebro. N'este combate de pensamentos oppostos e irreconciliaveis, conseguira elle apenas umavictoria. O phantasma da gratidão, quesurgia semprejentre elle e a imagem querida de Helena, que os vinha separar em nome do dever, esse tyranno desapparecera, ou pelo menos os olhos de Thomaz já o não viam. O mancebo tinha levantado a luva que o mundo lhe arremessara ás faces. Deve ser bello grande e sublime, dizia elle comsigo, este duello que vou sustentar com uma sociedade que vive da mentira e da impiedade, que passa a sua mão de ferro sobre os pequenos para os esmagar, que monopolisa as aguas, as flores e o sol, e que ainda em cima chama ingratos aos infelizes que se não deixam insultar. A minha victoria será a egualdade que nivela, como a agua do mar, os grandes e os pequenos, os fortes e os fracos, os ricos e os pobres; a minha victoria será o reino do mundo modelado pelo reino do ceo; a minha victoria será a reforma de todos os codigos pelo evangelho ; a minha victoria será Helena.
Thomaz, abrindo umajanella, assentou-seao pé d'ella, e começou a fumar desesperadamente.
Acabou até o ultimo charuto que trazia. Mas a noite porfiava em crescer, e o infeliz carecia de encurtal-a. Foi ter com os sipais que estavam ainda a dormir e pediu a um d'elles que lhe trouxesse um cachimbo com opio. Causou estranheza o pedido por que Thomaz não usava de tal narcotico. Obedeceu porém o sipai promptamente.
D'ahi a alguns momentos, Thomaz estava outra vez assentado ao pé da janella, com as pernas estendidas sobre uma cadeira, e a cabeça reclinada na mão esquerda. O sipai aguardava immovel ulteriores ordens.
Não agradaram ao mancebo as primeiras aspirações do opio. Eram amargas. Já não foram assim as segundas. As subsequentes começavam a ser deliciosissimas. Não pôde continuar. O cachimbo caiu-lhe das mãos, e fez-se pedaços. Começou a somnolencia. O sipai repetiu tres vezes -- Alah e foi-se.
Thomaz tinha a cabeça apoiada sobre o encosto da cadeira. Estremeciam-lhe as palpebras, palpitava o nariz, e os musculos da face iam-se deprimindo gradualmente. Tingia-lhe o rosto pallidez mortal ; o corpo tinha a rigidez do cadaver.
Era no exterior perfeita morte; no interior dobrara-se-lhe a vida. A visão de Dante era nada, comparada com a do mancebo.
Thomaz vê diante de si uma mulher vestida a oriental. Divinamente bella e humanamente impossivel é ella. Os seus cabellos de oiro descem em espiraes até á cintura ; orna-lhe a cabeça um turbante de seda azul, tendo no tope a mais linda penna de abestruz. Um collar de diamantes resplandece no seu collo de neve. O brilho dos olhos, o sombrio das sobrancelhas, a alvura dos dentes eo carmim dos labios revelavam a perfeição.
Thomaz ajoelha e adora-a.
Ella aproxima-se do mancebo. Traz nos olhos o ceo, nos labios o amor, nos passos a graça, no gesto a dignidade. Com voz suave como o zephyro, e travando da mão de Thomaz diz-lhe:
Segue-me.
Thomaz obedece.
Entram ambos n'um carro que é todo luz. As aguias fendem altivas a amplidão e com ellas vóa o carro. Voa... vôa. Ohl que edens são estes que se transpõem! que mulheres são estas que se vêem, bellas como os anjos! que harmonias são estas que se ouvem ! que ar balsamico é este que se respira! que magnificencias! que infinitos! que eternidades! que ceos!
Thomaz ousa falar de amor á sua companheira.
Esta cora. Thomaz repete. Ella responde-lhe com um olhar.
O teu nome! exclama Thomaz louco de amor e anciedade. Desejava sabel-o. Havia só um que o podia fazer feliz.
-- O meu nome! torna ella com frieza.
E n'isto uma trança dos seus cabeltos de oiro, agitada pela aragem, vem poisar como um raio de sol nos olhos do mancebo. O infeliz desperta. Tinha terminado a somnolencia.
Thomaz caiu da bem aventuranea do seu paraizo no inferno d'essa noite do baile. Volveu á triste realidade.
Começou a passear pelo quarto. Importava tomar resolução. O ceo inspirou-lhe uma. Á luz dos primeiros raios do sol, o filho de Magnod escreveu a seguinte carta, em que nem levemente deixava ressumbrar os encontrados pensamentos que lhe dilaceravam a alma.
«Helena! Tu sabes que te amo. Esta palavra doce, sincera e triste que sae pela primeira vez da minha bocca, já muitas vezes a leste nos meus olhos. Ah! Amei-te sem ver o abysmo que nos separa. Tu és a descendente dos Obrians, e eu sou um pobre e humilde orphão. O meu sonho tem a cabeça de oiro e os pés de barro.
No coração trago o sello do teu poder ; na fronte está estampado em lettras de fogo o estigma da escravidão. Procuro evitar-te, mas quando vejo, como hontem, outros olhares fixarem-se sobre ti, perco a razão e disputar-te-hia ao universo inteiro. Fora talvez melhor guardar em segredo este meu amor impossivel; mas perdera um direito á tua piedade, com a qual desde já me consolo, como os mo ribundos se consolam com as lagrimas affectuosas, que um dia lhes hão de regar a sepultura. »
« Thomaz »
No dia seguinte, ás onze horas, recebeu Helena esta carta. Estava só. Leu e meditou-a, estudando-lhe cada palavra e cada lettra. Depois escreveu n'uma tira de papel :
« Apparece, hoje ás tres horas, na sala de visitas.
Desejo falar-te. Tua irmã Helena. »
Este bilhete parecia indifferente. As phrases, o estylo e o tratamento eram usuaes. Lendo-o, Thomaz rompeu em imprecações.
Ás tres horas dirigiu-se para a sala e encontrou Helena só, recostada n'uma marqueza de palhinha. Estava bella. Os cabellos loiros e ondulados caíam-lhc pelos hombros ; a meiga pallidez do rosto realçava o carmim dos labios; uma sombra anilada rodeava as orbitas; alvas roupas lhe cobriam o corpo. Havia nas suas feições uma expressão de tocante languidez. Thomaz estava tremulo. O seu coração palpitava com força ; no semblante e nos olhos liam-se os zelos. O destino do mancebo dependia d'este encontro.
-- O que tens? observou Helena, reparando nas feições de Thomaz.
-- Nada ; acudiu elle, sem levantar os olhos.
-- Senta-te um momento, disse Helena, pegando-lhe na mão com innocente ternura ; conversemos... Amas-me?
-- Se te amo! exclamou elle. Não vês? Não sentes?
O olhar com que foram acompanhadas estas palavras penetrou até ás ultimas fibras do coração de Helena, e fel-a estremecer.
-- E preciso que eu te repita o que devias ter ha muito adivinhado?
-- Acredita Thomaz: eu quero-te... pelo eterno Deus que me ouve. Chama-lhe amor ou affecto ; é-me indifferente o nome. Asseguro-te que este sentimento é forte e real.
Ditas estas palavras, Helena abaixou os olhos.
Leve rubor lhe assomou ás faces.
Ella amava.
-- Dizes que me amas quando ainda hontem te esqueceste d'aquella quadrilha, que me concedias sempre, e á qual se achavam ligadas tantas recordações?
-- Não sei como hei de tratar-te. O teu caracter vae-se azedando e gostas de attribuir-te o martyrio.
Estas palavras foram ditas em tom tão secco e com tanta dignidade, que Thomaz julgou tel-a offendido com as suas recriminações e com os seus injustos ciumes.
-- Perdoa-me, disse elle, lançando-se-lhe aos pés.
-- Levanta-te. Se viesse alguem...
-- Sim, de joelhos é que eu te devo confessar os meus desejos, as minhas esperanças, os meus sentimentos, a minha vida de doze annos. Até aqui tenho comprimido este amor, até aqui tenho querido escondel-o a mim mesmo, até aqui tenho procurado chamar-lhe amizade ; agora elle repelle estes nomes pequenos e frios, nem eu tenho valor para lh'os dar ; agora a minha paixão prerompe como a lava ardente que susurrara por longos annos dentro do vulcão. Não avalias, não suspeitas o que eu padeço. Sonhei impossiveis; cuidei que para amar bastava ter um coração, e- eu tinha-o terno e nobre como o de todos os nobres. Quando acordei do meu sonho, achei entre mim e ti o orgulho de uma raça e o odio de duas. Quiz luctar e não tive com quem. Desgraçado que eu sou... Sabes qual é o abysmo que nos separa ? Tu és a descendente dos famosos Obrians : a tua mão está promettida a Ricardo. Quem eu amei não era nada d'isso. Era só um anjo. Oh! Por que não sou eu nobre e rico como tu, ou por que não havia Deus permittir que tu fosses pobre, plebea e desgraçada como eu?
O mancebo não pôde falar mais. Curvou a cabeça, em quanto as ardentes lagrimas lhe corriam pelas faces, e dos labios lhe fugia um suspiro como o gemido de atrozes dores que lhe dilaceravam a alma.
Ouvindo estas phrases ardentes e apaixonadas, Helena estendeu a mão ao mancebo, que a cobriu de beijos. Em um instante elles passa vam de uma affeição serena a um amor apaixonado, e sentiam enlevos e assombros que nunca haviam conhecido.
-- Thomaz, disse ella emfim com voz tremula, os paes podem querer riqueza e títulos para as suas filhas, mas a mulher só procura um coração. O orgulho dos meus avós não o herdei eu; que não põem os titulos a formosura na alma. E é tão formosa a tua que m'a invejara uma princeza. Os nossos corações, aproximando-se, esqueceram todas as distancias. Pelo nosso amor estou prompta a sacrificar tudo... menos a felicidade de meu pae. E tu, Thomaz, não m'o exigirás de certo.
-- Nunca!... clamou Thomaz, a quem estas palavras vieram avivar o amortecido sentimento da gratidão. Se eu fizesse a infelicidade de ten pae, seria o homem mais ingrato do mundo. Se tal ousasse, seria indigno do teu amor.
Helena, orgulhosa dos sentimentos do mancebo, com a sua voz insinuante e seductora obrigou-o a assentar-se.
-- Pois bem! Falla a meu pae; promette tiral-o dos embaraços em que se acha, e não te desesperes. Tudo póde ter remedio. Confia em mim.
A campainha da escada, vibrando duas vezes, annunciou que Roberto, Emilia e Ricardo tinham voltado do passeio. Thomaz retirou-se da sala.
Ia mais socegado; que toda a resolução é um descanço.
VII
A revelação
No dia seguinte, ás dez horas da manhã, Thomaz ora se adiantava para a porta do gabinete de Roberto, ora recuava, até que afinal entrou.
-- Assenta-te, disse Roberto; e apontou para uma cadeira.
O mancebo obedeceu. Roberto chegou outra cadeira e assentou-se defronte d'elle.
-- Meu pae, disse Thomaz sem tomar folego, venho dar parte dos meus projectos, que occultal-os por mais tempo seria falhar em deveres de gratidão... Amo Helena, continuou elle commovido, e venho pedir-vos a sua mão.
Roberto olhou para o filho adoptivo com uma expressão de espanto e de dôr.
-- E desde quando a amas tu?
-- Desde que a vi. Amei-a logo com extremo.
-- Sinto-o.. respondeu seccamente Roberto. Tu não podes ser senão irmão para Helena.
-- Sei tudo, replicou Thomaz ; não me são occultos os vossos projectos ácerca de Helena. Ella está justa a casar com seu primo para herdar a fortuna do vosso tio. E esta uma das clausulas do testamento.
-- Pois então, disse Roberto levantando-se bruscamente da cadeira, escusavas pedir-me o que te não posso conceder.
-- Mas se Helena desistir da herança e eu puder tirar-vos dos embaraços?
-- Nem assim, atalhou Roberto, batendo o pé. A filha dos Obrians não pode casar com um homem da tua condição.
A estas palavras assomou nos labios do mancebo ironico sorriso, e os olhos faiscaram como os de lobo cerval. Apoz alguns momentos de silencio, levantou-se, e disse com vehemencia:
-- Senhor! Não abuseis da vossa posição para injuriar um homem que não se pode defender. Lembrae-vos que entre nós é impossível a lucta.
Roberto reconheceu que não era o melhor rumo aquelle que seguira. Thomaz era filho de Magnod e herdara-lhe toda a altivez. Provocal-o era tornal-o forte; afagal-o era desarmal-o. Arbitrou leval-o da generosidade.
-- Que póde um pobre pae prostrado pelas desgraças e pelos desgostos, respondeu Roberto em voz baixa e tremula, contra um mancebo louco de amor? Nada. Absolutamente nada. Queres matar com desgostos o pae, para lhe arrancar dos braços a filha que estremece? Queres acabar de rasgar este coração já partido? Avante. Não te importe a felicidade de quem usou comtigo todos os desvelos, e affectos mais que paternaes. Teu pae, Thomaz, roubou-me a fortuna; completa tu a sua obra, roubando-me a filha.
-- Meu pae! Que dizeis, senhor !? Meu pae! atalhou Thomaz.
-- Sim, teu pae.
Os cabellos do mancebo erriçaram-se de horror, e suor frio corria-lhe da fronte. Atirou-se aos pés de Roberto, exclamando:
-- Desgraçado de mim !
-- Não chores, meu filho, acudiu Roberto, lançando-lhe os braços á roda do pescoço. Affligi-te, revelando um segredo que devias ignorar; offendi-te talvez, por que te queria amar até ao ultimo sopro da minha vida. Eu, que resgatara com o meu sangue o prazer de te ver ditoso, sou quem te despedaço o coração! Cabem á amizade ás vezes crueis deveres. Quanto mais brilhante é a plana em que a sociedade nos põe, tanto mais rigorosos são os deveres que d'ella recebemos. Não por mim, mas por ella, por esse anjo que ambos adoramos, peço-te que não a exponhas ao opprobrio d'esse mundo infame e sem commiseração. A paixão é cega, bem o sei, e não só resiste ao ludibrio, até d'elles e gloria; emquanto ella durar, nada ha que temer; mas depois, quem sabe se o pomo da discordia não rolaria entre ti e Helena, lembrando-se ella do que foi e esquecendo-te tu do que és ! Que tormentos então para um pae! Incumbe-te renunciar a Helena, ou á minha amizade. Escolhe. Conheço o teu coração, sei os thesouros de amor e virtude que elle encerra; não sou eu que o rejeito: é o mundo que m'o rouba. Maldita vaidade !
-- Por piedade, não digaes mais nada; bradou o mancebo banhado em pranto. Juro por quanto ha de sagrado que heide resgatar a culpa de meu pae, e pagar a minha divida de gratidão, amando e servindo-vos até á morte. A minha vida que queiraes é vossa.
-- Agora, levanta-te e abraça teu pae.
Abraçaram-se ambos e confundiram as suas lagrimas. O amor foi vencido pela gratidão E que desapparecera o ciume.
Thomaz recolheu-se ao seu quarto com as idéas em desordem, e profundamente commovido. Pa recia que um golpe violento o ferira. Arremessou-se a uma cadeira no mais profundo abatimento. Momentos depois, a sua razão penetrava todos os abysmos da sua triste situação. De um lado estava o amor immenso, celeste e angelico que elle consagrava a Helena, a ventura que tocara de tão perto e que agora lhe fugia para sempre; d'outro lado os deveres, que lhe impunha a memoria do pae coberta das sombras do crime que a mais leve falta do filho podia tornar mais carregadas; finalmente a gratidão para com Roberto que o amava com os extremos de pae.
E tudo isto se contradizia, se repellia eludava!
Se cedesse do amor, o mundo chamar-lhe-hia covarde ; se insistisse n'elle, apodai o-hia de ingrato.
Condemnado sempre! Mas a consciencia ! O que dizia ella? Não deves acceitar o sacrificio da felicidade de Helena. Sacrifica-lhe a tua. É a derradeira ventura que te resta. Helena ama-te com extremo ; Roberto estima-te como filho ; o mundo despreza-te como escravo. Paga o amor, com o amor e vinga-te do mundo, elevando-te ás alturas da região celeste, d'onde elle te pareça pequeno e miseravel.
Esta voz mysteriosa fazia vibrar todas as fibras do coração do mancebo. Parecia-lhe que uma luz celeste o alumiava, que um braço vigoroso o sustinha. Helena fôra-lhe cegueira. Era-lhe agora luz.
No fundo do calix que devia sorver havia uma perola. A consciencia via-a.
Instinctivamente caminhou para amesa onde escrevia, e sentou-se. Uma idéa lhe vinha, outra lhe fugia. Deixar de amar Helena: será possivel?
Haverá forças humanas que bastem para vasar o proprio coração do amor que o enche e que é a sua vida?
Não ha sacrificio como o de Thomaz.
VIII
O anathema
Dizem que a lei de Christo rege a civilisação europea. Mentira. Illumina-lhe a superficie e não lhe penetra as entranhas. A Europa pesa sobre a Asia e a America, e todas pesam sobre a pobre Africa. Não ha barões nas nações, mas ha nações barões. Eis ahi a differença entre a edade media e o seculo XIX.
As raças pretas da Africa são os parias dos brahamanes da Europa e da America. Não gozam da luz vivificadora da liberdade nem da fresca sombra do amor. Os egoistas, os epicuros da politica não comprehendem que atravez da derme escura das raças africanas póde existir uma razão luminosa como o sol, e um coração rico como uma mina ; não crêem que as trevas do corpo não são as trevas do espirito. Confundem as tendas pretas de Salomão com a côrte brilhante e esplendida que ellas encerravam, assim como não percebem queás vezes, a plumagem branca do cysne occulta carnes duras e negras.
Por que não illumina a liberdade todos os povos, embora a sua luz seja sol para os brancos, lua para o pretos, aurora para os pardos? Por que hade ella passar por cima das raças africanas, como as nuvens passam por cima do deserto, sem nunca se desatarem em chuva?
Porque hão de essas raças ser escravas na America e na Africa e repellidas de todos como uma familia de leprosos?
Porque não hãode os ricos voltar os olhos para esses lazaros que gemem e agonisam, e são seus irmãos em Jesus Christo, no povo e na liberdade?
As raças africanas trabalham de dia e de noite, ao sol e á chuva. Choram lagrimas pelos olhos e suor pelo corpo. As suas fadigas são os doces ocios de seus senhores; o suor? que lhes escorre dos braços, espremido pelo barbaro açoite é a myrrha que perfuma os aposentos de seus proprietarios ; a sua nudez são as finissimas hollandas que vestem seus amos; o seu continuo padecer é o continuo gozar dos seus donos ; as trevas da sua razão são o suave cholorophormio, que as torna insensiveis á mutilação da sua personalidade. Vos non vobis.
Os ultimos serão osprimeiros, disse aquelle que é a verdade por essencia. Ha longos sete mil annos que os africanos são os ultimos ; quando serão os primeiros ? N'essa terra do oiro só o homem é pobre, n'essa terra da luz só o homem é trevas, n'essa terra das flores só o homem é esteril!
Portugal, que comprehendeu a politica do evangelho, que a praticou antes que os apostolos da revolução franceza a ensinassem, não pôde, não deve consentir que continue a escravidão nas suas provincias de Africa. E esta uma mancha na sua legislação. Ninguem pôde evitar que a mosca poise sobre a flor, mas todos podem afugental-a. Thomaz tinha sobejas razões para se rebellar contra a sociedade. Quer o leitor saber o que lhe ella fez? Apurou-lhe os sentidos, desinvolveu-lhe as faculdades, illustrou-lhe a razão, creou-lhe desejos, alimentou-lhe as ambições, applaudiu-Ihe os intuitos, ensinou-lhe a rivalidade, encheu-o de altivez; e quando elle, crédulo e confiado, lhe pediu que convertesse em realidade uma só d'estas ambições, um só d'estes intuitos, essa mesma sociedade, passando então de repente de mãe extremosa a Megera, disse-lhe com toda a ferocidade e satanico riso.
«Impossivel!» O infeliz revoltou se contra a sentença. Tentou despedaçar a barreira que via diante de si ; baldado esforço! De seus dedos começou a escorrer sangue ; as forças abandonaram-o ; e elle caiu das alturas do ceo nás profundezas do nada, bradando com impotente furor e entre mil imprecações :
-- Impossivel!
A sociedade ainda lhe fez mais.
Mostrou-lhe uma mulher bella e virtutsa como um anjo ; obrigou-o a amal-a, a adoral-a, a consagrar-lhe toda a sua felicidade, todo o seu porvir; e quando elle se dispunha para lhe dar o nome de esposa essa mesma sociedade, veio arrancar-lh'a dos braços dizendo : a descendente dos Obrians não pode casar com um brahamane e plebeu. » Repetiu-lhe mais uma vez:
-- Impossivel!
Se em logar d'esta palavra desesperadora, a sociedade lhe dissera sê sábio, elle o fôra; sê rico, elle o fôra tambem; sê grande, elle o fôra ainda. Mas assim de que servira ao infeliz a riqueza e a gloria? Fôra sempre plebe no meio de todas estas grandezas, sempre noite no meio de todos estes astros! E todavia elle possue um coração que lhe diz ama e uma consciencia infallivel como a voz de Deus, que lhe brada: és digno de amar!
Thomaz pegou na penna e escreveu a seguinte carta, em que a dôr e a amargura se derramam em torrentes. Dizia assim:
Helena
«Nem eu sei o que desejo; mil contrarios impulsos me dilaceram a alma. Houve nunca situação mais lastimosa !...
«Despedaçou-se-me o coração, cairam todas as rainhas esperanças; mas o meu dever, esse cumpri-o.
«Não tenho zelos nem sinto colera; mas padeço... amo como talvez ninguem ainda amou. Nunca tão claro o conheci como agora, que meço o meu immenso amor pela minha immensa dôr.
« Outros teem nome paterno, familia e fortuna; eu tinha só o teu amor... tambem esse me levaram.
«E agora que mais querem?
«Teu pae recusou-me a tua mão para não te expôr ao ludibrio do mundo ; eu renunciei á mulher que adoro por que quero adoral-a sempre; seria indigno de ti se me'manchasse com o estigma de ingrato, e incorresse na maldição d'aquelle a quem devo tudo.
«Fatal e funesto amor que se apoderou de nos sos corações!... Nada sabiamos. A orphándade tornara-nos iguaes... vem agora o orgulho separar-nos. Que mais pôde haver entre nós?
«Não discuto: choro. Perdoa-me estas ma goas. Não me faças crime das virtudes que tu mesma me inspiras. Não temo os perigos, an tes elles me attrahem e despertam o animo. Não me falta a decisão para affrontar amorte nem a resignação para supportar a desgraça. Falta-me o valor para ser ingrato.
«É forçoso partir! Oh! partir sem ti ! partir sem mim mesmo !
«A minha agonia começa. Queira Deus que não seja longa.
«Adeus!
Thomaz
No dia seguinte, ás cinco horas da manhã, Roberto, Helena, Emilia, Ricardo e Thomaz estavam reunidos na sala. Aquelles voltavam para Fizabad ; este ia para Calcutta. Antes de partir, Helena estendendo a mão ao seu amigo de infancia, entregou-lhe uma carta. Thomaz, ao contacto d'aquella mão fria apertando pela derradeira vez a sua, sentiu despedaçar-se-lhe o coração.
Não proferiram palavra. Mas o veo do crepusculo, queé muitas vezes o unico pudor dos amantes, deixara-lhes livres as lagrimas. Já muitas haviam cahido sobre a mão de Thomaz.
Os cavallos partiram. A vida e a alma de Thomaz partiu também. O que ahi se via immovel sobre o ultimo degrau da escada, era apenas uma estatua da dòr.
A carta de Helena rezava assim :
Thomaz
«Comprehendo a tua abnegação e admiro-a. Não heide ser eu quem te peça que desças d'essa região celeste a que te elevaste. O meu amor seria fraca consolação para tamanha perda.
«O heroico sacrificio que fazes arrânca-me o coração, e a vida; mas a minha alma arrebata-se de admiração e de enthusiasmo.
«Para salvar do opprobrio meu pae, não ha sacrificio que me custe. Estou prompta a immolar tudo... mas o que não devo, nem posso, é vender a minha consciencia. Essa consciencia não é é minha ; pertence a Deus. Todos os sacrificios, menos um ! Tudo, menos jurar diante do altar, que amo um homem não o amando ! Mentir tão vilmente!... Nunca.
« Os sarcasmos do mundo, não os temo; nenhuns ha na terra que se atrevam a quem amar como eu amo. Defendida pelo meu amor, e ufana de te possuir, direi a todos, Sim, amo-o; sim, por elle, desprezo todos os vossos desprezos e todas as vossas felicidades.
«Trata de tirar meu pae dos embaraços em que se acha, e deixa o mais ao meu cuidado. Tenhamos fé em Deus. Elle hade permittir...»
Helena.
Esta carta lançou o mancebo n'um aniquilamento total. Leu mais do que ella dizia. Adivinhou a angustia que aquellas lettras escondiam.
Thomaz tornou a fumar opio.
IX
A jornada
A noite do baile fizera esquecer a Emilia a scena do jardim. A gentil indiana já não sentia repugnancia por Ricardo. O ardor da mocidade, a gratidão e o desejo de conseguir uma posição haviam sido os medianeiros d'estas pazes. Parece que Deus, para contrabalançar a intelligencia e a perspicacia que dera a Emilia, lhe puzera no coração a semente da vaidade. Rocha e ferro para todas as outras seducções, era cerapara a lisonja.
Derretia-se. Roberto descobrira d'onde vinha a força para este Sansão que elle queria vencer.
Agora era só questão de tempo. Toda a fortaleza tem o seu ponto fraco ; todo o coração tem auriculas.
-- Quem me diz, perguntava Emilia a si mesma, que não é Deus que me estende essa vergonha possante para me apoiar a ella? Hei de eu fugir á felicidade que me procura tão espontanea e desprezar as flores que ella me offerece? E depois, quem me assegura que é um libertino esse homem que na noite do baile parecia tão orgulhoso de mim ? Devo ser prudente, bem o sei ; mas não sacrificar ao demasiado escrupulo a fortuna que vem tão risonha e de braços abertos para mim.
Taes luctas telas-hão tido todas as mulheros.
São terriveis. Feliz d'aquella que não succumbiu.
N'esses trances, os pensamentos da mulher correm, revolvem e desfiguram-se como as ondas: ora montanhas medonhas, ora collmas, ora campos ondeados, ora antros, ora profundezas, ora abysmos! E tudo rapido, tudo perigo, tudo conspiração para a perder; a ella tão boa e tão fraca!
Emilia não era mulher a quem faltasse a circumspecção. Dera-lhe Deus bastante. Não tinha porém a experiencia do mundo. As mulheres que conhecem o roteiro do amor navegam n'este oceano com mais segurança; sabem onde ha os escolhos. E algumas existem que das proprias quedas se levantam tão promptamente epor tal arte, que o mais Ono observador apenas encontra vestigios do que lhes acontecera. As virgens percipitam-se; as mulheres escorregam.
A fraqueza da mulher é a sua magnanimidade.
E fraca por que é boa. Podia desconfiar de tudo; não desconfia de nada. Não descobre manchas nos olhos do amante, nem silvos de serpente nas palavras do adulador. Não olha para os lados, por que tem pudor ; não olha para traz, por que teme o remorso; não olha para diante, por que confia.
Caminha sem ver nem perguntar, arrimada ao braço que a sustem; e quando este lhe foge perfidamente no meio do caminho, a infeliz cae.
Então horrorisa-se do que vê e do que deixa de ver. Ficaram-lhe para traz a familia, a vergonha e a honra; para diante está a perdição. Voltar é impossivel; continuar é horroroso.
Deus, se tendes dó da infeliz mandae-lhe a morte. E o seu unico asylo. A vida ser-lhe-ha um grande supplicio. Como a rehaver consideração do publico, que a impossibilidade cerca de uma aureola celestial ? Como poderá ella evitar esses sorrisos que a farão tremer? Brava des ventura será a sua!
Entre o entregar-se ao amor e o fugir d'elle, cuidava Emilia ter encontrado um meio termo.
Enganava-se. O amor é um dilemma. Ou sim ou não. O destino está no primeiro passo. Umas dão-opara descer ao inferno, e outras para subir ao ceo.
Durante a jornada, Ricardo teve com Emilia todas as attençôes que um homem bem educado costuma ter com uma senhora. Não lhe falou no amor. Deixou-a entregue a si. O silencio é ás vezes um grande complice.
De noite, quando a caravana acampava e assentava a sua tenda, Ricardo convidava Helena e Emilia para assistirem á ceia dos sipais.
Não nos consta que haja em parte alguma do mundo gente que coma menos, e supporte melhor afome, do que os sipais dalndia. Dizia o visconde de Ourem, que, n'este particular, era a primeira tropa do mundo. Excede na paciencia o proprio soldado hespanhol. Quando o sipai está para fazer uma jornada, manda apromptar apas circulares de farinha de nachenin (dolichus biflorus), de um palmo de diametro e da grossura de um carlisle biscuit. O numero d'estas apas regula pelo duplo dos dias que deve durar a marcha. Assim que encontra um ribeiro ou uma fonte, descança, e come uma apa. E o seu jantar. Quasi nunca come mais de duas apas por dia. Esta sobriedade do sipai contrasta com o tratamento de gentleman que tem na índia o soldado inglez.
A ceia dos sipais de Roberto não passava de apas. Ao pé de uma arvore, cujos ramos delgados deixavam passar livremente o luar, estavam assentados trinta ou quarenta homens, tendo cada qual diante de si uma rima de apas, e uma taça de cobre cheia de agua. Em quanto uns comiam, outros cantavam.
Ao pé d'outra arvore, estava, meio deitado meio recostado, um brahamane. Cercavam-no quatro ou cinco, que ouviam attentos o que aquelle lhes lia em alta voz. Na fogueira, cujo clarão os illuminava, estalavam os troncos humidos de arvores ainda verdes. Era Hitapadessa (Collecção de maximas e contos) o livro que estava aberto ao lado do brahamane.
Thomaz e as suas companheiras quizeram ouvir a leitura. Ouçamos nós tambem.
«Uma corte, lia o brahamane, é o veneno do pobre. O veneno do velho é uma mulher nova»
« O destino não se cumpre sem o auxilio das nossas obras. Tem duas rodas: uma pertence a Deus, outra aos homens. »
«Nada se consegue sem o trabalho; que não apanha a caça o tigre que dorme. »
«A instrucção rebaixa-se com os inferiores; com os eguaes se eguala; com os superiores se sublima. »
«As palavras do pobre não teem valor; são pobres como elle»
«Lá vae um conto continuou o brahamane. Na cidade de Darmapur, vivia um brahamane chamado Rama. Era temente a Deus e senhor de grossos cabedaes. O ceo que o cumulara de mercês suas, poz o remate com dar-lhe um filho. Com tanto mimo crearam os paes, taes condescendencias com elle houveram quando infante, que mancebo, já se não dobrava a obedecer-lhes, e de muito occupado que era de si, a todos mais se tornava insupportavel. Pelo que tão pezarosa ficou a mãe, que em breve prazo os pezares a conduziram á sepultura.
«O filho foi crescendo nos vicios. Aos dezoito annos era o peralvilho mais desasizado de Darmapur. Ninguem tinha mais lindos cavallos, mais formosas mulheres, nem mais forte paixão pelo jogo.
« Quanto o amor paternal lhe podia dictar, quantos recursos as leis lhe offereciam, tudo empregou Rama para tolher o desregramento do filho; baldado empenho!
«No meio d'estes desvelos, caiu Rama perigosamente enfermo. Sentindo avisinhar-se-lhe a morte, mandou construir uma forca ao pé da casa em que vivia, e chamando um dia o filho, disse:
«Quando te achares só n'este mundo, sem um unico amigo, e reduzido á miseria, é provavel que queiras por termo á tua vida. Serve-te d'essa forca que mandei construir.
«Riu-se o filho do destempero; e esta foi a unica resposta que deu ao pae, que expirou d'ahi a dois dias.
«Em curto prazo o filho de Rama dissipou a sua fortuna, e passou da opulencia á pobreza. Todos os conhecidos desappareceram ; tudo o que era prazeres acabou. Volveram-se-lhe mezes a fio entre tristezas, e sem outros recursos que esses que ainda lhe restavam e que iam minguando de dia para dia. Expiava o infeliz o seu antigo fausto, vivendo agora na pobreza, quando veiu convidal-o um amigo a jantar no seguinte dia.
«Vestiu o filho de Rama o seu melhor fato, colheu da mangueira uma manga já madura para offerecer ao seu amigo, e partiu. Da sua casa á do amigo era um bom pedaço, e mais o sol estava de abrasar. Deitou-se sobre um banco de pedra que havia na estrada, pondo a seu lado a manga. N'isto appareceu Rama tomando a figura de uma ave de rapina, e, veloz como o raio, arrebatou-lhe a manga. Madeva! exclamou o filho de Rama, abrazado em colera. Tirar-me a unica manga que eu tinha quando ha tantas nas arvores !
«Assim que o filho de Rama chegou á casa do amigo, contou-lhe fielmente quanto acontecera no caminho.
«Ah! Ah! exclamou o amigo, procurando vão reprimir o riso. É uma historia divertida! Cuidas que eu queria lá a tua manga?
«Os motejos do amigo offenderam o filho de Rama. Quiz responder, porém a pobreza tapou-lhe a bocca; que não costumam os ricos discutir com os pobres.
«Dois mezes depois d'este jantar, o filho de Rama achou-se reduzido á ultima miseria. Estavam esgotados todos os recursos. Lembrou-lhe o suicidio. Com este fim, aproximou-se da forca, e quiz primeiro examinal-a; podia estar roida de caruncho. N'uma d'estas experiencias, abateu à trave que assentava nos altos dos esteios, e abriu-se em duas metades, ficando o chão alastrado de perolas, pedras preciosas, e moedas de oiro.
«Segredos do amor paterno! exclamou o filho de Rama abraçando-se a um dos esteios.
«Oito dias depois, a casa do filho de Rama estava mobillada como d'antes. E elle vivia na mediania, mas com aquella decencia que cabe aos homens de sua condição.
«Correu a fama da nova situação do filho de Rama. O povo commentou o successo; porém nem um só acertou com a causa. Accorreram prestos os amigos a felicital-o, não faltando esse que o leitor já conhece, e que, mais curioso que os outros, pediu ao filho de Rama clarezas acerca do seu estado.
«E curta a historia, respondeu o filho de Rama.
«Estava eu assentado n'este mesmo logar onde estou, angustioso, e como perdidas as esperanças de ser feliz, quando vejo n'aquelle canto da casa um carreiro de formigas arrastando uma grande alavanca de oiro. Levantei-a e tratei de a vender.
«Pode ser, acudiu o amigo, serio e reflexivo, que haja por ahi mais alguma. Eu sempre havia de tentar...
«O filho de Rama não lhe deu resposta.
«Quando o amigo estava para sair, o filho de Rama poz-se de pé e disse para elle: não te capacitavas de que uma ave podesse arrebatar uma manga, e hoje acreditas que um enxame de formigas podesse arrastar uma alavanca de oiro ! A rasão não t'a peço; sei-a. Então era eu pobre e as minhas palavras não tinham valor.
«O amigo abaixou a cabeça e desappareceu.
O brahamane fechou o livro.
X
Novas tentações
Em Fizabad, Ricardo dobrava de attenções e esmerava-se em finezas com Helena, e parecia completamente esquecido de Emilia, que começava a desgostar-se d'esta indifferença. O primo de Roberto, acostumado a adivinhar no rosto os pensamentos da alma, descortinou facilmente o que se passava no coração da irmã de Thomaz.
Um dia que Emilia estava tocando no piano uma sonata de Mosart, Ricardo appareceu á porte da sala, pallido, tremulo e anhelante. A irmã de Thomaz deu um grito de susto.
-- Não, não irei, disse o mancebo. Ha tres dias que desejo falar-vos; ha tres dias que venho até esta porta e volto. D'esta vez não sairei d'aqui sem vos declarar tudo quanto sinto.
-- Senhor, lembrae-vos de que vos podem ouvir.
-- Convido-vos a dar um passeio pelo jardim.
Dizendo estas palavras, Ricardo deu o braço a Emilia.
Desceram e encaminharam-se para ao pé do Iago.
-- Não sei, disse Ricardo, assentando-se n'um banco de ferro, e espreitando sempre o effeito das suas palavras, se este logar vos incommoda.
-- Incommodar-me? E porque? disse Emilia, assentando-se numa cadeira de junco, de fronte de Ricardo. Não comprehendo.
-- Eu ainda vos comprehendo menos ; disse o mancebo.
-- Não vedes aquella flor? replicou Emilia.
Reparae como está bella ! Ha vinte dias, nem botão era talvez !
-- Desculpae-me. Não adivinho logogriphos.
-- Pois tem pouco que adivinhar.
-- Ah sim! agora comprehendo. Quereis dizer que o tempo muda tudo? Oxalá que vós houvesseis mudado tambem.
-- Emilia não respondeu ; sorriu-se.
-- Confesso, continuou Ricardo, que fui precipitado. Perdoae-me. Bem sei que fiz mal.
Foi excesso de amor; foi susto de perder-vos talvez. Acceitando a declaração de um homem que mal conhecieis, daveis uma prova da leveza, que eu então teria applaudido, mas que hoje havia de condemnar com toda a severidade.
-- Ainda bem que me fazeis justiça. Obrigada, mil vezes obrigada...
-- Mas agora, continuou o mancebo com voz abafada, tendes tido bastante tempo para me conhecer, e para acreditar que vos amo com um amor mais viçoso que este jardim e mais ardente que este sol. Desde o primeiro dia que vos vi, um invencivel attractivo me prendeu a vós. A vossa imagem, gravada no meu coração, reflecte-se em tudo quanto me cerca. Não se passa um dia sem que eu descubra em vós novos encantos. N'esse baile do brigadeiro, bem vistes como vos vinguei, elevando-vos acima de todos as mulheres e á altura do meu coração. Não imaginaes que eternidade de delicias senti no momento do vosso triumpho. Emilia, não me faleis mais com essa desconfiança, que me offende e é indigna de vós.
Emilia tinha os olhos immoveis e cravados no mancebo. Só um anjo podia resistir a tanta bizarria, sensibilidade e loucura ! Emilia era mulher. Acreditou tudo.
-- Eu careço de um homem que me ame, respondeu Emilia, e que tenha valor para desprezar este mundo tão ridiculo como orgulhoso. Pensae bem, senhor, no que ides fazer. Cabe á vossa edade ser mudavel, e ao meu sexo o duvidar das declarações que irrompem instantaneas.
As apparencias ás vezes illudem, e depois, quando houverem passado osprimeiros arrebatamentos da paixão, ou nada resta, ou só uma compaixão que offende ainda mais que o desamparo.
-- Tenho pensado bastante; continuo cada vez mais firme no meu proposito. E que tem o mundo a estranhar-me? Não sois bella, gentil, espirituosa e cheia de virtudes? Quando mesmo o meu amor não fosse cego, não podia ter feito melhor escolha. Nunca mente o affecto que á luz da virtude se accendeu.
Ricardo sabia habilmente manejar a lisonja, e Emilia, como o geral das mulheres, não lhe percebia a amargura. E a lisonja a serpente de todas as Evas.
O mancebo ficou calado por alguns momentos.
Depois, pegando na mão tremula de Emilia, levou-a aos labios no maior transporte.
Dizer tudo o que se passava no coração de Emilia é impossivel. Sentia-se aturdida da cabeça. Ora ardia, ora gelava. Ora louca, ora sisuda. Não estava preparada para esta impressão que era nova na historia das suas sensações.
No meio do tanta alegria sentia uma tristeza que a aterrava. Parecia-lhe que lhe faltava não sei o que...
Passou-lhe pelo espirito uma divida.
-- Se Ricardo...
XI
A cegueira
O amor corre veloz. As conversações intimas de Ricardo com Emilia repetiam-se a miudo. A ausencia de Thomaz, a melancolia de Helena e a tristeza de Roberto deixaram lhes livre o campo.
Apenas o sol descia, doirando com os ultimos explendores as montanhas de Fizabad, caminhavam ambos para a varanda com o pé furtivo e o coração pulando de contentamento. A lua involvia-os nas ondas da sua luz baça e languida; as flores enviavam-lhes perfumes ; as fontes saudavam-os com o seu murmurio. Alli começavam dialogos incendidos; trocavam-se juras, protestos e lagrimas ; compunham-se futuros; sonhavam-se eternidades. O coração, grande como é, parecia pequeno para tantas delicias.
O amor chega á perfeição quando o amante desapparece na amante e a amante no amante; quando uma alma se verte n'outra, e ambas fazem uma só. Este transformar, na phrase de Camões, do amante na coisa amada é a suprema felicidade dos que se amam; é então que o coração que se tem, a vida que se vive, o sonho que se sonha, o pensamento que se pensa é tudo d'outro por outro e para outro; é então que se pôde dizer : Tai mal á votre poitrine.
Enlevos, transportes, assombros, extasis, cegueira, tudo tinha sentido Emilia, no amor que dedicara a Ricardo. Dera-lhe toda a sua alma, e seguia-o como uma escrava, caminhando por cima de todos os escrupulos e deveres.
Se lhe acontecia descobrir alguma nuvem negra, no ceo da ventura que desfructava, um sorriso, uma caricia de Ricardo fazia-a immediatamente desapparecer.
-- Enganar-me! Elle!
Essa idéa horrivel surgia ás vezes, como um como um phantasma diante de Emilia, mas logo a imagem querida de Ricardo, interpondo-se entre o tyranno e a victima respondia :
-- Nunca!
E o phantasma desapparecia ; as duvidas caiam.
Emilia abalançou-se a tudo...
Na segunda ou terceira d'essas tardes em que os dois amantes se encontraram na varanda, Ricardo promettera a Emilia escrever a Thomaz, pedindo-lhe a mão d'ella; mas já lá iam bons oito mezes sem se ter recebido a resposta.
Emilia suspirava por esta resolução de que dependia mais do que a sua felicidade, -- a sua honra. Falava n'ella todas as noites.
Emfim um dia, arrojando-se aos pés do seu amante, rompeu em soluços sem poder dizer palavra. O corpo tremia-lhe todo.
Depois de longo silencio começou:
-- Meu amigo, não posso occultar por mais tempo o meu estado... Morro de vergonha.
Estas palavras fizeram estremecer Roberto, que, apezar da sua malvadez, teve horror de si proprio. E que os terremotos abalam até os rochedos. Torceu as mãos, atormentado dos perigos que via diante de si.
Recobrando depois a serenidade, respondeu com firmeza.
-- Peço-te alguns instantes de reflexão. Confia em mim, minha Emilia.
A infeliz não respondeu. Soluçava, tendo a mão do amante entre as suas.
Passados alguns minutos, Ricardo accrescentou em tom alegre como quem descobre uma idéa:
-- Parto ámanhã mesmo para Calcutta a buscar a resposta de Thomaz.
-- Deixar-me! Isso é impossivel, bradou Emilia.
-- Que queres pois que eu faça? A ausencia durará pouco. Tara, a tua fiel criada, acompanhar-te-ha.
-- Cessar de te ver? Isso não!
-- Por quanto ha no ceo, Emilia; pela tua felicidade, pela vida d'aquelle que começamos a amar sem vermos, não te opponhas.
No gesto de Ricardo, ao proferir estas palavras, estava estampada a expressão da confiança.
-- Quantos dias se hãode passar?
-- Eu sei? quinze talvez...
-- Quinze! Não Ricardo, não...
-- Bem ves que isto não depende de mim.
Eu hei de fazer o possivel para te ver cedo.
-- Promettes?
-- Juro-t'o...
A ella rebentava-lhe a alma nos olhos, a elle morriam-lhe no coração os fracos assomos de compaixão. Era gelo diante do fogo.
-- Hasde prometter-me ainda mais uma coisa, disse Emilia, depois de curto silencio.
-- Tudo quanto quizeres; dize.
-- Diante do altar, e emquanto o padre Francisco levantar a hostia, hasde repetir o juramento que fizeste ha oito mezes n'aquelle mesmo logar.
-- Cuidas que sou capaz de...?
-- Longe de mim tal receio. Preferia morrer.
E uma exigencia da consciencia a que não posso deixar de satisfazer.
-- Emilia, tu és um anjo.
-- Ámanhã é sabbado. Ás oito horas frei Francisco deve dizer a sua missa. Não faltes.
-- Eu podia confirmar já o meu juramento.
-- Não é preciso.
-- Como quizeres. Estou sempre prompto.
Ricardo deu um beijo na fronte escandecida de Emilia e saiu.
No dia seguinte, pouco antes das oito horas da manhã, Emilia estava ajoelhada na egreja de Santo Xavier. Acompanhavam-a Tara e mais duas criadas.
Ao lado de Emilia, e pouco atraz, ajoelhou Ricardo.
Ás oito horas começou a missa. Emilia entoou o veni Creator. A melancolia augmentava a suavidade da sua voz, e a tristeza que lhe pejava o coração, derramava-se pelos sons tremulos e harmoniosos que lhe saíam do peito e que levavam os seus gemidos aos pés de Deus todo poderoso e misericordioso. O orgão misturava com aquelles os seus longos suspiros.
A campainha annunciou a consagração da hostia. Curvaram-se todos em quanto o sacerdote elevava o corpo' de Jesus Christo. Emilia levantou o veu que lhe cobria a cara, e com a fronte erguida disse em inglez para Ricardo:
-- Juras?
-- Juro.
-- Basta, replicou Emilia. Depois voltou os olhos para o altar. Parecia perguntár a Deus:
-- Ouvistes?
XII
O abysmo
Tres dias depois do juramento, Ricardo deixou Fizabad com destino a Calcutta. Esta separação foi cruel para Emilia. N'essa noite saindo do seu quarto, correu a varanda de uma banda para a outra eolhou para todos os lados: os arbustos não tinham fugido do jardim; não se haviam apagado do ceo as estrellas; o vento que sibilava era o mesmo ; tudo estava como sempre ; só faltava elle.
Pedia-o a todos e ninguem lh'o dava. Elle que era o seu universo, o seu paraizo ! Tocou todos os logares onde elle se assentava e inundou-os de lagrimas. Mil vezes o reviu, mil vezes o beijou mil vezes o adorou n'este vacuo que era d'elle.
Emilia ficou immovel por alguns momentos. Occorrera-lhe uma idéa. Encaminha-se sem demora para o quarto de Ricardo e empurra com viveza a porta, que se abre sem resistencia. Entra.
Fica silenciosa, anhelante e absorta, pela saudades do amante. Depois, corre pelo quarto ás apalpadellas até dar com uma mesa onde acha um phosphoro. Accende o. Os primeiros raios de luz alumiam uma carta que ainda não estava terminada. Era d'elle. Beija-a com transporte.
-- «Querem ver que é a sua despedida? Não teve animo para m'a entregar. Enganou-se. Eu podia supportal-a. Pobre Ricardo ! »
Aproxima o phosphoro e começa a ler a carta.
«Meu Jorge
«Finalmente, a indiana caiu apezar da sua sisudeza. Digam lá que as mulheres são espertas. Todas teem o seu fraco; o caso está em adivinhal-o. Emilia era vaidosa. Foi pela porta da vaidade que entrei no seu coração. Agora trato de fazer uma retirada airosa...»
Aqui sente a irmã de Thomaz uma violenta contracção no cerebro. Os moveis começam a baloiçar-lhe em roda; as lettras fluctuam no papel; a luz faisca em chispas. Faz um esforço e continua :
«Emilia acredita que eu a amo e que heide casar com ella. Loucuras! Estou compromettido. Para herdar a fortuna de meu tio, devo casar com Helena.»
Emilia não pôde ler mais. Ergueu os braços para o ceo. Deu um grito e caiu desfallecida.
A infeliz tinha duas queimaduras nos dedos. O phosphoro ardera todo !
As grandes dôres rompem o coração, por que não cabem n'elle. São como os sons d'essas cornetas da índia que rompem os tympanos. A suprema dor torna-se loucura, e a loucura é insensibilidade. Mas esta embriaguez da dor dura pouco, e a reacção accende-se mais violenta.
Emilia ficou insensivel por alguns instantes; mas os pensamentos encontrados que se lhe revolviam depois na mente e lhe despedaçavam a alma, não ha, nem haverá nunca lingua que os exprima. Ver o seu immenso amor tão vilmente desprezado e ludibriado; não encontrar no passado uma recordação, sequer, que não seja vergonha; não ver no futuro a mais leve esperança ; dar por toda a parte com o horrivel nada, e para maior supplicio viver ainda, é tormento que não tem egual na terra! Crer é a primeira felicidade do amor; descrer, a sua ultima desgraça.
Emilia saiu rapidamente do quarto. Passou pela varanda como uma louca, e apenas deu com os olhos na sua boa Tara, caiu-lhe nos braços, banhada em pranto, exclamando:
-- Elle nunca me amou! Perdida, perdida para sempre!
E aqui vinham soluços e lagrimas a mares.
De repente cessaram as lagrimas e a cabeça descaiu para traz. Começava um ataque de nervos.
Tara pegou na sua boa ama e fel-a deitar.
A infeliz estava pallida como a agonia. As mãos pareciam de gelo; dos labios saíam-lhe alguns sons imperceptiveis; os soluços suffocavam-na. Depois de alguns momentos em que a fiel criada lhe fez respirar varios saes, a irmã de Thomaz levantou-se do leito. Tara observava-a. O seu andar era hirto e lento como o de um phantasma. Aproximou-se de uma commoda e abriu uma das gavetas, que estava cheia de massos de cartas, flores seccas, bonquets, cabellos e medalhas. Contemplou por alguns instantes aquellas joias falsas. Com a mão fria e convulsa, pegando em todas, atirou-as ao chão.
Depois chegou-lhes uma vela accesa.
Em breve a chamma começou a espalhar a sua luz livida e sinistra; ondas de fumo subiam já ao tecto ; e o crepitar d'essas memorias, que ardiam, similhava aos gemidos roucos e desesperados que Virgilio arranca aos heroes da Troia, nos trances da agonia.
Era solemne e tremendo o aspecto de Emilia. Vestida de uma camisa branca, descalça, com os cabellos esparzidos sobre o rosto, com os olhos esgarrados e scintillantes, com o riso insensato nos labios, andando com passo incerto e precipitado á roda da chamma crepitante, e involvendo-se nas negras espiraes de fumo, que lhe serpeavam pelo corpo como as viboras estiradas sobre os idolosdos pagodes, parecia o demonio folgando á roda das fogueiras do inferno. Era a horrenda imagem da mais rematada desesperação. Era mais do que a loucura!
Emilia caiu de novo n'essa modorra que é a hesitação entre o somno ea vida. O fogo consumira os complices no crime. Mas do monstro restava ainda muito. E isso não pudera a infeliz lançar ás chammas.
Ao romper da manhã, Emilia despertou do somno ou torpor em que caira. E atroz o despertar do culpado. Os oraculos gostam da meia claridade da aurora. N'este momento, em que as féculdades humanas teem recuperado o seu per dido vigor, a luz da razão penetra todas as trevas e profundezas da culpa, e o cadaver do passado, deixando cair o seu sudario, ergue-se formoso diante do presente, que é horrendo e maldito. Emilia julgava-se, condemnava-se, e castigava-se a si mesma. Como tinha esquecido tantos e tão sagrados deveres, ella que se jactava de mulher forte e invencivel? Que poder, influencia encanto ou artificio foi esse que maniatou o seus braços, emudeceu a sua bocca, obsecou os seus olhos e obliterou a sua rasão? Como pôde ella em oito mezes olvidar principios que são eternos? E a honra, a sua unica riqueza, como a confiou ao primeiro que solicitou ser guarda e defensor d'ella?
Não parava aqui a cruel analyse. O crime tinha circumstancias aggravantes. A infeliz indiana comparava-se com Helena, e a comparação fazia-lhe horror. A sua irmã de infancia era a segunda aurora, cuja visita ella temia, e a segunda consciencia em que se revia e se achava monstruosa.
Uma rivalidade, que Emilia nem mesmo a si propria ousara confessar, tinha-a tornado fria e reservada para com Helena, cujo conselho teria evitado talvez tamanha desgraça, e cujo coração estaria hoje prompto para abrigar tão immensa dôr. Na consciencia de Emilia, surgia agora a imagem de Helena, cheia de pudor e graça, e lançando-lhe em rosto as suas desconfianças, duvidas, reservas, deslealdade, ingratidão, falta de amizade! E accusação era tão verdadeira que aaccusadanem sequer se atrevia a defender-se. Soffria resignada o castigo, que não podia ser maior. A superioridade e primazia que disputara, converteram-se-lhe em uma abjecção da qual nunca poderia levantar-se. Que distancia agora d'ella sua irmã! que differença entre a honra e a deshonra! que abysmos entre Helena e Emilia!
Leviana para com o amante, reservada para com a irmã, ingrata para com o irmão, indigna de todos: eis a terrivel synthese em que a infeliz resumia o seu doloroso passado.
E o futuro! Não me resta outro, dizia ella comsigo, senão á morte. Viva, o mundo será cruel para commigo; morta, perdoar-me-ha talvez. Esquecer-me-ha de certo. A morte salda contas que a vida não solveria jámais. As cinzas purificam. Deus hade compadecer-se de mim. Não hade permittir que eu viva. Oh ! Ter a vergonha e não ter a honra, é castigo superior ao meu crime.
No dia seguinte, logo que Helena soube que sua irmã estava muito incommodada, foi vêl-a.
O seu primeiro beijo fez estremecer Emilia : era o beijo de uma virgem.
Emilia não saiu mais do quarto. Fingia uma dôr violenta de cabeça. O charlatão que a visitava de oito em oito dias capitulara a molestia uma nevralgia supra orbitraria.
Ás repetidas perguntas de Helena e de Roberto respondia o filho bastardo de Hypocrates com largas dissertações sobre o systema nervoso que, na medicina, é muitas vezes o refugio da ignorancia.
Assim se passaram quasi dois mezes, penosos estirados e de angustias para Emilia, que se desvorava a si mesma, e de sustos para Helena e Roberto. Finalmente escreveu-se a Thomaz pedindo-lhe que voltasse para Fizabad.
Quantas vezes a fiel Tara viu a sua pobre ama estender os braços como para desviar uma coisa, e perder as forças, n'um grito de agonia! Quantas vezes a ouviu falar com a sombra de Ricardo, dirigir-lhe phrases meigas, enviar-lhe beijos, e depois despertar dando um grito!
Nos sustos de tão preciosa vida, em prantos se volviam a Helena a noite e o dia. Nunca se afastava do quarto da sua amiga de infancia. Assentada á sua eabeceira, redobrava a attenção para lhe observar os menores movimentos e empenhava quantas forças tinha para a animar. Ria-se quando a doente acordava e chorava quando ella dormia. Daria a sua vida para salvar a d'ella. De noite, vinha Tara tomar o logar de Helena.
O quarto de Helena não era muito proximo do de Emilia ; apezar d'esta distancia, uma noite sentiu aquella confusos gemidos no quarto de sua irmã, gemidos que se repetiam com grandes intervallos. Tocou a campainha com precipitação.
Veiu Tara, e ás perguntas de Helena respondeu sem hesitar, que era Emilia que sonhava, como era seu costume. A resposta era plausivel. Halena acreditou-a.
No dia seguinte, Tara entrou muito cedo no quarto de Helena. Estava absorta e as suas feições completamente transtornadas.
-- Grande Deus!... Que tens? perguntou Helena.
-- A senhora Emilia está muito mal, exclamou a criada, suffocada pelos soluços.
-- Minha pobre irmã! murmurou Helena, levando as mãos á fronte.
Entre anciãs ergueu-se Helena, e correu ao quarto de Emilia.
Doloroso espectaculo se offereceu a seus olhos. Emilia tinha as palpebras fechadas, as faces pallidas e profundamente cavadas, os labios lividos, e os cabellos em desordem descendo pelo leito até ao chão.
-- Senhora! Senhora! chamava em voz baixa a criada como quem receasse despertal-a.
N'isto ouviu-se um suspiro.
Helena correu para a doente e arremessou-se-lhe aos braços, banhando-a de lagrimas. Emilia fitou os olhos na irmã com ineffavel ternura e só pôde dizer:
-- Perdão, minha boa irmã!
A respiração alta, difficil e penosa embargava-lhe a fala.
Helena tomou-a nos braços, e disse a Tara em voz baixa:
-- Vae já, já chamar o medico.
Depois, voltando-separa a irmã, disse-lhe com a sua voz doce e affectuosa:
-- Que tens, minha boa irmã?
-- Não me queiras mal. Tem piedade dos moribundos. Sou indigna até de tocar os teus pés.
Despreza-me, mas perdoa-me, meu anjo ! Aquelle homem enganou-me... Eu amava-o... Sacrifiquei-lhe tudo... tudo... Louca que eu fui!
Ao proferir estas pbrases, incoherentes, abruptas e cortadas de soluços, a moribunda tinha a fronte erguida, nos olhos cravados ma irmã.
A vaidade tinha-lhe perdido o corpo; queria humilhar-se diante de Helena para salvar a alma.
N'estes esforços exaurariramtse-lbe as forças. A cabeça pendeu e as pálpebras cerraram-se.
-- Morta! Meu Deus!! esclamou Helena.
Depois de alguns instantes, Emilia, entreabrindo os olhos, parecia voltar a si. Um raio de alegria passou na alma de Helena.
Promettes-mé? perguntou a infeliz com um accento que parecia partir do coração, e concentrando n'esta palavra a vida que lhe restava.
-- O que? replicou Helena quasi louca.
Nada percebera do que a irmã lhe dissera.
-- Peço-te que não digas nada a Thomaz, e que sejas mãe para o meu pobre filho.
Esta ultima palavra saiu-lhe dos labios lenta e lugubre. Havia n'ella o que quer que fosse de horrivel. Queimava os labios.
-- Prometto, sim; replicou Helena, que crera descobrir na irmã sinaes de alienado .
Emilia puxou a irmã para si, abraçou-a com ternura e aproximou dos labios d'ella os seus que estacam lividos e gelados.
N'isto entrou o medico. Examinou a doente, e declarou que nada havia a fazer. Capitulou a molestia uma perniciosa.
Senhores ! tende a bondade de sair. Quero ouvir esta senhora de confissão.
Era frei Francisco quem assim falava.
Fecharam-se as portas do quarto e frei Francisco demorou-se com a penitente mais de uma hora. O que ahi se passou ninguem o soube nem o saberá .
Abriu-se a porta. Frei Francisco estava em pé junto ao leito da enferma, com a mão esquerda d'ella nas suas. Tinha o corpo curvado como se pesassem sobre elle todos os peccados da moribunda. Os labios estavam cerrados como um sello sobre o segredo que trazia no peito; os olhos fitos e immoveis parecia que diziam a Emilia:
-- Tu morres e eu fico ainda. Posso chorar os teus e os meus peccados.
Emilia com os olhos cravados no crucifixo, que socava com a direita, murmurava em -- Sim, agora vejo, agora sei, agora comprehendo, agora não sou vaidosa...
Uma lagrima, rompendo dos olhos do sacerdote e correndo-lhe pelas faces, caiu sobre a fronte da moribunda.
Emilia baptisou-se n'está agua santa.
Helena olhava para a irmã com o olhar de uma louca.
-- Helena! Helena! Padre Francisco! Prometteis -me?... Helena, pede a Deus por mim. Elle hade ouvir-te por que és virgem.
Esta ultima palavra foi pronunciada em tom tão doloroso que cortava o coração.
Houve um momento de silencio.
--Não vejo nada, disse Emilia; falta-me o ar.
Chamem o sr. Roberto.
-- Aqui estou, disse um homem, adiantando-se para a moribunda.
-- Não sei o que sinto...
Pegou nas mãos de Helena e apertou-lh'as; depois murmurou em voz tremula e balbuciante:
-- Senhor Roberto, padre Francisco Thomaz, Tara, Helena! Meus amigos! perdoae-me, como eu perdóo a todos os meus inimigos... sim, a todos.
Os labios agitaram-se-lhe por alguns mo mentos sem que podesse articular som algum.
Emilia havia expirado................
Homens ! ahi tendes a vossa victima !
Deus ! perdoae a esta mulher que creastes fraca!
Ella perdoou tambem.
XIII
Tolda-se o ceu
Algumas mudanças se haviam operado na vida de Sobal, d'esse personagem que ha tempos perdemos de vista. Deixara completamente a vida de agiota, e continuava a ser unicamente correspondente de algumas casas commerciaes de Calcutta. A caridade que praticava e a generosidade com que se houvera com Roberto, a quem concedera, depois d'aquelle que o leitor sabe, um segundo prazo para pagar as suas dividas, haviam estreitado mais as relações de Sobal com frei Francisco e esnalhado nor toda a narte a fama das bessem que elle pagava a Tara e a mais dois criados de Roberto para o informarem de quanto se passava no baragató, porventura esse respeito se converteria em desprezo. O odio que Sobal tinha a Roberto, e que depois da morte de Emilia se estendia tambem a Ricardo, era como o fogo de Hecuba. Tinha camada de gelo.
Vinte dias depois do fallecimento de Emilia, chegaram a Fizabad Thomaz e Ricardo. O filho de Magnod ignorava completamente as causas da morte da sua infeliz irmã. Helena, informada de tudo por Tara, percebera finalmente as derradeiras palavras de Emilia. Nada podia dizer a Thomaz.
Uma tarde foi Thomaz procurar Sobal, para quem trazia cartas da casa Forbes & C.a Sobal ficou profundamente commovido ao ver em sua casa o filho de Magnod. Permaneceu immovel á porta da sala. Parecia comprimir com as mãos as pulsações do coração. A mascara incommodava-o.
-- Tende a bondade de vos sentar, disse elle, voltando-se para Thomaz.
Depois de alguns momentos de silencio, Thomaz levantou a cabeça e começou:
-- Senhor, sei que meu pae é vosso devedor e que tendes tido para com elle as mais benevolas attenções. Venho pedir-vos mais uma. O ultimo prazo termina depois de amanhã; se pudesseis esperar mais uns seis mezesl Sou eu quem desde hoje responde por esta divida, e para isso trago estas cartas abonatoriâs.
Sobal, sem responder nem receber as cartas, que Thomaz lhe queria entregar, examinava-o attentamente. O tratamento de pae, que lhe ouvira dar a Roberto, fizera-lhe arripiar o corpo. Parecia irresoluto.
-- Senhor Thomaz, eu conheci o vosso pae vossa mãe e vossa irmã !
-- Morreram todos, e vivo eu para os chorar.
-- Triste sorte a minha!
Ao proferir estas palavras, o mancebo tinha os labios brancos e nos olhos bailavam-lhe duas lagrimas. Pelas faces de Sobal já muitas haviam escorregado.
-- Morreram! Dizei antes que foram assassinados !
-- Assassinados! bradou Thomaz, erguendo-se de um pulo no meio da sala.
O seu aspecto era terrivel.
-- Sim, assassinados vil e covardemente, gritou Sobal ainda mais furioso.
-- Que infamias são essas que estaes ahi dizendo? Quem foram pois os assassinos?
-- Esse mesmo homem a quem acabaes de chamar pae.
-- Impossivel! Provae o que dizeis, quando não faço-vos calar para sempre ; rugiu Thomaz, pegando n'uma cadeira.
Sobal olhava para Thomaz com uma alegria feroz. Aquella colera infiltrava-se no seu coração como um balsamo.
-- Socegae, disse elle, e escutae-me.
Referiu então Sobal a dolorosa e negra historia da familia Magnod. Volveu uma a uma todas as paginas d'essa chronica, que o demónio lhe escrevera no coração com a ponta aguçada de um punhal. Descreveu com escrupulosa fidelidade as scenas que se tinham passado em Caompore entre Thomaz e Helena, e depois entre Roberto e Thomaz. Declarou a razão porque o filho de Magnod desejava tanto pagar as dividas de seu pae adoptivo ; finalmente attribuiu a morte de Erailia a Roberto. Só uma coisa occultou elle n'essa narrativa, -- o segredo de Emilia.
Thomaz parecia escutar ainda. Não dizia nada: não podia dizer nada. Às imagens do pae, da mãe, da irmã abrazavam-lhe o cerebro.
-- Vingança ! bradou elle com os olhos chammejantes de colera.
-- Sim, vingança! exclamou Sobal com infernal prazer.
De repente um raio de luz correu pela mente de Thomaz. Uma duvida...
-- Pois, accrescentou elle, se Roberto foi assassino da minha familia e da minha felicidade, como é que elle me educou com tantos sacrificios e me estima como filho?
-- Mentira! atalhou Sobal. E honrar muito a alma d'esse malvado. Quem vos educou foi frei Francisco. Tenho em meu poder documentos que o provam. Roberto odeia-vos, por que sois brahamane. Recusa-vos a mão de Helena, por que não sois nobre. Duvidaes? Pois bem, dizei-lhe que lhe perdoo as suas dividas e veremos se elle vos concede a mão da filha.
-- Então não devo nada a esse homem? tornou Thomaz com indizivel anciedade.
Ao ouvir a ultima declaração de Sobal, o mancebo sentira estalarem-lhe um a um todos os erros da gratidão a cairem esmigalhados. Os seus braços estavam livres para abraçar Helena.
Proseguiu :
-- Dizei-me, oh! dizei-me ainda outra vez que não devo nada a esse Roberto ! Repeti essas palavras; que não ha para mim melhor liberdade, nem maior ventura.
-- Uma coisa, e só uma lhe deveis, respondeu Sobal: o odio eterno.
Com um movimento convulso, Thomaz apertou a mão de Sobal e accrescentou:
-- Vou arrancar Helena dos braços d'esse demonio, e vingar os meus paes e a minha pobre irmã.
-- Moderae a vossa exaltação, disse Sobal com serenidade. Ha tempo para tudo. Helena vem todas as tardes, pelas seis horas, em companhia de frei Francisco ver um orphão que ella recolheu; e está creando no andar inferior d'esta casa. Podeis falar-lhe então á vontade. Esperae n'este; gabinete até que eu volte. São apenas tres horas e meia.
-- Obedeço-vos, por que sei o interesse que tomaes por um desgraçado.
Dizendo estas palavras, Thomaz desatou a chorar.
Pedimos ao leitor que tenha a condescendencia de deixar a casa de Sobal por alguns momentos e entrar no bangaló.
Roberto estava no seu gabinete, assentado n'uma cadeira, com um livro diante de si, que não lia. Estava tão embebido nos seus pensamentos, que não deu tino de Helena que abrira a porta sem bater.
Helena olhou para o pae, em cuja physionomia transparecia aafflicção, e beijou-o na testa.
-- Como estás tu, Helena?
-- Perfeitamente, meu pae.
É preciso advertir que depois do fallecimento de Emilia, sua irmã estava inteiramente demudada. Um veo de tristeza cobria-lhe o semblante, outr'ora tão radiante de alegria. Poucas vezes saia do quarto. Não podia ver Ricardo, que já lhe havia feito duas declarações de amor.
-- Meu pae, accrescentou ella, abaixando os olhos, queria dizer-vos duas palavras.
-- Estou ouvindo; tornou Roberto com um gesto que exprimia bem a sua surpreza.
-- Meu pae, sei que todas as conveniencias e a vossa tranquillidade sobre tudo exigem que eu case com meu primo. Quizera sujeitar-me a esse accordo porque sei que n'isso vae a vossa felicidade; mas vejo agora que me é impossivel. Eu não amo nem posso amar esse homem ; detesto-o com toda a energia do meu coração. Quer meu pae a sua felicidade em preço da minha? Tel-a-ha. Mas casar com esse homem... Nunca.
Roberto levantou-se bruscamente da cadeira, e olhou para a filha com uma expressão tão desesperada que Helena curvou a cabeça.
-- E Thomaz, esse mau genio da minha familia, disse elle, quem te aconselha a seres desobediente a teu pae. E o pago que me dá aquelle brahamane.
-- Oh! meu pae! Juro-vos que Thomaz não me disse nem uma unica palavra a este respeito. Está innocente.
-- Minha filha, continuou Roberto, com tom de profunda convicção e meigo affecto. Eu não posso querer a tua desgraça. Ricardo é da nossa familia e qualidade; nada lhe falta para fazer a tua felicidade.
-- De que me serve tudo, se elle é um...
Lembrou-se de que estava diante de seu pae e por isso retrahiu a palavra.
-- Pois então atreves-te a desobedecer a teu pae?
-- Atrevo-me, por que conheço o caracter de Ricardo.
Estas palavras foram ditas por Helena com voz tremula e gesto demudado.
-- Filha ingrata! desprezas a tua ventura ea de teu pae, a quem queres despenhar no opprobrio e nas trevas do carcere, para fazeres a d'esse maldito brahamane! Da minha bocca e da d'esse anjo, que hoje está no ceo, e que foi tua mãe, não ouvirás senão maldições!
-- Perdão, meu pae! tornou Helena lançando-se-lhe aos pés e abraçando-os. A minha felicidade, a minha vida, tudo vos sacrifico; mas, por Deus, não me obrigueis a casar com esse monstro. Antes a morte, mil vezes a morte!
N'isto bateu um criado á porta e veiu prevenir Roberto de que Sobal o esperava na sala e vinha falar em um negocio urgente !
-- Dize-lhe que não estou em casa.
Ainda estas palavras não eram bem pronunciadas, quando aporta se abriu de par em par, e appareceu no meio do gabinete a rigida figura de Sobal.
-- Que ousadia ! exclamou Roberto.
Helena saiu. Eram quasi seis horas.
-- Não vos heide tirar muito tempo, senhor Roberto. Duas palavras só. Depois de ámanhã acaba o ultimo prazo que vos concedi. Ou a cadeia ou o dinheiro. Escolhei.
Ao ouvir a estranha e severa linguagem de Sobal, Roberto cobriu o rosto com as mãos.
O coração indignado incitava-o a repellir a injuria; as circumstancias aconselhavam modelação.
-- Esperae só alguns dias. O casamento de minha filha não pode tardar.
-- O casamento de vossa filha! gritou Sobal, dando uma estrondosa risada. A vossa filha não pôde casar senão com Thomaz. Assim o exige a sua honra.
-- A sua honra ! Isso é uma infame calumnia.
-- Vêde se podeis impôr silencio a quem tem ainda provas vivas da deshonra d'essa mulher. Repito que agora não podeis recusar a sua mão a Thomaz.
-- Pois eu recuso ! bradou Roberto batendo o pé.
-- Isso é indigno! rugiu Sobal, dando emfim largas ao odio que trazia accumulado no peito.
Infernal deleite sentira elle ao atirar ás faces de Roberto a palavra indigno.
-- Se quereis ver as provas, continuou Sobal, acompanhae-me.
Roberto seguiu-o como um louco. Parecia subjugado por uma especie de fascinação.
Sobal entrou em sua casa, acompanhado de Roberto ; depois, desceu com elle por uma escada interior para o andar de baixo e alli disse-lhe com firmeza, apontando para um quarto :
-- Olhae pelo buraco da fechadura, e dizei-me se acreditaes ainda na honra de vossa filha.
Roberto olhou. Triste espectaculo se apresentou a seus olhos. O desgraçado deu um grito e caiu desamparadamente sobre as lageas do pavimento. Vira Helena apertando ao peito uma creança e beijando-a ternamente.
Sobal pegou em Roberto, desfallecido como estava, e fechou-o n'um quarto. Depois foi ter com Thomaz, e encontrou-o na mesma attitude em que o deixara. Parecia petrificado.
-- Senhor Thomaz, disse elle entregando-lhe um papel; aqui tendes a quitação em que declaro que Roberto me pagou o dinheiro que me devia. Faço-vos presente d'ella. Se quereis falar a Helena, ide esperal-a na escada.
Thomaz parecia confuso e sem intelligencia do que ouvia. Pegou no papel e desceu a escada.
Assentado no ultimo degrau, e tendo a vista fita na porta que se indicara, esperava calado e immovel. O coração batia-lhe com força; os lábios agitavam-se-lhe ; o ouvido procurava distinguir mesmo ao longe os passos que esperava. Bateram sete horas ; o mancebo sentiu o ranger de uma fechadura e uns passos. Olhou e viu um vulto, embuçado na manta, dirigir-se para a porta. Era ella. Thomaz adiantou-se para o vulto e receando assustar Helena, começou a chamar por ella em voz baixa.
A filha de Roberto, ao ouvir aquella voz tão sua conhecida, não pôde suster um grito. Recuou e quiz voltar para o quarto; mas o mancebo, ajoelhando diante d'ella e pegando-lhe nas mãos, fez-lhe esquecer todos os receios e escrupulos.
-- Helena ! murmurou o mancebo no tom doce e unico que parece ecco do coração.
-- Thomaz! respondeu ella na sua voz angelica.
Durante alguns instantes não abriram a bocca, mas falaram como nunca. O silencio ou é nada ou é tudo.
Foi Thomaz o primeiro que quebrou o silencio.
-- Helena ! Procurei esquecer-te, mas não pude. A distancia e o oceano não puderam tragar este amor louco que lhes dei a devorar. Era immenso como elles. As saudades nutriam-o, e eu crescia de dia para dia na minha desventura. Longe de ti padeci muito ; e não morri de pezares por que tinha ainda uma esperança. Hoje estou livre para te amar, livre para te dedicar este coração, que resgatei de todos os affectos para que fosse só teu. Nada devo a teu pae... Paguei as suas dividas por que o desejavas, e os teus desejos são para mim sagrados. Agora és minha. Quem ousará roubar-m'a? Desgraçado do homem que tal ousasse.
Ouvindo estas phrases ardentes e apaixonadas, Helena sentia partir-se-lhe o coração.
-- Se te amei ou não, tu o sabes. Se uma só palavra, um só pensamento desmentiu em mim esse amor, dize-o. Pedi-te que salvasses meu pae. Tu cumpriste a promessa. Agora juro por Deus, que me ouve, que não ha forças na terra que valham a separar-me de ti. Podemos realisar essa felicidade, que tem sido o nosso sonho de todos os instantes, a nossa constante aspiração. Onde quer que o destino te conduza, pobre ou rico, brahamane ou irlandez, a minha vida é tua, para sempre tua.
-- Nunca! interrompeu uma voz.
E Roberto appareceu de repente no meio dos dois amantes. O seu aspecto era medonho.
-- Oh! chegaste bem a proposito, assassino da minha familia, gritou Thomaz, reconhecendo Roberto. Vieste recordar-me a divida que te devo. Assassinaste meu pae, minha mãe, e finalmente minha pobre irmã. Receando a minha vingança, procuraste covardemente evital-a manietando-me com os laços de uma falsa gratidão. Monstro ! deves morrer ás minhas mãos.
Thomaz apanhou do chão. o seu casse-tête Com ambas as mãos o levantou. Um crime ia consummar-se.
-- Thomaz! elle é meu pae, exclamou Helena na maior angustia, abraçando-se ao seu amante.
-- Deixa-o, bradou Roberto pegando no braço da filha e afastando-a com violencia para o lado.
Depois continuou:
-- Uma filha que me cobriu de vergonha não tem o direito de salvar-me a vida. Queres talvez que eu viva para educar o teu filho como eduquei os assassinos de minha honra. Vae-te.
Aqui um grito partiu dos labios de Thomaz.
O que elle ouvira varrêra-lhe da memoria tudo.
Era horroroso. Caiu por terra sem sentidos, balbuciando:
-- Ella! Mãe!
-- Oh! que nunca me amou! Pensar de mim tal infamia ! exclamou Helena.
XIV
Vox clamams
Oito dias depois dos successos que acabamos de narrar, parecia que Fizabad tinha debaixo de si um vulcão. A velha cidade de Azof estava alvorotada. Os fakirs pregavam por fodos os angulos na sua linguagem mysteriosa; os sipais açacalavam as armas; o sangue dosindios despertava ao grito da guerra santa, de uma somnolencia de seculos; os velhos e as creanças tremiam de susto. A agitação era geral.
Uma manhã foi achado morto no seu leito Ricardo, o sobrinho de Roberto, com duas punhaladas no peito.
De uma carta de recente data, que se achara entre os papeis do defunto, colhia-se que era filho d'elle o que Helena creava em segredo. A policia tratou desde logo de o recolher. Helena oppoz-se, e só cedeu ás ordens terminantes do magistrado. Correu a fama da resistencia, e começaram a apparecer certas duvidas no animo dos que mais tinham respeitado Helena até então.
As suspeitas do assassinio de Ricardo cairam sobre Thomaz, que lhe enviara na vespera um cartel de desafio, julgando-o seu rival. Thomaz estava preso.
A cadeia de Fizabad era uma pequena casa, com oito janellas. No andar inferior ficavam os presos de baixa condição; no andar de cima, á direita, era a sala onde o Convenant abria as suas audiencias ; á esquerda, ficavam os quartos para presos de condição mais elevada.
Era n'um d'estes quartos que estava Thomaz, assentado ao pé da janella, d'onde se descortina vam os vastos campos de Fizabad e o Gográ, que por elles serpeava. A melancolia e o lugubre silencio cfestes logares debuxavam-lhe o coração dos seus inimigos. Os topes d'esses serros inabalaveis traduziam-lhe na immobilidade a dureza dos seus perseguidores. A pallidez das suas faces, e a contracção das feições eram a expressão do seu aniquilamento moral e physico.
O seu coração tinha vivido do amor e da gratidão. De repente faltaram-lhe aquellas unicas realidades em que acreditara. A amante era uma traidora e o amigo um assassino! Depois avultava-lhe no espirito a imagem veneranda de frei Francisco, que morreria de vergonha ao vèl-o condemnado como um assassino. Taes eram as reflexões amargurada s e as dòresemquelidavaaalma do infeliz mancebo. Estava n'uma d'aquellas situações, que não se apresentam mais de uma vez na vida do homem, e são as fronteiras entre a razão e a demencia. Como em todos os homens de temperamento frio, o ciume em Thomaz era concentrado e fundo como um oceano. O seu unico allivio era o opio.
N'este ponto abriu-se a porta e entrou frei Francisco.Vinha a religiãoladeada dassuas consolações.
Thomaz sobresaltou-se e ergueu a cabeça. Esta visita incommodava-o. Trahido pela amante, não teria duvida de aproximàr-se dos habitos venerandos do sacerdote e de beijar-lhe a mão, com o respeito de filho e com a fé viva de discipulo; mas accusado de um crime grave, perseguido pela justiça, não se atrevia a levantar os olhos para o sacerdote. Receava encontrar n'elle a indignação que a um homem de bem causa o criminoso.
O padre adivinhou os escrupulos de Thomaz.
Quiz desvanecel-os, mostrando-lhe a placidez no semblante, fingindo o sorriso nos labios, e dizendo-lhe com affectuosa expressão:
-- Thomaz, deves precisar dos conselhos e advertencias dos mais velhos ; careces de consolações e conforto : trago-te tudo.
-- Antes de receber o vosso favor, peço-vos que acrediteis que estou innocente. Não sou assassino. A justiça persegue um infeliz e confunde-o com um criminoso.
-- Não sou assassino; murmurava frei Francisco.
O semblante do sacerdote espairecia, e largas respirações lhe desaffogavam o peito. Conhecia o caracter de Thomaz e suppunha-o incapaz de perpertar uma morte por vingança e negal-a depois. Com insoffrimento esperava a justificação.
-- Não foste o assassino de Ricardo? perguntou o padre depois de longa pausa.
-- Padre! gritou Thomaz pondo-se de pé, juro diante de Deus que estou innocente... Mas que me importa a mim que todos me tenham por assassino ? Já em nada creio. A mulher que eu julgava pura como um anjo, prostituiu-se ao primeiro que a requestou, fazendo-se sua vil e infame barregã! No mesmo dia, na mesma hora, no mesmo instante em que eu, evocando a imagem d'essa mulher no silencio da noite e na solidão dos mares, a collocava no altar do mau coração, paralhe sacrificar os meus pensamentos, o meu futuro e a minha vida, ella, a perjura, zombava de mim nos braços de outro, convertendo em profano o meu culto, em blasphemias as minhas palavras, em sacrilegos os meus extasis! Depois d'isto, não creio, não posso crer nem mesmo em Deus... Agora, se entro no meu coração, no templo d'ella, que vacuo! Chamo-a, invoco, clamo; ella não vem... não pode vir. Ainda bem. Já não é aquelle o seu logar... Que mal teria eu feito a Deus para me entregar sem piedade a esses monstros que se chamam inglezes, que beberam todo o meu sangue, que destruiram tada a minha familia, que?... E eu a chamar-lhes pae e amigos ! Só com a morte podem ter fim tantos males. Venha ella. de grado heide recebel-a... Não nasci para ser feliz.
Os olhos de Thomaz estavam injectados, o cerebro ardia e as faces estavam abrazadas. Era um accesso de colera e de desesperação o que tinha o infeliz mancebo.
Frei Francisco não tratou de pôr dique ao delirio que rompia. Deixou-o; que é melhor para a cura, que corra livre o sangue da ferida. Esperou pela bonança, e declarada esta, chegou-se para o mancebo que ainda estava de pé e disse-lhe com bondade:
-- Não cabe aos homens prevenir circumstancias que o podem mostrar reo ; mas lá está a justiça suprema que tudo vê. O que dizes afflige-me, por quanto esperava encontrar em ti mais philosophia e mais resignação. Pede perdão das blasphemias que acabas de pronunciar contra Deus, e das injustiças que acabas de fazer aos homens. A paixão cegou-te, meu filho. Calumniaste Roberto, que foi teu pae no amor e na creação, que te sustentou com grandes sacrificios, que nenhuma culpa teve da morte de tua irmã. Ousaste duvidar da Virtude de sua filha; de Helena! Para justificara uma só palavra assas me fôra. Helena é um anjo.
-- Um anjo! exclamou Thomaz.
-- Sim, um anjo; redarguiu o padre.
Foi tal a commoção que estas palavras produziram em Thomaz que parecia um idiota. O espanto paralysara-lhe todas as forças e produzira momentanea apathia. Depois de alguns momentos, continuou com ironico sorriso:
-- E aquelle filho que ella não queria entregar? E possivel que Helena quizesse sacrificar o meu amor, o nome da sua familia e os timbres da sua reputação por um filho que não fosse seu?
-- É possivel; repetiu o padre no mesmo tom. E só o não comprehende quem não tem alma para o comprehender.
-- De quem é esse filho? perguntou Thomaz com anciedade.
-- De quem é, não o posso dizer. É um segredo.
-- Padre Francisco, disse o mancebo, de pois de alguns instantes de silencio, em que não fez mais que limpar as lagrimas que lhe corriam em torrentes pelas faces ; quanto me enternece esse vosso coração tão esmerado em me tranquillisar! Que novas obrigações me empenha? Mas quem me diz que não estaes enganado?
A porta do quarto abriu-se e um sipai veiu prevenir Thomaz de que eram horas de ir apresentar-se no tribunal.
XV
O calvario
A casa da justiça, chamada Côrte, é uma sala dividida ao meio por uma grade de ferro. Na repartição de cima vêem-se tres bofetes forrados de panno azul. O do centro é do magistrado, pertencem os outros aos escrivães. No fundo desenham-se os vultos medonhos dossipais da policia, vestidos de pfeto, com uma chapa de prata no peito.
O magistrado, assentado numa cadeira de espaldar, corre successivamente pela vista as paginas de um processo. Junto á grade ha um banco vazio.
Na repartição de baixo vêem-se individuos de diversos trajes e edades. A pouca luz que allumia esta casa dá-lhe um aspecto sinistro. A magestade das leis adeja calada por estes tectos.
O silencio é profundo. De repente ouve-se o som de uma campainha. Apparece um homem e senta-se no banco ao pé da grade.
A sua figura nobre, a candidez que respira o semblante penalisado e languido captiva-lhe quantos havia de ter como juizes. O magistrado voltando-se para o escrivão da direita diz-lhe:
-- Lêde a primeira parte do auto de inves tigação.
O escrivão põe-se de pé e começa:
-- No dia ás sete horas, foi achado Ricardo Davis morto no seu quarto, com tres punhaladas no peito na região do coração.
-- Basta, interrompeu o magistrado ; depois voltando-se para o reo disse-lhe :
-- Senhor Thomaz, as suspeitas d'este homicidio recaem sobre vós, porque consta que havieis enviado a Ricardo um cartel de desafio, na vespera do dia em que foi assassinado. Ricardo não tinha outre inimigo.
-- Boa conclusão! exclamou o reo dando uma risada; o que eu queria era vingar-me de Roberto e podeis estar certo de que havia de fazel-o pelo modo que é costume entre cavalheiros, e não assassinando-o vil e covardemente no seu leito. Santo Deus! Injuria até na accusação!
-- Que affronta havieis recebido de Ricardo?
-- Muitas; mas estas não veem aqui ao caso. Não peço para ellas justiça.
-- Se ellas puderem esclarecer a verdade!
-- Asseguro-vos que não esclarecem.
-- Sou eu quem hade julgar se esclarecem ou não.
-- Pois eu insisto no meu silencio.
-- Peior para vós.
-- Pois seja! Que me importa agora a vida? Tudo me é inutil.
O mancebo virou-se para os circumstantes e deu com os olhos em frei Francisco. O sacerdote, absorto nos seus pensamentos e com a vista fita no ceo, parecia perguntar a Deus:
-- Foi para isto que eu fiz tantos sacrificios?
Findo este interrogatorio, o magistrado dirigiu-se a Helena, que estava tambem dentro da teia. A filha de Roberto trajava vestido preto e um veo da mesma côr lhe cobria o rosto. Ao seu lado estava Tara vestida de branco.
-- Desejo, começou o magistrado, algumas explicações ácerca da creança que recolhestes com tanta caridade. De uma carta, que se achou entre os papeis de Ricardo, consta que elle tinha um filho. Preciso saber se é o mesmo.
O magistrado não ignorava os boatos que corriam acerca da reputação de Helena. Não os acreditava. Queria mais esclarecimentos.
-- Senhor magistrado, disse Helena com voz fraca, sei quem são os paes do infeliz de que me encarreguei, mas não posso declarar os seus nomes. Peço-vos unicamente que me façaes restituir aquella creança.
-- Reparae que esse silencio pode prejudicar-vos.
-- Estou prompta a soffrer tudo por aquelle innocente. Torno a pedir que m'o restituaes.
-- Eu não vol-o posso restituir: tende paciencia. Se vier a descobrir que é filho de Ricardo, mandarei entregal-o aos seus parentes. É o meu dever.
-- Não fareis tal, meu bom magistrado, exclamou Helena, pondo-se em pé. Não o mandareis para tão longe... Pobre creança!
Os espectadores d'esta scena falavam baixo, e mostravam nos semblantes aindignação que lhes causava uma hypocrita, que não queria dizer por palavras o que já bem claro diziam a sua turvação e lagrimas. No meio d'este sussurro ouviu-se de repente uma voz:
-- E ainda duvidaes, frei Francisco?
-- Repito, disse o magistrado elevando a voz que não posso restituir-vos essa creança.
-- Restituir-m'a-heis, bradou Helena levantando o veo que lhe cobria o rosto, por que esta creança é meu filho e de Thomaz.
-- Infamia ! rugiu Thomaz, adiantando-se para ella com os punhos cerrados.
Um sipai agarrou-o immediatamente pelo braço.
Helena olhava com placidez para os espectadores. A sua virtude luzia atravez dos veos da sua modestia. A fronte erguia-se ornada da aureola do martyrio. Ô perfil illuminava-se-lhe da luz da graça. Estava serena como o rouxinol, que, confiado nas azas, canta alegre emquanto estalão ramo sobreque está pousado. Emilia tinha a consciencia pura. Nada temia.
Frei Francisco, pela primeira vez na sua vida, esteve quasi bemdizendo uma mentira!
Os espectadores, que estavam convencidos de que Helena era mãe do innocenteque se lhe queria arrancar, duvidavam agora, que ella o confessava tão terminantemente !
A expressão solemne e radiante da culpada era uma justificação. A consciencia trespassa muitas vezes o corpo e brada -- não, quando a bocca diz -- sim.
O presidente tocou a campainha e estava para levantar a sessão quando um homem, chegando-se á grade, gritou com toda a força :
-- Esta mulher faz um nobre sacrificio. Ella não é mãe do innocente que recolheu.
Era Sobal quem assim falava.
Os espectadores voltaram-se todos para Helena.
Ninguem a applaudiu : todos a adoraram em silencio.
Este sacrificio da honra pelo amor merecia um templo. A admiração transformou-se em culto.
Helena não levantava os olhos do chão. E esta attitude dos que salvam fazendo-se victimas. É o pudor da victoria. Vêde a imagem de Christo.
O magistrado fez entrar Sobal para dentro da teia, e perguntou-lhe:
-- Podeis dar-nos alguns esclarecimentos acerca da creança de que se trata ?
-- Não só ácerca da creança, mas também do homicidio que foi praticado ha dias ; respondeu Sobal.
-- Senhor, disse Helena com as mãos erguidas, por Deus não o declareis.
O magistrado pediu a Helena que não interrompesse o interrogatorio.
Sobal, sem se alterar, tirou da algibeira do casaco, uma medalha, e dando-a ao magistrado, disse-lhe:
-- Os paes são as pessoas que constam de um papel, que está dentro d'essa medalha. Pode o senhor magistrado lel-o.
Depois d'esta declaração, chegou-se ao pé de Thomaz e disse-lhe algumas palavras ao ouvido.
O magistrado abriu a medalha, e tirando o papel que ella continha, disse para Sobal :
-- Nem mais uma palavra a este respeito. Dizei-me agora; quem foi o assassino de Ricardo?
-- Eu! disse Sobal com toda a placidez. A prova eil-a.
Sobal tinha na mão um punhal tinto de sangue!
E impossivel descrever o assombro dos circumstantes. Assassino o homem que vivia só para o proximo, que exercitava tantas virtudes! Parecia impossivel. Todos esperavam anciosos que se esclarecesse tão estupendo mysterio.
-- Vou contar como foi, continuou Sobal com ar desdenhoso. Dera meia noite. A escuridão era profunda. Reinava sepulchral silencio. Saí de minha casa, envolvido no manto das trevas. Não encontrei ninguem na rua. Graças ao meu dinheiro, pude entrar no quarto de Ricardo. Do lumiar da porta, contemplei-o por alguns instantes. Dormia tranquillo. indignou-me a tranquillidade d'este somno : era um escandalo. Caminhei com passos lentos para o leito. Estava junto da minha victima. Olhei para traz. A minha sombra descommunal extendia-se pelo chão e dizia-me -- ávante ! Achava-me com toda a insensibilidade do carrasco enão sentia nenhuma das hesitações do assassino. Aspirei o halito pestilento do devasso e dei-lhe a respirar o meu, que era de sangue. Sem dizer palavra, ergui o punhal ecravei-lh'o no peito. Abriu os olhos e estorceu-se. Tornei a cravar o punhal, mais fundo ainda, dizendo-lhe ao ouvido quem eu era e por que o fazia. Não me respondeu. Entendeu-me e expirou.
O magistrado, os sipais e os espectadores estavam petrificados de espanto e horror. Parecia que nem respiravam. Sobal olhava para todos com diabolico sorriso.
O magistrado, depois de alguns momentos de profundo silencio, tocou a campainha e disse para os sipais, apontando para Sobal:
-- Conduzi esse homem para a cadeia. O sr. Thomaz continua a ficar em custodia.
-- Até amanhã; disse Sobal voltando-se para o magistrado, ao passo que pelo rosto lhe serpeava maligno sorriso.
-- Até ámanhã! replicaram alguns fakirs que estavam na sala.
Thomaz estava de joelhos aos pés de Helena.
Pedia-lhe perdão.
XVI
1859 -- A revolta dos sipais
Em 1857, deve expirar a dominação ingleza, como em outro 57 ella principalmente se consolidara. Deve haver um Palissey indio como houve um europeu. A patria de Manú, depois de correr como uma moeda as mãos de Alexandre, Tamerlão, Albuquerque, Dupleix e Clive, deve voltar aos seus antigos senhores. Prégavam assim os fakirs por toda a índia, nos principios do anno de 1857. Todos ouviam, menos os inglezes, que dançavam sobre o vulcão e zombavam dos prophetas. como as creanças de Bethel zombavam de Eliseu.
A Europa esperava com anciedade e interesse o desenlace do drama tão longamente apregoado Finalmente chegou, e a representação não correspondeuá espectativa. Foi triste. Appareceram em scena os Caligulas e os Neros quando eram esperados os Washingtons, os Franklins e os Tells.
Nana Saheb esteve muito abaixo de Toussaint.
A insurreição degenerou em revolta, e a revolta em assalto dos thogs. A ínglaterra venceu na Europa no dia em que foi vencida em Gaoompore. E a humanidade imparcial horrorisou-se tanto das crueldades dos indios como das represalias dos inglezes, que desceram da sua brandura e civilisação para trocarem golpe por golpe e estarem hombro com hombro com os seus adversarios. Foi bruta a lucta. A Europa deu costas a esses morticinios, que davam tremores á civilisação e que a imaginação se horrorisa somente de recordar.
O movimento foi suffocado, por que era uma revolta. Nem o din que soara no alto do Himalaia, nem o canhão, que atroara as muralhas de Delhi pudera despertar esse gigante, que dorme na India o seu somno de seculos, -- esse gigante que, em quanto está dentro do coração humano, se chama direito, que na praça publica toma o nome de revolução, e que á primeira resistencia se converte em incendio. A revolta foi o sipai ; a revolução seria o povo ; a. revolta foi a vingança; a revolução seria a idéa; a revolta foi o fero Visnu; a revolução seria o brando Siva. Campbell, gigante perante a revolta, seria anão perante a revolução.
Os sipais desappareceram das fileiras e não foram substituidos; o povo seria immortal, por que o direito é eterno.
A Inglaterra não conquistou a índia; foi a índia que se lhe entregou. O maior inimigo da sua independencia fôra a mesma índia. As rivalidades das diversas dynastias, oodiodasdiversas castas e o antagonismo das diversas religiões foram a parte descoberta da armadura por onde o novo David ferira o Goliath. Uma só religião, uma só dynastia, uma só casta, índia fôra invencivel. O Brahama com muitas caras e braços é ridiculo ; como uma só fôra terrivel. Ospovos, divididos em castas, produziram o captiveiro de Jerusalem; unidos, teriam levantado barreiras como as de Thermopilas e das Asturias.
Para os homens liberaes e para a humanidade é bem indifferente que a índia se chame ingleza ou brahamanica; o que não podem consentir, é que a dominação seja exploração em vez de tutela paternal. Os homens imparciaes, que fazem questão da liberdade e não das raças, querem a índia para a índia, e detestam todos os despotas, chamem-se elles nababos, ou Clives.
Deve merecer as sympathias daEuropa o paiz, que formulou ademocracianojogo do xadrez, - o paiz que cantou com a voz dos anjos todas as sublimidades do ceo e com a voz de rouxinol todas as bellezas da terra, no seu poema Mahabarat, verdadeiro Himalaia da litteratura. A Inglaterra comprebende felizmente qual é a sua missão na índia. A companhia acabou. É o governo quem governa. Não se trata hoje de uma especulação mercantil ; trata-se do futuro de cento e cincoenta milhões de habitantes. A questão limita-se unicamente á forma.
A índia ingleza acha-se dividida em castas superiores e inferiores, em nobres e plebeus. Differencas profundas extremam umas das outras. As superiores são intelligentes, altivas, aferradas á sua religião, tradições e costumes ; as inferiores são humildes e pouco ou nada civilisadas. E hoje opinião seguida pelos orientalistas, que as primeiras são de origem diversa da de que procederam as segundas. Todas estas diferenças mostram que os meios de que o governo inglez tem a lançar mão devem ser diversos como diversos são os males.
Os meios mais poderosos da civilisação são dois : a religião christã e a instrucção. E necessario começar por um ou por outro, segundo as circumstancias. Os povos que teem uma civilisação sua e religião não as trocam facilmente por outras, senão depois de convencidos de que na mudança encontram maior utilidade ou ha melhor razão. Os que não teem religião alguma, ou possuem só algumas sombras d'ella, esses acceitam facilmente o novo Deus e o novo culto que se lhes propõe. Ora as castas superiores e as inferiores representam exactamente estas duas ordens de povos que admittimos na nossa these.
Ha uma circumstancia que deve concorrer para que as castas inferiores se convertam mais facilmente á religião christã : é que para ellas a conversão é a liberdade, o meio por que vão sair immediatamente da escravidão em que jazem. As castas superiores teem grande aptidão para a instrucção, e quando chegam a adquiril-a solida e vasta, esquecem antigas preoccupações. Gausou-nos espanto e verdadeira satisfação quando vimo pela primeira vez, no hospital de Jamsetgi Gigiboi, em Bombaim, alguns jovens indianos, vestidos ainda das suas cabaias brancas, dissecarem o cadaver de um seu correligionario. Um seculo antes esse facto parecera impossivel.
Os melhoramentos hiateriaes, que o governo inglez está emprehendendo na índia com tanta actividade, podem tambem concorrer indirectamente para a civilisação d'ella ; porém é necessario advertir, que a sua influencia não poderá ser grande n'um paiz, em que os povos, pela sua religião e costumes, não teem contacto intimo com os estrangeiros.
Quanto ao modo por que se deve tentar a conversão das castas inferiores á religião christã, só podemos admittir a persuasão, o exemplo e esses outros meios que se resumem na palavra habilidade. Portugal converteu uma parte da índia á religião catholica, com os braços dos seus soldados, com o sangue dos seus martyres, com os milagres dos seus santos, e com as fogueiras da sua inquisição. Os vencidos n'esta lucta ficaram sendo christãos e portuguezes. A Inglaterra pode imitar o exemplo, menos quanto á torça, por que não deve, nem a teria sufficiente para coagir cento e cinçoenta milhões de habitantes. Os jesuitas eram felizes na propagação da fé, por que eram habeis. Na índia, fizeram-se elles verdadeiros brahamanes do christianismo. Toleravam as festas do paganismo, mostravam analogias entre a religião de Christo e a de Brahama, e transigiam com as antigas crenças até onde lhes era possivel. Eram estes missionarios, como dizia o padre Vieira, no povoado homens, no campo bois, no bosque leões, nas nuvens aguias.
A companhia de Jesus foi poderosa na India, como em toda a parte, porque era uma cabeça só, servida por milhares de braços. Pensava com a lucidez de uma academia e obrava com a actividade de Alexandre. Era companhia-homem. Nenhum elemento lhe faltava. Tinha no seu seio philosophos, naturalistas, medicos, professores, pregadores, confessores, validos dos reis, tribunos do povo, musicos, pintores, sabios, ignorantes, santos e demonios. Com tantas luzes não podia deixar de ser sol; com tantos orgãos não podia deixar de ser systema ; com tantas peças não podia deixar de ser machina ; com tantas armas não podia deixar de ser arsenal ; com tantas forças não podia deixar de ser potencia.
A companhia de Jesus foi tudo isso.
XVII
A tempestade é a bonança
A revolta rebentou em Fizabad, em maio de 1857. Sobal poz-se á testa de mais de oitocentos insurgentes. As autoridades inglezas de Fizabad fugiram e os povos prestaram obediência aos revoltosos. A primeira coisa que Sobal fez, foi mandar uma força para guardar a casa de frei Francisco, onde estava Thomaz, e para onde o chefe dos insurgentes fez depois conduzir Helena. Dadas estas ordens e outras necessarias para a defesa de Fizabad, Sobal dirigiu-se ao bangaló.
Roberto estava na casa de jantar, agitado por diversos pensamentos, mudo e aniquilado. Ao levantar a cabeça e dar com os olhos em Sobal, empallideceu e balbuciou algumas palavras. O chefe dos revoltosos parou, de braços cruzados, e poz-se a contemplal-o com inefavel prazer, como a aranha olha para a mosca que agonisa na teia. Quando se saciou d'esse prazer, chegou-se a Roberto, lançou-lhe a mão ao braço, e começou a sorrir de um modo singular.
-- Senhor, murmurou Roberto, não sei em que vos offendi.
-- Não sabeis? replicou Sobal, com accento soturno e tranquillo. Sei eu... Lembra-me tudo como se fosse hoje. O ferro que abre as feridas não tem memoria, mas tem-na o corpo que as recebe.
-- Offender-vos eu? Nunca! Repito-o por que é a verdade.
-- Nunca ? redarguiu Sobal sem alterar a voz, ao passo que nos labios lhe apontava maligno sorriso. Perguntae-o a estas paredes, a este tecto, a estes moveis. E se elles forem mudos, não o será Magnod que recebeu aqui a mais vil affronta.
Dizendo isto, Sobal arrancou a pala e os oculos verdes que costumava trazer. Respirou.
-- Magnod! bradou Roberto.
-- Em pessoa! exclamou Sobal com voz terrivel.
Á expressão de louca alegria tinha succedido ar assustador e sinistro. Depois Sobal continuou:
-- Vistes a minha mascara, achaste-la bella, applaudiste-la; nunca percebestes debaixo d'essa superficie de virtude o odio que eu acumulava no peito. Não sentistes debaixo da camada de gelo o susurrar da lava ardente que me fervia na alma. Não reconhecestes em Sobal o tigre que vos espreitava. Não admira. Quem pode reconhecer nas cinzas o homem que se queimou ha doze annos! Passei dias e dias peregrinando sem termo nem horisonte, experimentando a affronta e calando me, soífrendo a fome e não ousando pedir. Noites inteiras consumi-as a espremer em lagrimas e fel todo o meu sangue. Fui tombando de pedra em pedra, de trevas em trevas, sem achar a vingança por que eu suspirava. Tive na minha mão a vossa vida, e não vol-a arranquei, por qu« carecia d'ella para dar pasto ao meu odio. Encontrei-vos só, muitas vezes, e não vos matei, por queria reservar-vos para maiores festins. Bem vêdes que sou paciente. Agora quero torturar-vos, quero fazer-vos em pedaços, para ver se ao menos posso ter um instante de prazer, depois de doze annos de continuo padecer !
A voz de Magnod tremia, os olhos chammejavam e as feições tinham tomado uma expressão medonha.
Roberto, attonito e horrorisado, nem pestanejava; as suas feições exprimiam a angustia. Quiz falar, mas não pôde.
Depois de uma breve pausa, proseguiu Sobal, fitando os olhos em Roberto e apertando-lhe com força o braço:
-- Pensaveis que havia de morrer fraco, ludibriado, sem fazer derramar algumas lagrimas áquelles que se riram de mim? Pensaveis que havia de deixar impune um insulto covarde e vil? Enganastes-vos. As feridas do amor proprio nunca se cicatrizam. Dizei-me agora: onde está o vosso orgulho, as vossas soberbas?
Este sarcasmo foi como um golpe fundo, ferido no seu amor proprio, Roberto balbuciou !
-- O meu orgulho está em pedir-vos a morte.
Ao ouvir esta resposta, Sobal largou o braço de Roberto e desatou em um rir medonho.
-- Ah! Nada mais quereis ! Pois então morrereis hoje mesmo, queimado na fogueira como coisa torpe. Quando a chamma trepar pelo vosso corpo, quando um rolo de fumo vos ennegrecer a cara, quando as dôres vos arrancarem gemidos profun dos, então...
Magnod acabara de pronunciar esta palavra quando a figura veneranda de frei Francisco appareceu no limiar. Houve uma exclamação e a esta seguiu-se um abraço.
-- Em má occasião viestes, padre !
-- Em optima, foi Deus que me enviou. Magnod! perdoae a Roberto como elle vos ha de perdoar tambem. É o vosso velho amigo quem vol-o pede.
-- E a vingança ? padre!
-- Magnod ! A melhor vingança é o perdão. Tudo o mais é illusão, loucura, nada. Quereis queimar Roberto? Pois bem; conseguil-o-heis ; e depois? O mesmo vacuo no coração; a mesma insaciavel sêde de vingança. Não tendes vós tortuado o coração de Roberto, calumniando-lhe a filha, que é pura como um anjo, accusando-o a elle da morte de Emilia? Não o tendes feito desgraçado, roubando-lhe a herança do tio e reduzindo-o á miseria ? E que tendes sentido? Nada. Quereis vingar-vos de Roberto, agora que sabeis que se arrependeu do mal que vos fez; que educou vossos filhos ; que chorou a morte de vossa filha?
-- Pois é falso tudo quanto se disse de Helena? atalhou Roberto com indizivel prazer.
-- Falsissimo, replicou frei Francisco. Helena e Thomaz são dois anjos. Magnod sabe melhor do que eu quem são os paes do filho que Helena tinha tomado a si.
-- Não posso acreditar, disse Magnod, que Roberto educasse meus filhos. Elle!...
-- Magnod! disse frei Francisco com accento grave e serio. Rem sabeis que não minto.
A esperança estava estampada no semblante de frei Francisco. Os olhos dilatados pelo extasi brilhavam como duas estrellas. O accento era profundo como a sua convicção. As palavras saíam-lhe como emanação do calor e luz da sua fé. Era a imagem de Deus.
As palavras do sacerdote ditas com tanta confiança transformaram o bronze em carne. Magnod sentiu intimos e antigos affectos acordarem do somno de doze annos e alvoroçarem-se-lhe no peito, no qual, vazio agora de toda a vingança, eccoavam só as vozes de paz e de amor pro das pelo sacerdote.
Magnod escondeu o rosto com as mãos. Soluçava.
Poderoso effeito da palavra humana, que pôde com seu brando sopro apagar o incendio de doze annos, e levantar uma alma até ao ceo !
Magnod permaneceu por alguns instantes com a cabeça baixa, immovel e frio. Dir-se-hia que todas as suas vinganças se lhe rojavam aos pés, e os beijavam como ao descair da tarde as sombras beijam a raiz da montanha. Finalmente caindo de joelhos diante do frade, disse-lhe:
-- Está tudo acabado. Aqui tendes o testamento de Davis e as contas das suas joias que vendi... Agora a vossa benção.
O sacerdote de Christo abençoou o brahamane.
Copiosas lagrimas corriam pelas faces de Magnod, e depois de doze annos sentia o coração aliviado de um grande pezo.
É bom perdoar.
-- Segui-me ! exclamou frei Francisco abraçando a Magnod com transporte.
Sairam ambos. Roberto cria estar sonhando.
Depois de curto intervallo, Magnod, Helena e Thomaz. entraram na casa de jantar. Cairam de joelhos aos pés de Roberto. Um só abraço uniu a todos quatro. Não se ouvia senão o susurrar dos soluços; não se viam senão lagrimas. A desventura estava no occaso, e a felicidade começava finalmente a raiar para este grupo.
Frei Francisco em pé, resumindo n'um sorriso as santas alegrias que lhe alvoroçavam a alma, abençoava-os já com a sua mão tremula e mirrada em quanto com os olhos erguidos para cima, dizia para Deus:
-- Agora lembrae-vos de mim.
EPILOGO
Um mez depois da tomada de Delhi, o padre francez Lebrum abençoou na egreja de Santo Xavier a união de Thomaz e Helena, e administrou o baptismo a Magnod, dando-lhe o nome de Roberto Davis.
Frei Francisco estava no ceo, e d'alli assistia a estas festas. Deus ouvira a sua supplica.
FIM
NOTAS
Hesitei se empregaria os nomes indios como estes são pronunciados na índia. Se era logico conservar-lhes os vestígios da sua origem, pedia d'outro lado a clareza que eu não atterasse profundamente as formas e a orthographia que muitos d'esses nomes teem tomado e com os quaes são ha muito conhecidos na Europa. Preferi seguir o meio termo.
I Brahamanes Nos documentos portuguezes do seculo IV, lê-se Bragmanes, ou Brâmanes. Os inglezes, que procuram sempre ser fieis ás etymotogias, começaram a escrever Brahamins. Pareceu-me conveniente conservar n'esta parte a orthographia adoptada pelos portuguezes, accrescentando-the só um ha, com que, sem alterar profundamente esta patavra, poderei conseguir aproximal-a da sua origem, Brahm, na qual o h tem o som de o aspirado.
Cabe aqui advertir que as línguas indianas, tanto as da origem sanscritica como as outras, conteem sons que não podem ser exprimidos petas lettras latinas.
É por tanto necessario inventar novos signaes ou lettras para esses que não teem semilhantes nas línguas neo-latinas : é o que tem feito os portuguezes e os italianos que teem escripto nas línguas indianas com os caracteres romanos.
Na grammatica da lingua concani, composta por o padre Thomaz Estevão e publicada, (2.a edição), pelo sr. J. H. da Cunha Rivara, procurei dar uma idéa d'esse methodo, que tem o nome de romanisação.
II Thogs Os inglezes escrevem thugs, porque na sua lingua a vogat u antes da consoante tem um som que não é do a nem do o portuguez, e corresponde perfeitamente ao som da primeira vogal do alphabeto sanscritico.
Os portuguezes poderiam escrever thugs se os inglezes escrevessem thoogs, por que o u portuguez tem o som de oo, mas escrevendo os inglezes, thugs, pareceu-me mithor escrever em portuguez thogs, aproximando-me assim tanto da pronuncia indiana como da ingtesa.
III Gurû Os inglezes escrevem guroo, mas os portuguezes devem escrever gurû.
IV Saheb significa senhor, mas os indios que habitam a índia ingleza servem-se deste nome para designar os europeos.
V Mahabarat-Sauneotola O primeiro é o poema epico da India, o segundo, o seu melhor drama.
É para sentir que a litteratura indiana, aliás mais vasta e rica do que a grega, seja tão pouco conhecida em Portugat. Aquelles que descobriram a India não tratam de exptorar a litteratura d'este paiz, nem de estudar as suas línguas, em que cada patavra é um mysterio e uma betteza. Os dous poemas, Mahabarat e Ramayna, são duas pyramides de Egipto da litteratura. Com a sua immensidade desafiam o ceu e espantam a terra. Não são nem podiam ser obra de um homem só. Estes poemas-monumentos são o capital de muitas gerações. A voz do povo é a voz de Deus ; O canto do povo foi o canto de Deus.
VI Convenant O processo criminal na India ingleza é inteiramente diverso do nosso. Aquillo a que assiste o leitor é uma especie de averiguação, que deve servir de base ao ulterior processo..
Nota final
Receba o sr. Gaspar Alvares Marques os meus cordeaes agradecimentos pela boa vontade com que se incumbiu de rever as provas deste livro, tarefa esta que sobre ser enfadonha demanda muito conhecimento da lingua, e que o sr. Marques, tão intelligente como modesto, prefez com todo o esmero e muita utitidade minha.
Igual gratidão devo ao sr. A. Xavier Cordeiro, que, com os seus conselhos de amigo e homem de lettras, me animou a concluir este romance.
Appendix A
Casa de recreio abarracada.
Grandes ventarolas.
Tratamento que se dá aos inglezes.
Griffin, chamam-se assim os inglezes que querem viver na India com simplicidade, e permitta-se-nos a expressão, burguezmente.
Uma espécie dc cadeirinha conduzida por quatro homens que se chamam amates.
Cachimbo grande.
Ventarola agitada por dois criados.
Um chapeo de sol muito maior do que se usa na Europa.
Criado de mesa.
O moço que conta historias.
O que sova as extremidades com o punho da mão.
Mastieatorio indiano.
Criados que conduzem o palanquim e pertencem á casta baixa.
Receber sat, é dever benefícios.
As bailadeiras vestem em algumas terras da India pannos de seda, que da cintura para baixo são arregaçados e pregados por traz em fórma de cauda (cas), de modo que as barrigas das pernas ficam descobertas. Quando se apresentam nos tribunaes e diante das castas etevadas, em signal de respeito, despregam o cas.
A methor fructa da india, e uma das primeiras do mundo.
Invocação á Divindade.
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