CARLOS MALHEIRO-DIAS
Filho das Hervas
ROMANCE
LISBOA
LIVRARIA EDITORA TAVARES CARDOSO & IRMÃO
5 -- LARGO DE CAMÕES -- 6
1900
FILHO DAS HERVAS
PRIMEIRA PARTE
I
Estava uma noite fria de inverno; e sob o ceu toldado de nuvens, sem estrellas, Coimbra scintillava no escuro, coroada de luzes. D'entre a espessura vinha o rumor monótono do rio. Rente a uma das portas havia um vulto de mulher e um vulto de homem, á espera.
Comprado o bilhete para Lisboa e despachada a bagagem, Manoel veio ter com o amigo á porta da estação.
-- Está tudo prompto?
-- Tudo. Falta um quarto de hora. Podemos conversar ainda um instante.
O amigo puxou a gola de pelle de lontra do capote e tirou uma fumaça do cigarro, calado. A brasa illuminou por momentos, indecisamente, a cara da mulher: uma tricana morena, de olhos pretos, embrulhada n'um chalé ; e a do rapaz : um homenzarrão chamuscado pelo sol, com um bigode preto de mosqueteiro.
Manoel de novo fallou, passando o braço pelo pescoço do amigo.
-- E o pequeno? Posso estar descançado? Não è nada?
-- Dentes ; são dentes. Vae socegado. Com tres dias de febre tudo passa. Quantos mezes tem elle?
-- Três. Três mezes e quatro dias.
E a mulher, n'uma voz de canto, a doce voz de Coimbra, murmurou:
-- Coitadinho !
Mas Manoel queria saber tudo, afflicto desde pela manhã com aquella carta em que a mãe contava a doença do filho, ardendo em febre.
-- Pode ser perigoso? Dize...
-- Não. O nascer dos dentes é tão natural, não te parece ? como o crescer de altura. Se a creança fosse doente e fraca, sim.
-- Então ?
-- Podia ter convulsões ... Isso era grave.
-- Como se chama o seu filho, senhor Manuel? -- tornou a voz meiga e quente da mulher, em cujo timbre havia o eterno canto de quem recita lentos e musicaes alexandrinos.
-- João. Ha de chamar-se João. Arrastaram passos no terreiro.
A sineta badalou dentro, na gare. Á pressa os dois amigos abraçaram-se.
-- Até á volta.
-- Boa viagem.
Debaixo do chalé o braço da rapariga surgiu, claro na manga do chambre branco, como um pescoço de cysne d'entre o agasalho das azas. Manoel apertou a mão quente da tricana, de olhos resplandecentes. Mais uma vez o amigo gritou : -- boa viagem ! -- e já dentro, Manoel voltou-se ainda, a vel-os partir pela escuridão, de vagar, chegados um ao outro, em caminho da ponte.
Na gare o comboio estacava n'uma linha negra e recta ao longo do caes.
Como fechassem já as portinholas Manoel subiu para uma carruagem vasia, aninhou-se a um canto, accendeu um cigarro, pensando no amoroso par que ia em caminho de Coimbra, dizendo coisas ternas, simples como beijos. Lembrava-lhe tanto a sua vida, esse tranquillo e romanesco amor do companheiro, que todo o seu coração os seguia, no rumo de casa, penetrando na cidade adormecida, pelas ruas ermas áquella hora adeantada da noite.
Desde o começo acompanhara o amigo na aventura d'esse amor de estudante, nascido pelo S. João, no anno atrazado, a ouviFa cantar nas fogueiras. Por essa noite de verão recamada de astros, a falia portugueza extasiara-os, com a sua melopeia de órgão, cantada por essa voz de ternura em que o sentimento ingenito da raça desabrochara completo e perfeito.
O Queiroz deixara-se emfim vencer, animado pelo exemplo de Manoel, e acabara por prendel-o de tal maneira aquelle amor, que toda a sua existência se modificou até ás raízes e a muliíer o dominou logo ao primeiro beijo.
Quantas vezes Manoel lhe tinha contado o ineffavel encanto da sua primeira conquista: -- a costureirita encontrada por uma tarde á esquina do Rocio ! Pouco a pouco fòra-o seduzindo com o vivo exemplo da sua ventura, exaltando a profundidade d'esses corações humildes que se dão n'um só abraço para sempre.
E n'essa vehemente obra de sedução Manoel puzera toda a verdade. Com que sede de ternura tinha amado essa doce creaturinha, na gratidão de possuir pela primeira vez uma creatura, carne e alma, pagando-lhe o orgulho de a saber completamente sua, vivendo da sua vida, vendo pelos seus olhos, desejando com a sua vontade, abandonando-se toda, inteiramente !
Só a esse tempo conhecera o encanto de um primeiro amor quasi nupcial e quasi puro, pago do seu plebeismo pela profundidade da sua paixão e pelo repouso infinito da sua alma.
Assim, os amores dos dois tinham crescido a par, como duas roseiras em volta de uma estaca; amores collaços que um mesmo romantismo amamentou.
Quando Anna viera a Coimbra passar dois dias, festejara-se no Choupal, com guitarras, o encontro das amantes. O Queiroz tinha mesmo improvisado duas quadras e de então para cá, animado, fazia versos. Manoel ia dar com elle ás tardes, improvisando, com a tricana sentada nos joelhos. Sobre esse amor exageradamente romântico, com todas as aggravantes de uma sinceridade ingenua, que o levava a comprar nas livrarias, ás escondidas, o Noivado do Sepulchro e as Rosas Murchas. Queiroz parecia o mesmo, desdenhoso e rude, temido de pulso, possuído de um desamor a fidalguias que lhe dava brado entre republicanos. Mesmo a principio antipathisara com elle, vendo-o áspero e bronco, irritante e vaidoso, no seu período de capas á hespanhola e paixões de viella, aureolado como um cavalleiro andante por uma scena grave, com navalhas, na Baixa. Só mais tarde, approximados á entrada de uma casa de penhores, Manoel poude vêr claro n'essa alma simples e quanta fraquesa de coração escondia a fortaleza d'aquelies pulsos de labrego, de que o Queiroz dizia, faustosamente, que um murro ourava um touro.
Incapaz de se acclimatar na estúrdia de Coimbra, tristonho e timido, essa amisade inesperada crescera rápida dentro do vazio da sua vida e uma ascendente irmandade de alTectos acabara de amarrar os dois, intimamente.
Mais tarde, em Setembro, quando Anna tivera o filho, só o Queiroz lhe fora dar o abraço de coragem.
Balouçado pelo comboio, de olhos postos no poço de treva que a janella abria sobi-e a noite, toda a historia de amor passou, como um pequenino romance de ternura, começado nas ferias grandes, havia já mais de um anno, desde a primeira vez que faltara á costureira, á esquina do Kocio, n'essa longínqua noite de verão; tão morna e calma que parecia ainda sentir a suavidade d'ella.
Tinham acceso os candieiros. Apenas um resto de crepúsculo clareava mansamente a noite tépida. Carros e pregões enchiam de rumor a grande praça onde as fontes cantavam monotonamente nos grandes jorros d'agoa. Hora de transição, quando já desce a noite, a multidão acotovela-se nos passeios, arrastando lenta, na fadiga de um dia de trabalho, entre as chapas de luz das montras, que cortam as paredes de lençóes luminosos, e a linha dos grandes candieiros de ferro, vigilantes e accesos. Até á fachada grega do theatro, severa e branca ao crepúsculo, com a sua columnada jónica ao centro, onde o relógio põe uma nódoa espherica de luz, a praça estende-se mais longa, n'um rumorejo de folhagens e ruido de vozes, com a cintura dos trens a toda a volta, o lento rodar dos americanos, todos os ruidos da cidade parecendo esvasiar no grande rectângulo da praça, a cujo centro a linha branca da columna corynthia ergue para os céus, de onde desce a penumbra, a suggestiva saudade de uma civilisação lapidar que já morreu.
N'esses princípios de noite, pelo verão, o sangue girava-lhe mais quente pelas veias, atordoando-o, reformando-lhe de audácia a timidez, no roçar pelas mulheres, baralhado na multidão que vae para o theatro, n'essa ardente suggestão de amor que a noite traz. Fora por um fim de tarde assim que dera em seguir o vulto apressado da costureira, a futura mãe dolorosa do seu primeiro filho; e lembrava-se da timidez com que se approximara d'ella, forcejando por sorrir, dando-lhe as bôas-noites, como ás outras, sem lhe comprehender a virtude assustadiça, sem respeitar o seu sagrado pudor de rapariga honesta; e da sua vergonha ao ouvir a vozita tremula e humilde em que ella lhe pediu para a não seguir. Depois, todas as noites, seduzido de repente pela aventura, as horas levadas a esperal-a á esquina do Chiado, estremecendo ao vel-a aproximar-se, apressada, fugida aos apertos, desviada dos homens, com uma mantilha pela cabeça, o corpo justo num casaquinho pobre de fazenda azul com botões de madrepérola. Mas já não lhe fallava, timido e respeitoso, mostrando-se apenas para que ella o soubesse alli á sua espera, contente de a olhar e ir-se embora.
Uma noite em que a esperava, no habito da aventura platónica, tão enamorado já da sua carita pallida e dos seus grandes olhos húmidos, justamente ao virar do Chiado para o Rocio, um homem cortou o passo á costureira, acotovelou-a brutalmente, como elle também fizera da primeira vez em que a vira.
Era um sujeito gordo, pachorrento no andar, papudo de queixo, com uma nuca onde o cabello começava a embranquecer.
A rapariga apenas estremecera, mais pallida sob a affronta, apressando o passo deante da perseguição com que a ameaçava o sujeito gordo. Manoel viu-a passar com os olhos esgaseados de medo, muito cosida á parede, perseguida de perto pelo homem ; e antes que tivesse passado o Arco do Bandeira no seu passinho de fuga, Manoel arrojava-se, indignado, decidido a defendera das propostas brutaes da creatura, possuído de um ciumento furor que lhe atirou n'um instante á face com uma onda de sangue.
Mas logo ás primeiras palavras, atabalhoadas, sem nexo, o homem endireitava-se sob a provocação inesperada.
E como Manoel persistisse, a face inflammada, tratando-o de «cavalheiro», o sujeito encrespou-se, lançou com uma voz áspera a pergunta decisiva:
-- Com que direito?
-- É minha irmã ...
Então o homem pedira desculpa, tirando o chapéo, sumindo-se na sombra de um portal, ás arrecuas.
Desde essa tarde começaram a fallar; de coisas vagas nos primeiros tempos, -- os palhaços do circo, o trabalho do atelier, -- como dois irmãos que de ha muito se não vêem. Manoel achegava-se á sua simplicidade, acompanhando-lhe as admirações, na participação dos seus gostos de pobre e das suas fantasias de enclausurada.
O seu grande sonho, o maior de todos, era ir a S. Carlos, para as torrinhas, ouvir cantar uma opera, presencear os reis no camarote, fartar os olhos humildes no brilho das jóias, inundar os ouvidos de submissa com todas as harmonias da orchestra. Ás vezes, de inverno, sahia com uma companheira, corria ao largo de S. Carlos, fascinada, vêr chegar os trens e descer as fidalgas embrulhadas em pelles e veludos. Quando lhe passava pelas mãos um vestido de baile, na modista, distrahia-se em sonhos infinitos, parando de coser, a imaginar o corpo de mulher que o havia de pôr. E eram assim assomos de fantasia n'aquella almasiía de pobre.
Só mais tarde ella lhe contara toda a vida de miséria e desconforto, orphã de pae e mãe logo aos dez annos, aprendiz n'ama costureira da Rua da Prata, recolhida por uma tia velha e ruim que a maltratava. D'esse tempo de sujeição ficara-lhe uma saudosa melancholia, tendo visto morrer toda a familia quando a tia morreu de um aneurisma, por uma manhã de inverno. Vivia agora n'um quinto andar da rua dos Fanqueiros, onde tinha alugado um quarto sem janella. E o seu maior pesar era aquelle: não ter sequer uma janella sua. Trabalhava muito. De inverno fazia serão, levando noites inteiras debruçada sobre a maquina de costura, adormecendo ás vezes com a face cabida em cima de um corpete de baile ou de uma saia de setim, por uma sede honesta de independência, nascida do fundo da sua miséria, crescida na continuidade do seu soffrimento.
Insensivelmente, Manoel ia-se entregando, familiarisado com a condição triste da plebeia, n'uma affectividade cada vez mais intensa pela doce e submissa creatura. Acontecia-lhe tremer olhando o lento arfar dos pequeninos seios de Anna, juntos sob a fazenda do vestido como duas fructas nascidas da mesma haste. Ás vezes, vendo-lhe os olhos humedecer-se quando guardava por mais tempo a mão d'ella entre as suas, punha-se a duvidar, cuidando perceber que todo o seu corpo virgem estremecia, n'um alvoroço escondido, como já amestrado no prazer ; e de uma noite em que a acompanhara até casa, sem poder mais, envolvera-a em um longo abraço de posse, pisando-lhe os seios contra o peito, empurrando-a para o escuro. Abandonada por um instante, na surpresa d'aquella violência, Anna resistira, n'uma revolta de virgem que se defende e elle ia a retirar-se, humilhado e confuso, quando eila, n'uma voz estremecida de lagrimas, lhe pediu para ficar. Escondida na sombra, a face alagada de pranto, contara-lhe tudo, por uma necessidade imperiosa de desabafo; no remorso de o ter enganado, sabendo bem ser todo o seu amor que sacrificava n'essa confidencia da sua pequenina alma intrépida de rapariga honesta.
A meio de um abandono gélido de sosinha, presa pela esperança de um casamento que de novo lhe trouxesse um lar e uma familia, deixara-se seduzir por um empregado dos caminhos de ferro que lhe promettera casamento.
Eram d'esse tempo, na vergonha de se sentir perdida e abandonada, os mais dolorosos dias da sua vida, tentando mesmo suicidar-se com phosphoros, salva a tempo, levada ao hospital, obrigada a confessar a razão do seu crime; e a sua orgulhosa recusa de casar com o homem que abusara da sua mocidade, quando na policia lhe promettiam obrigal-o por lei a reparar a culpa.
Por muito tempo a confissão d'aquella falta esfriou ò amor de Manoel. Via constantemente o outro, que a tivera virgem e perfeita, colhendo os seus primeiros beijos de amorosa e os seus primeiros delíquios de rapariga púbere. Mas pouco a pouco a ternura da linda creatura foi fechando essa fonte de orgulhosa e ciumenta frieza e uma compaixão suave renasceu ao fundo do seu coração fraco de amoroso.
Só muito mais tarde a tinha tido, banhada em lagrimas de felicidade.
Sempre aquella paixão soífrera o freio de uma desigualdade, que nunca deixara conjugar em absoluto as suas duas almas ávidas n'um grande amor vivo e sem macula, mas nunca também, entre os sonhos, algum lhe deixou entrever que na egualdade sequer de um casamento a vida mergulhasse em horas tão infinitamente doces como aquellas.
A vida foi boa e fácil até ao dia em que Anna sentiu que de tantos beijos algum descera emfim a fecundar-lhe o corposinho airoso.
O tempo foi deformando barbaramente o idolo: a mãe ia rompendo a crysalida de amante.
Já tarde, Manoel reparou no perigo d'essa situação que o tornava pae aos vinte e um annos, n'ura começo de vida por esboçar sequer, e esse amor todo de sentimento passou a ser um amor todo de pensamento. Sentia-se culpado; accusava-se de haver despedaçado uma vida. Talvez ella tivesse casado se a não perseguisse com o seu desejo e desviasse com o seu amor para aquella loucura sem remédio. Punha-se ás vezes a pensar que preciosa esposa ella daria, assim honesta, boa, trabalhadora e passiva; e sentia-se mais culpado do que o outro, tendo-lhe vencido a virtude resistente de experimentada.
Anna também soífria, percebendo que o filho, deformando-a, lhe roubava o terno amor de Manoel. Foram tristes para ella os últimos cinco mezes, campo pacifico da rivalidade eutre o filho que creava nas entranlins e expulsava o pae, fazendo~se um logar no seu coração ; arrecadando, ainda invisível, a ração de amor a que tinha direito.
Por seu lado Manoel inquietava-se, n'um desassocego crescente, medindo de longe a catastrophe, toda a sua vida por um momento alvorotada, as ambições recuadas para mais tarde. Amigos aconselha vam-n'o a esquecer a mulher e a abandonar o filho. Um dos mais chegados, que era sócio da Mocidade Catholica, de repellão, concertando a gravata, decidira á sabida da missa do Loreto que tudo aquillo era uma porcaria.
N'um instante viu-se só, o coração repellindo bruscamente os falsos affectos de outros tempos, n'uma repulsa que vinha de todos os cantos do seu corpo pelos amigos da véspera, egoístas e severos, contaminados desde o berço pelo preconceito feroz e deshumano. D'esse despreso arrebatado, d'essa indignação maculada de nojo, reflorescera mais puro o amor compassivo e terno pela amante perdida. Alugara-lhe um terceiro andar com janellas para o rio, pagando-lhe prodigamente o seu capricho modesto, saciando o seu humilde olhar de soíTredora com os largos horisontes do rio immenso e profundo.
Chegara depois o dia. Dia triste de chuva, escuro e turvo, onde apenas abriu o azul dos pequeninos olhos da creança. Corria-lhe um estremecimento á flor do rosto lembrando o terrível momento de anciedade, um ultimo grito dilacerante e ensopado de dôr -- e quando nos seus ouvidos rolava ainda a vibração aguda d'esse berro de agonia, o vagir brando do filho que nascera. Esse primeiro vagido de um sêr feito com a sua carne e com o seu sangue tinlia repousado na sua alma aberta como n'um echo eterno; ouvia-o sempre que o chamava do fundo da sua lembrança.
N'esse dia, ao entrar em casa para jantar, ficara um longo momento olhando a mãe, á espera de perceber, sob a sua fronte serena, falia r a voz do sangue, a annuDciar-lhe o neto que a fazia avó. Mas nenhuma ruga veio sulcar a serena fronte. A voz calma de todos os dias perguntou-lhe, no abandono da mão que elle beijava :
-- Que fizeste até tão tarde ?
Agora ia tornar a vêr tudo o que amava ; e a lembrança de que na bocca do pequenito podia haver já duas pequeninas pérolas, fazia-o sorrir enternecidamente.
Quando o comboio rolou na estação, ainda o comboio do Porto não chegara, retardado na Pampilhosa por um desmancho na machina.
Manoel desceu, e em frente de Coimbra, que era ao longe um rebanho de luzes tresmalhado n'um outeiro, de novo uma leve tristeza o invadiu, pensando no amigo, mais feliz, sem um filho que lhe desviasse o amor da amante, absorvendo-o.
Cortes de rio lampejavam entre troncos nus de choupos e só um grande pinheiro manso rumorejava a meio do charco espesso de treva que ensopava as terras.
Teve de esperar quasi um quarto de hora, o comboio que devia chegar ás onze e trde Sousellas ás onze e trinta. Sosinho na gare quasi deserta, levou o tempo a andar entre a cantina e os armazéns de descarga, até que um toque de busina rasgou asperamente o silencio da noite frigidissima. Os pharoes do comboio surgiram ao longe, raspando a terra á distancia como duas brazas desmaiadas, crescendo a cada segundo de entre um rumor de monstro esbaforido que chega de galope. Em um instante toda a machina appareceu de frente, de pescoço alto vomitando faúlhas, golfando vapor por entre as rodas, e o comboio entrou nas agulhas com um grito oíTegante de cansaço, rolou n'um fracaço por sobre os desvios gyratorios, que resoaram, e parou ao longo do cães com um ultimo embate de ferros entrechocados.
No wagon para onde subiu, apenas um velho, de óculos pretos, um lenço de malha embrulhado no pescoço, dormitava a um canto, os pês cobertos com uma manta de xadrez. Manoel arranjou-se na outra extremidade, na sombra da carruagem obscurecida pelos veladores verdes passados sobre as lâmpadas do tecto, e a viagem recomeçou, monótona, pela noite escura, na fúria de ganhar os minutos perdidos, parando á pressa nas estações, passando Pombal e Yermoil n'uma vertigem, com velocidades de cincoenta kilometros por hora.
Era-lhe impossível dormir, distrahido a cada instante, o espirito accordado, n'uma continua alerta de anciedade. Acontecia-lhe sempre assim á ida para ferias, contando as horas que o afastavam do longo abraço da mãe, do conforto da casa, do grande amor sentimental de Anna.
A vida de Coimbra, desnorteada e bohemia, sem aconchego e sem commodidades, no desleixo da republica barulhenta e desordeira, enfastiava-o. Havia justamente no hotel, -- o celebre hotel da D. Joanna, -- um estudante de theologia, trasmontano de mãos pelludas, que arrastava os dias de chinellos de trança, arrotando o caldo verde e as refutações Ha3kel, fumando depois da sopa, comendo o arroz com a faca e atirando ao soalho as espinhas do peixe, por quem sentia uma repugnância instinctiva e crescente. No demais era uma mocidade tenaz nas tradições da estúrdia coimbrã, poetas e maldizentes, heroes de comícios, fallando em atirar os Braganças ao Tejo emquanto lambiam a colher do arroz doce. Toda essa vida de acaso deixava-o indifferente, incapaz de se interessar, n'um desapego enorme e invencível.
Desde pequeno fora sempre ?ssim, meditativo e tristonho, gostando de estofos, refugiando-se na sala de visitas, com dias inteiros a arrastar pelos sofás, roçando a face pelo damasco das poltronas, sofifrendo de um vago delírio de grandezas, que o fazia chorar com um fato sujo, passando horas em frente a um espelho quando lhe vestiam uma roupa nova. As mulheres gostavam d'elle em pequenito, no prazer de o sentir alegre sentado no regaço, estremecendo ao menor rngir de seda e quando lhe passavam pelos cabellos loiros as macias mãos brancas coalhadas de anneis.
Já homem, o mesmo amor ao luxo continuava, com contemplações em frente ás vitrines dos ourives e das. casas de modas, fascinado pela seda e pela jóia.
Como era delicioso aquelle primeiro almoço na sala de jantar, de janellas dando para o Tejo, com os seus severos reposteiros de veludo verde, os buffetes resplandecendo de pratas e a mesa de toalha muito branca, onde a louça velha da índia scintillava ! Depois do pae se levantar, partir para o Banco, elle costumava ficar ainda á mesa, tomando lentamente o chá, vendo passar nas agoas crespas do rio os vapores de Cacilhas e as catraias. Depois, a mãe vinha sentar-se a seu lado, e ficavam os dois a fallar d'essa rude e glacial vida de Coimbra, no hotel da D. Joanna.
Ás três horas, sem ter dormido um instante, o comboio parou n'uma grande estação illuminada. Ao fundo da carruagem o velho despertou, erguendo a cabeça. Uma voz dolente de estremenho gritou entre o rumor das portinholas abertas e o arrastar dos passos no asphalto :
-- Entroncamento! demora vinte minutos !
Então Manoel desceu, a desentorpecer as pernas. Na sombra distinguiam-se massas escuras de wagons esperando a sua vez de viagem ; e a norte, o comboio da Beira-Baixa riscava um grande traço negro na escuridão. Dois homens curvados empurravam de vagar nos trilhos ura grande fourgon de portas abertas. Por um instante a estação viveu com a vida ephemera das passagens de comboios. A grande machina resfolegava, entornando baforadas de fumo n'uma lenta nuvem negra que subia. Do tender vinha o ruido de um martello estilhaçando carvão para a fome do monstro. Ainda a norte, á frente dos armazéns de carga, pedaços de comboios dormiam nos desvios, apagados e inermes. O signal do guarda-freio abria na sombra uma branca pupilla vigilante; e suspensos nas gruas discos verdes estrellavam a noite. Vultos embrulhados em capotes, de orelhas sumidas na carapuça, vagneavam somnambulos na plataforma cada vez mais deserta. Ao longe uma locomotiva parada respirava ruidosamente com o offego de um animal em prostração.
Na cantina, a cuja porta tinha parado agora, um cavador emborcava uma malga de café. Ao fundo, uma turma esfarrapada de emigrantes esperava que a empurrassem para o comboio. Uma mulher magra, com a cabeça amarrada no lenço vermelho de algodão, remoia um pedaço de broa. O resto eram homens, esmagados n'um banco, as pernas pendentes, o olhar vesgo de somno e de tristeza. Esteve um momento a olhal-os, até que um empregado os expulsou d'alli, aos berros. Houve na turba um ruido de tamancos, o arrastar dos soccos; um dos da malta pergunta se é aquelle o comboio para Lisboa.
Manoel estacara, encostado á parede, a vel-os passar, vagarosos como um bando de animaes captivos, carregando alforges atulhados de farrapos, devendo o bando ter caminhado toda a noite para caçar de manhã o comboio que os ia vomitar a todos na proa de um navio.
De longe um grito rouco partiu da locomotiva quieta. Durante um momento os pharoes cessaram de brilhar, encobertos de fumo ; e a machina approximouse aos guinchos, derramando sobre os trilhos uma branca nuvem de vapor, como a espuma de um açude. O barulho cavo de um desvio gyratorio cortou o silencio da noite em três grandes palpitações ruidosas e de novo um silencio pesou na noite fria.
Faltavam dez minutos para a partida. Em frente aos wagons de carga homens despejavam fardos na bocca rasgada de um fourgon e da carruagem correio vinha um bater constante de carimbo, n'uma pancada monótona que nunca mais findava.
Manoel recolheu-se, arripiado de frio; e quando o comboio recomeçou a andar fechou os olhos, aconchegado ao seu canto, na sombra que as duas luzes mortiças das lâmpadas mal desfaziam em dois círculos trémulos no tapete. A agoa dos esquentadores esfriara. Sentia os pés gelados e tinha as mãos adormecidas dentro das luvas. Grescera-lhe um peso na cabeça, uma grande necessidade de dormir. Ainda por um quarto de hora esteve á escuta, reparando no ramôr surdo das rodas, áspero nas subidas, e na cadencia ruidosa da marcha. Por vezes a respiração da locomotiva era mais alta ; as vidraças tremiam sob os stores ; um estremecimento de pavor parecia correr por todo o immenso corpo do comboio até ao ultimo wagon, para socegar de novo lentamente. Uma meia inconsciência penetrava-o, embalado na monotonia d'aquelle rumor continuo; e assim quieto ia recordando o filho como da ultima vez que o olhara, pequenino, aconchegado ao peito branco da mãe ainda doente. Uma das mãosinhas, minúscula e c6r de rosa, manchava apenas a alvura da camisa de Anna ; e a boquita ávida sugava o peito morno, veiado de azul como um mármore suave. A mãe adormecera, prostrada, depois de uma noite em febre. A luz direita da vela punha uma nódoa quente de ouro na alvura do seu peito descoberto e havia no oval d'aquelle rosto, de pálpebras descidas e pestanas compridas como antenas de insecto, um ligeiro escavado de soffrimento.
Mas a bocca da creanca, fatigada, deixara de sugar o peito arfante; a mãosita encolheu-se e o seio livre, á chamma doirada da vela, na brancura da carne e da roupa, abriu um pequeno circulo côr de rosa onde uma gotía de leite ti^emeu, escorregou e foi perderse na renda da camisa ...
Á partida de Santarém, quando o comboio estremeceu ao primeiro arranco da locomotiva, Manoel acordou sobresaltado no espanto de haver adormecido. Ao fundo da carruagem o mesmo homem velho dormitava, a mão enrugada pendente, o cache-nez preto enrolado no pescoço. De encontro ás vidraças já os transparentes verdes clareavam á luz nevoenta da manhã e as luzes de azeite, nos globos de vidro, palpitavam quasi mortas. O mesmo ruido monótono de ferragens acompanhava a correria do comboio, com o contínuo raspar das rodas, entre a trepidação da machina espavorida, varando os nevoeiros baços da manhã.
Dormira uma hora, quando muito, e na surpreza d'aquelle somno breve, olhava as terras fumegantes onde as oliveiras derramavam immoveis sombras tristes.
Só duas horas mais e o comboio rolaria na estação do Rocio, sob a marquise enfumaçada. Nunca, -- ia em três aunos que estava em Coimbra, -- ferias tinham levado tanto tempo a chegar. Haviam sido dois mezes e meio de anciedade, com setenta dias lentos á espera de um só dia -- o dia da partida.
Já as seis horas de viagem llie pareciam eternas, na impressão de que o comboio mal andava, galgando de vagar as distancias enormes, atravez a planície fumegante e os olivaes cinzentos. Nos longes manadas de pinheiros mansos alastravam rasgando a neblina e estendiam-se campos embranquecidos de geada ao cimo dos barrancos defendidos por piteiras hostis, de um verde bronze, com apparencias de plantas guerreiras e artificiaes. O dia alvo, vaporoso e frio, ia traçando de vagar os contornos das coisas.
Eram agora dois moinhos que passavam ao longe n'uma altura, de azas partidas, como pássaros mortos. Pinhaes rompiam do solo em grandes rebanhos que se juntavam e misturavam nas dunas saibrentas e enrugadas.
Mas logo adeante os terrenos chãos recomeçavam, esperando o rio, fazendo-se mais baixos e passivos para lhe arranjar um leito; e as terras são feias e tristonhas, consumidas na sua paixão eterna pelo rio que lhes foge e as não quer banhar com a sua espuma.
O comboio cortou pelas dunas alagadas, ribatejo acima. A paysagem desenvolve-se, húmida, -- com seus talhões de lodo entre os canaes barrentos, cheios com a maré, -- algida e nua, devastada em salinas, tiritante sob as compressas d'agoa, e ao longe, na penumbra da madrugada fria, a tremura do rio barra o liorisonte, escorrendo debaixo de um céo ensopado de névoa, branco e leitoso como uma immensa chapa de vidro fosco.
Ás cinco e meia, com deseseis minutos de atraso, o comboio parou em Sacavém, n'um lamentoso berro que repercutiu no valle nevoento até ao rio.
Manoel correu a vidraça, debruçado, na contemplação das terras conhecidas.
Nas agoas sujas catraias balouçavam; e até ao longe, por detraz dos telhados sombrios, como um cannavial, o molhe de mastros surgia na bruma.
A chaminé da fabrica de moagem fumegava no céo cinzento e o rio espraiava-se á esquerda, como um lago quieto. De novo em marcha, o comboio galgava distancias, na sua trepidação de rodas e choque de engates e correntes, com paragens breves em Braço de Prata e Olivaes, despresando o resto, no seu desdém soberbo de expresso que cumpre um dever chegando á hora da tabeliã.
Manoel, de pé, ia seguindo o crescer da casaria, as edificações transbordantes da cintura ; e tudo lhe revivia saudades do seu tempo de idylio, passando as hortas desertas e abandonadas onde ia d'antes jantar em companhia d'ella, nos mezes abrazados de verão. Tremulas linhas de luzes traçavam ruas. O montão de paredes avolumava-se, atulhando de sombras espessas os terrenos, passando como um esboço por entre a névoa branca ; e lá para baixo, descendo até ao rio, desenhavam-se os bairros operários de Xabregas. Mesmo por um instante cuidou vêr a Calçada da Madre de Deus, n'um grande canal barrado de nevoeiro. Voltaram depois as terras despovoadas e tristes, de olival e pasto; e logo outra vez o rio e a cidade, as velas e as casarias, ruas ermas e brancas, salpicadas de luzes, abrindo pequenos nimbos de oiro no nevoeiro.
Depois, as capulas azues da praça de touros surgiram ao longe e todo o edifício, n'uma mancha vermelha, enorme, entre os troncos das arvores despidas, passou de relance, arrastando a visão alegre das festas, nos domingos de sol e de poeira. Ás barreiras os guardas agulhas carregavam a alavanca, erguendo a bandeira ; as pancadas sonoras das campainhas de alarme respondiam-se, vigiando a marcha do comboio, desviando-lhe os perigos, pondo alerta todas as estações, abrindo caminho ao monstro esbaforido e galopante...
E emfim Campolide, o aqueducto rendilhando de negro a neblina, o deposito circular das machinas á direita, de onde sania uma pequena locomotiva de manobras em silvos ríspidos ; o collegio e o hospício das irmãs dos pobres á esquerda, n'uraa altura. Por uma azinhaga um grupo de trabalhadores passou somnolento, um instante parado a olhar o comboio.
Dado o signal para a partida, quando a carruagem se embrenhou na escuridão do túnel, Manoel, de pé em frente á portinhola, sentia uma grande anciedade, espiando a treva. O comboio corria com rumores resoantes de bigorna, varando o negrume. Quando o túnel deixou de abafar o grunhido áspero da machina, Manoel avançou com a face encostada á vidraça, olhando a parede gottejante onde se quebravam ondas brancas de fumo; e logo a carruagem reentrou na claridade nevoenta do dia.
Sob a nave illuminada uma confusa vozeria vinha desde o fundo, das portas abertas ; e o comboio parou, com um estremecimento prolongado que fez resoar os pratos das defezas.
Elle então, de pè, tendo levantado a gola do casaco, chegou a maleta para a porta, á espera de um carregador que lh'a levasse, debruçado na janella, olhando a grande estação ruidosa onde o comboio esvaseava os passageiros.
Emquanto remexia nos bolsos, á procura do bilhete e da guia, voltava-se, despedindo-se do companheiro de viagem que dobrava tranquillamente a manta de xadrez. Era para tudo um grande olhar de amigo, ao tornar a vêr a enorme galeria enfumaçada com o seu janellão ogival abrindo uma grande mancha de claridade na parede do fundo, os muros recobertos de cartazes, as lâmpadas eléctricas descendo da trama dos tectos os seus brancos clarões, illuminando as três naves de luar até ao fundo, ás duas boccas negras dos túneis, onde se erguiam os discos vermelho e branco dos signaes.
Na grande linha do comboio portas abriam-se ainda, vomitando gente. Da carruagem-correio dois homens despejavam saccos de lona com a correspondência do Norte e os três fourgons de bagagem, de portas corridas, eram assaltados, n'um ruido de malas cahindo nas carroças, volumes enormes que tremiam na queda; o comboio vasculliado e saqueado n'um instante, liberto da sua carga. A machina socegava, de êmbolos parados como braços estirados em descanço, e toda ella offegava de fadiga, vomitando um rolo de fumo negro, n'um hálito espesso que ia quebrar-se nas vidraças da galeria, boiando, rasgando-se nas volutas e nos arcos.
Durante um instante Manoel esteve parado, vendo descer do sleeping duas senhoras embrulhadas em capas de viagem com rebuços de pelles. Emquanto um homem de ulster passava a um moço de hotel uma infinidade de malas e volumes, a mais nova das mulheres, olhando em volta, batia a plataforma com o guarda-chuva de castão de oiro.
Manoel voltara-se, calçando as luvas, deixando-se banhar suavemente de civilisação, e seguiu na esteira das mulheres até ao salão de entrada, assaltado pelos agentes de hotel, recusando o Pelicano e as Duas Nações, emquanto o guarda-fiscal revolvia a roupa branca da maleta, vasculejando os frascos de toilette.
Desde a repartição acanhada e suja do correio até aos cartazes de espectáculo, sujando o grande lance da parede em face da escadaria, tudo permanecia como d'antes, na vastidão do átrio onde o comboio escuava os passageiros.
Manoel entregou a guia para o despacho da mala ao carregador e sahiu para o terraço, â espera. Apenas as grades de ferro das rampas e a balaustrada do pateo, com as suas altas columnas, marcavam linhas nos primeiros planos do nevoeiro denso. Nas escadas do Duque a casaria alastrava manchas ascendentes. Os candieiros da calçada do Carmo abriam na bruma pupillas scintiliantes a que os nimbos prestavam orbitas indecisas. O morro do castello, ao longe, subia e espraiava-se, incrustado de casas, como um immenso casco de navio incrustado de moluscos, e era todo um trecho da cidade que se despenhava além, transpirando luzes vacillantes, estravasando rumores. O lago de bruma submergia o vale acompanhando os declives. Sob o vapor branco sentia-se palpitar a grande cidade antiga.
Manoel deixava errar a vista pela immensa névoa, reconstruindo a topographia da cidade, desenterrando do sudário os membros disformes de Lisboa, esquecido na sua contemplação, na ávida sede de a tornar a ver, erguendo a velha cabeça coroada de ameias, acordando do somno, despertando á luz de mais um dia. Atraz do castello a cerração menos densa clareava ao incêndio de um sol ainda distante e em frente, ao cimo da correntesa de bruma que descia pela calçada do Carmo n'uma enxurrada fluida, as ogivas desmanteladas do mosteiro de Nun'Alvares debruçavamse em abraços, como as arcas fossilisadas de um mastodonte.
Tinha ficado immovel, olhando o rumorejante lago de neblina, apoiado á varanda de ferro. O carro do correio descia as três rampas, passava a primeira plataforma n'um estrondo; e durante momentos aquelle fragor encheu os espaços ermos, dominando o sussurro da cidade estremunhada.
-- Está a mallinha no trem, meu senhor...
Então Manoel desceu para tomar o carro que esperava em baixo. Para encurtar caminho atravessou pela balbúrdia dos armazéns de bagagem e já fora, no passeio, parou ainda um instante, a olhar.
Em frente erguia-se o theatro de D. Maria com a sua varanda sobre arcadas. Á esquerda, os cafés alinhavam, silenciosos e fechados ; apenas ao fundo, n'um desvão de sombra, uma lanterna vermelha sangrava como uma grande chaga solitária. A espaços um vulto manchava a nevoaça, deslisando apressado, quasi impalpável, e era triste aquelle despertar silencioso da cidade para o trabalho, na manhã glacial de Dezembro. A estação recahira em silencio, depois da febre passageira que a animava pela chegada matinal dos comboios correios. Uma carroça de lixo passou aos solavancos, vinda da Avenida. No Carmo soavam lentas as seis horas; apagavam-se os candieiros; luzes submergiam no vapor denso e aquoso que entupia o largo. O céo abria uma pálpebra de cego, embaciada e vesga; e agora, subitamente, os rumores propagavam-se.
Manoel chamou o carro e a tipóia abalou, passando o Rocio, embrulhado em névoas^ com as fontes emmudecidas; entrou na rua do Ouro, deserta; e já ao passar a rua do Arsenal a chuva principiou, miúda e compacta, alagando os passeios, penetrando os espessos véos de nevoeiro. No rio apenas punhados de mastros rompiam rente á margem, todo o Tejo desapparecendo sob a cerração profunda e branca. No Aterro o movimento era maior ; operários passavam em passos vagarosos, caminhando a dormir sob o aguaceiro, as mãos batendo as penias. Da estação do caes de Sodré um tramway de Cascaes partia, rumorejaale, pela chuva.
Á medida que o carro se aproximava, Manoel 5entia-se mais impaciente, na anciedade quasi dolorosa de levantar o filho nos braços e beijar as brancas mãos de Anna.
Ambos viviam em Santos, n'um terceiro andar dando sobre o Tejo, para onde Anna mudara desde que o seu corposinho elegante e perfeito começara a deformar-se com a gravidez. Alli tivera a creança, no fim de Setembro, por uma triste tarde de chuva, e alli ficara, n'um encantamento pelos vastos horisontes desassombrados, com o vasto rio azul correndo em baixo, resignada da perca do amante, agradecida por esse iar que elle lhe dera, aquelle amor que elle tinha trazido ao frio isolamento da sua vida solitária, semeiando ^nfcre beijos no seu corpo branco a consolação d'aquelle amor materno.
Agora, indo tornar a vePa, depois de dois mezes de ausência, um grande amor sensual voltava do mais profundo do seu seio : as saudades de um tempo feliz supplicando os mesmos doces beijos, lembrando-lhe as suaves caricias das alongadas mãos alvas e macias, de phalanges côr de rosa. E assim ia reconstruindo a antiga discórdia do seu coração e da sua consciência, na asperesa d'aquelle sacrifício de a não ter quando ella se abandonava a cada instante, toda sedenta de amor como outr'ora, purificada ainda pela sua aureola de mãe e pela longa castidade do seu tépido corpo de amorosa...
II
Manoel subiu as escadas devagar, parando ao fim de cada lance, nos patamares escuros. Lembrava-lhe a primeira vez que por alli subira em companhia d'ella, por um claro domingo de Maio, e o longo quarto de hora em que Anna ficara, embevecida e sorridente, debruçada á janella, olhando o vôo lento das velas e o deslisar das gaivotas no azul profundo das agoas. Custara-lhe a acreditar que fossem todas d'ella as três janellas abertas sobre o espaço, dominando o Aterro para a direita até Relem; o immenso coagulo de telhados, que se estendia até á Sé, para a esquerda ; e a planice liquida do rio, vastíssima, alastrando do nascente ao poente, onde toda a vida das agoas convergia, com as procissões das catraias sahindo a barra, á pesca, a chegada dos transatlânticos, o continuo vae-vem dos vapores e navios, soltando aos ventos as cabelleiras negras da fumaça ou distendendo e armando os brancos dorsosdos velames.
Quantas vezes tinham os dois subido, presos n'um longo beijo, aquelles três andares ! Cada degráo, de os vêr tanto passar tinha uma historia, testemunha de entradas a deshoras, de volta de grandes passeios aos arrabaldes, do recolher tardio do theatro, em que as escadas eram subidas n'um instante, na pressa de se verem sós, nos braços um do outro ... Alli esquecera ella por um abraço um grande ramo de papoulas e mais alem vira-a chorar, supplicando-lhe que ficasse, subisse ao menos até ella adormecer, não podendo dormir sem o ter á sua beira... Fora n'aquelles degráos que lhe deixara pouco a pouco a dolorosa certeza e o amargo convencimento do fim dos seus amores. Da ultima vez que a tivera, desagradado já do seu corpo imperfeito, ella viera acompanhal'o até ao ultimo degráo, banhada em lagrimas, embrulhada n'um chalé, a alumiar-lhe o caminho...
A cada andar, em frente ás portas, ruidos transpiravam: o arrastar de uma cadeira, um choro de creança^ vozes, tinir de louças : o madrugar dos pobres para o trabalho, pela manhã gelada de inverno. Apenas da clarabóia a luz suja do dia nevoento descia, illuminando mal a velha escada rangidoura com o seu corrimão vacillante no apoio. Mas em cima, no terceiro andar que ella habitava, dominando os telhados, o ar livre e infinito dos mares e das planícies entrava pelas janellas e todo o dia o sol batia as velhas adufas, traçando esteiras de oiro no soalho.
A chuva murmurava na clarabóia, sobre o vestíbulo lavado, quando já elle subia as ultimas escadas. Deixou-se então estar um momento silencioso e quieto, gosando de a saber alli a dois passos, á sua espera, embalando o berço do seu filho. Ergueu depois o braço, puxou o cordão da campainha. Passos resoarara logo dentro e uma voz branda, amestrada na sujieição e na caricia, perguntou :
-- Quem é?
-- Eu -- o Manoel.
A porta abriu-se e no corredor escuro elle viu-a de pè, em saia branca, despenteada, com um chalé vermelho botado pelas costas.
Ficou um instante callado, olhando-a, na admiração de a encontrar mais mulher, com o vasto e doce olhar tranquillo um pouco pisado pela vigilia.
Ao pegar-lhe nas mãos o chalé descahiu, descobrindo-lhe o pescoço e os hombros até á raiz branca do seio. Era outra mulher que tinha na sua frente, sem o resalto ósseo das clavicnlas, de pescoço lizo e perfeito, o colo redondo como um peito de ave. Brandamente chegou-a a si, n'um lento gesto de posse, beijando-a na testa, e quasi se esquecia do voto severo, deixando-se banhar pelo seu calor, sentindo a morna quentura do seu seio de mãe abrasando-lhe as mãos e os longos cabellos soltos roçar-lhe pelas faces. No estreito abraço em que a tinha encostada á parede, meia despida, um doce desejo de a possuir voltava mais intenso, sentindo-a forte, retemperada no soíTrimento, tendo resurgido mais bella, de uma belleza mais perfeita, da agonia purificadora do parto. Gomo fosse a beijara de novo, ao carvar-lhe a cabeça, viu-a inundada de pranto, os olhos razos d'agoa, as faces banhadas de silenciosas lagrimas.
Levou-a então suspensa até á sala, á procura do filho, lembrado da carta que o dizia doente, ardendo em febre, e já as suas mãos tremulas lhe desmanchavam o abraço, no desvio d'aquelle outro amor que o absorvia.
-- Elle? Onde é que está?
Anna aconchegara o chalé ao colo nú, ruborisada, na vergonha da sua fraqueza e da sua esperança; e como Manoel lhe retomasse as mãos, interrogando-a ainda, ella levou-o até á porta do quarto, limpando um resto de lagrimas.
-- Que teve elle? O que foi?
-- Schiu! Pouco barulho: está a dormir...
A sua mão levantada era quasi transparente a uma restea de sol que transpirava da adufa. Ao entreabrir a porta o seu corpo vergou-se e Manoel, impaciente, mal reparou nos brancos globos dos seus peitos, poisados nos entremeios de renda da camisa.
A chuva continuava, alagando de pranto as vidraças, e uma grande nuvem foi obscurecendo a luminosa mão de Anna ainda suspensa.
-- Está ainda doente? -- E a febre?
-- Não -- já passou. Vem vêr como elle dorme, o rico anjinho!
Na alcova obscura apenas a lamparina, sobre uma cadeira, abria nas taboas do tecto uma circumferencia de luz onde as sombras dos dois se balouçavam.
-- Alli...
Era o seu filho, n'um berço de ferro com cortinados de setineta azul, á beira da cama de Anna.
Ficaram os dois á porta, sem dar um passo, esmagados pela emoção d'aquelle ajuntamento.
Manoel sentia-se envolver outra vez pelos seus braços, tendo-a suspensa de novo ao seu pescoço, banhando-lhe a face de lagrimas, emquanto olhava a cabecinha do filho, pousada na travesseira branca. Aquella mancha côr de rosa na alvura da roupa, nascera dos seus beijos, era a ílôr da arvore das suas veias, o fructo do seu sangue.
Então sentiu-se estremecer e n'uma voz quasi supplicante de quem pede uma graça :
-- Deixa-m'o beijar!
-- Mas não o acordes, não? Tem o somno tão leve!
E limpava as lagrimas com as costas da mão, alquebrada pela felicidade immensa d'aquelle primeiro beijo.
-- Adormeceu ainda ha pouco; vê...
Tinha descoberto a lamparina para que Manoel o visse melhor; e emquanto elle ajoelhava, debruçado sobre a pequenina respiração, branda como um esvoaçar de insecto, a mãe espiava-o com toda a alma nos olhos querendo ler-lhe na face o seu contentamento deante do filho nascido do seu corpo, na vaidade da sua tarefa quasi divina de creadora, semeando a terra de vida, perpetuando a espécie, trazendo o seu tributo de esperança á humanidade de amanhã.
Viera ajoelhar-se também do outro lado do berço, aconchegando a roupa em volta do pescoço da creança. Na obscuridade silenciosa da alcova os dois olharamse, sonhando nos doces beijos que tinham preparado aquelle fructo loiro. Mas Manoel acabou por erguer-se sob o olhar doce e triste com que ella o fitava, convencido da brutal deshumanidade de uma convenção que os separava, prohibindo-lhe aquella família que elle creára e a que o seu coração inteiro pertencia. Tristemente, rodeou a vista pela alcova até á grande ema desfeita, de lençoes atirados, e onde o peso do lindo corpo de Anna deixara ainda um rasto.
Depois, emquanto a mãe, que se levantara também correndo o cortinado, abafando o berço, vestia um corpete e passava uma saia, Manoel reconstruia em pensamento a scena terrível n'aquella cama, agora silenciosa, e onde a vira torcer-se, arquejante, as mãos presas ás grades da cabeceira, pedindo que a matassem, n'uma angustiosa voz em que tremiam todas as libras do seu corpo dilacerado.
E da evocação d'esse lance de tragedia, tão humano e tão simples afinal, a amante reapparecia-lhe aureolada, com um socego de heroina na fronte clara, um ar de apasiguamento em todo o rosto, desde que essa sejreta força de maternidade desabrochara na sua carne, occupando-lhe todos os instinctos, desenvolvendo a concordância physiologica do seu corpo de mulher amorosa e fecunda.
Olhava-a de novo na penumbra, erguendo o braço redondo, apenas escavado na articulação, para enfiar a manga do corpete, com gestos de uma ave ao levantar o vôo. Desapparecera a sua antiga graça feita de maneirismos e de amuos. Havia agora uma seriedade intensa na sua face pallida em que resplandeciam os olhos.
Sequestrada ao sol pela clausura do atelier, a sua pelle conseguira o tom macio de uma rosa branca aberta n'um solitário.
De tanto a olhar, a sua alma honesta e recta padecia, emquanto a vaga consciência de um alto dever a cumprir ia subindo como um lento fumo de sacrifício do seu seio magoado.
Mas Anna acabara de vestir-se e ambos saíram da alcova, sem ruido, para não acordar a creança adormecida.
A sala occupava as três janellas de adufa, com tecto de taboas pintadas de branco. As paredes erana forradas a papel verde, que elle mesmo tinha escolhido quando mobilara a casa. Nas janellas desciam cortinas brancas de fustão; e eram todo o luxo da casa, com a cama e o berço, aquellas cortinas de donzella e o rico papel verde riscado de oiro, que escondia as velhas paredes mal rebocadas. Ao centro da sala havia a mesa pobre, coberta com um panno de crochet, e a um canto, perto da janella do fundo, ficava a machina de costura : uma Singer alugada ao mez. Eia assim de uma serena castidade esse ninho de amante onde tudo respirava a honesta canceira de uma vida.
-- Está tudo em desordem, não é? Fazia tenção de me levantar muito cedo, e ter tudo arranjado ... Afinal é isto que tu vês : parece uma feira da ladra !
A sua bocca abria-se n'um alegre sorriso, mostrando os dentes muito alvos.
Tinha torcido a vaga de cabello, enrolando-o na nuca, á pressa, preso por dois ganchos ; uma mecha cabia ainda sobre o hombro, fugida da fronte, escondendo a orelha onde uma conta de oiro reluzia.
Manoel caminhou até á janella, a abriv as gradesda adufa, deixar entrar a luz do dia fosco, mais á vontade desde que a via satisfeita, com essa honesta alegria de trabalhadora que lhe illuminava o olhar de uma felicidade quieta.
A chuva não cessava, opaca á distancia, n'uma sobreposição de vêos brancos que mais e mais esboçavam as coisas até á mancha.
Da rua subia o rumor dos passos nos iagedos edo Aterro chegava o rodar dos americanos, sob o aguaceiro. Uma grande paz inundava a casa de um repouso infinito, parecendo emanar da clara figura de Anna.
Durante um instante os dois estiveram a olhar-sé e logo ella, sorridente:
-- Vens cheio de pó. Tens a cara toda suja de carvão e estás mais magro.
Aproximava-se, cahindo n'uma cadeira, com as duas mãos no encosto, toda voltada para elle, revolvendo-lhe o rosto com os olhos luminosos.
-- Já não usas o cabello como d'antes !
-- Fica-me assim melhor...
-- Isso ê que não. Gostava mais de te ver com elle d'outro modo. -- E tens o bigode mais crescido. Já deve arranhar a tua barba...
Manoel sorriu vendo-a seria e grave, absorvida na sua contemplação.
-- Estou um homem!
-- Sim, um homem ...
Uma reticencia de tristeza nascia na sua voz caridosa, um pouco tremula.
-- Também tu estás uma senhora, mais mulher, outro ar. Estás até mais bonita ... !
Houve uma rotação de iris dentro das suas orbitas; as pestanas bateram por um segundo como uma pennugem em que se assopra. E de toda aquella ancia apenas transpirou um monosyllabo :
-- Eu..!
Manoel viu-a n'esse gesto de resignação vivendo de um passado, toda a sua vida futura crescendo como uma triste arvore de cemitério sobre uma felicidade morta para sempre.
Depois d'essa syllaba triste a bocca dolorosa cahira-lhe sobre os nós dos dedos, e assim vergada, com a mecha de cabello escorrendo da fronte, Anna continuava a olhal-o, com duas rugas de meditação na testa branca.
E de novo a sua clara voz se elevou, apasiguada :
-- A Maria da Graça está boa ?
-- Veio á estação dizer-me adeus.
-- Sempre com o Queiroz?
-- Sempre.
-- Ah!
A voz voltou a velar-se-lhe. Depois de um esforço, crescendo com a mão pela face até á orelha e vergando mais a cabeça sobre o peito :
-- E ainda são felizes ?
-- Como nós... d'antes.
Singelamente Anua teve o gesto de quem comprehendia, e Manoel, um instante callado, continuou para encher esse silencio mortificante :
-- Moram agora na rua do Cego, numa casita com quintal. O Queiroz comprou guitarra : já toca alguma coisa e acompanha fados. Sabes aquella voz da Maria da Graça?
-- Atè lhe chegaram a fallar para ir cantar na Sé, pelas festas.
-- Ás vezes é meia-noite, ainda vou dar com elles em cantoria.
-- E ella ? Sempre bonita ?
-- Mais gorda, mas sempre bonita. Os olhos, aquella maneira de andar... -- Está na mesma.
Anna tinha-se erguido, chegada a elle, como para um abraço. Estavam em frente á janella e Manoel podia vera bem á luz. Os olhos brilhavam á altura da sua bocca, o que a fazia mais baixa do que elle quasi duas mãos travessas. A gola desapertada do corpete descobria-lhe um trecho do pescoço onde a epiderme ganhava uma tecitura de pétala.
No rosto um pouco redondo vivia uma doçura intensa, apenas desmanchada pela curva enérgica do queixo, que dizia a firmeza d'aquella pequenina alma de valente. A bocca sobretudo era um prodígio de graça e de bellesa, desde o fransido dos lábios atè aos colares de dentes muito brancos, de um claro esmalte sobre o côr de rosa das gengivas. Os olhos eram largos, cheios de luz e comprehendimento.
De a olhar, Manoel sentia crescer o ardente desejo de rehavePa, recordando as revoluções luminosas dos seus olhos no esquecimento dos deliquos. Mas ella, percebendo talvez no ardor do seu olhar a vaga de desejo que ameaçava vencera, pousou-lhe as mãos nos hombros :
-- Vem lavar-te, anda ... Estás cheio de pó.
E mais uma vez o encantamento desmanchou-se e uma grande serenidade desceu dentro do seu coração sobresaltado, emquanto ella foi encher a bacia de agoa, estender-lhe a toalha, com delicadezas de serva que se humilha.
E já com as mãos brancas de sabão, voltando-se :
-- Ouve cá : e a creança o que teve ?
-- Febre; teve muita febre. Nem imaginas o meu susto!
-- Era talvez dos dentes.
-- Não; parece que não. O medico veio cinco vezes. Quando a febre passou disse-me que tinha tido medo das convulsões.
Manoel, que enxugava o rosto, endireitou-se de repente, pallido.
-- Convulsões? Elle disse convulsões?
-- Disse. Esteve a examinar-me o leite, perguntou-me se tu eras doente.
-- E tu ?
-- Que não ; que eras forte como um castello.
Mas Manoel pousara a toalha, vestia lentamente o casaco, perturbado, na súbita evocação de uma miséria de familia quasi esquecida: a avó materna internada em Rilhafolles depois de vinte annos de convento. E essa doida, morta no furor de um delirio mystico, resurgia agora com o pescoço envolto em rosários, as mãos descarnadas sempre juntas n'uma oração sem íim, extinguindo-se lentamente, na esperança allucinada de entrar no céo e eternamente viver ao pé de Deus, no paraiso infantil da sua crença. Elle mesmo herdara alguma coisa d'essa loucura com a sua sensibilidade doentia e crises de desfallecimento inexplicaveis. Da parte de Anna havia as mortes prematuras dos pães: a mãe consumida por uma thysica galopante; o pae alcoólico e epiléptico, com accessos de cólera de que Anna ainda fallava com terror, apparecendo um dia morto nas escadas com um ataque.
Então uma dòr profunda varou o coração de Manoel, á ideia de que o seu filho era talvez o martyr innocente de toda essa pavorosa derrocada orgânica, e uma vontade dominou-o, crescendo no seu espirito, imperiosa :
-- Deixa-m'o vêr. Não me disseste a verdade: elle está doente!
Anua ficou a olhal-o, na surpreza de o vêr assim de repente pallido e tremulo, com os olhos embaciados de lagrimas.
-- Está bom, juro-te. Que tens tu ? Meu Deus !
-- Quero vel-o.
Tinha sahido para a sala, impaciente, exigindo o filho : que lh'o fosse buscar, que o trouxesse alli para elle o vêr.
Anna continuava de pé, emudecida, as mãos cahidas manchando a saia preta, sem comprehender a inesperada razão d'essa angustia que o suffocava e estremecia todo.
-- Vae buscal-o !
E quando a viu encaminhar-se para a alcova, lenta e perplexa, ficou anciosamente á espera, como se fossem a decidir de toda a sua vida.
Uma pancada mais forte de chuva tombou, ruidosa, açoutando as vidraças, e o dia obscureceu ainda mais sob o grande diluvio.
Anua correra as cortinas do berço, debruçada sobre a respiração calma da creança. Esteve um momento a vel-o dormir, hesitante, sem animo de interromper aquelle somno tão profundo.
-- Até é peccado acordar este anjinho!
-- Torna a adormecer depois ... Faze-me a vontade. Tenho que ir e quero vel-o ...
Ela então resolveu-se, puxou a roupa do berço e ergueu o filho nos braços, aconchegando-o ao peito. A creança, acordada, abriu os olhos, desatou a chorar. E emquanto o apertava ao seio, a mãe cuidou comprehender tudo: a razão d'esse súbito rogo de Manoel, insistente e desesperado, de vêr o filho.
-- Julgas que não è teu? Vê ! vê...! São os teus olhos, o teu cabello, as tuas mãos! ...
Doia-lhe o orgulho ferido ; o seu corpo crescera sob a offensa n'uma tal revolta de honestidade que todo o rosto estremecia: os lábios descorados e as pálpebras vacillantes.
-- É teu. De quem querias que fosse ? De quem ? de quem? dize... Nem que o quizesse negar não o podia : tem tudo o que ê teu, os teus olhos, a tua bocca, o teu cabello !
A creança, assustada, abria os grandes olhos azues e Manoel ficava suspenso, revendo-se no filho, enlevado no encantamento de o vêr tão pequenino e lindo como um pássaro arripiado e cheio de susto.
-- Ainda duvidas ? Dize : ainda duvidas ?
Mas então Manoel pareceu ouvir, atordoado por aquella voz afflictiva e revoltada. Teve um grande gesto, balouçando a cabeça n'um enérgico protesto :
-- Não, não ; não era ...! Tu não sabes : não era isso ... Fallaste em convulsões e eu tive medo. Pensei que me quizesses enganar para não me fazer soffrer logo á chegada. Ah! tu não comprehendes, bem vejo que tu não comprehendes...
Anua ergueu a triste face lavada de lagrimas. Com o ar de uma confusão infinita olhou Manoel ; depois vergou de novo a cabeça, sem fallar, e um tal irradiamento de felicidade vinha da sua cabeça baixa que elle, commovido, acabou por sorrir com uma indulgente ternura, vendo-a submissa, enleada pela vergonha de ter duvidado do seu coração e da sua consciência.
Deante da cabecinha loura do filho todo o temôr se dissipava como uma nuvem que o vento leva. Elle cresceria forte e bello, de cabellos cor de oiro e olhos côr do céo, tão pequenino agora que dois seios o alimentavam e um regaço o continha, grande e forte um dia para se talhar na terra o seu logar. Seria medonho que esse corpinho branco e delicado pudesse abrigar os instinctos de um alcoólico furioso ou os delírios senis de uma alienada. Só em olhar a doçura da linda mulher que o concebera e quanto amor e quanta belleza iam n'esse branco e doce leite com que elle se creava, uma grande esperança accendia-se dentro do seu coração reconfortado. Os avós tinham ficado nos túmulos, indiíferentes á germinação d'essa flòr incontaminada ; e como era bom sabero são e forte, capazde descer um dia á vida rude e trabalhosa, na difficil conquista de uma ventura na terra !
Anna cahira n'uma cadeira, esquecida no seu silencioso choro, sem ousar ainda erguer os olhos. A creança, um instante callada, piscando os olhitos feridos pela luz, recomeçava a gritar, revolvendo a cabecinha apenas coberta de uma pennugem loura de canário. Para o acalmar, a mãe desapertou o corpete aconchegando-o mais a si. A sua longa mão branca revolveu a camisa, ergueu o seio redondo e claro, entumecido de leite, onde apenas uma ligeira areola escara, em volta do mamillo cor de rosa, contaminava a alvura. Entre os dedos, de articulações róseas, apertou o bico do peito, chegando-o atè á pequenina bocca voraz que já tacteava.
Manoel, sentindo a necessidade de quebrar esse silencio, enxugar essas silenciosas lagrimas sem fim, puxou também uma cadeira, apoderou-se de uma das lindas mãos abandonada :
-- Para que choras? Não vês que tudo passou? Não valia a pena vir eu cá para te fazer chorar!
-- Bem sabes por que choro.
-- Toma o lenço. Euxuga esses olhos. Não os vás estragar com lagrimas!
Anna ousou erguer a cabeça, logo baixa outra vez na contemplação do filho que bebia o seu leite, se alimentava da sua vida e do seu sangue.
Manoel olhava a voracidade da pequenina bocca còr de rosa collada ao peito redondo e morno em que a creança pousara também a mãosinha n'um gesto de posse.
-- Que fome que elle tem !
-- Isso sim ! Antes de adormecer esvasiou-me o seio. Está aqui está a dormir. Do que elle gosta é do calor do peito. Vaes vêr como adormece.
De espaço a espaço a creança parecia cançar-se, parava de sugar, deixando o bico do seio apertado nas gengivas; mas logo abria os olhos, os beiços ávidos avançavam e ouvia-se de novo o manso sussurro de uma fonte escorrendo dentro da pequenina bocca esfomeada. Ás vezes, depois d'essas paragens, era preciso que Anna lhe aconchegasse o peito e o comprimisse um pouco. Manoel, calado, olhava sempre o tépido seio redondo, abraçado de veias de um azul muito pallido, como as raizes por onde corria a seiva d'essa maravilhosa ílôr de carne branca.
Fora, n'uma torre, bateram horas, e Manoel levantou-se.
-- Sete horas ! Tenho que ir.
-- Fica mais um instante ! Só até elle adormecer!
-- Faz-se tarde.
A mão de Anna cresceu ao longo do seu braço, parou no seu pescoço, cariciosa ; e a melodiosa voz supplicou :
-- Só meia hora. Tomas café commigo : a Rosa não tarda... Olha, ahi está ella!
Ao som da campainha a creança deixou de mamar, abrindo os olhitos azues, attenta.
E logo Rosa entrou enfiada e surpresa, mirando muito Manoel.
Elle pasmava ao vel-a mais crescida, quasi esbelta nos seus trese annos de anemica, com os cabellos atados n'uma fita, trazendo enfiada no braço uma cesta com pão e hortaliça.
-- Bom dia, Rosa.
-- Bons dias, senhor Manoel.
Foi preciso empurral-a a meio da sua confusão, tendo parado deante d'elle, apoiada a um guarda-chuva enorme que escorria.
Anna levantara-se, reprehensiva :
-- A boas horas, sua preguiçosa !
Mas Rosa levantou o focinhito pallido, desculpou-se :
-- Estive á espera da leiteira, lá em baixo á porta, mais de meia hora.
-- Trazes o pão?
-- Trago, sim, senhora Anninhas.
-- Vae accender o lume e faze café... Depressa, mexe-te ! E forte, ouviste ?
-- Está bonita a rapariga, affirmou Manoel, risonho.
-- Não è? E trabalhadora. Se tu visses !...
A creança tinha adormecido sem largar o peito, a mãosinha fechada no collo da mãe; e foram ambos deital-a no berço, á alcova.
Demoraram-se depois a conversar na sala, á espera do café, Anna querendo saber tudo: se elle ainda estudava, á noite, como d'antes; se sempre mandara fazer uma batina nova e se fora chamado ; se dera boa conta de si como das outras vezes.
-- Olha lá, e a filha do albardeiro?
-- A filha do albardeiro? -- Não, Manoel não se lembrava da lilha do albardeiro.
-- Do largo da Fornaihinha... O teu namoro...
-- Ah ! a Gertrudes ? Casou. Casou com um ferrador.
E mil perguntas : se a Maria da Graça já tinha comprado as arrecadas de oiro, -- o seu grande sonho! -- e como ia o senhor Queiroz, se era ainda o mesmo; se tinha por lá visito a Santa Izabel, que viera do Porto para uma egreja de Coimbra.
Manoel explicava, encantando-a com exageros de conto de fadas, alimentando n'um sonho de oiro e luz aquella linda cabecinha romântica. Descreveu-lhe a Santa Izabel com o seu manto arrecamado de pedras, o regaço vertendo flores, os longos pés afilados em calçaduras de brocado ; e tão doce e bella que parecia ter descido do céo á alma do artista, por milagre, deixando-se adivinhar e deixando-se vêr, com o seu disco de oiro nos cabeilos.
Nos outros tempos Manoel alimentava um maravilhoso céo constantemente dentro d'aquella alma ignorante, erguendo-a de sobre a terra n'um continuo delírio de sobrenatural; e tornava a encontrar agora os mesmos olhos espelhantes, alagando-se de claridade, batendo as pálpebras como azas que se elevam.
Quando a tinha, com a imaginação inundada de clarões e de estrellas, atordoada pelas historias de pagens e princesas, de santas e feiticeiras, a sua voz sussurante parecia conversar com as visões, arrastada por uma tal vertigem de felicidade e goso que ás vezes, debaixo do seu peito, sentia-a desmaiar.
Manoel alegrava-se de a ver ainda obediente, facilmente hypnotisada á sua voz, suspensa e enlevada, com ae mãos no regaço. Já ella cuidava ver a rainha santa, com a cabeça envolta n'um branco véo de linho, de coroa goda nos cabeilos ruivos, o real corpo santificado vestido de túnica e de manto e nas alongadas mãos de raça, um pouco emaciadas, por entre os dedos pallidos e finos de devota as rosas ir cahindo, escorregando, transformando-se em oiro por milagre.
De dentro, da cosinha, chegava o leve sussurro trepidante da agoa a ferver e ouviam-se os passos de Rosa, ligeiros e diligentes, indo e vindo.
Manoel parou um instante de fallar, foi até á janella espiar a rua, voltou com outra conversa. Fallouse de Coimbra, na recordação dos três dias de festa do anno passado -- o jantar no Choupal, o passeio no Mondego, com guitarras, e a celebre ceia de arrufadas e lampreia no café da Viuva Violante.
-- Lembras-te? o Queiroz foi empenhar o relógio no Favas do Arco do Bispo...
Ai se lembrava! E os ciúmes da Maria da Graça, muito atordoada com o vinho fino ! O que ella tinha chorado n'aquella noite!
-- Coisas passadas! concluiu Manoel, erguendo-se.
Foi quando Rosa entrou com a bandeja, trazendo o café. E emquanto Anna, depressa, arranjava a mesa, chegava as duas cadeiras, enchia as chicaras, Manoel passeou pela sala a vèr os figurinos pregados com alfinetes, nas paredes.
Começando em aprendiz n'um grande atelier de modista na rua do Ouro, Anna passara a vida entre sedas e veludos caros; e d'essa longa intimidade com as rendas e os setins ; no fundo da sua alma pousara o requinte de uma graça, elevando-a de continuo aos paizes do sonho. As suas mãosinhas sabias conseguiam milagres, inventivas e fantasiosas, no arranjar de uma prega, o pousar de uma pluma ou renda, o soltar de uma manga. Na execução do modelo a sua fantasia libertava-se, emendando e compondo; e agora, com uma ireguezia mais pobre, o prodigio continuava, descendo das sedas ás setinetas, dos veludos aos velutilhos, das rendas de Chantilly e de Bruxellas ás rendas de Guimarães e de Villa do Conde.
Manoel tinha parado em frente á machina de costura, olhando uma grande vaga de tulle e seda branca deitada na cadeira.
-- É um vestido de casamento. -- Para aquella loira do numero treze.
Mas Manoel não se lembrava, esquecido da loira do numero treze.
-- Por cima do açougue. Não sabes tu outra ! Estava sempre a namorar o brazileiro da casa de hospedes .. .
-- Então é com o brazileiro ?
-- Não, é com um alferes.
-- Ah!
-- Vem tomar o café, que arrefece...
E depois de um silencio, estendendo uma colher de assucar :
-- E tu, não pensas em casar ?
-- Porque perguntas ?
-- Sei lá ! D'aqui a pouco vae sendo tempo.
Manoel olhou-a, admirado de a ver assim tranquilla e risonha, como acostumada de ha muito áquella ideia que a elle acudia pela primeira vez.
-- Casar ? Eu ? Que tolice !
-- Tolice porque ? É uma coisa que ha de acontecer: está escripto. Não te dou cinco annos! Não has de ficar toda a vida solteiro. Precisas de ter a tua casa, a tua família, como toda a gente...
-- E tu?
-- Ah! eu não me afflijo; estou socegada. Quando vier a morrer sei que tomas conta do teu filho. O resto que me importa ? O que não queria era morrer em estando tu solteiro. Era-te isso ao depois mais difficil.
Manoel ouvia-a fallar, serena e quieta, occupando-se da sua felicidade e do seu futuro ; e ao presenceal-a assim generosa, humilde e resignada, pela primeira vez no seu coração ingénuo e agradecido entrava a ideia de a ganhar para si eternamente.
Como lhe seria socegada e feliz a vida se pudesse, livre e bom, arrancara a esse cruel sacrifício immerecido, pagando a sua divida, elevando-a atè a si, sem dôr e sem remorsos !
Um dia outra mulher acabaria por conquistar-o, talvez menos bella e menos pura, mãe de seus filhos, feliz conquistadora do seu lar, em prejuízo d'aquella linda rapariga que consentira em deformar o corpo e destroçar a vida para lhe offerecer n'um sumptuoso vaso de sacrifício um pouco de prazer e um pouco de amor. Fora elle que a arruinara, levando-a cega e de rastros, n'uma sede de felicidade e de amor por esse caminho de calvário, recusando-a e fugindo-lhe desde que o corpo passivo e submisso se tornara perigoso, santificado pela germinação da flor do seu sangue, terreno de onde nascera um rebento da sua carne.
Por um instante ficou pensativo e calado, procurando uma consolação, uma alegria com que dotar aquella almazinha de mãe entristecida. E já ella, inquieta, se levantava quasi da cadeira.
-- Que tens tu?
-- Estava a pensar n'elle. Queres baptisal-o, não é? A Maria da Graça podia ser a madrinha. O Queiroz dava cá um pulo com ella. Arranjavam-se assim as coisas. Posso escrever ainda hoje e elles que marquem o dia.
Anua erguera-se n'um delumbramento, pousando as mãos abertas na cabeça loira de Manoel.
-- Ai, que alegria, Manoel ! Mas vê bem se pode ser! Não vá isso trazer-te complicações.
E já o seu olhar deslumbrado se obscurecia, meditando no obstáculo, n'uma confusa consciência de perigo.
Mas Manoel protestou, dominado por esse sentimento de bondade e justiça que lhe alegrava toda a alma.
-- Que complicações querias tu que houvesse? Ha de ficar a creança por baptisar? Ora essa! Não senhor, havemos de ir escrever os nossos nomes á egreja. Hoje mesmo previno o Queiroz.
Anna escutava-o, suspensa, como se Manoel lhe fallasse em casamento, atordoada por tanta felicidade junta.
Quando elle partira para Coimbra a creança tinha ainda poucos dias e mal ella se começava a levantar, penosamente, sentindo ainda todo o corpo como uma ferida aberta.
A esse tempo Manoel fallara vagamente do baptisado, como de uma coisa sem pressa, addiada para mais tarde e Anna, pouco a pouco, vendo-o esquecido, findara por sujeitar-se, comprehendendo no seu silencio a intenção de apenas perfilhar o filho depois de formado, quando se sentisse independente e livre, vivendo do seu trabalho. Ella mesmo, muito tempo indecisa, acabou por resolver levar o filho a baptismo com os visinhos do segundo andar -- a mulher do relojoeiro e o guarda-livros, -- resignada á vergonha de occultar o nome do pae, na esperança de que Manoel repararia mais tarde essa injustiça.
Durante um mez inteiro soffrera com a meditação dolorosa d'aquelle passo, ferida nos seus escrúpulos de honesta, magoada na sua delicadeza de mulher e no seu orgulho de mãe. Resolvera-se emfim, cançada de ouvir a visinhança murmurar e a lavadeira dizer de oito em oito dias, erguendo nos braços vermelhos o pequenito branco :
-- Credo ! Até è peccado não o fazer christão ! Agora, que só esperava pela partida de Manoel para baptisar o filho, elle vinha oíTerecer-se para a acompanhar á egreja, juntar o seu nome ao d'ella, dizer deante de Deus que a ambos pertencia aquella vida, que elle plantara no seu seio e que ella creava.
-- Oh! meu Manoel! meu Manoel! que alegria tu me deste!
Manoel sentia-se alegre ; tinha feito o seu dever. Beijou-a longamente na nuca, sob os frisados castanhos, e ambos voltaram ao café que arrefecia, sentados de novo á mesa onde se deitava um morno raio de sol descido de uma clareira azul pelas janellas abertas.
Por momentos a sala viveu n'aquella quentura luminosa. Os dois esqueciam-se á mesa, roçando os joelhos, pairando de mil coisas, atordoados pela ventura de estarem juntos no grande socego da casa, aquecidos pelo mesmo raio de sol, como se fosse- a verdadeira vida que começava, amorosa e feliz, longe do mundo, n'um grande idylio sem flm.
Nunca elle a pudera expulsar do coração, que a doce creatura tinha sido a primeira a possuir, única que se deixara amar e o tinha amado, feliz de se entregar inteira ao seu prazer ; e como nos bons tempos, depois d'esse longo intervallo de amor, Manoel ia sonhando na alegria de rehaver para sempre o thesoiro perdido.
Tinham fallado de Coimbra e elle ia promettendo a realisação de um impossível sonho -- o leval-a com o filho : alugar um certo casinholo branco, de paredes cobertas de vinhas, a meio de um souto de carvalhos verdes, que banhavam os pés envelhecidos n'um lago de oiro pela floração do tojo e da giesta.
-- E as aulas? -- lembrou Anna, receosa, com o dedo na face, ante a seria visão do obstáculo.
-- Ficamos a dois kilometros de Coimbra; meia hora de caminho, indo de vagar a acompanhar-te o passo.
-- Para que lado é?
-- Para cá do rio, perto de Santa Clara. Vê-se a cidade ao longe por entre as arvores. É o mesmo que estar no campo. Até ha grillos !
Com as mãos de Anna entre as suas, fallava-lhe do prazer infinito d'essa vida, acordando pela manhã com o chiar dos carros, adormecendo á noite com o canto dos gailos. A casa era pequena e pobre, com tectos de traves e um alpendre colmaço onde cresciam papoulas e margaridas no principio d'Abril, o que lhes dava um jardim suspenso como os da lenda. Toda a riqueza das terras cultivadas se estendia ao redor, com largos campos de centeio e milho doirando os horizontes ; e ao longe o choupal derramava uma nuvem trenmla de prata onde o sol suspendia longas redes de oiro todo o dia.
Anua escutava silenciosa, respirando de manso, e só as suas pálpebras, de instante a instante, desciam lentamente sobre os grandes olhos reflexivos.
Como seria bom e fácil estudar alli, comprehender a sciencia, desalterar essa sede orgulhosa e dominante de saber, ao lado d'ella, no farfalho das suas saias engommadas, no grande descanço do seu affecto, vendo-a crear o filho entre a saúde das vastas terras fecundas, encaminhando-lhe os primeiros passos e ensinando-lhe as primeiras falias ! Pelo verão jantariam na grande saccada de madeira, sob o alpendre, ouvindo ramalhar os carvalhos, ondular as cearas e zumbir as vespas e os besouros. Levavam a Rosa para ajudar no serviço da casa e podiam ter gallinhas no terreiro, uma horta, um pomar...
-- E uma vacca, Manoel. É de uma grande economia ter uma vacca.
-- Sim, também podemos ter uma vacca.
E elle, todos os dias depois do almoço, iria á cidade para as aulas, voltando em seguida pela grande estrada sólhenta, na pressa de refrescar os beiços na húmida fonte da sua bocca. Os dias correriam alegres, mansos como um rio, vendo nos campos a charrua ir e vir como uma barca n'um lago, deixando atraz de si um grande sulco; as cearas nascer, crescer e tombar sob as foices ; os biaços das vides rebentar, cobrirem-se de pâmpanos e cachos, e as folhas cahir côr de rosa e doiradas.
Ante a felicidade tão simples e tão impossivel os dois meditavam, deixando-se adormecer no engano de a gosar.
Seria a vida sabia e santa, longe do egoismo das sociedades más e cubiçosas, fugindo ao fatalismo da eterna lucta e do desassocego eterno, a única em que se poderia conciliar o seu amor e a sua felicidade, o seu coração e a sua consciência.
Mas fora, na mesma torre, soaram oito horas e Manoel ergueu-se, acordando para a realidade, bruscamente disperto d'esse bello sonho de familia e de virtude, que se desfazia como um collar de contas a que partem o fio.
Os dois olharam-se, de pé, desilludidos até ás lagrimas.
Anna chegou-lhe o chapéo, ajudou-o a vestir o sobretudo, abriu-lhe a porta da alcova para beijar o filho ainda antes de partir, e já no corredor, de novo os seus dois corapões se escutaram n'um abraço, feridos pela mesma certeza do impossivel: -- o impossivel de serem felizes, o impossivel de salvar aquelle pequenino de três mezes que dormia no berço de ferro, sob os cortinados de setineta azul!
II
Havia três dias que Manoel tinha chegado e a chuva não cessava, miúda e continua, encharcando Lisboa.
Logo pela manhã, ao levantar-se, as janellas m-ostravam-lhe o Tejo barrento, submerso na chuva, desfazendo-se sob o infinito véo branco em que apenas os cascos dos navios e o deslisar das fragatas de carga alastravam manchas fluctuantes. A Outra Banda desapparecia inteiramente na neblina que o sol mal rompia de quando em vez como uma aranha de oiro caminhando por uma teia.
O grito das lanchas a vapor era mais rouco trespassando o chuveiro, e a instantes o arquejo dos monstros sob a nevoaça espessa -- o entrar de um paquete ou deslocar de draga rente ao cães, -- ganhava resonancias humanas de agonia.
O Aterro, em baixo, estendia-se enlameado e viscoso até aos entulhos e assoreamentos da margem, atravessado pela corrida dos comboios, derramando á passagem lentas nuvens de fumo.
No ledio d'esses dias regelados e tristes, Manoel arrastava o tempo de poltrona em poltrona, fumando um eterno cigarro, espreguiçando-se n'um continuo bocejo, feliz em poder enterrar os pês nos tapetes felpudos e sonhar ás vezes sobre uma pagina de livro, ocioso e tranquillo, no calor de estufa das salas.
Depois do almoço, uma tipóia levava-o agasalhado da chuva até á casa de Anua,
Alli ficava horas, cahido na cadeira de verga, ao lado da janella, vendo-a trabalhar ou dar o peito ao filho.
Essa dupla vida satisfazia-o, conservando-o n'uma suave atmosphera de amor e de doçura, vindo do beijo da mãe ao sorriso do filho, contente de se sentir acarinhado por todos e a mesma e constante adoração acompanhar-lhe os passos.
Depois que abdicara do seu prestigio de amante, os beijos de Anna tinham o pudor honesto de uma noiva e muitas vezes acontecia-lhe corar a um abraço mais longo ou palavra mais quente. Mas quando ouvia tocar a campainha, como um animal perdido que ouve a voz do dono, estremecia toda e cahiam-lhe as pálpebras ao vèr entrar Manoel, estendendo a fronte ao beijo do costume, mais curvada sobre a costura para repousar da emoção que a agitava.
Manoel tirava as luvas, entregava o sobretudo a Rosa, que lhe trazia a creança para o collo, e alli se ficava uma hora cora o pequerrucho nos joelhos, n'uma alegria de creança que brinca com a boneca.
Ás vezes Anna recommendava cuidado, reprehensiva e inquieta.
-- Olha que o magoas! Com todas essas voltas ainda o pões doente ...
Manoel erguia-o nos braços, rindo quando o via sorrir, chamando-lhe «seu garoto », atè que a creança choramingava, estendendo um bico de amuo, impaciente e zangada. Anna travava então a machina de costura e tomava conta do filho. Iam depois ambos deital-o dentro á alcova.
No silencio da casa apenas o zoar da agulha na Singer ruidava, acompanhando o escorrer da chuva nas vidraças. Os dois tinham raras conversas entrecortadas de silêncios, menos á vontade desde que a creança não estava alli entre elles a achegafos. Nunca mais tinham voltado a fallar d'essa vida de Coimbra: o sonho impossível de se juntarem e continuar a amar longe do mundo. E nos silêncios longos em que ambos cabiam, Manoel seguindo as espiraes de fumo do cigarro, Anna attenta ao caminhar precipitado da agulha nos alinhavos, a mesma amargura agitava-os.
Como o receio de Anna fosse vel'o partir um dia, desconsolado e triste, para nunca mais voltar, ferido pelo remorso de a vèr soíTrer, ella procurava encaminharo para longínquas conversas que tentava illuminar com trinados de riso, convencendo-o de uma alegria, dando-lhe o espectáculo de uma felicidade.
Passaram assim os três primeiros dias. O Queiroz tinha escripto, marcando o dia de Reis para o baptisado. A creança parecia completamente boa e o medico, que viera ainda uma vez, tranquillisara Manoel, depois de exigir de Anna grandes passeios, menos horas de trabalho e uma alimentação racional e sadia que a recompozesse da extenuante fadiga da creação.
A verdade è que Anna passava as noites a chorar, com accessos de febre, atormentada pelo presentimento de uma desgraça próxima, e alta noite tinha que levantar-se, sem conseguir adormecer, perseguida por uma inquietação todos os dias crescente. Corria então ao berço, a olhar o filho, lacrimosa e afflicta, passando horas açapada no soalho a chorar.
Justamente n'essa manhã Manoel acordou pensando n'ella, alarmado por esse definhar rápido da amante, com a suspeita d'esses choros escondidos, adivinhando-lhe as lagrimas no pisado das pálpebras. Ainda na véspera lhe encontrara uma pallidez de soffredora que o abalara de commoção e de receio e tinha agora bem assente a resolução de lhe prohibir o trabalho e redobrar de cuidados, vencidos os escrúpulos que o retinham de estremecer aquella castidade de mãe purificada por uma longa abstinência de amor. Fora o receio de multiplicar os laços que os prendiam e sacrificar á sua paixão o filho que lhe dera, o forte motivo d'aquelle afastamento. A principio, Anna acceitara facilmente esse obrigado divorcio, envergonhada de ainda o desejar com o corpo deformado, não tendo para dar-lhe a antiga harmonia da sua forma e a fresca mocidade da sua carne. Por seu lado Manoel, no primitivo terror de a sentir mãe, exhorbitando assim do emprego de amante, recuara ante o irremediável d'aquella situação tão delicada e tão grave.
Desde que não podia eleval-a até esposa, tendo a mansa creatura a sua macula, elle o seu preconceito, preciso se tornava estancar aquella fonte de amor. Continuar a tel-a e possuil-a no simulacro de lar que se haviam creado, representava um futuro de guerra com os pães, as hostilidades abertas com a familia, a vida desesperada de um expulso e de um pobre. Depois o filho, se os unira com laços de sangue por ura interesse de coração, mais afastara os dois do desejo e do amor, q agora a vida seria boa e pacifica se de todo a amante erguesse vôo para o paiz das coisas mortas e só a mãe ficasse, libertada e serena, n*esse lindo corpo novo e fresco de amorosa. Era todo um largo plano que elle meditava, sem pensar que não basla ao coração da mulher o affecto de mãe e que era exactamente n'esse amor maternal, exagerado e profundo, que residia a inseparável chamma sensual de que o filho nascera.
Desde que lhe era prohibido continuar a amaFa tornava-se preciso que o filho compensasse a amargura de a perder e trouxesse egualmente ao coração de Anua uma consolação e um grande premio. Era necessário creal'o forte e bello como um anjo tutellar, viva razão de todos os sacrifícios, capaz de fazer esquecer os antigos amores, chamando a si todas as forças sentimentaes d'aquelle triste coração doente.
Manoel entrevia já a alegre vida futura, despojando-se da sua parte de amor para a dar ao filho, vendo-o crescer ao lado da mãe, louro e branco, de largos olhos azues cheios de luz, perpetuando a lembrança da sua primeira paixão dos vinte annos.
Quando pela ultima vez se olhou ao espelho a concertar a gravata, uma grande paz descançava o seu espirito.
Foi então correr os transparentes, deixar entrar a luz do dia sujo de inverno. Quando desceu para o almoço teve uma grande surpresa ao vêr que já todos tinham almoçado, passando já das onze e meia. Apenas a mãe e o irmão estavam ainda á meza, ella lendo o jornal, o pequeno a encher os bolsos de biscoitos.
O creado sahia levando pratos, e ao fundo, o parafogo japonez tinha uma nódoa de oiro de encontro ao braseiro do fogão já acceso.
A mãe pousara o jornal, vendo-o chegar.
-- Sim senhor, a boas horas !
Mas Manoel desculpava-se, beijando-lhe as mãos.
-- Porque não me chamaram? Estes dias de chuva enganam tanto!
E erguendo nos braços o irmão :
-- Viva, seu maroto ! Já deu a sua lição de inglez ?
Era uma creança loura e fransina, de cabellos cahindo em cachos luminosos sobre o cabeção azul do fato de marujo, e tão leve que Manoel a suspendia toda ao ar sem lhe sentir o peso.
-- Não? Ainda não? Ah! miss Walsh está hoje muito preguiçosa! E os comboios? Como vão os comboios ?
Em cima, no corredor da sala de engommados, a creança tinha uma grande estrada de zinco onde rodavam locomotivas de folha, ruidosamente. De manhã á tarde o petiz alinhava trens, enchia e esvasiava wagons, esquecido de tudo, passando horas inteiras absorvido, com accessos de choro se o iam arrancar ao seu brinquedo.
Ás vezes, no silencio da casa, ouvla-se a desesperada voz da creança gritando do corredor:
-- Mamã! Mamã! Venha depressa! Houve um terrível desastre !
E era algum carro de rodas para o ar ou uma locomotiva tombada em frente a uma porta que assim a estremeciam de emoção, transfigurando-a, arrancando-lhe lagrimas. Depois, resignada, enchia o babeiro de wagons e logo recomeçavam a gyrar locomotivas.
Manoel, depois de a pousar, tinha-a beijado ainda. A creança mettera as mãos nos bolsos, saccudindo a cabeça, onde houve a agitação de uma luminosa vaga de oiro. E depois de reflectir um momento, com os olhos no tapete:
-- Ó mamã: posso tirar uma amêndoa?
-- Não, que te faz mal.
Mas Manoel intercedeu por elle, acabou de lhe encher os bolsos de goludices.
O creado entrava, dando os bons-dias -- e emquanto Manoel, da travessa de christofle que elle pousara a seu lado na toalha branca, se servia de carne fria -- o Domingos permittiu-se também uma reprehensão.
-- O nosso menino, hoje, a modos que lhe soube bem a cama ...
O Domingos era um velho creado que andara com Manoel ao colo. Escudeiro do avô, viera da província ia em dezoito annos, carregado de luto, quando o morgado das Infantas morrera de uma lesão na sua quinta da Beira. Educado no respeito antigo, fiel a uma tradição guardada piedosamente na província, o Domingos respeitava em Manoel o descendente do seu primeiro amo -- aquelle grande senhor que morrera aos sessenta e cinco com uma cachopa de vinte a chorar-lhe á cabeceira.
Domingos era assim uma rehquia de familia, continuando a lenda d'esse avô pródigo e romântico que espatifara a fortuna com cavallos e mulheres, separado dos filhos logo depois de viuvo, no seu ódio entranhado á cidade e aos liberaes, tendo conseguido viver até ao ultimo dia como um dissipador, hypothecando e vendendo campo a campo todas as terras, e de quem Manoel apenas conhecia um soberbo retrato de Lupi, representando-o aos quarenta annos, n'uma pose do século xvni, com um chapéo desabado e uma capa côr de avellã com alamares.
Manoel estirava os pés no tapete, sentindo-se bem na grande sala de aparadores e bufetes resplandecendo de pratas, servido pelo velho Domingos, de suissas já brancas, com o collarinho engommado e a ferradura de prata espetada na gravata de fustão.
Fora, a chuva continuava, escurecendo os céos, resoando nas vidraças, e esse ruido persistente e egual de agoa a cahir penetrava a sala de uma grande melancolia, abafando-a n'uma penumbra de crepúsculo, onde só os passos do Domingos resoavam, fazendo tilintar os cryslaes do guarda-louça.
O almoço correu lento, prolongado por aquelle bem estar calmo e morno. Fallou-se n'uma ida a S. Carlos, ã noite, ver os Huguenotes a no baile da Condessa de Sande.
O Domingos tinha sabido a aimoçar em baixo na cosinha e um silencio de abandono adormecia a casa, onde apenas o relógio império, em cima do fogão, batia de vagar os quartos de hora. Uma grande pionia preta esfolhava na toalha, uma a uma, as pétalas fúnebres, enormes.
Quieto de preguiça, Manoel encostara-se na cadeira, deixando abrir o chá, ouvindo a mãe, roçal-o a vaga tristeza dos seus grandes olhos um pouco pensativos. Olhando-a, reparava no seu rosto fatigado, onde transpareciam vestígios da antiga belleza: na linha esbelta do seu pescoço grego, ainda liso e branco, a formosura do olhar -- vasto e claro como um céo em que fosse sempre meio-dia -- e a massa escura do cabello, de um castanho apagado, com lampejos de oiro nos tVisados da nuca e manchados de prata sobre as fontes, coroando a brancura emaciada da face oval um pouco longa. Ein toda a delicadeza nervosa das suas feições havia um cunho de raça, um clarão que alli pousara, vindo de muitas gerações atraz, tendo vencido mais de um século de decadência. Era porque a achava mais bella, rejuvenescida pela ternura intensa do olhar, a linha encantadora do nariz com azas interiormente côr de rosa, a soberba do pescoço mythologico e as alongadas mãos maravilhosas, enredadas de veias azulinas e em que ardiam sempre, por um luxo predilecto, intensos fulgores de jóias.
Uma bátega mais forte de chuva varreu as vidraças e Manoel voltou-se, olhando o Aterro alagado e o vasto rio escuro.
-- Como chove!
-- Tens que sahir? perguntou ella, correndo os olhos claros pelas janellas onde se quebrava o aguaceiro.
-- Tenho.
E depois de um silencio, occupado em descascar uma laranja :
-- Mas vou de carro.
O cêo era agora negro e compacto, de um tom ameaçador de tempestade, e um lento trovão rolou ao longe, para o mar, n'um prolongado e tremulo mugido. O rumor dos americanos continuava entre o ruido da chuva nas calçadas e escorrer das gotteiras. Por um grande instante ouviu-se apenas a trepidação sobresaltada de um carro que passou á desfilada para a banda de Santos.
Manoel olhava distrahido as janellas escorrentes, com a cabeça vergada nas costas da cadeira, remechendo os bolsos á procura de um cigarro.
A mãe levantou-se para chegar o bule, encher de novo a chávena de chá. Uma rosa desfez-se sem ruido, acompanhando a pionia, n'um molhe amarello e doirado de pétalas que mancharam a alvura da toalha -- e ella, pousando a chicara, depois de um trago, perguntou :
-- Tens alguma coisa que te afflija?
Manoel ergueu lentamente a cabeça, desconfiado e receoso, e a voz tremia-lhe um pouco respon* dendo :
-- Eu ? Não ; não tenho nada. Que hei de ter ?
A mãe encolheu os hombros, recuando um pouco a cadeira, emquanto na sua mão pallida a chicara de porcellana fumegava.
-- Sei lá ! Estou a estranhar-te. Sinto-te triste.
-- É dos teus olhos.
-- Talvez seja, filho.
-- És tu que pareces triste...
-- Dóe-me um pouco a cabeça.
Manoel palpitou de receio, como á visinhança de um perigo. Bem no intimo tinha um enraizado amor a esse lar pobre e triste que lhe pertencia, e acordava no fundo do seu peito, ainda vago e confuso, um instinctivo sentimento de defesa.
-- Talvez te faça bem deitares-te um pouco. Experimenta ; quem sabe ?
Arrastara a cadeira para a beira da mãe -- e apoderando-se das longas mãos venozas manchadas de anneis, olhava-a com uma curiosidade crescente, no espanto de a vêr mais acabada, as fontes embranquecidas de desgostos, os lábios cabidos no cansaço de toda a sua longa vida honesta de esposa e mãe que tinha visto já morrer três filhos.
-- Doe-te muito ? Dize... Muito ?
Pensava em como. seria doloroso e cruel estremecer aquella querida existência delicada.
-- Isto passa; è d'este tempo assim -- não cessa de chover !
-- Vem sentar-te na cadeira de balanço -- descai> ças a cabeça.
Tinha-se erguido, beijando-a nos olhos, -- e foi arrastar-lhe a cadeira para perto do fogão.
A chuva cahia em grossas contas, pesada e basta.
Um tramway de Cascaes, que passava, berrou entre o aguaceiro. Na casa ao lado alguém tocava a valsa da Bohemia e o odor das cascas de laranja embalsamava a sala suavemente.
Manoel desceu os transparentes, fechando mais ainda a penumbra triste.
-- Estás melhor assim?
-- Estou. Agora estou melhor. Por que não me contas tudo ? Para que guardas segredo ? -- Â mãe é o melhor dos amigos ...
-- Mas se eu não tenho segredos . . ! Que ideia a tua, agora, de repente, de querer vèr-me á força triste e com segredos !
Ella balouçou a cabeça n'uma forte duvida -- e estendendo a mão em cujo dedo minimo um grande rubi sangrava, pousou-lh'a no hombro, vo!tando-se toda na cadeira com um rugir manso de sedas.
-- Ha muito tempo, desde as ferias grandes, que te sinto mudado. Não tens mais a alegria que te fazia rir a toda a hora. Quando foste para Coimbra, da ultima vez, levavas alguma grande apprehensão, que nem sequer me beijaste na despedida. Emfim, tu lá sabes ... Mas não te queria ver triste -- com a tua edade é-se alegre.
Manoel ouvia calado, revolvendo com a tenaz a braza do fogão, avivando o lume.
Ella cominava, entregue ao seu presentimento, os braços magros cabidos inertes sobre os joelhos, as mãos pendentes.
-- Por mais que faças não me consegues enganar. Leio nos teus olhos muita tristeza e muita apprehensão.
E agora lembro-me de quando isso começou, vae em seis mezes, inesperadamente ...
A esse tempo, no seio de Anna, o seu filho crescia -- e eram d'esse tempo as primeiras angustias, o começo da sua inquietação ! Surprehendia-o que todas as dores por elle soffridas, até as mais occultas, tivessem deixado rasto no ignorante coração da mãe, como se esse coração ainda sentisse dentro da carne vasada do seu corpo. Sentia agora a necessidade de lhe apagar a duvida, desviando-a para longe da verdade, comprehendendo que ella não resistiria áquelle golpe. Para bem de todos tornava-se preciso encobrir e esconder esse falso lar de amargura onde vagia o seu pequenino.
Seria justo deixal-a morrer na sua ignorância, poupar-lhe o desgosto d'aquella tristeza.
E disse-lhe, sorrindo:
-- Gomo tu te aílliges sem razão !
-- É preciso entrar na vida com muita alegria para sahir d'ella com muita resignação, filho. Queria vêr-te mais rapaz... Toda a gente começa a extranhar-te Não appareces ; ninguém sabe de ti ! Ás vezes perguntam-me o que fazes que ninguém te vê.
-- Julgas então?...
-- Sim, sim, não vaes a parte alguma e nada te interessa ...
-- Se tu me interessas mais que toda a outra gente !
-- Mas sahes, desappareces, ficas horas inteiras lá fora, não sei por onde... É que tens alguma má coisa que te prenda! Má, sim, porque a não confessas .. .
Elle olhou-a fixamente, procurando lêr no fundo do seu espirito -- e vendo-a balouçar a cabeça n'uma pesarosa altitude de insistência, atirando-se ao perigo:
-- O que, mamã?
-- Sei lá! Algum amor...
Manoel esteve calado por um instante, na vacillacão de uma resposta. Depois, lentamente:
-- Quem não teve um amor na minha edade?
-- Mas ha amores que prendem e amores que desilludem...
-- E o meu ...
-- Receio que seja dos primeiros -- dos que prendem.
Manoel ergueu-se devagar, olhando as brazas morrer em palpitações de chamma, ferido em pleno coração pela injustiça d'aquelle preconceito que a mãe defendia como um dogma.
Á sua virtude talvez doesse também a abominável phrase, porque a sua voz tremia um quasi nada, rebelde e tarda, na confusa consciência do grande erro. Elle adivinhava a angustiosa lucta que se devia travar n'esse momento ao fundo d'aquelle brando coração -- o receio de magoar o filho no seu amor e a revolta de uma intolerância ancestral de convenção a atiral-a para a frente, de olhos cegos.
E afinal, dominando-se por um esforço :
-- És ainda muito novo para casar e é preciso sempre o homem saber com quem se casa. Cada um deve casar no seu meio com mulher sua egual. Só de uma egualdade de condição pôde resultar uma egualdade de affeicão ...
Por um instante a sua voz parou, receosa, e como visse o olhar reflexivo de Manoel, cobrando animo, ia a proseguir, quando elle lhe tomou carinhosamente as mãos e disse:
-- Podes viver tranquilla. Essa mulher nunca pensou em casar commigo.
-- Mas então...
-- Sim, como as outras...
Um sorriso nasceu na face austera da mãe abertamente, -- e na sede de socego que a dominava, ousou a pergunta:
-- E foi só tua?
Elle fez um esforço, debateu-se um momento na vaga consciência do immerecido insulto e respondeu a verdade na cobardia também de lhe mentir:
-- Não.
-- Ah ! respiro !
E a mãe abria-lhe os braços, livre do peso que tanto fatigara o seu coração, sem saber, no seu convencional orgulho de familia, ciosa da sua casta e do seu nome, que na corrente d'essa alegria se afogava uma creancinlia do seu sangue.
-- Talvez agora me julgues mal e injustamente; penses que eu sou uma egoista e uma orgulhosa. Toda a bòa mãe é uma egoista, tilho. Nós consentimos em soffrer por todos para poupar uma pequena dôr a um filho, mas para lhe poupar essa pequenina dôr somos capazes também de fazer soífrer o mundo inteiro. Mais tarde, quando fores pae, has de perdoar-me e has de comprehender-me.
-- Assim --tornou Manoel tristemente -- para me defender serias capaz de accusar tua própria mãe se fosse viva?
-- Porque perguntas isso?
-- Por nada: é que te admiro! Agora estás tranquilla ?
-- Sim; estou socegada. Teu pae também andava inquieto ...
-- Foi melhor assim...
Depois d'aquelle sacrifício parecia a Manoel que mais a amava e queria, e emquanto a beijava, commovido, parecia-lhe vêr a imagem de Anna caminhar para elle, trazendo-lhe n'um sorriso o perdão do seu crime, offerecendo-se ao martyrio, resignada e paciente, com um triste gesto de immolada.
Então todo o seu coração se abriu para a receber, sentindo crescer a sua divida de amor por essa doce creatura que depois de lhe ter sacrificado a felicidade^ a virtude, o futuro, ainda se julgava recompensada na sua miséria e na sua dôr quando elle descia a bocca sobre a sua face tão pura, recordando-lhe n'um beijo o festivo passado dos seus amores.
Eram agora as duas que elle abraçava, com os olhos razos d^agoa, juntando-as no coração, aproximando as inimigas no mesmo culto, apasiguado pela certeza de que as saberia amar com o mesmo fervor e congraçafas talvez na mesma obra de justiça e reparação.
Cessara emfim de chover e o nevoeiro suspendia com lentidões de panno de theatro.
Ao longe um bando branco de nuvens subia o céo azul, lentamente, levado por uma brisa. Sob o sol doirado, Aldeagallega ao longe illuminou-se. A cidade anima va-se, resurgindo do diluvio, ondeante e cheia de corcovas na sua enormidade de mar com sete vagas immoveis. N'uma altura o castello de S, Jorge cravava no morro a garra das muralhas e mais abaixo, na encosta, as torres da Sè subiam, negras e quadradas, erriçadas de postes telegraphicos.
Tinham-se encostado os dois á janella e Manoel lembrava-se agora de que Anna o esperava mais cedo n''esse dia, querendo que elle assistisse ao l:?anho da creança -- e um leve sorriso correu-lhe pela face, na antevisão do filho patinhando no banho, todo nu, estendendo na agoa os seus membrosinhos cor de rosa.
-- Tenho que ir. Queres alguma coisa lá de fora?
-- Porque estás tu a rir?
-- De te ver mais alegre ...
Ella teve um gesto benevolente de incrédula, pousando-lhe a mão no hombro, e com uma indulgente ternura, não o querendo reter, lembrou as horas de jantar; que não faltasse -- tinham a Viscondessa e ia-se fazer um plum-pudding.
Manoel prommetteu: -- não faltaria ao bolo inglês e á Viscondessa.
O Domingos foi buscar a cima o sobretudo e a bengala.
Toda a casa de jantar brilhava agora, immersa em claridade. No fogão os carvões apagavam-se com pallidos tremores de brasa sob as cinzas. Quando os dois atravessaram o corredor, como dois amigos reconciliados, deixando a grande sala, o pequeno descia com a institutrice, cabisbaixo e amuado, para a lição de inglez. Manoel parou ainda a beijal-o, cheio de compaixão, recordado dos tempos em que miss Grace lhe fazia traduzir os exercícios e conjugar os verbos irregulares. A mãe, depois de um ultimo adeus, abriu a porta do quarto -- e Manoel, emfim livre, desceu as escadas, calçando as luvas.
Já na rua, pensou em levar á amante amêndoas e flores. Anna era gulosa como as abelhas e gostava de cravos como as vespas.
Depressa, pensando no prazer que ia dar á pobre esquecida, chamou um carro, mandou bater para a rua do Ouro ; e ás duas horas, com um grande molho de cravos escarlates e os bolsos cheios de amêndoas, subia ao terceiro andar e tocava a campainha.
Rosa veio abrir, espantada deante do seu sorriso alegre, olhando o grande ramalhete perfumado ; e Manoel foi dar com Anna, de pé, encostada á janella, mostrando um figurino a uma senhora gorda, vestida de preto, com um mantelete de vidrilhos. As duas tinham-se voltado ao ruido dos passos.
-- Entra -- podes entrar !
Então Manoel cumprimentou, descobrindo-se, e os seus olhos pararam encantados na linda figura da amante recortada em plena luz, as faces ruborisadas, o seio palpitante na inesperada emoção de o vèr entrar.
A senhora do mantelete tinha puxado o lenço, assoava-se em silencio, desviando o olhar, não querendo estorvaros. Manoel aproximara-se mais, murmurando uma desculpa.
-- Talvez incommode...
Anna esteve um momento sem poder responder, vendo-o caminhar com o ramo de cravos na mão.
-- Não, não. Senta-te -- é um instante.
Elle afastou a cadeira de verga, pousou o chapéo e a bengala -- e em quanto as duas fallavam, discutindo uma renda, descalçou as luvas, com o grande ramo de cravos nos joelhos.
E logo Anna foi acompinhar a senhora do mantelete até á porta, voltou quasi a correr.
Manoel estendeu-lhe os braços, recebeu-a no peito. Ella deixou-se cahir, de olhos fechados, e estiveram os dois assim juntos por um longo instante, escutando o bater dos corações.
-- Mandas dizer á mulher que não podes tomar conta do vestido ! Faz-te mal trabalhar tanto : precisas de socego, minha querida.
-- Até me distrahe !
-- Não quero. Emquanto eu cá estiver todas as tuas horas são para mim.
Mas ella não podia acreditar em tanta felicidade, na radiosa surpresa de o ouvir fallar como nos outros tempos, acordada essa antiga voz de amor que a sedusira.
E assim colhida por aquella surpreza desatou a chorar.
-- Vá ; que é isso? Que querem dizer essas lagrimas? Mas tu estás doida? Chorar assim sem razão só pelo gosto de chorar !
-- Já não choro mais.
-- Então vem vêr : trouxe-te cravos.
-- Ah ! como são lindos !
E com os olhos ainda húmidos a pobre beijava as flores, atordoando-se de felicidade e de perfume.
Manoel fora abrir as adufas, deixar entrar o sol. A sala parecia inandada por um alvorecer de estio com dois grandes tapetes de luz a meio do soalho.
-- Agora, a vêr se adivinhas o que te trouxe mais!
-- Sei lá ! Trouxeste-me tanta coisa !
-- Lembras-te, gulosa, quando passavas as noites a roer amêndoas como um ratinho?
-- Se lembro!
-- E quando punhas braçadas de luciahma debaixo das travesseiras?
Anna cerrava os olhos, na concentração visionai doesse periodo áureo, evocando as antigas noites de amor em que dormia deitada nos seus braços.
Os dois, encostados á janella, com as cabeças juntas, em frente ao grande rio resplandecente, sentiam a immensa saudade d'esse tempo trespassaros, dissolvendo a energia do voto inquebrantável.
Insensivelmente as suas mãos procuraram- se. Esse suave contacto estremeceu-os e mais uma vez se beijaram, á luz do sol, em face da cidade enorme e ruidosa, sem pejo d'esse puro e forte amor que de novo os enlaçava.
Foram depois ambos á alcova acordar á creança. Rosa trouxe um jarro de agoa quente e fechou as janellas. Tinha arrastado a grande bacia de folha e estendera a toalha, pousando em cima da mesa uma touca lavada, a envolta, uma camisa, uma saia com bordados.
Mal se sentiu levantar, o pequenito acordou -- e logo Anna o aconchegou ao peito, agazalhando-o com o chalé. Mas a creança, de todo desperta, estendia agora os bracinhos, com um de bico amuo, os olhitos feridos pela claridade.
-- Que foi, meu passarinho? Que foi?
A sua bocca ávida procurava o peito, tacteante, ás cegas.
-- Primeiro o banho ! Não tenha pressa que é tudo para si!
Foi preciso passeal-o emquanto Manoel ajudava Rosa a temperar o banho. Tinha largado a berrar, zangado, batendo com a mãosita fechada o peito de Anna -- e não houve meio do o acalmar, esperneando, gritando sempre.
Mas Anna então sentou-se na cadeira de verga, voltou-o nos joelhos-- e emquanto elle, de repente calado, sugava as mãositas n'uma gula cega, a mãe foi-o desapertando.
Manoel conservava-se de pé, sorrindo, olhando despir o filho. Iam cahindo no chão as flanellas, o collete, a camisa e qnando a ultima peça de roupa deslizou, amarfanhada no soalho, até Rosa, perdendo o respeito, bateu as palmas n'uma alegria.
No seu olhar fascinado havia já a adoração de uma pequenina mãe, aquillo devendo vir do mais profundo do seu corposinho delicado e magro, da fonte balbuciante da sna condição e instincto de mulher.
Nas perrices era ella, com o ar grave de quem se sabia depositaria de um thesouro, que passeava a creança e a entretinha, adormecendo-a nos braços, suportando corajosamente nos bracitos frágeis o pezo do pequenito, vaidosa de lh'o confiarem, mostrando que sabia lidar com aquellas coisas melindrosas.
Anna, que mergulhara os braços arregaçados na agoa lépida, pegou cautelosamente na creança por debaixo dos braços, beijou-lhe a cabecita e desceu-a de Víjgar, toda vergada pela cinta.
-- Vaes vêr como elle gosta!
A creança teve ainda um vagido, assustada a principio, mas logo^ sentindo o calor carinhoso da agoa, estendeu todo o corpo, abrindo muito os olhos, agitando as mãosinhas, com os pés fincados no fundo da banheira.
E até ao fim foi um patinhar de cotovia acalorada que barafusta nos regatos depois dos altos calores do meio dia. Apenas a cabecita fugia teimosamente á esponja, o que fazia rir muito Manoel, interessado por aquelle brinquedo, mergulhando as mãos na agoa, ajudando Anna a ter mão na creança.
-- Tem força ! já parece um homem grande !
-- Vae deitar um corpo! olha que pernas!
Mas os dois desataram a rir. O pequenito estendera-se mais, amparado pela mão de Anna, que o sustia pelas costas -- e um repuxo subiu da agoa, descrevendo uma curva.
-- Deixa lá -- é menos uma fralda que molha !
E ambos o tiveram quieto, rindo sempre, emquanto «lie não acabou.
Depois que a enxugaram e vestiram, a creança adormeceu sobre o peito de Anna. Rosa foi pousada no berço. Manoel tinha aberto de novo a janella -- e os dois voltaram a sentar- se em frente a Lisboa, que o sol incendiava, descendo ao longe sobre o mar. O vento cahira, apasiguando os céos. Era a primeira tarde suave d'esse inverno. N'um jardim próximo uma grande areucaria immobilisara-se, sem um tremor nas longas caudas verdes. No rio velas cabiam inertes ao longo dos mastros e pelo Aterro os fumos das chaminés subiam direitos e lentos no ar socegado e leve.
Paliaram da vinda do Queiroz e da Maria da Graça. Ficou combinado que se daria um almoço aos padrinhos no dia do baptisado.
-- Tiras os figurinos da parede e escondes a machina. Amanhã não quero vêr aqui nem um carrinho de algodão.
Ella estava por tudo, contente de lhe obedecer, mostrando os dentes em silenciosos sorrisos de approvação. Deixava-o faliar, embalada na musica da sua voz, olhando o sol cahir nas agoas, rubro, palpitante e enorme como o próprio coração do universo. Todo o horisonte estava agora ensopado de sangue e a torre de Belém erguia o perfil manuelino sobre o panno decorativo do poente. Nas altitudes janellas ílammejavam e era de uma grande doçura esse preludio de noite, na véspera de Natal, em pleno Dezembro agreste.
Rosa tinha vindo pôr a meza para o jantar e accendera o candieiro. Lisboa illuminava-se vagarosamente.
Quando os dois deixaram a janella já um vago clarão subia da cidade, por entre a penumbra onde ia abrindo uma floração de luzes.
Dentro de um copo o grande ramo de cravos rescendia e havia tangerinas de Setubal n'um prato de faiança das Caldas.
Então Manoel despediu-se, lembrado do plum-pudding e da Viscondessa.
Anna quiz acompanharo até á escada para um ultimo beijo e já na ma Manoel viu-a ainda debruçada á janella, mostrando-lhe a alegria em que elle a deixava, tão agradecida e tão feliz.
Foram como aquelle os outros dias, sem desesperos e sem lagrimas. As horas passavam preguiçosas e eguaes, de uma felicidade muito suave, quasi dormente. Anna trabalhava no vestido de baptisado, sem pressa, alargando o prazer d'aquella occupação. Ás vezes deixava a costura, pousava a agulha e o dedal, a vêr Manoel brincar com o pequerrucho.
A sua voz ganhara essa serenidade e calma que repousa no seio de todas as creaturas felizes. Parecia viver no pleno ideal de todos os seus sonhos, ouvida nos seus votos, inebriando-se com a infmita ventura inesperada; e tudo n'ella, desde a expressão ao gesto se apasiguara, na grande paz benéfica de uma quietitude máxima de êxtases. Ao dobar de uma meada de retroz ou no enfiar de uma agulha o seu gesto era lento e não trahia sequer um sobresalto. O seu olhar voltava a sêr claro e já Manoel cuidava ter morrido a flor escarlate do desejo no peito morno e branco da triste apaixonada.
N'essas tardes brandas de inverno que se seguiram, os dois viram juntos apagarem-se os derradeiros soes d'aquelle anno que occupava um tão grande logar na vida de ambos; toda a sua historia estando presa n'aqnelles doze mezes, desde os beijos de Janeiro ás lagrimas de Dezembro.
Todos os dias ao chegar, Manoel contava como um dever a occupação das horas passadas longe d'ella e como todas as noites agora ia a S. Carlos, descrevia-lhe a opera ouvida na véspera, reconstituindo ao seu imaginoso espirito de romântica as espectaculosas scenographias da Aida ou do Othello, dizendo-lhe a recepção de Radamés ou a morte de Desdemona. Anna vivia assim na intimidade d'esses amores de lenda, cheia de lastima pela sorte da loira filha do Doge, sonhando com as velhas civilisações desapparecidas. De outras vezes jogavam o dominó como dois velhos. Era de uma grande castidade o idylio que entretinham, como dois promettidos que pacientemente esperam pela noite das bodas. Só ás vezes, quando Anna desapertava o corpete para dar de mamar ao filho e descobria o branco seio entumecido de leite, Manoel sentia o desejo roçafo e punha-se a recordar o resto d'aquelle precioso corpo despresado.
Assim correram dias até á antevéspera de Reis.
Manoel recebeu n'essa tarde ao jantar um telegramma do Queiroz annunciando a chegada a Lisboa para de manhã e foi bater á porta de Anna a levar-lhe a noticia.
Encontrou-a trabalhando no vestido de baptisado. Rosa já tinha sabido e a creãnça dormia, preciosamente guardada ao fundo do berço, no calor da alcova. Logo desde a porta Manoel foi explicando ao que vinha, na pressa de aclarar a situação: aquella vinda a deshoras, fora dos hábitos.
Sosinhios, sem testemunhas, na sala obscura de que apenas o candieiro illuminava um angulo, os dois fallaram pouco, embaraçados, comprehendendo-se os receios, ambos com vergonha de evocar no silencio da casa deserta o seu desejo e o seu temor.
Anna, debruçada na machina, attenta ao vai-vem da agulha, ia correndo a fazenda sobre o plano de aço. A momentos, á pancada surda do travão, quando o volante deixava de gyrar e os pès se immobilisavam nos pedaes, Manoel aventurava uma palavra solta que ficava as mais das vezes sem resposta.
Era assim verdade que o antigo amor se conservava vivo no coração dos dois, como essas brazas que não succumbem e não se apagam, guardadas pela cinza! Nos seus olhos, quando se encontravam, a mesma anciedade palpitava e pesava-lhes aquella solidão em que se sentiam, a meio da cumplicidade da noite, abandonados um ao outro, talvez sem forças para resistir á tentação. Sempre que Manoel se voltava na cadeira, a vista ia pousar-se-lhe ao fundo da alcova aberta, na grande cama viuva, onde havia agora uma travesseira só. Já por duas vezes faltara em ir embora e das duas vezes se deixara ficar, quieto, enchendo o quarto com o fumo dos cigarros, batalhando secretamente um escrúpulo rebelde.
Gomo terminasse o carretel de linha, Anna debruçou-se mais sobre a machina, depois de erguer um pouco o para-luz. Por toda a sua nuca prodigiosa de alvura os frisados crespos do cabello reluziram com reflexos de oiro.
Manoel olhava-a, assim curvada, passando a nova linha pela azelha, seguir com ella entre os discos de pressão e enfiava na agulha, depois de lhe cortar a extremidade com os dentes e humedecel'a nos beiços.
Agora, o movimento a que obrigava a costura colava-lhe a saia á perua. Manoel, a cada movimento do pè, seguia o ajustar da fazenda, moldando desde o quadril ao joelho uma linha de estatua que a despia.
E pensando no crime de profanar a castidade d'aquella mãe que creava o seu filho e na torpeza d'esse amor sem amanhã, levantou-se, n'uma determinação brusca de sahir.
-- Ficas assim prevenida : tens cá pelas seis horas a Maria da Graça.
Anna ergueu os olhos, de repente pallida :
-- Já vaes?
-- É tarde. Tu mesmo precisas de deitar-te, tens que te levantar amanhã cedo.
-- Isso era bom se tivesse somno!
E n'uma voz que o pudor não tornava abertamente implorativa :
-- Fica mais um instante!
Mas Manoel resistiu á tentação d'essa voz carregada de amor, que promettia caricias.
-- Tenho que ir. Adeus.
Ella esperou sentada e immovel o beijo de despedida que descia sobre a sua testa abrasada e só depois se levantou, muito pallida, de olhos baixos, pousando lentamente o trabalho na me'i;a da costura.
-- Espera : vou abrir-te a porta e allumiar-te a escada.
Seguiu atraz d'elle, silenciosa, erguendo o candieiro; e quando para o ultimo beijo, já no patamar, se vergou n'um incontido gesto de abandono, Manoel, assustado, advertiu:
-- Tem cuidado com o candieiro: é perigoso!
-- Que importa?
-- Importa-me a mim. Pôde haver um incêndio...
-- Tens razão, não te zangues...
No ultimo lance de escadas, á vista da porta, Manoel parou, voltando-se para aquella pallida luz que tremia lá em cima :
-- Já não è preciso: vejo bem. Até amanhã!
Anna não respondeu. Ouviu-o bater a porta com força. Ficou ainda um momento no patamar, encostada ao corrimão, na vaga esperança de que elle voltaria.
Uma trave rangeu no escuro. O tropear da patrulha bateu os lagedos da calçada. Ella então acordou da sua esperança, desenganada, a garganta travada de soluços. E até muito tarde, n'essa noite, Anna chorou, sentada na cama, vendo o filho dormir.
IV
o padre, diante do gavetão aberto onde reluziam brocados de casulas e franjas de oiro de pontificaes voltou-se para o padrinho a perguntar :
-- O serviço rico ou o pobre?
O Queiroz sorriu da pergunta.
-- Voto pelo rico.
Então o sacristão, já de sobrepeliz, estendeu e desdobrou lentamente sobre a banqueta a vasta capa de asperges.
Rosa, agarrada ás saias de Anua, sentara-se n'um banco. Maria da Graça passeava a creança. Todas as vezes, ao passar em frente ao grande espelho do vestiário, olhava-se, muito garrida na sua blusa de seda rajada de azul.
-- Tu a chegares a Coimbra e a pores esses farrapos no fundo do bahu, prevenira logo o Queiroz, enfurecido, ao vera assim mudada, de senhora, a cabeça enrodilhada na mantilha preta, os pês entalados em sapatos de verniz. Esse corpo que elle apregoava ser o ultimo vestígio da edade áurea da mulher branca apparecia-lhe deformado pelo espartilho, com os quadiis deslisando n'uma linha geométrica de parábola, os seios juntos, sem forma, deshumanisando o busto da mulher.
Elle viera com o capote de cavallaria, com a sua gola de pelle de lontra e fechos de prata; recusara a hospedagem de Manoel e descera no hotel Vizeu, não querendo separar-se da Maria da Graça. Para os dois dias de capital trouxera um bahu de folha com roupa branca, a sacca da guitarra e uma valsa -- Beijo de Adens -- composição de um musico de Braga, que o allucinava por esse tempo. Vinham também no bahu uma dúzia de maçãs camoesas e os presentes para o afilhado -- um cordão de oiro e uma figa de azeviche.
Tomando agora Manoel de parte, o Queiroz indignava-se, repetindo a pergunta do padre -- o serviço rico ou o pobre ? E queria saber se iam mudar a agua ao baptistério porque se dava mais a meia-libra.
-- Caramba ! Não é o dinheiro, que por mim atè se fazia um baptisado de príncipe ao petiz ! Coisas de Lisboa ! E ainda isto ha de ser ás escondidas, para ninguém saber: tu vens baptisar o filho como quem vae roubar uma propriedade !
Tinha-se exaltado, abrindo os braços compridos, elevando a voz.
-- Sim, porque a verdade é que tu vens baptisar o pequeno como quem commette um crime : -- ás escondidas... Bolas ! A verdade é esta.
Mas cahiu em si, eramudeceu, relanceando os olhos em redor, já com medo de que o tivessem ouvido.
Maria da Graça passeava sempre o afilhado, chilreando pss de quem falia a passarinhos. Anna, cahida no banco, balouçava o pè, fazia pregas na saia.
Queiroz empurrou então Manoel mais para o canto o dando um repellão ao capote :
-- É preciso fazer isto alegre, homem de Deus ! Não estamos n'um enterro. A pequena está aqui está a chorar. Só nos faltava agora a scena de lagrimas!
Desde pela manhã que vivia inquieto n^aquella atmosphera turva de tristeza, com accessos de compaixão exaltada em frente á pallidez de victima d'essa pobre mãe que ia baplisar um filho.
E sem esperar a resposta de Manoel, veio sentar-se no banco á beira de Anna.
-- Enxugue-me esses olhos! Não è caso para lagrimas. Depois tudo ha de mudar; havemos de ir todos no verão ao Douro, á minha quinta. Grie-me esse pequeno rijo como um pinheiro ! Até faz mal á creança esse chorar de todo o dia... Temos que o fazer doutor, pois então ! -- um rapaz forte e lindo que hão de ficar n'elle os olhos das raparigas.
Anna erguia os olhos, agradecendo mudamente, e um sori-iso falso roçava-lhe a bocca, doloroso á força de artificial e de forçado.
Mas Queiroz levantou-se, percebendo a inutilidade do seu conforto, cheio de um invencível respeito por aquella dôr; e voltou a desabafar com Manoel.
-- Então ?
-- Então é estúpida essa tristeza que a mata! A culpa é tua, só tua, vê lá se ouves! Já a creança começa a soffrer com essa tragedia inútil. Basta vel-a, basta olhar para ella !
O sacristão pediu silencio, chamou o padrinho; e Manoel nem teve tempo de perguntar e de saber.
Maria da Graça approximara-se do padre com o pequeno ao colo. Anna e Rosa tinham-se erguido também.
O padre, de costas para a banqueta do vestiário, proferiu as primeiras palavras do ritual :
-- Qui petis ab Ecclésia Dei?
Anna viera encostar-se ao braço de Manoel, segurando-lhe a mão, com o sorriso melancholico e encantado de uma pessoa que sonha.
Agora o padre exconjurava os espirites immundos do corposinho branco.
-- Exi ab eo, immimde spiritus, et da locum Spirittii Sancto Paráclito.
Soprando três vezes na face da creança fez-lhe com o pollegar o signal da cruz na testa e no peito e orou ainda coisas confusas, impondo-lhe a mão sobre a cabeça loira. Depois tirou uma pitada de sal de uma patena de prata ; e o seu braço, de sob o damasco franjado da capa, estendeu-se devotamente, pousando o sal symbohco na bocca da creança. A sua voz feminil, acostumada aos acompanhamentos de órgão, clevou-se mais rythmica e clara :
-- Accipe salem sapientice ; propitiaf/io sit tibi in vitam alternam...
Maria da Graça embalava o pequenito, que recomeçara a chorar. O sacristão tinha aberto a porta da egreja. Estavam já accesas as velas no altar mór e em toda a nave deserta apenas um raio de sol descido da clarabóia relusia no cobre de uma lâmpada.
Atravessaram todos a egreja fria, Maria da Graça na frente, depois o padre, Manoel e Anna no fira. Anna ia dizendo a felicidade d'esse instante, com uma voz velada e vagarosa, como quando se segue para alem das palavras que se pronunciam um pensamento que se não exprime.
Terminado o credo, o padre começou os exorcismos. Anna teve que ajudar a madrinha a desapertar o vestido da creança e descobrir-lhe o peito. Logo que foi ungida Queiroz adeantou-se para suster também nos braços o afilhado, emquanto o padre, enchendo a concha de agoa santa, por três vezes a infundiu sobre a cabecita loira.
-- Ego te baptiso in nomine Patris, et Filie, et Spiritus Sancti. Amen.
O sacristão apagou as velas, correu os cadeados da pia de baptismo, fechou a grade de ferro ; e de novo todos atravessaram a nave fria até ao altar do Santíssimo.
-- Dè-lhe de mamar: está cheio de fome, coitadinho !
Maria da Graça beijou a creança, pousou-a com cautela nos braços da mãe.
Queiroz foi beijafa também, com mil cuidados, para não magoar aquella coisinha frágil; e logo se safou para a sacristia a pagar o sacramento, mandar chamar o carro que esperava fora, na rua.
De uma torre cabiam as doze badaladas do meio dia. Ao longe outros bronzes soavam, batidos a martello. Quando se metteram no trem, a creança adormecera sobre o peito de Anna, apertando na mãosita a medalha de ouro da corrente. Queiroz contou anecdotas, fallou todo o caminho. Houve mesmo um momento em que todos riram, conquistados por aquella alegria ruidosa.
Elle, com todo o seu sentimentalismo, era um forte e um saudável, vendo as coisas de frente, serenamente, e nunca tendo soffrido o contagio dissolvente de um preconceito de classe. Creado ás soltas no Douro, entre as lavouras, ouvira apenas de longe os rumores escandalosos de uma sociedade contaminada que ia lentamente empestando o paiz de purulencia. Ficara-lhe a tristeza romântica de sentir perdido o mais bello dos reinos, aureolado de legendas e de sol. Desde que chegara, Manoel ouvia-lhe phrases coléricas contra Lisboa, a absorvente e a devassa, a grande responsável e a grande criminosa.
Mas como era linda, apesar de tudo, essa Lisboa, e como elle se extasiava, querendo saber que torre era aquella, o nome d'aquella praça, de uma povoação da outra Banda aninhada entre pinhaes, de um zimbório emergindo do um amontoado de casaria !
Pela portinhola aberta seguia trechos fugitivos da cidade -- uma nesga de rio cheia de velas brancas ; o rebrilhar sanguíneo dos telhados ; frontarias de mármore resplandecendo, como restos de uma cidade grega incomparável; o passar onduloso das varinas; barqueiros dormindo ao sol no cães; pregões cantando ; e por toda a parte, balouçando sobre os muros, ensombrando jardins e praças, as palmeiras empenachando a cidade com uma graça asiática de conquistadora de outros mundos.
Emquanto elle, creatura de sol e horisontes, sentia poisar a alma maravilhada em toda a luz d^esses espaços para onde se erguiam em brancos gestos as torres e as cúpulas de mármore, Manoel ia tristonho como á volta de um enterro. Anna trazia os olhos embaciados e só Maria da Graça se interessava á sua alegria, com espantos de aldean em frente aos vapores atracados ao cães, um pouco atordoada pelo ruido e muito dorida dos pés, apertados nos sapatos novos.
Chegados a casa a alegria ruidosa do Queiroz dominou outra vez. A pequenada do guarda-livros veio dar os parabéns. Anna distribuiu amêndoas, risonha, deixando-se levar na corrente d'aquella alegria; e emquanto não se servia o almoço, Queiroz tocou o fado corrido na guitarra, que Rosa tinha ido pedir emprestada ao Saraiva penhorista.
Eslava um dia muito claro de sol e juntou-se gente no passeio a ouvir.
Tinha corrido na rua a noticia do baptisado e mesmo a estanqueira onde Manoel costumava a comprar cigarros -- a D. Ermelinda -- mandou um cartucho de rebuçados de avenca.
O almoço chegou ao fim sem sombra de tristeza ; abriu-se uma garrafa de champagne, íizeram-se brindes. O Queiroz fallou de positivismo e celebrou a força physica. Muito musculo e algum phosphoro e temos homem! -- dissera, esmurrando a mesa com o punho fechado.
Como padrinho e como medico desejava-lhe um corpo desempenado e uma cabeça avessa a metaphysicas.
Fallou depois na ida ao Douro, em Agosto, para as nozes, e que se haviam de arranjar foguetes e TeDeum. Vinham depois telegrammas para o Século, o que lhes daria uma celebridade succulenta !
-- Sabes de lá deputado, ó Manoel! Arranjas-me depois uma estrada para a quinta.
Tocou-se mais um bocado de guitarra e a conversa cahiu. Rosa tinha levantado a mesa e o dia escurecera, annunciando chuva depois da manhã clara de sol.
Anna ia de novo entristecendo. N'um silencio a sua voz elevou-se, tremula.
-- Sempre vão hoje para Coimbra ?
Manoel respondeu :
-- Ás oito e meia. É preciso.
Os olhos perturbaram-se-lhe dentro das orbitas e emquanto a sua bocca continuava a sorrir, o seu olhar obscurecia-se como um pântano revolto.
Queiroz arrastou então a cadeira.
-- Prometteu-me que não chorava mais !
Anna ergueu a cabeça, onde, entre uma expressão de tristeza e de bondade, dominava esse orgulho revelador dos que soíTreram muito.
-- Porque hei de eu chorar?
-- Isso pergunto eu. A cada lagrima que lhe mostra è um pouco de energia que lhe tira. Ai, comadre, nada de lagrimas ! Deixe-o, formar. Depois, se fôr preciso, eu cá venho para a gritaria e trago até o bacamarte !
Manoel, vendo-a pallida, torcendo as mãos no regaço, veio em seu auxilio, commovido, com lagrimas nos olhos, dando o máo exemplo.
-- Ella não chora ; promette !
Âuna balanceou a cabeça, emmudecida. Depois, levantou-se :
-- Vão sendo horas de ir para casa, Manoel. Sempre é o ultimo dia; tua mãe pode estranhar...
Queiroz applaudiu a ideia, apressou a amigo, foi-lhe buscar o chapèo e a bengala. Deixava Maria da Graça a fazer companhia e vinham depois de jantar para despedir-se.
E mal a porta bateu, com o mesmo gesto de riso contrafeito com que atirara um beijo a Manoel, Anna voltou-se toda em lagrimas.
-- Custa muito aos vinte annos, Maria ! Na vida só tive alegrias com elle ! Que lhe fazia levar-me para Coimbra? É porque não gosta de mim ! Eu bem vejo que elle já me não quer ! Era melhor dizel-o, tirar-me d'este cuidado e d'esta afflição. O que é meu pouco é: depressa arranjava o bahu e ia-me embora. A casa è d'elle e a rua é minha. Que mal faria eu a Deus?
Cahira n'uma cadeira, chorando sempre, obstinada, com a mão aberta na cabeça em desvairadas altitudes de desgraça. E sempre, agora, aquelle grito de viuvez lhe sobresaltava o peito, no tresvario d'essa duvida em que se debatia, clamando que Manoel a não amava mais, a não queria. Era uma dôr profunda como de um amor nupcial dilacerado, a peleja physica d' um corpo novo que se não resigna a padecer e a desistir, a revolta dorida de uma carne de amor condemnada a envelhecer sem beijos, toda a sua mocidade que se queixava em desesperadas lastimas.
-- Talvez goste de outra ! Está para ahi em Coimbra a viver com alguma !
Por mais que Maria da Graça tentasse consolal-a, elia insistia, com abaladas de ciúme e accessos de raiva, chorando alto e gemendo. Foi aquillo descrescendo pela tarde adeante atè morrer n'uma melancholia intensa de que impossível foi á outra demovera. Ficava sem fallar, balanceando o filho nos joelhos, sentada á janella, vendo acabar o dia.
Piedosamente, para a acalmar, Maria da Graça dissera a Vida trivial de Manoel lá em Coimbra, sosinho no quarto do hotel, sem alegrias e sem amigos, vivendo no desconforto das saudades que por ella sentia -- e que todo o seu desejo era levaFa, passar o ultimo anno de Coimbra á sua beira. Mas esses confortos apenas conseguiam exasperar a sua dôr sem remédio. A uma nova tentativa de Maria da Graça, Anua levantou-se, quasi aggressiva.
-- Parece que te encommendaram o recado ! Hei de querer vêr o que tu fazes quando lá o teu te deixar !
Maria da Graça ergueu vagarosamente os olhos ennevoados, teve um grande suspiro que dilatou o seu peito redondo, e por muito tempo ficaram ambas quietas e caladas, sem ousarem íitar-se, como duas inimigas.
Deviam ser já seis horas. Parecia o sol despentear pelo céo uma revolta cabelleira d'oiro. Rosa acabou de pôr a mesa em bicos de pés para não acordar o pequenito e trouxe de dentro o candieiro já acceso.
Anna então levantou-se, deu dois passos na sala em caminho da mesa.
Gomo a outia permanecesse sentada e quieta, pareceu luctar durante momentos e retrocedeu de vagar, taciturna, com as mão batendo as pernas.
-- Maria da Graça !
-- Ahn?
Vergou-se toda a um assomo de remorso. As grandes linhas duras da pobre face deliram n'uma rara expressão de humilhação e de arrependimento.
-- Perdoa... Pelo amor que lhe tens, perdôa-me... Tinha-a erguido n'um abraço carinhoso de irmã, encostando ao peito a sua face em lagrimas.
-- Vá, então que é isso? Elle deixa-te lá, doidinha!
Maria da Graça ergueu a cabeça irrequieta e medrosa, com um geito de águia real no pescoço moreno e fino. Anna parecia-lhe mais pallida, de olhos enxutos, muito outra, a testa pisada por esse traço de anniquilamento que devasta das têmporas ao queixo as creaturas de mal comsigo mesmas. Nunca a vira assim, fallando-lhe como a uma creança assustadiça, com essa piedade risonha e maternal, entre compadecida e amargurada, de que usam os que soffreram muito para as pequenas dores dos que são felizes.
-- Não se pensa mais n'isso. E agora dize lá se eu não tenho razões para chorar...
Passava-lhe as brancas mãos pelos cabellos em mimos tutellares de irmã mais velha e Maria da Graça ficava emmudecida, com o olhar timido de uma subalterna em frente á heroicidade da outra, com altitudes de ajoelhar ao abraçal-a pelo peito.
Mas de agora, no coração da pobre pousara o atormentado receio do desamparo ; e por duas vezes, n'esse jantar silencioso de amantes tristes, ella teve de ir buscar ao bolso da saia o lenço bordado -- ura presente do Queiroz -- para limpar os magnificos olhos embaciados de lagrimas, á lembrança, -- coitadita! -- de que elle partiria também um dia com a guitarra, sem olhar para traz...
Ao aproximar-se a hora da partida, Anna voltou a succumbir. Uma crise de choro aninhou-a a um canto. Debalde Maria da Graça e Rosa tentaram levantara, exhortando-a com boas razões carinhosas e amigas. Só o tocar da campainha, que lhe annunciava Manoel, a pôz em pé quasi de um salto, âs mãos erguidas para o céo, clamando entre lagrimas: -- Santa Maria ! Minha Nossa Senhora, valei-me !
Quasi ao mesmo tempo a voz de Queiroz varou pelo corredor :
-- Então vamos lá a esse abraço, ó comadre !
O seu grande vulto surgiu á porta, envolto na grande capa de cavallaria, estacado de súbito na surpresa de dar com ellas juntas no mesmo abraço de choro, murmurando lamurias, cingidas no vão da janella que uma brancura de paysagem lunar illuminava.
Manoel, que se demorara em baixo a fallar com o cocheiro, appareceu, hesitando já, n'um presentimento brusco; e Anna, ao vel-o entnr, rompeu no seu desvairado grito de supplica, juntando as mãos, saccudindo a cabeça onde se desfaziam tranças pretas.
Foi preciso deixal'a serenar, sentada na cadeira de verga, em frente da janella aberta, sobre a noite de inverno subitamente agreste.
Manoel não achava palavras, vendo-a tremer nos braços como um arbusto, ensopando-lhe o hombro de silenciosas lagrimas. Mudamente ella despedira-se da Maria da Graça e do Queiroz, com a tristeza de um apartamento eterno; e quando os dois sahiram para o corredor, Manoel voltou a fazer-lhe a promessa de uma grande ventura, renovando a esperança de converter em realidade esse vaporoso sonho de Coimbra -- a vida a dois, ineíTavel e dulcíssima, adormecendo todas as noites a seu lado, acordando de manhã á sua beira.
-- Fica até amanhã! Não te vás embora já. Pelo nosso filho te peço : fica hoje commigo !
-- Não, é impossível.
Aninhara-a no colo, beijando-lhe os cabellos. E ella sempre, n'uma supplica doce e triste, apertando-o ao peito, envolvendo-o de calor, suspendendo-lhe ao pescoço todo o seu corpo juvenil :
-- Fica, fica até amanhã !
-- Depois, Anna... Para depois, quando eu voltar ...
-- E tu não me deixas ? Dize que nunca me deixas !
Chorava que parecia morrer, a cabeça vergada, arqueando o pescoço, procurando-lhe a bocca.
-- Um beijo ainda, o ultimo, Manoel!
E era um beijo que não findava mais, como se ella quizesse beber na idolatria d'essa bocca caricias que bastassem para o longo praso de abstinência a que elle a condemnava indo-se embora.
Queiroz, impaciente, senlia-se conquistar pela commoção d'aquelie fim de acto, contaminado pelo soluçar altlictivo de Maria da Graça que se lhe agarrara ao braço.
A voz de An na chegava de dentro n'um murmúrio. Houve um instante em que ess,a voz implorativa cresceu e veio até elle, tão dolorosa que as palavras pareciam cahir da sua bocca em lagrimas. Tremulo, Queiroz puxou mais o capote para os hombros, á escuta. Devia ser atraz da porta, no desmanchar do ultimo abraço, e aquillo trespassava-o com uma dôr fulgurante de piedade. Levou então Maria da Graça para a escada, fugido a esse penoso arquejar de creatura ferida, todo o grande corpo estremecido por um levante de compaixão que lhe humedecia os olhos. Pouco depois Manoel appareceu, ainda abraçado a Anna, e Queiroz, sentindo que ia chorar alli como um adolescente se aquillo durava cinco minutos mais, advertiu, brusco, descendo o primeiro degráo :
-- Falta só meia hora ; perdemos o comboio.
-- Elle vae -- gemeu Anna, desprendendo-se. -- Adeus, Manoel, adeus !... Adeus, senhor Queiroz! Maria da Graça, adeus ! Escrevam sempre, dêem noticias.. Não se esqueçam de mim !
Sem voltar a cabeça os dois começaram a descer precipitadamente as escadas.
Encostada á parede, as mãos na face, Anna esteve ouvindo até á ultima as passadas nos degráos.
Sosinha como na outra noite em que o vira partir, fugindo á tentação do seu amor, chorava silenciosamente, com grandes arquejos de peito.
Bons tempos idos em que ella, eleita por uma grande paixão, prestigiada por um grande desejo, o tinha todas as noites livres a seu lado, sentindo o orgulho de ser a fonte onde elle vinha matar a sua inalterável sede de prazer !
Esteve alli tempos esquecidos no patamar ás escuras. Depois pareceu acordar, voltou para dentro, encostada à parede, silenciosa. Foi sentar-se na cama, debruçada sobre as costas do leito, com a cabeça nas mãos, alheada, n'essa pungente melancholia que no hospital immobilisa a face dos perdidos. Apenas mechanicamente, no velho habito maternal, o seu pé pequenito e calçado de preto ia imprimindo um lento movimento oscillatorio ao berço.
Esteve assim calada e quieta muito tempo, sem pôr sentido no somno desassocegado da creança. Findou por levantar-se, absorta, retirando a cara de entre as mãos. De vagar, arrastando os pés, puxou a cadeira de verga para perto da janella, abriu as adufas, levantou mais a vidraça sobre a noite de inverno.
A lua subia n'um disco branco, arrastando lençóes de luz nos trechos elevados da cidade, sulcando o rio de correntes luminosas, plantadas de mastros. Grandes massas de nuvens subiam os céos, vindas do sul, silenciosas e turvas, alagando de sombra os espaços, apagando o clarão dos astros.
O oceano onduloso dos telhados alastrava, erguendo ondas de sombra, desenrolando infmdavelmente no grande ermo ainda luarisado a sobreposição dos planos, fundidos ao longe no mesmo lago profundo de negrume, estampando no cèo, de uma côr de prata oxydada, as explanadas do Castello e as duas torres brancas de S. Vicente. Ao longe, a Baixa suspendia no escuro um vago clarão e no Aterro, sobre a fabrica de gaz, poisava o reflexo róseo de um brazeiro. Alem, em terras da Outra Banda, tremiam lumes distanciados, como de esparsos cortejos funerários. De entre o amontoado de sombras o perfil de um edifício rompia a espaços, emergindo da grande massa compacta. Fachadas desaggregavam-se, isoladas^ de janellas resplandecendo de luzes interiores e illuminações iam rodeando a espaços como colares o busto negro de um bairro. O Aterro estendia duas avenidas de luzes que se iam perder ao longe em uma nebulosa. Constellações surgiam, marcando as praças, os largos, scintillando entre manchas oscillantes de arvoredos e no Tejo outras luzes ardiam, pousadas nas vergas dos navios, como luminosas aves migradôras.
Anua puzera os cotovellos no peitoril, a cabeça nas mãos e olhava. Ás vezes, pela sua face corriam tremuras á evocação de uma amargura maior. Por toda a parte onde alcançava a sua memoria vertiam fontes inexhauriveis de lagrimas. Por todo o tempo de infância, confuso e sinistro, apenas passava a claridade da mãe; e o seu coração magoado abria-se soífregamente á essa doce memoria, lembrando as caricias das queridas mãos emaciadas de que herdara as mesmas phalanges longas e os mesmos dedos flexíveis. Ouvira depois dizer á tia que a mãe era filha de um fidalgo e ficara-lhe sempre muito vaga, como uma lenda, essa historia de amor de que ella era ainda uma consequência, revivendo talvez por um fatalismo de herança o crime d'essa avó. Já a mãe tinha o seu orgulho calado de honesta, o mesmo virtuoso instincto de independência, sabendo que o trabalho a matava 6 trabalhando sempre. Podia ainda evocal-a em todo o fanalismo da sua saudade e revefa, debruçada sobre a taboa de brunir, o peito a estoirar de tosse a cada esforço, os olhos refulgindo entre olheiras pisadas e ainda linda, com a sua elegíaca figura de plebeia com finas maus de priuceza... Tornava a ver a casa pobre da viella do Tijolo, a alcova sem luz onde ella morrera, vomitando sangue pela bocca. Do pae vinham-lhe apenas nítidas, gravadas no espirito com pânicos de creança, lembranças trágicas de batalhas -- a mãe estendida no chão, o homem partindo-lhe nas costas uma cadeira ou esmurrando-lhe a cabeça na banca da cosinha. Ainda era pequena quando elle morreu de um ataque. Depois, até á moite da mãe, as duas tinham vivido juntas, quietas, na mesma casa evocadora de um horrível passado, sem um objecto que não lembrasse o morto: as suas fúrias, os seus vómitos, os seus delírios brutaes de caceteiro, as noites em que entrava aos bordos, com a sede má do espancar a companheira. E nunca lhe ouvira uma palavra mais áspera para esse homem ruim que a desgraçara. Todos os annos a levava ao cemitério, onde elle tinha um numero e uma cova. Ao fallar d'elle a sua falla era sempre indulgente e benévola. Se o não tivesse conhecido teria aprendido a amal-o com um piedoso culto, tão amorosamente ella fallava d'elle. Tinha sido bem mais infeliz e bem mais desgraçada aquella pobre mãe, nunca tendo amado em toda a sua vida, pobre animal desprezado e batido que nunca soubera rir. Casada, dando-se n'uma obediência absoluta de esposa que cumpre o seu dever, entregando a belleza, como um tributo, nas mãos brutaes do seu homem, nunca uma ideia de revolta a tivera de pè, padecendo até ao fim, deixando cumprir a sua áspera sorte. Quando o marido se puzera de amores com uma varina, apenas o ultrage lhe marcara na vida um período de maior trabalho e de maior fadiga, obrigada a accudir a todas as despezas, pôr comida na meza duas vezes no dia, pagar o aluguer da casa em todos os semestres. Depois de cinco annos sem ter filhos Anna nascera, gerada ao acaso n'uma noite talvez do arrependimento e de lagrimas, com os restos engeitados pela outra e a creança mamou um leite azedado de choro, filtrado de uma viva fonte de amargura.
Aos cinco annos, quando o pae morreu de um ataque, Anna lembrava-se de o vêr sahir n'um caixão para o cemitério, acompanhado pela mãe, que ia chorando, toda de preto, com um vestido que lhe tinha emprestado uma visinha.
Revolvendo essas lembranças de miséria Anna olhava a cidade atropelada na sombra, como montões de escombros fumegantes sujando o cèo de famo.
Erguera-se um vento rijo que balouçava violentamente ramos seccos de arvores. Em frente, no jardim, a araucária tremia, batendo as longas caudas verdes, como um bando de pavões em agonia.
As nuvens tinham toldado inteiramente os cèos e toda a cidade era agora uma uniforme mancha negra semeada de luzes.
O que ella soffrera ainda. Deus santo ! recolhida pela tia depois da morte da mãe, entrando como aprendiz de costureira n'um atelier de modista, conservada por muito tempo inviolada e pura, na dominação do exemplo admirável da mãe, defendendo a virgindade como um thesouro, incorruptível como uma estatua. É então, passados quatro annos de esforço e de virtude, que um primeiro homem lhe vem fallar de amor, acenar á sosinha com a esperança de um lar.
E ainda do fundo da sua almasinha honesta uma indignação e uma vergonha rompiam como chammas assopradas, ao recordar esse instante de vida que para sempre decidira da sua sorte, enganada como qualquer rapariga sem brio e sem pudor. Passa vam-lhe na memoria os dias de hospital, o namoro de um estudante na enfermaria, os interrogatórios da policia, o riso hostil das companheiras e ao termo de tanto soífrimento o amor de Manoel ...
Agora, os nevoeiros deslocavam-se, esboroando-se, e como batidas por um reflector eléctrico, duas encostas surgiram na treva, scenographicas, retocadas pelo luar. Á distancia todo o morro do castello ganhava relevo no escuro, projectando os contornos das casarias na refulgencia dos relâmpagos. A meio da escuridão que crescia do mar, o pharol do Bugio proseguia nas suas lentas rotações de astro vigilante, com clarões e eclipses. Na Trafaria, á beira-mar, luzes quietas scintillavam como flores aquáticas boiando na corrente. No lazareto outraá luzes ardiam, suspensas como lâmpadas. Relampagueava sempre. Corriam no cèo fuliginoso grandes rios de sangue e as nuvens batiam de novo azas sobre o luaceiro branco. Toda a Banda de Alem se desenrolava a espaços como um panno de fundo, desde o Barreiro aos areaes, com a mancha azebre dos pinheiros e a lanugem das vegetações esvoaçando nos clarões eléctricos. Encostas saibrentas escorriam sangueiras de massacre e multidões de coifas brancas passavam com voejos de gaivotas para se 5umir na treva de repente.
Era toda a historia do seu amor que ia passando, desde que ella se entregara no atordoamento de uma primeira paixão absorvente e profunda, renunciando a esse duro voto de abstinência a que a vergonha da falta irreparável encaminhara a sua consciência offendida e o seu coração ultrajado. E como tinham sido de uma felicidade inalterável e perfeita os cinco mezes d'amor doesse fervoroso idylio! Como a tinham estremecido de prazer os primeiros beijos de Manoel e com que facilidade se deixara conquistar, n'uma embriaguez infinita, entregue e succumbida, renovando a legenda passional da avó, de cujo crime de amor ella nascera ! Fôra-lhe tão doce deixar-se ir, obedecendo ao seu desejo como uma bandeira ao vento!
E agora, que a abandonavam com um filho nos braços, sentia ainda viver dentro de si a necessidade imperiosa d'esse amor, pelo destino que lhe parecia encarregado de vingar a desgraça das antepassadas -- toda essa carne de dor de que ella nascera com uma missão inconsciente de desforra. Não; não se podia resignar. Ha qunsi um anuo que se sentia morrer na falta d"esse amor, com rebelliões de amante desprezada, estiolando-se de desejo como uma fíòr sem rega. O seu corpo morria de saudades por esse homem que d'antes se punha de joelhos para fallar-lhe e lhe beijava os pés como a uma santa. Porque fôi-a elle embora, desconsolado e farto, se tinha ainda tantos beijos, tantos abraços, tantos suspiros para lhe dar?
Revoltava-se, ella que sempre fora passiva como um objecto, exaltada pelos grandes relâmpagos, sob os immensos cèos enfurecidos. Chorava, arquejando, a meio de grandes soluços lamentosos; e na sua pobre face decomposta escorriam lagrimas. Aos poucos essa soberba resistência desesperada cahiu como um estandarte abandonado pelos ventos e Anna chorou longamente, lentamente, com lagrimas fatigadas que lhe desciam a face n'um grande vagar. Apetecia-lhe morrer, perdido esse valido instincto que nos tempos de maior tristeza a fazia contemplar embevecida o sol e sonhar com o ideal de uma janella abrindo sobre os espaços.
Mais uma vez, como as creaturas que se vão matar, relanceou toda a sua longa vida de martyrios. Os olhos embaciaram-se.-lhe, as mãos tiveram gestos muito lentos de adotação, o queixo começou a bater-lhe como d'uma velhinha commovida. Ah ! é que ella precisava de viver para o seu filho!
As ultimas palavras de Manoel -- aquella vaga promessa de felicidade que elle pousara em despedida na sua alma alflicta, como um bálsamo -- alagava-a de novo com uma maré de esperança. Na sua bocca muito pallida esboçava-se um sorriso de gratidão por esse futuro que elle lhe mostrara ao fundo da sua magoa como o horisonte longínquo, vago e fluido, de uma paysagem ideal.
Gotas pesadas de chuva começavam a tombar, desnorteadas pelo vento. Ainda por instantes o calor eléctrico da noite bebeu nos ares o aguaceiro, mas as nuvens corriam agora em manadas, vindas do mar, o ventre cheio de ondas, com galopes de monstros aterrados. Um trovão rolou pesadamente sobre a casa, estremecendo os muros, e emfim a chuva verteu, copiosa e pesada, n'um restolho tremendo sobre Lisboa. Desde longe vinha o ruido surdo do tombar do diluvio entre o sibilar do vento e os rumores de torrentes nos boeiros.
Impassível á agoa que lhe alagava as saias e humedecia a face, ao vento que lhe despenteava os cabellos, Anua deixava-se encantar no lindo sonho de crear aquelle filho que era d^elle, proteger esse resto vivo de um passado para sempre morto, e uma tal intensidade de fè a elevava, que de novo a crença de dias felizes pousava na sua alma aberta e absorta.
Mas um gemido endireitou-a, inquieta, o ouvido á escuta.
-- Acordou com a trovoada, coitadinho!
Saccudiu as saias ensopadas, deitou para traz, n'um movimento de cabeça, os cabellos desfeitos. Teve que riscar ainda um ptiosphoro para accender a vela apagada, e ia murmurando, emquanto abria a porta da alcova :
-- Que é isso, meu pequenino? Socega, vou já... Estás cheio de fome, meu amor, não é?
As mãos tremiam-lhe, transidas de frio. De costas para o berço accendeu a vela do castiçal ; e ia buscar uma saia para mudar, mas ao voltar-se ficou pregada no soalho, estarrecida, de olhos desmesuradamente abertos.
O filho, no berço, estava torcido como um tronco, com os braços rigidos, o pescoço hirto, a cabeça cabida para o lado, de olhos estrabicos, immoveis.
-- Morto! -- gritou ella desesperadamente -- e atirou-se para o berço, esguedelhada, aos berros. Com a cabeça perdida, n'um tremor convulso, ergueu a creancinha nos braços e logo a deixou cahir, apavorada, sentindo-a enteiriçada, com olhos brancos de cadáver.
-- Virgem santa accudi-me !
Tinha-se erguido sobre os joelhos, enterrando as mãos nos cabellos desfeitos, sem forças para se levantar e chamar gente. Tacteando a cama, fazia esforços desesperados para se pôr de pè, mas não sabia, e arrastava os joelhos no soalho, em saccões violentos de aleijada.
A creança, um instante quieta, voltava a torcer-se, os olhos vesgos rolando perdidos nas orbitas violáceas. Parecia que mãos invisíveis a desarticulavam e estorciam, vergando-lhe a cabecita, calcando-lhe a face sobre o hombro, ferozmente.
Um terror pânico apossou-se de Anua. A sua lamuria de louca, entrevada de pavor, continuava, com engulhos extertorantes de soluços.
-- Váe morrer, meu Deus ! Virgem santa accudime!
Os seus braços trementes roçaram a creança, passearam aterrados sobre o pequenino corpo convulso, e n'um supremo esforço, pondo-se a pé, rasgando a saia, correu á sala, investiu pelo corredor, tresvairada, soluçando e gritando; atirou- se contra a porta e enfiou pelo patamar. Agarrada ao corrimão, poz-se a gritar em longos haustos, clamando o seu desesperada brado de alarmo.
-- Soccorro ! Soccorro !
O vento em redemoinho varou pelo corredor, sibilando, batendo com uma vidraça partida.
Ella, feria a garganta em esganiçados clamores, gritando sempre.
-- Accudam ! Acendam ! Soccorro ! Quem me accode !
E no terror de o deixar morrer sosinho voltou como uma ébria, aos encontrões ás paredes, deixou-se cahir no clião perto do berço, avançando os braços :
-- Meu filho ! Meu rico filho ! Olha que matas tua mãe, meu filho ! Ai ! minha Nossa Senhora ! Nossa Senhora valei-me!
Foi então que o guarda-livros appareceu, em chinellos, embrulhado n'um casacão.
Anua, mal o viu, foi para elle, gesticulando como uma doida.
-- Um medico ! Vá-me chamar um medico ao posto, por amor de Deus ! Depressa ! depressa que elle. morre ! Corra, vá depressa !
O viuvo abria uns olhos de assombro, titubiante, e sahiu aos arrecuos, abafando o pescoço magro na gola do capote.
A creança parecia agora socegar, immobilisada, com as pálpebras cabidas. Anna ajoelhara outra vez e embalava o berço, lavada em lagrimas, recitando destroços de orações.
Uma a uma foram surgindo todas as pequenas do gnai-da-livros, acordadas por aquelle alarme desesperado. Tinham-se acercado do berço, curiosas, com passadinhas silenciosas de pássaro, olhando a creança. A ultima, de três annos apenas, appareceu á porta, descalça e em camisa, com o dedito na bocca, os olhos piscos de somno, a cabelleira em cachos, como um polypo de oiro, dependurada sobre os hombrositos magros.
E agora Anna, a meio d'aquellas creanças, do loiro bando de predestinadas, chorava mais alto, arquejando, agarrada ao berço, na attitude d'essas estatuas que se vêem nos cemitérios, atiradas de borco contra as portas dos jazigos.
SEGUNDA PARTE
Desde o primeiro momento de perigo Anna sentiu-se exclusivamente mãe, dando ao filho todo o coração e todos os cuidados. Foram noites a velar o pequenito, assistindo ao desabar da ultima esperança, acompanhando-o morrer lentamente como uma flôr cortada. E tudo era mostrado nas pharmacias, n'uma continua via-sacra de desespero, fatigando os médicos de perguntas, recomeçando cem vezes a mesma historia: -- minha mãe morreu thysica e meu pae de um ataque ...
-- Sim, já sei. Sua mãe morreu thysica... E a creança como vae?
-- Mal, senhor doutor. Passa ás vezes um dia sem mamar ...
Já a conheciam nos consultórios e nem erguiam a cabeça ao vera chegar com os olhos ardentes de vigília, a face dramática embrulhada na mantilha, curtindo uma magresa de convalescente, aconchegando o filho ao colo, todos os dias mais pallida e o azul das veias mais distincto.
Afora d'isso andava de manhã á tarde n'um silencio de maníaca, taciturna, sem chorar sequer como era de costume antigamente. Depois do almoço escrevia a Manoel sempre a mesma carta -- «o nosso João vae melhor, graças a Deus,»-- e vinham em seguida as phrases para elle, muito amigas e muito calmas, de uma ternura em que desmaiara essa febre afflictiva de amor dos outros tempos. Dentro do seu coração o filho viera occupar o logar deixado pelo amante. Toda ella era mãe. Os beijos, as caricias, os desesperos e os cuidados, tudo pertencia ao filho; d'elle vinham e d'elle eram. Tornara-se aqui Ho para o fim uma monomania. Começara a frequentar a casa das visinhas pela necessidade de mostrar a creança a cada instante a alguém, saber o que pensavam, se sabiam de alguma com a mesma doença, se tinha cura, se a não achavam melhor n'aquelle dia ...
Fora a Belém de uma vez porque ouvira contar a uma parteira que a mulher de um ourives tinha um filho entrevado com uma doença egual.
Todas as tardes, á bocca da noite, uma chusma de mulheres subia ao terceiro andar para a conversa e exploravam-n'a, vendendo-lhe receitas, fingindo um enternecido interesse pela creança.
-- Está aqui está boa ! Benza-a Deus, que lindeza !
-- Já vae tendo cores!
Anna descerrava os lábios, agradecia n"um vago sorriso de esperança.
-- Bem sabe, visinha : eu para nada sirvo, mas se de alguma coisa lhe puder prestar...
-- Ai! bem lhe chega a canceira do pequeno, menina. Que eu, fallando verdade, tenho lá em casa uma blusa para fazer vae em três mezes ...
Anna offerecia-se logo e trabalhava para lhes poder comprar consolações.
Manoel, em Coimbra, ignorava a gravidade da doença do filho. Anna enganava-o com termos vagos que enredavam a saúde da creança n'uma supposição de mal de pouca monta. Tanto fora teimosa e insubmissa ao defender os últimos arrancos do seu amor de mulher quanto agora era toda poupar desgostos a Manoel. «Deixal-o estudar em paz. Como assim, que pode elle fazer?»
Por três vezes Manoel mandara dinheiro, não querendo que ella trabalhasse, o filho precisando de todos os seus momentos. Para o fim começava mesmo a inquietar-se, fallava em vir, desconfiado d'essa doença resistente que ameaçava tolher a creancita débil. O Queiroz pedia informações, intrigado, não comprehendendo coisa alguma a meio das narrativas confusas e incoherentes da mãe.
Todas as noites Anna escrevia na sua letrinha tremula, mal aperfeiçoada na mestra, a mesma carta simples, a mesma heróica mentira, onde cada sorriso para Manoel lhe custava uma lagrima, promettendo sempre que á primeira suspeita de perigo o mandaria vir. E como se Manoel lhe tivesse confiado um deposito sagrado e inviolável, atemorisava-a ter de lhe mostrar o filho n'aquelle lastimoso estado. D'ahi esse phrenesim de curar depressa o filho, que a arrastava desvairada para a rua, na sua via-sacra pelas pharmacias, postos médicos e hospitaes.
Tinha prodigalidades de louca, pagando receitas logo postas de parte, nem sequer aviadas, precisando de uma corte continua de lamentos e de consolações em redor do berço da creança.
Esse estado constante de exarcebação emagrecera-a, desfigurara-a quasi, pondo-lhe rosetas violáceas nas faces. Tossia agora de noite. Acordava com accessos de tosse e doia-lhe o peito.
Aquelle estado doentio viera depressa, exaltando dia a dia os seus receios, circumscrevendo mais e mais em torno ao pequenino corpo magoado da creança todas as suas sensibilidades, até fazer d'ella, exclusivamente, por uma absorpção de instincto predominante, na rápida atrophia de outras células sentimentaes, um corpo animado apenas do amor egoista pelo seu fructo, a viver no exclusivismo anómalo de um sentimento único, preponderante, sem partilha.
Repellida por Manoel -- cheio de medo pelo seu amor fecundo,-- ella refugiara no seu amor de mãe, sempre aggredida pela desgraça e pelo desconforto, a grande razão da sua vida. Todo o instincto que lhe animava energias de fêmea carinhosa e passional se tinha voltado para essa creança sabida das suas entranhas. No terror de a perder, toda se dedicava á salvação da sua ultima esperança, concentrada n'uma ideia fixa, sem perder a vista a moléstia inimiga que ameaçava roubal-a. Até quasi fins de janeiro a creança soffreu ataques successivos, dez dias alimentada com meia dúzia de collieres de leite, adormecida sob a acção violenta dos calmantes, acordando apenas para torcer os músculos ainda frágeis do pescoço, subir as pupillas até ás pálpebras, rolar os olhos numa agonia de estrabico, as mãos ennegrecidas, enclavinhadas.
Ao cabo d'esses longos combates entre a doença e o medico era um pequenino magro, esquelético, de articulações paradas, que lhe deixavam para idolo. Mas era preciso salvar esse aleijado, que era seu filho, e nada houve que a desgraçada não tentasse para lhe acordar de novo os sorrisos de outr'ora, o gesto ávido das mãositas còr de rosa.
Apossara-se d'ella uma furiosa pressa de o ver são ; e d'esse tempo datavam as suas carreiras aos consultórios do bairro, essas Jornadas dramáticas em que punha em exposição as chagas de família, desconfiando dos médicos, antipathisando com este porque era velho e tinha uns olhos maus, outro porque fallava brutalmente ou usava lunetas ; e uma mania de perseguição sempre crescente, porque era alguém que lhe queria mal, a creança soffreria talvez de quebranto ou máo olhado de mãe raivosa de a ver possuir uma creança linda ... E um modo então de por tudo fallar no pequenito. Ninguém lhe lembrasse o frio que fazia, se o vento soprava do norte, a vasante trazia cheiro a lodo. Logo se endireitava, inquieta. Podia fazer mal ao filho, que duvida! o fedor da maré, o vento frio, aquelle nevoeiro que se não ia embora !
A lodos era pedir rezassem pelo menino. Ia empenhando os vestidos, um a um, para accudir á necessidade urgente das visinhas ; e a mulher do relojoeiro, com promessa de ouvir todos os dias uma missa em intenção do filho, levara-lhe uns brincos de oiro. Era uma mulher escancellada, com um geito de se insinuar, dominando aos poucos n'aquelle lar transido, dispondo alli de tudo, esvaseando as gavetas com o eterno ar de quem faz um favor e offerece serviços.
Anna ia soffrendo a exploração de toda a rua. Ninguem já aventurava uma palavra sem mira a um interesse. Era um lembrar de mezinhas a cada novo lamento. Tinham por duas vezes defumado a creança com alecrim e todos os dias uma nova mulher apparecia, compungida, revolvendo a sala e a alcova com olhares esfaimados de gulosa em cata de alguma coisa para levar.
-- Elle é aqui, menina, que dizem que está uma creança entrevadinha ?
E a intrusa sentava-se, lembrava remédios, fingia lagrimas de compadecida em frente ao berço, emquanto Ânna recomeçava a historia da doença, sem esquecer o mínimo detalhe, não fosse ás vezes ser de importância a coisa mais pequena.
O dinheiro ia faltando ; e n'um sabbado de manhã Anna revolveu inutilmente as gavetas á procura de três coroas para pagar uma conta da botica.
A do relojoeiro, do lado, abriu logo em lamentos :
-- O pae da creança bem a podia ajudar com algum dinheiro ! Que a virtude não se paga ! Olhe que não falta quem lhe ponha casa melhor que esta e outra vida... Sempre lhe digo...
Mas Anna, acordada do seu abatimento, protestou, defendendo Manoel.
«Que lhe mandava o que podia. Não sabia ella o sumiço que levava o dinheiro. Ainda ha três dias recebera dez mil reis».
-- Olhe que recebeu um Brazil ! Coisa assim ! Está a pobre da creança n'este estado e nem quinze tostões para remédios !
E fazendo menção de sahir :
-- Se precisar é só dizer. Somos pobres mas o meu homem sempre os arranja. Aperta-se mais a barriga e o dinheiro ha de apparecer com a ajuda de Deus. Não que olhe: ainda deve aquellas quatro coroas á benzedeira... E para comer? E o medico? que já lhe deve um rôr de dinheiro ...
Anna deitou as mãos ao regaço, n'um vasto gesto de desanimo, e a outra, consoladora, ajuntou :
-- E pouco vejo para empenhar... Lagrimas não pagam dividas... Vá, menina, escreve-se ao pae, elle que o mande ! E até lá, o que eu puder tem-n'o ás ordens. Sempre para alguma coisa hão de servir as amigas.
-- Ai, calle-se, calle-se, visinha,..
-- Não è por mal que digo isto.
-- Bem sei, bem sei ...
Então a mulher botou ainda os olhos verdes pela casa, n'uma inspecção muda, e aproximando-se de Anna, curvada pela cinta, batendo-lhe com a mão no hombro.
-- Ha a machina.
-- A machina?
-- De costura... Ainda dá uns vinte mil réis!
-- Mas se não é minha ! -- gemeu Anna com uma voz travada de altos soluços.
-- E então ? Se não fôr de uma maneira é de outra. Vae pagando o aluguel e tira-a quando puder.
Tentadora, explorando a sua dòr, ia-lhe insinuando o crime, desculpando-o ao seu coração de mãe empobrecida, sem dinheiro para pagar os remédios que hão de salvar-lhe o filho.
No fundo de todo aquelle interesse e avareza morava ainda a inveja pela outra. Ella também não era casada e não podia esquecer a felicidade que Anna gosara alli n'aquella casa, os dias em que a ouvira rir emquanto em baixo o homem brutalmente a desancava. A insultante piedade de Anna pagava-lh'a agora, vingada no seu azedume de feia, ao vel-a assim na penúria, tão triste e pobre.
-- É o que tem a fazer, menina. Quando o senhor Manuel vier, que lh'a tire. Não ha de deixar morrer esse anjinho por falta de uns tostões. Credo ! era o mesmo que matal-o por suas mãos.
Depois de ter procurado ainda fagir á tentação, exhausta, Anna agarrou-se por um instante a esse ultimo recurso : vender a machina, pagar a conta da botica, a benzedeira, arranjar dinheiro para os remédios, para salvar o seu filho !
Mas se vinham da loja para receber a mensalidade e queriam vêr a machina ?
Não poderia mandar entrar o cobrador, como sempre, para a sala ; e com o seu sorriso honesto, a sua grande paz de consciência, dizer como das outras vezes:
-- Ella ahi está : boa como quando veio ! Talvez a prendessem. Via-se atravessando a rua, levada por um policia, para o Aljube.
-- Então que resolve, menina?
Anna levantou-se indecisa.
Foi quando tocaram fora á campainha.
-- Talvez seja da botica para receber... Deixe-se estar ; deixe-se estar que eu vou abrir.
Anna ficou immovel, á espera, olhando o berço onde o filho dormia.
A porta bateu ao fundo do corredor. Quem quer que fosse tinha-se ido embora e ella suspirou de alivio vendo a outra entrar novamente sosinha.
-- Foi o correio com esta carta. Para ahi do medico -- observou -- mirando o sobrescripto.
Mas Anna estendeu as mãos pallidas, vendo a letra de Manoel. Febrilmente rasgou o enveloppe e abriu a carta com que elle acendia á sua desgraça mandando-lhe dinheiro.
-- Cahiu do céo, menina. Quanto vem a ser ? Ávida, pegou no dinheiro ; esteve a contar as notas.
-- Dez mil reis para pouco chega com o que tem de pagar na pharmacia e na mercearia, fora os dois mil reis para a benzedeira ... Lá pelo que me deve a mim não se arrelie ...
-- Devo-lhe alguma coisa, visinha?
-- Pouco é. Não que se não fosse eu nem sei o que se comia n'esta casa ! E está tudo pela hora da morte ! As sardinhas -- a ver se adivinha quanto custaram as sardinhas ? Isso sim ! ... Um pataco ! Até dóe o coração dar um pataco por uma dúzia de espinhas! Mas isso depois; depois fazemos as contas... Mas Anna balouçou a cabeça.
-- Não ! não ! Melhor é que seja agora...
-- Só para lhe fazer a vontade ...
E depois de uma pausa em que pareceu fazer mentalmente as contas ao devido :
-- Olhe : quatro e meio com seis e meio -- onze vinténs. Isto é das compras. Não lhe quiz fallar omisso para a não arreliar... Ainda tinha lá em casa uma posta de bacalhau demolhado que veio para a pequena. Já se sabe que sem comer ninguém vive. . .
-- Muito obrigada. Pensei ter visto ainda hontem dinheiro na gaveta ...
-- Com a ralação em que anda nem admira. E da renda da blusa e do forro são doze tostões.
-- Da blusa ?
-- E sempre tenho que lhe agradecer! Foi da mais barata, a renda. Pode perguntar na loja, no Pinto de S. Paulo. Pobre, mas honesta, d'isso me gabo ! Só o que me custou acceitar tamanho favor quando a menina me quiz fazer a blusa de graça . . ! Emfim, era lá do seu gosto ! Mas também, quando quizer alguma coisa è só dizer...
Vacillante, na persuasão de que a outra teria comprehendido mal, e sem coragem para defender aquella miséria que lhe arrancavam, Anna murmurou :
-- Está bem ; está bem ...
A outra revolveu no bolso da saia suja a mão magra e longa de avarenta, tossiu para disfarçar, foi tirando em cédulas e cobre o troco de cinco mil reis.
-- Se quer, pouco me custa : vou á pharmacia pagar-lhe a conta.
-- Obrigada. A Rosa está ahi a chegar e mando-a lá.
-- Tenho de lhe dar três mil e quinhentos com quatro vinténs, não é, menina?
Anna passou-lhe o dinheiro, emmudecida.
-- Anda agora para ahi um rôr de notas falsas. Sempre è preciso uma pessoa acautelar-se. Veja se estará certo. Isto de trocos quem quer se engana.
-- Ponha em cima da mesa, visinha, faça favor.
-- Não quer que lhe vá pagar a conta ? Bem, bem... Então até logo e desculpe ...
E aproximando-se, de novo vergada, com a mão no joelho:
-- Um beijo ao menino ... Deus te crie para boa sorte !
Sahiu a arrastar os chinellos, com a tosse de disfarce com que enchia todos os silêncios.
Anna foi fechar a porta, ageitou a roupa do berço em volta da creança, chegou um pouco á janella, os olhos marejados de lagrimas, acordada do seu desprendimento por aquella exploração que lhe arrancava aos poucos o dinheiro dos remédios -- esse pouco dinheiro que Manoel lhe mandava talvez com sacrifício.
Estava uma manhã de vento, com guinadas bruscas de sudueste, que estremeciam as janellas. Ao longe, por uma entreaberta de telhados, via-se esbracejar uma palmeira no jardim da rua Victorino Damásio. De uma fabrica vinham sussurros ásperos de volantes em marcha e a trepidação de machinas em trabalho.
Leu então a carta de Manoel.
Mais uma vez elle fallava em vir, inquieto com essa doença resistente que nunca mais findava. O mais tardar pelo entrudo viria a Lisboa vefa. E aquelle fim de carta era de uma ternura immensa, chegando-a ao coração, dizendo-lhe que a amava.
Quedou absorta, n'uma tristeza infinita. Sentia a aproximação do desastre irremediável : o dinheiro faltando, a doença aggravando-se, a accummulação insolvavel das dividas, o afastamento do trabalho e de súbito o apparecer de Manoel, dando de frente com a desesperada tragedia d'aquelle lar -- o filho meio morto, ella meia velha.
O tocar da campainha retirou-a da janella, com um desalento tão grande que lhe appetecia morrer.
-- A Rosa, talvez...
Mas ao abrir a porta estacou de surpreza, receosa, balbuciando ura «senhor doutor» quasi indistincto.
-- Então como vae o nosso doentinho ?
-- Sempre na mesma, senhor doutor.
-- Ora vamos lá a vèr isso...
O medico passara para a sala, um momento parado a olhar por entre os vidros o Tejo encher ao longe com franjas brancas de espuma que molhavam a torre do Bugio. Ia descalçando as luvas, de vagar. Era homem ainda novo -- vinte oito a trinta annos -- com olhos esverdeados de myope, alto e um pouco curvo; d'essas physionomias indecisas e sem linhas predominantes, com faces mascaradas de cabello, sem um logar para beijos, que são no geral a característica das almas humildes e dos caracteres dúbios. As luvas, que tinha acabado de tirar, eram forradas de flanella, com rebordo de pelle de lontra no punho e já gastas e sujas por mezes de uso.
Trazia um casaco velho, fora de moda, com uma gola de veludo.
Anna, passados os três primeiros dias de pânico, quando olhara emfim o homem que acabava de salvar o seu filho, tivera um desanimado espanto de desllludida. Sobretudo os modos, aquella maneira de descalçar as luvas e soprar nos dedos, de pensar muitos segundos antes de responder um monosyllabo, intimidavam-n'a. Não gostou d'elle. Foi preciso o guarda-livros asseverar-lhe que fora esse homem de barbas que lhe salvara o filho para não o despedir e chamar de seguida um outro medico. E agora, todas as vezes que elle vinha com o seu casaco velho e os seus modos timidos de escorraçado, Anna recebia-o indifferentemente, sem fé na sua sciencia, lembrando a falta de necessidade de vir tantas vezes ; «cançava-o subir três andares» e que «a creança agora ia melhor, quasi restabelecida.»
Depois elle tinha a mania de também querer saber da saúde d'ella.
-- Tem alguma coisa que a incommode ?
-- Eu não, senhor doutor. Não ha mal que me chegue.
Os seus olhos de myope perscrutavam-n'a. Acabava por dizer :
-- É preciso ter cuidado. Parece adoentada.
E de outras vezes, bruscamente :
-- Tosse muito assim, por dia?
-- Ás vezes ... Acontece pouco. Não vale nada : algum ar que apanhei -- gaguejava Anua, inquieta, o olhar inimigo posto na face immovel do doutor.
Havia já uma semana que elle faltava. Essa ausência fora para ella um alivio. Todas as suas esperanças estavam agora, mais do que nunca, longe da sciencia doesse homem corcovado, silencioso e sujo.
Por isso, quando elle entrou, sem animo para o despedir, sem dinheiro para lhe pagar, Anna seguiu-o atè á sala, quasi colérica ; e levantando a cortina do berço, com máos modos :
-- Está a dormir. Será melhor não o acordar.
Elle aproximou-se com as mãos nos bolsos do sobretudo ; e depois de olhar a creança durante um momento :
-- Quanto tempo dorme elle assim?
-- Poucas vezes acorda.
-- Tem continuado a dar o remédio?
Anna disse que sim, n'uma muda revolta contra esse homem que a obrigava a mentir, sem coragem de confessar a verdade, dizer a sua febre desatinada de curar depressa aquelle filho e a volubilidade da sua crença, as suas desconfianças, a antipathia que fora grassando contra elle ao fundo do seu coração e que n'esse momento ainda levantava toda a sua alma inimiga, n'um escondido furor pela sua presença.
Sem se poder conter, desandou a fallar da sua pobreza, com as faces a arder de vergonha, dizendo a sua penúria, a sua afflictiva miséria.
«Quando fosse preciso que o mandaria chamar; devia-lhe uma porção de dinheiro ; deixasse-a primeiro pagar o que devia» ...
Elle escutava, silencioso, apoiando com a cabeça, pondo no chão os olhos myopes.
Quando Anna parecia ter dito tudo, saccou lentamente do bolso uma folha de papel, desdobrou-a com um timido vagar :
-- Fiz-lhe o menos preço possível: dezeseis visitas a sete tostões. O preço são dez tostões. Eu até vinha cá por causa d'isto. Se me pudesse pagar era favor: tenho agora um pequeno doente com um typho ...
Anna olhava-o, espantada. Na sua voz humilde elle contava também a sua miséria : o filho em casa com o typho e a mulher ainda doente, acamada de um parto.
E era toda a sua vida pobre de medico obscuro, sem consultas, repellido de toda a parte, incapaz de conservar um doente porque ninguém o queria á cabeceira de um enfermo com aquelles olhos de myope, o ar humilde e taciturno, o sobretudo velho e as botas sujas.
Anna pasmava, acalmada no seu rancor, vacillante ainda pela surpreza dolorosa que colhera a sua piedosa alma desprevenida. Agora que o sabia sòffrendo uma dôr tamanha como a d'ella, quasi se lhe aífeiçoava, n'uma doce clemência pelo seu egoísmo de pae que vinha buscar dinheiro para o filho doente.
-- E é muito máo, isso de um typho?
Elle teve um gesto de infinito desanimo, balouçou a cabeça, pousando novamente os olhos no chão.
-- Poucos escapam!
Para ella era quasi uma consolação vêr esse homem de sciencia, um medico, soíTreudo também, perseguido por uma miséria commum, por uma dôr egual. Deu-lhe cinco mil reis, pedindo desculpa de não poder pagar a conta inteira. E era como uma esmola : esse dinheiro que ella entregava n'uma irreflectida generosidade, a esse irmão de desventura.
Depois que elle partiu. Anua deixou-se cahir no chão, perto do berço, soluçando e chorando. De novo sem coisa slguma, o que ia ser d'ella, a meio d'essa gente interesseira e cubiçosa que lhe vendia compaixão e se fazia pagar as lagrimas fingidas? D'antes, nos bons tempos, qualquer pouco dinheiro lhe bastava. Hoje, arredada do trabalho, sem meios para custear essa guerra implacável á doença, sentia chegar o fim de tudo. Deitou conta ao dinheiro esbanjado, passando em memoria as suas prodigalidades de louca.
Era preciso trabalhar, recomeçando as noitadas de outr'ora, á luz do candieiro, de bruços sobre a machina de costura. Logo no dia seguinte iria pedir trabalho, para refazer o equilíbrio do seu lar empobrecido. Accusava-se do seu criminoso desleixo, deixada arrastar na corrente da sua desesperança, indigna de ter um filho, incapaz de ser para elle uma protectora no mundo : mãe só para chorar e para torcer os braços, confinada no egoismo da sua dôr. As grandes dores como as grandes alegrias não as podiam ter os pobres. Teria de pagar duramente os poucos mezes de felicidade e paz que gozara no mundo, fugida por um instante ao destino de agruras a que estava sujeita.
Filha de uma pobre creatura desgraçada, tinha de continuar essa linhagem heróica de martyrio, revivendo as faltis das avós, proseguindo na miséria da família, até que a Natureza compadecida, deixasse mirrar aquella seiva de lagrimas. O seu coração, desacostumado á inveja, evocava a radiosa felicidade de outras mães que podem curar os seus filhos doentes e sonhar sobre as cabecitas loiras resplandecentes felicidades na terra. Mas não valia a pena ser mãe para vêr assim soíTrer o filho, não poder accudir-lhe e sentir-se morrer por ter dado a vida a quem morria. Talvez que tanta desgraça fosse o castigo da sua deshonestidade ; e comtudo Deus sabia o quanto a sua alma padecia de uma devoradora sede de virtude !
Tendo vivido sempre na convivência da frágil probidade dos pobres, sem aconchego, sem protecção e sem amor, o seu grande sonho fora casar, obter o abrigo de um lar onde a sua ternura se occupasse. E d'essa violenta anciedade de amor pacifico, do invencivel m.al estar da sua solidão de abandonada, nascera a primeira falta irreparável, sua eterna fonte de miséria e de lagrimas.
Tinha sido tão fácil a esse homem desapiedado e brutal enganar a sua credulidade de virgem ao desamparo, vencer os seus escrnpulos com a promessa da rehabilitação e da felicidade ! Quantas propostas tivera que rejeitara, affrontada e dorida, para assim cahir nos braços de um homem da sua condição, confiada no seu juramento, na fé de vir a ser a mãe de seus filhos, a dona do seu lar pobre, tomando a si a virtuosa tarefa de aquecer com um pouco de amor e de consolação a existência rude e humilde do marido ! Entre os da sua casta a antecipação da entrega era commum, elle só esperando para casar que no Caminho de ferro lhe subissem ao salário. Era uma coisa combinada : que casariam pelo Natal, o mais tardar em janeiro ...
Vira-o tantas vezes chorar, perseguido pelo temor de que ella se arrependesse e não o quizesse mais ! Aos domingos, quando se fallavam, elle tornava sempre com aquelle medo que o fazia padecer muito e queria até apressar o casamento, esquecido, na sua febre, dos poucos meios de que ambos iam dispor para viver. Anna sorria então, satisfeita ao sentir-se tão vehementemente querida por aquelle homem rude que seria um dia o pae de seus filhos. Estimava-o muito por esse primeiro consolo que elle trazia ao frio do seu coração de despresada. Passavam tardes a imaginar esse futuro de paz e de aconchego. Estava resolvido que iriam viver para Campolide. Já ella lhe tinha entregue a certidão de baptismo ; elle andava a tratar dos papeis. E depois, uma noite, aquillo tinha succedido, não sabia bem como nem porque, simplesmente, como uma coisa que tinha de succeder e se antecipava. Entregara-se sem vicio, sem nunca ter colhido prazer nos seus braços de trabalhador, contente talvez por o vêr satisfeito e ter-lhe feito a vontade. Só mais tarde, quando soube que elle partira para o Porto, transferido, sem sequer lhe dizer adeus, comprehendera o embuste que a deixava desgraçada para sempre, nunca mais podendo aspirar á honesta felicidade de ser esposa e mãe porque um homem tinha abusado, para a perder, da sua própria sede de virtude. Já agora era um corpo inútil e imprestável, com um ventre que nunca conceberia filhos, uma bocca que nunca daria beijos, um seio que nunca daria leite. Foi uma dôr enorme, um desespero e uma vergonha de tal maneira exaggeradas a dentro da sua consciência ultrajada e ferida, que d'essa desesperação nascera a ideia do suicídio.
O seu coração amava a virtude como as mais honestas; amava-a até morrer por ella. A sua alma tinha sido feita para a comprehender e amar. E não seria ainda uma virtude aquelle atormentado amor de mãe, que a resgatava do seu segundo crime, d'essa falta a que a impelllra o seu preponderante instincto de mulher amorosa que não resiste á tentação de se deixar amar?
Não ; não podia ser um castigo ! Tendo deitado contas á sua pobre vida, renascia mais corajosa para a lucta, com um pouco mais de animo e de esperança.
Já n'essa tarde esteve a concertar a machina, pôr um pouco de ordem no desleixo da casa. Rosa, quando entrou, velo encontrara fechando á chave os poucos tostões que lhe sobravam. Recomeçou a dar ella mesma as ordens, n'um renascimento d'esse interesse caseiro que n'ella parecia morto. A própria creança pareceu melhorar.
A porta conservou-se fechada á curiosidade interesseira do mulherio. Apenas á tardinha a pequenada do guarda-llvros veio vêr o menino.
Renascera-lhe uma grande confiança ; e de novo a alumiou o seu antigo orgulho de trabalhadora honesta, acordados todos os seus instinclos de brio e independência.
Logo pela manhã do dia seguinte vestiu-se, deixou Rosa a tomar conta da creança e sahiu, quasi alegre, com o seu vestidinho de merino preto.
Mas voltou succumbida, de uma pallidez de desfallecimento, o olhar outra vez taciturno, apagado e quieto. Depois de tirar a capa e a mantilha sentou-se na cama, com as mãos no regaço, immobilisada na sua attitude de desfallencia.
Rosa não ousava fallar-lhe, habituada áquellas crizes de melancholia, a essas longas horas de silencio que ella passava sem comer, sem fallar, apenas desperta quando a creança acordava ou estremecia no berço.
Assim ficou horas, as mãos no regaço, a cabeça curva. De momento a momento duas lagrimas cahiam-lhe dos olhos, escorregavam de manso pela sua face pallida.
Quasi á noitinha Rosa poz o jantar, arriscou-se a chamal-a. Anna lembrou-se então de que não escrevera ainda a Manoel. Rosa foi buscar a penna e o tinteiro ; viu-a rasgar três vezes a carta começada e acabar por erguer-se da meza, sem ter escripto, sem ter comido, sem ter fallado.
Durante uma semana inteira viveu enclausurada, recusando-se a abrir a porta a quem quer que fosse, vivendo de umas roupas que mandou empenhar. Todos os dias a do relojoeiro mandava saber do menino e por ultimo, despeitada pela súbita desconfiança que lhe fechava aquella porta d'antes sempre aberta, ia envenenando a solidão da outra com recados pérfidos, fallando na conta da mercearia, nos dois mil reis devidos á benzedeira, offerecendo-se para pagar as dividas, assaltando a pequena nas escadas, apertando-a de perguntas, querendo saber tudo : o que se comia lá em cima, de que viviam, se Manoel mandava dinheiro ...
Anna sentia-a na sua vida, seguindo-lhe os passos, espiando-lhe os movimentos, levando a sua miséria para o soalheiro das visinhas, desacreditando-a no bairro ; e se não fossem as progressivas melhoras da creança que a reanimavam e lhe sustinham a coragem com um rejuvenescimento de esperanças, teria de todo succumbido n'essa lucta desigual com a miséria e a doença, ferida a mais no seu orgulho pela humilhação que a outra lhe inflingia.
Não era senhora de abrir a vidraça que não a visse em frente, em um portal onde passava agora parte dos dias com uma vendedora de hortaliças, vigiando-a, prompta a sahir-lhe ao caminho mal ella puzesse o pé na rua.
Ia quasi no fim o mez de Fevereiro. Aos domingos, á noite, já passavam mascaras na rua.
Manoel devia estar em Lisboa d'ahi a duas semanas. Animada pélas melhoras apparentes da creança, Anna conseguira acalmar a sua impaciência, varrer quasi por completo das cartas de Manoel esse tormentoso receio que d'antes as trespassava em continuas ameaças de partir de Coimbra vir a Lisboa, vêr o filho, em riscos de perder o anno.
Agora, ao lêr as suas phrases, onde parecia voltar um pouco da paixão antiga, Anna reconsiderava que talvez tivesse feito mal em cortar assim pela raiz o receio que crescera dentro do seu coração alarmado. Quando elle chegasse não teria para lhe mostrar , senão aquelle corposiío magro de convalescente e com certeza o seu abalo seria maior, a surpreza mais dolorosa, ao vêr o que restava da belleza antiga de seu filho, daquelle pequenito sorridente, branco e loiro, que elle tanto gostava de vêr grasinar nos joelhos e sorrir durante o somno.
Mas de que teria valido assustaro se com o seu amor elle não podia fazer renascer a força e a saúde n'aquelle corposinho doente?
Fora talvez melhor assim: que só ella soífresse e se sacrificasse. Elle teria de se resignar, agradecido por esse generoso engano que ella alimentara na sua alma, querendo só para si as mortificações e os desgostos, poupando-lhe os dias intermináveis de pânico, em que ella cuidara todas as noites veFo morrer entre os braços ou expirar no berço com um vagido.
Para ella, que o vira tão mal e já se habituara á convivência d'aquelle corposinho descarnado e pallido, o filho parecia reviver, ganhar cores, resuscitar, esboçando o seu sorriso antigo o pondo tento nas coisas. Havia ainda uma fixidez inquietante nas pupillas, a ausência da viva claridade que d'antes brincava no esmalte azul das pequeninas orbitas e um geito de pousar os olhos no tecto, ficar-se longos momentos n'aquella postura, a bocca de continuo aberta em espasmos nervosos. Mas a tudo ella parecera habituar-se, contente desde que o não via torcer-se com ataques.
Tinha agora a certeza de que o ia salvar. Essa semana de tréguas fizera bem aos dois, descançando-lhe a cabeça da desvairada faina em que andava. Já podia dormir umas horas de noite ; e para poupar dinheiro, eram ella e a Rosa que lavavam a roupa da creança, alli fnesmo em casa. Aquella canceira ajudava-a a passar o tempo. Agora o jantar também se fazia em casa. Foi assim, cerceando ás despezas, que conseguiu ir vivendo com um pouco de dinheiro que o penhorista tinha dado por umas roupas.
Rosa, mandada á pharmacia e á mercearia, voltara com a promessa de que esperariam pelo fim do mez para receber as contas. Trabalho não apparecia mas Anna continuava a ter fè, incapaz de duvidar de que todas as difficuldades se não vencessem. Com as melhoras do filho renascia-lhe a antiga indulgência ; e os mesmos olhares cupidos do mulherio foram apparecendo á porta, toda a rua accudindo ao annuncio do milagre. A reconciliação com a mulher do relojoeiro fez-se uma tarde, quando a outra a procurou para justar um fato de mascara para um dos filhos -- o Francisquinho -- que devia ir no Domingo de entrudo ao baile da Trindade.
Como n'um beija-mão de rainha, Anna resplandecia de jubilo, mostrando o filho curado, ouvindo as exclamações, assistindo ao espanto de todo o prédio.
-- Não tarda muito tem-n'o bom ! -- diziam em volta.
-- Não lhe fallaram cuidados! -- Bem o merecia de Deus !
Ella meneava a cabeça, mudamente, na modéstia da sua victoria, esquecendo o dia de amanhã, o dinheiro que findava, para sorrir a esse cântico de lisonjas em que se celebrava a saúde do seu filho quasi morto e que ella salvara.
Vestira-lhe a roupa melhor; tinha-o cheio de laços e rendas, ao fundo do berço, como um amortalhado no caixão. Trouxera-o para a luz, em frente ás janellas da sala ; e era essa claridade que lhe emprestava um pouco de vida, despertando-o da sua modorra de enfezado, pondo vislumbres no idiotismo do seu olhar attonito e parado.
Secretamente todas se riam da sua cegueira, ao verem as mãosilas roxas e perras da creança insistentemente fechadas, o seu continuo bocejo de hysterico, o emmagrecer da pequenina face macerada.
Só ella se illudia, acreditando-o bom desde que tinham cessado as convulsões e declinado a febre. Ás vezes os olhos da creança pareciam troca r-sc n'um prenuncio de estrabismo, mas ella não via nada, nem a lenta contractura dos músculos : as mãos que já se não abriam, os joelhos empenados, os vómitos frequentes, o resfriamento das extremidades : toda a pavorosa derrocada d'aquelle pequenino organismo de moribundo-- a doida, a thysica e o epiléptico que renasciam n'aquelle corposinho indefeso, alimentado por uma pobre mãe soffredòra o lacrimosa.
A principio, as contracturas dos músculos tinham-n'a assustado, mas ao ver a creança abrir as mãos e dobrar os joelhos durante o somno, o seu receio foi aos poucos abrandando. Nunca poderia acreditar que o seu filho estivesse irremediavelmente perdido. O que a apoquentava agora eram os poucos meios de que dispunha para accudir á desordem da sua vida. Tinha medo de olhar de frente esse problema irresoluvel e o momento aproximava-se em que Manoel ia chegar.
Era preciso accudir depressa ao desperdício d'aquelles dois mezes de prodigalidade em que abandonara o governo da casa em mãos estranhas, não dando conta do dinheiro sumido, toda entregue á sua dôr, absorvida na sua lucta heróica contra a doença, não perdendo de vista o mal que ameaçava arrancar-lhe do colo essa pobre boneca que lhe entretinha tanto o coração.
Com a mezada Manoel não podia aliviara de todas as dividas que contrahira. D"ahi a pouco era preciso pagar o aluguer da casa. O dia de amanhã parecia diflicil e resolveu-se uma noite a desabafar com o guarda-livros, aconselhar-se com elle. Rosa foi abaixo chamaPo, e quando elle appareceu já Anua mal sabia o que dizer-lhe, ruborisada, na vergonha de fazer o estendal das suas misérias mais escondidas.
-- Desculpe, senhor Martins, se o fui incommodar. Era por causa de umas contas, umas dividas que para ahi tenho. Uma mulher nunca sabe d'estas coisas, sempre precisa de conselho...
Elle dizia que sim, parado á porta, sem ousar sentar-se.
-- Para o que-quizer... É só mandar.
Acabou emfim por sentar-se, encolhido a um canto, o chapéo sobre os joelhos e as mãos no chapéo.
Houve entre os dois um grande silencio; e foi elle que fallou primeiro, muito baixo :
-- Para a semana tem cá o senhor Manoel...
Ella sentou-se também, com o cotovello na meza da machina, entretida a arrancar um fiapo de linha.
-- Melhor fora que só viesse para a Paschoa. Vem encontrar o filho ainda tão doente! É um molhinho de ossos ! Bem sei que do perigo, graças a Deus, já está livre, mas ainda tão quebradinho ! É sempre assim : as creanças d'aquella edade levam muito tempo para arribar de uma doença. O peor é que elle não sabe -- cuida para ahi que o filho só teve uma rabugem de dentes ou coisa parecida !
-- Sempre talvez tivesse sido melhor dizer-lhe que foi coisa de perigo ...
-- Então ! Ia-o apoquentar. Ao depois nem cabeça tinha para os estudos...
-- Nem sei como anda a minha vida, senhor Martins !
Levantou-se depois de um profundo suspiro. Foi á gaveta da commoda ; voltou com um maço de cédulas de penhores.
-- O que tenho empenhado è isto. -- O senhor Martins faz-me o favor, vê quanto são de juros e recebido? Ainda devo para cima de cinco mil reis mercearia, três mil e oitocentos á pharmacia, quatro coroas á benzedeira, sete mil reis ao doutor, dois mezes á Rosa -- coitada ! -- e o aluguel da machina também d'estes dois mezes.
Elle chegava-se á meza, ia fazendo as contas, assentando á medida que ella ia dizendo. Anna viu-o fazer a somma e conferir.
-- Quanto è ao todo ?
-- Com as cautellas são oitenta e dois mil reis. Anda por oitenta e cinco com os juros.
-- Fora o que elle me mandou, que vae para cima d'isso... Que me aconselha, senhor Martins? Só se empenhasse a cama e elle dava por falta...
O guarda-livros esteve um momento calado, com as mãos no chapèo, meditando. Depois, na sua voz timida, disse :
-- Os pobres, como nós, só teem uma coisa a fazer -- deixarem-se ir. Deixe-se ir, senhora Anninhas. Tudo vae ter ao mesmo sitio.
II
Ás nove e meia da noite o comboio mixto do Norte parou em Santa Apolónia, despejando no cães as suas oito carruagens de passageiros. Fora preciso deixar wagons de carga pelo caminho, engatar mais três carruagens de terceira, tal a agglomeração de gente que assaltava o comboio nas estações, passado o Entroncamento. Nas alturas da Povoa, já noite cerrada, começara a chuva -- uma chuvinha meuda e fria que baixava dos altos céos escuros como um nevoeiro denso -- e sobre Lisboa a mesma chuva cahia, espessa e gelada. Manoel saltou na plataforma, parado um instante entre a confusão, á espera de um carregador que lhe levasse a mala e fosse chamar um carro.
Toda aquella multidão, accudindo de longe á folia desbragada de Lisboa, invadia as sabidas, impaciente por patinhar na lama, gritando e cantando. Um homem, que entrara em Yilla Franca, erguia um chifre de carneiro hasteado n'uma bengala, provocando o riso entre o magote. Outro levava na cabeça uma bicorne de chéché, de cartão, onde thronava a indecencia do costume em letras de papel azul. Uma varina foi agarrada por um grupo que a levou de roldão por uma das portas. Havia um homem de grandes barbas que latia e outro, descalço, que agitava uma matraca.
No impossível de romper passagem pelas portas de sahida, Manoel decidiu atravessar pelo bufete. Fora, no pateo, em frente ao Campo das Cebollas, foi ainda preciso esperar pelo moço, extraviado com certeza a meio do bulicio, e só quando se viu no carro -- uma tipóia velha que um cocheiro bêbedo guiava -- respirou de alivio, fugido aos encontrões e á gritaria.
Até ao Terreiro do Paço a tipóia saccudiu-o pela rua da Alfandega, lamacenta, quasi deserta, onde alguma tasca abria sobre o passeio, atravez a chuva, um bafo de luz amarelenta. Na vastidão da grande praça apenas as luzes distantes dos candieiros scintillavam na bruma entre as arcadas silenciosas. Foi preciso entrar na rua do Arsenal para cruzar de novo gente que passava, mascarada, embrulhada em farrapos, patinhando no lamaceiro ; grupos silenciosos que seguiam rente ás paredes sob o pingar das gotteiras, arregaçando os dominós, segurando a barbella das mascaras. A meio da rua de S. Paulo um homem vestido de palhaço cuspiu na vidro da tipóia, dobrando o braço n'um gesto torpe e agora, a cada canto de rua, ranchos surgiam, gesticulando e gritando em falsete, lamentosos, cobertos de trapos, ostentando um guarda-roupa trágico de lixos. De longe a longe lanternas de casas de penhores punham nódoas de luz em fachadas sombrias e pela Boa- Vista fora até ao Conde Barão apenas luzes escassas, coadas por ta~ boinhas verdes, filtravam da escuridão dos prédios apagados, sob a lenta chuva que cahia. Pela calçada das janellas verdes, á medida que o carro se distanciava da Baixa, refazia-se o silencio : um silencio de cidade deserta ás dez horas da noite e que o rodar dos americanos estremecia apenas.
Manoel não tivera tempo de arrepender-se, conduzido a deshoras a casa de Anua com uma febre de amor que o atirara em Coimbra para o comboio e o trazia até Lisboa na mesma excitação. Àquilio fora crescendo desde o Natal, na emoção violenta d"esses quinze dias passados ao lado da sua belleza, na dôr d'aquella despedida em que a sentira collada contra si, humedecendo-lhe a face de lagrimas, gemendo a sua paixão em voz de quem pedia esmola.
E de longe, emqnanto esse grande amor physico morria no corpo de Anua, absorvida na sua immensa mortificação de mãe, renascia em Manoel, saudoso das antigas caricias, das ternuras e dos beijos antigos. Ella mal tivera tempo de sentir no crescente ardor das suas cartas a volta do desejo, o reflorir doesse amor de que para sempre desesperara, desilludida e já resignada. Nunca mais, durante todo esse tempo, sentira a sua carne escravisada. O filho conquistara toda a sua ternura. A amante queimara a sua provisão de amor, como uma grande fogueira depressa extincta sob um grande vento.
Na convivência do Queiroz parecia que Manoel ia finalmente tornar-se um homem. Desapegara-se por completo de um resto de amizades vagas, simples aproximações de casta, no fundo. Aquelles amores pobres tinham ao menos servido na apparencia para humanisar mais o coração do frivolo, aproximando-o da verdade; e elle repudiara mesmo camaradagens inúteis, colhidas n'outros tempos entre uma mocidade que cruzava em Lisboa, no átrio de S. Carlos, e tinha como elle mãos indolentes a finas.
Viera a quebrar com a ultimia amizade : um rapaz pobre, magro e myope, com três irmãs ossudas e um pae mysantropo e pobretão. Tivera-o como amigo desde o collegio, sabendo da sua obscura miséria de familia, aíTeiçoado ao romantismo doentio da sua fraqueza de creaturinha definhada, nascida de um homem humilde e de uma provinciana azeda e ríspida, que sonhara em solteira casamentos com morgados e predomínios de aldeia. Viera depois encontrafo em Coimbra, sempre rachitico e myope, fallando de antepassados, contando a historia diíTusa de um grande nome de familia a restaurar, absorvido n'um preconceito de raça imaginaria, vivendo na convicção embusteira da casta como um preso na cella. Assignava um grande nome que fazia rir muito um tio, dono de uma drogaria no Porto ; e reprehendia Manoel pela sua convivência com um labrego do Douro material e bruto, que vivia amancebado com uma tricana. O labrego era o Queiroz.
No fundo o companheiro de collegio tinha talvez razão: a razão tacanha e fácil dos egoístas e dos sensatos. As ideias do Queiroz iam actuando fortemente em Manoel, cujas condições de -vida e nascimento lhe creavam um meio hostil ao aproveitamento d'ellas. Filho de uma classe onde o preconceito governava inflexível e despótico, essa semente de rebelião que o medico ia depositando no fundo da sua consciência, deveria mais tarde' estorvaro na vida. Quando a verdade fructificasse na sua alma ao sopro douctrinario das theorias arrojadas do atheu, teria aberto dentro de si um insondável conflicto, incapaz de ter a coragem de repudiar o hereditário convencionalismo da sua raça, demasiado fraco para se atrever a rejeital-o como prejudicial e criminoso.
Queiroz prégava-lhe theorias de revoltado descontente com o seu século, ia-o pondo de mal com o seu meio, fomentando indignações e irritando audácias no seu espirito apprehensivel que a verdade facilmente domina e encanta. Inconscientemente o seu espirito ia-se reformando n'um vago sentimento de anarchismo platónico, arrebatado e perigoso. Ás tardes iam ás vezes passear os dois, discutindo Littré ou Stuart Mill e a metaphysica do lyceu era varrida como uma poeira leve aos ventos dos argumentadores positivistas.
Desenvolvia-se a dentro do seu espirito uma larga sede de saber, tresmalhada nas redes inextrincaveis dos systemas philosophicos.
E o peor era que a especulação intellectual e scientifica, mal governada, ia poderosamente influindo no moral como consequência inevitável. O seu temperamento impressionavel, dominado pelo convencimento materialista do medico, era levado aos peores extremos pela falta de um proficionalismo em que o aproveitar e que ao mesmo tempo neutralizasse o effeito moral devastador da sua absorpção.
Queiroz dizia-lhe: «tens um filho, logo tens familia»; e no dia da partida de Lisboa, já na estação, ao vôr a sua tristeza, interpellava-o : «se queres salvar essa mulher e essa creança volta para traz, dorme com ella, perde o anno».
Sobre honra as suas ideias eram ainda mais despóticas. Dizia: «para as mulheres moralmente pervertidas -- o hospício; para as mulheres apenas physicamente perdidas -- a reparação». Faltava de um grande livro a escrever sobre os males sociaes, em que se resolviam os mais graves problemas. Encarregava o Estado da manutenção dos pobres pela creação de asylos e hospitaes em cada sede de concelho, sustentados por um imposto ; o recurso ao proletariado em epocha de crise com trabalho fornecido pelo governo ; a construcção de bairros operários dando alojamento a preços módicos, libertando o pobre do jugo feroz do senhorio, podendo, em determinadas circumstaocias, aliviar o inquilino do pagamento de aluguer ou facilitar os pagamentos em prestações mensaes ou semanaes; estabelecer vigilância rigorosa nos bairros operários, fiscalisando os costumes, accudindo de promplo á reparação de certos crimes previstos pelo código, facilitando a creação da familia, vigiando de perto a reprodução de vicios e impedindo-a, exercendo por sua conta e em condições fáceis a venda de comestíveis e artigos de primeira necessidade, excluindo o álcool do commercio dentro dos bairros; e na realisação d'esse bello sonho, em que tudo estava previsto, desde a hygiene á subsistência, desde a moral á saúde, cuidava o positivista ter encontrado o estorvo á contaminação crescente dos opprimidos, fechando as maiores fontes da prostituição e da miséria.
Manoel vivia assim na irrealidade fantasista de um positivo que renegava da metaphysica para se refugiar na utopia e ao seu lado, na convivência das suas theorias de reformador, ia desbaratando o que lhe restava de convencional na elaboração do seu pensar, crescendo cada vez mais a revelia dos seus instinctos, o predomínio do sentimento sobre o calculo, do desejo sobre o raciocínio.
Na casa do Queiroz, onde passava parte das noites, tudo conspirava para perdePo. Aos serões, emquanto elle e o amigo discutiam, Maria da Graça, tranquillamenfe, trabalhava em alguma costura, convencida da sua doce subalternidade de mulher. E elle olhava-a como a verdadeira companheira, ingénua e simples, sem artifícios e sem imposturas, com o seu seio redondo e a sua bocca fresca.
N'aquelle meio cálido o amor quasi extincfo renascia, ganhando impetuosidades de torrente. De noite sonhava com a amante. Sentia-a constantemente á sua beira, cobrindo-lhe a face de beijos, deixando-o encostar a cabeça no calor do seu peito. Não a podendo comparar por a ter longe, idealisava-a. Pareciam ter morrido dentro d'elle esses instinctivos escrúpulos de sangue (jue d'antes o afastavam d'ella por momentos, na aproximação de outras mulheres vestidas de seda e de veludo junto de quem vivia cá por fora no mundo.
Agora não; aquelle tédio de Coimbra, a sua intimidade com o Queiroz, tinham aproximado mais da plebeia o seu coração sosinlio de amoroso, lembrado, nas suas noites solitárias, do Queiroz que dormia com o branco corpo de Maria da Graça ao lado, n'uma velha cama de torcidos.
A doença do filho teve-o inquieto durante dias, quasi na suspeita da gravidade do mal de que elle soffria. Queiroz veio ainda em soccorro da sua angustia, lembrando-lhe que se a doença fosse grave Anna teria mandado dizer, incapaz de guardar só para si uma aíílicão tamanha. Grave erro de um physiologista que nada conhecia do coração complicado da mulher.
-- A rapariga está morrendo por te ter lá, asseverava o Queiroz, quando Manoel á noite lia a carta de Anna.
Maria da Graça apoiava do lado :
-- Olhe que não é outra coisa essa tristeza... Assim, aquella ida a Lisboa estava resolvida havia
já muitos dias ; e como Anna só o esperasse no Domingo pela manhã, era uma surpreza a sua chegada no sabbado. Por todo o caminho Manoel viera pensando na alegria que lhe ia dar, surgindo de repente, consentindo em ficar com ella por toda a noite, como d'antes ...
Despediu a tipóia, subiu depressa as escadas, com receio de a encontrar deitada ou talvez a dormir.
Chegado a cima, deante da porta, tocou com força á campainha.
O corredor rangeu sob lentos passos pesados de mulher e mal a porta rodou, entreaberta, Manoel ouviu a voz de Anna, tremula e chorosa, gemendo um «meu Deus!» dolorosíssimo.
A mulher do relojoeiro, que viera abrir, teve um mudo gesto de espanto, dando passagem ; e Manoel, n'um instante, achou-se na sala, em frente de Anna, ajoelhada no chão perto do berço, sobre que se debruçava attento um desconhecido. Rosa segurava o candieiro, alumiando. Havia ainda o guarda-livros, de pè, ao lado do berço, em chinellos.
Mal elle appareceu á porta, Anna ergueu-se de um salto, ficou a olhal-o longamente, com as mãos a tremer. Todos se haviam voltado. Manoel ficara á porta n'uma immensa perturbação. Rosa tinha pousado o candieiro em cima da meza e o berço estava agora no escuro com os cortinados abertos, como um sacrário violado.
O medico mesmo endireitou-se, admirado da confusão que a brusca chegada de Manoel tinha trazido ; e foi a mulher do relojoeiro a primeira a fallar, aproximando-se.
-- Tem estado muito mal, coitadinho ! O que aquella santa tem passado! Não que nem com oiro lhe pagava, meu senhor...
Manoel cumprimentou o medico, foi atè Anna, sempre emmudecidae de pé, que não tirava os olhos d'elle.
-- Porque não mandaste dizer?
E como ella não respondesse, affogada em choro, voltou-se para o medico :
-- É coisa de gravidade, doutor?
O medico acenou com a cabeça, pediu que chegassem a luz.
Manoel poude vêr então o que restava do filho, desconhecendo n'aquelle cadaversito de cinco mezes a creança esperta e loura que ainda ha poucos dias lhe brincava nos joelhos. Tinham-n'o despido por ordem do medico e o pequenino parecia prostrado, com a cabeça cabida do travesseiro, abrindo de quando em vez as pálpebras sob que rolavam olhos embaciados deestrabico. Era um corposinho de uma magresa de esfomeado, com ura ventre inchado de passai"0 e um peito estriado de ossos, de joelhos curvos, em angulo, de mãos crispadas como as garras de uma ave morta.
O medico esteve-o auscultando longamente ; e apalpou-lhe as soturas do craneo, arregaçou-lhe os beiços, parado um momento a verificar as depressões das gengivas, a excavação profunda da abobada palatina. Depois, brandamente, experimentou a flexibilidade dos músculos e articulações contrahidas, foi percorrendo n'aquelle corposinho rachitico todos os phenomenos ataxicos da meningite.
Manoel encostara-se á parede, de olhos cheios de lagrimas, com um tremor de horrorisado na face. Anna cahira outra vez no chão e chorava silenciosamente com a cabeça encostada n'uma cadeira.
-- Ha muito tempo que esta ereança soffre de convulsões? -- perguntou o medico.
-- Faz dois mezes para a semana, -- respondeu Rosa, erguendo a facesita pallida.
Mas Anna levantou-se então, ouvindo a voz do medico ; e emquanto as lagrimas lhe escorriam pela cara, sustida de pé na furiosa consciência de um dever, contou largamente a doença em phrases já decoradas, dizendo os antecedentes de família : o pae epiléptico, a mãe thysica ; descrevendo o primeiro ataque na noite da partida de Manoel para Coimbra, a repetição dos accessos, os vómitos, a lenta contractura das pernas e dos braços, as melhoras apparentes do fdho e finalmente, n'essa noite, o novo accesso que a tinha atirado para a rua â procura de um medico, desvairada, em cabello, como uma doida fugida a um hospital.
Manoel ouvia a narração da tragedia ignorada feita aos haustos por aquella voz rouca e breve que ia tropeçando nas palavras, na pressa mechanica de dizer tudo, fazendo estendal de todos os terrores, sem esquecer um detalhe, um pormenor cuja falta viesse abalar o prognostico terrível.
Todos a olhavam. O medico balouçava a cabeça, ouvindo attentamente essa voz desesperada confirmar-lhe as supposições mais indecisas, pondo de pé toda a historia lamentável da doença. Ella contava tudo : a sua correria pelos consultórios ; os cem tratamentos experimentados a seguir; as opiniões discordantes dos médicos ; a via-sacra dolorosa com o filho aleijado nos braços, á procura de uma consolação e de um remédio.
O próprio medico olhava-a commovido, admirando a dòr devastadora que passava como um furacão na sua alma de mater dolorosa ; e foi elle que se precipitou e a susteve quando Anna, já sem voz, os olhos obscurecidos, se deixou tombar para traz, desamparada, com uma syncope. Levaram-n'a para a cama, inerte, como morta, emquanto o medico lhe tirava as travesseiras, procurando reanimal-a. Confusamente, Manoel percebeu que o medico ia sahir. Então levantou-se, vacillante, como um ébrio.
-- V. Ex.a volta, doutor?
-- Amanhã, depois do meio dia. Agora não está em estado de poder ouvir-me.
-- E a creança ?
-- É preciso não desesperar.
-- Eu de nada sabia; chego agora de Coimbra.
-- Sim, eu percebi que não era esperado.
E despedindo-se, já com a mão na bengala:
-- E preciso ter cuidado com a mãe ; um grande cuidado ...
Quando se viu só, Manoel entrou na alcova, sentou-se na cama perto de Anua, que parecia dormir. Rosa tinha ficado na sala a tomar conta da creança e o guarda-livros esperava que o mandassem embora, sem ousar sahir, no receio de que fosse preciso ir á pharmacia.
A senhora Catharina, ao lado da cama, tinha grandes suspiros, gemendo as suas phrases de lastima; e mal Manoel se sentou, a sua lamuria cresceu, morta por contar também o que sabia.
-- Ainda o senhor não sabe: o que mais a mortificava era a falta de meios. Assim pobrinha, com a creança n'este estado e a dever ao medico, á botica, com a roupa toda empenhada, sem ninguém que lhe fiasse quinze reis ! Cortava o coração ! Que eu bem sei que o senhor fazia a esmola de lhe mandar uma vez por outra alguma coisa... Mas quando entram doenças em casa não ha dinheiro que chegue. Vae-se tudo embora. Até parece malefício ! E sem poder trabalhar, coitadinha ! Muito tem ella resistido. Algumas vezes matei eu a fome á pequena, que ella até se esquecia de comer... Emfim, coisas do mundo, o senhor sabe...
Parava um instante para fingir um cuidado á doente, chegar-lhe o cobertor mais para os pés, afastar-lhe da fronte suada algum cabello, e logo recomeçava, espiando o mal estar de Manoel.
-- Pouco se lhe dava o resto ; a sua lida era toda por causa da creauça. O dinheirão que esta pobre de Christo gastou em médicos e botica ! Tudo o que podia dar algum vintém está no prego. Ainda ha de ser puxadinho para desempenhar aquelle mundo de coisas ! Isto aqui para nós : se a não teem apoquentado com as contas a mim o deve ! Sempre arranjei que esperassem pela vinda do senhor. E não foi fácil como lhe pode parecer. Não lhe deixavam a porta ...
Havia um instante que Anna parecia ouvir, sem forças para protestar. A sua pobre face muito pallida tinha leves estremecimentos. Ás vezes as suas pálpebras erguidas mostravam um baço olhar de rancor, immovel.
Catharina acabara por levantar-se; e agora ao lado de Manoel, descendo a voz, quasi em segredo, contava as misérias mais occultas, desvendando intimidades : o desleixo da casa, a triste economia de roupa branca, os lençóes mudados de quinze em quinze dias ; fazendo a exposição lamentosa doesse profundo desprezo em que a mãe afflicta deixara cahir o corpo, absorvida pela violenta exaltação da sua alma. E o estendal d'essa miséria affrontosa era tão penoso a Manoel que elle acabou por arredar bruscamente a mulher, tolhendo-a n'um brusco gesto de despedida. Anna agitou-se na cama, entreabrindo as pálpebras cançadas, apasiguada emfim pela sabida da outra; e Manoel procurou-lho sob a roupa as longas mãos : essas antigas pródigas de caricias. Apertou-lh'as em silencio, como para lhe dizer que o seu amor, apesar de tudo, permanecia o mesmo. Mas a verdade è que a torpe confidencia da mulher ajudara a desfigurar ainda mais o seu idolo. Via-a cabida na sórdida conspiração de uma intriga de bairro, desprestigiada no heróico desastre, cavando mais o seu humilde logar entre o povo; e elle sentia-se attingido por toda aquella miséria, ruborisado por aquella vergonha.
Os dois mezes solitários de Coimbra tinham trazido á sua alma fraca a coragem de continuar o romance de amor interrompido, mas no logar da amante encontrava uma mendiga. Já não bastaria o seu amor para suster a derrocada. Trazia beijos quando só o dinheiro era preciso. Aquelle desastre materialisava todo o seu sonho, fazia descer das nuvens a poética e sentimental audácia do seu sacrifício. Instinctivamente os seus escruplos de delicado obrigavam-n'o a recuar.
Como havia elle de accudir áquelle transe? Nunca mais existiria alli compensação ao seu sacrifício; e que podia elle sacrificar á salvação d'essa ruina? Agora, que a crise material se declarava, como sustel-a com uma mezada de estudante sem recursos?
Em tumulto a sua cabeça enfraquecida era assaltada por ideias e pensamentos derramados. Revia o tumulto de Santa Apolónia: a varina levada aos encontrões com um homem agarrado ao pescoço ; o calvo agitando a matraca ; o palhaço cuspindo no vidro da tipóia. Depois, por uma associação continua de factos, o trágico espectáculo do filho quasi morto, a historia da mulher do relojoeiro profanando a grande dôr maternal da pobre creatura com os detalhes vergonhosos da roupa branca, dos lençóes, da casa de prego, os dias de fome, os credores, as humilhações ; maculando de humildade e torpeza o sonho de poesia e de dedicação que elle sonhara entre as paginas dos philosophos nas tardes brandas de Coimbra. Houve um instante em que a visão confortavel da sua casa passou levemente, com o quarto dando para o Tejo, de persianas nas janellas, a grande cama antiga do avô sob o docel de velho damasco franjado e o nobre busto da mãe que atravessava com um farfalho de sedas um longo corredor tapetado e adornado de plantas...
E um mal estar physico invadia-o entre aquella pobreza, n'essa humilde intimidade de submissos.
Anna, quasi a medo, chamou-o, a pedir que lhe levassem a creança.
Manoel ergueu-se, foi até á sala onde encontrou ainda o guarda-livros, a dormitar, sentado a um canto.
Lá fora a chuva continuava, varrendo as vidraças; e pela sala desarrumada arrastava esse inconfundível ar de uma miséria e de uma doença. Tudo perdera o aspecto garrido de outros tempos : os tempos de alegria e de saúde.
O candieiro tinha o globo de vidro partido, collado com uma tira de papel; e exgottado o petróleo, fumegava, com uma pequena luz amarella de lâmpada.
Em silencio, Manoel despejou a carteira em cima da meza, acceitou do guarda-livros o favor de ir á pharmacia com a receita.
Mas de dentro Anna voltou a pedir a creança e Rosa foi deitar-lh'a na cama.
Manoel viu-a aconchegar o filho muito de manso ao peito, beijar-lhe a testa, abafando no seu calor a creancinha doente.
-- Sentes-te agora melhor ?
Ella balouçou a cabeça, estendeu sobre a cama o braço ainda lindo, fazendo-lhe um mudo signal para que se sentasse alli á beira d'ella.
-- Espera, meu amor, deixa vir o remédio. Foram por elle ainda agora.
Como Rosa tremesse de frio, agazalhada n'um chalé roto, Manoel mandou-a deitar -- que apagasse o candieiro e fosse dormir.
E quando Martins chegou com o remédio, Manoel fechou a porta, voltou para a alcova, emmudecido n'aquella condição passageira de pobre, não podend^ deixar de tremer á ideia de que essa vida de desconforto e penúria, tão humilde, tão dolorosa, tão obscura, era a de uma mulher que elle amara de todo o coração e de quem tivera um filho. Emquanto elle ia entrar pela manhã no bem estar de sua casa de família, calcando tapetes e poisando em veludos, Anna para sempre ficaria condemnada ao terceiro andar da pobresa, talvez á mansarda e á viella, com seus dias de fome e de lamentos.
O pensar que Anna tinha passado fome quando em sua casa os creados andavam fartos, deixava-lhe os olhos embaciados de lagrimas, ferido em pleno coração, quasi no infinito despreso de si próprio.
Tinha-se sentado outra vez na borda da cama. Era a noite de amor que viera sonhando desde Coimbra. Ha quasi um anno que os dois se não tinham encontrado sosinhos, áquella hora adeantada, juntos n'aquelle mesmo leito.
Durante um grande instante estiveram silenciosos ella olhando o filho dormir chegado ao peito, elle contemplando a devastação da sua face emmagrecida. Depois, na obscuridade, Anna ergueu mais o busto eManoel abraçou-a pela cinta n'uma longa caricia de pesar e de piedade. Sentia-lhe o calor da pelle sob a camisa ; os seus grandes olhos tristes tinham-se fixado n'elle, como a pedir-lhe perdão pela dor que n'esse instante lhe fazia padecer; e logo se poz a chorar muitobaixo, agarrada ao seu pescoço, para o sentir contra ella n'um desesperado abraço. Ficaram assim muito tempo, sem outro desejo que não fosse o de chorar.
-- Deita-te para baixo, murmurou elle. Não te quero mais doente.
Mas ella não o escutava, apertando-o mais de encontro a si.
-- Oh ! meu Manoel !
Tinham acabado por encostar as cabeças e elle sentia sobre a face latejarem as suas fontes.
-- Tão longe de pensar que vinha encontrar-te assim ! Ter sonhado tanto com esta alegria de te vêr..!
Mas subitamente calou-se, arrependido, sob o olhar anciosamente interrogativo que Anna pousava n'elle. Seria cruel fallar-lhe no renascimento imprevisto da sua paixão, agora que a via tão mortalmente ferida e se apagara d'esta vez para sempre esse ephemero desejo, accendido na solidão e no afastamento.
-- Ao menos se te pudesse ter commigo n'esta noite tão grande ! -- tornou ella -- Soffria menos se ficasses ao pê de mim a vêr-me chorar... Tinha tantas coisas para dizer-te ! Mas já é tarde, não é ? E tu tens de ir...
Quando Manoel disse que ficava com ella toda a noite, um infantil sorriso de alegria transpareceu no seu olhar de amargura. Ficou a fital-o, surprehendida, julgando talvez não ter ouvido bem. Foi preciso repetir-lhe que ficaria assim toda a noite a conversar com ella.
Anna escutava-o, deslumbrada, na doçura d'essa revelação, comprehendendo que Manoel vinha de Coimbra para continuar a amal-a como d'antes, passar nos seus braços toda essa grande noite.
Inundou-o n'um profundo olhar de agradecimento, como uma moribunda que volta a vêr a felicidade antes de morrer. Esteve calada por um momento, pensando, sem encontrar palavras com que dizer-lhe a profunda commoção que a penetrava.
No escuro agarrou-lhe as mãos, foi-as chegando devagar até á bocca e de novo ficaram os dois em silencio, acarinhando-se.
De repente ella teve entre a roupa um brusco movimento de decisão, sentou-se na cama encostada ás travesseiras :
-- Queria muito fallar-te !
Manoel sentiu a inquietação que a mortificava e piedosamente tentou desviar essa conversa dolorosa.
-- Temos tempo amanhã. Hoje precisas de descançar. Fica para ámanhã ...
E como ella resistisse, decidida, balouçando a cabeça:
-- Vá, tem juizo! Tudo se ha de remediar. Agora precisas de socego. Faze por dormir. É preciso agora que descances.
A pobre teve um triste gesto de desengano, emmudeceu por um instante. Depois, afastando os cabellos da testa :
-- O medico o que disse ?
-- Que voltava amanhã ; não perdêssemos a esperança ...
-- Ah ! vaes vêr agora ! Os outros médicos não sabiam nada! Veio ahi um que tinha o filho com um typho ! Diz-me o coração que este ainda o vae pôr bom ... Coitadinho ! Tem soffrido tanto ! E das contas não te apoquentes ; vão-se pagando a pouco e pouco. O que aquella mulher te disse ! Se tu soubesses ! Essa mulher foi a causa de tudo ; fez-me cabellos brancos ! Não me deixava a porta ! D'antes até o dinheiro me levava... Fizeste bem em mandal-a embora. É uma vibora !
Tinha-se exaltado, acordando da sua passividade, sentindo-se emfim protegida por alguém. Queria-o convencer da sua saúde, no receio de que elle a julgasse doente, incapaz de criar o seu filho, dar-lhe a sua vida e o seu sangue.
Mas Manoel, na violência dos seus protestos sentia o esforço que ella fazia para encobrir a penosa verdade do lento esmorecer das suas forcas, a sua incapacidade de lucta, perdendo a cabeça ao menor transe.
Prendera-se totalmente a elle, buscando a protecção do seu amor, pisando-lhe o hombro com a cabeça. Por três vezes tentou desenrolar a historia do seu soffrimento, desde o dia em que elle a deixara como morta, alli na escada, e partira para Coimbra. Mas logo a principio perdia-se em detalhes, negando indignada as calumnias com que a outra a estivera entorpecendo, querendo apagar a impressão affrontosa d'essas misérias desvendadas.
Soffrera da falta de meios para o não affligir, mas conservara-se sempre digna na sua pobresa, cuidando mais do fdho do que d'ella, tendo conseguido salvaFo por duas vezes, passando noites em claro, sem regatear dinheiro, sem se poupar canceiras. A sua culpa fora talvez a de não querer ir assustal-o a Coimbra com uma carta ...
Outra vez já nervosa tinha lentas, pesadas lagrimas nos olhos, accusando Deus pela incessante perseguição de tanta dòr. Dobrou-a depois um accesso de tosse cavernosa. Ficou esmagada, curva, muito tempo estremecida. A creança acordou ; e foi preciso que ella se levantasse, enfiando á pressa uma saia, mal embrulhada n'ura chalé, para a passear e adormecer de novo.
Nenhum d'elles fallava, comprehendendo o desnecessário de uma explicação, a inutilidade de uma mentira. Até ás duas horas ella caminhou na sala, abafando a tosse, adormecendo o filho. Quando voltou a deitar-se, transida pelo frio, Manoel arredou-se para lhe abrir um logar na cama arrefecida. Viu-a pousar devagarinho a creança, entalada entre dois travesseiros ; desfazer com um gesto cangado o nó do chale, desprender a saia, erguer mais a roupa, deixar cahir o corpo com o ar quebrado de uma fadiga immensa e adormecer de costas, succumbida, como uma afogada que se rende.
Apenas um grande sentimento de caridade o prendia áquelle pobre corpo adormecido. Nem restos de amor talvez; apenas uma profunda e enternecida piedade. Tinha havido um desmoronamento dentro do seu coração. Sentia-se mal no calor d'aquella alcova, perto da agitação do seu corpo, a meio d'essa pobreza que elle creara. Os seus escrúpulos antigos voltavam todos, mais vivazes, mais hostis contra a sua humildade; um malquerer por tel-a amado tanto ; uma egoísta accusação pelo seu sacrifício ; a vaga consciência de que ella não nascera para amante, fora exclusivamente creada para ser mãe.
A enorme angustia de Anna, dentro d'aquelle scenario pobre, não lograva engrandecer-se, tocada pelas azas da poesia. Era uma luz n'um atoleiro.
Manoel sentia uma violenta vontade de dormir e uma anciada pressa de se vèr longe d'alli, entrar no conforto de casa, convencer-se de que era ainda o mesmo e só por accidente se achara compromettido n'aquella tragedia obscura. Doia-lhe o corpo na posição contrafeita em que se achava.
Ouviu bater as três, as quatro, as cinco horas. De tempos a tempos a patrulha tropeava nos lagedos da rua silenciosa ; e quando emfim a treva principiou a desbotar nas frinchas das janellas, Manoel fez por erguer-se, cautelosamente, afastando o joelho, pisando com vagar o chão, parado a cada instante a vêr se ella doi-mia. Quando se encontrou de pè adeantou um passo, amparado á parede, em caminho da sala; e ainda esteve muito tempo com a mão no fecho da porta, contendo a respiração, sem ousar voltar-se, até que se atreveu a levantar o trinco, empurrar a porta, sustido em frente á escuridão que alagava a sala, escondendo a sabida. Foi preciso raspar um phosphoro na parede, accender a vela esquecida sobre a mesa, procurar o sobretudo e o chapéo; e só depois, cobrando animo, se aventurou no corredor, attingiu a porta, conseguiu vêr-se no patamar escuro.
-- Arre ! que aventura ! -- murmurou.
Gomo um preso que encontra a porta aberta, enveredou pela escada de corrida. Já em frente á rua enfiou o sobretudo, enterrou ás pressas o chapéo, tomando pelo passeio, direito ao Aterro.
Mal começava a amanhecer. Batiam as seis horas em S. Paulo. Nas ruas desertas e enlameadas os policias olhavam-n'o, seguiam-n'o por muito tempo, fixando o seu vulto apressado áquellas horas mortas.
Tinham-se apagado os candieiros e pelo Aterro adeante, por onde elle seguiu ao acaso, os raros caminhantes -- operários, gente do cães, catraeiros, um ou outro conductor de «americano» -- quasi paravam ao vero passar, com a roupa suja da viagem, a face vincada e dorida, com as botas de verniz enlameadas, calcando as poças ao acaso, rodando sempre a direito, de* mãos nos bolsos.
Agora, que essa pobre mulher não podia mais corresponder a um carinhoso ideal de romance, nem o prendia mais sequer pela belleza, morta como amante, tendo desapparecido a razão physica de a querer, profanada pela humildade em que o seu heroísmo abrira azas, o que tinha ella de commum com o seu espirito fantasioso, com o seu coração e com a sua consciência?
Onde havia de ir buscar dinheiro para amparar aquelle amor? E era no que mais pensava, quasi esquecido da parte sentimental em que o seu coração devia entrar n'aquelle drama. Tornara-se tudo aquillo uma questão de dinheiro. Tanto amor, tanta dor, tanto cuidado, tanto remorso; e ao fim, como n'uma historia banal com uma hespanhola da rua de S. Roque, a difficuldade do dinheiro, sempre o dinheiro a sujar tudo!
Não podia abandonar assim essa creança que era sua, deitar ao desprezo essa mulher que lhe pertencera. O filho precisava de um medico á cabeceira e era preciso dar dinheiro á mãe para o poder salvar, suster aquelle doloroso arremedo de familia que nascera de um amor de rapaz de vinte anãos. E seria aquillo um arremedo de familia ou uma verdadeira familia que elle se fizera, amando e procreando? Porque havia de abandonar aos cuidados de uma mulher fraca, desprotegida e doente, um filho de que era responsável? Não seria a elle, só a elle, que cabia o dever de amparar essa creança nascida do seu sangue? Seria preciso, para elle, que sentia e pensava a verdade, a obrigação formulada perante a lei para se tornar o responsável do seu acto de amor? Decerto que não, e repugnava-lhe a ideia de que fosse preciso para o obrigar a cumprir o seu dever moral a sujeição a uma obrigação social, protegida pelo código. O facto permanecia o mesmo na essência -- a familia estava creada ; precisava de olhar, cuidar por ella.
A meio da sua aíílicção, quando lançava olhos de soccorro para o preconceito, não encontrava argumentos que desculpassem honestamente a repudiação ; e sentia maior a sua responsabilidade, livre e entregue assim á consciência, sem uma dura lei a empurraFo, livre inteiramente de fazer quanto lhe aprouvesse. A lei fora instituída para determinar a responsabilidade do pae e elle, que era pae, estava fora e ao abrigo da lei.
Sempre a andar, atravessara o largo do Corpo Santo, enfiava já pela rua do Arsenal quando deu por si, com as botas encharcadas, com as calças sujas de lama, arrastado ao acaso pela rua.
A caminhada acalmara-lhe os nervos. Accendeu um cigarro sob o alpendre de ferro onde ainda não estacionavam carros ; e tomou direito ao passeio, mirando as altas casas silenciosas e fechadas ; o Hotel Central ; uma carroça que ia passando, vagarosa, puxada por um cavallo trôpego de grandes clinas brancas.
Abriam-se as portas da ponte dos vapores para a primeira carreira de Cacilhas e logo á esquerda se estendia o Tejo, onde um preludio de movimento animava as agoas turvas. Na estação do cães de Sodré, ao longo do miserável apeadeiro de taboas, correndo em frente aos terrenos fétidos do mercado do peixe, um comboio estacionava, prompto a sahir. Kiosques começavam a abrir, descerrando os taipaes ; e já um grupo de varinas balouçava ao longe no areal as saias negras sobre as canellas brancas.
Ficou um instante parado, a descançar os olhos no vasto rio, que Se ia espraiando no Seixal até ao Barreiro, n'um manso golpho azul, e abria em rotunda até ás casarias de Aldeia Gallega, com o seu outeiro da Atalya ao cimo.
Manhã de Domingo, os trabalhos do porto estavam suspensos; as dragas immoveis jejuavam, sem a sua ração habitual de lodo. Fragatas de carga, aconchegadas, dormiam aos balouços ; e tardiamente, n'um navio de guerra, o toque da alvorada vibrou na madrugada fria.
Manoel abalou de novo, e até casa foi quasi uma carreira, impaciente, apressado, no largo desejo de chegar depressa.
Foi preciso tocar duas vezes á campainha antes que o guarda-portão viesse abrir, embrulhado n'um varino, pedindo desculpa da demora, na surpreza de «vêr assim o menino, áquellas horas, batendo á porta n'aquelle estado.»
Manoel explicou lentamente, emquanto limpava os pés no grande capacho da entranda, que Lisboa estando cada vez mais selvagem, os trens já se não davam ao incommodo de ir esperar os passageiros para o Rocio.
-- Se V. Ex.a tivesse prevenido chegava lá o Zarolho com o landeau ... É homem de conQança, podia estar socegado. Apresentava-se lá para o trazer por essas lamas, ao abrigo da humidade e da chuva.
Manoel esboçou um vago gesto de paciência e tolerância. Perguntou se estavam todos bons e preparava-se para subir quando o creado perguntou:
-- Não traz a malinha?
Só então Manoel se lembrou da mala, esquecida em casa de Anna, no patamar ; e logo explicou que a mala ficara também na estação, pelo receio de a entregar a um moço-- estando todos bêbedos desde a véspera, segundo o costume.
-- Com o entrudo é isto...
O creado acenou mudamente com a cabeça e aventurou ainda quasi a medo :
-- Se V. Ex.a quer, chega-se lá por ella n'um instante.
-- Logo; logo vemos isso...
Com cuidado, para não sujar a passadeira encarnada, retesa nos varões de metal amarello, subiu os degráos do vestibulo, rodou pelo corredor, mais sereno, retomando facilmente o seu logar de senhor a meio d'aquelle bem estar de casa rica.
-- Vá você chamar o Domingos e que me suba agoa quente ao quarto.
Subiu devagar as escadas, no grande silencio da casa adormecida, parado um instante no patamar a vêr-se n'um grande espelho que derramava na parede, entre duas velhas cadeiras de espaldar, a sua chapa branca, n'uma molduira de talha onde pássaros heráldicos debicavam cachos de uvas.
Estava immundo, com a face suja do poeira e de carvão, a barba por fazer, a roupa amarfanhada, as calças salpicadas de lama.
Acabou de subir depressa o ultimo lance, abriu a porta do quarto, quando o Domingos appareceu, para accudir ao desarranjo.
-- Vir por ahi abaixo com este tempo !
Manoel recomeçou a historia dos cocheiros e dos moços de bagagem emquanlo o creado abria as portadas, subia as persianas, inundando o quarto de luz.
-- Ora coisa assim ! Chegar sem ter nada prevenido!
E depois de o fixar religiosamente:
-- O senhor Manoelsinho vem doente ?
Manoel, sorrindo de leve, disse que não. Trazia somno e vinha sujo de pó.
-- Pois para isso ha bom remédio. É tomar um banho e deitar-se.
Depois de accender um cigarro, Manoel sentou-se na cama, estirou os braços, com um longo bocejo; e emquanto o Domingos lhe descalçava as botas enlameadas, elle ia sentindo o doce bem estar d'aquella abundância que docemente o protegia e acarinhava, tão outro, já tão indifferente aquelle drama em cujo seio passara horas de tão infinitas angustias, como se nunca tivesse deslisado d'esse socegado bem estar para o meio da realidade dolorosa da vida.
E já quasi lhe parecia um vago sonho a pobre historia d'esse filho morrendo n'uma mansarda, quando o creado, depois ter aberto a cama, estendeu sobre a velha colxa de damasco a camisa de dormir, que uma caixa de sabonetes, esquecida na gaveta, perfumara com um forte odor a benjoim.
III
Na segunda-feira, ao descer para o almoço, Manoel vinha desfigurado e pallido.
A mãe parou de arranjar nos solitários um molhe de crysanthemos amarellos, olhando o filho que vinha direito a ella, a tomar-lhe a benção.
O pae pousou o jornal, surprehendido também.
-- Deitaste-te tarde ?
Manoel disse que não ; fallou n'uma dòr de cabeça, queixou-se de uma dòr de estômago.
-- Talvez da humidade. Deve ser d'este tempo.
A mãe percebeu o embaraço com que elle mentia, voltou ás flores, addiando a explicação para mais tarde. Mas o pae, desprevenido, inquietava-se, vendo a rápida depressão da sua face, cercando-o de perguntas, a testa fransida de receio.
Aquelle era a bem dizer o seu único filho : o filho que seria o herdeiro da sua casa e do seu nome. Acostumara-se já á ideia triste de que o filho mais novo, tão fransino e doente, fosse fazer companhia aos outros três no jazigo de família. Essa fatalidade que perseguia os seus filhos viera avolumar na sua alma cangada o amor por Manoel. Era n'elle que punha todas as esperanças : o sonho de perpetuar uma velha casa arruinada, de que conseguira apenas salvar os fundamentos, depois de uma vida de ambições e de batalhas.
Desde a morte do pae que esse grande sonho entrara com elle. De então possuira-o uma ardente febre de ganho que desmanchou aos poucos a sua sóbria linha de fidalgo, na frequência das casas de negocio, companhias, bancos, compromettendo-se em aventuras arrojadas, reconstruindo a golpes de audácia a fortuna antiga dos Castros, esbanjada pelas prodigalidades do morgado das Infantas. Quando cuidava já ter conquistado a riqueza, a quebra de um banco e a fallencia de uma casa de negócios na Africa vieram de novo abalar a fortuna readquirida. Liquidadas por esse tempo as sobras do fracasso, Francisco de Castro afastou-se da vida activa de especulação, conservando apenas a sua influencia como director da Comi)anhia Colonial, de que fora um dos principaes organisadores. Aos poucos, ia refazendo na ociosidade a sua antiga linha de homem nobre, mas devia-lhe ficar para sempre, como uma nódoa indelével, o grande senso pratico do negociante, secco e auctoritario, dando valor demasiado ao dinheiro e intransigente, sobretudo, em coisas de interesse.
Restava-lhe a poética aspiração de vêr o seu nome continuado dignamente, representado por um bacharel em direito, capaz de reerguer a casa por um casamento abastado com uma herdeira da provinda. Quando viu a sua fortuna bruscamente reduzida, vendeu estoicamente as carruagens, fechou as baixellas nos guarda-louças e preveniu a mulher de que terminavam os jantares das quintas-feiras e a recepção das terças.
Pacientemente, esperava que o filho se formasse para o coroar com os restos da sua influencia, ajudaVo a subir, atravessar a evidencia de um cargo de confiança politica, sentafo na Camará e conseguir-lhe a rica provinciana, herdeira de nome e bens, que teria bellesa, solar e fartas terras de renda.
O mal estar do filho incommodou-o. Quiz saber se aquillo lhe dava em Coimbra ; fallou mesmo na conveniência de mudar d'aquelle sujo hotel da D. Joanna, onde viviam revolucionários e paravam caixeiros.
O seu receio era que o filho, cahindo doente, viesse a perder o anno.
Isso viria complicar a realisação breve do seu futuro, que já o occupava por esse tempo, preparando-lhe o terreno para os triumphos fáceis, abrindo-lhe logar n'um partido, acarinhando de longe o circulo eleitoral.
Depois do almoço, obrigado a sahir, aconselhou a Manoel que se deixasse ficar e mandou-lhe dizer aiada do portal que estava vento e frio lá fora.
Manoel, mal acabou de tomar o café, subiu apressadamente ao quarto, fngido ao olhar inquieto da mãe.
Lembrara-se de escrever ao Queiroz, pedir-lhe para vir a Lisboa e aconselhal-o no transe difficil, incapaz de se dirigir por si, como uma creança timida que uma primeira difficuldade desconcerta.
Ainda não pudera acostumar o espirito a esse drama brusco em que abortava a sua aventura d'amor. Emquanto a vida se lhe desdobrara aos pés com uma tessitura de romance, enpennachara-se com a pretendida heroicidade de proclamar o filho e amparar aquelles amores mortos. Mas agora atordoava-o aquella queda sinistra n'um episodio dramático de miséria e esbracejava como um naufrago tomado de pânico.
Começou então a carta dolorosa, dizendo a sua chegada a casa da amante -- Anna quasi doida, a creança quasi morta, -- e depois de exaggerar a situação lamentosa em que viera encontrar a mãe e o filho, repetia lentamente o terrível diagnostico do medico.
«Um degenerado, vê-la -- um degenerado que è meu filho e que vae morrer se não lhe accodem, de uma paralysia ou de uma tysica mesentherica. O medico hesita, assombrado pela somma de estigmas que o cobrem, errando dez vezes o diagnostico quasi ao seu termo, tantas parecem ser as doenças que minim esse corpo pequenino por onde anda o meu sangue. O medico prohibe que Anna continue a crear o filho e accusa-a de ter deixado a creança chegar áquelle estado. Ella, coitada, fez o que podia. A sua grande culpa foi a de me querer tirar cuidados. É evidente que todos os médicos antes d'este erraram os diagnosticos, pouco caso fizeram d'essa creança pobre cuja cura lhes não trazia lucros. É forçoso que venhas para falhar com o medico e aconselhar-me. Minha mãe começa já a inquietar-se, talvez em vésperas de adivinhar o qne succede. E é assim forçoso que tu venhas.
Ambos juntos venceremos mais depressa as difficuldades ...»
Mas emquanto ia juntando palavras, um grande abatimento vencia-o ; e trespássou-o como uma chuva fria o intenso desanimo dos fracos.
Que podia fazer o Queiroz? Nunca esse homem rude, despido de preconceitos como um bárbaro, comprehenderia quanto havia de insupportavel na sua situação. Ia talvez espantal-o a resistência do seu coração em amar como d'antes aquelle lar pobre de miséria ; o escrúpulo que punha na compassiva piedade por essa pobre mulher envelhecida, magra e pallida, sempre a chorar e a tossir. E elle não podia gritar-lhe a egoista covardia da sua carne, quando o seu mal era justamente só aquelle. Não, não podia dizer-lhe: -- agora que isto me pesa vaes ajudar-me a alijar esta carga !
Nervosamente, rasgou a carta; e como uma creanca vencida, atirou-se a uma poltrona, a chorar.
Mas logo um leve rumor de sedas roçou a porta e a voz da mãe perguntou :
-- Posso entrar ?
Manoel indireitou-se, fulminado pela surpreza d'aquella visita. Em um instante limpou as lagrimas, correu a abrir a porta.
-- Sentes-te melhor?
Elle ia a responder uma mentira, queixar-se, buscar o pretexto de uma recahida, quando a mãe impulsivamente o abraçou, banhada em lagrimas.
-- Manoel ! Meu filho ! Que tens tu ? Sê franca com tua mãe, meu filho. Dize-me o que tens. Não te quero vêr assim, filho !
Colhido na surpreza d'essa grande dôr e ao contagio d'aquellas lagrimas, nervosamente elle recomeçou também a soluçar.
E já ella, receosa, lhe pedia que socegasse, não se fosse abandonando assim ao desespero. Tudo tinha remédio; tudo se havia de arranjar. Fosse lá a baixo ao quarto ter com ella logo que se sentisse roais tranquillo.
-- Melhor é que seja a mim que contes tudo, Manoel. Teu pae é muito imipressionavel : qualquer coisa o aíílige... Yá, não chores. Não chores, filho.
Para o serenar, ia desviando a conversa, faltando em mandar vir para cima um buíTete de páo santo que fora do avô.
-- ...para pousares os jornaes e os teus livros. E sorrindo, com um grande esforço que lhe entristecia mais a face :
-- Tu foste afinal o herdeiro dos moveis do papá. Coitado ! Gostava muito de ti ! Fazia-te chapôos de bicos, contava-te historias de ladrões... Que paciência que elle tinha !
O seu profundo olhar azul ergueu-se até ao retrato de Lupi que pendia da parede na sua velha moldura oval. O fidalgo parecia fixal-a com tristeza sob o largo chapéo desabado, á Rubens, apertado n'uma redingota côr de avellã com alamares, onde brilhava no rebuço a roseta de Christo.
Mas como Manoel permanecesse calado e sombrio, ella, carinhosamente, disse, pousando-lhe a mão no hombro :
-- Se me quizesses dizer tudo, mesmo aqui...
Então Manoel vacillou, quiz ainda negar. Por um instante procurou uma desculpa ; e como a mãe continuasse a olhal-o, sempre à espera, com uma supplicante expressão na face triste, elle tomou-lhe amorosamente as mãos, beijando-a na testa :
-- Vou já ter comtigo... Espera-me na sala.
Ella sahiu com um profundo suspiro que lhe levantou o colo sob o roupão de seda ; e ainda por instantes as suas saias rugiram no descer lento das espiadas.
Chegada a baixo ao quarto, a força que a tinha sustido de pê em frente ao filho, abandonou-a ; e deixou-se cahir na primeira cadeira, vergada como sob um desastre.
O que iria ella ouvir? Todo o seu amor de mãe estava agora alarmado pelo perigo que ameaçava o seu filho.
Manoel nunca comprehenderia o soffrimento em que a mergulharam essas duas infinitas horas de sobresalto, emquanto elle em cima perdia o tempo a torcer inutilmente os braços, compondo mentalmente a narração que teria de fazer, tentando persuadir-se da irremediável necessidade d'aquelle desabafo, salvando a sua consciência de timorato no argumento exclusivo de uma falta de recursos lastimosa, d'onde a precisão de arranjar uma protectora para o filho, que o desembaraçasse d'aquelle encargo de amor e de dever.
De toda a cinza d'essa paixão morta nenhuma braza de amor sobrevivia. A inutilidade de qualquer esforço era flagrante. Apenas uma impressão de peso o molestava. Se se atrevesse a querer por um instante com a energia com que todo o sentimento profundo levanta uma vontade, de certo se envergonharia de ter chorado e batido em retirada ao primeiro perigo. N'outros tempos, com pequenos recursos de estudante, quantas diíficuldades vencidas !
Então pudera alugar e mobilar para ella a casa onde ia nascer o filho ; atrevera-se a proteger a mulher que elle amava, fascinado pelo romantismo juvenil d'essa paixão. A esse tempo sentira pesar-lhe na consciência o dever de acarinhar a amante em perigoe proteger a creança innoceute ; invocara para defender a sua paixão as mais generosas theorias ; sentira-se capaz dos mais heróicos esforços; e só quando o abandonava a generosa bondade ephemera d'esse amor elle renascia egoista e pusilânime.
De que lhe valera essa epocha anormal de consciente liberdade, em que defendera tão briosamente o seu dever, se elle não era assim, homem de decisão e compadecimento? Só ao calor fugitivo da sua paixão tinham conseguido desabrochar essas virtudes. A consciência d'antes tão forte do dever evaporava-se. Não o tinham creado para o peso de uma realidade triste e necessária. Já agora o dever apparecia erriçado de espinhos, como um encargo. D'antes, esse dever chamava-se amor; agora esse amor chamava-so oppressão. E eile reagia. De toda essa mocidade apenas vivera por instantes a virtude generosa com que todos a apregoam, para logo morrer fenecida como uma flôr ephemera. Que importavam a paixão do seu espirito fascinado pelo bem, a influencia superficial das grandes theorias dos philosophos, se a carne vencia sempre o espirito, acabava sempre por rebelar-se, levando de vencida o seu inimigo, mais forte do que elle porque é o corpo onde elle vive, a prisão onde elle vegeta, sem uma porta sequer para a evasão ?
Já sem desejo, o corpo recusava-se a soffrer pelo bem d'aque!le espirito talvez ainda ancioso de virtude. Tudo lhe ajudava aquella covardia. O mundo não lhe queria melhor se o visse sacrificado ao seu dever. O preconceito absolvia-lhe a falta. Nunca lhe seria dado rehabilitar aquelle filho e fazer absolver aquelhi amante. A ninguém aproveitaria assim o sacrifício da sua vida.
Não era ainda o abandono que Manoel meditava. O seu espirito consentia em conservar o laço imraaterial d'aquella responsabilidade, mas o seu corpo repellia o encargo material e penoso d'esse dever. Ao certo não sabia o que exigir da mãe em troca da sua confidencia. Sentia-se incapaz da heróica mentira de Dezembro, já sem o amor exaltado por esse lar onde uma mulher bonita lhe amamentava um filho loiro. A mulher envelhecera e o filho, de lindo que d'antes era, quasi lhe parecia agora monstruoso, como um exposto disforme que a mãe aterrorisada deita á roda. A sua carne de delicado repellia aquelle aborto enfezado e rachitico. Seria incapaz de votar aquelle animalsinho decomposto o idylico amor de que pudesse ainda resurgir a energia perdida. Ceder-lhe-hia quando muito a sna piedade. Não o podia amar. Se até tinha medo de lhe dar um beijo !
Por muito tempo procurou coordenar ideias, apasiguar o alvoroço da sua consciência perturbada. Admirava-o a rapidez d'aquella derrocada affectiva. Havia só dois dias que sahira de Coimbra no absorvente sonho de restituir á amante o seu privilegio de eleita, abrazado na febre de a possuir, desmaiando-lhe debaixo do peito, mergulhando a bocca na sua bocca ; e pensava agora em desterral-a, vingando-se d'ella não poder corresponder ao seu sonho ambicioso e não se conformar ao seu romance.
Nunca poderia habituar-se á convivência d'aquella miséria, perto do seu corpo desfigurado, a ouvira chorar e tossir. Anna já não era a mesma. A felicidade emprestara-lhe por momentos a graça de um encanto physico já morto. Na dôr ella remergulhara na miséria da sua raça, sem artifícios e sem resistência, com uma humildade de mendiga, submettida á asperesa da sua sorte. Por isso o coração a não reconhecera n aquella mulher emmagreeida e descuidada do corpo, surprehendido de outr'ora a ter julgado tão linda, com os olhos profundos, o perfil elegíaco, as longas mãos de princeza ...
Quizera-lhe mal por aquella decadência que tanto magoava a sua vaidade. Essa miséria em que a vira, deshonrara toda a sua paixão; e abaudonafa-hia agora sem remorsos, desde que a amante commettera o crime de não corresponder mais ao seu desejo.
Ao fim de tudo a sua paixão fora exclusivamente physica e os seus vinte annos tinham amado apenas em Anna a sua linda matéria. No fundo dos grandes affectos ha sempre um grande egoismo ou uma grande conveniência. Entre os dois nada havia de espiritual que os prendesse; e ao próprio filhota doença íizera-o baixar da fantasia a uma realidade penosa.
Como a lembrança do Queiroz, tão feliz ao lado da sua Maria da Graça, lhe acendia por vezes a embaraçal-o, elle argumentou ainda, afastando escrúpulos, convencido da desigualdade que os desunia, a elle todo delicado, com soberanias de sangue e exigências de pelle, ao outro equilibrado e forte como um primitivo, nu de preconceitos como um bárbaro. E entretanto não cessava de o admirar, convencido de que n'esse grande animal morava um soberano espirito. Bem no intimo, sentia-lhe a superioridade, surprehendido da perfeita concordância de todos os seus actos, o equilíbrio de todas as suas funcções. O que n'elle haveria de ser desenvolvido pela força da sua vontade e enérgico propósito de virtude, em Queiroz era consequência natural de educação e de meio. Para Queiroz, incapaz de se apaixonar pelo requinte gracioso de um gesto, insensível ao espiritualismo de uma face de linhas purificadas pela casta, rude por natureza, phisiologico por Índole, Maria da Graça era a boa mulher, incapaz de o perturbar, ignorante e pacifica, sem mysterios e sem desiquilibrios, mulher que não conseguiria arredafo da sciencia. Bastavam os seus grandes olhos veludosos, a linha redonda do seio, a forte architectura do seu corpo, para a estimar como um prazer physico, confiante de que os seus filhos seriam fortes como ella. E lá no Douro, entre as povoações rústicas e humildes da aldeia, a Maria da Graça thronaria como uma rainha. Fosse o Queiroz um homem da cidade, marcando lugar dentro de uma casta e precisando conservaPo, acostumado desde pequeno á convivência da mulher vestida de sedas; e seria impossível aquelie amor brutalmente physico. Revoltaria pela sua ausência de ideal, todo carne dentro de uma sociedade toda depravação, ousando a verdade n'um meio todo postiço e todo de mentira. Pensando bem, o que elle chamava heroísmo seria quasi um impudor. Cada um tinha de ser governado pelo preconceito do seu meio. Assim como a burgueza -- em riscos de ser affrontada e expulsa -- não pode arrogar-se a fantasia de ura amante, em contradição com a aristocrata que cultiva os seus amores como plantas de estufa, assim elle não podia medir-se pelo Queiroz, em riscos de ser banido do seu meio, como um ultrage.
Ao fim de tudo quizera talvez ser como elle; e vinha-lhe uma grande tristeza de tanta acção justa e boa tornada impossível pelo egoísmo e orgulho do homem. Envergonhava-o ter de sacrificar a mãe de seu filho á sua própria mãe. E n'essa lucta que as duas por ventura iam de ter, o coração dizia-lhe que entregava á sua mãe a mais injusta causa, a defesa da sua tranquillidade egoísta, o bem estar de um criminoso e de um responsável. Se ainda pudesse conseguir d'ella uma protecção áquelle pobre lar! Mas quasi adivinhava que o seu empenho estaria pelo contrario em o desmanchar. AmparaPo seria alimentar o perigo e conservar-lh'o cuidadosamente para o futuro, sem contar que as despezas seriam grandes para fazer entrar um pouco de bem estar n'aquella pobreza. E tirar-lhe o filho, a essa pobre mulher doente e tão sosinha, magoava-o como uma crueldade.
Esteve um grande momento parado á porta, pensando. Depois, lentamente, com passos hesitantes e difficeis, foi descendo as escadas.
Na sala de brunir uma creada cantava ; ouviam-se pancadas de ferros cahindo no descanço. N'um raio de luz, coado de uma fresta, dançava um rio de poeira.
A lembrança do que soffrera na véspera, ouvindo o medico, a tarde tristíssima que passara ao lado de Anua, deante do horror do filho quasi aleijado, que ella continuamente beijava com devoção, saccudiu-o n'uma grande energia. Atravessou então resoluto o corredor.
-- Posso entrar ?
E arredando o reposteiro, fechando a porta atraz de si, caminhou pelo quarto até ao divan onde a mãe se endireitou ao vel-o apparecer.
-- Fiz-te esperar muito, não fiz ?
Ella deixou-se beijar, disse que não, com uma pobre voz que tremia.
Manoel arrastou uma poltrona, penosamente. Durante um longo minuto tentou começar a confidencia mas desamparavam-n'o as forças, sentia que não teria animo, acobardado, indeciso, sem ter comprehendido que a fatalidade o arrastava e não poderia libertar-se d'aquelle preconceito feroz em que jazia preso. E de novo, de repente, o conflicto sentimental o enleiou.
Como a mãe anciadamente o olhasse com as pálpebras já húmidas, rompeu a chorar como uma creança, agarrando-lhe desesperadamente as mãos arrefecidas de susto.
Mas era preciso acabar com essa situação tão intoleravelmente dolorosa. A meio das suas lagrimas de fraco restava-lhe a consciência do quanto lhe era preciso ser forte. Desde que fora demasiado longe tornava-se preciso ir até ao fim. Sua mãe soffria e chorava; e essas lagrimas que o sensibilisavam, decidiram a sorte lamentosa da amante. Nunca teria forças para resistir sosinho, elle que qualquer emoção abalava e em que uma educação feminil não pudera ainda fazer nascer a decisão de um homem.
Apressadamente, em phrases nervosas, murmurou a dolorosa historia, dizendo a doença do filho, as ordens terminantes do medico, o impossível para a sua consciência de abandonar a creança e deixal-a morrer desprotegida.
E a mãe, subitamente serena, agora colhida na surpresa d'aquelle drama de amor e de piedade, abraçava, o seu filho, interessada por aquella caridosa missão que Manoel tão confiadamente ia entregar-lhe.
Mas o seu coração de bondosa não estremecera á lembrança do neto. Instinctivamente, o seu sangue rejeitava aquelle descendente nascido de uma pobre e de uma humilde, e era apenas a piedade convencional das caridosas que assim a enternecia por aquelle drama de miséria onde gemia um pequenito.
Ao mesmo tempo a mãe acordava n'ella, ante a ameaça do perigo que por ventura n'aquella mulher plebeia e com certeza linda, poderia existir para o seu filho, para o filho d'ella. Seria preciso afastar depressa essa mulher, exilando-a para longe.
Debalde elle se esforçava por lhe tornar sympathica a heróica e dolorosa figura de Anna. Um secreto instincto de inimiga continha-a receosa e desconfiada em frente d'essa mulher desconhecida. D'ella apenas sabia que fora a seductora constante, durante dois longos annos, de seu filho; e governara sem partilha no seu coração novo, como uma despótica amante sem rival. D'ella sabia apenas que tinha tornado possível com o seu amor a desgraça de seu filho e que ainda governava na sua alma, para que assim elle a defendesse e elevasse, perdoando-lhe a culpa e proclamando-lhe o sacrificio.
E como cada vez Manoel defendesse com mais vehemencia aquelle pobre lar, para lhe conquistar a maior somma de benefícios, procurando estremecer até ao fundo o coração compassivo da mãe, ella balouçou a cabeça, afagando-o, crédula de que esse ardente interesse correspondia a uma paixão ainda viva, desconhecendo o conflicto moral em que se torcia Manoel n'aquelle instante.
-- Socega, meu filho. Tudo se ha de arranjar. Eu tomarei conta d'essa pobre creança e nada lhe faltará. Havemos de fazer o possível por salval-a; e se Deus não o permittir, ficaremos ao menos com os nossas consciências tranquillas... Fizeste bem em desabafar commigo. Confia em mim. Não sei de nada de que uma mãe não seja capaz pelos seus filhos.
-- Mas ella também, que está doente...
-- Não te afflijas. Quando descançar um pouco das canceiras da creança logo melhora. É preciso deixal-a socegar... Tem de cuidar da sua vida, pensar no seu trabalho... e não te atormentes! Pensas que só ella existe n'essas condições ? Se não fosses tu, seria outro... Essa pobre gente não tem os nossos escrúpulos, filho. Muito feliz foi em ter dado comtigo, em ter dado comnosco !
-- És injusta. Se a conhecesses nunca dirias isso!
-- Tu nada sabes da vida, filho. Ter coração é bom mas sabel-o gastar é melhor. Ninguém pode fugir á sua sorte e não havias de querer sacrificar-te por ella...
-- E porque não?
-- Ah! filho! Porque tens o nosso nome a respeitar; porque é preciso vêr as cousas como ellas são e não querer fazer de um simples episodio de mocidade, estouvadamente, a causa de uma desgraça sem remédio. Pensas por acaso casar com ella -- com essa mulher? Mas então? Essa mulher não ha de viver eternamente á tua custa. Basta que não lhe desarranjes a vida e tomes conta de teu filho. Deixa-a trabalhar... Se me tivesses fallado ha mais tempo, tudo estaria a estas horas regulado ...
Levantou-se, nervosa, já na pressa de definir a situação difíicil, arredar para longe o perigo, libertar o filho d'aquelle compromisso ameaçador.
-- Deixa a coisa commigo. Onde mora essa mulher?
Manoel teve um secreto ímpeto de revolta em frente á serenidade com que ella desmanchava esse pobre lar doloroso, como uma creança que desfaz um ninho ; a crueldade com que se preparava para arrancar á mãe desgraçada e sosinha o filho doente ; e assim annullava n'um momento todo o seu passado de amor. Durante instantes esteve calado, de olhos baixos, sob o olhar inquisidor da mãe; e acobardado ainda, contido por um respeito de creança, respondeu, disse a morada de Anna.
-- Andar ?
-- Terceiro...
-- Bem, deixa-te estar. Vou lá n'um instante : espera-me.
-- Mas que vaes fazer ?
-- Salvar-te, salvar essa creança, salvar essa mulher !
-- Talvez ! ...
-- Ha de ser o que Deus quizer, filho.
-- E ... elle ? Para onde o levas ?
-- Tem confiança em mim. Isso é commigo. Ella tem dividas? Sim, deve ter. É uma pergunta escusada.
Manoel viu-a pôr o chapéo, calçar as luvas ; e n'esse instante em que ella se arrojava ao perigo para o salvar; quando ella, para o defender, conseguia miraculosamente aquella crueldade animal e egoista, o filho queria-lhe mal, rancorosamente, envergonhado da sua tibieza em frente da sua energia, humilhado por aquelle exemplo que ella lhe dava, mãe defendendo o seu filho até ao esquecimento das mais delicadas noções da caridade e do amor, quando elle abandonava o seu por não se sentir com forças para passar por cima de um preconceito.
-- Se teu pae vier, dize que fui fazer uma visita.
Depois, vindo até elle, curvando-se para um beijo.
-- É para teu bem, meu filho.
E emquanto o filho ingratamente a maldizia, a mãe leve que parar no corredor para enxugar as lagrimas e socegar um instante, chamando a si todas as forças para poder levar até ao fim a missão cruel.
IV
Ouvindo bater, Anna parou de embalar o berço e logo todas as suas saias barulharam em caminho da porta. Na sua tristeza ainda pudera encontrar um sorriso, e a branca mão tremeu ao desandar da chave, emquanto na sua voz de caricia ia dizendo :
-- És tu, Manoel?
Mas ao abrir a porta, em frente do olhar grave que a fitava sob o véo espesso, Anna recuou, sustendo um grito.
Uma doce voz, um pouco tremula como a sua, perguntou :
-- Chama-se Anna, não é ?
-- Sim, minha senhora ...
Na cara abatida passou-lhe um tremor quando a outra ergueu o véo. Á semelhança d'esse rosto com o de Manoel logo o coração lhe adivinhou que ella era a mãe. Sem quasi saber o que fazia, correu a chave, logo sumida de encontro á parede para deixar passar a inimiga. Desandou depois atraz d'ella, como uma serva, até á sala, olhando-a sentar~se tranquillamente n'uma cadeira e arrumar com vagar a saia de veludo.
-- Venha cá ... Sabe quem eu sou ?
E continuava a ser de uma grande doçura essa voz que lhe fallava.
Anua poz os olhos no chão :
-- Não, minha senhora, não sei ...
-- Sou a mãe do senhor Manoel. Vá, então! Porque chora?
Anna deixara-se cahir n'uma cadeira, escondendo o rosto de repente inundado de lagrimas; e por um momento as duas mães estiveram caladas.
Mas a serena e doce voz acordou, mais tremula :
-- Não chore. Não vim ter comsigo para a fazer soffrer. O senhor Manoel disse-me tudo... Foi uma grande desgraça para si, minha menina. Mas tudo se ha de arranjar, socegue. -- Faz favor, fecha-me aquella janella? Bate-me o sol na cara...
Anna ergueu-se, obediente, enxugando as lagrimas.
-- Obrigada. Precisamos de conversar agora muito a serio, como duas amigas...
E a sua voz descançou na ultima phrase, como no custo de a proferir, ao seu orgulho doendo aquella concessão de tratar a outra como amiga.
Mas Anna, em vez de serenar, rebentou de novo n'um violento choro, comprehendendo o que a esperava para soffrer d'aquella severa e branca mulher vestida de veludo. As suas mãos afiladas e pai lidas, emmagrecidas na canceira da doença, tremiam, desmanchando pregas na saia pobre e desbotada de setineta.
Tinha medo como se tivesse commettido um crime e respondesse ao juiz.
A consciência da sua vida deshonesta sobrevinha-lhe, envergonhando-a, tirando-lhe forças, curvando-lhe a cabeça. A outra apparecia-lhe como a verdadeira mãe, calma, orgulhosa e sem macula, forte dentro da sua força, tendo por si a lei e o respeito dos homens. E essa consciência magoava o seu coração de simples n'uma dôr intensa e aguda.
-- Vê-se logo na sua cara que está doente e fraca. Precisa de tratar-se. O medico recommendou-lhe socego...
-- Eu sou forte, minha senhora, mas quando se tem um filho doente -- a senhora bem sabe -- são tantos os cuidados, que se vae perdendo a côr e emmagrecendo ...
Tinha-se animado; e ia dizendo a sua canceira heróica de três mezes, sentindo elevar-se á medida que ia narrando todos os lances dramáticos da sua dôr, envolvendo-se no sacrifício como uma rainha no manto.
A outra ouvia calada, meneando a cabeça, commovida ; e percebendo que a continuar assim, essa pobre mulher venceria o seu coração bondoso e fraco, alçou a cabeça, atalhou a narrativa intérmina da mãe :
-- Fez o seu dever; por isso o seu coração deve estar socegado.
E para quebrar pela raiz o repetido argumento de amor :
-- Creio que meu filho já lhe disse : o medico aconselhou que se arranjasse uma ama para a creança. A muitas mães acontece o mesmo. Eu criei o meu primeiro filho e vi-o morrer. Depois os médicos prohibiram-me de continuar a crear os outros... Acontece muito. Mas não lhe dê isso cuidado. O senhor Manoel vae amanhã para Coimbra. É preciso que tudo isto fique resolvido hoje. Ouvi dizer que tinha dividas -- pagam-se. Seria para admirar que as não tivesse. Meu filho não podia tirar da mezada grande coisa... Os remédios e o medico custam dinheiro e a menina ou ha de pensar no seu trabalho ou cuidar da creança... Isto era uma desgraça para os dois. Sabe o que são rapazes... Amanhã esquecia-a. O que havia de ser então de si, com um filho nos braços, sem protecção e sem trabalho?
Anna tinha os olhos no chão e as mãos no regaço ; e o seu seio pequeno arfava, oppresso por uma dôr que devia azedar o leite sagrado d'aquelle peito de mãe.
-- A senhora perdoe, mas eu sempre me hei de ir remediando sosinha. Por ser pobre não hei de deitar o meu filho a um regato. Mais pobres do que eu os têm creado... Diga a seu filho que me esqueça. Pode estar descançada -- não vou correr atraz d'elle ! Assim me Deus perdoe !
-- Meu filho podia não a esquecer emquanto a creança estivesse em seu poder ...
-- Mas que quer então de mim? -- diga, minha senhora ...
-- Que me entregue o seu filho. Eu tomarei conta d'elle. Nunca lhe faltará nada, prometto-lhe. Só assim ficarei tranquilla. Não ha de querer sacrificar esse innocente. Bem sabe que o não pode crear e que tudo são despezas ... Não quero para o senhor Manoel o remorso da sua desgraça. Diga-me com franqueza -- o que ia ser de si com um filho nos braços, d'essa edade, assim doente ?
Anna chorava sempre, já sem forças para responder, convencida de que toda a resistência seria inútil deante d'essa inflexível mulher que lhe fallava.
Debalde a supplicou, mendigando o filho como quem mendiga um pedaço de pão alheio. Contou as dores horríveis do parto, a felicidade extincta, a virtude negada para sempre ; e tudo fora pouco e a regosijára se lhe deixassem embalar o filho, creal-o, tel-o comsigo...
-- É que a senhora não sabe o que é ser sósinha, não ter ninguém no mundo... Ao menos um filho é um bocado da nossa carne que tem olhos para olhar os nossos olhos... Tenho soffrido mais com medo de o perder do que soffri n'aquella cama para o deitar ao mundo, minha senhora...
E pouco a pouco ia-a dominando a consciência dos direitos que lhe assistiam sobre o filho que ella gerara, sobre o filho que ella dera á luz e que lhe pertencia. Que lei barbara poderia arrancar-lhe do colo o filho que ella trouxera no ventre ? E em tumulto, de envolta com essas rasões que desciam a alumiar o seu espirito e fortalecer a sua alma quasi vencida, toda a historia da sua vida passava, incitando-a á reacção e á revolta. Accudia-lhe á memoria o primeiro engano que lhe arrebitara com a virgindade todos os direitos da mulher; depois o grande amor de triste por Manoel, as promessas com que elle afagara de esperanças a sua solidão. Todos tinham abusado d'ella e Manoel mentia como o outro. Todos a espoliavam. Um roubara-lhe a honra ; o outro queria roubar-lhe o filho.
Porque não viera elle mesmo fallar-lhe e mandava por si essa mulher orgulhosa perto de cuja virtude ella se intimidava ?
E n'um levante de ira ergueu a voz deante da sua impassível crueldade, desafiando-a quasi, gritando que lhe viessem tirar o filho com a policia.
A outra, sem azedume, voltou pacientemente a fallar-lhe, procurando calmar a sua indignação, offerecendo-se para curar aquelle pobre pequenito, correr com todas as despezas, refazel-o forte e são, deixando-a a ella cobrar animo e forças, readquirir uma tranquilla vida de trabalho.
-- E depois vocemeê leva outra vez a creança comsigo. Deixe-me ao menos salval-a. Pense bem no que vae fazer. Está endividada e sem trabalho... Eu pago todas as suas dividas, entrego a creança a uma pessoa em quem confio. Você pôde ir vêl-a quando queira... E então mais tarde, quando tiver a sua vida arranjada, vae buscar o seu filho...
-- Deixem-me ao menos morrer e depois levem-m'o ! Ai ! minha senhora, que eu sem elle morro !
E sem querer ouvir consolações, rompeu aos gritos, soluçando. Mas aquelle berreiro, a creança acordou ; e logo Anna correu lacrimosa e suffocada. Com uma infinita cautella levantou o filho do berço e a outra estremeceu á vista do aleijado que a pobre carinhosamente aconchegava ao peito.
Nunca o tinha imaginado assim rachitico e tolhido, com os olhitos inflammados, a bocca palhda, uma caveirita mal encoberta de pelle, com mãosinhas magras e roxas; e o presencear esse exaltado amor que ella tinha áquelle aborto sensibilisou-a, fez-lhe subir duas lentas lagrimas aos olhos.
Só um filho de pobre assim conseguia ser repulsivo e feio; e toda a sua carne de delicada repellia a esse fructo do seu sangue, em cujas orbitas scintillavam os mesmos olhos azues e claros que ella tinha.
Anna continuava a soluçar, achegando o filho ao seio, a cada instante a beijal-o devotamente, como uma relíquia.
-- Meu querido anjinho! Meu rico filho, que te querem roubar a tua mãe! -- e escondia-o como um thesoiro cubiçado.
Foi preciso deixal-a socegar d'aquella exaltação.
Nunca pensara encontrar tamanha resistência. Fôra-lhe preciso um grande esforço para o seu orgulho ferido se não impacientar em face da sua teimosia rebelde ; e agora no seu coração compadecido, entristecido por aquella miséria, refloria a devota caridade de sempre; e que d'antes, nos tempos de maior fortuna, a arrastava para os bairros pobres, revolvendo os pardieiros e as mansardas á procura de desgraças a combater, de fomes a aliviar.
Quasi esquecida da missão que a trazia, confraternisava com essa pobre mãe desesperada. Abandonada ao seu instincto de mulher, a sua fina mão calçada em peau de Suéde, afagou a cabecita da creança n'uma commiseração muito superficial peia desgraça alheia, sem que coisa alguma no seu coração lhe lembrasse o filho de seu filho -- o neto -- n'aquella creança lastimosa que não usava rendas.
Quiz saber como tinha principiado a doença assassina, os estragos que desde o começo ella fizera; e Anna reconstruía a historia aprendida de cór -- as convulsões, a meningite, a paralysia. Mas uma grande fé animava-a sempre de que o seu filho voltaria a ter saúde.
No seu coração cego e apaixonado nunca entrara a duvida. N'aquelle momento ainda, dava pouca fé da devastação irremediável. Vivendo na intimidade da doença, fôra-se habituando a ella ; o seu filho continuava a parecer-lhe lindo como um anjo, tendo nascido da única felicidade que tivera na terra.
A outra escutava-a, meditando o seu plano, emquanto ella ia evocando o seu lento martyrio.
-- Bem sei que tem soffrido muito. É por isso que eu não quero consentir na continuação d'essa desgraça. Pois diga-me cá : que mal posso eu querer-lhe ?
-- Sei lá, minha senhora!
-- Bem vè que não tem razão. Nós precisamos de cuidar d'essa pobre creança e precisa também de tratar de si para não lhe faltar um dia. A mãe faz muita falta !
-- A minha era bem pobre e foi como se tivesse perdido a vista quando ella me morreu.
-- Então já vê. Essa creança precisa de um leite forte e mudar de ares. Havemos de fazer tudo o que ordenar o medico. Seremos agora as duas a tratar d'ella e, querendo Deus, havemos de salval-a.
-- Ah ! Deus a ouça !
Ao vêl-a mais abrandada e dócil, ia retomando coragem, sem abandonar a ideia fixa que a arrastara para fora de casa e a trouxera até alli -- separar o filho da mãe, quebrar todos os laços que pudessem prender Manoel a essa mulher pobre ; salvar a sua casta, libertar o seu filho.
Mas ao ouvir fallar outra vez em separação, a mãe ergueu-se como uma leoa ferida, de novo irada, a voz pesada e rouca clamando impropérios. Debalde a outra a exhortou para que cedesse. As suas palavras iam bater de encontro á resistente convicção de embuste que animava a desgraçada.
E já as duas discutiam, ferindo-se, implacáveis e inimigas; e Anna ganhava terreno, desmanchando o solemne prestigio da adversaria.
-- Quando è que se viu virem tirar os filhos ás mães ? As pobres também têm amor aos filhos como as ricas !
-- Quer então sacrificar essa creança ?
-- Pode dizer o que quizer! O meu filho é que não m'o leva !
-- E que vae fazer, cheia de dividas, doente e sem trabalho, com uma creança nos braços ?
-- Emquanto tiver um trapo para vender e braços para trabalhar não me mette isso medo !
-- E depois que tiver vendido tudo?
-- Trabalho.
-- E a creança ?
Anna agachou-se na cadeira, vencida. E a outra proseguiu, sem piedade, inflexível e barbara, na defesa do filho.
-- Ha de deixar a creança atirada para ahi e ir ganhar a vida ? E pensa que alguém a deixa vender um trapo sem pagar o que deve? Quem lhe vae fiar a casa e a comida e os remédios ? E não sabe que se eu metter n'isto a justiça lhe posso tirar á forca a creança de casa?
Toda a pobre se levantou então sob a ameaça :
-- Pois venha-m'a tirar com a policia !
Mas logo um accesso de tosse a abateu de novo, o corpo sacudido, os olhos cheios de lagrimas, a face roxa, mal sustendo nos braços a creança aos gritos.
Estremecida pelo violento horror d'aquella scena, a outra amparou-a, levou-a até á cama onde a deitou com o filho ao lado. Grandes lagrimas desciam agora, de repente, na brancura pallida da sua face fina ; e tremiam-lhe as mãos, n'um pânico invasor de criminosa.
Muito tempo as duas ficaram silenciosas, sem se olhar. Anna tinha a espaços fundos arrancos de tosse e a creança gemia, passeando os olhos doidos pelo tecto.
E como Anna, curvada a um accesso maior, em vão tentasse voltar o filho e achegal-o, a outra, sempre a chorar, carinhosamente lh'o cingiu ao peito emmagrecido.
O seu coração fraco, cançado pela morte de três filhos, pela disfarçada ruina em que cahira a sua opulência, fatigado de desillusões e desgostos, não podia resistir por mais tempo ao compadecimento d'aquella miséria. Teria de voltar sem cumprir a dura tarefa. Tomaria ella conta de Anna e da creança, pagando a falta do filho e expiando-a, cortando mais ás suas despezas para accudir ao desastre d'aquelle lar tão pobre ; sacrificando-lhe uns restos de prazer a que ainda se dava; diminuindo aos gastos da modista, ceifando do supérfluo para que n'aquelle terceiro andar não escasseasse o pão. Confusamente, já um vago plano se esboçava de soccorro e sigillo -- o medico prevenido, interessado na sua obra de consciência e de piedade, tornando-se o seu collaborador e o seu cúmplice, ella desapparecendo na sua sombra, cuidando de longe da creança e da mãe, alimentando aquella vergonha e aquelle perigo como um voto de penitencia piedosamente cumprido.
Á sua bondade doía sobretudo a injustiça do feroz olhar de Anna, desconfiadamente colado no seu olhar. Sentia-o morder-lhe a face, implacável e irado, sob as lagrimas.
O sacrifício a que se ia votar nunca faria esquecer n'esse coração maltratado de mãe as suas ameaças, a sua cólera, a desesperada energia que posera na defesa da sua casta e do seu filho. E áquelle duro peso que a confrangia, os seus olhos choravam sempre.
Estiveram assim as duas silenciosas por muito tempo. Anna tirara do chambre um dos brancos seios e dava de mamar ao filho, taciturna, arfando do cansaço da tosse, escondendo o peito á curiosidade da inimiga.
Por fim a outra, expondo-se ao seu olhar de ira, perguntou na sua voz branda, que o choro tornara difficil:
-- Não se trata d'essa tosse ?
Anua encolheu os hombros, de novo intimidada ao som d'aquella voz que a dominava :
-- Para quê ? Com isto posso eu !
-- É preciso tratar-se.
E como Anna sacudisse a cabeça, na recusa obstinada da sua piedade :
-- Não pense que lhe quero mal. Quando aqui vim era para remediar uma grande desgraça ...
E depois de um silencio, baixando o véo sobre a face triste :
-- Ao menos, que seja para o bem de todos nós ! Ha de dizer-me quanto deve. Eu pergunto depois ao senhor Manoel onde hei de mandar pagar o aluguel. Amanhã ha de aqui vir o medico para a vêr e examinar outra vez essa creança ...
E já de pé, olhando ao redor o desleixo da casa : -- É preciso arejar estes quartos, mandar esfregar este soalho ...
As suas mãos tremulas despejaram a carteira em cima da meza, onde o filho, dois dias antes, deixara também tudo o que trazia.
Era uma febre, agora, de reparar a crueldade de ha pouco, dispondo já de tudo, como a tutora d'aquelle lar na miséria.
Anna não despregava d'ella os seus grandes olhos receiosos, no espanto que lhe trazia tanta generosidade precedida de tanta crueza. Uma grande commoção abrandou subitamente a sua cólera, emquanto essa mulher vestida de veludo revolvia toda a casa, tendo já atirado as luvas para uma cadeira, pondo ordem ao desarranjo da sala e da alcova.
Os seus braços magros envolveram a creança n'um lento gesto de posse ; a cabeça descahiu-lhe no travesseiro; as pálpebras desceram fatigadas sobre o seu rosto muito pallido, e vencida pela fadiga do accesso e da lucta, adormeceu em um d'esses desmaios em que a fraquesa a prostrava agora de continuo.
A outra veio então cobrir cautelosamente aquelle par doloroso. Durante instantes ainda, pesquisou a pobresa da casa, mas um vinco de preocupação foi-lhe aos poucos carregando a face; e olhando mais uma vez aquella pobre mulher adormecida, desatou n'um silencioso choro, a cabeça em cima da mesa, sobre os braços cruzados.
Foi a principio um mudo choro de desabafo e de arrependimento.
Aggravada por aquella dôr physica, a responsabilidade do seu irreflectido arranque de generosa tomava bruscas proporções de ameaça ao seu espirito inquieto e perturbado. Era todo o socego da sua vida que jogara á irreflexão de um impulso generoso, ferida no seu orgulho por essa humilde que a affrontara e a quem ella quizera dobrar pelos joelhos no assombro da sua bondade. Agora que a via vencida, adormecendo socegada sob a protecção da inimiga de ha pouco, a sua alma de satisfeita inquietava-se.
Ella, que viera para salvar o seu filho, acabava de se comprometter tão irreflectidamente com a amante de Manoel. A sua fraqueza fizera abortar a sua missão. Fora infiel á promessa jurada de conquistar o socego para o sobresalto do filho. Acabava de tomar o compromisso de sustentar cuidadosamente aquella falsa familia, guardar para Manoel aquella responsabilidade, conservar-lhe desveladamente a desgraça para mais tarde.
Á medida que o seu espirito esclarecia o erro comettido, o seu choro ia-se tornando mais violento, os soluços mais altos e tenazes.
Anna dormia sempre, no grande socego em que a deixara a áspera victoria ganha sobre a inimiga irascivel, que deixara, bondosa e mansa, vestida de veludo, a cuidar-lhe da casa, como uma serviçal. A violência d'aquella lucta prostrara o seu pobre corpo moido de cansaço e de vigílias ; e emquanto a outra chorava, arrependida, Anna sahia da terra, evolada em pleno sonho, ia entrando n'uma grande egreja cheia de cânticos e luzes, conduzida á mão por Manoel : e um padre esperava-a no altar com um largo gesto de rehabilitação e de benção.
Mas a um soluço mais alto, Anna acordou sobresaltada. Durante um instante esteve esfregando os olhos, assustada, cuidando ouvir chorar; e em silencio ergueu-se, attenta, procurando com os olhos quem chorava.
A viva consciência da sua humildade em face d'essa mulher honesta emmudeceu-a de susto, lembrada do seu desvario e das suas affrontas. Acabou de erguerse; e foi para aquelle vulto curvado, humildemente.
-- Minha senhora ! -- chamou com uma voz que tremia.
A outra ergueu a face devastada de lagrimas, pousou o olhar n'aquella pobre que a chamava.
Pôra de pé uma grande reacção, no pasmo de se ter deixado abater em frente da creatura que viera procurar em inimiga ; e todos os seus escrúpulos de aristocrata renasceram. Lentamente levantou-se, seccou as lagrimas, baixou sobre o rosto o véo pesado, procurou sobre a cadeira as luvas esquecidas.
Anna emmudecera ante essa face triste e grave de offendida ; viu o dinheiro atirado sobre a mesa e o frio gesto de despedida que ella teve. Então, uma força occulta impelliu-a, n'uma desesperada attitude de desgraça ; e cahiu de joelhos, com as mãos postas.
-- Pelo seu filho, perdôe-me ! Minha senhora, perdôe-me, que eu não sei o que fiz !
A outra parou com uma súbita esperança ante a supplicante attitude de Anna. Durante momentos pareceu ainda vacillar, mas a sua energia de novo se desfez em lagrimas e lamentações; e disse a sua vida de esforço, de lucta e de tristezas, o esmagamento das suas esperanças com o infortúnio d'aquelle filho, que já nada poderia salvar, enrodilhado por esse drama]de amor.
Anna sentara-se no soalho, pensativa, emquanto a outra fallava. Ás vezes erguia a face n'um mudo protesto, mas logo voltava a sua attitude emmudecida.
A mãe ia-se exaltando na defesa do filho, explorando o amor da simples para lhe arrancar o consentimento cruel ; e já agora ia dizendo tudo, na febre renascida de conquistar o socego para Manoel e de sahir victoriosa d'aquelle passo, na rediviva esperanca de que Anna acabaria por ceder e entregar-lhe a creanca. A sua voz, ainda travada das lagrimas recentes, tornava-se implorativa ; e o grave orgulho da sua falia decompunha-se, sacrificado á absorvente ideia do perigo.
Anna escutava-a sempre, olhando mudamente o soalho, sem já erguer os olhos.
Quando a voz implorativa se cançou, a pobre ergueu-se de vagar ; e com os olhos toldados de lagrimas, as mãos cabidas n'um grande desanimo :
-- Sempre m'o quer levar então ?
A outra teve um estremecimento que fez rugir as suas saias de veludo. Durante segundos foi uma grande lucta n'aquella consciência, toda ella vivendo da sua ideia fixa de libertar Manoel. Agora, que tudo dependia da sua vontade, que a miserável se entregava ao sacrifício, quasi recuava a um rebate de remorso. Sentia-se amesquinhada pela horrivel generosidade d'essa outra mãe que lhe sacrificava o filho.
Mas como não tivesse resposta, Anna ousou fital-a e com uma voz muito fraca, como de quem gasta as ultimas forças que lhe restam :
-- Se é para o bem de Manoel ... do senhor Manoel, leve-o.
E em frente á mãe, a amante subitamente appareceu, arrancada d'aquelle corpo emmagrecido e doente, outra vez bella, no deslumbrante prestigio em que illuminava esse sacrifício de amor.
Não havia lagrimas no seu grande olhar resignado e triste. Não parecia a mesma mãe desvairada e furiosa, remoendo ameaças, prompta a saltar como uma gata a quem tocam na cria. A sua humildade tinha acordado ao choro d'essa austera mulher vencida e affrontada por ella.
Disse-lhe n'uma voz em que havia um socego quasi mortal :
-- Trate-m'o bem, sim? Pode manda-lo buscar quando quizer ...
-- Nada lhe ha de faltar, socegue ... Tirou-me um grande peso do coração ! Verá como foi melhor assim para todos nós !
-- E eu posso ir vel-o, minha senhora ?
-- Todos os dias; quando quizer. Socegue, havemos de o salvar, de o pôr outra vez forte e bom.
-- Deus a ouça !
Anna ficou de pé a ouvir o murmúrio da seda nas escadas. Toda a sua immobilidade estremeceu com o abalo da porta, mas nenhuma lagrima veio adoçar o fulgor de febre em que lhe ardiam os olhos. Depois de ir vêr se a creança dormia, voltou á sala, e em silencio, sem um suspiro, sem um vagar, começou o desarranjo da casa, esvasiando as gavetas, amontoando a roupa nas cadeiras, como uma banida que se desaloja.
Quando Rosa chegou de fora, encontrou-a esfalfada na sua tarefa de expulsa, arrecadando roupa no mesmo bahu modesto em que trouxera para aquella morada de amor os seus vestidinhos de verão, um anno antes.
D'esse idylio tâo curto levava meia dúzia de trapos e a decadência da sua bellesa antiga, já agora para sempre arruinada. Sahia d'esse ensaio de felicidade com o coração mais doente, desilludida e condemnada.
O seu enraigado instincto de independência traçava-lhe já a conducta futura -- um heróico sonho de canceira para reconquistar o filho entregue aos cuidados alheios. Não lhe lembrava Manoel. Parecia que o sacrifício feito á sua felicidade e socego tinham fatigado o seu coração, na consciência de haver pago barbaramente esses instantes de amor que elle lhe dera.
Iria viver junto aos pães de Rosa, n'um quarto do mesmo pardieiro no alto do Castello, no propósito de se apartar depressa d'aquella casa onde fora por tão pouco tempo feliz e onde soffrera tanto. Não queria a ajuda de ninguém. Ao seu orgulho doia como uma affronta a esmola da outra.
Já n'essa tarde as dividas ficaram todas pagas e Rosa foi prevenir a casa -- um quarto, uma sala e uma cosinha -- onde se iria esconder logo no outro dia. Alli também o horisonte luminoso do rio espairecia a miséria do casebre. Á noite, podia suspender a vista sobre a cidade illuminada, distinguir as luzes da Avenida, enxergar a cobertura envidraçada da estação do Rocio, exhalando na escuridão um reflexo de cratera.
Todo o resto do dia cuidou da arrumação, esvasiando a casa, emalando a roupa da creança; e quando o medico chegou, foi encontrar já a casa nua, prompta ao despejo ; com as cortinas arrancadas e os bahús atravancando a sala.
Debalde procurou sondar essa alma obstinada e profunda. Anna conservou-se silenciosa e impassivel, sem llie mostrar uma lagrima, ouvindo a exhortação infindável do medico a aconselhar-lhe resignação e paciência.
Deixou-se lisonjear pela sua brandura, pelo consentimento generoso de se apartar do filho, sem uma contracção de face, um humedecer de pálpebras. O medico retirou-se, e já na rua, voltando-se a olhar as altas janellas do prédio, passou-lhe um calafrio, á ideia súbita de que essa mulher calada era capaz de se atirar d'essa alta janella ; quando fossem a descer as escadas com o filho.
Anna deitou-se cedo n'essa noite. Ainda mal não tinha escurecido mandou dar a volta á chave, apagou a luz e recolheu- se á alcova.
Mas o somno não veio. Por muito tempo esteve sentada na cama, vendo dormir o filho. Presentimentos maus vieram perturbar a calma heróica da sua alma. Doia-lhe sobretudo o esquecimento de Manoel. Durante todo o dia tinha esperado, certa de que elle viria ao menos dizer-lhe adeus. Só agora comprehendia que tudo acabara e o seu grande amor morria n'aqueila ingratidão dolorosíssima. Todos os seus esforços seriam talvez inúteis. Nunca mais conquistaria o filho perdido. Antes de o alcançar, a morte havia de vir pôr um termo á sua miséria, apagar no seu seio magoado a luz d'essa ultima esperança. Nunca tivera adivinhado na vida uma decadência tão grande, uma pobreza que lhe arrancasse os direitos sobre um filho feito com a sua carne e o seu sangue. Appetecia-lhe muito morrer, desprendida da vida pela injustiça tenaz que a vinlia enxotando da felicidade desde o berço.
Mas por volta das dez horas um raido nas escadas arrancou-a violentamente da cama, á escuta. Parecia-lhe ouvir os passos d'alguem que subia devagar, com esforço ; e eram com certeza os passos de Manoel, hesitantes a cada degráo. Ella conhecia-os bem, de os escutar antigamente na impaciência das esperas. O seu coração poz-se a bater ; e despresando o frio da noite e o desagasalho do corpo, sahiu para a sala, toda tremula.
Os passos pararam um instante no patamar.
Foi então para ella um momento angustioso de anciedade. Iria voltar para traz, arrependido? Nada mais haveria no seu coração que o chamasse para a beira d'aquella creança que era sua ? E lembrou-lhe o outro, que partira também, sem lhe dizer sequer adeus.
Houve um momento em que esteve para se atirar, abrir a porta, pedir-lhe que viesse, mas os passos aproximaram-se mais, atravessaram o patamar ; e ella esperou, suspensa e immovel. Correram minutos de um grande silencio ; depois as escadas rangeram de novo ao peso d'alguem que as descia e Anua voltou para a alcova a chorar.
Passou toda a grande noite sem dormir, com a vela accesa, olhando o filho, como se o quizesse levar na vista para sempre. De manhã ergueu-se desfigurada, de olhos vincados e a face côr da parede. Encheu todo o dia de tosse e lagrimas até que á tarde bateram á porta e uma mulher de preto appareceu para levar a creanca.
No primeiro momento Anna ficou calada, medindo a creatura, pousando os olhos pisados na face enrugada da velha. Era uma mulher de cincoenta annos, com o cabello grisalho, uma grande bocca cançada, fallando de manso, com um chapéo velho de adeleira na cabeça e uma capa preta ás costas.
Sob a inspecção attenta de Anna a mulher desceu os olhos, tirou debaixo da capa uma grande mão engelhada, envelhecida no trabalho:
-- Ai ! menina, venho aqui pelos cabellos ! Custa muito a uma pessoa encarregar-se d'estas coisas...
E dando conta da creança adormecida :
-- É esse anjinho ? Tem mesmo cara de doente ! Não se ponha a chorar, menina, que não lhe ha de faltar nada. Quem não ha de querer bem a um anjinho d'estes ! É a cara do senhor Manoelsinho ! Benza-te Deus! Coisa tão parecida! Mas tão enfézadinho !
Anna amarrava mais o filho a si.
-- Trate-m'o bem, sim ? Olhe se m'o trata bem !
-- Assim eu tivesse o céo, menina. As ordens que tenho são para não lhe faltar nada. Está bem entregue, isso lá...! Se elle não sarar com os cuidados que vae ter é porque Deus lhe terá os dias contados, coitadinho ! Ha de vêr como elle arriba com outros ares. Não lhe dou um anno para o ter fero e rijo como um valente. Não chore, menina. A creança não vae para o hospital. Olhe que sempre a livram de um peso ! ... Quantas por ahi andam a chorar fome e com o peso de um filho nos braços, peor que uma pedra ao pescoço de um afogado...
Mas com que dor a mãe pobre consentia em separar-se d'aquelle pequenito em cuja alma vivia um pouco da sua alma e a quem ella dera um pouco da sua vida ! Aquillo era como se o despegassem do seu corpo, lhe arrancassem um pedaço de carne, a mutilassem e lhe levassem um membro. Não o veria engatinhar ; não seria ella que ampararia os seus primeiros passitos. Nunca mais acordaria de noite com o seu vagido, sentindo a sua boquinha sugar o seu leite !
E berrava como um animal a quem tiram a ninhada.
-- Trate-m'o bem, sim? De noite é preciso passeal-o : vem-lhe uma dôr nos ossos -- coitadinho ! -- que é um peccado deixal-o no colchão ... Espere, espere mais um instante... Não tem muita pressa, pois não ? Pela alma de quem lá tem ! Meu Deus ! já não sei o que ia dizer... Dê-lhe o remédio ás horas, sim? E as fricções que não esqueçam... O medico disse para o passearem um bocadinho todos os dias e pol-o assim perto de uma janella para respirar...
Vergava-se a beijar o filho, molhando-o de lagrimas, cingindo-o muito ao peito, como a querer confundir o novamente com a sua carne e o seu sangue.
Ah ! arrependia-se! o que ella se arrependia! De novo ia entrar no seu gélido isolamento de sosinha. A creança consolava-a ao menos da perca dolorosa do seu grande amor; e emquanto o embalava e via chorar, qualquer coisa do amor morto subsistia na sua vida e a tinha presa a esse passado de beijos. Agora, que lhe roubavam o filho, a sua alma, tão habituada á paixão, ia permanecer desoccupada e cahiria em ruínas. Era de novo a solidão, atormentada a mais pela memoria dos curtos dias de fortuna e de goso.
-- Não ! Não ! É só mais um instante ! Por amor de Deus, só mais um instantinho !
Mas a senhora Catharina começava a impacientarse, receiosa de que ella terminasse por recusar-lhe a creança. Com brandas fallas de persuasão, onde tremia a avidez do ganho ameaçado, fallou do frio da tarde, que podia fazer tão mal á pobre da creança.
-- E são horas do comboio, menina. D'aqui até ao Rocio ainda é um estirão... Valha-me Deus, que se faz tão tarde !
Anna abraçou ainda o filho ; esteve a pontos de fugir com elle pela escada abaixo, para longe, para muito longe de toda essa gente má que a perseguia, mas esse occulto estremecimento de energia morreu n'um accesso de pranto afflictissimo.
A outra tomou-lhe a creança dos braços sem esforço, cobriu-lhe a face com a banda larga da capa, emquanto Anna apertava a cabeça nas mãos, para não vêr.
-- Então adeus, menina. Fique em socego que o filho ha de lhe ser bem tratadinho.
Como uma ladra, a velhota apressou o passo e abalou pela escada, pesadamente.
-- Adeus, meu anjinho, adeus ! ... E Anna cahiu de bruços no soalho.
TERCEIRA PARTE
-- Agora está tudo arranjado ; é socegar esse espirito, acalmar esses nervos, filho.
Em duas palavras, descalçando as luvas, a mãe contou discretamente o que se passara, escondendo o preço cruel da sua victoria, poupando-lhe os pormenores lamentosos da lucta e fazendo acreditar no agradecimento de Anna pela protecção que levara á sua miséria.
-- Coitada ! -- concluiu -- parece uma pobre rapariga digna de compaixão.
O seu rosto muito pallido animara-se de uma grande felicidade occulta, que irradiava nos seus olhos pisados de chorar ; e Manoel, intimidado pela radiante segurança dos seus modos, pelo imperioso socego que ella julgava trazer ao seu coração, abraçou-a mudamente, na duvida secreta de que ella dissesse toda a verdade, mas sem animo para questionar a vencedora.
Talvez fosse melhor assim, que tudo ficasse obscuro e vago ao seu espirito, como um romance triste lido ha muito tempo.
Durante todo o dia a mãe reteve-o á sua beira, reconquistando-o aos poucos, entretendo-o com afagos, n'uma exaggerada crise de ternura. Comprehendia que a sua tarefa não se limitava a afastar a inimiga e erguer do coração de Manoel o peso do filho illegitimo. Uma nova lucta começava, mais diíficil e lenta. Seria preciso refazer seu esse coração extraviado, em que o amor de Anna ganhara raizes fundas, e desviar em seu proveito o compadecimento, que ia nascendo na sua alma, pela vencida. Essa mãe sem filho, a quem Manoel devia uma grande paixão de mocidade, e que depois de enxotada e banida, consentia ainda em pagar tão barbaramente o seu socego, era uma rival para temer na sua decadência e na sua miséria, illuminada pelo prestigio do sacrifício.
Assim, ella nada esqueceu para occupar o espirito do filho. Foi um prodígio, essa mãe alarmada, não deixando de vista o perigo que ameaçava desmoronar toda a sua obra, absorvida no cuidado de não trahir o seu desassocego, apparentando de risonha e de tranquilla, attenta ao menor gesto de Manoel, adivinhando quando a memoria de Anna passava a ennevoar o seu espirito, prevendo todas as perguntas, acompanhando passo a passo a marcha d'aquelle pensamento invisível.
E como era o dia importuno de receber, agarrou-se a esse novo pretexto, encheu de flores todos os moveis, empenhada em dar um ar de festa á sua casa. Toda a tarde o guarda-portão e o Domingos andaram a acarretar plantas da estufa para as salas ; e ella occupava assim a sua febre, dando ordens, indo e vindo sem descanço, interessando Manoel no seu arranjo, sem o abandonar um instante.
Não ; ella não esquecia a outra, que a essa hora juntava a sua roupinha de pobre n'um bahú. Anna não lhe sahia do coração, pesada como um remorso ; mas era preciso salvar o filho, apparentar de forte, esconder cautelosamente esse peso de consciência. Iria até ao fim, dando o heróico exemplo, salvando a sua casta, livre depois de se abandonar e succumbir, quando tivesse despedido Manoel na estação, em caminho de Coimbra.
As lagrimas de Anna humedeciam-lhe ainda as mãos ; tinha nos ouvidos os seus lamentos e os seus gritos ; nos olhos o seu desespero e a sua miséria. Mas era preciso animar com a sua força a fraqueza de Manoel, alegrar com o seu riso a tristeza de seu filho -- e ella sentia ainda o poder d'essa fortaleza e d'esse riso.
Como resistir ao convencimento da alegria com que ella enchia a casa como n'ura dia de festa ? Pois não devia ser para os dois um dia de felicidade risonha, esse dia em que tinham trabalhado n'uma obra boa, soccorrido uma pobresa e salvo da morte uma creança doente? Podia Manoel levar-lhe a mal que se alegrasse tão festivamente com a piedosa gloria da sua obra e puzesse tanto amor em se cercar de luzes e de risos, se o seu coração de mãe estava em festa pela victoria cruel que lhe libertava o filho ?
E assim o teve preso, dominado, até ao jantar.
Manoel só pedia que o absolvessem e o atordoassem, demasiado cobarde para se expor de novo ao choro e ás lamentações de Anna, agora que tudo estava terminado para sempre e a m.ãe lhe reconquistara a liberdade e o socego.
Queria-lhe bem pelo conforto que ella trazia á sua alma de fraco com essa alegria victoriosa ; e resignava-se já á brutalidade d'aquelle acto, tranquillisado com a certeza de que aquillo teria enfim de acontecer um dia.
O jantar correu quasi alegre ; e á noite, na sala cheia de sedas e flores, a mãe juigou-o associado á sua fingida paz de alma, esquecido da amante e do filho, desembaraçado para sempre da aventui"a lacrimosa.
Mas a verdade é que Manoel voltava a estremecer, perturbado, tolhido por um terror de escrúpulo nascente que o ia dominando, enchendo de sombra o seu ceracão insatisfeito.
Viera-lhe aquillo de repente, cabido na emboscada sentimental de um lièder de Schumann, logo no primeiro momento toldado pela memoria da amante, que as ondas da musica traziam.
Ficou de pê, encostado ao piano, deixando conquistar-se pela evocação romântica que o refazia bom.
A Clarinha -- uma prima loira que fora educada na Allemanha, -- estava sentada ao piano; e era elle que ia voltando as paginas.
Os dedos pousavam nas teclas, palpitantes de claridades de jóias ; e o piano vibrava á caricia das mãos, indo e vindo sobre o marfim do teclado, surgindo de entre os punhos de rendas.
Opprimia-o um grande constrangimento.
Um jarro de cravos, pousado em cima do piano, erguia-lhe na frente uma nascente de perfume e as luzes nas velas das serpentinas arrancavam lampejos aos pingentes de crystal, que cabiam em circulo das dirandellas doiradas.
No sofá, falando com a mãe, lady Hardy abria e fechava no regaço um grande leque de tartaruga e plumas brancas.
Era uma mulher branca e loira, que fazia pensar na minerva de Phidias, toda marfim e oiro. Casada com Hugh Hardy -- um dos directores da Companhia de Africa -- estava havia três mezes em Lisboa, onde o marido viera representar n'uma assembleia geral os accionistas inglezes.
Ao lado do sofá, a mãe de Clara fazia barcos de papel, entretendo o pequeno que sentara nos joelhos -- e Manoel olhou-a um instante, sorrindo da sua paciência e da sua ternura, assim apertada n'um vestido de seda preta e vidrilhos, onde a cabelleira loira do irmão abria uma grande nódoa de oiro vivo.
N'uma pausa de accorde ouviu-lhe mesmo a voz, que dizia :
-- Primeiro faz-se um chapéo de bicos. Assim... Tomaste conta?
A creança balouçava a cabeça, attenta, com as mãositas no regaço do vestido escossez.
Depois, de novo o piano abafou a voz murmurante e Manoel rodeou vagarosamente a sala. No desvão da janella o pae conversava com sir Hugh Hardy -- e o resto dos homens, n'uma mesa de jogo, illuminada por castiçaes de prata com para-luzes de seda verde, atirava cartas, jogando o whist. Eram todos graves e edosos : o tio Duarte, o D. António Noronlia e o Conde de Ladario com o seu monóculo, piedoso resto de uma mania de inglesismo, que vinha de um remoto secretariado de legação, ainda do tempo de Guilherme IV.
Junto a um tremo Império o pae de Clara folheava uma revista francesa, acariciando com a mão distrahida a magestosa angora branca da Condessa -- a Diana -- que ronronava, aninhada no estofo cor de cereja de uma poltrona.
Fora, um clarim rasgou o silencio da noite estrellada de março n'uma toada que trazia á memoria recordações da Cármen. Os cravos rescendiam, perfumando a atmosphera quente.
Clara descançou as mãos abertas sobre oito teclas brancas, fechando a sonata.
Os homens deram palmas. Fez-se um silencio em que rugiram as sedas dos vestidos, mas a condessa pediu a lady Hardy uma romanza de Tosti ; e Manoel foi abrir na estante o Non m'ama piâ.
O seu espirito era lentamente atravessado pela certeza da grande dôr que devia varar a essa hora o coração de Anna, arrependida do consentimento que tinham arrancado á sua humildade e á sua brandura. O seu coração de sentimental e de fraco poz-se a soffrer muito -- com uma d'essas dores theatraes que o acommettiam de costume -- a meio das luzes, das senhoras que fallavam de modas, d'aqnelles homens correctos que jogavam o whist, no seio molle d'esse conforto recusado para sempre ao seu íilho.
Durante um momento esteve pensando e o seu olhar procurou a mãe, disse-lhe mudamente o transe da sua alma apiedada; e emquanto ella sorria mais pallida para lady Hardy, que acabava a romanza, Manoel atravessou a sala, demorou ainda um instante em frente a um treino, hesitando ; mas logo, sem ruido, desviou o reposteiro, abriu a porta e sahiu.
No quarto, a sua resolução fortaleceu-se. Sentia de menos um peso no coração.
A lembrança do Queiroz decidia sobretudo d'esse movimento de justiça e de piedade. Desde o jantar que a lembrança do amigo tinha alterado esse falso socego em que a mãe conseguira adormecer a sua consciência.
Havia muito que o Queiroz o dominava pela sua superioridade moral, modelo para que convergiam as suas aspirações, seduzido por essa forca de coherencia e de justiça que elle nunca poderia egualar, degradado pela ideia egoísta da casta, enclausurado no seu preconceito de raça, com todos os defeitos de uma educação frívola, orgulhosa e vã de pretendente, com uma bondade aprendida nos romances e uma scíencia hirta de jurista arrepanhada em Coimbra por vaidade.
Assim, ia oscillando como um pêndulo entre o seu egoísmo e essa romântica sede de justiça. Á medida que o seu espírito esboçava a scena de piedade e de lagrimas, concertava as phrases de perdão e de esperança, um receio agitava-o, com uma revolta toda carnal contra essa rude sede de firmeza que o possuía. O receio de se ir comprometter n'essa aventura sentimental, de fazer revogar com a temeridade a decisão salvadora, amedrontou-o. Houve um instante em que vaciílou ainda, demorado a entornar agoa de colónia no lenço, a calçar as luvas, a escolher uma bengala, fazendo a conta aos beneficios arriscados com a imprudência.
Acabou por apagar as velas do toucador, ainda irresoluto, descer as escadas, sahir para a rua. O medo resuscitava-lhe a mendiga lamurienta que ia lacrimear e tossir no seu hombro, lembrar-lhe na sua voz baça de choro os amores de outros tempos ; e a perspectiva d'essa lamentação e d'essa miséria, a repugnância instinctiva de remergulhar n'aquella pobreza, abalavam-n'o já.
Se tudo se passara como asseverava a mãe, simplesmente, sem gritos e recriminações; se Anna fora a primeira a comprehender e a agradecer a sua oíferta generosa, que a aliviava de um peso tão grande ; que ia elle fazer, em risco de annullar o tratado de paz. que lhe assegurava o repouso e o descarregava de uma responsabilidade tremenda ?
Não seria melhor addiar para mais tarde esse encontro doloroso, para quando a resignação tivesse enxuto as ultimas lagrimas de Anna e não estivesse tão presente á memoria dos dois aquella atrocidade?
Era bem certo que no fundo da sua consciência havia o deslumbramento pela justiça e pela virtude. A sua passividade de discípulo em frente ao Queiroz, dizia bem o quanto venerava platonicamante n'esse corpo são o divino sentimento de justiça que d'elle irradiava. De bom grado consentiria em ser como elle, forte e bom, vivendo como um rei na sua pouca abastança, repartindo a terra pelos caseiros, livre de poder escolher a mulher que mais apaixonasse a sua carne e mais deslumbrasse a sua alma ; livre de pensar ao envez de toda e qualquer gente ; livre de atirar aos ventos, como um canto de guerra, o seu despreso e o seu rancor pela mentira ; feliz n'essa liberdade tão altiva de ser justo e bom e verdadeiro. Mas que importava essa aspiração, que era como um sonho de mendigo em frente á porta de um ourives, se lhe faltava a firmeza moral para a conquistar, se estava corrompido até ao sangue pelo preconceito estúpido da sua classe, filho de um pae que apparentava a ostentação de uma riqueza desapparecida, filho de uma pobre mãe que sonhava para elle, atravez de todo o atropello da justiça humana, um futuro de riqueza e de predomínio?
Tinham-n'o educado para herdeiro, com noções todas falsas da vida, com horror ao trabalho, sem que tivessem provocado energias n'aquelle corpo amollecido de predilecto, sem decisão e sem vontade própria. Elle era por temperamento e por educação um irresoluto, que fizera o curso dos lyceus com empenhos, salivava os annos de direito como uma obrigação, inútil deante de todo o esforço, de uma sentimentalidade platónica inconcebível, de uma realidade egoista incomparável.
E ia como um pusilânime que se quer atrever á vaidade de uma audácia, parando a meio das ruas, sem a coragem de soffrer o risco da aventura ou perseguido pelo remorso de deixar sem um beijo essa mulher que desgraçara e amara; procurando vencer a recusa egoista da carne, ameaçada por uma scena de lastimas e lagrimas, no terror de reviver a mesma scena de miséria: as longas horas passadas á cabeceira de uma enferma, a olhar uma thysica embalar um aborto.
Pela rua estreita, de lojas fechadas, com dois lampeões ardendo nas extremidades, um bando de mascaras esvasiou de um portal, caminhou para elle, gesticulando e gritando, aos encontrões pelo mesmo passeio. Então, para evitar d'esbarrar n'aquella imrnundicie, decidiu entrar e perder-se na escuridão da escada.
Anna seria talvez rasoavel e indulgente, comprehendendo o tormento do seu coração empenhado em salvaFa. Seria fácil convencer até ao perdão a sua alma humilde e elle ver-se-ia livre doesse peso, de bem comsigo mesmo, aliviado d'aquelle remorso.
Devia-lhe essa hora de consolação; iria escutar-lhe piedosamente as lagrimas, reerguer-lhe o animo abatido, reaccendendo uma esperança 'n'esse pobre coração desilludido. Ficar-lhe-ia ao depois, de todo esse drama penoso e triste, apenas a pallida e romântica amargura de ter pisado uma existência -- pouco mais que o esmagar de um carreiro de formigas...
Meu Deus ! elle não podia ser um reformador. Soííria a sua parte no grande crime collectivo de uma sociedade viciada de injustiça. O seu sacrifício não iria atalhar a nascente do grande vicio social, nem apressar o advento da humanidade perfeita: o desdobramento eterno e infinito da familia; a consciência solidaria do bem e da virtude, não permittindo a inutilisação criminosa de uma vida, a decadência da mulher, a dispersão das famílias. Mas chegado a cima, o medo de ha pouco gelou-o e a consciência da barbaridade commettida foi tão viva, que lhe veio a certeza de que essa mulher infeliz o ia expulsar da vista, indignada.
N'um relance, viu-se tal como era, cobarde, egoista e cruel, trazendo uma compaixão hypocrita a essa mulher de que se servira e que deitava para a miséria, como um trapo. Então, atemorisado pelo grande silencio, pela treva espessa que invadia tudo, recuou de novo até ás escadas e só parou em casa, a tempo de entrar novamente na sala quando o Domingos ia atravessando o corredor com a bandeja do chá.
Em volta da mesa, que uma lâmpada Carcel illuminava sob um para-luz de seda e rendas, houve longamente o rugir dos vestidos nas poltronas. Os homens chegaram-se, arrastando cadeiras, e a conversa animou-se por um instante quando o Conde de Ladario fallou do concerto da Viscondessa da Silveira -- a Silveirinha -- no domingo passado, em Cintra.
-- Musica toda franceza -- disse -- encolhendo desdenhosamente os hombros.
Clara quiz saber quem tinha ido com aquella noite tão húmida de nevoeiro.
-- Ninguém. Pode dizer-se que ninguém. Apenas lady Hardy ... Lady Hardy tinha ido um instante, para alegria dos mortaes. Um ermo! Um verdadeiro ermo! Antes o Bussaco em Janeiro!-- A sociedade, à força de se querer enclausurar em privilegies de nome, estava morrendo de tédio.
-- Oh! Conde! -- observou D. Josephina, emquanto ajustava no punho uma pulseira carregada de berloques -- Não ha porta nenhuma que não tenha visto entrar gente sem bilhete de visita.
O conde teve o soberano gesto aprendido na embaixada da Inglaterra -- o gesto reservado para occasiões graves, vago como uma ameaça, perturbador como um segredo -- com que fizera tremer uma vez Fontes, dizendo simplesmente ao ouvido do estadista: a Hespanha agita-se!
-- As portas, minha senhora, estão sempre abertas para os aduladores e para os medíocres. Os aduladores são como os creados : não se discutem n'uma casa de fora. O que eu sinto é a ausência do espirito e da intelligeucia, da gente culta e da gente espirituosa, nos salões que ainda recebem. A principio a aristocracia pretendeu ter os seus artistas, a sua corte de talento, mas os talentos falharam e voltou a bocejar-se nos intervallos das valsas. É uma desgraça. Hão de concordar que é uma desgraça.
O tio Duarte lembrou um pouco de musica ; e lady Hardy de novo se foi sentar ao piano, para fazer a vontade, cantar a velha Canção dos olhos prelos, que o conde tinha pedido, na sua insistente paixão pela Inglatera :
Oh whal a sui-prise! Two lovely black eyes...
E emquanto lady Hardy cantava, Manoel sentia o olhar doloroso da mãe anciadamente posto na sua face, procurando adivinhar o segredo da sua ausência, criminando-o tristemente por aquella fraqueza.
Á meia-noite a condessa retirou-se, offerecendo um logar no carro ao D. António Noronha. Meia hora depois o tio Duarte deu o signal da partida, levantando todos.
Quando Manoel voltou de acompanhar lady Hardy, que se demorara no vestíbulo a abafar-se nos agasalhos, veio encontrar a mãe a chorar, encolhida n'uma cadeira, como uma criminosa que se arrepende.
Foi direito a ella, muito pallido.
-- Mamã! Mamã! Que tem? Perdoe-me: foi para nunca mais!
-- Filho! Filho!
-- Porque se afflige? Se é para o bem de nós todos, acabou-se! Não chore; não a quero vèr assim.
Faltavam-lhe as palavras ; não sabia o que dizer-lhe para enxugar as suas lagrimas silenciosas, que ensopavam o lenço.
O Domingos, que entrava para apagar as luzes, encontrou-os juntos, aconchegados no mesmo remorso, e só então se separaram, mais calmos, ella tendo a certeza de que a sua obra salvadora ficara de pê, sem um abalo.
No outro dia á noite, a mãe quiz acompanhal-o tá estação ; e no carro que os levou até ao Rocio, contou-lhe que a creança ficava no Campo Grande, confiada a uma mulher de confiança. O medico já a tinha ido vêr, ordenar um principio de tratamento. Podia estar descançado ; nada lhe faltaria. Tinha-a deixado a dormir no berço, n'um pequenino quarto, com janella dando para vastos terrenos de campo, muito lavada, com muito asseio. Era preciso que o seu coração se fosse prevenindo para o peor: a creança estava muito doente ; o medico não respondia pela cura. Mas ia-se fazer todo possivel; talvez que os ares fortes do campo ajudassem o milagre.
Manoel disse a tudo que sim, não a querendo atormentar com os seus receios, sabendo que só a ideia de o salvar a dirigia, compondo tão carinhosamente a sua vida embaraçada.
Na estação passearam ainda um quarto de hora á espera da partida do comboio; e ella contou emfim o resto : a brusca partida de Anna -- ninguém sabia para onde! -- tendo levado apenas a roupa, deixando ficar alguma mobilia que Manoel lhe dera.
Mas o sino tocou pela terceira vez ; Manoel apenas teve tempo de saltar para a carruagem, a que um empregado logo fechou a porta, violentamente.
A machina atirou um grito estridente para a nave enfumaçada, e a um arranco, todo o comboio estremeceu, arrastado.
Elle debruçou-se na portinhola. O comboio entrava já no túnel e via ainda o vulto parado da mãe, embrulhada na capa de pelles, a meio da plataforma, acenando com a mão enluvada um ultimo adeus.
Anna tinha-se ido embora ! E recomeçava o martyrio para a sua consciência fiaca. Conhecia-lhe aquelle honesto instincto de independência, que a devia ter atirado para a rua, sem abrigo, logo que lhe levaram a creança. Por onde arrastaria ella os passos a essas horas, pela noite fria, sem ninguém para a consolar e recommendar-lhe calma, abandonada por todos, como uma cadella expulsa a que tiraram a cria? A lembrança das noites de amor que ella lhe dera e da adoração com que a amara, revolviam-lhe remorsos pela injustiça com que a atirara fora da vida sem um adeus.
Vinham-lhe á ideia coisas d'ella : algumas das suas caricias, das suas ternuras ; pieguices que o commoviam agora até ás lagrimas ; um jantar em Cabo Ruivo a que Anna fora com um vestidinho còr de rosa ; uma noite de theatro, na Trindade, onde tinham ido vêr uma magica ; noites de amor, tardes de beijos ; o drama do parto com os gritos, a agonia, a parteira.
E emquanto o comboio rolava surdamente pela planície, sob o céo escuro e revolto onde não ardia a faulha de um astro, elle chorava como uma grande creança o irremediável erro.
Via-se perdido para sempre ; tremia á ideia de um castigo ; sentia-se muito desgraçado.
Havia tempos que levemente o sobresaltavam as difficuldades da casa, tendo recebido n'um dia de aíllição a confidencia d'esses embaraços de dinheiro. Mesmo de uma vez lera n'um jornal republicano o nome do pae, envolvido no escândalo de uma companhia fallida ; e ficara-lhe sempre na ideia, vaga como uma poeira, essa historia turva de capitães esbanjados fraudulentamente n'uma confusa empreza de Africa.
Aos poucos, agora, essa recordação cresceu como um fantasma, espalhando no seu espirito fraco visões de deshonra e de miséria; e uma grande cobardia acabou de vencel-o deante do horror de um futuro de necessidades e de suor. Pela primeira vez pensou na possibilidade de uma decadência e de um desastre, no pão escasso, na lucta furiosa pela existência; e lembrava-se de Anna, vagueando por Lisboa, sem asylo, com fome, pedindo uma esmola.
Ás três horas da manhã, gelado de frio, quando bateu á porta do hotel, teve ainda que esperar uma grande meia hora antes que uma creada viesse abaixo abrir. Foi preciso dizer quem era, para a Isabel se decidir a raspar phosphoros, accender a candeia e abrir a porta.
Tinha enfiado um saiote vermelho e embrulhara-se ás pressas n'um chalé, furiosa por ter de se levantar áquellas horas.
-- Credo! Semelhante hora para vir! Ainda ha-de ser preciso fazer a cama? -- E reparando no homem que trazia a mala:-- Ponha ahi, santinho. Amanhã se leva para cima.
Bocejava, estonteada ainda de somno. Era uma moura de trabalho. Erguia-se ás cinco horas ; e a meianoite ainda a encontrava de pê, a esfregar ou a brunir. Diziam que fora bonita e tivera dois filhos no Luso, de um brasileiro. Era intratável, muito chegada a egrejas, temente ao Senhor.
Manoel entrou no quarto, onde ella accendeu o castiçal, murmurando sempre.
Tomara birra áquelle fidalgo, que tinha meias de seda e só lhe dava cinco tostões por mez. -- Com aquelles luxos podia dar mais á creada ! -- dizia ; e fazia-lhe sempre o quarto de mau humor.
-- Credo ! Nem valia a pena ir a casa por três dias, gastar um dinheirão na viagem !
Manoel deixava-a fallar, acostumado ao seu rosno de despeito. Nunca quizera nada d'ella ; nunca lhe tendo appetecido os seus trinta annos de carnes pesadas. Todos os outros a queimavam de olhares cupidos, lhe faziam namoro. Um caloiro promettera-lhe de uma vez casamento. Ella vivia assim n'uma corte constante, como uma franga gorda entre gallos ; e esse janota enfurecia-a, com o seu frio desdém, nunca tendo tido para ella uma palavra de concupiscência.
Emquanto fazia a cama, com máos modos, Manoel sentara-se á meza, pondo em ordem as sebentas, os livros, com uma tristeza accrescida por aquelle desconforto de quarto de hotel, que resistia a todos os seus esforços de arranjo. Entre os companheiros, o quarto do Castro passava por ser de um luxo oriental -- melhor que o da Lola, dizia o Coelho Mulato, n'uma surda inveja, -- mas apesar da chaise-longue de reps verde, da secretaria de pau santo, que pertencera ao avô, e das largas cadeiras de sola, que arranjara n'um adelo, fora impossível arrancar-lhe esse ar de empréstimo de todos os quartos de passagem, pagos ao mez. A começo, no enthusiasmo dos primeiros tempos de Coimbra, tinha gasto com elle umas libras e mandara-lhe mesmo pôr um tapete encarnado.
Em cima da secretaria, cabido entre livros, estava o retrato de Anna. Com um enternecido cuidado, limpou-o do pó; e ficou a olhal-o, com lagrimas nos olhos. Tinha sido tirado havia dois annos, n'uma photographia da calçada do Duque, quando ella era ainda a desejada. Ficara alli para sempre a sua bellesa antiga, o seu perfil de elegia, de linhas muito puras, com grandes olhos tristes.
O que seria feito d'ella a essas horas ? Escreveria ao menos a queixar-se, a desabafar a sua desgraça, a accusal'o do seu abandono?
Faria agora tudo para a salvar; arrostaria mesmo com as hostilidades de familia, preparado para soffrer todas as represálias, todas as consequências dà sua falta; mas que a sua consciência serenasse e o não estrangulasse assim aquelle remorso ! Fora fraco, deixara-se arrastar pelo seu egoismo, mas só pedia, agora, para voltar atraz, á reparação heróica de todo o mal commettido.
Ficou três dias fechado no quarto, evitando encontrar-se com o Queiroz na ida para as aulas, negando-se ao amigo, esperando sempre a carta, que não vinha.
Apenas a mãe escrevera dando noticias da creança. Ia melhor ; o medico tinha esperanças ; tratavam n'a com um grande carinho. E era tudo. Nenhuma voz transpirava d'aquelle drama, que o trazia alquebrado. Uma carta, que escreveu ao guarda-livros, ficou sem resposta, como se n'aquelle homem humilde tivesse também nascido um despreso por elle.
O isolamento começava a pesar-lhe. Sosinho, a imagem de Anna tomava-lhe todo o espirito. Ficava horas n'uma quebreira, chorando deante do retrato. Comprara-lhe uma moldura de veludo; pensava que podia ter sido feliz com ella, n'uma aldeia. Coisas muito infantis, de uma pieguice de costureira. Passava horas na chaise-longue a ler romances e sentia a vida pesar-lhe.
Correram mais dois dias sem noticias, sem carta. O Queiroz tinha voltado a saber d'elle, espantado d'aquella ausência ; já deixara um recado ao bedel. Ao fim de oito dias, Manoel aventurou-se a sahir, respirar um bocado. Era domingo : havia musica no caes. Entrou n'um estanqueiro do largo das Ameias para comprar cigarros.
Já no meio da rua, o caixeiro veio á porta a chamal-o.
-- Ó senhor doutor... Esteve cá o senhor Queiroz. Perguntou por V. Exc.a, se tinha vindo por aqui.
O Queiroz havia de reparar de elle não apparecer. Que diabo ! Sempre era um amigo. D'antes não lhe deixava a porta. Com certeza o Queiroz reparava ; e decidiu-se então, tomou para a rua do Cego, meditando uma desculpa.
Queiroz havia de querer saber de Anua e do afilhado. Não teria animo para lhe contar a verdade, receando o seu despreso, a sua cólera. Entristecia-o mais aquella mentira necessária, a decadência moral em que se afundava. Trincava nervosamente o cigarro e ia devagar, cobrando coragem, na ante-visão de um interrogatório inquisidor.
Eram cinco horas na Universidade quando bateu á porta da rua do Cego. Logo uma vidraça correu e o amigo veio á janella, com um gabão pelas costas.
-- És tu? Cuidava-te morto! You abrir, espera lá. Desceu pesadamente a vidraça e os seus passos bateram de rijo no sobrado do corredor.
Manoel, precipitadamente, desculpou-se.
-- Tu deves ter reparado, mas não tenho tido uma hora por minha conta!
Inventou uma historia -- o tio Miguel que tinha apparecido em Coimbra por causa das eleições. Fora preciso acompanharo. Tinham tido conferencias com o governador civil, o Bento França, e tinham ido mesmo jantar com o Bispo-Conde.
-- Um inferno, menino! Todo o dia de carro por essas quelhas, n'um coupé do Careca, de molas perras. -- Olha lá, e a Maria da Graça ?
-- Como uma rosa de Alexandria. Cada vez mais corada, mais forte. Não ha mal que lhe chegue.
-- Antes assim.
-- E lá a rapariga ? -- E o pequeno ?
Entraram na sala de jantar, de varanda de castanho sobre o quinteiro onde cresciam pês de couve e uma japoneira floria, cheia de camélias brancas.
Maria da Graça, que costurava á varanda, levantou-se para o receber; e elle então contou vagamente a doença do filho. Não queria mamar ; andava rabugento ; emmagrecera. O medico tinda receitado umas coisas.
-- Dentes : são dentes ! -- asseverou o Queiroz. Tinha puxado uma cadeira, accendera um cigarro. Em cima da mesa estavam abertos livros de medicina. Queiroz aproveitara as ferias do entmdo para ornamentar a sala com lenços de Alcobaça -- a sua grande ideia! -- De um jugo de bois pendia um cobrejão do Alemtejo tapando a porta; havia muitos vasos de rainunculos arrumados na varanda, em fila.
-- Que te parece o palácio?
Manoel approvou, disse «que nem o Bordallo», achou bonita a valer a sala.
Maria da Graça pousou então a costura, levantouse preguiçosamente da cadeira e poz-se a olhar, pela janella aberta, Coimbra ao longe, inundada de sol, com sete vidraças chammejando n'uma altura, como boccas de fornalhas accesas.
A sua cinta de estatua engrossara um pouco ; havia um grande apasiguamento no seu rosto corado, redondo, de portugueza de lei.
Por instantes, uma repa de cabello fluctuou-lhe na testa, ao vento. Depois, voltando-se, n'um lento gesto de espreguiçamento :
-- Appetecia-me agora uma maçã!
O Queiroz riu, remexeu o cobre no bolso das calcas.
-- Dize á Joaquina que as vá comprar á castanheira da rua das Colchas. Vi-as lá ainda hoje. São das que tu gostas, das pequenas. Que chegue lá n'um instante.
Manoel sorriu também, n'um grande esforço.
Quando o barulho das saias de Maria da Graça se perdeu no corredor, o Queiroz atirou nma grande fumaça, estirou mais os pés ; e com um grande sorriso de beatitude :
-- Já reparaste ? Está gravida de três mezes.
-- Gravida? -- repetiu Manoel, com espanto.
-- De três mezes. Foi uma felicidade. O amor sem filhos é porco. Foi melhor assim. Fazia-me falta um petiz ! Sinto-me já patriarcha, decidido á minha dúzia de filhos !
A sua mão aberta batia compassada na meza e o fumo do cigarro, n'uma nuvem azul muito ténue, envoivia-lhe a cabeça.
Ouvia-se fora, no terreiro, o cacarejar das gallinhas esgaravatando na terra ; e um sino impaciente badalou o primeiro Angelus, em pleno triumpho do sol, que descia no vale entre nuvens vermelhas e douradas.
Gomo faltando a uma turba, enlevado pelo seu sonho de reforma, o Queiroz ergueu os braços, disse a sua grande felicidade ao lado da companheira sadia e terna, em cujo corpo branco e forte, elle ia plantar uma nova geração de esperança e de força.
-- O grande erro è que se desiquilibrou a felicidade physica em nome de um equilíbrio todo artificial e todo falso. Desde que se apregoou a família como a base inicial das sociedades, porque se ha de querer fugir incessantemente ás leis naturaes, sophismandoas e enganando-as ? -- Na vida só ha de verdadeiro, como base da felicidade, a saúde physica, o pleno equilíbrio áe todos os órgãos. O grande segredo da vida consiste na conciliação da sciencia com a vida, do espirito com o corpo, do pensamento com a matéria. É dentro da vida physica que ainda é possível deparar com a felicidade plena. Tudo o mais foge e illude. A vida cerebral é grande e bella, caramba! mas só teem o dever de se lhe sacrificarem os que sentem o génio imprescindível para melhorar a humanidade e trabalhar pelo aperfeiçoamento da espécie. Os intellectuaes seriam os pastores do rebanho, os reis das tribus, votados ao sacrificio permanente, vivendo na radiosa contemplação da felicidade alheia, como grandes Deuses tristes. -- Não, a felicidade é isto! Não ha nada que eu abomine mais do que o artificial e vasio de um espirito, que se pôz em discórdia com o corpo. Por isso quero ser feliz e fazer felizes. Os filhos d'essa mulher serão fortes como ella ; d'ella herdarão a perfeição da sua calma, a regularidade do seu coração. Tudo o que vier desmanchar essa harmonia perfeita, mutilar essa tranquillidade, será a grande desgraça e a grande angustia. -- Se houvesse a plena e universal consciência do céo e da outra vida, existiriam os privilégios, as 'castas, as divisões de classe? Não; o homem ficaria limitado na terra a um estado de espectativa para a vida futura; seria apenas a transformação da matéria em espirito. Mas não, não; nunca foi assim! O homem é um animal que nasce e morre, que semeia e se reproduz, como as plantas, como as larvas, como os insectos e como os mineraes. Ninguém, á vista de um cadáver, pode sonhar na vida prophetica. A morte é a desassimilação dos elerpentos que agglomerados constituíram uma vida. E se eu tenho a certeza de que isto é assim, para que crear-me afflicções e padecimentos?
Exaltara-se, com grandes gestos que bamboavam na parede ao avanço da penumbra. Depois, mais calmo por esse desabafo que o aliviou, no contentamento que lhe vinha d'essa supposta exposição tão lúcida do seu pensamento, a sua. voz de trovão foi abrandando e disse o largo projecto com que pensava encher o futuro.
-- Serei lá na minha aldeia um João Semana. A Maria da Graça vae commigo. Onde querias que eu encontrasse ura corpo mais lindo, um seio mais redondo, uma ternura maior? Depois, não sabe nada da vida, o que é soberbo ! Posso fazel-a á minha imagem e semelhança. Eu cá nunca acreditei em coisas vagas. Até aonde a minha razão estreita alcança, tudo vae bem. A mulher deu-me um filho : logo é a minha mulher, fonte da minha descendeneia, base da minha família. O filho é que une e casa. Ou eu não sei nada d'isto; que te parece?
Manoel approvou ainda, com um grande gesto de crença.
Sim, aquella era a vida boa, a vida da paz e da verdade.
Queiroz ergueu-se satisfeito, recuou os braços para sentir a distençãa dos músculos fortes. O seu peito largo inchou de ar, como um fole poderoso.
-- Vaes vêr agora o que é um vinho do Porto de appetite !
E emquanto o olhava abrir o armário, Manoel tremia do despreso d'esse homem justo e bom, que comprehendera a vida, sabendo elevar-se até á felicidade.
Descia o crepúsculo. Maria da Graça entrou com o candieiro. Ao longe, Coimbra illuminada, parecia no escuro uma arvore immensa, florindo a uma primavera divina.
O Queiroz trouxe os copos, fallou da riqueza d'aquellas terras do Norte onde nascia o vinho, e mais uma vez inflammou-se, n'uma grande cólera contra os dirigentes, contra o governo, contra Lisboa -- o cancro!
Quiz saber o que dissera o Bento França, «aquella besta» !
-- A eleição segura, hein? Os eleitores todos na mão ? E o Alemtejo sem gente ; o paiz sem pão ; o vintém do pobre sahindo aos montes de oiro pela barra fora ; Lisboa a espojar-se, refastelada ; o pobre a puxar as carripanas da Avenida! -- Fallavam agora muito da industria e o dono de uma fabrica do Porto proclamara que só a industria ia salvar o paiz; que só a industria dava de comer a cem mil famílias ! Havia agora ministérios industriaes ; protegia-se muito a industria. O lavrador morria de fome sobre o arado ; ninguém se lembrava da terra, que dava de comer a um milhão de famílias !
-- Se fores um dia deputado, dize lá isso na Gamara. A riqueza publica não se ha de fazer com esses milhões, por esse processo monopolisador dos capitães. Só a terra tem o poder de fazer circular a abundância por todas as veias do paiz...
Maria da Graça escutava-o, enlevada, n'uma adoração de Ínfima em frente ao seu homem, tão forte e tão poderoso, que desmoronava a omnipotência dos governos.
Fazia-se tarde. Manoel fallou de uma grande lição a estudar -- uma dúzia de folhas de sebenta, compactas, carregadas de sciencia.
Levantou-se, estirou o braço, n'um gesto molle, para a capa, estendida nas costas de uma cadeira.
-- Custa tanto a ser bacharel! -- disse.
O Queiroz também tinha que ver umas coisas, folhear uns hvros, por causa de um doente do hospital -- um trabalhador da Beira, forte como um penedo, que tinha uma pneumonia.
Accendeu outro cigarro, contou a historia:-- o cavador partido do Ervedal um mez antes, tendo deixado a mulher e os filhos na cabana, a comer as batatas farinhenlas do hortejo, á espera da sua volta, como de um redemptor; e inesperadamente, já com a enchada e os alforges ás costas, de regresso ao lar, a chuvarada, as noites ao relento pela lama, a pneumonia.
-- Custa muito a ser bacharel ! -- repetiu, erguendo-se. -- Caramba ! Antes morresse ura ministro de estado, ou dois!
Manoel riu, chamou-lhe «azedo», «invejoso», «homem das cavernas.» Traçou languidamente a capa, abotoou a batina e despediu-se.
Maria da Graça lembrou então para vir mais vezes, como d'antes, tomar o chá. E que mandasse muitas recommendações a Anna ; não fosse esquecer ...
Manoel prometteu : justamente ia para casa escrever duas linhas ; lá mandaria saudades, podia estar descançada.
Apertou a mão ao Queiroz : -- que se não incommodasse : elle fechava a cancella.
Maria da Graça veio ainda alumiar ao corredor.
-- Muito boa noite.
Manoel voltou-se, viu o vulto da mulher, sustendo na mão erguida o candieiro que a banhava de luz.
-- Boa noite, comadre!
E bateu com a porta.
Mas então, quasi esbarrou com o carteiro, parado na calçada a conferir o numero da porta.
Atravessou-o uma suspeita ; adiantou-se, muito calmo :
-- Alguma carta ? -- Maria da Graça ?
-- Uma carta de Lisboa ...
Era a letra de Anna, miudinha e tremula, no sobrescripto de cinco reis, que o carteiro lhe estendia sem desconfiança.
-- O distribuidor da noite -- o Sepúlveda ; um creado de V. Ex*...
Manoel ficou parado um momento, olhando o enveloppe, preso pelo escrúpulo d'aquella violação. Veio-lhe um grande medo de que essa carta desvendasse o seu segredo ; chegou a levantar o braço para o batente da porta, mas reconsiderou, mirou de novo o sobrescripto. Nunca se suspeitaria que fora elle que a levara. Quantas cartas não chegam ao destino, extraviadas, perdidas nas ambulâncias ! E talvez Anna dissesse onde morava, não lhe querendo escrever a elle, com vergonha... Fora mesmo uma providencia, essa carta, que lhe vinha cahir nas mãos, por um acaso feliz, sem que tivesse dado um passo ao seu encontro.
E deitou e correr pela rua deserta, na pressa de a lêr, de saber o que ella dizia.
Endireitou para a Baixa até á rua do Infante D. Augusto, entrou no café Minerva, quasi sem ninguém ainda, onde apenas três estudantes carambolavam a um bilhar e um caloiro chupava uma orchata, n'uma meza do fundo, suando sobre uma revista illustrada.
Sentou-se, pediu um cognac ; e sobre o mármore, á luz viva do candieiro de petróleo, rasgou o enveloppe, envolveu toda a carta n'um ávido ohar de impaciência.
Anna apenas se queixava do peito, de uma dôr que lhe viera depois da partida de Manoel ; e dizia a sua saudade, com o lamento de quem desafoga um pouco de immensa tristeza.
Manoel percebeu na pobre carta o cuidado que ella punha em salval-o deante do amigo ; um aviso a dizer-lhe que estava viva, que já nada esperava d'elle, mas que não lhe guardava rancor, não lhe desejando mal.
E ajudava-o na sua mentira, adivinhando de longe a inquietação em que vivia a sua consciência. Não dizia onde morava. Era uma carta sem resposta, que a despresada mandava à Maria da Graça para elle, sem ousar escrever-lhe, guardando a sua dignidade, depois do ultrage.
Manoel levantou-se da mesa, pagou o cognac e sahiu para a rua.
-- Que desgraça ! que grande desgraça ! -- dizia.
Mas um garoto passou a apregoar os jornaes de Lisboa e elle parou um instante para comprar O Século, ver se tinha agrado em S. Carlos o Mephistopheles pela Bianchi.
II
Anna veio debruçar-se á janella.
Na viella, uma voz triste e enrouquecida cantava. Esteve ouvindo, absorta, muito distante d'aquella miséria, a voz baça que enchia o silencio da noite fria.
Já lá vae a barra fora Quem no meu leito dormia, Deus o leve e Deus o traga Quem tanto bem me fazia...
Do alto do Castello, da janella acanhada do seu quarto andar, dominava quasi a cidade inteira, sobraçando o rio desde o Barreiro a S. Julião da Barra ; e agora, de noite, toda a cidade palpitava de luzes, com duas nódoas vivas no escuro -- a cúpula do Colyseu e a estação do Rocio.
Fazia-lhe bem respirar a frescura da noite. Faltava-lhe o ar lá dentro, no quarto abafado, sob os zincos. Alli ao menos, continuava a vêr o rio -- o seu grande amigo -- e sentia-se menos sosinlia, suspensa sobre a vida nocturna da cidade.
A casa era muito acanhada, com tectos a pesar sobre a cabeça, paredes de cal suja, com umas trazeiras fétidas, debruçadas sobre um sagíião immundo. Por isso pouco sabia do quarto, vivendo entre as quatro paredes como n'uma clausura, aliviada por aquelle horisonte de cidade -- o estendal dos telhados, que o bairro alto tapava ao sul, como um panno de fundo de onde rompiam torres de egrejas.
A casa ficava sobranceira a um bairro de vicio e miséria, escurecido de beccos, cotovellos e escadas sujas, onde se escondiam todos os dejectos da cidade, como uma cloaca lobrega -- uma fossa para onde a policia atirava podridões.
Todas as noites, a voz cançada palpitava na sombra até deshoras, cantando um reportório de vicio, onde tremiam aspirações passionaes, amores, traições, deshonras ; e era a única voz do bairro, lamentosa, atirando para as estrellas o grito de uma miséria anonyma, como um soturno clamor de justiça, vindo d'uma casita velha, de resalto, ao fim da rua, resto da judiaria, daudo paredes meias com Alfama. Havia uma enfiada de casas eguaes na ruella, de portas baixas, fechadas com trancas, postigos flamengos sob tectos em bico, paredes a esbarrondar-se, amparadas com gatos de ferro, ameaçando todos os dias ruina.
Custara-lhe muito a habituar-se alli nos primeiros dias, naquelle bafo de vicio, n'aquella noite de onde transpiravam, altas horas, gritos, choros, banzas de guitarra. Mas viera a acostumar-se, n'um infinito desprendimento por tudo, incapaz de um novo esforço, resignada a soffrer depressa o seu resto de vida, acabada a razão da sua existência, desde que llie tinham tirado o filho do regaço e deixado seccar o seu leite de mãe. Dia sim, dia não, ia vePo ao Campo Grande. Ás vezes ia a pè ; o americano era caro. Chegava então cancada, como se tivesse galgado léguas pelo monte, a suar, com uma grande dôr no peito. Tossia muito e já de uma vez escarrara sangue.
A creança parecia melhor e a Catharina tratava-a bem, vigiada pela mãe sempre attenta, capaz de alvoroçar a casa ao menor descuido, á mais leve suspeita de maus tratos.
Anna vinha de lá sempre mais curvada, com olheiras mais fundas. Ás vezes, tinha que sentar-se n'um banco do Campo Grande a chorar. Desamparara-a de todo a esperança de melhores dias, o projecto heróico de reconquistar o filho. Sentia que não durava muito. Tinham-lhe arrancado qualquer coisa lá de dentro; pisado muito, magoado mortalmante o seu pobre coração de illudida.
Ia vivendo de umas costuras que lhe dava um armazém de roupa branca: o preciso para enganar a fome e pagar os três mil reis da casa, tendo recusado a ajuda que a mãe de Manoel lhe mandara offerecer pela senhora Catharina.
-- Que o gastasse a mais com o filho ; ella não precisava, ia vivendo do seu trabalho.
Quebrara de todo com o passado ; tinha escondido no fundo do bahu as cartas e os retratos de Manoel.
Não lhe guardava rancor e escrevera á Maria da Graça para o socegar. Talvez que se ella morresse n'aquelte desamparo, Manoel tomasse conta do filho, pensava ás vezes ; e desejava muito morrer, confiada de que a sua morte revertia em bem do pequenito.
Na véspera fora vel'o. Tinha voltado muito cançada, sem forças para trabalhar. Deitara-se muito cedo, com uma afflicção no peito e falta de ar.
E agora a mesma suffocação opprimia-a ; só se sentia bem á janella, muito embrulhada no chalé, em frente á ciJade, ouvindo o canto da Bezerra, crescendo da profundidade escura da viella.
Teu nome lembra-me beijos,Suspiros, doidos abraços,O calor dos nossos corposUnidos como dois laços...
Quasi a consolava a existência d'essa miséria, que toda a noite segredava uma decadência maior do que a sua, lhe contava um passado de fome e lagrimas, de pancada e vicio. A ella ao menos, dulcificava-a um romance de amor, ardente como um noivado ; tivera dias de uma deslumbradora felicidade, que ainda banhavam a sua alma de claridade e aqueciam de calor o seu confrangimento. Mas essa outra que cantava, exposta ao frio da noite, na soleira da porta, nunca lhe tinham abrasado as mãos de beijos, não podia, como ella, desafogar a sua amargiu'a n'uma romântica tristeza de rainha desthronada, tendo sido sempre uma escrava rejeitada e batida, vigiada pela policia, conhecendo os grabatos do Aljube e as camas do hospital.
E no grande silencio, atravessado apenas pelo vento murmurante que soprava da Baixa, a voz de desgraça subia na escuridão, apregoando o corpo ossudo da Bezerra,
Pobre da mulher casada Que tem homem para me dar, A minha porta está aberta Para quem quizer entrar...
Um grande grito cortou a noite ; uma guitarra gemeu ao longe, lastimosamente ; do andar de baixo veio um choro convulsivo de mulher.
Ah! que tristeza! De todas as bandas vinha o berro de dôr d'aquelle montão de humanidade vencida: o soluço, a lagrima, o gemido; emquanto ao longe a cúpula do Colyseu rebrilhava, incendiada de luz. Também alli viera parar, escondendo a sua decadência e o seu desastre, atirada paia o bairro negro, a engrossar a montureira dos perdidos.
O seu grande olhar queimado de febre envolveu a cidade escura pospontada de luzes, com horisontes onde se estampavam, como dentes de uma serra, as edificações mais elevadas ; e a meio d'essa immensidade toda a sua carne se arripiava, á sensação de isolamento que d'ella vinha.
Passos batiam ruas ; vozes dispersas subiam ; o canto da Bezerra cessara, com um brusco fechar de porta; outros choros, outros gritos trespassavam a noite. Crescera um veulo gelado. Uma janeila bateu violentamente, nas trazeiras.
Então Anna voltou-se na cadeira, chamou :
-- Rosa! Ó Rosa!
A pequena veio de dentro, arripiada de frio.
-- Chamou, senhora Anninhas?
-- É uma janella, lá dentro, a bater.
-- Foi o postigo: já fechei. Sempre se levantou um vento !
Anna, que estremecera a uma rajada mais forte, disse :
-- Que pena! Estava uma noite tão bonita! Levantou-se, pesarosa, ainda um momento de pè a olhar a noite escura ; fechou depois a janeila, tossiu, embrulhou-se mais no chalé.
A Bezerra recomeçava a cantar na soleira da porta, ao frio, apregoando-se. Ouviu-se ainda um resto de quadra, na voz áspera e muito triste, em que havia alsfuma coisa do mugido de uma vacca.
.. .Meu corpo de lume vivo Precisa de que lhe assoprem.
Depois, no quarto estreito fez-se um grande silencio, que apenas passos de alguém estremeciam no andar de baixo.
Os pães de Rosa tinham mudado para mais longe, perseguidos sempre pelas dividas, pelo recibo da decima, enxctidos pelo mandado de despejo do senhorio; e morava agora no terceiro andar um operário da Companhia do Gaz, casado, com três filhos pequenos.
Via-0 entrar sempre pela manhã, com a cara suja de carvão, molle de somno e fadiga, com os pulmões a arder do ar incendiado das fornalhas, de revolver o cocke em brasa, na atmosphera ardente e fumegante do gazometro.
Durante todo o dia o operário praguejava, atordoando todo o casarão de berros e ameaças. Não o deixavam dormir, descançar em paz no enxergão duro, da fadiga da noite : essa fadiga sagrada com que elle pagava o caldo da mulher e dos filhos. D'ahi as suas cóleras de animal somnolento, os clamores de batalha que alvoroçavam a casa a todo o instante, com pragas, palavrões, os choros da mulher, a grasinada afflicta das creanças.
Á esquerda morava uma velha paralytica com o homem, que era serralheiro. Tinham um filho no degredo havia cinco annos, por ter anavalhado a amante, com ciúmes.
As Irmans dos Pobres atreveram-se um dia até áquella penúria. Fora um levante então por toda a viella ; o serralheiro empurrara as religiosas pela escada, enfurecido á vista dos hábitos negros, insultando as mulheres que tremiam sob os insultos, perseguidas pela voz áspera da Bezerra que clamava impropérios.
-- Se cá pilho outra vez aquellas bruxas, racho-as ! -- dissera o serralheiro, brandindo com o braço pelludo, encordoado de veias, uma broca de ferro.
Fora logo no primeiro dia em que Anna occupara o seu quailo andar.
A desordem revolvera todo o lodo do bairro, trazendo para o sol a miséria da rua amotinada. Até tarde, na viella, commentou-se a vinda das religiosas, n'um rancor de humanidade em revolta contra tudo o que vinha d'essa religião cahida em descrença, que nada podia para aliviar um pouco da sua miséria e do seu infortúnio ; d'essa religião que os desgraçados contavam como uma espoliadora a mais, adivinhando n'eria um jugo e uma mentira.
A abjecção de todos os miseráveis exultou, no desafogo de uma cólera tenaz, na exhibição de todos os podres d'essa religião em fallencia, contando historias tenebrosas de torpezas e ignominias : o arcebispo com amantes, como um sultão; os cónegos dando ceias lautas onde iam mulheres, os confessionários manchados de violações ; e até a Bezerra contou, victoriosa, que rejeitara n um dia de fome o abraço de um padre, obeso e calvo.
O casarão era habitado ainda por mais quinze famílias, amontoadas em quartos estreitos, sem luz; a maior parte operários e carrejões.
Uma mulher tomava conta do pardieiro, encarregada de receber os alugueis. Tinha um quarto e uma sala no primeiro andar e vivia de graça, como uma mordoma, o senhorio descarregando n''ella a tarefa de tratar com aquella população sempre fluctuante de esgoto, arrecadar os dinheiros, farejar a miséria dos casaes, akigar os commodos devolutos, prover á cheia d'aquella fossa immensa. Era uma mulher de cincoenta annos, muito chupada de doenças ; e emprestava dinheiro a juros, adiantava alugueis sob penhores. Era authoritaria, violenta, contendo em respeito os inquilinos, como a rainha do cortiço, inflexivel nos pagamentos, sem um instante de piedade durante os dez annos do seu emprego feroz de cão de guarda.
Desde que Anna entrara para a casa, a velha apontava-a como um modelo, esmagando as lamurias dos mais pobres com o exemplo da costureira -- sempre em dia com o aluguel, silenciosa ao seu canto, sem questões com vizinhos.
-- É a pérola ; nunca cá tive outra assim ! -- dizia a senhora Miquelina por toda a casa, no seu giro dos fins dos mezes. -- Trabalhem ; façam como ella ! Deixam criar bolor no corpo e vêem depois com a cantiga da pobresa e dos filhos. Pois não os façam, que eu também não os tenho !
N'esse dia dos pagamentos, mulheres esfarrapadas vinham bater á porta de Anna, para que pedisse por eilas á senhora Miquelina, mostrando-lhe os filhos, gemendo a sua historia de desgraça.
Anna fora assim conhecendo todas as misérias que gemiam nos outros andares, consolando-se na sua penúria, da independência que ainda lhe restava, vivendo do seu trabalho, sem ajudas e sem dividas.
Tinha agora um monte de roupa branca para aviar; havia semanas de fazer cinco mil reis e punha dinheiro de parte.
Já Rosa n'essa noite se admirava de que ella não pedisse o candieiro e não estivesse sentada á machina, a cos^r.
Tinha dias assim, de uma grande preguiça, em que o trabalho a cançava depressa ; outros em que logo pela manhã se sentava a trabalhar e esgotava de noite o petróleo ao candieiro.
Mas n'esse sabbado a tosse fatigou-a muito; doia-lhe mais o peito. Resolveu descançar n"aquelles dois dias e ir no domingo ao Campo Grande.
Na segunda-feira pegaria então no trabalho.
E como Rosa pousasse já o candieiro em cima da mesa:
-- Olha: hoje, como assim, não trabalho.
-- Faz bem, faz, senhora Anninhas. Até lhe fazia mal estar curvada do peito muito tempo. Como já está tudo alinhavado, depois vae n'um instante.
Arrumou a machina para o canto, foi cobrir o cesto da roupa com uma toalha.
-- Quer a senhora que lhe leia o folhetim ?
Era um folhetim do Diário de Noticias, Os crimes do Banqueiro, que a senhora Miquehna tinha emprestado, pedindo muito que lessem.
Mas Anna desinteressava-se, distrahida logo ás primeiras linhas, pensando na sua vida, emquanto Rosa, sentada no chão, lia em toada a passagem dramática, quando o conde de la Roche, pallido e loiro, suspenso de uma escada de cordas, vae beijar as mãos de Rertha e um sicário o espera em baixo, occulto nas verduras do parque, com a espada nua.
O vento soprava nas frinchas, batia uma porta, em baixo, furiosamente ; e no forro, qualquer telha deslocada estabanava ao vento com um ruido pesado de tijolo.
Numa aberta de vento as duas alçaram a cabeça.
-- Bateram -- disse Rosa.
Anna embrulhou-se mais no chalé, lembrou :
-- Para ahi a Miquelina. Pergunta de dentro antes de abrir, ouves ?
Era a senhora Miquelina, muito friorenta, com um casibeque de filó grosso. Vinha saber d'aquella «pérola» ; se ia melhor da tosse e se lhe emprestava um carretel de linha preta para dar umas passagens n'um par de meias.
Queixou-se também de um resfriado, da solidão em que vivia lá em baixo, sem querer frequentar os inquilinos, por soberba.
-- Se uma pessoa lhes dá confiança está perdida !
Anna ouvia calada; balouçou a cabeça n'um assentimento mudo, de preguiça, emquanto Rosa, de joelhos, procurava no cesto da costura o carrinho de algodão preto.
-- Do mais grosso, sim, menina ?
Sentou-se, puxou sobre as costas das mãos ossudas as mangas de flanella da camisola; recomeçou a historia das suas consumições por causa dos alugueis.
-- Ainda por cima -- pode acreditar? -- dizem que não tenho coração. Pois ! Não que as responsabilidades são todas para mim. Elles vão para a rua e eu cá fico p'ra prestar contas.
Desabafou as suas bilis, os seus humores. Ainda na véspera tinha tido um barulho com o colchoeiro ; devia-lhe dois mezes atrazados !
-- Como a menina ha poucos. A si, senhora Anninhas, nem que fossem cinco mezes, fiava-lhe. Mas não se pode ter confiança em todos, acredite. É uma corja! -- e poz a mão em concha no joelho -- Os homens gastam tudo na tasca e as mulheres em farrapos. No aluguel não pensam elles. O senhorio que se arranje; a velha que berre p'r'ahi... Vêem depois com a leria da pobreza -- não sejam bêbedos ! e queixam-se da filharada -- não a façam, os porcos! Cambada, menina, cambada !
Levantou-se, metleu no bolso o carrinho de algodão.
-- Estavam a lêr o folhetinsinho ?
Anna disse que sim ; para passar o tempo : as noites eram tão grandes !
-- Não ha remédio. Sempre alivia da canceira, o folhetinsinho ...
Ella estava a lêr o Rocambole, mas mettia-lhe afflição : havia muitas mortes, muita barbaridade.
-- Então adeus, menina, muito obrigada. Amanhã cá lhe trago o carrinho, pela manhã.
Logo que ella sahiu, Anna mandou fazer o chá, muito cheia de somno ; conferiu o rol, deu o dinheiro para as compras, foi pôr mais um cobertor na cama. E ainda combinaram as duas que no dia seguinte, que era domingo. Rosa iria vêr os pães, aos Anjos; ella iria vêr o filho ao Campo Grande.
Jantavam mais cedo; podiam estar de volta ao anoitecer.
Mas o domingo amanheceu toldado, com grandes nuvens, como pannos fúnebres, que desciam, escurecendo o céo ; e o mesmo vento frio soprava do mar, atirando as nuvens para o norte. Mesmo Anna não foi á missa, temendo um agoaceiro. Depois do meio-dia
O céo espaireceu e ella decidiu só então vestir-se, não querendo deixar de ir vêr o filho.
-- Coitadinho! até precisará d'alguma coisa.
-- Vá; vá, senhora Anninhas: faz-lhe bem sahir. Apromptaram-se, n'um grande barulho de saias, pondo as roupas melhores, e até Anna cantou emquanto abotoava o corpete de merino.
Vieram as duas juntas até á rua Nova da Palma, parando á porta do Principe Real á espera do americano do Lumiar.
O dia continuava agreste, com nuvens longínquas, ameaçando chuva.
Rosa, um instante de olhos erguidos a ver o céo, disse :
-- Logo á noite temos agoa.
Mas o americano demorava e foram as duas caminhando de vagar pelo passeio, do lado do sol, até ao largo do Intendente.
Fazia-se tarde; foi preciso separarem-se. Rosa tinha de estar em casa para abrir a porta quando Anna voltasse.
-- Agora endireito pelos Anjos. Até logo, senhora Anninhas.
-- Ás cinco horas ; toma sentido !
-- Esto lá sem falta ; vá descancada.
Ia levar uma pouca de roupa que Anna tinha dado para os pães.
Crescera muito ultimamente, de uma brancura doentia, de sangue pobre, alumiada por uns olhos aonde uma grande ternura vivia, envolvendo todas as coisas com uma piedade de enfermeira.
Anna voltou-se para a vêr partir com a trouxa debaixo do braço, no seu passinho muito saltado de boieira e esteve ainda mais de um quarto de hora á espera do americano, junto do kioske, a ouvir um realejo que um homem de barbas cançava, olhando ávido as janellas, onde tinha vindo debruçar-se gente, na grande preguiça do domingo.
Havia uma exposição de flores no Golyseu velho; €arros passavam ; uma banda de musica abafava o realejo, tocando a marcha da Cadiz. E emflm o americano do Lumiar appareceu, quasi cheio.
Ia sempre com uma grande tristesa ao Campo Grande, tão triste, que quasi a não consolava vêr o filho, sentindo-o menos seu desde que não bebia o seu leite e não soífria nos seus braços. Chorava continuamente emquanto o tinha ao colo, luctando contra o desejo de deitar a fugir e de o levar. SoíTria muito, viciada pela mãe de empréstimo, sempre desconfiada, que a não largava um instante de vista.
D'aquella vez foi ainda como das outras vezes. A senhora Catharina veio abrir, muito desleixada, com um chambre sujo.
-- Muito boas tardes. Quer ver o seu menino ? Está cada dia melhor ; já vae ganhando corpo. Bebe mais de um litro de leite por dia ...
Fel-a entrar para a sala, como uma visita, Trazia-lhe sempre a creança; nunca a deixava ir dentro, ao quarto.
-- Não se incommode, menina; eu trago-lh'o. Anna ficou sosinha um instante na sala fria e nua, com duas oleographias na parede, um canapé velho e cadeiras de palhinha, de costas cobertas com paninhos de crochet. Pela janella via-se um trecho de parque sem verdura, com arvores despidas, e uma larga rua onde passavam com lentidão carros fechados. Para as trazeiras ouvia-se o chiar monótono de uma nora e o ruido da agoa vertendo das pucaras de barro.
Mal teve tempo de se sentar. Um rumor de saias encheu o corredor e a senhora Catharina entrou na sala, arrastando muito os sapatos na esteira velha.
-- Aqui tem o menino.
Tinha-lhe posto um babeiro lavado; e a creanca, que ella trazia ao colo, era ainda a mesma, pallida, enfesada, com um craneosinho pequeno, o beicito em bico, os olhos parados, como cegos.
Anna beijou-a muito, aconchegando-a ao seio, devorando-a com o olhar que as lagrimas embaciavam.
-- João ! O meu querido Joãosinho ! Meu rico filho!
A outra teve um gesto de enfado para essa scena de lagrimas que a mãe repetia sempre.
-- Jesus! Não é caso para chorar. Esse amor è tratado como um príncipe. Só em medico e remédios gasta mais que uma pessoa grande ! Bem o pode agradecer a quem tanto bem lhe faz. E então luxos ! Ainda hontem lhe mandaram dons vestidos de fustão. Veio também flanella para cueiros. A menina è que lh'os podia fazer. Eu agora, com este frio, ando mesmo com os dedos tolhidos de rheumatico. Vou-lh'a buscar ; leva-a mesmo embrulhada n'um jornal. Nem tanto è.
Levantou-se, arrastando os sapatos de feltro, para ir buscar a flanella.
Anna, um instante sosinha, juntou com um gesto de avara o filho ao peito, beijando a cabecinha onde o cabello loiro crescera como uma ceara de oiro. Os olhitos azues, estagnados, voltaram-se para os seus, reflectiram na pupilla a face abatida da mãe. Ella susteve-o de pê, amparando-o com as mãos, demorandona vista do filho a sua imagem, mais consolada ao revêr-se n'elle, habitando dentro dos seus olhos inconscientes, em que a meningite deixara uma fixidez inquietante.
Era quasi uma boneca que a mãe em êxtases abraçava, muda, não conhecendo ninguém, sem forças, sem movimentos, com um pescocito de canário, muito frágil, que não sustinha a cabeça e era preciso amparar sempre, como uma haste tenra onde tivesse desabrochado uma grande flor pesada.
-- Meu rico anjinho ! Meu rico anjinho !
Aconchegava-o muito, não se cançava de o beijar, passando-lhe as mãos pelo cabello doirado, muito fino, que já lhe descia quasi até ao pescoço, pondo um pouco de bellesa na sua facesinha de perdido.
Anna alisou carinhosamente aquelles fios de oiro, n'uma ternura quasi religiosa ; e a creança continuava a olhara fixamente com um olhar azul muito claro, do mesmo azul limpido e cego com que nascera.
Mas a porta abriu-se e a senhora Catharina voltou, a embrulhar a flanella n'um jornal.
-- São cinco metros; pode fazer â vontade sete cueirinhos. Temos muita pressa d'isso. A menina não imagina ; é um molhar de fraldas todos os dias que não ha roupa que chegue !
-- As creanças são sempre assim-- aventurou Anna, a medo.
-- Não digo menos d'isso. Olhe que não é mais amiga d'esse pequeno do que eu ! Às vezes quem os cria ganha-lhes mais amisade do que quem os dá á luz!
Anna soffreu em silencio, curvou a cabeça, julgando inútil dizer tudo : a lucta cruel de que a outra sahira emfim victoriosa, a amargura com que padecia ainda da expoliação brutal do filho.
Duas lagrimas correram nas suas faces magras; tinha grande vontade de sahir poFa de pé, constrangida, não se sentindo bem alli, na casa extranha, onde a recebiam sempre com mãos modos, com uma animosidade apenas disfarçada, envenenando-lhe sempre o instante feliz em que podia apertar o seu filho nos braços e juntar ao seu corpo aquelle corpinho seu.
Pediu desculpa do incommodo, disse com a sua voz humilde:
-- Não é por muito tempo, senhora Catharina ! Não duro muito !
Gurvou-se toda sobre a creança n'uma crise de lagrimas, beijou-lhe ainda os pesitos, as mãos, abocca.
-- Ai! rico filho da minha alma! Meu rico filho! -- murmurava, limpando as lagrimas ao lenço. -- Parece que tem fome, senhora Catharina. Dê-lhe o leite, sim? -- Eu cá venho na terça feira com a roupinha. Hei de vêr se lh'a dou na terça-feira.
Sahiu qiusi empurrada, como uma importuna. Quando a porta bateu, largou a caminhar ao acaso, esteve para ser atropelada por um trem : foi cahir por fim n'um banco, á espera do americano.
Um vento frio batia ramos de arvores ; o céo estava sujo de nuvens e nem um carro passava já nas avenidas solitárias.
Quando chegou á rua Nova da Palma o elevador da Graça ia partir ; metteu-lhe medo ter de subir ainda toda a Mouraria e decidiu ir no elevador até ao Arco de Santo André. Mas deu pela falta do dinheiro : uma cédula de tostão que ainda trazia.
Revolveu longamente o bolso da saia, espanou o lenço, procurou nos vincos do forro.
Só encontrava o bilhete do am.ericano. Então decidiu-se, na esperança de chegar a casa antes da chuva; e começou a galgar a subida dos Cavalleiros, apressada, n'um penoso esforço que lhe dilacerava todo o peito.
Logo adeante da rua das Tendas as primeiras gottas de chuva cahiram, pesadas e grossas, pintalgando os passeios e a calçada. Anna apertou mais o passo, cozida á parede, abrigando-se sob a beirada dos telhados. Abriam-se já guarda-chuvas ; gente corria, recolhendo-se nas lojas ; e o elevador era assaltado a todo o instante, como um refugio. O céo eunegi-ecera, coberto de horizonte a horizonte com um pesado panuo de lucto.
Anna deu ainda dez passos, atlingiu o largo do Terreirinho, mas logo um agoaceiro tombou com uma restolhada secca. Ella então precipitou-se, procurando um portal. Teve de voltar para traz, atravessar a rua de repente deserta sob a chuva, embaraçando-se nas saias, o rosto todo molhado, desatinada como um animal perseguido. Acabou por abrigar-se n'um portal escuro, cheirando a cisco, de uma casa de dormidas.
A chuva era cada vez mais basta, alagando n'um momento toda a rua.
Levantou-se um grande vento; enxurradas invadiam os passeios, revolteando nos boeiros; e um relâmpago incendiou os céos por cima do Castello. Um garoto abrigou-se por um instante no portal, a assobiar, e partiu logo outra vez pela chuva, patinhando no enxurro com os pés descalços. Um grande cheiro a terra subia da rua, de entre as pedras.
N'uma casa em frente, duas mulheres riam por detraz dos vidros; e um elevador passou ainda, cheio de gente, subindo a calcada de Santo André.
Mas no ruido da chuva uma voz de creança gritou :
-- Alli, alli, Mamã!
E logo uma mulher enfiou pelo portal com um pequeno de quatro annos pela mão, seguida de um homem, que trazia uma creança ao colo. Houve um reboliço ; o pae teve que pousar o filho para fechar o guarda-chuva, a mulher batia as saias ensopadas, rindo muito.
-- Hein ? Quem tal diria ! Uma manhã tão bonita !
Sob a saia branca, com muita gomma, a perna grossa apparecia, calçada de meia preta, ordinária. Era uma mulher de trinta annos, com o peito redondo de criadeira, o cabello riçado e olhos castanhos, muito alegres.
As creanças tinham ficado paradas a olhar a enxurrada e o homem, que conseguira fechar o guarda chuva, voltou-se, limpando o chapèo.
Anua recuou mais na sombra, reconhecendo-o. Era o empregado do caminho de ferro, mais velho, com cabellos brancos nas fontes, o ar repousado de um homem que venceu, que tem familia, que pode ir passear aos domingos com o fato limpo.
Elle conheceu-a também, cravou em Anna um olhar de espanto pela sua magresa, pela decadência da sua formosura tocada de morte, com olheiras fundas. A mulher deixou cahir as saias, voltou-se também a olhar, inquieta ; e foi o marido que cortou o silencio chegando á porta, a ver se augmentava a chuva.
-- Isto passa n'um instante : é um agoaceiro.
E essa voz, que n'outros tempos a tinha tantas vezes supplicado como um alto premio de vida, não tremia sequer, tendo passado serena por toda a lembrança do passado, firme como um esquecimento.
Anna teve o ímpeto de se atirar a essa mulher que sorria, arranhar a sua carne fresca com as unhas, enxovalhar a alegria affrontosa da rival, que a desapossara da grande felicidade de ter aquelles dois filhos e encostar-se ao braço d'aquelle homem. Saltaram-lhe as lagrimas dos olhos, e sem dar conta de si, com a cabeça perdida, incapaz de permanecer mais um instante sob a cruel injuria d'esse sonho para sempre prohibido, que outra gosava em seu logar, atirou-se para a rua, n'um instante encharcada pelo agoaceiro, o chalé varrido pelo vento, os passos trôpegos vencendo as enxurradas violentas, perseguida pelos dichotes e pelos risos de quem a via teimar em subir a rua, açoutada pela ventania, a escorrer agoa, com as saias n'um frangalho, e os cabellos quasi desfeitos, embrulhando-lhe a cabeça como um trapo.
-- Vae maluca o dianho da mulher!-- Olha que se te vêem as pernas, diabo ! -- Não vá cahir, ó mulherzinha ! --
Agora, de todos os portaes rompem chacotas. N'uma mercearia gente corre á porta para a ver passar, dobrada em dois, a mão apoiando o joelho, a cara a escorrer, com repas de cabellos a tapar-lhe os olhos, varando pela chuva, sempre a direito, chorando a ruina da sua vida, para sempre impossibilitada de ser esposa e mãe, como uma rodilha inútil levada no enxurro para os esgotos.
-- Olhe que deixa um sapato ! -- Vae desarvorado, o estafermo !
Que lhe importavam aquelles risos e aquellas affrontas ! A sua alma já se cançara na injustiça e na maldade do mundo. O que ella chorava era toda a sua vida partida, o desabamento de todas as suas aspirações de mulher, para todo o sempre sem lar, sem homem e sem filhos, carregando o peso de uma ternura que todos rejeitavam e que ninguém queria.
Como um pobre animal ferido que se vae acoutar no esconderijo, andava sempre, sem paragens, dobrada contra o vento, como uma fugitiva e uma vencida.
Mas a chuva abrandou n'um compadecimento e Anna levantou o busto magro, pondo um pouco de ordem no cabello desfeito.
Quando alcançou a viella apenas raras gottas cabiam e o cèo limpava, todo azul para os lados do mar.
Mal se sustinha, chegada a cima ao quarto andar ; e um accesso de tosse teve-a curvada em frente á porta, que Rosa veio abrir, pallida de susto.
-- Jesus ! com esta chuva ! E vem toda molhada !
Anna deixou-se cabir n'uma cadeira, desfallecida.
Foi preciso que Rosa a vestisse como uma creauça, ella não tendo forças para levantar um braço, com os pés encharcados, a roupa pingando agoa no soalho.
-- Até pode ficar doente! -- dizia Rosa, afflicta, emquanto lhe tirava o chalé e desfazia o nó da mantilha ensopada.
N'aquella pequenina alma uma gravidade de mulher nascia, e desabrochava na sua candura um grande instincto de consoladora, como uma larga flor de affecto que vinha perfumar os últimos dias de Anna. Era já com a ternura de uma futura mãe que Rosa ia vestindo e agazalhando a doente, embrulhando-a no seu chalé, estendendo-lhe um cobertor sobre as pernas frias, censurando-lhe a imprudência -- vir assim pela chuva, em riscos de adoecer, cahir de cama ! Podia ter esperado por uma aberta, recolher-se a um portal, entrar até n'uma loja !
-- Podia-lhe acontecer uma desgraça ! Jesus !
Anna balouçava a cabeça, emmudecida, toda na sua dôr, enfrentando a evidencia d'essa injustiça que a perseguia, presidindo a todos os actos da sua vida, manchando todas as suas aspirações de virtude, empurrando-a brutalmente para a sombra ; esposa enganada e trahida, mãe desapossada do fructo, mulher sem virgindade e sem maternidade, de que o egoismo dos homens fizera um ente desapegado da vida, estéril e solitário, imprestável como um animal nocivo; impedida para todo o sempre de ser esposa e de ser mãe, confinada eternamente na sua dôr, porque tinham rejeitado a sua ternura, desviado a sua carreira resplandecente de mulher, desfeito a grande razão da sua existência, abusando do seu sexo e inutilisando-o.
Podia ser a essa hora a companheira d'aquelle homem e a mãe d"aquellas creanças ! Outra conquistara o seu logar, para sempre senhora d'esse lar que lhe pertencia, que ella tinha obtido com a sua honra. Porque a enganara, se o coração a não escolhia para companheira? Outro teria vindo, mais humilde e mais só, pedir-lhe a consolação dos seus beijos, vivendo para ella, elegendo-a até ao domínio exclusivo do seu affecto, consoladora nas horas de afflicção, parceira nas raras alegrias, conselheira fiel nas horas de desgraça, aquecendo com a sua mocidade em ílôr o lar do homem pobre, creando-lhe os filhos que elie semeasse no seu corpo fiel, educando-os para a grande obra de vida, simples, trabalhadores, honestos como o pae, para os largar um dia na terra, bons e fortes, na conquista de uma felicidade e de um lar.
Gomo a terra despresada que só dá ortigas e hervas ruins, a mulher tornava-se a fecundadora de todos os males, fructificando lagrimas, misérias e fomes, flagello que vae corrompendo a humanidade, semeando a terra de desgraças. E a naturesa vingava-se da obra de destruição e sacrilégio do homem. A cada mulher maculada, como de uma fonte contaminada, a miséria e a desgraça vertiam ; e a humanidade soffria o seu crime cora o crescer pavoroso do mal que a ameaçava.
A leva de despresadas ia salgando a terra de lagrimas, semeando a desesperação por toda a parte; e só o homem podia reparar a sua obra de corrupção elevando a mulher, respeitando a fonte viva da vida, o ventre sagrado de onde ia romper a humanidade de amanhã, o seio de onde ia verter o leite que alimentaria a geração futura. Emquanto o homem dominasse a fraqueza da mulher como uma escravidão e abusasse do seu sexo, a naturesa em revolta far-lhe-ia pagar o crime de rebellião e vandalismo, o crime gerando o crime, a destruição gerando a destruição, o rebaixamento da mãe perpetuando-se no rebaixamento do filho, a arvore corrompida dando fructos corruptos.
Inutilisar uma mulher para a grande obra da fecundação e do amor era inutilisar uma vida ; peor do que um assassinato, porque era um attentado contra a humanidade inteira. A mulher, tendo sido creada para o perpetuamento da espécie, tudo o que a attingisse e a corrompesse attingia e contaminava o futuro. Emquanto o homem não divinisasse na mulher a sagrada continuadora da vida, a obra de desgraça irse-ia espalhando como uma lepra. Fazendo-a fraca, a naturesa confiara-a á protecção do homem, que abusava da sua fraqueza. Mãe e filha do homem, ella era corrompida pelo homem; e transformada n'um vaso de luxuria essa profunda taça onde dormia a vida. Era o próprio premio de amor, que a naturesa doava ao seu esforço, que o homem manchava, diminuindo a grandesa do acto de prazer, que devia coroar a sua virilidade victoriosa, amesquinhando o acto de alegria, arrastando-o pela lama, rebaixando-o até á abominação, revertendo em sua desgraça e sua vergonha esse sagrado acto de amor de que elle nascera, esse acto de amor de que iam nascer os seus filhos. O homem amesquinhara todo o destino grandioso da mulher. Violada no seu pudor e espoliada na sua maternidade, a mulher passava a ser uma creatura inútil e imprestável. E era essa a obra dementada que elle proseguia, guerreando e escravisando a mulher como inimiga, perseguindo-a como um animal damninho, empurrando-a cada dia um pouco mais para a degradação, vingando-se n'ella, da vida cada vez mais rude e trabalhosa, da conquista cada vez mais difficil do pão, em fúria contra a sua obra perpetua de vida : o ventre incansável que vae povoando a terra, atra vez todas as angustias e todos os padecimentos humanos !
Anna não attingia a suprema rasão de desgraça que ameaçava desthronar a mulher, tolhendo, como uma inoffensiva e uma entrevada, a meio da sua carreira, a Esposa e a Mãe ; mas o seu espirito ignorante, não podendo remontar até ás fontes, perdia-se na contemplação desoladora da realidade -- todo um vento de perdição que ia derrubando mulheres umas após outras e atirando-as, depois de inutilisadas, para o monturo.
Não saberia ella occupar dignamente o seu logar de companheira n'esse lar de que uma outra a expulsara ? De que valera a esse homem manchar a sua vida com o remorso de a ter enganado e abusado da sua complacência se ao outro dia, despresando inutilmente uma vida que se lhe oíTerecera, elle tinha ido procurar n'outra mulher, com a anciã bestial de uma outra conquista, a companheira para a sua vida e a mãe para os seus filhos ? Porque a não poupara, se a encontrara tão honesta e tão limpa, tão decidida a sacrificar-lhe todo o futuro, a juntar a sorte da sua mocidade á sorte confusa e vaga da sua vida?
Não se podia conformar á ideia penosa de que essa outra mulher, de cabellos riçados, de olhos alegres como alvoradas, fosse mais do que ella digna de ser esposa e mãe, gerar e crear os seus filhos, fazer o caldo do seu homem.
Calada e taciturna, remoia ainda a aíTronta dolorosa d'esse encontro : o homem que a perdera voltando de um passeio aos arrabaldes com a mulher e os filhos, alegre e feliz, em caminho de casa, para o jantar em que fumegaria a sopa e cantariam risos de creança.
Era o grande sonho para sempre prohibido, a vida ideal que outra gosava em seu logar. Seria tão boa dona de casa, adorando o marido, trazendo sempre a casa como um brinco, cuidando muito dos filhos ! Não ; a outra não era com certeza assim como ella era, trabalhadora, muito amiga do asseio, podendo trazer para o casal o seu recurso de costureira -- para cima de dez coroas no fim do mez -- e a sua ternura de amante, muito gulosa de beijos, dominando docemente no iar, mettida com a sua vida como poucas.
Rosa apenas lhe arrancava monosyllabos, ella continuando fincada no sen silencio, remoendo a sua magoa n'uma concentração de alienada. Fora preciso levantar-se para mudar de saia, enxugar o corpo molhado, mas logo voltara a sentar-se, muda, abafando o seu padecimento.
Então Rosa, para a distrahir, emquanto a agoa para o chá fervia na chaleira, contou a grande noticia : -- o operário da companhia do gaz despedido da fabrica por causa de uma greve, a familia sem pão e com o aluguel da casa já em divida.
-- Tem por lá sido um inferno, senhora Anninhas ! O homem já bateu três vezes na mulher. Tiveram de accudir os visinhos, senão elle deixava-a como morta.
Era sempre a mesma historia iniqua -- o homem vingando-se na mulher da brutalidade ou da injustiça que o traziam acossado lá de fora, como um animal enfurecido.
Rosa continuava a contar, aninhada no chão.
-- Ninguém pode com elle; fechou-se á chave, anda lá dentro como um touro ! Não ouve?
Os passos do homem batiam pesados no sobrado, dizendo a sua cólera surda -- uma agitação de fera dentro da jaula, vindo da porta á janella e da janella á porta, sem descanço.
-- A senhora Miquelina já o mandou avisar para sahir depois de amanhã se não pagasse os dois mezes de aluguel. t'oi lá o senhor Joaquim serralheiro. A mulher pegou-se-lhe aos joelhos a chorar. Cortava a alma ! Que elles, sahindo d'aqui, para onde hão de ir n'aquella miséria? A Bezerra chegou-lhes á pedaço um caldo. Foi uma obra de caridade, coitados ! -- Está a agoa a ferver; sempre lhe vou fazer o chá.
Escurecera de todo ; já quasi se não via. Ao longe accendiam-se as primeiras luzes e a cidade era já indecisa, mergulhada na penumbra da noite que descia, gelada, cheia de estrellas.
Anna levantou-se, foi abrir a janella ; e muito tempo esteve quieta e calada, bebendo o ar frio, olhando a cidade desapparecer na escuridão.
Mas Rosa, que vinha de dentro, zangou-se, fatiando do medico, d'aquella tosse que a não largava, do perigo de se ir encostar assim á janella, ao frio, capaz de cahir de cama com uma febre.
-- Venha, senhora Anninhas. Olhe que isso faz-lhe mal. Ainda ha pouco toda molhada da chuva, a tossir tanto, e já agora á janella, a apanhar esse frio !
Ella obstinou-se, desobediente, balouçando a cabeça. Não podia respirar lá dentro, deixassem-n'a estar alli socegada.
-- Não faço falta a ninguém! -- affirmou com uma voz dura.
E tomou o chá á janella, sem arredar pé, surda a todo o conselho, usando da sua authoridade para calar a vozita implorativa de Rosa.
Não podia esquecer a outra, muito nova, muito alegre, balouçando o corpo como uma rola cheia, levando pela mão uma creança pallida. Quasi lhe tinha ódio, a essa mulher entrevista por um instante, pegada ao hombro do homem que a desgraçara ; essa mulher que occupava o seu logar, que fora a sua successora triumphante no coração d'aquelle homem, que n'outros tempos tinha tremido nos seus braços, na onda de prazer que o seu corpo lhe dava. Devia ter subido de emprego, ler uns trinta mil reis por mez, sem a blusa e as calças velhas que o envergonhavam nos outros tempos, muito arranjado agora e com os filhos n'um grande asseio. Revia o seu gesto de espanto ao dar com ella no portal, o olhar logo inquieto da mulher, a sua voz pouco segura dizendo: -- Isto passa n'um instante: é um aguaceiro. E tremia, com grandes lagrimas que lhe desciam a face, lentas, de pezar.
Fora melhor ter morrido no hospital, envenenada com os phosphoros, que padecer toda a vida, vendo os outros triumphar, vencer, n'uma grande felicidade,, emquanto ella se afundava mais na sua miséria, como n'um lodo.
Tão boa companheira que viria a ser se elle a tivesse querido ! Com que amor e gratidão envolveria de ternura toda a sua vida áspera de trabalhador! E aos domingos, quando fossem passear, traria um vestido mais bem feito do que a outra, e os camaradas haviam de voltar-se na rua para a vêr passar pelo seu braço, como um thesouro nas mãos de um pobre ...
Não a ter querido -- aquelle rude -- virgem e perfeita, quando outro depois d'elle, de uma casta mais alta, a tinha amado com tanta devoção, cobrindo de beijos o seu corpo engeitado pelo pobre !
Manoel descia novamente ao seu espirito, como um heroe de romance, elevando-a por um momento até ao paiz das lendas aonde se ama e morre e onde tudo é sonho. Talvez Manoel não hesitasse em acceital-a se não lhe tivesse vindo cahir nos braços manchada pelo outro, pelo empregado do caminho de ferro, humilde, brutal e sujo, que a violara e partira, sem um adeus e sem um escrúpulo.
Mas a aproximação dos dois homens na sua vida saltara pela primeira vez clara ao seu espirito, e teve horror e vergonha de si mesma, assim polluida por esses dois desejos, tendo alimentado duas paixões ephemeras, como uma fogueira onde se vem aquecer quem passa.
Poz-se a soffrer com uma dôr dilacerante, atirando-se ao despreso, como um suicida teimoso de morrer, que se despenha a um poço.
Levantou-se da cadeira, quiz deitar-se, chamou Rosa em grandes gritos, n'uma ruidosa dôr que desabafava em lagrimas e gestos; e quando o seu corpo emmagrecido rolou na cama, na escuridão do quarto fechado aonde ella escondia a sua vergonha, o delirio desgovernou a sua pobre cabeça atormentada.
Via os dois homens vergados sobre a sua face, sujando-a de beijos, disputando os seus abraços ; e debatia-se, n'um furor convulsivo de virgem atacada, Tinha tal revolta de pudor que os dentes batiam-lhe no escuro e um suor copioso a alagava.
Tinha febre. Levantou-se para ir beber uma tarraçada de agoa ao jarro. Mas na cama, a tosse não a deixava descançar, o peito inchado e dorido, a bocca soeria, as fontes em suor.
Não podia dormir; abafava. Procurou os phosphoros debaixo do travesseiro; accendeu a luz.
Logo as paredes sujas, empastadas de cal, surgiram da escuridão, com manchas de roupa dependurada dos cabides.
Rosa, acordada, perguntou de dentro, cheia de susto :
-- Tem alguma coisa, senhora Anninhas?
Ella disse que não, -- que dormisse; não era nada. E esteve um grande momento quieta, sentada na cama, á espera de que a pequena adormecesse, para ir abrir a janeila, deixar entrar o frio da noite.
Sabia que lhe ia fazer mal, aquelle frio, mas assim abafava, com o peito calcado pelo bafo quente do quarto, asfixiando entre as quatro paredes estreitas, a noite inteira levada em arquejos, trespassando a camisa de suor. Precisava de um pouco de ar, de muito ar, para desalterar os pulmões, dar de beber ao seu pobre peito suffocado.
Sem ruido, com uma grande cautella, desceu da cama. Mas o soalho velho rangeu e logo a voz de Rosa, attenta ao menor ruido, voltou da alcova :
-- Não abra a janella, senhora Anninhas, que lhe faz mal. Olhe o que disse o medico...
Anna ficou de pé, immovel, sem responder, esperando que Rosa adormecesse, e foi adeantando depois um lento passo, e outro e outro mais, até á janella, todo o corpo estremecendo de frio, os dentes a bater e os pulmões carcomidos pedindo ar, mais ar, muito ar.
De longe, já as suas mãos muito magras se estendiam para o fecho da janella. Quando attingiu o cravelho, ficou um instante parada, mais calma. Sentou-se então na cadeira, sorrindo, escutando a respiração da pequena, que o somno tinha vencido.
Como ia ser bom esse banho de ar que alagam todo o seu peito ! Quizera estar sempre alli, com as mãos no regaço, quieta e calada, penetrando-se de ar até ao coração, bebendo a longos haustos o vento que soprava da barra, respirando as ondas impalpáveis de fluido, aspirando o infinito, com a alegria de um caminhante que socega ao cimo de um monte, e assim para toda a vida, até á morte, alimentando-se unicamente de ar, n'uma grande intimidade com os ventos e os espaços.
Abriu largamente a janella, enlevada, suspensa, de pé em frente á noite escura onde ardia o enxame doirado das illuminações.
Só o grande tecto envidraçado da estação do Rocio continuava a resplandecer na escuridão; tinha-se apagado a cúpula do Colyseu dos Recreios ; um frio gelado percorria a noite, invadia o quarto, abraçando o corpo hirto da mulher, traspassando-lhe as carnes ; e o vento fazia balouçar as roupas na parede.
Transida, foi á busca de um chalé e de uma saia, e voltou a tremer, como uma fascinada, para a geleira da noite, encolhida na cadeira, a cabeça encostada no peitoril, as mãos prendendo o chalé, a bocca entreaberta, no grande beijo ennamorado das tysicaspara todo o sopro de ar que as afague.
Dentro, a vela derretia no castiçal, balouçava sombras no tecto e lá fora, todo o bairro, sob a treva, rumorejava como uma colmeia inquieta. Guitarras zoavam ao longe, para as bandas de Alfama. Corriam a noite estremecimentos de crimes perpetrados na quietação noturna.
As mesmas vozes arripiavam a noite com a exhalação dramática de outras misérias. A Bezerra, que adormecera na soleira da porta, cantava outra vez, apregoando ao bairro inteiro a loja de prazer, na sua tarefa pesada de escrava que se vende. Os mesmos gritos trespassavam o silencio, como partidos de uma carnificina sinistra. Em baixo, no terceiro andar, as creanças recomeçavam a chorar e os passos rijos do homem batiam o soalho, dizendo a tragedia do casal, o amanhã sem pão, sem abrigo, sem trabalho, a premed ilação talvez do crime necessário para matar a fome ás creanças famintas e calar os soluços da mulher. Um grande berro cortou três vezes a noite, extertorante, rouco, como uma rala. De uma torre, para os lados da Graça, cahiram horas, como um rebate de incêndio. E sempre, como a suppuracão do organismo impuro do bairro, que ia envenenando lentamente Lisboa, no fermento de toda a sua carne de degredo e hospital, os mesmos gritos, as mesmas vozes lamentosas invadiam a serena noite de inverno, dizendo o frio das enxergas, a penúria dos lares, a agitação dos somnos, levando até ás estreitas impassíveis o brado do roto bando de vencidos, exigindo pão, exigindo abrigo, exigindo descanço.
De um extremo a outro, a miséria empurrada para o monturo acotovela va-se, fermentava, procreava, vivia, continuando a legião da desventura humana, ameaçando o futuro com a sua fome, o seu crime, o seu rancor, o seu eterno clamor de vencida que os cèos ouvem calados.
E sempre, na sombra, de entre o bando de escravos, a obra de vida proseguia sem descanço, no impulso inicial de toda uma humanidade em marcha atravez de todas as angustias, todas as decadencias, todas as privações da terra, como uma torrente que se arroja, ameaçando o futuro, batendo já com as primeiras ondas os fundamentos do velho edifício social em derrocada. Gomo um terramoto adormecido nas entranhas da cidade, o bairro negro engrossava, espalhando raizes, viveiro de toda a abjecção, de todo o vicio, padecendo, procreando, vivendo, para que nunca a semente vermelha seccasse no coração dos opprimidos, guardando como uma brasa entre cinzas a lembrança da dôr passada para a obra pavorosa das represálias de amanhã.
Era preciso que mais e mais a humanidade soffresse para que a obra de justiça se precipitasse. Para o advento d'esse dia é que o bairro negro trabalhava, suando, gemendo, chorando, padecendo, distribuindo a sua parte de miséria aos que hão de vir, mais miseráveis, mais humildes, atè que o mais humilde e o mais miserável vingasse a casta opprimida e a libertasse.
III
Desde essa noite, Anna começou a queixar-se mais do peito. N'uma semana teve duas hemoptises : encheu quasi uma bacia de sangue. Não podia aturar uma hora na machina ; tossia muito, suava por qualquer coisa e custava-lhe a subir as escadas. Tivera de espaçar mais as visitas ao Campo Grande. Rosa chegava lá ás vezes pela manhã, vêr a creança e trazer noticias. A consciência do seu estado parecia ter abatido a antiga confiança de cura e salvação do pequenito. Agora, de todas as vezes que se arrastava penosamente até ao Campo Grande, achava-o peor, vinha-lhe a velha anciã de correr os consultórios á procura de um medico, que abalasse no seu coração alarmado a persistente certeza da sua morte. Tinha scenas de lagrimas, abraçava-se á senhora Catharina a chorar, levava-lhe presentes para que ella lhe tratasse bem o filho. Aos poucos, a sua roupa melhor passava para as gavetas da velha ; tinha-lhe comprada um par de castiçaes para o oratório e um tapete de felpo para a frente do canapé.
O dinheiro das economias, conquistado pelo esforço de Rosa, junto aos tostões, tirado ás compras, ia desapparecendo, sumido no bolso de Catharina, que se queixava, achando pequena a mezada, inventando todos os dias novas despezas -- porque gastava um rôr de dinheiro com a lavadeira; porque o medico receitara ovos quentes ; porque fora preciso comprar outro colchão para o berço.
Anna pagava tudo, não querendo que importunassem a mãe de Manoel, no receio de a ver aborrecida, desinteressada do neto. E a outra explorava-a, tinha um novo lamento a cada nova visita.
-- Isto de tomar conta de creanças, menina, só por bom coração ! Nem sei como ha gente que o tenha por modo de vida !
Ameaçava-a de lhe deixar o filho. Dizia: -- estou velha, já não posso com o peso ! Queixava-se muito do rheumatismo ; não podia metter as mãos na agoa fria : tinha de dar toda a roupa a lavar fora.
Ainda se elle fosse sãosinho! -- Fazia-lhe muito mal erguer-se de noite ; apanhara uma tosse com um resfriado ; a creança não a deixava dormir duas horas socegada ! Era um tormento!
Anna acabava sempre por deixar mais algumas coroas, pagando-lhe os incommodos, as canceiras, pedindo-lhe por favor para não desamparar a pobre da creança. Tinha um grande medo que outra lhe levasse o filho para mais longe ; que uma desconhecida o arrebatasse, deixando-o passar fome, morrer de frio.
Acontecia tanto ! Um grande medo estremecia-a ; abraçava-se então á senhora Catharina, a chorar, dizendo-lhe que só tinha confiança n'ella, que se a quizesse matar era desembaraçar-se da creança.
Andavam-lhe na imaginação historias antigas de tecedeiras de anjos -- mulheres que matavam creancinhas á fome, a quem se pagavam cinco libras, que ganhavam a vida n'aquillo ; e a Catharina era uma santa ; não encontrava outra melhor em Lisboa.
A velha continuava a dar-se ao respeito, guardando as distancias, tratando-a humilhantemente de «menina», explorando-a com uma crueldade de agiota; e a pobre mãe luctava exasperadamente, gastando as ultimas forças contra esse destino feroz que a desapossara do filho e a ameaçava ainda esmagar no aniquilamento do seu fructo.
Tão perto da morte, tão maltratada pela vida, a ideia de o deixar desprotegido do seu amor, sosinho no mundo, posto á margem da vida como um exposto, fazia-a desejar ás vezes a sua morte, para logo lhe desejar desesperadamente a salvação, no amor avaro pelo seu sangue, por aquella vida pequenina que ella fizera, de que fora a deusa creadora. Todo o seu instincto de conservação passara para elle. Perdida, ella queria-o salvo, como qualquer coisa ainda do seu corpo que ficava subsistindo na terra, que caminharia mais tarde sobre a sua cova á luz do sol. Sempre que o imaginava morto, a sua carne padecia n'uma dôr toda physica ; a ideia da morte deixava-lhe no cérebro a impressão de uma roda pesada, triturando, esborrachando um corpo ; e já de uma vez desmaiara a essa sensação de esmagamento com que a ideia da morte lhe gelava sangue, n'um pavor.
De noite sentava-se na cama a pensar. Depois da sua morte, nada impediria que Manoel tomasse conta do filho. Que culpa tinha a creança de haver nascido ? E não havia remédio, era fatal, tinha de acontecer : es.sa mesma mulher, severa e branca, vestida de veludo, iria buscar o neto, chegando a si o fructo despresado do seu sangue. Então perdoava-lhe de todo o coração, acarinhava muito a sua imagem, esquecida de todas as lagrimas e de todas as crueldades, ante essa obra piedosa de salvação em que a via já empenhada. Queria morrer muito depressa, desde que se sentia um estorvo á felicidade dos que podiam ainda ser felizes.
Não fossem inquietar a mãe de Manoel com exigências, com murmurações, desassocegando-a com lamurias, cançando a sua generosidade com insistentes pedidos de dinheiro, de roupa, de misérias ! Não a queria desagradada.
Ella alli estava para acudir a tudo, pagar restos de contas da botica, os incommodos da Catharina, os seus desejos, prompta a sacrificar até ao ultimo vintém das economias.
Gastava as ultimas forças, teimando em trabalhar, trabalhar mais, trabalhar sempre, porque a senhora Catharina precisava de um chalé novo e era preciso comprar meia peça de morim para fazer uns chambrinhos novos á creanca.
Fazia-lhe assim um enxoval, preparando-a para esse reinado de familia em que o seu filho ia viver quando ella morresse. Arrancava os entremeios e bordados á roupa branca -- já não precisava d'aquelles luxos !-- e deixava-se morrer mais depressa por causa d'elle.
A casa, um instante de pé, desgovernava ; e todo o esforço de Rosa para poupar era inútil, o dinheiro desapparecendo n'aquelle boeiro aberto no Campo Grande, onde as ferias da semana se sumiam.
Rosa via-a todos os dias amanhecer mais maçara, com o rosto mais oval, as feições mais cabidas, tossindo a toda a hora, dormindo pouco, comendo menos que uma creança, enfastiada de tudo, vivendo do ar, com as duas janellas da sala sempre abertas.
Logo adivinhara a exploração da Catharina, com esse instincto dos pobres no descobrimento das faltas, tendo ainda na memoria a outra, em Santos, que ia esvasiar as gavetas de noite, catar os trocos sobre os moveis.
Chorava pelos cantos; via aproximar-se a renovação do desastre antigo: o fim do dinheiro, o principio da fome ; e como uma casada, que sabe do homem a jogar o salário na taverna, punha-se a tremer, cheia de medo, pensando o que seria das duas, quando não houvesse um vintém para pão na casa toda.
Mesmo de uma vez, que fora saber do pequenito ao Campo Grande, como a Catharina quizesse mandar por ella uma conta da botica. Rosa recusou-se, fallando da mãe de Manoel -- que fosse lá pelo dinheiro ; que até chegava lá se ella quizesse ! E Catharina, receiando da pequena, desconfiada do seu olhar grande e quieto, onde morava a certesa do seu crime, esforçava-se por affeiçoal'a, dando-lhe biscoitos, fallando-lhe com doçura, sempre em ancias de que a pequena faliasse, fosse um dia ás Janellas Verdes contar tudo, desmascarar a maroteira.
Porque aquillo era uma mina ; comia a dois carrinhos como ella dizia, fazendo-se pagar as despezas pelas duas, explorando-as a ambas, pouco a pouco reformando a roupa velha á custa da creança, roubando ao morim, á flanella, ao leite, á pharmacia, pondo até dinheiro de parte para o Recolhimento.
Se a pequena fallasse era um perigo; ella tinha a sua reputação de mulher muito seria, muito religiosa, comendo em paz da sua pensão do Monte-Pio e a quem se podia entregar ouro em pó.
E afinal, um dia decidiu-se, correu ás Janellas Verdes com uma historia arranjada de noite : coisas que faltavam quando a pequena ia saber da creança, não a podendo deixar um instante sosinha ! De uma vez apanhara-a a roubar uns lenços de uma gaveta ; faltava-lhe um anel de ouro : não sabia que fim tinha levado uma alfineteira de plaquet. E era inevitável : Anna foi dada como cúmplice, arrastada na historia, manchada pela mesma suspeita do roubo. Catharina deixou mesmo entender que ella tinha um amante, devia morar com um homem, aquillo estando-lhe na massa do sangne : aquella espécie de gente sendo toda a mesma -- uma porcaria !
E era toda a esperança de Anna que ella desfazia, arrastando-a pela lama, desviando da sua miséria os olhos compassivos da protectora, sujando a creança na degradação da mãe.
Apanhou com a historia cinco mil reis, voltou para casa mais folgada, livre de um peso ; e a outra «havia de lh'as pagar». Era andarem agora as duas «direitinhas como fusos» ; havia de fazer «pingar os cobres todos á choramingas» !
Desde então, esvasiava-lhe mais avidamente os bolsos, tendo-a na mão com a sua phrase de effeito : -- estou velha, menina ; a senhora que arranje outra !
E Anna trabalhava para ella, pedia-lhe «por amor de Deus» que não deixasse a creanca. -- Ao menos atè eu morrer -- dizia -- voltando para ella, na face desfigurada, os olhos toldados de lagrimas.
Humilhava-se como uma serva, fallava-lhe baixo, dizia-lhe os seus receios de ver o filho entregue nas mãos de uma desavergonhada que ]h'o maltratasse.
A velha via-a chegar todos os dias mais pallida, mais acabada, enchendo-lhe a casa de tosse, trazendo debaixo do chalé o presentezinho ; e logo desde a porta fustigava-a com a ameaça de deixar o pequeno, ir ás Janellas Verdes dizer para tratarem de arranjar outra.
-- Ainda se elle fosse sãosinho ! -- Já não tenho saúde para estas coisas, menina ! Creancas custam muito a aturar. Só eu sei a canceira que é ! Consumição tamanha! E quer que lhe diga? Não pagam a despeza quanto mais o incommodo que uma pessoa tem! Ha-de ter paciência, menina. Estou velha; já não aturo ...
E como Anna chorasse mais, voltando com a sua supplica, fazendo o inventario dos seus terrores, ella balouçava a cabeça, fingindo commover-se, concordando :
-- Ai ! como eu, não é para me gabar, mas não arranja outra ! Só tratam de encher a barriga á custa das pobres creancas. Não ha dinheiro que lhes chegue. E então os máos tratos ? Yenha-m'o contar ! Sei mais d'isso que ninguém. Aqui adeante morou uma que deu cabo de dois gémeos em quinze dias !
Coutava casos lidos no Século : uma esfregadeira que deixava a creanca fechada em casa, com um lenço amarrado na bocca, para não gritar ; outra, para a banda de Azurara, a quem os porcos comeram o pequenito; e deante das supplicas de Anua, apavorada, no terror de toda essa maternidade varrida implacavelmente para a cova, Catharina fingia ceder aos poucos, «com pena do anjinho» «por lhe ter amisade».
-- Que felizmente não preciso. O meu santo homem deixou-me o Monte-Pio : para ir vivendo ainda me chega ...
Todas as vezes, agora, a mesma scena renovavase, alimentando um alarme constante no coração da mãe, cujas mãos andavam já habituadas á supplica. A outra punha um prazer cruel em tortural-a, em abusar dos seus olhos simples que o filho cegava, contente quando a via arrastar-se, supplicante, de mãos erguidas, chamaFa santa, beijar-lhe os dedos.
A creança andava finalmente com a dentição; e foi uma nova mina para ella, especulando com os remédios, com as visitas do medico, com o seu medo de que a creança lhe morresse em casa com um ataque.
Da primeira vez que Catharina fallou na morte Anna desmaiou ; foi preciso chegar á botica, chamar gente. Rosa viu-a entrar n'esse dia em casa mais branca que um lençol, accender duas velas a Nossa Senhora, ficar três horas a resar, ajoelhada no chão, de mãos postas, tremendo e chorando.
Já não aviava as encommendas do armazém, faltando no fim da semana com o trabalho, tolerada ainda por compaixão, reprehendida por faltas successivas. Tinham-lhe mesmo devolvido uma obra mal acabada, ameaçando-a de não lhe entregarem mais trabalho se não fosse mais pontual e cuidadosa para o futuro.
Ia resvalando no mesmo desprendimento em que cahira quando fora da doença do filho, desinteressada de tudo, taciturna e calada, extinguindo-se devagar como uma luz.
O seu olhar desilludido endurecia ; tinha rompantes de ira, crises nervosas de choro á minima contrariedade, recusando a comida, desviada do trabalho, desde pela manhã á espreita do tempo, indo agora todos os dias ao Campo Grande vêr o filho.
Rosa ficava sosinha horas inteiras. A senhora Miquelina viera duas vezes para receber o aluguel; de ambas as vezes despedida sem o dinheiro, descendo as escadas a rosnar, já desconfiada, cheirando a miséria á porta.
Rosa tinha-lhe medo.
Desde que o empregado do gaz a atirara peias escadas, gritando que matava «aquella bruxa» se lhe apparecia outra vez deante da vista, a velha vingava-se da affronta nos mais humildes ; puzera na rua o serralheiro com a mulher paralytica, levada n'uma maca para as Irmãs dos Pobres, o homem tendo ido mendigar a esmola rejeitada, convertido pela fome; um triumpho de que o hospício se orgulhava como de um milagre.
A Bezerra mettera-se na historia do operário, apiedada desde que fora chegar o caldo á mulher e aos filhos ; fizera uma subscripção, interessara toda a rua na sua obra de caridade; e o aluguel pagou-se, o operário continuava no terceiro andar, á espera de trabalho para abalar.
A vida das duas, lá em cima, no quarto andar, continuava sombria, n'um isolamento de esquecidas, n'essa espectativa muda de terror em que cahem as folhagens antes das tempestades.
Uma semana passou ainda, de tristeza e de trabalho. Anna, com um esforço desesperado, aviara toda a obra, costurando até tarde, pela noite dentro ; e no sabbado, quando Rosa foi receber a feria, trouxe quatro mil reis. Com duas semanas como essa podiam reconquistar o desafogo, pagar o aluguel e a conta da tenda; e poupando ás despezas, voltar aos tempos antigos de previdência e de regra. Mas no domingo, quanda Anna se vestia para sahir, um accesso de tosse abriu-lhe o peito e Rosa mal teve tempo de lhe chegar a bacia : uma golphada de sangue avermelhou o soalho, e da bocca sanguinolenta, como de uma ferida aberta, durante quasi meia hora o sangue verteu aos arrancos, sem paragem.
Foi logo para a cama com muita febre. Todo o dia delirou, chamando 'pela Catharina, fallando em Manoel, na Maria da Graça, pondo as mãos em attitude de supplica ou embalando nos braços uma visão do filho.
Á tardinha, o medico do posto, que Rosa mandara chamar pelo pae, disse que não havia nada a fazer -- que «não durava mais de um mez.»
Rosa passou toda a noite em claro, vigiando o somno sobresaltado da doente, tentando apasigual-a.
Anna teimava em chamar pela Catharina, remoendo phrases incoherentes onde o nome do filho vinha sempre. Era ainda a mãe que soffria dentro do seu corpo dolorido, a mãe desapossada do fructo, atirada ao monturo como um dejecto. Trouxessem-lhe o filho : todas as fibras da saa carne gritavam por elle; elle tendo ficado em cada átomo da sua matéria, pela dor sagrada que estremecera até o mais profundo do seu corpo, para o dar á luz. E n'essa dôr exasperada que a estremecia ia o protesto clamoroso da natureza contra a obra feroz de expoliação e deshumanidade : o sangueda mãe gemendo lamentosamente pelo sangue do filho, a morta querendo vêr a vida no seu fructo. Trouxessem-lhe o filho : ella sentia ainda nos flancos o vasio que elle deixara...
E para a socegar, foi preciso que Rosa corresse logo pela manhã ao Campo Grande, pedir que lhe levassem a creança.
Catharina ficou attonita, sem esperar «aquillo» para tão cedo, pensando que a « choramingas » tinha ainda mezes de vida, ella poderia ainda acabar de guarnecer o vestuário, renovar a roupa branca, tirar-lhe dinheiro para uma alcatifa vermelha, de listras, que vira no Grandella e custava oito tostões. Ha muito tempo que era aquelle o seu sonho: alcatifar o quarto de cama, poder andar de manhã com os pès descalços pelo tapete.
-- Então d'esta vae? -- perguntou, arreliada. Rosa affirmou que não « botava o mez fora » ; o medico nem tinha receitado; dissera só que lhe fizessem as vontades, que a não affligissem.
E Catharina acabou de resolver-se, curiosa de vêr a casa, se a «choramingas» sempre morava com algum homem, na vaga esperança de um lucro ainda possível, cheirando de longe uma deixa. Tirou da gaveta o mantelete, poz o chapêo, apressada pela impaciência de Rosa, que tinha vestido a creança.
Foi preciso correr para aproveitar o americano que passava; e depois de instalada no banco da frente, ainda oíTegante da corrida, Catharina quiz logo saber se Anna tinha para a doença: quanto ganhava na costura ; a quanto regulavam as ferias. Pelos seus cálculos Anna devia ter dinheiro de parte, tendo «comido á grande» o Manoelsinho; e as prendas sabiam d'esse pequeno thesouro amontoado com o officio de amante, posto de lado para o que desse e viesse, n^uma previdente cautella do futuro.
Quando Rosa contou a miséria da casa, as noites de trabalho, a canceira com que se alcançava o pão de cada dia, Catharina ficou abalada, n'um desapontamento azedo; e como a creança chorasse, emmudeceu-a com um schiu ! rancoroso, saccudindo-a no colo.
-- Então, nem cheta ?
Ficou calada, espanando os dentes velhos com a lingua.
O americano passava o Arco do Cego, entrava no Bairro Estephania, muito varrido de ar, com renques de arvores onde desabrochavam as folhas ao primeiro calor de Maio. Mesmo algumas accacias estavam já todas verdes na copa, desenhando no ar azul uma renda fma.
A pequena, com certeza, enganava-a, ia pensando. Para cima de vinte mil reis tinha-lhe ella levado em presentes : não era despeza com que pudesse uma pobre. Aqui anda coisa -- disse comsigo. A pequena queria para ahi « lamber-se com a massa». Era preciso que fosse tola para não perceber logo «a marosca».
Fez ainda umas perguntas: se a mobilia prestava; se eram muitas escadas ; se não havia gente ordinária na rua. Tinha muito medo de fadistas ; ouvira fallar na viella do Gapellão; quiz saber se passavam perto d'aquelle «esterco». Logo aos Anjos deitara a creança no colo de Rosa : pesava muito, já não era para as suas forças! E na rua Nova da Palma, em frente ao theatro, apearam-se as duas á espera do elevador da Graça.
Uma varina, que atravancava o passeio com uma cesta de fructa, pôz um olhar compadecido na creança. Durante quasi um quarto de hora, a cada nova mulher que passava, Catharina remexia-se, fula, deante dos seus olhares de magoa, os restos de phrases que lhe chegavam : « está aqui está no caixão » ; « pobre anjinho» ; «tem mesmo cara de doente » ...
-- Parece que nunca viram! -- dizia; e perguntou duas vezes a um revisor se o elevador demorava muito. -- Cá não me pilham mais -- rosnou furiosa, compondo com um gesto forte o mantelete.
E ainda no elevador, uma senhora quiz saber de que soffria a creança, tendo tido também um filho morto aos dez mezes com uma meningite. Por todo o caminho o pequenito berrou com fome. Catharina esquecera-se de trazer a mamadeira, com a pressa. Rosa teve ainda de ir comprar um vintém de leite para lhe dar ás colheres, em casa.
Depois, ao entrar na viella, a Catharina escandalisou-se, esteve a voltar para traz, dizendo que nunca na sua vida tinha sujado os sapatos em logares d'aquelles.
-- Semelhante ideia de vir morar para estes sítios ! Isto deve ser o tal Capellão, hein, menina ? Pois olhe que se não è, parece.
E logo ao primeiro lance de escadas, tapando o nariz com o lenço :
-- Arre ! que cheiro ! Nem na cadeia ! Não é p'r'admirar que se adoeça n'este lixo !
Em cima, ao entrar na sala, onde só a machina e a commoda enchiam os vãos das janellas, Catharina calou de espanto, lembrada do seu conforto, da sua casa muito lavada, do canapé de mogno da saleta, das^ suas cortinas de cretone com ramagens. Mal a porta rodou, a voz de Anua rompera do quarto, pedindo a creança.
Tinha-se sentado na cama: estendia as mãos magras para o filho; e quando Rosa lh'o pousou contra o peito, as mãos ávidas cingiram-n'o ; ficou a chorar descoberta, com os cabellos desfeitos. Catharina teve tempo de olhar socegadamente em volta, vasculhar os cantos, fazendo o inventario dos haveres.
-- Não tem nada que preste -- murmurou; e foi espreitar ao quarto, vêr a «choramingas».
Anna levantou então a cabeça, poz-se a fitar o filho com um olhar parado de terror.
-- Elle está tão magrinho, senhora Catharina!
-- Abateu agora um poucochinho com os dentes. Mas era quasi um cadáver que lhe traziam do Campo Grande e Anna desatou a soluçar, correndo o corpo entesado com as mãos sôfregas. -- Está cheio de fome, o meu rico filho !
-- Ai, mamou bem antes de sahir! -- disse Catharina, com mãos modos. Queixou-se logo: -- É para o que serve uma pessoa passar trabalhos ! Recebe sempre máos pagos. Se não lhe sirvo arranje outra. Morta por me livrar do peso estou eu !
Mas Anna não a ouvia, toda na sua dôr, agora ferida pela certeza de que também elle ia morrer. Passava-lhe as mãos pelos cabellos, beijava-o, chamando-lhe nomes ternos ; e ella mesma lhe quiz dar o leite, mais satisfeita desde que o via avançar os beicitos para a colher, de repente calado.
Rosa estendera uma toalha sobre a colcha, sustinha a chicara de leite, de onde Anna tirava ás colheres, faltando docemente ao filho.
-- Vá, meu anjinho, toma... Tens muita fome, tens? Abre o teu biquinho; toma... Assim, assim, meu amor, para fazer a vontade a tua mãe.
Cahiam-lhe as lagrimas; a sua mão fraca tremia muito.
Na manga da camisa tinha ainda duas pintas de sangue da hemoptise.
De noite, no seu delírio, creara-se illusões que cahiam como flores esfolliadas ao vento. Agora sim: os seus olhos attonitos viam toda a devastação da carita magra, a fealdade estrabica do olhar, o espasmo hysterico da bocca ; e a inutilidade de todo o esforço em salvar o filho batia-lhe em voz alta o cérebro como um martello. Compadecia-a muito a fome com que elle avançava o beicito para a colher e a ideia de que elle tinha fome fazia-a chorar mais.
Depois, como um accesso de tosse a estremecesse toda, Rosa teve que amparar a creança, acabar de lhe dar o leite, Anna desistindo de continuar, tossindo sempre.
Catharina, esquecida ao seu canto, soprava de despeito e de cólera. A indifferença de Anna irritava-a, sentindo-se menos respeitada desde que tinha vindo, como uma creada, abandonando imprudentemente o seu grande ar de soberania. Julgou conveniente dizer-lhe «duas coisas duras», d'alto: e a sua voz secca, onde quiz acordar a auctoridade antiga, cortou o silencio, como um brusco raspar de unha pela cal de uma parede.
-- É acabar com isso que não me posso demorar. Se a creança tem fome não è por falta de leite, que bebe mais de um litro todos os dias. Para lhe darem de comer não era preciso ella cá vir...
Anna saccudiu-se entre os lençoes, voltou a cabeça onde fulguravam os olhos.
Agora comprehendia tudo, largava mãos de todo o grande sonho, já se não illudia, sabendo bem que tudo ia acabar, que ambos iam morrer. Todos a exploravam, a roubavam, a trahiam. Tinham-lhe arrancado tudo, desde a virgindade ao filho; tinham abusado sempre d'ella, na sua virtude e no seu amor. Virgem, amante e mãe, fora sempre uma calcada, uma enganada, uma explorada.
E o seu olhar turvo de cólera gritava essa injustiça que a revoltava.
-- Pois vá-se embora, mulher; vá-se da minha vista ! Deixe-me o filho, que è meu, só meu, muito meu!
Batia com a mão fechada no peito, gritando os seus direitos de mãe.
-- É muito meu ! Se elle tem de morrer que morra commigo !
Catharina levantou-se, teve uma gargalhadasinha secca.
-- Isso era bom que eu deixasse ! A creança só a entrego ao senhor Manoel. Sou responsável por ella, que me está entregue ! ... Não a tivera vocemecê abandonado ! É preciso que esteja maluca de todo para pensar que eu ia deixar-lhe mesmo a creança ! Ora não querias !
Mas Anna, então, ergueu-se na cama, puxou o filho contra o peito, desafiando-a.
-- Deixe-se de asneiras ; trate de si que já não faz pouco. Emquanto teve saúde, os outros que lhe aturassem o trambolho. Agora que já não pôde fazer a vida : dê-m'o para cá ! Pois não deste ! Venha o pequeno, que me quero ir embora.
E como Anna permanecesse muda, abraçando o filho que chorava, Calharina perdeu a paciência, fallou mais alto, imperiosa.
-- Acabe com a toleima; tenho o almoço em casa a estragar-se! Cega seja eu se cá voltar! Serviu-me de lição ! Vá, vá, menina. Desembarace.
-- É meu -- gaguejou Anna, baixo, cingindo mais o filho, recuando para a parede.
-- Não o deitasse fora ! -- disse a Gatharina, avançando.
Botou a mão larga, de dedos grossos, aos pulsos magros da mãe ; despegou-lhe a creança do peito, puxou-a a si violentamente, como um fardo.
-- Schiu! Pouca musica -- gritou.
Apanhou a touca, cabida em cima da cama, endireitou o chapéo velho, de palha, com pennas rapadas ; e abrindo a porta da sala com o pé, voltando-se :
-- Escusam de tornar a minha casa, que a porta não a abro, suas bêbedas !
Anna, de olhos no filho, teve ainda um ultimo gesto, avançando com as mãos implorantes, e recahiu na cama, a gemer.
Os passos de Catharina bateram pelas escadas. Até ao ultimo andar ouviu-se ainda o choro da creança.
Durante mais de uma hora Anna gemeu, escondida na roupa, aninhada contra a parede, sem uma palavra. Rosa foi dentro passar uma roupa a ferro. Vinha a todo o instante ao quarto vèr a doente, inquieta com a sua mudez obstinada de vencida.
O espectáculo d'essa mãe implorando o seu filho, sem direitos sobre o seu fructo, deixava-a perturbada, despertando ao fundo da sua carne um instincto de defesa, por essa carga de desgraça que era o seu sexo -- o destino negro da mulher, sacrificada á lucta exasperante da vida, condemnada a todas as affrontas, a todas as injustiças, a todas as expoliações ; e sobre que recahiam todos os ultrajes, todos os furores, todas as cóleras.
Mais uma vez foi espiar a doente, sem conseguir arrancal'a da sua modorra e fazer calar o eterno gemido que ella exhalava como um animal ferido.
A esse tempo, a senhora Miquelina empurrava a porta; entrou devagar, pisando com cautella, e esperou, sem pressa, que Rosa acabasse de compor a roupa á enferma.
Chamou-a depois com um gesto secco de mão.
Não se atrevera a sentar-se, guardando a sua dignidade de credora, não se permittindo as liberdades dos outros tempos, quando Anna era a «pérola», «o modelo», pagando o aluguel no fim dos mezes. Mesmo agora fallava mal d'ella, desde que lhe devia, como os outros.
Andava com pouca sorte: já três inquihnos tinham sabido n'aquelle mez sem pagar; e metade da casa estava vazia, como se terminasse a fortuna do pardieiro, antigamente transbordante como uma cadeia, com famílias empilhadas a cada canto. A sua authoridade de mordoma parecia ter sido attingida de morte desde que o fogueiro da Companhia do Gaz a desfeitiara. Mesmo pela Paschoa, quando tivera uma constipação e recolhera dois dias á cíima, os inquilinos do primeiro andar tinham-se ido embora, com dois mezes em divida, levando os trastes. E desde que o máo exemplo estava dado, as suas cóleras, as suas ameaças de penhora e de policia eram inúteis. Atiravam-lhe com as portas na cara, voltavam-lhe costas, respondiam-lhe desabridamente, perdido o prestigio de cão de guarda que d'antes dobrava deante d'ella toda a população da espelunca n'um respeito medroso. Só faltava que a costureira também lhe não pagasse! Que contas havia de dar do mez ao senhorio? E o receio de que elle a escorraçasse, seccava-lhe mais o coração e toldava de bilis o seu olhar redondo de pássaro:
-- Como vae a patroa ? -- perguntou com voz secca, amparada á humbreira da porta.
Rosa olhou-a cheia de susto, intimidada pelo seu gesto duro de impaciência.
-- Não vae bem, não... A senhora bem sabe...
-- Sei? O que eu sei é que não vejo dinheiro ha mais de mez e meio -- sibilou -- entrando desembaraçada para a sala. -- Lá para a botica e para os caldos, pelo que vejo não falta. Isto aqui não é hospital í Quem quer casa paga-a. É dizer á patroa que d'aqui não saio sem o dinheiro. Ou o dinheiro ou rua !
A sua voz rispida ganhava um tom de ameaça e repetiu mais forte, estendendo a mão velha e secca :
-- Ou o dinheiro ou rua !
A pequena recuava deante d'ella, com olhos esgaseados de medo.
-- Pelas almas, senhora Miquelina !
-- Ai ! tenho mais que fazer... É a ladainha do costume. Já cá tardavam as almas ! -- E sentando-se pesadamente n'uma cadeira : -- D'aqui não arredo pé. É dizer á patroa que estou aqui. Que se mexa com os cobres ...
Deu um puxão ao chalé de malha, muito velho.
-- De graça só na cadeia. Se está doente que vá para S. José, que tem cama limpa ... E logo n'este andar, tão cobiçado ! Vá uma pessoa fiar-se ... Ande, menina, ande... Diga-lhe isto. D'aqui não arredo pé.
-- Deixe-a ao menos dormir um bocadinho -- pediu Rosa, encolhida de medo. -- Ainda hoje não descançou uma migalha... Tenha pena, senhora MiqueHna, que o dinheiro não o perde.
-- Cantigas, menina, cantigas... Quem paga o que deve enriquece. Diga-lhe isto. Dorme depois mais descançada.
Na cabecita de Rosa passou o projecto vago de sahir para arranjar o dinheiro. Iria, se fosse preciso, até á casa do senhor Manoel. Não podiam ficar as duas n'aquella miséria. E soluçava, pensando nos outros tempos, quando Anna era muito alegre, muito linda, muito feliz e o senhor Manoel lhe trazia ramos de cravos.
Mas a voz de Anna veio de dentro, fraca, chamando.
-- Rosa! -- A cama rangeu e a voz de novo: -- Quem está ahi?
E antes que Rosa fallasse, a velha ergueu-se da cadeira, molhando os beiços com a lingua, concertando o chalé ao pescoço.
-- Sou eu, menina. Eu chego lá. -- Entrou no quarto, poz um olhar de avaliação nos trastes, a fronte vincada, teimosa. -- Com licença...
Anna voltou a cabeça, teve um manso gesto de afflicção ao ruido dominador dos passos no soalho, que faziam tremer as vidraças.
A senhora Miquelina arredou a vista da face soffredora, onde apenas os olhos de Anna restavam, queimando um resto de luz ao fundo das orbitas muito cavadas. O seu queixo de voluntariosa era agora um queixosito de rabeca; a bocca destingira: tinha beiços brancos, gengivas brancas ; e toda a face parecia pisada de uma queda, com placas escuras manchando a sua pallidez de meia morta.
-- Disseram-me que estava melhorsinha ...
Ella teve uma oscillação lenta de cabeça e a senhora Miquelina continuou, depois de um pigarro :
-- Fui-me chegando até cá para o que sabe... Estamos no dia quinze ; tenho que dar as contas... Com doenças, ás vezes, esquece... A menina foi sempre tão certinha ! Mas agora não posso esperar mais. Sempre já passaram quinze dias...
E descançou, a vèr o effeito.
Mas Anna parecia não comprehender, muito fraca, de olhos cerrados, incapaz de um esforço.
A senhora Miquelina, então, fez-se branca. Também aquella fazia ouvidos moucos; ninguém já a respeitava ! Bem podia o senhorio arranjar outra para ter mão na casa, se quizesse receber os alugueis! Um arranque de ira poz-lbe uma tremura nas mãos ossudas, enormes, e o seu olho de mocho arregalou, com o rebordo das pálpebras sanguíneo.
-- E é apresentar o dinheiro. D'aqui não saio sem receber. Quem lhe dá para os remédios que dê também para o aluguel... Primeiro está a casa.
Rosa tinha ficado á porta como uma cadelita de guarda, assustada.
A velha deu por ella, desandou a fallar de rijo, saccudindo a cabeça onde os postiços abanavam.
-- Vá, o dinheiro ... Aonde está o dinheiro, pequena? -- Bateu com o pé, excitada. -- Ninguém brinque commigo ! Vae aqui tudo razo. Quero para aqui o dinheiro. Desaforo ! Yá uma pessoa fiar-se nas apparencias !
Anna abriu os olhos, rolou ainda a cabeça no travesseiro sobre o cabello desfeito; e ficou a tremer, encolhida, com uma das mãos cabida da cama a balouçar.
Miquelina agarrou então essa mão emmagrecida que já pendia para a terra, pôz-se a abanar o corpo da doente, com fúria.
-- Eu é que tenho de responder; dê-me o dinheiro... Não me faça perder a cabeça ! Ponha para aqui o dinheiro. Querem a minha desgraça, estes diabos ! Sabem que eu sou a responsável ... ! -- e dava abanões ao braço inerme estremecendo no colchão o pobre corpo da doente.
Mas Anna, a um saccão mais forte gritou, magoada, e Rosa atirou-se para o corredor, aos berros, pondo em levante a casa. A sua vozita esganiçada descia a todos os andares, chamando gente, levando o seu terror de creança até á rua.
-- Chama, raio, chama !
Desembaraçou-se do chalé de malha, deitou um joelho á cama, agachou-se sobre a enferma, que estacava n'ella uns olhos de aterrada, prendeu-a pelos hombros com as mãos, no mesmo gesto com que a outra lhe tinha arrancado o filho.
-- Dá-me o dinheiro, menina ! -- Curvou-se toda n'um desespero. -- Dá-me o dinheiro, filha !
Via-se escorraçada, despedida de mordoma, abandonando a realeza do pardieiro, tendo de ir outra vez aturar patroas, servir os quintos andares da Baixa, ser creada. E de raiva, saltavam-lhe lagrimas dos olhos, na sua impotência deante d'aquella doente que não pagava, que não comprehendia.
Já passos subiam as escadas. Anna, encolhida, teve um fraco gesto para o travesseiro.
-- Debaixo do travesseiro?
N'um instante a cabeça de Anna rolou, levantada pelas mãos ávidas que procuravam, apalpando o lençol.
-- Vejo, vejo ... Cá está ... Foi melhor assim pela brandura ...
Arrepanhou as duas notas, botou-lhe um olhar soffrego ; mas logo Anna tremeu ao seu gesto furioso de enganada.
Atirou com os dez tostões á cama, bateu o tacão.
-- Ou tudo ou p'r'á rua ! Não recebo dinheiro por conta. Pode vir quem quizer. Podem gritar. Não me mettem medo. Yae tudo para a rua se me faltam ao respeito !
O grande corpo da Bezerra appareceu então á porta. Rosa atraz, chorava muito.
A velha deitou os olhos accesos á mulher, arrancou do chalé a mão secca.
-- Que vem você aqui fazer ? Já lhe disse que não a quero da porta da rua p'ra dentro. O seu logar é ua viella !
A Bezerra ficou calada, olhando a doente ; o seu grande corpo de giganta calcou de manso o soalho ; a bocca larga moveu-se, mostrou uns dentes de loba, agudos e brancos.
-- Vocemecê bem o sabe : emquanto lá tiver em baixo os pequenos; não me tira de cá vir, nem com a policia !
Tinha vindo chegar a tijella de caldo aos filhos do fogueiro quando a vozita de Rosa, rouca de pavor, a trouxe a cima.
Deu mais dois passos, balouçando o corpo ; e á vista de Anna os seus olhos fulvos de ruminante humedeceram-se
-- Coitadinha !
Não se aproximava da cama, com uma timidez de creança, no medo de sujar a doente com o hálito.
-- Até á peccado mortificara, coitadinha ! Sempre ha corações por este mundo como pedras ! -- e pondo os olhos na Miquelina -- Vocemecê vem cá por amor do aluguel?
Miquelina endireitou-se. Um rolo de cabello postiço desenrolava-se na sua nuca pellada, quasi calva.
-- Já se vê ... É mez e meio e eu tenho que dar contas -- rosnou.
-- Desça commigo, mulher, que o dinheiro não o perde. Pago-lh'o eu.
Limpou duas lagrimas á mão grossa, balouçou ainda a cabeça : -- Coitadinha ! -- e sahiu, pisando dô vagar, enchendo de sombra o soalho.
IV
Pela manhã, quando Rosa abriu as portadas das janellas, deu com um dia de chuva, escuro e triste. Uma bruma espessa embrulhava a cidade e as vidraças escorriam, dando passagem a uma claridade de crepúsculo.
Foi logo á alcova, ter com a doente.
-- Bom dia, senhora Anninhas. Está mais alliviada?
Anna entreabriu os olhos, pousou a vista no quarto onde entrava o grande frémito branco da madrugada; e ficou muda, indifferente, de pálpebras descidas.
Rosa apagou a lamparina de azeite, suspirou alto, voltou para perto da cama em bicos de pés.
Apesar da chuva, um grande calor pesava no quarto estreito, fechado-- o pesado ar dos quartos de doente, pela manhã. Ouvia-se em cima, no telhado, rumorejarem agoas de chuva no escoadouro.
Passara a noite muito afflicta, com os pés sempre frios, a testa abrazada, com muita sede. Cinco vezes Rosa se tinha erguido de noite para lhe chegar o copo de agoa chalada, que amornava em cima da lamparina.
E agora, encontrava-a mais succumbida, sem movimento, encolhida contra a parede, teimosamente calada, não querendo morrer sem vèr o filho, esperando todos os dias que lh'o trouxessem. Desde que a Miquelina viera exigir o aluguel, tinha peorado muito, permanecendo horas inteiras sem dizer palavra, ruminando coisas, acordando apenas para pedir agoa ou tomar o leite.
Nunca fallara da Bezerra ; mas de noite, quando o canto da mulher rompia mais alto e penetrava no quarto, estremecia, abria os olhos, ficava longamente á escuta.
Tinha mandado vender a commoda e empenhar a machina de costura -- finalmente paga,- havia dois mezes. Rosa fora levar o dinheiro á Bezerra e agradecer. Encontrara-a juntando uma trouxa de roupa: ia para o hospital. Mas voltara logo na outra semana ; mandava todos os dias saber da doente; -- coitadinha! tão nova e tão bem comportada ! ...
O fogueiro arranjara emprego nas obras do porto e mudara para o becco dos Ferreiros, levando a mulher e os filhos. No terceiro andar morava agora um casal com uma creança de trez mezes. O homem era torneiro e todo o dia o torno zoava sob o soalho, ruidosamente. Eram ambos -- marido e mulher -- muito amigos.
E com o zunir do torno só a creança grasinava, acordando em Anna o continuo pensamento do filho.
-- Lá está o torno a zoar-- disse Rosa. -- Muito trabalha o coitado do homem!
E debruçando-se sobre a doente, compondo-lhe o cabello :
-- Quer tomar o leite, senhora Anninhas? -- Ainda não? Então mais d'aqui a um pedacinho... Que precisa: não pôde estar assim tantas horas sem tomar nada!
Foi dentro á cosinha para accender o lume, com passinhos apressados, silenciosos, e veio varrer a sala, limpar o chão do quarto com uma rodilha molhada, para não levantar o pó.
Emmagrecera muito, agarrada a Anna, sem a desamparar, vivendo com qualquer coisa, sem um murmúrio. E era tudo o que restava alli do passado : aquella gratidão de cão fiel, essa grande dedicação n'ess6 corpo pequenino de mulher por fazer, onde o instincto de escrava humilde, passiva e boa, se antecipara á puberdade, chamando-a já á grande obra carinhosa da mulher, destinada a ser na terra a consoladora e a obreira da vida.
Desde que o medico tinha dado Anna por perdida, julgando escusados os remédios. Rosa redobrava de cuidados, passando noites em claro, na fé, sempre tão forte nas creanças, de que a ia salvar.
Mas todos os dias, quando abria a janella, enconti*ava a doente mais succumbida, teimosa em morrer, como uma condemnada sem esperança, que nenhuma anciã de vida já estremece.
E Rosa contininva a vigiar a doença, a derrotal'a, inventando todos os dias ura novo cuidado, vivendo ao redor da cama da doente, no hálito de febre da thysica, abrindo-lhe janellas de noite, dando-lhe a beber o sereno ar vivificante das alturas, redobrando de auctoridade deante da sua fraqueza e do seu desanimo, forçando-a a tomar os alimentos. Mesmo de uma vez, por um meio dia de sol, conseguira arrancara da modorra da cama, sentara por umas horas na cadeira de verga, entretida a olhar a cidade ruidosa em labuta, com fumos de fabricas desenvolvendo-se no azul.
Era o mal que Anna pensava muito, tinha horas de um silencio tenaz em que se lhe vincava toda a testa e de que sahia mais prostrada, mais abatida, com olheiras mais profundas. E Rosa então chorava, desanimada de a salvar, magoada pelo seu silencio, pela ingratidão com que a doente pagava os seus esforços, deante do seu olhar duro e immovel, inimigo, onde subia o rancor que perturbava a sua alma. Não queria viver, diziam-n'o os seus olhos obstinados, respondendo desilludidos a essa mulher de amanhã, que persistia em salvara, em trazera de novo para a vida.
Ah ! ella já não tinha as suas esperanças de moca, cujo sangue ascende arrebatadamente para o amor; cujo corpo, creado para a obra eterna de vida, a festeja a cada palpitação como uma gloria. Não ; ella já não tinha illusões nem esperaoças. Nenhum estremecimento agitava o seu corpo deante da ideia da morte. O seu coração já não podia aspirar ao amor ; os seus flancos já não podiam aspirar á maternidade. Que lhe importava morrer, agora que a sua esperança morrera, que tudo desabara? se toda ella se desprendia da vida como um braço de hera separado do tronco, que pouco a pouco se vae despegando da mural lia até tombar no clião ? Não ; ella não queria viver, agora que uma clarividência se fizera no seu espirito ; agora que a saccudiam horrores exasperados por essa vida de injustiças e pesos ; agora que a via como uma armadilha monstruosa, onde tinham ficado presas, como pennas de um pássaro que se debate no visco, todas as suas aspirações de virtude. E como o pássaro desplumado que se arrasta, olhando o espaço para onde não pode fugir, procurando uma roda de carro ou uma bátega de chuva para morrer, ella também, de noite, ás occultas, atirava com as roupas, descobria o corpo ao frio, apressando a morte, chamando-a, teimando em morrer, na vergonha de viver aquella vida de miséria, na humilhação que lhe valia cada hora mais de padecimento, soffrendo as fomes de Rosa, o esquecimento de Manoel, a separação odiosa do filho, o favor á Bezerra, a divida á Miquelina.
Todo o dia, as canções do torneiro e a grasinagem da creança a atiravam em desespero para a saudade do tempo em que podia fazer pular no colo o seu pequenito, dormir com elle ao lado, alegre ao acordar pela noite alta com as suas rabugens, sentindo o seu corpinho palpitar na concha do seu seio ou a sua boquita ávida sorver-lhe o leite dos peitos.
Que alegrias estridulas tivera tantas vezes, ao vel'o sorrir ou tecer com as pernitas nuas, entre o calor tépido dos lençóes; d'essas alegrias das mães, que lhes estremecem os corpos u'um prazer quasi triumphal de vaidade creadora e as escravisam aos filhos como a deuses !
E nos somnos inquietos que a prostravam, visões de felicidades perdidas desciam sempre, a revolver a ferida dolorosa da sua maternidade ainda em carne viva. Dentro da sua agonia de thysica morava a sua atormentada agonia de mãe, e a todo o momento, dores fulgurantes a trespassavam, quando a sua alma transida visionava o seu filho, que mãos estranhas, áquella hora, maltratavam talvez. Revivia todos Os instantes de maternidade, desde o primeiro estremecimento que saccudira as sua entranhas, havia quasi anno e meio, quando sentira pela primeira vez deslocar-se dentro da sua carne a vida pequenina em que o seu sangue andava trabalhando. Chorara então de alegria! E depois, todos os sonhos de ventura e de esperança com que fora acompanhando o desenvolver mysterioso do filho, que ia alargando e desformando o seu corpo, vivendo com ella, na intimidade das suas entranhas, só d"elia, então ; tão d'ella, que mais ninguém fora ella o adivinhava e sentia !
Agora, todos os dias o esperava, escutando no silencio da noite os primeiros rumores da madrugada, o primeiro soar de passos na calçada, espiando a descida lenta da manhã, contando as horas, sempre na esperança de que o ia, emtim, tornar a vèr ; e a cada avisinhar de noite o mesmo desengano cruel a esmagava, fazendo-a suspirar pela morte toda a noite, expondo ao frio o corpo em febre, oíferecendo-se á morte, para de madrugada voltar a ter esperança e de novo se apegar furiosamente á viáa. Durante o dia, qualquer passo nas escadas a abalava, cada ranger de trave a estremecia. Mas nunca lhe traziam o seu filho !
E vinte noites já tinham passado, em que a mãe, por vinte vezes, afastara a morte, com a vida d'aquella esperança salvadora.
Mas n'essa manhã, já não contara o badalar longínquo das horas nem espreitara o romper da luz nas frinchas das portadas. Durante todo o dia rosnou uma rala monótona de moribunda. Quando voltou para lhe dar o leite, Rosa encontrou-lhe os pés mais frios ; e todos os seus esforços para lh'os aquecer foram inúteis. A frialdade subia lentamente, attingia já os joelhos ao meio-dia. Não quiz tomar o leite, recusou por duas vezes o remédio; e a nada que se lhe dissesse respondia. Apenas á tarde as suas pálpebras subiram e os olhos baços fixaram-se na janella, obstinadamente, n'uma insistência muda.
Rosa acabou por abrir-lhe a janella ; e logo as pálpebras desceram outra vez. Inquieta, Rosa mandou chamar o pae a toda a pressa. Veio-lhe um grande medo de que ella morresse e essa ideia, a que o seu cerebrosinho de creança se não habituara ainda, depois de tantos dias a vel-a extinguir-se, poz-lhe um terror infantil na imaginação.
Ajoelhava-se perto da cama a chorar, chamando pela doente, pedindo-lhe que fallasse : e ia e vinha no quarto, como um passarito de azas cortadas, piando de susto e pena.
Anna continuava immovel, n'um silencio de defunta, em que só a respiração oppressa o anciada punha um aspecto de vida. Pouco a pouco a rala foi subindo a escala trágica da agonia, até á monotonia fúnebre de um rumòr em que já não havia coisa alguma de humano, só comparável ao ruido de uma agoa em fervura. Ás três horas começou a delirar, embrulhando palavras n'uraa voz quasi extincta, gritando pelo filho, cruzando as mãos no peito, a embalar visões -- ou então, mastigando cora a rala o nome de Manoel, monotonamente, cinco, dez, quinze vezes a fio, rumorejando a palavra de amor com uma insistência de maniaca.
Gomo de costume, o guarda-livros veio ás quatro horas.
Rosa, enxugando as lagrimas ao avental, foi para elle :
-- Veja, senhor Martins... Cuido que vae morrer... Já mandei pelo meu pae á fabrica. Não acaba de vir! Olhe, senhor Martins... Olhe como ella está, coitadinha !
Tirou-lhe os cabellos da testa, cobriu-lhe as mãos ardentes, húmidas de suor, chamou-a de novo, com uma vozita medrosa que tremia.
-- Senhora Anninhas! Minha querida senhora!... Anna serenou um instante. A rala cessou, para dar logar á mesma respiração entrecortada e ruidosa de ha pouco. Martins disse:
-- Talvez fosse bom chamar o medico...
Mas ambos se debruçaram sobre a doente, ao vel-a sobresaltada, fincando as mãos convulsas nos joelhos n'uma tentativa para erguer-se.
-- Que tem, senhora Ânninhas ? Que tem ?
A doente abriu os olhos, passeou-os lentamente pelo quarto, ficou um momento a olhar Martins, com assombro.
Rosa agarrou-se-lhe á mão, a chorar, emquanto Anna, n'um renascimento inesperado de vida, com a fronte enrugada, disse devagar, immobilisando na parede um olhar baço e inimigo, que um secreto rancor tornava duro:
-- Escreve ao senhor Manoel...
Descançou um instante, estava respirando, com a cabeça amparada nas mãos de Rosa, a bocca ávida aberta.
Ouvia-se o zoar do torno, em baixo ; e um pregão de loteria andava pela viella.
O guarda-livros, emquanto Rosa sustinha a cabeça da moribunda, aconchegou-lhe ás costas as travesseiras; e Anna poude ainda dizer, de olhos cerrados :
-- O filho... Que tome conta... do filho...
Os beiços remexeram ainda um momento, sem voz. Ambos se debruçarm para escutar qualquer murmúrio, mas já não fallava. Rosa pousou-lhe as mãos brancas sobre os joelhos, que ella conservava subidos, com as pernas quebradas em angulo. Arredaram-lhe o ^jabello da testa, preparando-a em silencio para a morte. Martins, de pé, ao lado da cama, pensava na vaga esperança que tivera um dia de vir a casar com ella. Rosa chorava.
Mas um ruido de passos feros voltar a cabeça : a visinha do terceiro andar appareceu com o filho ao colo. A creança, ao vêr gente, grasinou.
Um estremecimento saccudiu o molhe de ossos, sob a roupa.
Martins disse baixo para a mulher :
-- Está a morrer ...
Rosa aproximou-se da doente, que se revolvia na cama, n'uma inquietação crescente. Os seus olhos cegos rolavam, tentando vêr ; as mãos fracas tateavam ; e a bocca inutilmente procurava som para o seu grito de mãe.
O guarda-livros lembrou:
-- Cheguem-lhe a creança. É uma esmola que lhe fazem. Enganam essa pobre de Ghristo...
E Rosa juntou as mãos em supplica :
-- Pelas almas, senhora Clotilde! É uma esmola!
Mas a mãe vacillou, amedrontada, abraçando o filho, no terror de o emprestar para essa comedia de morte. A moribunda continuava a bater o ar com as mãos magras, procurando a creança, e a sua cabeça dava encontrões pela travesseira, jogando a cabra-cega, emquanto a sua bocca remoia uma supplica sem voz, em que os dentes ferravam o beiço inferior, no esforço impotente de fallar.
-- Pelo bem que quer ao seu filho, senhora Clotilde ! Pelas cinco chagas, que ella não lhe faz mal ! -- de novo implorou Rosa, avançando as mãos para a creança.
E a mãe terminou por ceder, apiedada, com grandes lagrimas que lhe desciam a face, branca de terror.
Anna não parava a sua gesticulação de muda, acabando de morrer sobre aquelle pedido. Abriram-lhe os braços, pousaram-lhe a creança na cama, ao lado.
-- Aqui está o Joãosinho, senhora Anninhas ...
A mãe teve entre as roupas um alto arquejo. Os beiços brancos mecheram, sem voz ; as mãos levantaram-se um instante, procurando, pousaram na cabeça da creança, abertas.
Já não via. Os olhos rolavam dentro das orbitas, extinctos. Toda a vida accudia ao peito, de onde sahia uma rala. Por um momento a sua face moribunda estremeceu, na palpitação d'aquella felicidade tardia.
Já não tinha vista para o vèr, forças para o abraçar.
Ouvia apenas Rosa dizer-lhe quasi ao ouvido :
-- É o Joãosinhó, senhora Anninhas ! É o nosso rico menino ! Olhe que tem aqui o seu filhinho !
Mais duas vezes forcejou por levantar a cabeça, adeantar as mãos que tremiam muito, pendulando os dedos.
A creança estendia os membrositos ao calor, chilreando como um canário ao sol, batendo com as mãosinhas.
Rosa, sempre a chorar, levantou-a nos braços, suspendeu-a sobre o peito da moribunda, chegou-lh'a á bocca fria, que se colou á facesita da creança, n'um beijo extático, em que ficou o resto d'aquella vida.
A cabeça encolheu, cahiu entre os hombros, como se lh'a puxassem pelos cabellos; as mãos escorregaram, rolaram mortas, com os dedos estirados, pela coberta ; os joelhos desceram sob os lencóes. A cama estremeceu ligeiramente.
Aterrada, a mãe precipitou-se, arrancou o filho dos braços trémulos de Rosa, escondendo-o no seio.
Houve um instante de silencio. Martins adeantou-se, com a bocca aberta. Rosa poz-se também a olhar, pasma, sera comprehender ainda.
E foi o guarda-livros que se debruçou sobre a morta, tocando-lhe no hombro :
-- Senhora Anninhas ! Ó senhora Anninhas ! ...
Rosa, do lado, chamou também:
-- Ó minha rica senhora...
A sinistra cabeça da morta descambou, acabou de escorregar no colchão.
-- Cuido que morreu, senhor Martins -- disse Rosa, juntando as mãos.
-- Cuido que sim.
A creança chalrava, com duas covinhas na face, saccudindo os braços, n'essa mimica dos recemnascidos, em que parece haver ímpetos de vôo, attitudes sempre esvoaçantes, e onde a harmoniosa ascenção para a vida se traduz em cada movimento. E a mãe mal a continha, empoleirada no hombro como uma ave.
Rosa sentara-se no chão a chorar ; Martins fitava a morta, com uma insistência triste.
A mãe recuou devagar até á porta da alcova.
Ainda disse baixo :
-- Se fôr preciso alguma coisa é só chamar, Rosinha.
E em silencio, deslisou pela sala, no mudo terror da comedia finda, d'aquella penúria em que ficava a morta, sem luzes, sem família, entregue a uma pequena que só sabia chorar. Nunca tinha visto morrer assim. Dava-lhe a impressão de que ella era duas vezes engeitada: ao nascer e ao morrer; tendo vivido sem a adherencia moral de um único affecto : peor do que uma pedra, que atrahe o masgo, menos do que as agoas correntes, que criam limos.
Ficaram só os dois, Rosa e o guarda-livros, na alcova ; elle immovel, olhando a morta e o nevoeiro húmido que embrulhava a cidade, como a fumarada de uma salva ; Rosa ainda espantada, chorando, como uma creança perdida em ruas que nunca viu, sem saber o que fazer da morta, paralysada de ignorância e de pânico. Acocorada no chão, com uma lamuria infantil, ia dizendo a vida das duas, lembrando phrases da morta, contando as barbaridades da Catharina.
-- Coitadinha ! Tão boa era ! Se o senhor Manoel soubesse o que lhe fizeram ... Não lhe trazerem o Joãosinho, coitadinha ! Se o senhor Manoel soubesse ! Sempre ha gente muito ruim no mundo, senhor Martins ! Morrer n'esta pobreza e sem vêr o menino ... Tão bôa era, senhor Martins !
Uma trança da morta foi-se desenrolando, desmanchando, cahindo da cama ; ficou a balouçar um instante, varrendo quasi o chão. Entrava uma grande humidade pela janella aberta. Estalavam foguetes ao longe.
O guarda-livros não sahira do sitio. Já por duas vezes vira as horas no relógio, apoquentado pela demora, tendo sabido do escriptorio sem licença. Mas a morta prendia-o, fascinado. Emquanto a olhava, ia pensando nas cóleras do patrão, quando o visse entrar depois de uma demora tão grande. Lembravam-lhe as contas correntes por tirar, o balanço do mez ainda por fazer ; e ficava paralysado pela divergência d'aquelles dois deveres tão oppostos, -- o abandonar a morta, alli sosinha com a pequena, e o pôr em dia o Razão e o Diário.
Na confusão em que a consciência dos fracos anda sempre, ia pensando que a morta não podia alli ficar eternamente e era preciso prevenir o enterro, ir á Misericórdia, á policia, ao medico.
Elle com certeza não podia. O balanço do mez reclamava-o ; teria que passar ainda toda a tarde e metade da noite a alinhar cifras, amontoar sommas, conferir os lançamentos da quinzena. No escriptorio, era elle que fazia tudo, a correspondência e a escripta, os lançamentos e as cobranças. Não podia addiar o trabalho. Só a ideia de pedir uma sahida o assustava, lembrando as gritarias do feriagista da rua da Magdalena -- que sempre que o via entrar depois das nove horas berrava enfurecido : -- senhor Martins, a minha casa não foi feita para malandros ! E elle calava-se ; que remédio ! Tinha cinco filhas, geradas com a criminosa inconsciência dos pobres e dos humildes : a eterna fecundidade dos humildes, que só o amor restabelece da sua humildade. Amam então muito : e são dobradamente desgraçados ; a cada fome de amor succedendo logo uma nova fome de pão.
Olhava muito a morta, escutando a lamuria de Rosa, que se esgotava n^esse choro lamuriento das creanças ; e entre elle e a defunta interpunha-se a visão da escrevaninha de mogno, muito alta, pingada de tinta, com um grande mocho esburacado na palhinha, e enormes livros abertos, sujos de algarismos, que era preciso deixar conferidos n'essa tarde.
Mas uma fraqueza sustinha-o alli, inquieto e afflicto, sem vontade, sem querer, olhando a morla com uma fixidez inútil de idiota.
Em baixo, o torno zoava sempre, como a alma da pequena familia agrupada em redor da sua actividade. A creauça podia crescer e outras podiam vir. O torno trabalhava, protegendo de perto a tarefa de amor, ruidando sempre, com o sussurro de uma fonte de onde jorra a vida.
Ás quatro horas, o pae de Rosa, emfim, appareceu; e mal estacou com o olhar na morta, levantou a filha do chão, sentou-a nos joelhos.
-- Temos que fazer, minha pequena. O chorar não avança obra.
Voltou-se para o guarda-livros :
-- Pode-me ir á policia, senhor Martins?
Martins abanou a cabeça, fallou do escriptorio, sem forças para recusar abertamente, amontoando as difficuldades -- o escriptorio, o balanço...
-- Bem, bem ; vou eu -- decidiu o operário. Beijou a filha, fez-lhe duas festas cora as mãos ásperas.
-- Vamos, pequena. Agora leva-se até ao fim a obrigação. Bem devemos isto a essa pobre. Não chores, rapariga. Tu tens medo de a vestir?
-- Não senhor ...
-- Pois è a primeira coisa. Do resto trato eu. Não tens ninguém que te ajude? Se tua mãe não estivesse doente, chegava cá a dar-te a mão ...
Fitou a morta com uma expressão de brusqueria, emquanto arairaava a filha.
Voltou-se ainda para Martins, que já pegara no chapèo.
-- Fidalgos ! Canalha ! Vão lá os pobres fazer filhas e creal-as para isto !
Saccudiu com a mão uma lagrima. Foi até á janella, desceu a vidraça, voltou para perto da cama.
-- Arranja-a lá, rapariga. Põe-lhe o que tiver de melhor. -- Vem, senhor Martins?
E sahiram os dois, estremecendo violentamente o soalho.
Rosa foi logo firar a roupa ao bahu ; e durante uma hora, entre accessos de choro, sem medo, vestiu o corpo hirto e pesado da morta.
Quando ao anoitecer a mulher do torneiro subiu, saber se ella precisava de alguma coisa, encontrou-a a alisar amorosamente o cabello longo da defunta, já, vestida.
Tinha-se sentado n'uma cadeira baixa de costura e com o gesto dolente das tecedeiras, ao entrançar das meadas de seda, ia enrolando as mechas n'um abraço, para o fúnebre apparato da morta, a que ella em vão se esforçava por dar bellesa.
A mãe tinha trazido o filho, e sentou-se também, a dar-lhe o peito, para vêr se o calava.
Em silencio. Rosa, elevou as tranças pesadas até á cabeça de Anna, pousou-lhe um beijo na testa livida, já arrefecida.
Voltou-se então devagar, olhando a creança.
-- O nosso Joãosinho também era assim lindo, senhora Clotilde...
A mãe passou a mão pela cabeça da creancinha com esse gesto maternal em que ha sempre vaidade.
Esteve mirando a morta, aspirou o bafo quente do quarto :
-- Já cheira, menina!
Rosa limpou mais lagrimas, foi abrir uma fresta da janella.
-- Abra as da sala ; abra as duas, senão d'aqui a pouco não atura !
-- Ainda não ha três horas que morreu. -- Coitadinha ! Gostava tanto de cheirar bem ! Olhe : as gavetas da roupa andavam cheias de limonete, senhora Clotilde. Já não a torna a vestir!
Mas a senhora Miquelina appareceu. Tinha-se emfim resolvido a subir. Não gostava de ver mortos, mas sempre era uma inquilina ; que remédio ! Não fosse a pequena esquecer de prevenir o medico para a certidão e a policia para o enterro ...
E logo na sala, onde Rosa abria as janellas, disse, traçando o chalé de malha, muito amarella :
-- Já mandou ao medico ? O enterro tem de ser da Misericorda, não?
Rosa disse que sim ; tinha lá ido o pae -- ao governo-civil e a S. Roque.
-- Isso, isso; abra as janellas ! já se não pára com o cheiro!
Foi até á porta do quarto, espiou a medo. E dando com a inquilina do terceiro andar, ganhando coragem, entrou.
-- Também veio, senhora Clotilde? -- E antes de olhar a morta, fazendo uma festa á creança: -- Ó lindo amorsinho! Está mesmo bonito o rapaz !
Ficou de longe, mirando a defunta, pondo na face mortificada da morta o seu olhar redondo de ave de presa.
-- Christo! Nem parece a mesma!
Embrulhou-se mais no chalé ; tremiam-lhe as mãos ossudas. Voltou-se para a mulher, que embalava sempre o filho.
-- Só cá esteve quatro mezes. Veio pelo entrudo ; na quarta-feira de cinza. Já não vinha boa ; muito tolhida de tosse. Desgraças, menina, desgraças !
A creança chorava mais alto, impaciente, á procura do seio ; Rosa tinha accendido uma vela. A senhora Miquelina disse :
-- Já é noite.
Perguntou depois, seccamente :
-- Quando é o enterro ?
E como Rosa não soubesse, desde as cinco horas á espera do pae, que ainda não voltara com a certidão de óbito e o certificado de pobreza, Miquelina fallou ainda do mau cheiro, lembrou desinfectantes.
-- Depois é uma praga ; ninguém quer a casa !
Clotilde, que estivera a resar, benzeu-se, acabou por chegar o seio ao filho, que tacteava entre a roupa com a boquita.
-- Ainda fica, senhora Miquelina? Vou-me indo fazer a ceia ao meu homem.
-- Tratar da vida; não ha remédio... também desço.
Mal as duas sahiram. Rosa voltou para perto de Anna a chorar. Só ella a chorava de todo o coração, tendo subido a seu lado o áspero calvário, assistido á sua felicidade e á sua morte.
Só ella a conhecera no seu radiante período de amor, com uma bocca que ria, cantava e dava beijos, sem o mais leve presentimento da catastrophe, que já descia sobre a sua cabecita leve de andorinha.
E não se cansava de a olhar, compondo-lhe o cabello, as pregas da saia, os dedos inertes e gelados. Agora, a luz da vela dourava a face branca, immovel, onde havia já contornos de caveira e um vinco negro alastrava sobre os olhos.
E por tudo eram lagrimas : se lhe lembrava um remoto dia feliz, um gesto d'aquellas mãos paradas, a voz d'aquella bocca silenciosa, uma toada de canto, ordens, as suas quesilias de doente. Não tinha medo de estar sósinha ao lado d"ella, morta. Sentia-a ainda viver dentro da sua vida, ella tendo occupado com o seu grande drama a sua vida pequenita. Andava á volta da cama, inquieta, por uma necessidade de ser ainda útil á morta, serviFa, dar-lhe todo o seu tempo G todos os cuidados ; e ainda uma vez foi ageitar-lhe o penteado, desembaraçar mais a fronte insensível, ahsar o cabello rebelde onde já não entrava o pente havia quasi um mez. Mas a fealdade triste da defunta resistia a todas as tentativas de Rosa para lhe dar um pobre ar de formosura ; e a face permanecia dura, com os beiços colados aos dentes e as pálpebras desunidas.
Foi então humedecer um lenço novo, cobriu a face inflexível, onde ficara o assomo da derradeira cólera contra a injustiça humana. Embebido em agoa, o lenço moldou a cara taciturna da morta, cahindo em duas pontas do queixo erguido.
E agora, que já estava arranjada para a terra, que tinha gasto com o seu corpo os últimos cuidados. Rosa foi procurar ao baliu de folha o papel de cartas, o tinteiro e a penna, para lhe cumprir a ultima vontade : o annuncio da sua agonia e da sua morte, com que ella, depois de morta, ia revolver as cinzas que ainda sobravam na terra da grande paixão que a consumira.
Parada em frente á janella, muito tempo Rosa meditou, procurando adivinhar a intenção profunda da morta no inexorável rancor com que tinha proferido pela ultima vez o nome adorado. Mas não comprehendia, sem penetrar na alma d'esse drama que roçara pela sua vida, turvado pelas maiores angustias humanas : o amor ultrajado, a maternidade extorquida, a illusão morta.
A mesma chuva miúda, de pela manhã, cahia ainda, enevoando a cidade, embrulhando-a n'um vêo espesso de gase, onde as luzes dos candieiros scintillavam como lantejoulas.
Rosa sentou-se á mesa, molho uo bico da penna na bocca; enxugou as lagrimas á manga ; e na sua lettra mal segura, começou a carta difílcil que a morta tinha pedido: Ex."^" Snr. Manoel...
Fora, na noite húmida, rumores trespassavam a nevoaça ; da tenda vinham os sons de uma guitarra gemendo o fado da Mouraria ; e gritos, vozes, choros perdiam-se na bruma, toda a vida rumorejante do bairro invadindo a noite como uma exhalacão de montureira humana. A Bezerra cantava sempre, agacbada na soleira da porta, apregoando. A sua voz, desde a ultima ida ao hospital, era mais fraca e rouca, tendo perdido a sua vibração de clarim de chamada, que ia encontrar ao longe o desejo dos homens e sobresaltar nos leitos os zelos das casadas. Outros cantos respondiam, dispersos, como gritos rivaes de annuncios, chamando os gallos.
De baixo, do terceiro andar, chegava o ruido áspero do torno e o chiar do berço embalado ; e a meio de todos os rumores, a morta continuava impassível, com as mãos no peito, o corpo pisado pela dura tarefa de dôr e de miséria, com o seu vestidinho de merino preto, preparada para a terra, pés juntos, pálpebras descidas, o lenço sobre a cara.
Ás vezes, Rosa voltava-se a olhal-a, assim immovel e hirta; e de todas as vezes as lagrimas corriam pela sua facesita muito pallida de anemica, lembrando a vida áspera da companheira morta, -- todo esse romance de amor de que ella fechava o ultimo capitulo, escrevendo a carta de adeus, mandando a Manoel o derradeiro pedido de Anna, a dizer-lhe que o seu ultimo pensamento fora o filho, para que elle o amparasse, para que elle o protegesse, para que elle o salvasse.
O berço chiava sempre, dizendo uma nova esperança, uma nova vida que florescia e se creava; e o torno, incansável, zoava, como o eterno rumor de trabalho que enche a terra, a obra de vida, a obra de esforço, a obra de multiplicação e de lucta pelo amor e pelo pão.
De uma torre, para os lados da Graça, cahiram horas. E sempre, como a suppuração do organismo impuro do bairro, que ia envenenando lentamente Lisboa, no fermento de toda a sua carne de degredo e hospital, os mesmos gritos, as mesmas vozes lamentosas invadiam a noite húmida, dizendo a penúria dos lares, a agitação dos somnos, a vigília dos miseráveis, levando até ás estrellas impassíveis o brado do roto bando de vencidos, exigindo pão, exigindo abrigo, exigindo descanço.
De um extremo a outro, a miséria, empurrada para o monturo, acotovelava-se, fermentava, procreava, vivia, continuando a legião da desventura humana, ameaçando o futuro com a sua fome, o seu crime, o seu rancor, o seu eterno clamor de vencida, que os céos ouvem calados. E sempre, na sombra, de entre o bando de escravos, a obra de vida proseguia sem descanço, no impulso inicial de uma humanidade em marcha, atravez de todas as angustias, todas as decadencias, todas as privações da terra, como uma torrente que se arroja a fecundar espaços ainda incultos do futuro.
O bairro negro engrossava, espalhando raizes, padecendo, procreando, vivendo, para que nunca a semente vermelha secasse no coração dos opprimidos, guardando, como uma braza entre cinzas, a lembrança da dôr passada para a obra pavorosa das represálias de amanhã.
Era preciso que mais e mais a humanidade soffresse para que a obra de justiça se precipitasse. Para o advento d'esse dia é que o bairro negro trabalhava, suando, gemendo, chorando, padecendo, distribuindo a sua parte de miséria aos que hão de vir, mais miseráveis, mais humildes, até que o mais humilde e o mais miserável vingue a casta opprimida e a liberte !
QUARTA PARTE
Tinham dado seis horas na Universidade. Queiroz afastou o prato das laranjas, pousou a faca e ergueu-se :
-- Seis horas ! Está o Manoel á minha espera ...
-- Então não tomas o café? Nem tanto tempo demora ...
-- O café?
Queiroz reconsiderou : sim, tomaria o café, se não demorasse muito. E elle mesmo chamou a Joaquina.
Ainda era dia ; e na varanda, as glicínias rescendiam, entrelaçando os esteios de castanho, trepando até ao telhado, enchendo a sala com esse suave perfume de todas as flores lilazes. No quintalejo as gallinhas esgaravatavam, catando bichos na horta; e de um quintal próximo vinha o ruido de um fio de agoa cahindo n'um tanque.
-- Nem jantaste com socego -- disse Maria da Graça, recuando a cadeira.
Mas o Queiroz protestou : tinha feito honra ao frango assado e a sopa estava de appetiíe : diziam-lhe muito bem as vagens.
-- A rapariga tem paladar -- acrescentou, riscando um phosphoro.
Accendeu o cigarro, foi até á varanda, atirou o phosphoro ao quintal, veio de novo até á sala, olhou as paredes, um prato novo da índia que comprara na véspera.
-- E esse café? Vem ou não vem? Maria da Graça levantou-se. Ia vêr. Queiroz disse ainda :
-- É porque tenho pressa, filha -- e voltou para a varanda, trauteando a valsa da Rainha Sebenta.
Vinho louro, vinho a arder, És tu depois da mulher, A maior delicia do homem !
Tinha ficado de estar com Manoel ás seis e meia para assistirem ao ensaio da recita do quinto anno de direito, no D. Luiz. Interessava-o muito a peça; fora elle que dera a ideia geral ao Edmundo Netto. Queria-lhe como coisa sua ; dizia que os authores eram dois talentos. E como Manoel não concordasse, achando-os «duas cavalgaduras,» o Queiroz offerecera-se logo para o levar ao ensaio geral, «calar-lhe a bocca.»
O Netto uma cavalgadura ! Ainda o Sampaio vá : tinha escripto um livro infeliz; mas o Netto!
-- Tomas ahi o café? -- perguntou de dentro Maria da Graça, indo buscar a cima do aparador o assucareiro.
-- Não; vou lá dentro.
Mas já escurecia na sala e Maria da Graça mandou accender o candieiro.
Tinha emmagrecido de rosto ; o seu corpo deformava-se, alargando na cinta, creando logar para o filho. Usava sempre o cabello apartado ao meio por uma risca, enrolado em trança na nuca, á D. Maria II ; e o chambre de cassa, muito fresco, moldava-lhe os dois seios, despindo até á cinta o seu lindo e forte corpo de mulher fecunda.
Queiroz curvou-lhe a cabeça, poz-lhe um grande beijo casto na testa.
-- Dás-me a genebra ?
Ella sorriu como uma escrava feliz de agradar ao senhor, foi logo ao armário buscar a botija e o cálice, quando a Joaquina entrou com o candieiro.
Era uma mocetona de vinte annos, cheirando muito a lavado. Quando andava, as louças, em cima dos moveis, estremeciam.
-- Ponha em cima da mesa. Pôde ir jantar. Se fòr precisa eu chamo.
E vascuiejando a botija da genebra :
-- Está no fim. Vocês hontem deram-lhe um avanço !
O Netto e o Sampaio tinham vindo na véspera ; fallara-se da peça, discutindo-se as modificações que o ensaiador -- o Pinto, de Lisboa, -- aconselhara. E mesmo os três tinham concordado que o ensaiador era «um asno» e não valia as onze libras do contracto.
Queiroz viu as horas no relógio : uma cebola de prata com o retrato de D, Miguel esmaltado na caixa, que herdara de um tio cónego -- o tio Moraes, de Santa Comba.
-- Seis e dez ! E tenho que estar lá em baixo ás seis e meia !
Entornou depressa o café, mecheu o assucar, accendeu outro cigarro emquanto o café esfriava.
-- Que pressa ! Assim nem te sabe ! Vê lá que não te escaldes. Queres mais assucar ? Não te esqueças de perguntar pela Anninhas. Está lá aquella pobre de Christo em Lisboa... Ninguém sabe d'ella...
-- Diz o Manoel que está boa: tem-lhe escripto...
Mas uma sombra cahira entre os dois, na evocação da amante infeliz, quando elles viviam tão alegres, nos braços um do outro, sem mortificações e sem desgostos, adorando-se como no primeiro dia.
Deviam-lhe quasi essa felicidade quieta que gosavam, ella tendo sido o exemplo que decidira o Queiroz a arriscar-se á aventura d'aquelle amor ; e á sombra da sua desgraça crescera a ventura dos dois, vivaz como uma planta logo enraizada. Muitas vezes fallavam de Anna, lembrados d'essa dolorosa noite de despedida -- a infindável scena de lagrimas e de lamentações, que ficara a ambos na memoria como uma nódoa n'um livro.
Para elles, o filho que ia nascer -- de quem Anna e Manoel seriam os padrinhos -- era esperado com o fervor de uma felicidade que se avisinha, um dia de festa que se approxima e para o qual já se cultivam flores e entretecem projectos. Ás noites, antes de adormecer, faliavam sempre d'elle. Haviam de o chamar Manoel, se fosse rapaz ; Thereza, se fosse rapariga. Ambos desejavam um rapaz e sonhavam-n'o já a engatinhar pela sala ou entrando em casa, das aulas, com a saccola dos livros. Identificavam n'elle o futuro; não diziam -- «para o anno,» «d'aqui a dez annos» ; diziam -- «quando o Manoel começar a andar,» «quando o Manoel já fôr um homenzinho.» E á espera d'essa vida que ia chegar, feita da vida d'elles, os dois viviam n'um enternecimento muito doce, estreitados n'esse sereno amor que fructificara, que mais os enlaçava pela commum obra de vida que os unia. Os mezes decorriam n'uma anciosa espectativa, sentindo todos os dias crescer e desenvolver-se mysteriosamente a semente sagrada de vida nos flancos da creadora, como no seio de uma terra fecunda. E já o ventre de Maria da Graça, como uma cúpula branca se arredondava e subia, estremecido por essa pequenina vida que os seus beijos tinham despertado e onde o sangue dos dois andava junto.
Queiroz tomou o café á pressa, esvasiou a genebra de um trago, olhou ainda o relógio.
-- Seis e vinte !
Poz um profundo beijo na bocca de Maria da Graça, accendeu o cigarro que se tinha apagado ; e já na porta, voltando-se :
-- Decerto trago o Manoel para o chá. Não te deites. Manda comprar pão para as torradas e biscoitos de tosta, se houver. Elle gosta.
-- Vae,vae: cá tens tudo.
-- E guarda-me a guitarra no sacco.
Sahiu para a rua, enfiou apressado para a Praça do Commercio, espiar no Central se estaria o Netto.
Começava apenas a escurecer e a lua subia no céo ainda sem astros, de um azul de seda desbotada que fumos serenos ennodoavam. No socegodas ruas -- esse claro socego de todas as cidades de província -- gente passava devagar, sem pressa. Logistas fallavam de passeio para passeio e uma creada saccudia sobre a rua uma batina, na varanda de um segundo andar.
Queiroz teve de atravessar, fugido á massada do Perdigão, estanqueiro, que tinha uma filha doente com sarampo.
Mas o homem viu-o, tirou o bonet de pala, veio á porta.
-- Senhor doutor...
Queiroz estugou mais o passo, perguntou de longe :
-- A pequena vae melhor? Bem, bem: é o que se quer ! -- e voítou para a Praça do Gommercio, correu para o Central, vendo as horas.
E dizia comsigo : perdemos o coro das violas, o melhor ! E pensava : hão devia ter esperado pelo café I!
Mas o Central estava quasi deserto ; um rapaz, em mangas de camisa, accendia os candieiros e o Marques, ao fundo, em frente ao balcão, descompunha um creado.
Seguiu logo pela rua dos Sapateiros, que os tamanqueiros em trabalho enchiam de ruido, e desceu até ao hotel n"uma carreira, perseguido pela voz dos sinos que batiam as seis e meia.
-- Ó menino, pois tu não estás prompto ?
Manoel tinha-se esquecido do ensaio-geral da Rainha Sebenta, entretido a ler a Mulher Fatal de Camillo.
Espreguiçou-se na chaise-longue, muito massado ; e emquanto o Queiroz accendia a vela, declarando q\ie elle ia morrer n'aquella molleza de pachá, a lêr romances, Manoel foi ainda mudar de gravata, escovar o paletot, polir preguiçosamente as unhas em frente ao espelho do toucador.
-- Isso: põe chapéo alto e calça as luvas! E eu a escaldar-me com o café, a apressar o jantar! Perdes o melhor : já não chegamos ao primeiro acto.
-- Que pena ! -- disse Manoel, pondo na gravata um alfinete de pérola.
Mas então o Queiroz zangou-se, bateu com um livro em cima da meza.
-- É por isso que n(3s somos um paiz estragado : desconfiamos de tudo, resmungamos de tudo ! A peça é a melhor coisa que Coimbra tem dado ha cinco annos. A melhor, ouviste?
-- Não te zangues; não te zangues. Nós vamos vêr. Ainda assim, a melhor não è muito, António ; has de concordar que não é muito ! Confessa que collaboraste na peça ... Não negues ! O Netto procurava-te ; o Netto andava atraz de ti. Collaboraste !
Sim ; não negava -- tinha dado umas ideias, feito sentir a necessidade de uma critica severa ...
-- Fizeste bem. Temos então a velha tirada sobre a rehabilitação da mulher, a grande these de conversão social, o bairro operário, todos os estatutos da reforma ? -- E ao espelho, com cuidado, recompunha o laço da gravata, sorrindo.
Queiroz, bondosamente, riu: um claro riso de tolerância para essa ironia frivola que desmanchava a austeridade do seu grande sonho de temperança e virtude.
E já resignado á demora, abatendo sobre uma cadeira o corpo de gigante dócil, perguntou:
-- Lá de Lisboa: as noticias? Como vae o pequeno ?
Manoel, acostumado á mentira, respondeu com serenidade :
-- Bem; vae bem.
-- E a mãe?
-- Bôa.
-- Escreve para lá que a Maria da Graça anda sentida. Sempre é madrinha e tem amizade ao pequeno. A Anna já lá deve ter três cartas.
Manoel; que socegadamente escovava o chapéo, disse :
-- A creança tira-lhe o tempo. Passam-se dias que não me escreve.
E pensou mais uma vez, com um leve estremecimento : -- porque não escreverá ella ? Havia dias em que o preoccupava ainda esse obstinado silencio. Sentia-se agora n'um suave bem estar, gosando um largo desafogo, sem a antiga oppressão d'aquelle amor extincto, que sem aquecer o seu coração, enfumaçava ainda o seu futuro, como essas luzes que depois de apagadas ficam iníindavelmente a fumegar.
Na vida era sempre aquillo : a eterna e banal aventura da mulher desejada, possuída, largada. La já distante o sentimentalismo contricto dos primeiros quinze dias. Um outro Manoel teria vindo consolar a despregada. Talvez Anna fosse feliz, gemendo sob a caricia de um outro amor, pagando com a sua carne de prazer uma nova felicidade. E ás vezes pensava no impossível de um encontro, em Lisboa, nas ferias grandes; e Anna, sem corar, diria o nome do seu successor, naturalmente, como uma coisa justa, precisa, esperada. Desejaria mesmo encontraFa, fallar-lhe, recordar a loucura eminente em que ambos tinham estado para cahir, em riscos de se inutilisarem, como desastrados. E agora, sem ousar ainda confessar tudo ao Queiroz, mentia sem o escrúpulo antigo, addiando a explicação para mais tarde, sempre hesitante e sempre fraco, cortando a vida aos zigue zagues como um trôpego.
O retrato de Anna thronava ainda na secretária com o seu caixilho de veludo granada, como um trophéo. Muitas vezes o olhava, sorrindo ou retorcendo o buçosito louro, lembrado dos seus beijos, revendo mentalmente a sua nudez : curvas de seio e quadril, cantos louros, o signal de um hombro, a linha sinuosa do torso. Levemente, á flor da pelle, soffria, julgando-a nos braços de outro, consolando-se n'outras caricias, arrulhando sob outra bocca.
E mais uma vez, debrucando-se para apagar a vela, a memoria de Anna passou, delineando-lhe no espirito a linha graciosa de uma perna nua, na subida de um leito.
-- Vamos lá.
Queiroz ergueu-se, atirou o fumo do cigarro para o tecto, e estacando em frente de Manoel :
-- E dizer que ha dois milhões como tu que passam a vida a lavar-se!
Manoel, dando um esticão aos punhos, disse :
-- Só?
-- Os outros, menino, passam a vida a sujar-se.
-- Os porcos !
-- É verdade ! Olha por exemplo os ferreiros ... Sahiram os dois para o corredor ás escuras onde
apenas peias portas abertas da sala de jantar escoava uma luz de petróleo.
-- Não tropeces. Até fazem economia de luz ! Uma porta abriu- se com estrondo ao fim do corredor e a Izabel atravessou, desarvorada.
-- Pouca vergonha ! O pelintra ! Quem os atura merece o céo ! Desconsiderar uma mulher honrada !
Os dois afastaram-se para a deixar passar, batendo muito com as saias, esfregando os sapatos de liga pelo soalho.
-- É isto todo o dia, menino !
E logo da sala de jantar, enxugando as mãos ao avental de riscado, surgiu a cosinheira, com seios enormes que balouçavam no chambre.
-- Que foi, senhora Izabel? Credo! Julguei que lhe tinha dado alguma coisa !
-- Que foi? É aquelle pelintra do 16 a insultar a gente ! Mas ha de ir para a rua ! Ou elie ou eu ! Aonde está a senhora?
De um quarto, cheio do fumo dos cigarros, uma voz grossa de homem berrou com cólera :
-- Se você não se cala, vae aqui tudo razo, com seiscentos demónios !
E o Coelho Mulato, na sombra do corredor, saccudia o braço, terrível.
Os dois largaram pelas escadas a rir, fugidos á gritaria, a obesa D. Joanna tendo-se juntado ás creadas, n'um estridor exasperado de berros, para pôr fora, na rua, o Mulato.
-- Pulha! -- rugiu Manoel, cuspindo no ladrilho do portal.
-- Ha de ser ministro, verás, disse o Queiroz, convencido.
Iam atravessar a rua ; e o carteiro, vasculhando um sacco de couro, ainda deteve Manoel a meio da calçada.
-- Uma carta de Lisboa para V. Ex.*.
Manoel estendeu a mão desinteressadamente para a carta e olhou o sobrescripto. As pálpebras tremeram-lhe ao de leve, como deante de um perigo.
-- Conquista, hein? -- perguntou o Queiroz.
-- Uma carta -- disse Manoel; e guardou a carta no bolso.
Estava uma noite muito clara, de lua cheia, onde apenas os grandes astros conseguiam resplandecer.
No Collegio da Graça o toque de recolher cantava, metallico, no ar leitoso; e em toda a encosta, que a Universidade dominava como um vasto templo da Sciencia, o luar cahia, fulgido. Podiam-se vêr as horas, de longe, na torre quadrangular da Via Latina.
Queiroz rodeou o céo fulgurante com a vista ; e arrastando Manoel pelo braço, como uma creança que elle governava :
-- Dá vontade de ser bom por uma noite d'estas ! De ser puro e sereno como o luar ! Não ter uma nódoa como o cèo ! Poder percorrer a vida sem encontrar uma falta, com esta alegria com que se percorre o espaço sem encoutrar uma nuvem ! Grande prazer este, Manoel, de ser justo e ser bom !. Tão fácil que seria refazer a humanidade no grande interesse doeste prazer physico incomparável de poder olhar o céo e dizer-lhe : sou tão calmo como tu ! A Maria da Graça está para ahi a cantar á varanda ! Vamos depois ter com ella pedir-lhe chá -- curvou-se mais, guardando sempre o braço de Manoel ; e na imperiosa necessidade de desabafar um pouco d'essa alegria que o ia dominando como o crescendo triumphal de um hymno, n'uma voz onde convicções altas vibravam, desafogou :
-- Pode-se ser feliz com tão pouca coisa! Uma noite de luar, uma mulher e uma esperança -- pouco mais do que uma herança de pobre, -- e a minha felicidade sobe acima dos astros! Porque eu sou feliz, ouves ? Parece-te impossível, hein ? A grande verdade é que só é feliz quem se julga. E que posso eu querer mais, se tenho a plena felicidade physica da saúde e do amor? Grande coisa è o desejo, homem, o desejo illimitado, sem fim, que alegra tão absolutamente a nossa carne ! O amor é o grande equilíbrio. Por elle devia a humanidade conseguir mover-se na terra sem embates, como os astros se revolvem nos espaços sem encontros.
Estacou no passeio a rir de um tão grande enthusiasmo.
-- A verdade é que sou feliz ; que importa o resto? -- e a sua face boa, onde sorria uma plenitude de serenidade e força, aíTirmava toda a grande ventura de ser simples, de ser bom, de ser justo.
-- Perdemos o primeiro acto ! Parece que te custa a andar ! Yamos; aperta o passo...
Estavam na Fonte Nova e tinham martelado na Sè as sete e meia.
Manoel bateu impertinentemente as calças com a bengala, disse -- vamos lá -- e os dois tomaram para a rua do Sá da Bandeira, com pressa.
Mas o ensaio devia ter começado mais cedo : o segundo acto ia em meio quando Queiroz empurrou a porta do camarote.
Ficaram ambos de pé, olhando o palco, onde as luzes da ribalta e dos bastidores illuminavam uma lenta procissão que escoava aos berros e um resto de cortejo que subia as escadarias de Minerva, arrastando togas nos degráos.
Um novo panno desenrolou um trecho ensombrado de bosque com uma nympha de mármore n'um pedestal, alegrando a perspectiva de uma alea profunda, onde se debruçavam frondes verdes.
Uma pipa rolou de entre-scenas, estacou, bamboando, perto da nympha. O Alves Cabral arrancou para o palco, vestido de Baccho, coroado de parras, batendo o soalho com um thyrso de folha ; e na sua voz redonda de barytono, amestrada no fado, atirou para a sala escura, atroadoramente, com a ária do Vinho :
Vinho louro, vinho a arder, Que de entranhas te consomem ! És tu, depois da mulher, A maior delicia do homem !
Logo de entre-scenas a ronda de estudantes rompeu, galopando em volta do deus grotesco, com grenhas revoltas, vermelhidões de carmim nas faces, entoando o coro de consagração que as guitarras, na orchestra, acompanhavam n'um tremulo de fadinho. Diziam as noites de patuscada e de ceia, toda a aventura romântica do vinho, divinisando a musa desgrenhada da embriaguez em versos exaltados, que o Netto, muito amigo de genebra, lapidara com amor, inspirando-se, dizia, em Beaudelaire.
Baccho trepou para cima da pipa, agitando o thyrso, pratos estalaram na orchestra; e entre um rumor chocalhante de sistros o coro de bacchantes fez entrada.
Então, na plateia vibraram palmas e de todos os cantos romperam vozes :
-- Bravo, Bento ! -- Seabra ! Seabra ! -- Bravíssimo, Silva !
Era o dou do acto. Todos mostravam, sob as túnicas curtas, orladas de gregas azues, as pernas magras, e saccudiam os braços nus, embossados de músculos, tangendo langorosamente os sistros de lata.
O Bento Lopes arranjara uma cabelleira ruiva, desordenada ; e o Seabra, que consentira em cortar as barbas, alteava sob uma pelle de tigre seios enormes como muralhas, em que se tinha gasto um alqueire de farello. Mas acima de todos o Augusto Varella triumphava, expondo os braços brancos encordoados de muscules, com biceps volumosos como peitos de mulher.
No contagio do riso o coro perdeu o compasso, vozes desgarradas partiram, o ensaiador fez recolher o coro a bastidores. A orchestra atacou de novo, furiosamente, com musica da Norma ; e em unisono, no palco apinhado, onde o Alves dominava, empunhando o thyrso, o coro reboou, clamoroso :
Voltaria com deleite A mamar, como um doidinho, Se em vez da teta dar leite, Desse vinho !
Queiroz torcia-se na cadeira, dando palmadas nos joelhos, radiante.
-- Hein? Que te dizia? Um successo, menino, um successo !
E como o panno descia já em plena glorificação, no ruido ensurdecedor do coro e da orchestra, onde retiniam íimbales e rolavam rufos de tambor, Queiroz atirou-se para fora do camarote á procura do Netto, levar-lhe o abraso de triumpho.
De todos os lados, de entre o rumor, vozes pediam bis.
O panno subiu outra vez, lentamente ; e um cancan furioso estremeceu o palco, as bacchantes ergueram as túnicas, mostraado as ceroulas enroscadas nos joelhos ; e até o deus Baccho, descido da pipa, batia o tacão pelo braço do Bento Lopes, de thyrso ás costas e coroa de parras nas orelhas.
Manoel arrastou pesadameute a cadeira, sahiu para o corredor ás escuras, onde só um coto de vela, dentro de um lampeão de vidraça, alumiava com uma chamma livida.
Abriu a carta de Rosa, atirou com o enveloppe ao soalho, nervosamente ; e logo as suas mãos tremeram, os seus olhos vacillaram.
Por todo o caminho viera pensando no que poderia annunciar essa caria inesperada, escripta pela «pequena», enleado pelo vago presentimento de um desastre ; e já o verniz do seu egoísmo elegante, colhido ás pressas numa dúzia de romances francezes, estalava sobre o arcabouço do romântico que elle era no intimo, estremecido ao menor abalo, como essas rosas de inverno que qualquer sopro desfaz.
O seu primeiro ímpeto fora de escancarar essa carta, conhecel-a, destruir o que ella pudesse ter de embaraçante por aquella publicidade intrépida da rua. Mas acabara por guardal-a, n'esse instinctivo movimento de recuo ante toda a noticia má em que se adivinha um desgosto. Justamente agora que uma serena vida de indifferença e de egoísmo o embalava como uma vaga muito mansa, e que se ia purificando da ímpuresa sentimental dos outros tempos por um scepticismo agradável como um perfume caro, uma carta mal escripta bastava para accordar na sua carne essa fraqueza feminil que o envergonhava. Ridícula coisa, a vida, tão cheia de contratempos -- ia pensando, emquanto o Queiroz desfraldava ao luar o grito tríumphante das almas castas, foites e serenas. E esse velho hymno de força e de bondade, que d'antes o arrebatava, parecia-lhe agora uma ária cançada de opera antiga com que um realejo de mendigo nos vem accordar tédios. A verdade ! o bem ! a justiça ! -- ideaes á mão dos humildes e obscuros ; restos de algum cântico primitivo de bárbaros ; cinzas de uma fogueira extincta, que alguns sonhadores teimam em soprar !
Ah ! a estúpida aventura doesse amor, que tornava sempre á sua vida como um ritornelo fastidioso, alarmando o seu socego a todo o instante, depois de ter ameaçado derrubar a sua felicidade para todo o sempre ! A que vinha aquella carta, se tudo terminara, se Anna já o esquecera por outro, se elle mesmo já a trocara por outras ? Porque Anna devia tel'o esquecido. Elle via-a atravez do seu egoismo, partilhando o fragmento de outra vida, condemnada a ser a ephemera companheira de alguns dias, que se encontra a uma volta de caminho e se despede no primeiro atalho, sem saudades. Eram as mesmas scenas de lagrimas e lamurias que iam recomeçar ; e enfarecia-o essa vida negra teimosamente desdobrada ao longo da sua vida clara, como uma sombra importuna que o seguia.
Mas a carta cahiu como um ferro em braza na sua alma gelada.
Anna não o incommodaria mais ; áquella hora a terra devia ter guardado a inutilidade do seu corpo ; e a pobre gosava o seu primeiro descanço.
Emquauto elle, na chaise-hmgue, lia a Mulher Fatal, a tumba da Misericórdia, ao trote de dois cavallos magros, ia-lhe balouçando a amante dentro de um caixote de empréstimo, em caminho dos Prazeres.
Como uma caranguejola que um pè de vento arraza, as suas theorias scepticas, tão commodas, tão superiormente delineadas no romance francez, dentro das quaes elle sonhara a atittude glacial de um heroe, insensível como um destino, imperturbável como uma fatalidade, cahiram ; e elle tremeu ao grande frémito de morte que o cingia, escutando o clamor d'essa mãe que morrera a amar o seu filho, a sacrificar por elle a serenidade de uma agonia, berrando a dôr incomensurável de o não ter alli, de encontro a ella, como um engano de vida, para deixar gelar as suas mãos na quentura d'essa carne feita da sua carne.
E agora e sempre, a grande tragedia da vida desenrolava o scenario tenebroso ao fundo de todas as comedias e a verdade despedaçava, como um pilão formidável, todas as mentiras.
Arripiou-o o contraste entre a sua vida, de onde se despegava o remorso e a saudade como dourados gastos, e a vida de Anna, curvada sobre a angustia do seu anuiquillamenlo, amarrada á verdade como a um destino, vivendo atè ao fim a grande vida do amor e do sacrifício, expiando tão barbaramente o seu delicio sentimental de apaixonada : o crime de haver exposto á profanação a obra divina de creação e de vida, fazendo da grande obra de felicidade uma obra de destruição e de dôr.
Emquanto elle occupava o tempo em esquecel-a, ella occupava o seu em morrer. Elle saccudia o filho da sua vida; ella dava-lhe o ultimo instante da sua. Entretanto que ella agonisava, elle torcia o bigodito louro, lia Stendhal e Bourget, sonhava com Monsieiw de Camors, pensando, com uma leve amargura, nas horas de amor com que o seu corpo de jaspe enriquecia a vida de outro homem.
Assim, os romances mentiam ; havia ainda mulheres que morriam abraçadas á aspiração de serem esposas e mães !
E dava voltas no corredor, indo e vindo na sombra, atordoado, como um homem que deu uma queda. Era preciso aturar ainda até ao fim aquella farça ; soffrer a alegria do Queiroz, que não tinha morto ninguém, como elle, addiar a grande hora negra de remorso e pensamento, até descançar o espirito no conselho de uma resolução salvadora.
Mas era ainda e sempre o romance que continuava, um novo drama sentimental que ia captivar a sua alma de frivolo, educada fora da verdade, condemnada a encalhar na vida como um destroço temivel onde iriam topar outros naufrágios.
A desventura da morta havia de a vingar na felicidade do filho -- meditava ; e atravez de todas as leis abomináveis que escorraçam os intrusos, ia amparal-o, elevaro, encaminharo ternamente até á justiça. Tudo se passaria como nos romances, sem difficuldades, sem sacrifícios, sem esforço ; elle julgando-se invulnerável a todos os desastres, reparando, como nos livros, o mal do capitulo precedente no capitulo seguinte. Mandaria construir um jazigo para Anna, de mármore, onde uma columna quebi^ada diria o seu grande sonho desfeito. A creança teria a sua institutrice ingleza, os seus fatos azues de marujo ; e ás tardes, havia de o levar a passear sob os arvoredos da Estrella, a vêr os cysnes pretos nadar nos lagos verdes por onde se reflectem ramarias.
E já n'um começo de desafogo, mais tranquillo pelo simples encanto com que olhava essa nova vida de reparação e de peso, meditou :
-- O Queiroz tem razão : grande coisa é ser-se bom e justo ! A vida é uma coisa seria e grave !
A orchestra afinava e já prelúdios tremiam nas cordas das rebecas quando o Queiroz avançou pelo corredor, onde estalavam portas de camarotes.
-- Homem, cuidei que viesses ! Havia champagne e croquettes de gallinha. Um successo ; foi um successo ! Agradou mais do que a Flavia ! Sem comparação -- acrescentou, abatendo a mão rija sobre o hombro de Manoel, que estremeceu. -- O Netto perguntou por ti, extranhou que não fosses ao palco. Fizeste mal. Desculpa-me que te diga, mas fizeste mal.
Entraram os dois no camarote e logo o panno subiu entre o alarido que se levantava da saía escura, desde as galerias. Um bafo de luz aclarou de novo a ornamentação dos camarotes, onde as fitas das pastas oscilavam sobre a escuridão das capas, desdobradas como immensas azas de morcego.
Na orchestra vibrou o solemne coro de glorificação e até o Góes, sentado ao piano, estacava no teclado accordes fortes, com a batuta guardada no bolso do casaco, sobre o lenço em bico.
-- A melhor coisa da peça !-- segredou o Queiroz, sentando-se.
Ao fundo, n'um altar tapetado de batinas, sob um sólio guarnecido de capas, a Santa Sebenta resplandecia, rodeada de candeias de latão. Tinha na cabeça esgrouviada um monte de estopa arremedando cabeilo e descia-lhe aos hombros, como um manto de rainha, um panno vermelho, rolo, remendado com folhas de sebenta. Dormia-lhe aos pés a raposa symbolica embalsamada, e aos lados do throno dois archeiros da Universidade sustinham direitas as alabardas de papelão.
E era ainda nm coro que abria o acto, entoando a gloria da Santa ; coro de contrição em que se choravam as faltas passadas, as heresias de cinco annos. A Deusa sorria bondosamente, alçando mais o busto para o sólio heráldico, contente da sua obra -- mais cem bacharéis com que ella, na sagrada tradição, povoava as secretarias do Estado com uma prodigalidade divina.
A seus pés turibulos fumegavam e nas candeias de latão, muito tratadas a areia, luzes de azeite tremiam, vigilantes.
D'ella descera a sciencia omnipotente, que ia gerar uma nova era de civilisação e de progresso ; e o coro enrouquecia de louvores, dizendo a força universal que ella distribuía, enchendo a terra de sabedoria, armando os predestinados á conquista com a rutila couraça da sciencia, contra a qual se vinham quebrar, como no corpo invulnerável de Achilles, todas as lanças.
E emfim a Santa serenou com as mãos espalmadas a turba rumorosa, ageitou no recosto da cathedra as pregas magestaticas do manto e em voz a que a firmeza dos dogmas scientificos dera a segurança ruidosa de um bronze tangido, clamou a eterna superioridade do bacharel sobre a azemola, aconselhou apetites de Pantagruel nos banquetes lautos do orçamento, as sobrecasacas do Nunes Correia, a convivência benéfica dos ministérios, fazendo a apologia do Terreiro do Paço e de S. Bento em versos alexandrinos, sonoros, que o Netto, inspirado, compuzera na Lapa dos Esteios, ao poente.
E p Queiroz, outra vez, batendo com a mão nas costas de Manoel:
-- Hein ? Que dizes tu a isto ? Caramba ! Versos de pulso, á Junqueiro! E chega-lhes! Tosa-os!
Fora elle que lembrara a satyra, vencendo os escrúpulos do Netto, a quem, muito em segredo, estava promettido o circulo de Pinhel para a legislatura próxima.
A santa, no throno, com um solemne gesto de benção, impondo as mãos onde relusiam brilhantes de anneis, rematou affogueada :
Reluz-lhe sobre o craneo o casco de Minerva ; E ajustando á ossada o redingote usado La vae, a atropellar a sórdida caterva, Á conquista do mundo, o bacharel formado.
Palmas estalaram ainda nos camarotes. Havia vultos de pé em cima da palhinha das cadeiras, na plateia; e as capas da ornamentação bamboavam nas frizas, mal seguras pelos festões de alecrim e buxo.
Mas a voz do contra-regra dominou o ruido, gritando nos bastidores :
-- Senhor Fernando Reis, é a entrada !
Em scena houve um instante de embaraço ; a Santa, de mãos estiradas, esperava, na altitude divina ; e na orchestra suspendeu-se a arcada tremula dos violinos.
Fernando Reis avançou entre um silencio largo, ordenado por schius auctoritarios. Vinha vestido de tricana e os quadris balouçavam-lhe em cadencia, atravessando o palco atè ao throno.
O Góes desceu, com uma revolução na grenha, a batuta sobre a estante e as cordas das rebecas vibraram feridas pelos arcos.
A mulher injuriava a Sebenta, accusando o estafermo sagrado das horas de amor que lhe uoubara, negando o poder da sua sciencia, a mentira das suas promessas, gemendo o velho sonho clássico de ouro da choupana e do luar.
E emquanto a tricana desfiava em falsete o canto de saudade e amor, Manoel, de olhos postos no palco, via passar aos solavancos, preta, com uma pluma a tremular no topo, a tumba da Misericórdia, que dois cavallos trôpegos puxavam. E era o cocheiro, com a sua tricorne negra, estalando o chicote nas costellas dos cavallos, que cantava :
Adeus ás noites d'amor, Adeus ás noites de Coimbra, Adeus ao velho sabor De rosas que a vida tinha !
Fernando Reis, com um geito de cinta, saccudia os quadris, espadanando as saias nas pernas recheiadas de algodão em rama, como peitos de peru, balouçando muito nas orelhas as arrecadas de ouro. Agora, a Sebenta velava a face augusta com o manto e ainda um coro, sobraçando lyras, rolou em scena como um bando de captivos, trazendo penduradas sobre os hábitos vastas barbas de prophetas.
Vozes clamaram juntas coisas que Manoel já não ouvia ; a Sebenta descera as escadas do throno com magestade, elevando na mão erguida uma candeia ; ventos de riso varriam a sala a cada instante; e sem saber Manoel encontrou- se de pé, olhando o palco onde uma vista de Coimbra se desenrolava, illuminada por um sol de apotheose.
Dúzias de guitarras vibravam, como um enxame ensurdecedor de cigarras occultas n'um canavial; e o canto de adeus tempestuou:
Vae-se a ventura Surge a saudade, Adeus, Coimbra, Adeus, adeus.
-- Que tens tu, homem ? -- gritou o Queiroz, amparando-o.
Manoel arregalou para elle um olhar turvo de espanto, queimando as lagrimas.
-- Nada; não é nada -- não è coisa nenhuma!
E como Queiroz lhe deitasse as mãos aos hombros, com um impulsivo gesto de soccorro :
-- Não é nada. Deixa-me ; vou-me embora.
Recuaram ambos para o fundo do camorote e durante um instante, na sombra, os dois fitaram-se.
-- Que tens tu? Que tens tu ?
Então Manoel, voltando a si da perturbação immensa que o tivera quasi desmaiado, agarrando a mão de Queiroz, n'uma grande supplica :
-- Vamos d'aqui. Depois te conto. Vamos para casa.
E Queiroz abriu a porta, pegou-lhe na mão, levou-o arrastado como uma creanca.
II
Maria da Graça, que acabara de dobar a ultima meada de algodão, guardou o novello no regaço.
-- Parecia que não tinha fim !
Dentro, na sala, o velho relógio de pesos rangeu as nove e meia.
Ás oito horas, depois de tudo arrumado, viera sentar-se á varanda, entre o forte perfume das glicínias. Havia mais de uma hora que dobava, absorta, n'uma d'essas suaves preguiças extáticas das gravidas, emquanto a Joaquina, sentada no soalho, abria nas mãos as longas meadas brancas, amparadas nos pollegares.
-- Parece manhã. Até os gallos cantam! -- os seus olhos grandes procuraram o céo claro onde a lua subia ede novo desceram até ao quintal. -- Nem bolem as folhas, santo nome de Jesus !
Ao longe, gallos cantavam, no engano da madrugada precoce, e Coimbra resplandecia, toda scenographica ao luar.
Estava tão claro que se podiam colher os últimos cachos de glicínias entre a folhagem das grades ; e tão sereno que as vozes prolongavam-se, echoando, como os fumos, subindo.
Joaquina procurou com o pé na varanda uma chinella perdida, ergueu-se amparada ás mãos, saccudiu as saias engelhadas com o largo gesto de uma lavadeira sovando roupa na pedra do lavadouro.
Durante um instante, de pé, os seus olhos castanhos pousaram na face risonha de Maria da Graça ; e na preoccupação constante das mulheres pela maternidade nascente das outras, pensou alto :
-- Por este tempo ê que se queria o menino nascido ! P'ra Janeiro o frio é tanto !
Maria da Graça estremeceu e sorriu, na palpitação d'essa esperança que já o seu corpo creava. Também estava pensando n'elle. Tinha horas assim, em que ficava silenciosa, á escuta d'essa vida pequenina que desabrochava na sua carne.
-- D'aqui até lá ainda ha de correr tempo ! -- disse, com um sorriso que parecia atravessar todo esse longa praso e escutar um vagido.
Um grande clarão subiu até aos seus olhos, como se um pensamento de luz girasse no seu cérebro :
-- Faz nove mezes em Novembro. Para Dezembro é que eu espero.
Ergueu-se devagar, debruçou-se um instante na varanda.
-- Credo ! os bichos hoje não dormem !
Os frangos saltavam do poleiro um a um, subiam os três degráos de pedra do pateo, ainda intimidados pela luz verde do luar, alçando as cabeças onde os olhos redondos luziam como contas de vidro.
Maria da Graça deu uma vista de olhos ao quintal onde rumorejavam toupeiras na terra ainda húmida da rega, foi depois pousar os novellos em cima da meza, dentro á sala, emquanto a Joaquina recolhia a cadeira dava uma vassourada ás folhas seccas da varanda.
-- Você foi pela tosta, Joaquina ?
-- Fui logo depois de arrumar a cosinha. Está lá dentro.
-- Então vamos, vamos, que é preciso ter tudo prompto ! O senhor Queiroz deve estar ahi a chegar. Você sabe como elle è : gosta de ter tudo a horas.
E ella mesma foi buscar a louca ao armário, despendurar as chicaras, muito alegre.
Sobre a meza, o candieiro tinha a luz descida, limitada pelo abat-jour de papel verde onde saltavam veados. No aparador, um vaso de cravos vermelhos escoava n'um prato de barro a agua da rega; e na gaiola o pintasilgo dormia empoleirado, com a cabecita escondida nas azas.
-- Dê mais luz ao candieiro, Joaquina. A Benta bem podia servir melhor de tosta. Vem toda ralada !
-- Assim lh'o disse, senhora.
-- Vae-se a outra parte para a vez seguinte. O senhor Queiroz não gosta d'isto. Olhe para aqui : tudo rala !
Queiroz era o Deus. Maria da Graça vivia n'uma adoração permanente deante d'elle, cuidando da sua roupa e dos seus livros como de objectos de um culto sagrado, pondo uma grande alegria em serviPo com o seu corpo nos seus desejos, com os seus cuidados nos seus gostos, gosando a felicidade de poder caminhar na sua vida como n'uma estrada de rosas.
Logo de principio, ella e Joaquina se tinham alliado para o servir ; e ambas viviam no ruido da sua voz e no rumor dos seus passos como borboletas no âmbito de uma luz. Conheciam-se desde pequenas ; tinham mesmo andado na mestra juntas, separadas quando o pae de Maria da Graça morreu e a mãe vendeu os campos de Sandelgas, levando a filha para Coimbra. Essa amisade remota unia-as muito, juntando-as na mesma servidão apaixonada.
Agora, já as chávenas estavam alinhadas em cima do armário com os guardanapos muito dobrados a ferro ao lado -- dos novos, que Maria da Graça marcara com linha verm.elha nos serões de Fevereiro.
-- Olhe, ó Joaquina : o senhor Queiroz não jantou nada com a pressa de sahir. Sempre lhe vá preparando uns ovos.
Ainda esticou a toalha, foi descer a luz do candieiro, que fumegava. Passou depois ao quarto para abrir a cama, guardar os novellos no gavetão da commoda.
Era um quarto pequenino de casa velha, com o tecto abaulado de madeira, muito primitivo, pintado com uma mão branca de tinta ; e só a cama enchia a parede do fundo, com a sua grade de bilros na cabeceira.
Queiroz tinha-a encontrado n'um celleiro, na quinta do Pizão ; e já um francez lhe offerecera por ella vinte libras. Manoel avaliara-a em cem mil reis e dissera que era uma jóia. Jóia ou não, atravancava toda a parede, de pé nas suas quatro columnas torcidas, solidas como traves torneadas, espiralando até ao tecto o suporte do baldaquino, que não existia. A cabeceira parecia o frontal de um órgão, na sua confusão de bilros estendendo um meio circulo de leque; e tinha o ar, assim forte e larga, tendo visto despir anquinhas e calções de veludo, de prometter assistir ainda a todos os amores de uma dynastia fecunda, á morte de vinte chefes, ao nascer de vinte herdeiros.
Perto da janella de peito ficava o lavatório com louça branca de Sacavém, e a commoda de pau santo, muito encerada, cheirava a alfazema, recuada a um canto de sombra, entre duas cadeiras de palhinha dourada, que tinham sabido ao Queiroz n'uma kermesse dos bombeiros voluntários.
Maria da Graça pendurara no quarto do materiahsta, sobre a commoda, uma imagem coiorida da Senhora da Conceição, rodeada de anjos, calcando com o pé descalço a cabeça chata da serpente.
Queiroz fechara os olhos sobre a crença de Maria da Graça e viviam ambos em paz com a Senhora.
Tinham ainda outro quarto com os armários para a roupa e o gabinete de Queiroz, onde só elle entrava á procura de livros, estando ainda por arranjar, todo atravancado de malas e bahus.
Maria da Graça abriu a janella sobre a noite clara e calma, para arejar o quarto; dobrou largamente a coberta e o lençol da cama, bateu os travesseiros. Foi depois á gaveta da coramoda para guardar os novellcs e esqueceu-se a dobrar e desdobrar a roupa, entretida a contar peças, na vaidade de tanto linho fresco que passava nas suas mãosinhas gordas de freira.
Fora sempre a sua doce mania -- a roupa branca e tinha agora muita, que fizera no inverno, de umas teias de linho trazidas pelo Queiroz do Douro, no Natal. Nas dobras de cada peça havia folhas seccas de cravo e de alfazema ; tudo estava acamado, muito em ordem, com daas ligas vermelhas em cima de um monte de camisas. Se a roupa diz a dona, ella devia ter um forte corpo branco e fresco, de carnes solidas como o tecido d'aquelle linho grosso.
Passava-lhe as mãos, remexia, desdobrava lentamente uma camisa, abria a larga roda de uma saia, alisava com a unha as rendas grossas, enlevada.
Mas a porta da rua bateu e Maria da Graça fechou depressa a gaveta, precipitou-se para o espelho a pôr um pouco de ordem nos cabellos, prender dois ganchos nas tranças, muito afogueada.
Queiroz, que abrira a porta do escriptorio, chamou:
-- Ó Maria da Graça ! Chegas aqui ?
Ella foi logo, atarantada, a estender já a bocca para o beijo.
-- Deixa-me um bocado com o Manoel na sala. Temos que f aliar. E dize á Joaquina que me arranje alguma coisa, que estou com fome.
Mal a olhara, com a mão no fecho da porta, fallando do corredor.
Ella ainda perguntou, sem pinta de sangue :
-- É desgosto, António?
Oueiroz disse :
-- Não ; vae para o quarto.
E bateu a porta com estrondo.
Manoel seguiu atraz d'elle pelo corredor.
Fora impossivel arrancar-lhe uma palavra pelo caminho, obstinado no seu silencio, debatendo-se dentro do conílicto sentimental em que a morte de Anua o envolvera ; e ainda agora, a salvação ia submergindo na desorientação crescente do seu espirito, correndo a um perigo maior, no recurso a um conselho que o ia expulsar para sempre do refugio de mais um egoísmo possível, de mais uma deshumanidade inevitável Só lhe restava esquecer a morta, abandonar a creança que não tardaria em morrer, sabido que de cem engeitados apenas algum escapa por acaso á grande razzia devastadora da morte, que vem sempre varrer esses destroços de vencidos dos campos de batalha.
Mas o vacillante obstinava-se em recorrer ao amigo, incapaz de pensar e resolver sosinho, sabendo que a justiça não estava no caminho do seu interesse e teimando, como um fascinado, em ir ao deante da justiça. Era no fundo talvez uma desculpa e um amparo que procurava, demasiado novo ainda para ousar corajosamente a consumação natural da obra cruel a que o empurrava como a um destino o interesse da sua vida e o preconceito da sua classe.
Riscado o Queiroz da sua vida, Manoel teria sepultado Anna com um -- coitada ! -- e pensado no filho com um encolher de hombros, despejando-o mais tarde para um asylo, se teimasse em viver, para uma gaveta de jazigo, se morresse. E todo o pavoroso drama de uma maternidade dilacerada e de uma vida espedaçada recuaria para a sombra, sem um contorno entrevisto.
Mas vinha exactamente cahir como imi desvairado na teia da verdade, atormentado pela ideia da reparação; e quando o Queiroz, depois de fecliar cautelosamente a porta, foi para elle, ancioso, Manoel deixou-se cahir n'uma cadeira, dizendo :
-- A Anna morreu !
E tinha o ar de uma calamidade universal que elle annunciava n'essa phrase simples : -- A Anna morreu ! Queiroz estacou de espanto.
-- A Anna?
-- Morreu hontem ; morreu sosinha ! Está aqui a carta ...
E estendia-a com um gesto de theatro. Queiroz veio até elle, grave e triste; poz-lhe a mão no hombro.
-- Meu pobre Manoel ! E tu a aturares-me, calado, sem me mandares para o inferno ! Não chores. Que se lhe ha de fazer?
-- Deixa-me : até me faz bem chorar ! Pareço-te uma creança, uma mulher?
Mas Queiroz ficava agora silencioso, meditando, sem comprehender essa morte fulminante, aquelle choro descompassado de afflicto ; e Manoel teve de contar tudo em phrases rápidas, agudas como laminas : os quatro mezes de mentira, o desenlace feroz do romance d'amor ; a mãe, privada do filho, extingindo-se como uma assassinada a quem lesaram um dos grandes órgãos da vida ; a creança desviada para longe, não sabia ao certo, morrendo nos tratos das mães de empréstimo.
E era tão intenso o hálito de crueldade que toda a historia exhalava, essa cumplicidade da mãe na morte da outra mãe, a furiosa lucta de extermínio de onde uma desgraçada sahia morta, que Queiroz estremeceu, horrorisado, e Manoel teve o grande grito expontâneo de defeza em que todo o seu caracter fraco gemeu como um sobrado débil sob passadas rijas :
-- Toda a gente faz isso, António ! Todos o fazem ! Não ha ninguém que o não faça ! Juro-te : vê-se isso todos os dias ! É medonho, mas não voltes a cara, não me accuses !
Queiroz balouçava a cabeça, deixando-o fallar, atropelar a sua defeza de fraco, que um remorso apoquenta e uma sentimentalidade dilacera.
Que importavam mais duas vidas esmagadas, perdidas; mais um pouco de miséria e umas poucas de lagrimas, se a humanidade continuaria indiíferente a sua marcha incessante e o clamor d'aquelle arrependido não faria apressar um só segundo a grande obra de conversão ede reparação? E em face da avassalante obra destruidora, que ameaçava a grande obra reproductora, Queirç^ ficava perplexo e perturbado.
Grande elevação moral, a de uma sociedade que tornava possiveis esses temiveis massacres de mães e a todas as horas presenceava o desastre da maternidade escabujante, como uma grande arvore varejada, cujos fructos se perdem, esmigalhados no chão ! Todos os dias uma demeafia sanguinosa de Herodes percorria a terra e metade da ceara da vida era devastada com uma exasperação colérica; e os ventres das mães iam-se tornando os sinistros povoadores dos cemitérios.
De pê, em frente á meza onde Maria da Graça tinha alinhado com tanto geitoas chicaras do chá, Queiroz pensava no querido filho que ella estava alimentando com o seu sangue para um destino melhor do que o outro. E lembrava-se de Anua, muito alegre, já um pouco pesada da gravidez, correndo no Choupal, n'essas alegrias de toda a mulher de cidade por todas as sombras de arvore. Estremecia-o ainda a lembrança do baptisado sombrio na egreja gelada ; o lance dramático da separação: aquelle abraço sem fim, a grita onde uivavam já presentimentos fúnebres.
Mas era preciso consolar Manoel, cumprir o seu dever doloroso de amigo; e Queiroz, quasi á força, ergueu-o da cadeira onde elle chorava sempre, succumbido ; trouxe-o arrastado por um braço até á varanda.
-- Para o que ella fazia cá no mundo foi melhor que morresse, Manoel ! Agora ao menos não padece e não pensa!
Manoel amparou-se ás grades da varanda, esteve longamente a enxugar lagrimas.
-- É toda a minha vida morta com essa morte, António ! Bem sei que fui cruel, que me portei como um egoista ! Ah ! eu bem o sei ! E é d'essa certeza que eu soffro, d'essa certeza que nada pode apagar ! Se ella vivesse, António!
-- Se ella vivesse, Manoel ?
-- Tinha o teu exemplo a ensinar-me ...
Queiroz abanou a cabeça, esfolhou nervosamente um cacho de glicínias.
-- Ainda bem que ella morreu! A culpa não vem de ti para a minha descrença. No teu logar eu teria sido talvez um fraco como tu. O meu exemplo ! Mas eu ganho com isto a felicidade e tu arriscavas a tua. O que eu faço por calculo tu farias por heroísmo. Não, meu pobre Manoel, não tens razão ! Não é assim que se transforma o mundo. Socega, levanta esse espirito. O teu crime resulta da cumplicidade permanente do teu meio de acção. Muito já fazes em chorar a falta irremediável. Outros não choram ! O mais culpado não foste tu, que a encontraste já meia perdida. O crime é do outro, que a deshonrou e a botou fora como um panno sujo. Estás a pagar o crime estúpido do outro, que sem as tuas razões a estragou e a abandonou. Esse animal deve ter escolhido outra a estas horas com a mesma inconsciência bruta com que rejeitara esta. A todo o momento a obra de inutilisação prosegue. N'este instante outras mil mulheres estão sendo violentadas sem escrúpulo pela estupidez e animalidade do homem ; e já não basta a legião das sacrificadas para oppòr uma barreira á contaminação das virtuosas. O homem quer prostituir toda a terra ! Poderás explicar porque esse bruto escolheu uma mulher para mãe dos seus filhos e preparou outra para ser mãe do teu ? Mas tudo isto, meu pobre Manoel, não te consola, eu bem sei ; e a tua consciência padece, tomando sobre si a responsabilidade d'esse infortúnio e d'essa morte. Ah! meu pobre Manoel, a vida tem horas bem tristes, momentos bem execráveis ; e não é com peralvillios nem com gente frívola que se ha de acabar com esta abominação que ameaça corromper a humanidade inteira ...
-- Que podia eu fazer, António, se todos eram contra mim ? De que valia juntar a minha infelicidade á infelicidade d'ella? Quando d'aqui fui em Março -- juro-te ! -- só levava ideias de compaixão e amor. Antes não tivesse ido ! Fui encontrara muito miserável e muito doente, explorada por toda a rua, e a creança perdida, quasi a cahir á terra d'aquelles braços enfermos que já a não sustinham. Tive medo de alimentar por mais tempo essa desgraça. Minha mãe foi fallar-lhe. Com quem querias tu que eu me aconselhasse e abrisse? E ambos julgamos salval-a eella morreu...
Queiroz ia adivinhando o resto que elle não dizia : o enredo moral d'esse obscuro drama, toda a tragedia subterrânea que fora minando a vida da mãe humilde ; tudo o que fora despresado n'essa imaginosa obra de salvação, os dois tendo olhado apenas as apparencias, tendo visto miséria, doença e infortúnio onde só um grande drama moral manejava os grandes lances commoventes. E era talvez um acto de caridade que a mãe de Manoel julgava ter obrado, comprando com umas libras a embaraçante lamuria da outra mãe, dispondo do seu coração e do seu filho, sem ter em conta o flagello da sua alma em martyrio ; pensando, como todas as ricas, que o mal dos pobres se resume n'uma falta de pão e a esmola pode curar todas as feridas dos humildes.
As suas theorias só elle as podia pôr em pratica, extraviado do preconceito da casta, subtrahido á mentira social, sendo um plebeu, filho da terra, sem responsabilidades convencionaes de nome, vivendo desafogado e livre. Que importava que as suas theorias fossem justas, se interesses enormes andavam colligados contra ellas; se fora preciso demolir primeiramente todo o edifício social assente em bases falsas, construir novas leis, empurrar a consciência humana para novos caminhos, revolver bem fundo o terreno para só depois lhe semear esse gérmen do bem?
Tudo isso , talvez um sonho irreal de utopista -- pensava -- esse triumpho final da natureza victoriosa, essa religiosíssima esperança no bem immanente, condensando todas as forças esparsas da matéria no epilogo deslumbrante de um reinado de Paz, de Justiça e de Verdade. Sonho que para ser convertido em realidade carecia apenas de que todos o sonhassem! Ao fundo de todo o avanço moral da humanidade, o eterno sonho vivia, como uma via-lactea sulcando ura invernoso cêo de ventania; e atravez todas as collisões, todos os desvarios, todos os tumultos, a mesma ténue fieira de sonho persistia, impulsionando a espécie para a perfeição ainda distante.
E elle agora fallava, arrastado por essa força de convicção, na claridade theatral da noite azul, clamando a sua fé em dias melhores ; e a intransigência antiga renascia no seu espirito batalhador, reflorescia na sua alma em revolta. Não ; elle não desculpava a pretendida incapacidade universal para a virtude, pois homens a tinham aclamado e a tinham professado e ella era uma aspiração que acompanhava desde a sombra da historia o grande rebanho humano, como um inextinguivel facho.
Tinha arrastado cadeiras para a varanda e era elle que apregoava a Manoel a obra de reparação, distrahido quasi da parte emocional do drama que os juntava alli, na noite tépida, pelas onze horas, entre o perfume das glycinias. E Manoel disse o confuso plano que estenderia pela vida, no fiel cumprimento do voto da morta, salvando o filho do desastre^ elevando-o atè a si como o vivo perdão da falta comettida.
Mas Queiroz outra vez recahiu no seu silencio, reflectindo, escutando as promessas de Manoel, palpando a fantasia dos seus cálculos, convencendo-se de que todo o seu grande plano assentava em areia movediça, faltando-lhe a consistência e a lógica de toda a resolução inabalável, de todo o projecto que se vae cumprir. Aonde esperava encontrar um homem deparava subitamente com uma creança. Offereceu-lhe mesmo um cigarro, que Manoel acceitou, sorrindo quasi, como um assassino elegante, esquecido já da defunta, conduzindo o filho atravez um romance, exaltando a sua paternidade platónica, o seu amor problemático por esse filho de quem se não lembrava na véspera. Na sua voz arrastava a complicada imaginativa dos palavrosos, que se atordoam com phrases e gastam a energia em projectos, incapazes em frente á acção, receiosos deante do minimo esforço. Talvez se exilasse -- dizia -- consagrando a sua vida inteira ao filho; e de novo fallou no sepulchro de mármore em que o corpo de Anna descançaria melhor sob um symbolo pathetico de desgraça.
-- Fantasias; tudo isso são fantasias !-- gritou Queiroz, erguendo-se e arremessando fora o cigarro com um violento gesto em que parecia arremessar também todos esses projectos pueris -- O teu filho ? Mas è precisa uma lucta de todo o instante para o defenderes, desgraçado ! Tens uma sociedade inteira colligada contra elle e contra ti, que o protejes ! Essa sociedade desculpa-te o tel-o feito mas não te perdoará o tel-o salvo. Será preciso bateres-te a cada instante contra a familia, contra os amigos, contra os conhecidos, contra os indifferentes, contra os inimigos ! Um filho illegitimo é só quando o acolhemos que sentimos o crime de o ter concebido ! Onde começa a execução do dever principia o padecimento da falta. Folheia os códigos, vê as leis:-- tudo lhe é hostil, todos o escorraçam como um intruso ! Que o abandones ? Não : seria um attentado ! Mas que te prepares a soffrer por elle para evitar que elle soffra por ti. Um filho illegitimo que se acolhe é uma penitencia que se abraça. Sacrifica-te : é o teu encargo. Faze d'elle um homem : é o teu dever. O teu crime não morreu com a morta : subsistirá no teu filho. Já desperdiçaste muito tempo em fantasias desastrosas. Acorda: sê homem! É preciso ser homem, com os demónios! Olhar a vida como uma coisa séria e grave. Afinal, è preciso que te convenças: n'uma sociedade mais elevada, o teu crime seria um crime de forca !
-- António !
-- Mas tu és apenas uma grande creança e um grande irresponsável !
Manoel estremecia, escutando o vozeirão colérico de Queiroz, e por duas vezes lhe segurou o braço para o calar, para o deter ; e uma irritação ia crescendo sobre elle, a principio vaga e inconsciente, sentiudo-o quasi inimigo, pisando a sua dolorosa fraqueza, descobrindo a sua mais intima vergonha, sem indulgência para os seus defeitos e sem respeito pela sua dôr. E Queiroz continuava, com grandes passadas na varanda, batendo no peito:
-- Não te guies pelo que te digo. Faze obra tua. Aconselhar-te, não ! Eu sou um homem á parte, vendo as coisas atravez theorias incapazes. Não te sirvo: sou um plebeu e um theorico. Talvez o melhor, no teu caso, fosse deixar apodrecer a creança no monturo. Fazer-lhe depois um enterro á capucha e ala ! para a vida sem estorvos, para a vida sem embaraços ! Olha, o Chico Motta tem um nos orphãos ; o Arrochela tem outro nas Monicas e o Amaral, «o vesgo», mandou deitar o d'elle n'um portal !
Manoel empallideceu sob a affronta, respondeu de vagar, com a vista pousada ao longe n'uma grande casa illuminada :
-- Tens razão ! O meu escrúpulo deve ser despresivel. A vida e a felicidade dos outros não me pertencem. Em todo o caso eu não podia casar com a rapariga; concordas? E não posso empurrar o filho d'ella para dentro da casa de meus pães ; has de convir.
-- Por certo. É deixal-o agora morrer na mãe de aluguel, que diabo !
-- E tu, no meu logar, farias assim ?
-- No teu logar? Não, no teu logar, eu não faria assim. Mas eu sou um rústico desdobrado n'um theorico, já t'o disse, vendo as coisas como ellas deviam ser e não como ellas são. O meu exemplo não te serve e eu devo parecer-te ridículo e burlesco como um charlatão. O peor é que ambos estamos afastados d'esse drama e não o vivemos. Falíamos d'elle como de uma coisa irreal que não aconteceu ; essa morte passou a ser uma local de gazeta que ambos discutimos. Queres mais um cigarro? Não?... Eu fumo. -- Nunca viste no theatro fumarem-se tranquillamente cigarros quando se debate em scena a grande situação dramática? Ás vezes, nos arremedos do theatro tratam-se mais a serio as coisas da vida do que na própria vida. Podemos agora ir tomar chá, se queres ...
Fallava nervosamente, passeiando na varanda, agitado, destroçando a folhagem da glicínia.
Horas cabiam das torres no grande silencio da noite clara onde a lua subia.
Manoel caminhou para elle, assustado por essa hostilidade em que viera cahir, na procura de uma consolação e de um conselho.
-- António, ouve...
-- Ah! não, meu caro. Deixemos isto como um assumpto gasto. De tanto lhe martellar já parece ridículo. Morreu a costureira ? Grande mal ! Mas que nos púnhamos agora por causa de uma costureira a remoer princípios de moral, ô estúpido. Tiraste-lhe o filho? Ha mães que os vão deitar á roda ou nas estradas. Caramba! Ê preciso vêr as coisas como ellas são. Decididamente tu não podias casar com a costureira. Reconsiderando, até deves ter a consciência clara como um espelho ! Lava as mãos, dá uma volta ao pensamento e acabou-se !
-- Não sentes o que dizes, António !
-- E de que te valia dizer o que pensava? Por certo que eu não digo o que penso ! Por certo que todos esses peralvilhos que passam como tu a mocidade a fazer filhos anonymos e a estragar mulheres, mereciam talvez cadeia como ladrões ou forca como assassinos. E afinal, de que principio se partiu para julgar um crime o roubo de um esfomeado e para se julgar uma aventura galante o extermínio de uma maternidade? Tudo isto exalta e confunde! Quando se mergulham as mãos na justiça dos homens traz-se poeira apenas entre os dedos. Mas isto são palavras e não são palavras vãs que é preciso dizer-te. Para a tua falta, como para as doenpas desesperadas, não ha remédios. Procura. Não encontras ! E quando tu gritas que não podes receber o teu filho na casa de teus pães clamas justamente o crime de lhe ter dado a vida n'essas condições mortaes. Sempre que o filho seja uma vergonha ha crime em concebefo. O filho deve ser uma alegria. Não; teus pães não o podem receber. Na barbaridade do seu preconceito elles defendem ainda o grande principio da justiça. Não o tivesses feito ! Não o devias ter feito ! E o teu embaraço, o teu tormento, vêem d'essa causa invisível para ti, clara para mim, que a vejo desenhar-se em todo o conflicto em que te estorces. Um filho illegitimo, parece que não è nada, não è verdade ? E comtudo, vê lá que obra de destruição, essa obra de vida ! E quando o teu filho te faz soffrer tão exasperadamente, eu estou á espera do meu como de um dia de festa ! E tudo porque tu atropellaste a lei natural, foste fazer um filho a uma mulher que não podia ser a tua, atiraste para a chafurda uma vida que não podias socialmente proteger. Agora é pagar a falta, pagaPa amargamente ! Não accuses o preconceito da tua classe. Accusa-te só a ti, que conhecendo-o, o desafiaste ! Sobretudo, não accuses tua mãe, que foi mãe até no seu crime, n'esse crime a que tu a levaste, de que só tu és o criminoso, ella sendo apenas a executora. Eu adivinho a confusão em que o teu espirito tropeça, sem encontrar uma solução para esse terrível problema moral. Mas como queres tu remediar esse grande erro sem remédio, quando até a justiça dos homens encontrou apenas o castigo como consequência lógica do crime? Para qualquer lado que te vires só encontrarás á tua espera o soífrimento. Todas as faltas se pagam, todos os attentados se punem. Essa pobre rapariga mereceu as tuas lagrimas. A sua falta já a expiou, morrendo. Chegou a tua vez de expiar a tua. Essa creança è preciso ser salva. Tu vaes salval-a, Manoel !
E Queiroz chegou-se a elle, dominando-o com a sua alta estatura de gigante, pondo-lhe as mãos nos hombros.
-- Manoel, eu podia dizer-te para me confiares o teu filho ! A Maria da Graça e eu tomaríamos conta d'elle. Mas não te direi que m'o tragas ! Confio-to a ti ! És tu que o vaes salvar, ouviste? É preciso que o ames, que o defendas; é preciso que soffras! Tu vaes ouvil-o grasinar, vaes vêr o seu olharzito azul posto em ti, vaes amal-o com todo o teu sangue, ouves? arrancal-o das mãos vendidas que o maltratam, amal-o com toda a alma, Manoel ! Essa coisa pequenina pertence-te, é o teu filho ! E um filho ama-se ! Por um filho vive-se ; por um filho morre-se !
Elle chorava, balouçando a cabeça, atemorisado pela obra difficil de reparação que o amigo pregava, empurrando-o ao perigo, inflevixel, como o executor de uma justiça implacável.
N'esse instante ainda, Queiroz amava-o como um discípulo, julgando tel-o commovido e tel-o ganho, sendo a força que amparava a sua fraqueza, querendo-lhe bem por assim ter vindo buscar soccorro ao seu enérgico espirito de justiça, elle sendo o evangelisador e o mestre. Mas Manoel tremeu nos seus braços fortes, cheio de medo, como uma creança aterrada que se sente levar por uma onda. E Queiroz percebeu que elle o repudiava, sendo incapaz de cumprir o destino de penitencia que lhe traçara, demasiado egoista para se arriscar á obra generosa, demasiado cobarde para acceitar essa pesada consciência do crime que elle atirara á sua alma fraca.
E um desamor irreprimível prendeu-lhe então as mãos redemptoras com que o ia salvar, premeditando soccorrel-o e libertal-o depois da grande prova necessária a que o sujeitava primeiro, certo de que elle teria ao fim de tudo de appellar ainda para a sua amisade; e reservando-lhe para então a surpresa de o encontrar prompto a receber-lhe o filho e a salvar-lh'o.
Mudamente, com uma tristeza amarga, desuniu-o do abraço era que o prendera. Então, o choro de Manoel recrudesceu ; e não se sabia se era o socego perdido que elle chorava, se a morta que elle gemia.
Queiroz foi até á varanda, sombrio, fatigado já da prodigalidade de tanta dôr inútil onde a ultima energia d'aquelie ser fraco se afundava, comprehendendo vagamente que tanta lagrima gasta o ia conduzir talvez á absolvição intima da falta, julgando-a remida com esses choros duvidosamente contrictos.
Pensou em Maria da Graça, que devia ouvir lá dentro aquelle choro de padecente, até quem deviam ter chegado os grandes brados da sua altercação ; e o pensar que ella soffreria, perturbada por esses soluços e esses gritos, inquietou-o. Maria da Graça era sagrada ; dentro d'ella, fazendo parte provisória do seu corpo, padecendo com ella, moldando a sua vida futura pela sua vida presente, vivia o seu filho. Sabia demasiado o quanto basta ás vezes de inquietação e de angustia para attingir de morte essa obra delicada de vida ; e que o mais leve abalo ás vezes a contundia como o mais leve sopro apaga uma luz timida. A sua inquietação foi propagand* como um incêndio ; já toda a sua carne estremecia pelo filho. Durante um instante esteve parado, quebrando nervosamente á mão ramos da trepadeira ; e como Manoel teimasse em chorar, Queiroz, n'um tom irrascivel, disse :
-- Vè lá se acabas com isso ! Já é tempo de ser homem, com os demónios !
E logo arrependido da sua brutalidade, vergando-se sobre elle:
-- É que a Maria da Graça está gravida ... Ella ouve os teus soluços, aftlige-se, faz-lhe mal, pode ser muito grave ! Ha de querer saber depois porque choraste e eu tenho que mentir para não lhe causar desgostos. Comprehendes ? É por isso. As duas eram amigas. É preciso que ella ignore tudo, que só saiba mais tarde. Podia fazer-lhe mal ... É por causa da creança, tu bem vês ...
-- Sei, sei, -- disse Manoel, erguendo-se. -- Vou sahir, vou-me embora. Tens razão.
Fez-se entre os dois um grande silencio de desunião e animosidade.
Queiroz, de pè, olhava uma borboleta branca voar estonteada em volta da chaminé do candieiro.
Manoel estendeu-lhe a mão, perguntou devagar, arremessando-lhe em desafio a coragem da resolução súbita :
-- Queres alguma coisa para Lisboa ?
Queiroz olhou-o nos olhos, fixamente, sem já esperar sequer da sua vaidade ferida aquella resolução enérgica.
-- Quero apenas que vás !
Abriu-lhe a porta, viu-o atravessar o corredor, de repente sereno como um desafrontado.
Quando a cancella bateu, Queiroz ergueu desdenhosamente os hombros, murmurou com amargura e despreso : -- janota!
Atirou fora o cigarro, veio debruçar-se á varanda, meditando n'essa criminosa aventura de amor onde uma pobre mulher fora crucificada. Só o grande culto da Verdade poderia fazer reconquistar á mulher o seu logar de eleita. Deixada de considerar como a sagrada productora de vida -- o vaso sagrado onde se não toca impunemente sem que a vida jorre -- a obra do homem tendia a subtrahir-llie o seu poder real de creacão e tel'a como um prazer, fazendo da salvadora a corruptora. E comtudo, ella dispunlia da mais poderosa e da mais doce força do universo ; e como era grande e elevado o principio fundamental do amor, que a glorificava na terra, juntando-a ao homem pelo prazer, na alliança confundível da mesma obra de vida e de reproducção, elevando-os até á responsabilidade, enlaçando-os no grande drama da vida até á realeza castíssima do patriarchado, á gloria de fundadores de dysnatia, vendo a sua velhice reverdecer na mocidade da prole e o seu sangue ir-se derramando na terra, n'uma perpetua floração de energia e de vida ! Justamente alli residia o principio da felicidade humana, n'esse austero acto de amor tão rebaixado pela espécie, e só eram verdadeiramente grandes os povos onde o respeito pela mulher subsistia e onde uma menor degradação do acto de amor preparava uma maior elevação na obra de vida.
Um rumor de saias atravessou a sala. Queiroz voltou-se, abriu os braços a Maria da Graça, acolheu-a no peito, pousou-lhe um profundo beijo na testa.
Que importava a mentira de uma religião que a fulminava de corrupta, que importavam os anathemas dos santos, se ella era ainda e sempre a eterna mãe do homem, a sagrada obreira da Vida, a universal semeadora da Paz, do Amor e da Concórdia ?
III
Quando a Catharina soube a noticia da morte, ficou afflicta. Não fosse a pequena armar algum enredo, intrigara nas Janellas Verdes, descobrindo tudo !
Nem acabou de tomar o café; foi logo vestir-se, muito nervosa ; e resou um Padre-Nosso ao Senhor dos Passos da Graça, por intenção da defunta.
Estava servida se o «furão» tinha ido na frente tapar-lhe a cova ! E emquanto amarrava as fitas dos sapatos, com o pé em cima da cadeira e as saias colhidas no joelho, pensava que fora precipitada em abalar assim com o pequeno, de má cara, em termos até da «choramingas» ter um ataque e dar a alma com o desgosto. Mas se não era senhora do génio ! Em «aquillo» lhe trepando á cabeça, não via nada. Semelhante enguiço!
Esticou as meias sobre as pernas grossas, de carnes molles, puchou as ligas, bateu com os tacões no soalho para assentar o pé.
Pensara a principio em levar a creança -- sempre metia mais effeito ! -- mas o pequeno, com a dentição, estava mesmo na espinha; fazia lastima olhar para elle ! Podiam para ahi julgar que eram maus tratos ! Nada; antes sósinha. Ia mais segura. Faltava mais aquella arrelia ! E logo com a D. Maria Domingues, que dava credito a tudo ! Estava servida, se a pequena lá fora encher-lhe os ouvidos !
Abotoou depressa o casaco, enfiou uma saia, preta, de fazenda; e mais uma vez leu o bilhete postal de Rosa.
Escripto n'uma lettra miudinha, com duas nodoas de tinta a um canto, dizia:
Senhora Catharina
Escrevo-lhe estas linhas para lhe dar parte que a senhora Anninhas morreu faz hoje dois dias e é para seu governo que a faço sabedora. Ao senhor Manoel escusa de mandar dizer que já lhe escrevi. Com um beijo para o menino, sou esta sua creada
Rosa da Conceição.
-- Cheira-me a esturro ! -- pensou alto, guardando o bilhete no bolso da saia. -- Se me arranjo bem d'esta, dou um vintém ás almas !
A creança, no seu quartinho ao lado, desatou de repente a chorar.
-- Já cá fazia falta a musica ! -- resmungou.
E foi pôr o chapéo ao espelho, surda ao choro afflitivo da creança.
-- A rapariga não acaba de vir ! Parece que se lhe prendem as saias ás portas, o demónio !
Tinha agora em casa uma sobrinha para os arranjos, tendo despedido a creada, sob pretexto de que a roubava nas compras. A verdade é que uma irmã de Vendas Novas escrevera a pedir-lhe para tomar conta da filha, que ia assim praticando no serviço, e ella mandara logo vir a pequena: sempre eram dois mil reis que mettia no bolso ! Não estávamos em tempo de desperdícios !
Mas a pequena era uma atada, e ella desembaraçava-a aos empurrões, esmagando-a de trabalho, como uma escrava. Havia de pagar a comida ! Empurrava-lhe a carga da creança, enojada d'aquelle peso de andar a mudar fraldas todo o dia ; e já não se erguia de noite : puzera a cama da sobrinha ao pè do berço -- que se arranjasse ! A pequena vingava-se na creança da escravidão de moura em que vivia ; e tinha perto d'ella ímpetos de cólera inquisidora, martyrisando-a como um insecto, com essa maldade da infância, que se ataca aos animalejos e se diverte a esmagar formigas e desazar as moscas.
Já inventara um meio de fazer calar a creança : era apertar-lhe um braço ou incidir sobre ella o reflexo fulgurante de um espelho batido de sol. E ia assim aleijando-a e cegando-a. Tinha fantasias de barbara : de uma vez dera-lhe vinho ; de outra vez puzera-lhe uma gallinha no berço. Bebia-lhe metade do leite, deixava-lhe a roupa alagada, lavava-a em agua fria. E o enfesadinho, que nunca puzera tento era ninguém, reconhecia-a, a ella. O seu olliar estrabico seguia-a com pavor, pela associação das suas dores com a sua presença.
Gatharina mandara-a á mercearia por um arrátel de assucar e a pequena devia ter parado a vêr as bycicletas rodar nas avenidas do Campo. Sahira havia qaasi meia hora e não voltara.
Um americano passou, vasio, quando já Catharina estava prompta, de manteiete e chapèo. Que remédio, senão esperar pelo outro? Não havia de deixara casa aberta, ao deus-dará ! E aquella desavergonhada sem vir !
A creança, cançada de chorar, gemia. Pousavam-lhe na cara as moscas; e ella ficava quieta, sem usar das mãos perras, estendendo um bico de resignação, saccudindo apenas com as pálpebras alguma que lhe pousava nos olhos. O seu cabello doirado tinha crescido muito, enquadrando-lhe a face magra, de rachitico, de caracoes de oiro ; e no seu abandono, entre a roupa suja do berço, com um pescoço de passarito depennado, ficava-lhe ainda essa realeza que compunha misericordiosamente a sua fealdade. Para esse meio morto, os cabellos eram como as flores que os ricos espalham na tumba dos mortos para esconder a decrepitude repulsiva da matéria ; e o pobresinho, na sua miséria, ficava ainda o fructo idylico do romance de amor, com aquelle resplendor de baby creado n'uma nursery. .
Catharina foi vel-o da porta, com um olhar onde morava a curiosidade fria com que nos laboratórios se repara na agonia de um animal inoculado.
Chamava-lhe agora o «mijão», pelo habito de pôr alcunhas a todos que a roçavam de perto ; e emquanto Manoel, em Coimbra, architectava o sonho luxuoso de scepticismo e anotava as Mensonges de Bourget, o filho era o «mijão» e ia arrastando a vida para o futuro de uma cadeira de rodas ou de uma cella de hospício. Com nove mezes, não se mechia ainda, com todos os membros paralysados, um ventre enorme, os olhos estrabicos, remoendo dolorosamente as gengivas inflammadas por uma primeira dentição tardia.
Catharina espanou-lhe as moscas com um panno, deu um balanço ao berço com o pè, para o calar ; e foi outra vez á porta vêr se a pequena chegava.
Fazia já calor ás onze horas ; nuvens de poeira erguiam-se e rolavam nas avenidas ermas onde as arvores abatiam sombra. Saloias passavam, embaladas pelo chouto dos burricos ; e duas zorras de mudança, puxadas a machos, saccudiam, com o tremor das rodas, trastes empilhados, caminho do Lumiar.
De longe, ao dar com a tia, a pequena encolheu-se, medrosa. Tinha estado a vêr uma briga de gallos, esquecida do tempo, magnetisada pela lucta das duas aves, de cabeças ensanguentadas, que esgaçavam as cristas, coléricas. A vinda de uma gallinha puzera termo á briga. Só depois de muitos esforços inúteis para os juntar outra vez, a pequena se lembrou de ir comprar o assucar ; e vinha a correr, com receio do safanão ou dos tabefes.
Mas um americano surgiu ao longe e a Catharina, com medo de o perder, sahiu para a rua.
-- Deixa que não m'as perdes, mafarrico ! Olha se dás o leite á creanca e o remédio.
A pequena ficou parada a distancia, receosa, de olhos postos na tia, cora o cartucho de assucar no avental.
-- Sendo duas horas, se eu não estiver, põe a sopa ao lume e o arroz. Tem cuidado com o esturro. -- Voltou-se ainda no meio da rua. -- Põe-te agora a brincar, marota, que te deixo as orelhas ao dependuro !
Trepou para o americano, arranjou-se ao seu canto, disse ao conductor : pode seguir ! -- e logo se recolheu a meditar, compondo a historia, assentando o seu plano de lucta, no caso da pequena ter f a liado.
Grande coisa é uma pessoa estar prevenida contra tudo -- pensava -- e saber desmanchar enredos não é p'ra todos. O final do bilhete, o escusa de mandar dizer ao senhor Manoel, que já lhe escrevi, vinha mesmo ao calhar para pôr logo inquieta a D. Maria Domingues. Que prova queria ella maior de que exploravam o senhor Manoelsinho? E via-se já passando o verão na aldeia, como as ricas, emquanto o senhor Manoel estivesse em Lisboa nas ferias grandes. Era o melhor que tinham a fazer : afasta To do pequeno.
Desceu no Rocio, á espera do americano de Santos -- não se podia andar a pé com o calor ! -- e ainda chegou á loja do Povo para ajustar uma sombrinha.
Estava mais repousada; e só a ideia do campo lhe dava forças. Nem que fosse para Canecas ou Cacem, ia com gosto. E fazia bem á creanca ! Via agora tudo côr de rosa ; nem a pequena teria batido com a lingua e não saberiam nas Janellas Verdes que a mãe do pequeno tinha morrido ! Era um alivio !
Boas noticias levava ; havia de ser bem recebida ; e a viajemsinha tinha-a certa.
Emquanto o americano rolava na rua Augusta, no grande ruido da cidade, Catharina ia sonhando uma independência : uma casa sua, duas creadas, dinheiro no banco ; um largo bem estar edificado sobre o enfezadinho, ella prosperando sempre, emquanto elle definhava, obtendo até uma pensão para o ter comsigo, entrevado, na sua cadeira de rodas.
Grande coisa fora a outra ter morrido ! Até respirava melhor, sabendo que ninguém a espiava !
Apeou-se nas Janellas Verdes, mesmo á porta do «palácio» ; deu uma vista de olhos às janellas, de perseanas corridas, assoouse, entrou com magestade, como uma visita.
-- Como está, senhor José? Queria dar uma palavrinha á senhora.
O guarda-portão, que escovava a farda, voltou-se.
-- Parece-me que veio em máo dia, senhora Catharina. O senhor D. Francisco está doente. Decerto a senhora não recebe'.
-- Paciência ! Valha-me Deus, tanto lhe queria fallar!
Botou um olhar de desconfiança ao creado, na suspeita de que fosse um pretexto para a não receberem.
-- E é de cuidado, a doença?
Sentou-se n'uma das cadeiras de couro da entrada, decidida a esperar.
O coração batia-lhe depressa, n'uma inquietação que empallidecia toda a sua face gasta sob os cabellos velhos.
O creado accendeu uma ponta de charuto, foi buscar a um desvão de porta o espanador e o panno de pó:
-- De cuidado parece que não. É a cólica. Dá-lhe muitas vezes.
E soprando uma baforada :
-- É do fígado.
-- Pois máo é ! -- disse Catharina, dando um puxão forte ao mantelete. -- Se me pudesse despachar, senhor José, era favor. Que eu só queria duas palavrinhas. São dois minutos. É do interesse da senhora ...
-- Vem já ahi o Domingos. Elle chega lá a cima com o recado.
Metteu descançadamente as mãos nos bolsos do collete ás riscas, soprou outra fumaça do charuto.
-- A senhora com certeza não a recebe. Quando o senhor D. Francisco está com a cólica, a ordem è para não receber ninguém ...
Catharina remecheu-se na cadeira de sola, desesperada.
Sentia-se intimidada deante da gravata branca do creado, da saa cara escanhoada de lacaio, onde os olhos de fuinha luziam, vendo-se assim tratada desdenhosamente, por causa do chapéo velho e do mantelete esfiapado, no seu aspecto mendicante de adeleira.
E ainda aventurou, compondo um ar digno, n'um recuo brusco de intimidade :
-- Lá emquanto ao receber, isso é commigo ! Basta que lhe vão dizer que estou aqui !
Elle enfiou a sobrecasaca verde de botões amarellos, guardou o espanador, e só então decidiu chamar o Domingos, tocando um timbre.
Abriu-se a porta de vidraça e o vestibulo appareceu, tapetado de vermelho, com cadeiras de sola alinhadas ao longo das paredes e um grande macisso de plantas ao centro.
Catharina adeantou-se logo, muito risonha :
-- É para dizer á senhora que estou aqui. Precisava muito fallar-lhe. A Catharina ; diga-lhe que è a Catharina, faca favor... E que é coisa de pressa; são só duas palavras...
Esperou de pè, com o ar embaraçado e humilde dos que receiam ser despedidos; e pelo paravento entreaberto, ia espiando os largos degráos envernizados por onde se desdobrava a passadeira encarnada, presa em varões de metal amarelio. O pensamento de que era a depositaria do secreto herdeiro d'aquella casa e se podia vingar no «mijão» da insolência dos creados, consolava a sua alma azeda ; e voltava a sonhar com uma independência, que viria suavisar os seus últimos dias, pela venda cara da sua cumplicidade e do seu silencio.
Passos desceram devagar as escadas e ella compoz á pressa uma expressão de compungida, engatando com a mão enorme um colchete do mantelete.
-- Pode subir.
Catharina corou, ainda disse :-- veja lá se incommodo ! -- e subiu os degráos, sem ruido, abafando os passos, n'um grande ar de mysterio.
Uma creada de touca abriu-lhe uma porta no corredor, fera entrar n'um quarto de pesados reposteiros descidos, com stores de rendas nas janellas.
Ficou quieta, pondo um olhar de investigação nos moveis, nas paredes, onde as molduras dos quadros brilhavam, nos frascos de crystal e prata do toucador.
Houve um rugir de vestido ; um reposteiro afastou-se e a mãe de Manoel appareceu, n'um longo roupão cheio de rendas.
-- É você, Catharina? Aconteceu alguma coisa?
A voz tremia-lhe; deixou-se cahir n'uma chaiselongue, com um gesto triste de desanimo e fadiga.
-- Não, minha senhora. Lá por casa vae tudo bem. Venho talvez incommodar V. Ex.*. Disseram-me que o senhor D. Francisco estava doente...
-- Não está bem, não. -- E depois de uma longa pausa, baixando a voz : -- Gomo vae a creança ?
-- Agora, com a rabugem dos dentes, anda mais abatidinha ...
-- Pobre pequenito ! É preciso ter cuidado, Catharina : fazer tudo o que mandar o medico. Na segunda-feira, se puder, hei de ir vel-o. A mãe tem ido?
Catharina esfregou as mãos pelo mantelete, aproximou-se, e debruçando o busto, como para um segredo:
-- É por isso que eu vinha fallar a V. Ex.a
A outra poz-se de pê, n'uma inquietação que estremeceu a sua face cançada, que um secreto desgosto consumia.
-- O que foi, Catharina?
-- A mãe morrreu ...
E logo se pôz afflicta, ao ver o resultado d'essa revelação era que tivera tantas esperanças.
A mãe de Manoel ficara calada, com as mãos atiradas para traz, na alta cabeceira da chaise-longue, os olhos parados, n'um mudo terror. E só depois de um instante, passando a mão pela testa, no gesto de quem afasta uma visão inquietadora, perguntou em voz fraca:
-- Quando ?
-- Ante-hontem. Recebi um bilhete postal. Julguei do meu dever prevenir a senhora. Ella já andavs doente ha tempos ; botava sangue pela bocca. Foi até uma obra de caridade Deus levada ; e sempre V. Ex.* fica mais aliviada...
-- Pobre creatura ! Devia-me ter prevenido, Catharina. Quem sabe a miséria que padeceu !
Uma infinita tristeza toldou-lhe os olhos de lagrimas, que ella limpou vagarosamente com o lenço de rendas.
-- Pobre infeliz ! E não lhe mandou pedir a creança, Catharina? Não lh'a levou para ella a vèr?
-- Não, minha senhora. Eu de nada sabia.
-- Ter morrido assim sem vèr o filho ! Ao menos, você devia-me ter dito que essa desgraçada estava doente.
-- Para não affligir V. Ex.""...
-- Fez mal ! Fez muito mal !
-- Não pensei que seria coisa de gravidade...
E emquanto a mãe de Manoel, sempre de pé, com a cabeça inclinada, enxugava ainda lagrimas, commovida, Catharina suspirou de alivio. A pequena não dera com a lingua nos dentes ! Estava salva ! Agora, era pedir o que quizesse; tinha-a na mão. Já não sahia d'alli sem um par de libras e a ida para Canecas acertada. Ficava apeoas num grande pasmo deante da grande dôr com que ella chorava a amante do filho, como uma nora, e intimidava-a o grande desgosto em que a via curvada.
-- Você tem a certeza de que ella não mandou a sua casa pedir que lhe levassem a creança ?
-- Lá não foi ninguém, minha senhora.
Depois de um curto silencio, a voz tristíssima disse em lentas palavras de receio :
-- Morreu no hospital, Catharina? -- Cuido que não.
-- Ah ! tudo isso é horrivel ! É preciso que o senhor Manoel não saiba ; é preciso que elle não saiba !
-- Já não vamos a tempo, minha senhora. A estas horas sabe de tudo.
-- Sabe?
Catharina procurou no bolso da saia o bilhete postal.
-- Faça o favor de iêr...
Ella leu, acabrunhada, em frente á janella, a que levantou de leve o transparente, desvendando á luz uma pobre mascara de dôr.
Nunca mais voltava a ter socego depois d'esse negro dia em que a sua maternidade ciosa a compellira ao acto cruel, á abominável barbaridade de massacrar aquella outra maternidade em perigo. Tivera mesmo uma longa doença, passando dias seguidos n'um sofá com nevralgias, sustentada a leite, n'uma lenta crise nervosa que a envelheceu dez annos. Á dôr moral viera juntar-se o fracasso de uma operação financeira do marido, em que desappareceu mais uma longa esperança dos dois. A sua cabeça começava a enfraquecer, cançada de tantos desgostos successivos, que a iam esmagando como repetidos golpes de martello. Ainda agora, a doença do marido assustava-a ; e vinha já a noticia da morte de Anna auniquilaPa, enconírando-a tão mal preparada para mais esse golpe; de uma debilidade que qualquer choque a lançava por terra ! Nunca pensara a que extremos de exterminio a sua obra teria de galgar; e o seu coração de mãe visionava o martyrio d'essa outra mãe que morrera. Tantas vezes quizera ir levar-lhe auxilio e conforto, desviada pela voz da Gatharina, que lhe figurava a vida de Anna como uma ignominia, morando n'uma viella da Mouraria, recebendo homens ! E fora assim esquecendo-a, com um triste desdém pelo rabaixamento d'essa outra mãe que não soubera conservar-se virtuosa por amor do seu filho, quando ella se sentira com a força heróica de ser cruel por amor do seu. Mas ao sabePa morta, a piedade venceu esse escrúpulo e esse despeito do seu coração altivo de honesta ; e accusava-se de ter ella mesma preparado essa degradação, sendo os pobres, por destino, pobres até de moral e de virtude. Degradada, ella chorava-a mais, sentindo-se a responsável de mais essa desgraça ; e no intimo, como a própria alma d'aquelle drama doloroso, estremecia-a a inflexível consciência de que seria ainda capaz, mais uma vez, de commetter a barbaridade inexorável, se se tratasse, como então, de salvar o seu filho. De quanta crueldade é feito ás vezes o amor de mãe -- tristemente pensava -- e a quanto obrigam os filhos! Manoel ia talvez accusal-a, desabando sobre ella a responsabilidade d'aquella morte !
Três vezes leu o bilhete, na esperança de penetrar a verdade e acostumar-se á ideia de que o filho sabia, sabia tudo.
Caminhou até á chaise-longue, onde se deixou cahir, olhando longamente Catharina, que fingia limpar lagrimas ao lenço de algodão.
Tinha uma grande confiança n'ella: era uma pobre e bondosa mulher, fiel, dedicada e discreta. Quando a velha condessa de Ladario quebrara uma perna e um braço de uma queda de break em Collares, Catharina servira três mezes de enfermeira, paciente e cautelosa. Ninguém lhe ouviu uma queixa ! D'antes, quando viajavam, era ella que ficava tomando conta da casa. Nunca faltara um alfinete !
Catharina percebeu a confiança que vivia n'esse olhar húmido e implorativo com que a outra a fitava. Decidiu-se então a lançar a rede :
-- Se a senhora dá licença, a minha opinão è esta : o senhor Manoel a esta horas, deve ter a cabeça cheia com as historias que lhe contaram. V. Ex.a sabe melhor do que eu como elle é. O coração tapa-lhe a vista. Ninguém adivinha os enredos que as duas armaram... Que ella viveu sempre á custa d'elle, isso nem merece duvida. Assim eu tivesse a salvação da minha alma ! Capazes de nos intrigar eram ellas. É porque V. Ex.'' não sabe a ruindade d'essa gente. Não vamos nós ter ainda algum desgosto ! ... O melhor seria eu sabir uns tempos de Lisboa com o menino e voltar depois de passada a tempestade. Que ou eu me engano muito ou o senhor Manoelsinho não tarda que se apresente em Lisboa ... Se não a senhora verá. E até fazia bem á creança, mudar de ares... A ver se arribava mais depressa...
-- Você acredita que o senhor Manoel seja capaz de vir?
-- Como no céo, senhora.
-- Mas fazer o quê? Se elle não vem fazer nada; se essa desgraçada morreu ; se não falta coisa nenhuma á creança ; se não ha sacrifício algum que eu não faça por ella? Pois não é verdade, Catharina? Roupa, medico, remédios : não lhe tem faltado nada ! Você trata-o com carinho, pois não trata, Catharina? Eu bem sei que um desgraçadinho d'esses precisa de que o tratem com muito amor e muita paciência... Tenho feito tudo, meu Deus ! tudo o que teria feito por um filho ! Você já lhe vestiu a touca de rendas que lhe mandei? E o vestido de fustão? Agora, para o calor, precisava... Ha de trazer-m'o cá, Catharina. Quero vel-o. Não tenho podido ir, você bem sabe ; e agora, com a doença do senhor Francisco de Castro, estou presa ...
Erguera-se, afflicta, procurando inultilmente uma falta. Manoel não havia de querer que ella fosse á Mouraria, expôr-se a ser insultada, para soccorrer uma mulher, que não soubera respeitar a sua memoria. Demais, ella ignorava que a desgraçada estivera doente ; só o sabia agora, muito tarde, quando já não havia soccorro humano que lhe valesse. Havia talvez alguma coisa de inexplicavel e de confuso na historia d' essa morte repentina, imprevista, de que não subira até ella nenhum rumor. Saberia Manoel que a mãe do seu filho estava doente? Não fazia acreditar a Catharina que elle estava em relações constantes com ella? Porque se calara então ? E porque parecia esfriar nas suas cartas esse exaltado interesse pelo filho, que a fazia crer quasi n'um esquecimento absoluto, que começava mesmo a amargurara?
Não; elle podia vir! Não lhe pesava nenhum remorso na consciência ; e elle seria ingrato e injusto se a accusasse, quando ella lhe sacrificara os seus mais puros escrúpulos de honesta e tomara sobre si toda a dura carga da acção irremediável e á custa da qual elle vivia livre, desembaraçado do drama de miséria em que se fora convertendo a sua aventura de amor.
Catharina também não acreditava que Manoel viesse. Tinha-o dito para desassocegar a mãe, pôr-lhe deante da vista o expediente salvador de Canecas: a fuga para longe, a separação do pae e do filho, abrindo entre os dois a distancia e fatigando assim qualquer amor nascente, que aflorasse já o coração de Manoel. E sobretudo, inquietava-a ter de expor aos olhos do pae a creança macerada por máos tratos : esse agonisanie que ella sugava e de quem vivia. A essas horas, Manoel, prevenido, devia saber tudo : a exploração em que tivera a «choramingas ;» a barbaridade com que lhe tirara a creança dos braços, levada por esse accesso invencível de cólera que a cegou e lhe fez perder a cabeça ; e ainda, depois, a obstinada recusa de lá voltar com o pequeno, guardando na commoda os bilhetes postaes successivos em que Rosa dava a doente como perdida e pedia pelas almas que lhe levassem o filho, para a mãe o poder vêr ainda uma vez antes de morrer.
O mais seguro era sahir de Lisboa, levar o «emprego» para longe. Já não sahia d'alli sem ter resolvido a mudança. De outro modo não teria socego: ia passar os dias em cólicas, sempre á espera de ver entrar o pae, de punhos fechados, para lhe bater.
Nada ! tinha muito amor ao seu corpinho ! Cautella e caldos de gallinha nunca fizeram mal a doentes ! Ha muito que cobiçava esses mezes de regalo no campo, paparicando merendas de fructa debaixo das oliveiras, bebendo o leite sem agua, com a carne mais barata e a hortaliça quasi de graça. Que boa vida, sem ter de dar satisfações a ninguém, podendo lêr ás tardes o seu romance, fazer o seu panninho de crochet! A creança entregava-a á pequena, pois! A ir, era para descançar, sem mortificações e sem canceiras. De outra maneira nem valia a pena fazer a mala. Visionava já o sitio alto, com aragens e sombras de arvores, a casinha velha, de quinta, os campos loiros, salpicados de papoulas vermelhas.
Suspirou, poz os olhos no quarto escuro, abafado de tapetes e cortinas, onde erravam perfumes de essências e agoas de toilette; na chaise-longue onde a mãe de Manoel permanecia quieta, com o lenço na bocca, a cabeça entre almofadas de seda, meditando.
Não era ella, que se ia incommodar assim por causa de um alfinete ! Até fora uma sorte para a «choramingas» o ter morrido! E então para a D. Maria Domingues, nem de encomenda ! A todo o tempo estava arriscada a passar dissabores, emquanto a mãe do pequeno fosse viva. Fora uma sorte ! Fora uma sorte para as duas ! E fazendo bem a conta ao perdido e ao gantiado, também para ella. Sempre estava livre de ser espiada... A D. Maria Domingues havia de dar para tudo! Lá da banda do senhor Manoel, só se elle fosse tolo ! Agora, não tinha de ter medo que a mulher se lhe trancasse no caminho ; estava livre de um tal peso. E emquanto á creança, só via aquillo -- ir com ella para Canecas, refastelar-se, gosar a sombra, beber leite de cabra : gosar.
-- Porque olhe, minha senhora, sempre lá diz o dictado : longe da vista, longe do coração ... O menino anda mesmo de todo com os dentes. O senhor Manoel, se o vê assim, até pode pensar que é dos máos tratos ...
A mãe estremeceu, poz-se de pé :
-- Máos tratos, Catharina ? Não ; o senhor Manoel confia em mim ; confia na sua mãe ! Era incapaz de me fazer uma injustiça semelhante. Seria para mim um grande desgosto.. Quem pode ter interesse em maltratar uma creança, Catharina ?
-- Podem ter-ihe enchido os ouvidos, minha senhora ! Não que eu não fallo por elle ! Mas como lhe escreviam para Coimbra... Eu faço o que a senhora ordenar ; para mim até era um desarranjo deixar a minha casa. Lembrei isto para evitar algum desgosto; não fossem terem-nos ido intrigar, a V. Ex.a e a mim. Que a defunta -- Deus lhe perdoe !-- nunca me poude vêr com bons olhos ; e a pequena-- eu já contei a V. Ex.a -- tudo o que apanhasse á mão, era uma vez. Fora o bem que ellas me queriam posso eu ! Nunca é bom confiar, minha senhora.
-- Mais tarde veremos isso, Catharina. Talvez você tenha razão ! ... É preciso, primeiro, fallar com o medico. Havemos de vêr, Catharina ; havemos de vêr isso...
Uma campainha retiniu em baixo, no corredor. Uma creada de quarto afastou o reposteiro:
-- V. Ex.a dá licença?
-- É você, Clara? Entre. Que é?
-- Está alli o senhor doutor, minha senhora.
-- Ah! Mande entrar para o quarto. Já lá vou...
Foi passar um pouco de pós de arroz na face pallida, onde as lagrimas tinham cavado olheiras; e voltando-se para Gatharina, que ficara de pé, desapontada, remechendo o manfelete :
-- Appareça depois, Catharina... E traga-me a creança, ouviu ?
-- Se a senhora quizesse, podia fallar agora com o medico.. . Eu esperava. É porque sempre era precisa uma certesa, para ir preparando as minhas coisas. Como é para demora de uns três mezes ... V. Ex. bem vê ...
Ella pensou um instante, disse :
-- Então espere um bocado. Sente-se.
-- Estou bem de pé, minha senhora.
Mas logo que ella sahiu, recostou-se na chaise-longue poz mesmo uma almofada de seda nas costas.
Tinha-a na mão ! Via-se já á procura de casa, arranjando as malas, partindo para o campo, como a gente rica. Pensando mellior, até seria preferível procurar para os lados de Setúbal. Tinha nascido em Gabrella, os pães eram de Casa Branca, a irmã morava em Vendas Novas ; conhecia por alli tudo. E sempre estava mais segura n'aquelle retiro, mais nos seus commodos: podia até ter uma horta, crear gallinhas...
Estendeu as pernas cruzadas pelo tapete, olhou as meias de algodão, espanou a saia empoeirada. Estava a precisar de roupa de por cima. Da branca, graças a Deus, tinha muita. A D. Maria Domingues podia bem dar-lhe um vestido -- pensou. Aquelle, ainda fora a senhora Condessa que lh'o dera. Estava velho !
Houve um rumor de passos no corredor. Catharina endireitou a cabeça, á escuta. Não fosse vir alguma creada e encontrara na chaise-longue com almofadas !
Mas o reposteiro balouçou: ella quiz levantar-se, o corpo pesou-lhe e ficou immovel, de olhos na porta, pallida.
Era Manoel que entrava.
Catharina viu-o fechar a porta, atirar a uma cadeira com o chapéo e a bengala, revolver todo o quarto com um olhar duro que pousou sobre ella, admirado.
Para quem vinha de fora, da claridade, a meia luz do quarto devia esboçar muito os contornos das coisas porque Manoel teve um gesto de recuo para a porta e disse :
-- Peco desculpa. Cuidava encontrar aqui minha mãe.
Ella poz-se logo de pé, muito branca ; e Manoel então fixou-a melhor, reparou no chapéo velho, no mantelete russo de creada, nas suas irnmensas mãos engelhadas de pobre.
Adeantou-se, emquanto ella recuava para a sombra do guarda-vestidos, aterrada, julgando que Manoel a reconhecia e lhe ia bater, vindo de propósito de Coimbra para a matar.
Mas Manoel voltou-lhe as costas, indifferente ; sentou-se resignadamente á espera. Só duas vezes encontrara a Catharina, havia annos, quando ella ficara a olhar pela casa durante os três mezes de uma ida a Paris, no tempo da exposição ; e não a reconhecia agora, ao dar com ella repoltreada no sofá, como uma dama, no quarto de sua mãe.
Em outra occasião ter-se-ia espantado deante d'essa velha acommodada entre sedas, de perna cruzada, na altitude de uma conquista ; e teria reparado no seu gesto de terror ao vel-o entrar, no medo dos olhos attonitos, n'aquelle instinctivo movimento de recuo para a sombra. Mas preoccupações mais graves cingiam-n'o e a vida exterior passava a ennevoar-se ante os seus olhos concentrados que nada viam fora do âmbito dramático da sua situação, como olhos de actor que pousam cegos no publico que enche a sala.
Emquanto Catharina tremia, sentindo avisinhar-se o momento da explicação, esperando a todo o instante vel-o voltar-se, chamal-a e atirar-lhe as mãos furiosas ao pescoço, Manoel meditava no doloroso encontro que ia dar-se quando a mãe entrasse e desse com elle, obstinado dentro da imprevista exigência de uma reparação.
Sahira da casa de Queiroz como de entre as mãos de um inimigo mais forte que o tivesse batido, e com uma tal sede de desaffronta contra esse homem que o despresara como um fraco, que uma coragem de humilhado o atirava agora ousadamente contra o perigo.
Depressa, chegado ao hotel, preparara tudo para a partida, jogando n'aquelle lance todo o socego egoísta porque luctara até ahi tão energicamente. E já na estação, ao partir do comboio, estirara o braço pela portinhola aberta em direcção á rua do Cego, respondendo victoriosamente á bravata affrontosa de Queiroz com a temeridade d'aquelle impulso, que o arrojava ao perigo.
Não era a morta que ia vingar ; era apenas o orgulho ferido que o impellia, arremessando-o ás cegas, com um lume de audácia no sangue. Mas chegado a Lisboa, o drama colheu-o na sua rede commovedora; e quando o guarda-livros, que elle fora procurar a Santos, lhe contou a altitude dramática d'aquella morte, a lenta agonia da mãe expoliada, morrendo a abraçar um filho que não era o seu, então, as cordas sentimentaes da sua alma de fraco vibraram e a tarefa de orgulho logo se converteu n'uma tarefa de piedade, como as trovoadas que se resolvem em chuva.
Apossou-se d'elle uma intensa commoção ; quiz subir ao terceiro andar, ainda deshabitado depois da partida de Anna, para olhar outra vez as paredes que tinham abrigado o seu idylio ; e ficou muito tempo debruçado á janella, onde Anna tantas vezes se apoiara, lembrando aquella vida morta que ambos aili tinham vivido.
Confusamente, como um desenho que vae tomando forma, a sua consciência ia traçando linhas ainda hesitantes de conducta. Depois que a mãe morrera, ficara a creança de todo ao desamparo. Não a podia abandonar, elle que era o pae. O Queiroz tinha razão ; só agora ia comprehendendo com nitidez o seu egoísmo e a sua crueldade de bárbaro, deixando á pobre Anna a sua carga de miséria e de amor, desinteressando-se quasi em absoluto da creança, como se a sua paternidade, por ser criminosa, não fosse real. Lembrava-se da enternecida vaidade de certos pães pelos seus filhos ; no grande amor que o viera amparando sempre na vida ; nas historias que se contavam ainda em casa dos seus pi-imeiros annos, com a religiosa saudade de acontecimentos memoráveis : uma angina que tivera aos três annos ; as suas caixas de soldados, uma d'ellas celebre, com batalhões de cavai lar ia e baterias de campanha ; a sua paixão por um gallo branco, enorme, que morrera de velhice.
Fora sempre amado, subindo os annos embalado em beijos e caprichos. Na sua familia, na sua casa, apenas encontrava o exemplo d'esse amoroso culto paterno: os pães vivendo para os filhos, soíTrendo por elles, defendendo-os como coisas santas. E amargurava-o pensar que propuzera a sua mãe, que o amava, alivial'o da sua precoce paternidade, que lhe pesava.
Sobre Anna tinham baixado todos os tributos de amor e de desgraça. Emquanto ella vivera e morrera no próprio coração doloroso d'esse drama, elle, muito ao longe, vivia-o apenas imaginativamente, como um entrecho de romance, sem uma hora de verdadeira angustia ou sincera piedade.
Andava devagar, indo e vindo da janella á parede, parando a espaços para olhar uma escura mancha de papel, marcando ainda o espaço de um movei, onde a luz do sol não desbotara a côr, ou os pregos de cabeça amarella que d'antes suspendiam os figurinos.
E uma grande tristeza descia ao seu coração, trazida por uma grande saudade, lembrado de mil nadas onde a morta deixara um pouco da sua vida : o café que ambos tinham tomado pela manhã, em Dezembro, quando chegara de Coimbra ; a noite em que a viera encontrar sentada á machina, a cozer ; o almoço do baptisado ; a vinda pelo entrudo ; e certos modos que ella tinha de andar batendo com as saias ; cantigas em que punha a sua voz muito doce de amante ; um geito de saccudir as repas castanhas do cabello, de se debruçar á janella, estendendo para traz, fora da saia, o pesiío hndo.
Quiz vêr a alcova onde tantas vezes os dois se tinham curvado juntos, presos n'ura abraço, sobre o berço do filho.
O garda-livros aventurava ás vezes uma phrase, contava mais um pormenor do obscuro martyrio. E Manoel, que chegara á janella, espiando a rua, ouvia-o dizer a triste caminhada ao cemitério, elle tendo levado aos Prazeres todas as filhas, para se despedirem da sua boa amiguinha.
Manoel deixava-o ir fallando, sem ter coragem para o interrogar, com medo de penetrar de uma vez toda a verdade trágica d'esse fim de vida : o rolar d^aquelle corpo no despenhadeiro, desde que lhe abrira os braços, desamparando-o.
E como na poda de uma planta, a que se corta toda a vegetação inútil, da sua alma de frívolo iam-se despegando e cahiudo, abatidos, esses verdejantes rebentos de orgulho, de egoismo e de mentira.
Quando tanto pae miserável e pobre sua o lento trabalho de uma vida para crear os seus filhos, elle não podia com razões egoístas e falsas, abondonar o seu. E um grande sonho ergueu-o, onde um amor nascente palpitava. Também elle, como a morta, o ia amar -- esse querido pequenito nascido de tanto beijo. E já pensava no prazer infinito de ir seguindo o brotar da razão na cabecinha loira da creanca, recolher o seu primeiro balbucio, encaminhar a sua primeira palavra e o seu primeiro passo ; e dia a dia ir seguindo attentamente o abrir da flor miraculosa d'aquelle pequenino espirito de homem, como uma rosa desabrochando ao sol.
Seria a grande lucta aberta com a familia, o inicio de uma nova vida de esforço, de solidão e de combate, mas já não o assustava essa perspectiva áspera do dever.
Á porta do estanque, a D. Ermelinda sorriu-lhe, accenando com a cabeça ; outras caras conhecidas apareciam ás portas. Nada tinha mudado na rua. O Coelho Barata, da alfandega, lia o Diário de Noticias á jauella; havia as mesmas coisas empoeiradas na montra da mercearia ; um paquete inglez descia o Tejo para o mar; velas de pesca salpicavam a barra, ao longe.
Então, emquanto o guarda-livros fechava as adufas, quiz aiada saber onde morava Rosa e pediu informações da Catharina.
Martins deu a morada, encolheu os hombros a respeito da Catharina, nunca a tendo visto, sabendo só que ella morava no Campo Grande.
Desceram juntos as escadas até á porta. Manoel chamou o carro, que esperava adeante, na rua, olhou ainda attentamente a casa, e mandou bater para as Janellas Verdes.
O guarda-portão correu espantado a abrir a portinhola. Manoel deu os bons dias e empurrou a porta de vidro do vestíbulo.
À sua passagem, os creados olhavam-n'o admirados e Domingos veio ao seu encontro, para o socegar.
-- Felizmente o senhor D. Francisco está melhor. Doesta vez foi muito forte ; soffreu muito. Está cá o medico ...
Mas Manoel, que não sabia de nada, parou com um doloroso espanto.
-- Meu pae está doente ?
-- Julgava que o senhor Manoelsinho chegava por causa da doença... Foi a cólica. Mas esteve mal, esteve muito mal. Hoje já se levantou, mas ainda não sabe do quarto. D'esta vez foi valente.
-- Não sabia ...
-- Pois vae ter um alegrão ao vêr o senhor Manoel... A senhora D. Maria Domingues também não tem passado bem ...
Manoel afastou-se, silencioso, abafando os passos na passadeira. Sem ruido, afastou o reposteiro do quarto, procurou com a vista a mãe, deu de frente com a Catharina, refastelada no sofá ; e vencido por uma grande commoção, deixou-se cahir n'uma cadeira, desnorteado pela doença do pae e pela tristeza da casa aonde vinha trazer o desassoçego.
Que fazer ? Seria cruel juntar á afflicção desperta pela enfermidade do pae o desgosto da sua tarefa dolorosa. Mas o seu filho estava soffrendo também.. Era preciso terminar quanto antes com aquillo. Mais tarde, talvez não tivesse forças e lhe faltasse a energia para o rude passo. Não ; não o podiam prender puerilidades d'essas. Failaria ; iria até ao fim ; era preciso. Todas as suas lagrimas, todos os seus projectos de rehabilitação não iriam naufragar n'aquelie escrúpulo. E quasi o atemorisava essa energia nova que o fortalecia, fazendo d'elle subitamente um homem. A salvação do seu filho não era incompatível com as melhoras de seu pae. Apenas diria a sua inabalável intenção de soccorrer o seu filho e elevafo até a si. Daria as suas razões, simplesmente, como se se tratasse de um filho acceite e reconhecido por seus pães. Para o seu coração e para a sua consciência, um filho era sempre um filho. O amor e o dever não dependiam da sanção de um preconceito imaginoso. A illegitimidade era apenas uma incorrecção em frente aos costumes e em face das leis. Nem por isso o seu sangue deixava de correr no corpo do seu filho porque faltara na historia da sua concepção uma praxe social estabelecida por um costume, constituído em garantia de um direito. E agora, subitam.ente, o enredo tumultuoso e confuso d'aquella paternidade defeituosa aclarava-se, perdendo no seu voo para a verdade a roupagem theatral com que a vestira o seu medo. Um filho illegitimo só o é dentro de uma formula social objectiva. A illegitimidade considerada socialmente representava apenas a garantia do filho gerado em condições de responsabihdade moral eíTectiva, a ameaça para as concepções illegaes que tornavam possíveis as dispersões familiares e subtrahiam o pae ao dever imposto pelo seu acto de creação. E essa responsabidade do creador pela vida que creou, era o principio fundamental d'essa sociedade que elle vinha ultrajando como uma criminosa na sua providencia salvadora. De longe, repassando essa dolorosa explicação com o amigo, em que um mal-entendido desastrado avivara uma discórdia, Manoel ia preenchendo os silêncios que as suas duas consciências oppostas tinham cavado. Como Queiroz o devia ter despresado, ao vel'o titubear na verdade, emaranhado n'um conflicto sentimental em que tudo era disforraidade e enleio !
Para que esbracejar na difficuldade platónica d'essa illegitimidade, quando apenas o facto humano o interessava ? Que tinha de vêr n'aquelle intimo drama de consciência a questão embaraçosa de um prejuízo social ? A illegitimidade não era extensiva ao seu amor de pae e não podia com certeza apellar para ella em defesa do criminoso abandono do sen filho.
Ah! respirava! Qne podia ter de extranha a sua vinda, se elle chegava para uma elementar obra de amor, clara e tranquilla como um lago? Tudo se passaria em socego, sem alarme e sem mortificações ; elle pretendendo apenas definir a situação difficil, deitar abaixo essa obra de mysterio que emparedava o seu filho, e dentro da qual toda a protecção eíficaz era impossivel.
Agora, de dentro do quarto, vinha um rumor de vozes. Manoel ouviu mesmo o medico recommendar -- muito socego, continuar com o leite e reagir...
-- Está isto a desconjuntar-se, doutor -- disse a voz do pae, n'uma lentidão doente.
Catharina ficara de pè ao canto do guarda-vestidos, verde de medo, sem despregar do tapete os pés de chumbo. As suas mãos, que tremiam muito, como tarântulas, esfiapavam a guarnição de vidrilhos do mantelete.
O reposteiro ondulou, uma porta rodou devagar. Manoel, vivamente, ergueu-se. A voz da mãe dizia :
-- Faz favor, doutor...
E ambos entraram : o medico abotoando a sobrecasaca, ella sorrindo, amparando com o braço o reposteiro.
Manoel, de repente pallido, deu um passo. Ella viu-o, ficou immovel, com os olhos parados postos n'elle, em frente á janella que allumiava a sua brancura de aterrada.
E n'essas três creaturas, que um mesmo secreto drama aproximava, houve um instante de indecisão e de pânico.
A mãe viu avolumar-se a situação difficil em face de um extranho ; e antes que Manoel voltasse a si do embaraço em que a afflictiva apparicão o deixara, ella reconduziu o medico até á porta, tocou um timbre, chamando pela creada ; estendeu galantemente a mão n'uma mesura de despedida.
-- Até amanhã, doutor.
E voltou-se, branca, como acordada de um desmaio.
-- Filho ! -- murmurou muito baixo.
Manoel caminhou até ella, beijou-lhe a mão fria, calado.
Ella teve um profundo suspiro de resignação por tanta amargura, deu dois passos na sala, silenciosa, com o lenço na bocca, n'uma altitude triste de meditação. Depois, estendendo o braço para Manoel, recommendando-lhe prudência, voltou-se para Catharina.
-- Póde ir, Catharina. O senhor Manoel irá depois fallar comsigo.
Mas Manoel, áquelle nome, estremeceu, poz um ávido olhar n'essa mulher velha que tinha vindo encontrar recostada no divan, com uma insolência de dominadora. Feriram-n'o, n'uma desconfiança aguda, o seu silencio, o seu vago gesto de terror para a porta quando elle entrava ; e ainda n'esse instante, sob o seu olhar penetrante, viu-a descer a vista e as suas mãos enormes bailar sobre o mantelete.
Uma força inconsciente, onde havia a fascinação de um presentimento ainda indefinido, impelliu-o :
-- É melhor que essa mulher fique ainda um instante !
A mãe endireitou-se, sob a violência d'aquelle desejo exprimido como uma ordem ; e Manoel, deante do seu gesto de ultrajada, disse :
-- Que tens tu ? Já não és minha amiga ?
-- Manoel, teu pae está muito doente !
Elle vergou a cabeça sob a accusação insistente d'essa voz, por um instante calado, olhando as flores do tapete. Depois, voltando-se para Catharina :
-- Como está o meu filho?
Catharina estremeceu, foi escondendo as mãos tremulas debaixo do mantelete.
-- Agora, com os dentes, senhor Manoel, tem passado peor ...
Elle saccudiu a cabeça, fitou attentamente a mulher.
A mãe seccava as lagrimas com o lenço ; e ella também balouçava a cabeça, no gesto de evidencia e convicção com que a possuia um pensamento occulto.
Manoel disse, pondo os olhos na tristeza d'aquella face attribulada e ao fundo de cujo cérebro adivinhava o pensamento inimigo :
-- Sabes que ella morreu?
A mãe levantou o pescoço; as suas mãos nervosas amarfanharam o lenço de rendas.
-- Sei ...
-- Por isso vim ...
-- Não esperava isso de ti, filho...
Deixou-se cahir na chaise-longue , suífocada de choro. A sua memoria recordava as palavras de Catharina : a sua desconfiança de que a morta tivesse escripto a Manoel, manchando-a n' uma intriga, mandando-lhe era vingança aquelle filho rebelde.
Manoel escutava-a, surpreheudido, sem adivinhar a razão d'essa grande dôr que a dobrava e d'essa indignação que a suffocava.
Elia torcia o lenço, fallando baixo, com uma triste voz sentida.
-- Podes accusar-me... A minha consciência está tranquilla. Tudo fiz para te salvar, tudo ! O que não faria por mim, ousei por ti. Sacrificios e dedicações que não te deixaram grato. Que importa, filho? As mães nunca pensam na gratidão dos filhos. O amor das mães não se vende ... Ah ! és injusto, és muito injusto, filho.
A sua voz chorosa ia-se tornando humilde como um queixame. Manoel ainda disse :
-- Mas que fiz eu para te vêr chorar assim ? Ella atalhou-o com o gesto incrédulo de quem dispensa a inutilidade de uma desculpa.
-- Vens de Coimbra sem nada me avisares, sem nada prevenires ... Nem a doença de teu pae te impressiona ... Entras por aqui dentil como um inimigo, como se eu não fosse tua mãe, como se eu te merecesse isso, Manoel ! És injusto, és injusto ! Só hoje tive conhecimento d'essa morte... Está ahi a Catharina, ella que o diga... Sinto não lhe ter podido valer. Faria tudo para repousar um pouco as suas ultimas horas. Deus não quiz ! Porque não guardou ella a tua memoria? Se não fosse por ti, ao menos por essa pobre creança... Foi uma desgraçada, filho. Padeceu talvez muito e não a devemos accusar. Accusar os humildes é crueldade. E eu teria esquecido tudo, iria ter com ella sem escrúpulos, se a tivesse sabido doente. Infelizmente, eu de nada sabia... Deus lhe perdoe a injustiça! Nunca lhe quiz mal. Mover os filhos contra os paes è uma obra bem má, Manoel ! Agora, faze o que quizeres. Teu pae está doente. A mim, sinto que qualquer coisa me leva... Deixa-me ao menos viver emquanto teu pae fôr vivo... Elle tem soffrido muito, filho ... Precisa de quem o console e anime...
Atirou os braços para o encosto da chaise-longue; ficou a soluçar, com o lenço na bocca.
Mas Manoel quasi gritou, tremendo de indignação ao adivinhar o enleio mentiroso em que ella se debatia.
-- Enganaram-te, mãe! Tu estás enganada! Nenhuma ideia ruim e inimiga me trouxe. Essa pobre mulher nunca me escreveu. D'ella, só sabia hontem á noite que tinha morrido. E só hoje é que soube a miséria e a dor em que ella morreu. Quem te disse que ella se não sacrificou até á ultima hora do seu ultimo dia pelo seu filho? Quem disse, mãe?
-- Catharina ; você que sabe, conte ao senhor Manoel ...
Mas então a velha titubeou ; a boca tremia-lhe, as suas mãos enormes voltaram a bailar n'uma violenta tontura.
Manoel botou-lhe a mão a um braço, puxou-a como um panno ; e em silencio, para não acordar na casa a suspeita d'aquelle drama, trouxe-a arrastada até ao divan.
Catharina viu-se perdida e ajoelhou, erguendo as mãos.
-- Pelas almas, senhor Manoel!
Em silencio, elle mostrou-lhe a porta, emquanto a mãe lhe agarrava o braço, atemorisada.
-- Filho ! acalma-te ! Teu pae pode ouvir...
Catharina recuou de gatas pelo tapete, cheia de susto ; levantou-se sobre os joelhos, amparada ao toucador. Tiniram vidros, uma rosa desfez-se. O chapéo de palha tombou-lhe da cabeça, ficou ao dependuro por uma fita. Catharina esfregou as mãos nodosas, deformadas pelo rheumatismo ; e quando se viu de pé quiz ainda fallar, mas gaguejou, atarantada.
Manoel calou-a, tolheu-a com o mesmo gesto de despedida.
-- Vá embora, mulher...
E quando ella sahiu, curvada, como uma presa, Manoel, ternamente, pousou as mãos nos hombros vergados da mãe.
Ella deixou-se cahir, pousou-lhe a cabeça no hombro com um silencioso choro de remorso.
-- Filho, meu filho, perdoa a tua mãe ! ...
Manoel chegou ao peito essa querida face em lagrimas ; e emquanto a abraçava, sentia tremer aquelle pobre corpo cançado de desgostos, envelhecido de amarguras.
-- Não chores. Vá, então! Que é isso?
-- Ah ! filho ! filho !
Poz os braços na cabeceira da chaise-longue e as suas lagrimas trespassavam o lenço.
Elle então deixou-a chorar, assim vencida e quebrada, recordando a sua fria energia quando n'aquelle mesmo quarto, a vira pôr o chapéo e calçar as luvas, preparando-se para a obra cruel que tanto pesava agora no seu coração...
IV
-- Onde, Rosa?
-- Além, senhor Manoel...
Era um declive de terra saibrenta, descendo até ao muro caiado de branco, que dava sabida pelo nascente a um terreno mais fundo. Junta ao paredão, no angulo sul, ficava a valia commum, onde Anna descançava, profanada e humilde, na intimidade das ossadas anonymas. Vindo de cima, da ultima rua de jazigos, o campo razo e sem cruzes, onde ninguém costuma vir chorar e nenhuma mão piedosa pousa flores, estende-se em frente, sinuoso, com montes de terra revolvida de fresco.
Rosa ia adeante, devagar, esmagando o saibro branco do carreiro, a ensinar o caminho.
Havia no cemitério a quietação de um jardim abandonado. Apenas se n'alguns arruamentos mais altos, o vulto preto, embrulhado em crepes, de uma viuva, rodava entre os jazigos ou chorava em frente de uma lapide onde havia flores frescas. Mas os mortos esquecem depressa; essa corte fúnebre da lagrima é epliemera. O cemitério é a mais pungente imagem do esquecimento. Manoel podia prolongar esse passeio sentimental, na vasta solidão sem testemunhas; e esse isolamento romantisava ainda a sua dôr, como se caminhasse nas paginas de um romance triste, dominando com a solidão dos heroes românticos a situação dramática. Sosinho, era como se o cemitério a contivesse só a ella ; e ascendia, dolorosa ao seu espirito como uma catastrophe excepcional, essa morte da humilde.
Rosa parou outra vez, e estendendo o bracito magro, mostrando a valia:
-- Da banda de cá do cypreste, senhor Manoel.
A terra amassada de fresco, tinha ali uma saliência de gravida, abrindo na extremidade um poço recoberto de taboas. Em redor, os covões mais antigos, em descanço, digeriam a sua ração de mortos, sob um manto de hervaçal e papoulas, á espera que de n-ovo a enchada lhes abra os flancos, arrancando-lhe o parto das ossadas. E apenas dois cyprestes, poeirentos e enfesados, desviavam as sombras elypticas sobre os muros.
Era uma parte da sua vida que alli apodrecia profanada, como uma coisa fétida -- um lixo que se enterra e que se esconde. Todo o seu coração se sobresaltava á ideia do apodrecer d'aquelle corpo, que fora o seu prazer e o seu orgulho. Ainda tinha nas mãos a sensação morna da sua pelle branca, macia como flores, por onde serpeava a rede azul das veias, e a sua bocca conservava a memoria dos beijos d'elia, húmidos e silenciosos. Era bem doloroso para a sua consciência culpada vefa no exilio d'essa terra de miséria e recordar a vida de tristeza que ella arrastara atè á morte.
Tinha a sentido crescer nos braços, desmaiar debaixo do peito e alli a tiaha agora, apodrecendo na promiscuidade anonyma dos covões, dormindo o ultimo somno no leito duro e sujo dos mendigos, ella que tão fiel lhe fora. E era o que mais aterrava o seu espirito -- a ideia de que esse corpo, que palpitara tantas vezes de encontro ao seu, corpo tão macio e tão branco, que tantas vezes beijara-- se desfazia junto aos corpos dos enjeitados e vadios, com restos de hospital e de cadeias. Passavam-lhe pela memoria grandes noites de amor vividas com ella, aquecidas pelo seu calor. Parecia-lhe ouvir ainda a voz de doçura murmurar ao seu ouvido palavras incendiadas. E perante a brutalidade com que os homens tinham tratado esse corposinho débil de visionaria, elle sofria muito, vendo-a assim desapparecer na mesma miséria de que nascera, enganada até na morte, ella que acreditava no paraiso e resava com tanta fé a salve-rainha de todas as noites. Eachiam-se-lhe os olhos de lagrimas ao recordar o Ímpeto dos seus abraços, quando pela noite alta, ao ouvir-lhe os passos nos degráos, ella saltava ao corredor, meio despida, para lhe suspender ao pescoço, como um colar, o seu corpo adorado ; ou quando ás tardes se sentava no chão a seus pés, com as mãos cruzadas nos seus joelhos, a ouvil-o fallar.
E ia correndo o horisonte com a vista, para socegar d'aquella amargura immensa que o dobrava.
O sol já ia alto. No céo não havia sequer a mancha de uma nuvem. Até ao rio, entre os arvoredos das Necessidades e da Ajuda, um trecho de cidade pendia das ribanceiras, espraiava-se em baixo desde a galeria enfumaçada da estação de Alcântara até ás docas. Para o poente, a Tapada estende o seu manto verde de arvores, cobrindo os primeiros contrafortes da serra de Monsanto ; e na grande nódoa de vegetação a cúpula do Observatório reluz ao sol. Gomo n'uma scena de thealro, o palácio da Ajuda irrompe apparatosamente entre a verdura, ao fundo ; e no céo, de um azul de veia, o panno de purpura do pavilhão real esvoaça. Para o nascente, de toda a extenção de telhados, immerge, como uma thiara branca o capacete de mármore da Basilica. Atraz desdobramse os arvoredos do jardim da Estrella, que a linha de cyprestes do cemitério inglez fecha como uma grade. Em novo recuo de plano o estendal de telhados novos de Buenos-Ayres, esbarrando no muro do paço das Necessidades ; e desde as ruas das Cavallariças do Infante a cidade salta outra vez, subindo ao morro de Alcântara. Ao fundo do quadro o rio alarga-se, desdobrando um leque de agoas crespas ; para a direita o descampado da feira, a garganta entupida do velho caneiro, onde o Prior do Crato recuou em desbarato, o tecto de ardozias da estação, a bocca do túnel : e para traz Monsanto com os moinhos de vento a cavalleiro, alargando no valle, sob o aqueducto, as hortas do Ferro de Engommar e da Rabicha. A emparedar o rio, os montes declivosos da Outra-Banda, de uma monotonia calcarea que rara^manclia verde suja ao de leve e longe a longe. Atraz, na névoa da distancia, o cabeço abrupto de Palmella, a cordilheira da Alhandra e a serra da Villa. Recuando a vista da lufa fabril da borda d'agua, é o morro de Alcântara que sobe e se distende, com a fita da rampa dos Prazeres desenrolada pelo colo e a miragem scenographica do forte do Sacramento panoramisando theatralmente a encosta. Vão-se alcandorando então os bairros pobres, suspensas as casas pelas escarpas, invadindo a antiga fortaleza, apossando-se dos terreiros, retalhando as muralhas. Paredes desmanteladas desenham ainda alvéolos rotos de baterias, avançam miradouros, onde secca ao sol a farrapeira dos pobres, recortam a dentadura cariada das ameias. Nas terras das esplanadas, oliveiras oscillam nos galhos anões e tortos, vegetações còr de cinza e os casebres, sobre os destroços, propagam-se como lepra. Pannos de muros descem, com seteiras atulhadas, erguendo a coroa denegrida pelo fumo das batalhas ; e ao alto da ladeira a abside da egreja põe ainda de pé, sobre o despenhadeiro, uma torreia desconjuntada de menagem.
Por toda a parte, no scenario maravilhoso, o grande hymno do trabalho rumorejava, entoado à vida. Fabricas fumegam, desenrolando no ar torvelinhos negros, que se vão azulando, diluindo, perdendo; uma bigorna soa compassada, como uma palpitação ruidosa ; a estridência dos gritos das locomotivas que partem de Alcântara, insiste em repetir-se continuadamente ; velas brancas sobrenadam no rio... A azáfama propaga-se, desde o cães do Sodré ao reguengo de Algés, com a respiração de cem fabricas em trabalho, o rumor continuo dos americanos, a faina do cães e a faina das ruas. Bandos de gente descarrega nos terrenos marginaes da Companhia das Lezírias os batelões que vêem rio abaixo com cortiça e carqueja; adeante, nas docas, guindastes manobram. Guinchos 6 gruas punham nos longes gesticulações mechanicas, saccudindo ou erguendo longos braços de ferro que empunham correntes. Da doca dos Mares até Cacilhas catraias e lanchas precipitam-se, correm velas e espalham-se fumos. Batem os ares bandeiras, cantam nos ares pregões; e sempre, a espaços, das válvulas anciadas, o vapor puxa o grito rouco, que lembra o berro de soccorro de um pavão assustado.
O clamor d'essa vida pululante ia-o levantando, arredando da esterihdade de uma compaixão tardia o seu coração de fraco e de indeciso, perante essa obra de esforço e de vida que saccode, estremece e enche a terra. E essa imagem da vida, apanhada de relance, prégava-lhe a inutilidade das suas lagrimas, ensinando-lhe o caminho abrupto da reparação pelo trabalho. Da sua incapacidade para a lucta resultava a collisão do seu dever com o seu interesse. Sentia-se desnorteado pela educação falsa que tivera, subindo os annos envolto na miragem d'esse engano, sem a consciência de responsabilidade moral e sem a vidência da realidade das coisas. Relanceando toda a sua vida, logo o drama de amor se deslocava da banalidade inconsistente de todo o resto ; e esse amor em que se embaraçara, tinha alumiado a confusão da sua consciência de homem por fazer, atropelando-o no crime. De toda a sua vida de indolência, a única vez que arrancara de si a scenlelha de uma aspiração e o manejo impulsivo de uma vontade, esbarrara n'um desastre. Quando puzera á prova as faculdades próprias do seu caracter, commettera uma falta. E por tão mal preparado para a vida, a vida assustava a sua inexperiência. Como um vento que abate as hervas, esse drama de amor passava pela sua vida deixando abatida a sua alma.
E com que inconsciência se arrojara aos braços d'esse amor, palpitando de alegria e vaidade quando vira crescer com o filho illegitimo o drama humano que o ia envolver na sua rede ! Não pensara então na responsabilidade moral que se ia erguendo desde esse momento na sua consciência, nem soubera vêr a desgraça que ameaçava esse filho, concebido em segredo, como uma victima do seu crime social. Se outra educação tivesse da vida, não teria ousado com certeza o perigo d'essa paixão, ou desde o primeiro instante o filho occuparia os seus receios, na previsão immediata do filicídio moral que o esperava. Mas nunca lhe tinham ensinado a olhar o amor como uma obra sagrada de reprodução e de vida ; ninguém lhe pregara o respeito pela mulher ; antes lhe tinham incutido um leve desprezo por essa escrava de amor. E o drama desenvolvera-se rápido como um temporal, quando se encontrara inesperadamente com uma familia e abrira o conflicto entre a obra da natureza e a lógica do preconceito socialmente dominante.
Que fazer, agora? E qne solução dar ao tremendo tlieorema ? Fora elle que desafiara esse preconceito e deante d'elle agora se curvava, humilhado e vencido. Ah ! que immensa tristeza, como uma chuva de cinzas, inundava a sua alma : a tristeza de ter collaborado na obra de destruição, com o remorso d'aquella morta a enluctar a sua mocidade, com um crepe. Tão triste aventura de amor, que fechava o seu cyclo sentimental n'um cemitério ! E só agora, n'essa eterna dominação comprehensiva com que a visinhança da morte aclara o espirito, elle entendia a vida, debraçado sobre o despenhadeiro da Verdade ! Não, nunca deveria ter acceite os beijos d'essa pobre, sabendo que teria um dia de a deixar, consummida de amor, desprendida dos seus braços, duas vezes desgraçada : por tudo o que tivera, por tudo o que perdera. Era fácil chorar de arrependimento sobre a obra funesta de destraição, mas tão espantosamente diíTicil lhe parecia erguer sobre as ruinas a salvadora obra de reparação !
O filho era ainda um pouco da querida morta que subsistia na terra, e não o deixaria cahir também no cemitério. Mas nunca obra de piedade e de amor tão implacáveis hostilidades levantara. Essa creança, mesmo depois do baptismo, ficava sendo um engeitado, um desconhecido para uma sociedade cujas leis se não tinham acatado para a sua concepção ; e se dentro da ordem natural era perfeita, dentro das formulas sociaes não passava de ser uma disformidade. E sonhara elle, para o seu filho, uma felicidade ! E alegrara-se, elle, de o ver sorrir, de o ouvir gritar, de o vêr mamar ! Não soubera vêr, o cego, que esse filho era um condemnado que elle condemnara e que n'essa imprevidente obra de amor que o linha gerado, altentara contra a vida, creando-a fora das condições em que essa vida devera continuar a chamar-se vida.
Como creador, cabia-lhe a tarefa de proteger e amparar o seu fillio. Desde que se atrevera a creal-o, cabia-lhe a obrigação de o amar e defender ; e elle era um homem moralmente incapaz de cumprir esse encargo, faltando-lhe a independência, sujeito ainda como estava á tutella paterna, sem ter terminado a aprendizagem da vida e ganho a consciência plena da responsabilidade individual imprescindivel ao homem no seu destino de omnipotência creadora.
Emquanto Rosa chorava, encostada ao cypreste, elle em vão procurava libertar-se da inacção sentimental que o cingia ; e chegava-lhe a vez de invejar o pobre, que aprendeu um officio, sentindo-se imprestável como uma creança inexperiente, tendo desperdiçado na falsa educação que absorvera, toda a intuição instinctiva e sagrada de lucta, com que todo o homem responde victoriosamente á fome pela consequente energia do seu esforço e do seu trabalho.
Mas era preciso romper do circulo estéril da emoção para o campo tumultuoso da acção ; e Manoel, então, decidiu partir.
-- Vamos embora. Rosa...
Ella limpou ao lençosito as grandes lagrimas que lhe desciam a face.
-- Vamos, senhor Manoel -- e tomou a deanteira, como melhor conhecedora já do cemitério, onde vinha agora todos os dias chorar, na sua escravidão de cadllita, a sua senhora morta.
Ambos atravessaram outra vez a ostentação das avenidas ermas, muradas de jazigos, por entre os alegretes cheios de rosas e Artemísias.
O carro esperava á porta ; o cocheiro fez avançar os cavallos.
-- Prompto, patrão.
Manoel empurrou a pequena para dentro, mandou bater para as Janellas Verdes, com pressa. O carro rodou, desceu a trote pela Calçada do Livramento e Cavallariças do Infante, passou as Necessidades, entrou na subida de Santos.
E á medida que o carro se approximava, Manoel voltava a tremer, sentindo-se vertiginosamente impellido pela força dominante e invencível dos factos para a irreparável obra de desunião. Debalde procurava conjugar o seu interesse de coração com o preconceito orgulhoso de familia e incorporar aquelle penoso drama na historia legal da sua raça. Por mais esforços que empregasse por habituar o espirito á ideia de que o seu filho era o neto de seus pães, essa ficção da paternidade illegitima atirava-se da terra aos ares como em esbarro, onde a sua lógica se vinha esmigalhar como uma lamina de vidro contra um muro. E ainda se recusava a vêr a verdade : o irreconciliável da sua individualidade voluntariosa com a tutella hierarchica da familia. Depiíndeate d'ella, a sua dependência material soíTria de uma duplicidade de rebeldia moral, contradictoria. Como combinar n'uma harmonia possível esses dois interesses tão oppostos, concordando a sua independência moral com a sua sujeição material ? E assim vinha ter sempre, por qualquer caminho que seguisse, á mesma conclusão inilludivel -- de que só lhe restava separar-se e partir...
Em frente á casa o carro parou ; e elle ajudou Rosa a sahir, depois de lhe dar um beijo.
O guarda-portão abriu-lhe a porta de vidro do vestíbulo e Manoel atravessou a casa por entre o mudo espanto dos creados, que sentiam o perpassar de um grande drama, que entristecia todo o prédio, como um fallecimento ou um desastre.
Por toda a parte as portas das janellas estavam meio cerradas, os stores corridos á invasão alegre do sol e do ruido. O irmão, logo no primeiro dia de doença do pae, fora mandado para o Estoril com a ■institutrice ; e a casa tinha uma apparencia de deserta, a vaga tristeza de um luto, que pousa desleixo e desprendimento em tudo. As creadas rodavam devagar pelos corredores, no mudo respeito pelos desgostos da família. Tinham levado as palmeiras e os fetos do átrio para a estufa e esquecido de substituir na grande bacia de bronze a sua ornamentação de folhagem, que tanto alegrava o vestíbulo.
Domingos, que limpava as altas cadeiras de sola do patamar, parecia mais velho, sem o aprumo de escudeiro de casa nobre, que lhe dava n'outros tempos um tão grande ar decorativo.
Ao vêr subir Manoel, Domingos endireitou-se, ficou calado, num grande embaraço, sem ter comprehendído ainda a sua chegada imprevista de Coimbra e a maior tristeza que a sua vinda trouxera. E elle, que d'antes sabia de todos os segredos da casa, como um cão amigo, pesava a grandeza do desgosto pelo grande segredo que o envolvia. Apenas soubera pelas creadas que o senhor Manoel, chegado na véspera, ainda não fora ao quarto do senhor D. Francisco para o ver e que a senhora D. Maria Domingues passara a noite com a nevralgia, sem dormir.
Manoel entendeu o seu embaraço, o olhar de magoa com que o Domingos se atrevia também a accusaro; e perguntou, sem parar nas escadas:
-- Minha mãe está no quarto, Domingos?
-- Creio que está a descançar, senhor Manoel. Como passou a noite mal , . .
Então Manoel parou, voltando-se:
-- A noite mal ?
-- Parece que foi com a nevralgia ... O senhor Manoel bem sabe: costuma sempre a dar-lhe quando tem algum desgosto.
-- E meu pae ?
-- O senhor D. Francisco, felizmente, está melhor. Já se levantou, mas ainda não sabe do quarto. Sahiu agora mesmo o senhor Conde de Ladario. Também esteve o senhor D. António de Noronha ...
Manoel sentia que de uma maneira quasi instantânea, o seu reinado de filho, dentro d'aquella casa, terminara. Ninguém lhe dissera para sahir, mas desde que a sua consciência partira a tutella paterna, a sua condição de emancipado tomava vulto. Moralmente, não cabia mais dentro do regimen patriarchal da familia, desde que tomara sobre si encargos que esse regimen lhe prohibia. Nunca mais alli deveria ter alegrias ; e sentia a opprimiro um mal estar dominante, n'essa casa onde nascera, onde se creara, que era a sua ! Pela primeira vez lhe acontecia ter de perguntar aos creados pela saúde dos pães, como um estranho. Não se animara ainda a ir vêr o pae, não sabendo como explicar-lhe o seu apparecimento brusco; e sentira com amargura que sua mãe não instara com elle para que o visse. Viera quasi em rebelde, trazendo a guerra e o desassocego, como um inimigo. Á sua passagem, apenas caras contristadas o olhavam; e era como um intruso que o recebiam, sem alegria 6 sem festa, tolerando-o por habito.
Com uma tristeza que lhe pedia lagrimas, subiu ao quarto, fechou- se á chave, abriu largamente as janellas.
A cama estava ainda por fazer, todo o quarto por arrumar á uma hora da tarde. E era de um pungente contraste com a solicitude amiga de outr'ora esse esquecimento em que o largavam, fazendo-lhe sentir a cumplicidade inimiga de toda a casa alliada contra elle. Ao seu espirito atormentado tudo se tornava suspeito e o mais leve acaso uma premeditação feroz de o expulsarem.
Alli tinha passado a grande hora de meditação de que sahira resolvida a missão cruel de sua mãe ; alli commettera o seu crime e alli o vinha expiar com o seu remorso. Que fazer, agora ? A ideia de partir dominava-o, mas o terror do abandono immobilisava-lhe a energia ; e a dissolvente tara sentimentalista do seu caracter fraco esmagou-o na inação de mais um devaneio romântico. Em toda a historia da sua paixão que mais uma vez a sua memoria erguia, na tentativa de seguir no romance de amor a trama invisivel da sua desgraça.
Lembrava-se da primeira vez que a vira, á esquina do Rocio, descendo a rua Nova do Almada no seu passinho de gaivota, com um casaco de fazenda azul de botões de madrepérola. Recordava-se do seu olhar assustado posto no mosaico do passeio, o seu gesto de prender contra o peito as sobras da mantilha, o seu timido costume de quasi roçar pelas paredes ... Tão linda era -- pensava -- com os grandes olhos tristes de engeitada, os dentes muito brancos e a sua bocca de amante, creada para beijos ! Yoltava a viver com ella o primeiro encontro dos dois e a sua primeira noite de amor com ella junta, no seu quartinho sem janella, de uma pobreza tão honesta, que parecia accusaFo do seu crime, soffrer do attentado immoral d'aquella violação ! Logo Anna também se apartara do quarto, como se tivesse vergonha de morar, depois da falta, entre aquellas paredes que tinham abrigado três annos as suas tristes noites de honesta e de sosinha. E na vida commum que ambos ao depois tinham vivido, quanta alegria, quanta inconsciência e quanto riso, jogando de casados, no arrem.edo de uma lua de mel em que ella punha os seus vestidos claros de percal e os seus deditos finos, picados pela agulha, pela primeira vez se acostumavam a atar ao pescoço as fitas de seda dos chapéos!
Tinham revolvido ambos todos os arrabaldes da cidade, desde Alpiarça ao Alfeite, desde a Atalaya á Povoa, comido de todos os pomares, jantado em todas as estalagens, com abaladas para longe, que os trazia ás vezes dois dias apartados de Lisboa, dormindo vestidos nas camas das hospedarias, como fugidos á justiça. Eram ambos novos, com naturezas vivas, de jovens animaes creados ás soltas, materiaes e fecundos. O filho encontrou-os alegres como alvoradas, recebendo esse premio de amor como um triumpho. Nunca casados tiveram hymeneu tão materialmente doce como elles, tendo-se amado fora do preconceito, n'uma união ingénua, sob o mesmo profundo culto do desejo, na excelsa perfeição pantheista do amor livre. A desgraça foi quando se desuniram, reentrando cada um na verdade sombria da vida social, que se ia vingar nos dois da independência animal em que tinham vivido aquelles mezes, subtrahidos ao seu jugo de madrasta. Em Coimbra, Manoel pensou no irremediável da falta commefctida, viu formar-se ao longe o temporal ; e como dois líquidos que se não juntam, as suas duas almas se isolaram, sem que de facto os dois se desunissem. Nascera emfim o filho e o conflicto gravíssimo declarara-se, pela collisão do acontecimento humano, irremediável, e da illegalidade social, inilludivel. A repudiação imprevidente do factor social determinara a situação angustiosa em que cahira, preparando depois do assassino legal da mãe infeliz aquelle filicídio disfarçado já imminente. Elle era ainda um tutellado da familia, sem direitos sociaes para atrever-se á investidura da responsabilidade que o vergava. Esse encargo, para que se não encontrava preparado, afastava-o bruscamente da dependencia effectiva da família, favorecendo-lhe a emancipação moral absoluta pela discórdia familiar, inevitável.
Na sua memoria a corda ferida de uma lembrança vibrou; e Manoel recordava o instante generoso em que promettera á mãe triste a realisação de um sonho de momento -- o leval-a com o filho para Coimbra, alugar um certo casinhoto branco, de paredes cobertas de vinhas, a meio de um souto de carvalhos, e continuar n'aquelle refugio, no seio protector da Natureza, a vida ephemera de felicidade e goso, amando, procreando, vivendo ...
E teria sido a felicidade ?
Não ; elle sentia que não teria sido a felicidade. Nunca pensara em amafa com o extremo de posse que exalta ao coração do homem a companheira preferida. Amara-a profundamente emquanto ella não exhorbitara das suas funcções de amante ; emquanto a acceitara na vida como uma passageira.
Nunca, nos períodos de maior desejo, a amara esposa ; sempre, nas maiores crises de amor, amara n'ella a amante. E o seu crime fora justamente o de a haver prejudicado para a felicidade e o amor, torcendo e quebrando a trajectória da sua vida humilde, sendo o cúmplice obscuro do outro, que a violara e partira, deixando atraz de si uma entrevada moral.
Só uma melhor comprehensão da vida podia ter evitado o erro inicial de que resultara todo o consequente desastre inevitável. O mal vinha da raiz, contaminando todos os suecessos, como os ramos de uma arvore atacada. Tudo provinha da criminosa inconsciencia com que pretendera transformar em brinquedo d'amor a grandeza dramática do acto de vida. A temerosa engrenagem prendera-o; a Natureza proseguira na sua obra, que nenhuma vontade humana pode entravar ; o drama descrevera a sua curva emocional, animado pela força inicial que o impulsionava, como um raio que desce ou uma avalanche que se despenha. Elle amava o seu filho como um animal, como um animal o tendo feito. Mas a obra de creação repousava na inconsistência da sua fraqueza, como uma semente atirada a uma terra árida ; e a possante i"esponsabilidade de creador falhava n'elle.
Era preciso ser homem ; e para a sua vida preciso era salvar aquelle filho, acceitando o indeclinável dever de o proteger, expiando o erro de o ter creado tora do recinto privilegiado da convenção social e sem que a sua vida pudesse responder por essa vida nova. Não sacrificaria o seu filho. Comprehendia que duas acções corriam parallelas n'aquelle drama: a da sua paternidade irrecusável, physicamente perfeita ; e a da sua incompetência moral, socialmente deffeituosa. E ainda desde a véspera a situação diíTicil se aggravara. Rosa contara a torpe exploração de Catharina, a suspeita em que Anna morrera, de que o filho era martyrisado entre as mãos alugadas da viuva. E logo Manoel, cora um cego furor, correra ao Campo Grande, a tempo de chegar antes de Catharina, que passara por casa de uma amiga a aconselhar-se, medrosa como uma cadella apedrejada, perseguida pelo terror da ameaça colérica com que o olhar de Manoel a tinha expulso. No Campo Grande, emquanto Rosa chorava á porta, foi preciso esperar um quarto de bora, antes que a pequena viesse abrir. Dentro, no quartinbo estreito e sujo, com montes de roupa usada pelos cantos, como um cesto de despejo, a creança chorava afflictivamente no berço, com grandes lagrimas de soffrimento que lhe desciam a facesita pallida ; e essas lagrimas tinham rasgado de piedade o coração de Manoel.
Era um assassinato legal que alli se consumava com seu consentimento. Viu-se n'esse instante como um instrumento fatal de destruição, matando aquelle filho depois de lhe haver morto a mãe; gosando a impunidade de todo o crime moral que escapa ao código, trabalhando serenamente e sem remorso n'essa tarefa de morte, na abominação d'esse attentado monstruoso contra a obra do seu amor e do seu sangue. E uma invencível resolução o dominara. A sua consciência recusava-se a proseguir a tarefa monstruosa. Soífresse quem soíTresse; não consentiria em continuar por mais uma hora só a padecer a responsabilidade d'aquelle crime. A creança não podia soffrer as consequências barbaras da sua falta. Nenhum preconceito ousaria ordenar-lhe o sacrifício do seu filho em holocausto a uma mentira social. Não ! Não ! Tudo aquillo ia terminar n'esse próprio instante pela própria força da sua vontade e natural repulsa da sua consciência. Era o seu sangue que padecia pelo seu sangue; a sua carne que gritava pela sua carne. A sua paternidade rompia, avassalante, n'um sentimento dominador e exaltado.
Fizera a pequena juntar a roupa da creança, arrancara á sua escravidão de batida a vingativa confissão de toda a odiosa exploração da tia ; e quando Catharina chegou em alvoroço, encontrou em casa o inimigo. Tudo se decidira em poucas palavras. Manoel tirava-lhe a creanca, que ia d'alli com elle no mesmo carro. Rosa mandaria buscar á tarde o berço e a roupa ; e ainda Catharina não voltara a si do espanto quando já Manoel sahia, levando o filho.
Na sua exaltação, não cuidara em vêr a largueza do caminho andado, que o impellia, pela execução d'aquelle acto, á emancipação da tutella paterna ; mas o desafogo maior da sua consciência compensava-o do intimo terror pela tempestade que estava preparando. Um medico consultado de caminho puzera a questão em termos nítidos: só o grande cuidado de um grande amor podia salvar a creança. E esse amor, aonde encontral-o fora da familia? Rosa, entre a sua pobreza, era insufficiente para levar a bom fim a obra de salvação. E quando elie mais se emancipava da familia, a ella se sentia na obrigação de recorrer no caso extremo. Uma repugnância invencível afastava-lhe porém esse recurso, na desconfiança instinctiva a que o exemplo da recente reacção contra o intruso encaminhara o seu espirito sobresaltado.
E toda a noite levara a tentar resolver o problema difficil da emancipação, acordando pela manhã mais enleado no labyrintho da situação socialmente irreductivel. Emancipar-se, elle ? Mas como, se não era um homem ; se não sabia nada da vida; se teria, no dia seguinte, de apellar para essa familia que tentava repudiar, na imaginosa facilidade com que se desaperta um grilhão ; sem comprehender que a ella estava aggregado por invisíveis dependências indestructiveis de sangue e de interesse, sendo socialmente uma parte integrante d'ella mesma. E ainda e sempre, o feroz problema social, que despresára, quando da temeridade da sua obra imprevidente de creação, o paralysava com a sensação oppressiva de um jugo, na sua fatalidade inexorável de destino forjado pelo homem, como um espelho em que a obra da Naturesa se reflectisse, alterada e deformada.
Chegava assim ao momento em que era preciso agir, tomar uma resolução ; e esse instante, para que se preparava havia dois dias, encontrava-o indeciso e vacillante. Não era tanto pelo fracasso da sua energia como pela ennunciação fundamentalmente errada dos factores sociaes que compunham o íheorema irresoluvel, que a sua consciência se enleava. A ida ao cemitério confundira mais o seu espirito pelo devaneio romântico que lhe creara. Gomo uma esphera, que um foco luminoso só abrange em parte, o seu espirito não conseguia a plena luz nas duas faces oppostas do problema e sempre o surprehendia fragmentado. D'ahi,. sobretudo, a terrível inquietação da sua alma.
Agir ! Agir ! Mas para fazer o que ? Elle voltava a appellar para a familia, refugiando-se na velha fórmula social irreductivel, comprehendend-o que fora d'ella era um desgarrado e um perdido. Encheu-se então de coragem, abriu a porta do quarto, desceu as escadas, atravessou a vastidão erma do corredor até aos aposentos da mãe.
Ao vel-o entrar, ella levantou-se de um salto, com uma terna altitude de supplica, lendo no seu olhar uma resolução que a amedrontava.
-- Chegaste agora, Manoel?
Elle disse que sim, com a cabeça ; beijou-lhe as mãos ambas com submissão e amor.
-- Senta-te; queria fallar comtigo...
E a sua voz tremia muito.
-- Não te afflijas, filho. Socega.
-- Ah ! Mamã ! Mamã !
Abandonou-o a coragem, cahiu a soluçar, com os cotovellos nos joelhos e a cabeça entre as mãos abertas.
-- Não, não posso mais, minha mãe. Não posso vêr o meu filho morrer e cruzar os braços, sem que nada tente para o salvar. É preciso que saibas ; è melhor que saibas tudo... Hoje pela manhã tirei-o de casa d'essa mulher a quem o entregaste. Era uma assassina a quem estávamos a pagar um crime. Que hei de fazer d'elle agora, mãe ? O medico diz-me que só um grande amor o pôde salvar... Ah! se tu quizesses, mamã!...
Ella estremeceu, sobresaltada por essa proposta inesperada com que o seu filho vinha bater ás portas do seu coração, pedindo soccorro, como um vencido que pede asylo. Podia ella recusar ao seu filho a compaixão e o amor que elle lhe supplicava ; e abandonaro n'aquelle transe como um importnno ? Ella, que tanto o amava, não devia perdoar esse exigente amor de pae, que impregnava toda a sua alma, e proteger essa sagrada tarefa d'amor em que o via empenhado?
-- Sim, filho, tudo o que tu entenderes, tudo o que tu quizeres. Mas não chores : não te atilijas ...
-- Pelo amor que me tens, salva-m'o !
Atirou-lhe as mãos aos hombros, mostrou-lhe a face alterada de lagrimas.
-- Tudo te sacrificarei, filho...
-- Mas ainda não comprehendeste que será preciso recebel-o, amal-o como um verdadeiro neto, mãe; creal-o com o mesmo amor com que me creaste a mim ? Terás tu a força de arrostar com o preconceito inimigo, que ha de empallidecer a tua coragem? Saberás tu amal-o com essa força de sacrificio? Mãe, é preciso salval-o ! É preciso não o deixar morrer, como a outra... Ah ! eu bem vejo nos teus olhos que te assustas e as minhas exigências te mortificam ...
Ella deixou cahir a cabeça no seu peito para esconder a sua recusa ; e assim vergada, emquanto fallava, ia sentindo as palpitações do coração de seu filho, onde o sangue do seu sangue tumultuava.
-- Manoel, tu bem sabes que eu sosinha não posso. Teu pae ignora tudo. Só elle pode e manda, filho... Tem pena de tua mãe, Manoel ! Nós podemos salvar o teu pequenito sem precisarmos de sacrificar a saúde de teu pae ... Tão teu amigo è, Manoel ! Tem piedade, filho. Estás exaltado, não vês as coisas como ellas são, como ellas devem sêr. Socega. Tudo farei por ti, filho...
Mas Manoel ergueu-se, ferido em pleno coração por aquelle golpe. A sua fantasia levava-a o vento, como um farrapo. Repellia-o quem mais o amava no mundo. Ninguém acceitava o seu filho ...
-- Não, mãe, não pôde sêr! Já de uma vez me quizeste salvar e ambos vimos a abominável obra de destruição qne escondeu essa imaginosa obra de salvação... Não, mãe! Mãos extranhas nunca mais! O que me prende e assusta é nada saber da vida ... Ah ! que desespero ! Que desespero, minha mãe !
-- Filho, acalma-te ! Minha Virgem Santíssima accudi-me !
As suas mãos implorantes ergueram-se, pedindo soccorro ao céo ; e logo desceram a procurar a cabeça de Manoel.
-- Filho, meu filho, socega ! Não sejas injusto. Vamos fazer tudo para salvar essa creancinha, tudo. Mas socega ...
-- Socegar emquanto elle morre !
-- Nós vamos salval-o, Manoel!
-- Não, minha mãe... Tu nada podes ; eu bem sinto que tu nada podes ...
E desembaraçando-se do abraço em que ella o tinha preso, repellindo a sua fraqueza que já o contagiava :
-- Preciso de fallar a meu pae...
Ella fitou-o com um olhar de medo, atemorisada pela resolução súbita ; passou as mãos pela testa, disse machinalmente, como uma idiota:
-- Teu pae ?
-- Preciso fallar-lhe; è preciso que lhe falle. . -- e estacando a meio do quarto, em presença da inquietação crescente da mãe, que o supplicava mudamente. -- Não te assustes. Sei que elle está melhor. Esteve cá hoje o D. António Noronha e o Conde... Como vês, estou bem informado. Parece-me que não pode haver mal em que lhe vá fallar antes de partir. Ainda tenho o meu logar de filho n'esta casa ... Ainda me não expulsaram...
-- Filho ! Filho ! Deus te perdoe o que disseste ! Elle olhou-a, viu-a cahir, vencida, na chaise-longue, mergulhada no seu choro e na sua dôr. Por um momento esteve para se atirar, pedir-lhe perdão, sacrificar-lhe o filho ; mas não era essa afflicção desmedida um exemplo que ella ainda lhe dava, ensinando-lhe inconscientemente o caminho do dever, com o seu amor egoista de mãe, capaz de sacrificar a felicidade do mundo inteiro á fehcidade do seu filho ?
Então recuou, decidido pela muda interpelaçãa do seu desespero ; e antes que ella pudesse impedil-o, arredou o reposteiro, abriu uma porta e encontrou-se com o pae que folheava uma revista ingleza, enterrado na sua poltrona de doente, com uma manta pelas pernas.
-- Dá-me licença?
O doente tentou voitar-se na cadeira, perguntou assombrado :
-- És tu, Manoel ?
Elle adeantou-se para lhe tomar a benção.
-- Para que vieste, filho? Isto não vale nada; é a ferrugem do tempo, o mal da edade. Ora para que havia tua mãe de te ir assustar ! Vê lá se isto te faz diíTerença para as aulas... Chegaste hoje de manhã?
-- Não, meu pae.
-- Vieste hontem á noite ?
-- Cheguei hontem pela manhã...
-- Hontem ?
-- E ainda hoje não devia talvez fallar-lhe, no estado de fraqueza em que se acha. Parti de Coimbra sem saber que o vinha encontrar doente. Não o quiz affligir hontem mesmo... Minha mãe tinha-me dito que não se sentia ainda bem ; aconselhou-me que esperasse ...
-- Mas o que ha? O que aconteceu? Perdeste o anno? Alguma estroinice, Manoel ? Falla, eu estou bom; isto não ê nada ...
A sua face terrosa exprimia uma inquietação enorme e os seus olhos, amarellecidos de bilis, engrandeciam-se de afflictiva curiosidade, colados em Manoel.
-- Que te aconteceu, filho ?
-- Quer então que lhe diga tudo ?
-- Não me procuraste com esse sentido?
-- Sim; é melhor que lhe diga tudo, meu pae.
-- Podes fallar sem receio. Seja o que fòr que tiveres para dizer-me, dil-o. Sabes como sou teu amigo... Tua mãe ?
-- Está lá dentro. Sabe de tudo...
Fez-se ainda um silencio e a longa confissão desenrolou-se. Elle contou tudo, desde as primeiras horas da sua paternidade illegitima, desdobrando os lances do drama já ensanguentado pela morte da pobre Anna, dizendo a sua responsabilidade e o seu dever, ostentando o seu remorso e os seus crimes. Com uma clareza de phrases rápidas, seguras, Manoel levantou a historia do seu crime moral, desenhou todo o horror das monstruosidades comettidas, sopesando as suas responsabilidades como um forçado que mostrasse as algemas. Pela primeira vez, historiando aquelle afílictivo drama de amor, toda a physionomia moral de cada lance ihe resaltava nitida ao espirito. E a consciência viva da falta encarniçava o seu coração culpado contra o preconceito inimigo. Seus paes, que tanto o amavam a elle, deviam comprehender-lhe o exaltado amor de pae que o affligia. Não, elle não podia matar com toda a calma de um criminoso, pelo mais baixo interesse da sua vida, o próprio filho, innocente da sua falta e do seu crime ...
O pae ouvira a narração do filho, emmudecido, numa concentração dolorosa. Descera as pálpebras sobre o olhar apagado e bllioso, aonde uma grande tristeza subira. As suas mãos magras tinham largado a revista ingleza, que lhe ficou sobre os joelhos, aberta, e onde Manoel lia involuntariamente, em letras enormes, vermelhas, sobre uma gravura representando uma creada a ensaboar uma creança: Pear's Soap! The finest soap of the world!
Viu os olhos tristes do pae abrirem-se lentamente, pousarem n'elle e a sua face doente ganhar a expressão compungida de uma lastima.
-- É preciso cuidar d'essa creança, filho.
Manoel ficou um instante a olhal-o com espanto, no deslumbramento da piedade generosa da sua alma, na surpresa de encontrar n'esse homem de edade uma tão sebrehumana virgindade de coração.
Uma onda sentimental galgou por elle dentro, dobrando-lhe quasi os joelhos ; e já a sua bocca agradecida se vergava sobre a sua mão tão magra e enrugada de enfermo, em que o annel d'armas, no anular, apenas se conservava retido pelo nó do dedo.
Mas o doente pousou-lhe de novo o olhar baço, amarellecido ; a sua face apagada tomou uma rígida expressão de authoridade ; e disse com uma voz cançada, cortada de pausas :
-- É preciso desviar essa creança para longe; arranjar quem a receba e trate d'ella, com o maior recato, dentro do maior segredo, Manoel. Farei todas as despezas. Mas é preciso que isso se faça já, sem demora, quanto antes. É preferível que seja fora de Lisboa. Tu voltas para Coimbra. Não has de querer perder o anno por uma coisa d'essas ? Tua mãe e eu tratamos d'isso... Estás satisfeito?
-- Não, pae -- murmurou baixo Manoel, desilludido atè ás lagrimas. -- Entregal-a a extranhos, no estado em que essa creança está, era consentir em matal-a. Eu não consinto em deixar matar o meu filho!
-- Que queres tu então?
-- Que meu pae o receba em sua casa ...
O doente quasi se ergueu da cadeira, n'um levante de indignação e de ira.
-- Recebel-o em minha casa ? Nunca !
-- Paciência, meu pae. É um filho natural, bem sei; o filho de uma amante; um filho da rua... O preconceito bane-o implacavelmente da família. É talvez justo. Mas nem por isso consentirei em matal-o. O meu logar é perto d'elle. Presos a elle tenho maiores deveres dos que a si me prendem. Sou responsável pela vida d'elle. Na casa onde não cabe o meu filho eu sou de mais...
-- Filho! Tudo isso são fantasias!
-- Pae, tudo isto é a verdade !
-- Que respeito seria esse pela familia, que permittiria integrar n'ella os filhos naturaes que os rapazes se lembrassem de fazer pela cidade ? A familia é uma instituição socialmente legalisada, que não tolera esses desmandos.
-- A familia devia ser uma congregação de amores ...
-- Fantasias! Fantasias! Que culpa me poderá caber dos teus descaminhos? A casa de teus paes não pôde ser o albergue dos teus filhos, a roda das tuas amantes. Coimbra tem-te feito mal, Manoel. Essas theorias com que vens são novas ; e se os outros estão dispostos como tu a seguil-as, eu dou-me por muito feliz em ter vivido o bastante para não me sobrar tempo de as vêr triumphar. No meu tempo, esse preconceito, que tu alcunhas de bárbaro, era um castigo para os que se creavam situações criminosas e illegaes como a tua. No meu tempo, esse preconceito era a garantia dos homens de bem. Hoje, segundo parece, pelo que tu dizes, é a sua vergonha ! ...
-- Mas, meu pae...
-- É melhor que te cales! As tuas pretenções, se não fossem pueris, seriam revoltantes! Com que direito vens exigir que se te tome conta de um filho? Para mim, tu não tens filhos ! Se a consciência te anda a gritar reparações, escusarás de me associar a ellas. São lá coisas tuas com que nada tenho que vêr. És maior, és homem; faze o que quizeres... Criei-te para uma sorte melhor -- disse com amargura. Muitas noites passei sem dormir para mais tempo pensar no meu filho. Sonhei para elle uma família, mas uma familia que nos honrasse, uma família que não nos envergonhasse ! E tu vens offerecer-me um filho natural, para que tua mãe o crie, despresando todo o respeito que te devíamos merecer, manchando toda a nossa vida com essa vergonha, desfazendo as ambições que te sonhávamos, com essa resokicão desastrada de demente! Pensa, pensa melhor. Esta exaltação faz-me mal. , . Já não sou para grandes guerras... Isto está a desconjuntar-se, Manoel.
A sua face abatida, cnde a indignação avivara rugas, teve ainda um penoso tregeito de amargura e as pálpebras desceram, cançadas, sobre o seu olhar turvo.
Manoel, em silencio, beijou-lhe a mão, atravessou o quarto velado de penumbra, arredou com lentidão o reposteiro.
Branca, de pé no meio do quarto, a mãe esperava-o.
O seu coração logo adivinhou o que se passara, no grave olhar que Manoel pousou no seu rosto. Então arrojou-se para elle, prendeu-o ao peito pelos hombros, embaraçou-o nos seus braços que tremiam.
-- Manoel! Manoel! Meu pobre filho!
E elle sentia-a balouçar nos seus braços, como um navio em perigo. A ideia de que se ia apartar d'ella para sempre, commoveu-o muito e os seus choros juntaram-se.
-- Socega ! -- dizia-ihe elle, tentando apasiguaFa. Precisas de cuidar do teu doente, viver para elle... Quiz desmanchar-lhe o abraço em que ella o apertava, já na vaga suspeita da sua partida, colando-o contra si, desvairadamente; mas encontrou então uma resistência desesperada.
-- Não ! Não deixo ... Que vaes fazer, Manoel ? Dize primeiro, meu filho...
E como o visse mudo, n'um obstinado silencio ; desesperando de lhe arrancar uma palavra, bruscamente largou-o, correu á porta do quarto do doente, afastou o reposteiro com uma precipitação de louca. Manoel, em dois passos attingiu a porta, tomou pelo corredor, desceu as escadas, apressado.
Quando abria a porta de vidro do vestíbulo, um clamor de desespero enchia a casa. Manoel ouviu sua mãe gritar, com a voz de uma assassinada que pede soccorro :
-- Filho ! Meu filho ! Vem cá, meu filho ! Quero o meu filho !
Creados correram. Já passos desciam as escadas. N'um instante, toda a casa se alvoroçava.
Elle hesitou ainda, com os olhos cheios de lagrimas, mas esse amor desvairado de mãe insuflou uma exaltação extrema ao seu amor de pae ; e com um gesto decidido abriu a porta, limpou as lagrimas, sahiu.
A falsa miragem de uma vida de fantasia e romance dissipava-se como um nevoeiro ; e era a vida real que lhe apparecia na frente, como um panorama escalvado, por onde teria de arrastar o desconsolo de uma paternidade que era um castigo, em consequência de um amor que fora um crime...
Janeiro -- Outubro de 1899.
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- TextGrid Repository (2023). Portuguese ELTeC Novel Corpus (ELTeC-por). Filho das ervas: Edição para o ELTeC. Filho das ervas: Edição para o ELTeC. . ELTeC conversion. https://hdl.handle.net/21.T11991/0000-001C-F447-F