BIBLIOTHECA PORTUGUEZA ILUSTRADA

XI

ANTONIO FRANCISCO BARATA

UM DUELLO NAS SOMBRAS

OU

D. FRANCISCO MANUEL DE MELLO

SEGUNDA EDIÇÃO

LISBOA

EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL

Sociedade editora

LIVRARIA MODERNA | TYPOGRAPHIA

Rua Augusta, 95 | 45, Rua Ivens 47

1903

I

Na ponte de Coimbra

São suavissimas as tardes de abril em Coimbra. Meandra o rio suas aguas transparentes em perguiçoso curso por sobre as areias, descantam amores os rouxinoes nos grandes tufos de verdura das margens, rescendem deliciosos aromas os laranjaes propinquos. É formosissima Coimbra n'aquelle tempo. A vetusta cidade surge elegante em vistosa pinha d'aquelle mar de verdura que a circumda, como da vastidão das aguas surge no mar a fresca Madeira. Atalaiam lhe o saudavel clima a fresquissima ribeira de Coselhas, Santo Antonio dos Olivaes, Cellas, a melancholica Arregaça, a quinta de Villa Franca e toda a margem direita do Mondego, como outros tantos baluartes de defeza em volta de praça d'armas importante.

Quem ha ahi, que, ao contemplar tão bellos panoramas, ao respirar tão balsamicos ares não sinta a alma arrobada em sensações deliciosas? É-se poeta em Coimbra n'aquelle tempo.

Era então no mez de abril de 1630. Ao decahir da tarde do dia 12, tres estudantes sahiam de Coimbra pela ponte em passeio tranquillo e conversação amigavel. Cursavam dois d'elles as cadeiras de direito e o terceiro estudava humanidades ainda.

Iam passeiando ao longo da ponte reconstruida por el rei D. Manuel, quando para a cidade entrava uma senhora de meia edade, acompanhada por uma creada ainda nova, não formosura nem belleza mas sympathica como toda a mulher n'aquella edade, sem embargo da sua cor morena, senão mulata.

No passeio da ponte pedia esmola um pobre. Era um válido mandrião. Roto e sem camisa, deixava ver um peito cabelludo e queimado das intemperies. Usava umas longas barbas grisalhas ennovelladas e sujas, e pedia esmola de chapeu na cabeça, cousa vulgar nos nossos dias, em que o mendigo já fala em communismo e conhece Carlos Max.

Pediu esmola o pobre á senhora, quando os estudantes passavam. Condoera-se d'elle a boa alma da matrona, mais por lhe ver nú o peito herculeo, do que por ter pedido sem tirar o chapeu, e dissera á creada que lhe desse alguns cobres.

Obedecia a creada dando ao pobre, que se levantara e viera ter com ella, uma moeda de cobre, que elle tomou tão apressado e soffrego que não se contentara com a moeda somente, apertando lhe a mão, tremente e lubricitante.

A moçoila soltou um grito de dôr, tal fora o aperto! e o mais novo dos estudantes, ao presenceiar aquella scena, destaca um pouco do grupo, de que fazia parte, perfila-se e exclama:

Uma dama um patacão
Quiz de esmo'a a um pobre dar,
Que elle indo-lhe a pegar
Pegou da esmola e da mão.
Fugiu lhe ella; e elle sisudo
Lhe disse: senhora nobre,
Como tudo isto é cobre
Cuidei que me davas tudo!

-- Bravo! Muito bem, Mello, muito bem! dissera um d'aquelles estudantes, que se apresentara à rapariga, consolando a.

-- Viva o nosso poeta! exclamou o terceiro.

A moça passou, e os tres continuaram seu passeio entre alegrias e risos. Proximos do O da ponte os estudantes sentaram-se no bordo, ou guarda d'ella.

-- Que te parece, ó Macedo, o improviso trovar de D. Francisco?

-- Bem, muito bem; e, sem receio d'errar, já te affirmo como a elle que seu talento é para grandes commettimentos.

-- Poeta como tu, Macedo, é que te affirmo que nunca serei, acudiu D. Francisco. E não será porque eu menos ame a patria em que nascemos, mas porque o meu estro não é, por certo, para a cantar como tu a vaes cantando. Poder-me-hei enganar, mas o poema que compões não será muito inferior ao de Luiz de Camões.

-- Obrigado pelos gabos. Devo porém dizer te que não sei mesmo se o termine. Estas materias de Direito por forma me tomam o tempo, que melhor será por-lhe eu um ponto do que pensar em o concluir.

-- Será isso um crime de lesa patria que o futuro te não perdoará, como eu começo já por castigar, apodando-te de fraco, respondera Mello.

-- Quer isto dizer, acudiu o terceiro, dirigindo-se a Macedo, que D. Francisco nem sequer suppõe quanto seja inimiga das musas uma Instituta de Justiniano.

-- Possível será, Soares, o que dizes; mas o que nós ambos temos a esperar d'elle é o acabamento do poema, que adiantado leva já, como eu tenho direito a esperar de ti, o emprego do talento, que tens, não só em descobrir argucias e subtilezas demandistas como em cantar mil feitos heroicos de nossos maiores. Tendes ambos talentos poeticos notaveis, e não deveis deixar nunca de parte o culto das muzas em proveito da esterilidade de Cujacio. Por mim, vos digo, que siga eu na vida esta ou aquella carreira, queimarei sempre alguns grãos de incenso no thuribulo da poesia. Bem sabeis que:

Não fazem mal as musas aos Doutores
Antes ajuda ás suas letras dão,

como judiciosamente observou o nosso Antonio Ferreira. Parece-me, porém, que não mais virei a Coimbra. Apezar de vermos a patria sem independencia, entendo ainda que o grande nome de portuguezes, que temos, me convida à gloria das armas, em que nossos maiores se fizeram tão grandes como nem sei se o foram spartanos e athenienses.

-- Singular resolução se me afigura essa, tão cedo tomada. Apenas ha mezes que estás em Coimbra; vaes famosamente nos estudos; esperaste n'elles um futuro laureado... Talvez que alguma nympha do Tejo travessa e feiticeira... dissera Macedo, sepultando na reticencia os ultimos traços do pensamento.

-- No vinte deste com a bola, Macedo, acudiu Soares. Olha D. Francisco como se enleia. Mas não é caso esse para mysterios: antes por melhor tenho eu que tu sirvas. Bellona, Pallas e Venus do que sómente a uma d'essas, concluiu Soares, dirigindo-se a D. Francisco.

-- Certo é que o Macedo não fez má pontaria; e, sem que vos responda enleiado, tenho por certissimo que ambos vós, em contraposição ao terrifico olhar de môcho de vossa Minerva, vos alentaes e bebeis á farta inspiração no olhar mavioso da mulher que amaes. Pois d'onde procedem vossas alegrias, tristezas, esperanças? Não é da ephemera gloria dos louros colhidos na sciencia; de não harmonisardes abstrusos principios do que chamaes direito, nem do prazer intimo de attingirdes um dia o acumen das sciencias sociaes. Da mulher vos vem o contentamento ou desprazer; por ella e para ella trabalhamos. É ella o grande iman que nos aponta sempre o norte da vida, a constellação brilhante dos nossos desejos, o maior florido da nossa primavera. Sem a mulher para nós seria o mundo uma noite perenne, em que jamais brilharia o meigo sol dos affectos.

-- Não ha duvida nenhuma, Macedo amigo, D. Francisco está apaixonado; e, em vez de trabalhar pela mulher idolatrada, elevando-se aos olhos d'ella, na manifestação do seu talento vigoroso em lides scientificas, prefere ir viver na capital vida contemplativa em adoração sua: aconselha, mas executa.

-- Mal avisado observas e me argues, respondera D. Francisco. Pódes crêr, e vel-o-has, se do proposito que tenho me não arredar.

Tresloucam-me dois amores, força é dizel-o; o de uma mulher e o das armas: medirei n'este a minha espada com a dos inimigos do nosso nome glorioso, e terçarei por ellas nas pugnas da sciencia e nas da poesia. Sem competencia com o auctor dos Lusiadas, como elle brandirei a lança ou manejarei a espada, movendo a penna no exaltar e transmittir á posteridade os feitos imperecedores que praticármos.

-- Não pelo teu merecimento, já sobejamente provado no Collegio de Santo Antão, nem por tua bravura patenteada no desastre da Corunha, em que te não deixaste sossobrar, nem escarmentar como aventureiro, que foste, mas pela natural antinomia do clarim guerreiro e da frauta pastoril, antes penso que mais pendor tens para armas e amores, do que para lettras e sciencias.

-- Mui adrede me contrarias; conheço a intenção.

-- Enganas-te quiçá, D. Francisco: tens dormente a perspicacia d'esta feita. Que alma e vida te dês e votes a amores bem e louvavel me parece, como egual apparencia tem para mim a realisação de tuas idéas litterarias; o que, porém, se me afigura verdura d'annos são esses pruridos bellicos que te enfeitiçam com o vistoso do trage e o brilhante das armas bem açacaladas.

E falaste no amor da patria! Já não temos patria, D. Francisco! Já lá vae o tempo em que as quinas do primeiro Affonso tremulavam no tope dos mastros das naus portuguezas no Oriente; hoje, é somente por vangloria d'elles e afronta nossa que as ensancham no arrogante pavilhão de Castella, esses castelhanos de má morte! E queres seguir a vida das armas, por defender com teu braço de portuguez lidimo o throno vacilante d'esse imbecil Pilippe! Olha, D. Francisco, dá de mão a esse projecto, que alimentas, se queres ser genuino portuguez, e credor á posteridade de algum agradecimento. Combate os castelhanos, sim, combate; mas com a penna, até que um dia, em futuro por ventura proximo, os possas agredir com a espada. Crê tu, D. Francisco, creiam ambos, meus amigos, um pensamento que me salteou desde que o Olivares empolgou o poder: este homem far-nos ha grandes damnos, gravames e offensas, mas trará a liberdade da nossa patria nas ancas do maltratar.

- Muito bem, Soares, muito bem. Comprazem-me esses nobres estimulos, essas patrioticas idéas. Comtudo, cedo me parece para tão ardorosas praticas e jubilosos epinicios. Vae rija a tempestade do nosso captiveiro, e nos cerrados horisontes da patria afigura-se-me que tarde brilhará o sol de nossa liberdade, o dia de nossa redempção, dissera Macedo.

-- Não sei se brilhará cedo ou tarde essa luz emancipadora, acudiu D. Francisco enthusiasmado. O que sei já é que forçoso me é rebater as acrimonias do Soares, e não sei mesmo se censuras. Consumado é facto da nossa união politica à Hespanha. Assim o quizeram os imbecis governadores do reino, que nos legara um rei mais imbecil ainda, e não sei mesmo se culpados no delicto politico foram nossos paes, que se abstiveram de cooperar com D. Antonio para a defeza do reino e de nossas liberdades. Oh cardeal, cardeal!inepto filho de um rei venturoso, que apertadas contas deverás ter dado a Deus do teu doble proceder para com um povo heroico, a quem levaste á condição do escravo, á servidão do helota! Não temos patria? Temos, sim, no livro de Luiz de camões, nas Decadas de Barros, nos escriptos do bispo Osorio. Hemos de ser portuguezes em todos os seculos. Pois que? Sumiu-se por ventura o nome de Apimano, o de Cesarião, o de Viriato, quando Roma traidora triumphára dos Lusitanos? Não. Nunca jamais. Brilham hoje como então e como sempre nos fastos do valor humano. Concorrendo para a sustentação do throno de Filipe III mais hei de zelar o meu nome de portuguez immaculado, nas batalhas em que me achar. Sim, reprehensivel desidia fòra a minha se não seguira o pendor de meu genio para as armas. E se um dia vier em que a patria careça de valor dos filhos, ver-me heis combater á sombra do pendão nacional a quantos o pretendem humilhar, e prouvera Deus que fosse a castelhanos, que não me seria desairoso a mim o proceder. Um facto é hoje a nossa união; um facto poderá ser ámanhã o rompimento d'esse forçado laço que nos prende ha quarenta e tantos annos. Arguis-me? Com que fundamento o fazeis? Pois não vos destinaes vós mui breve a servir ao neto do Demonio do meio dia com a toga, a penna e a palavra? Por certo. Na diplomacia ou na magistratura servos ha grato um logar. Ora, dae que eu sirva Portugal com a espada como vós o servireis com as letras, sem que para vossos desejos possa servir de estorvo a falta de independencia, que não temos.

-- Não arrasoamos mal, não, D. Francisco. E Soares conseguiu o fim que mirava, arguindo-te. Quiz estimular-te para te ouvir, que bem lhe respondeste.

-- Alguma razão tens, D. Francisco, disse Soares; mas o que te certifico é que não seria eu quem expozesse minha vida aos pelouros inimigos, quando não fosse em defensão do reino em que nascemos.

-- Nem sei mesmo se o farias então: noto em ti propensão decidida para a paz e para o socego, e mais facil se me antolha contemplar-te no futuro gordamente vestido de burel em Alcobaça do que sopesando nos combates uma comprida partazana.

-- Não me repugna a idéa absolutamente, respondeu Soares. Famosa posição topographica tem Alcobaça, ares excellentissimos, aguas saborosas, coutos e veigas que nem os jardins das Hesperides, vasta, rica e variada livraria... tudo. Não falta nada alli. Para todos os espiritos tem o D. Abbade alimentação condigna. Confessionario e pulpito. Pulpito! Que vantagens não póde tirar o homem habil do sermão! O frade tem sentimento e coração como outro homem, e offensa fôra suppor que no dia da profissão o considerassem morto para o mundo em que nasceu, viveu e sentiu. Homens austeros, totalmente convictos da missão que professaram, verdadeiros crentes, acho que só tivemos ainda um; foi elle Fr. Thomé de Jesus. De Fr. Bartholomeu dos Martyres suspeito algum tanto. Vês, pois, que não será a vida monastica a peior das que um homem pode seguir n'esta breve passagem na terra.

-- O que é certo, disse Macedo, por fim, é que nós temos discursado á larga e a noite já se approxima para nos atalhar a conversação. Se vos não destôa o meu parecer entremos na cidade.

-- Entremos, respondera D. Francisco, que não pouco havemos já taramelado.

E os tres estudantes desceram da guarda da ponte e tomaram a direcção da cidade.

Cantavam o seu eterno canto d'amores áquella hora os rouxinoes nos sinceiraes do Mondego; marulhava este suas aguas nos arcos da ponte; começava a tremeluzir uma ou outra estrella no firmamento; brilhava já uma ou outra luz na cidade.

-- Foi aqui, disse repentinamente D. Francisco, parando, onde ha pouco desfechei sobre a moça alguns maus versos. Tu, Macedo, pois que menos falaste esta tarde, bem podias ir nos recitando as ultimas estrophes do teu poema.

-- Dizes bem, acudiu Soares: deletreámos em diversas cousas e preterimos a poesia, que não podemos dispensar.

-- Ao contrario do que dizes, affirmo eu que não deixámos de ser poetas e sonhadores. Começámos o passeio com o improviso de D. Francisco, e tanto ramificámos a idéa que não sei se mais borlas terá um chapeu do bispo armenio, respondeu Macedo.

-- Pois bem é que termine o passeio como começou, em verso: recita, pois, as ultimas estancias ao menos, se para mais te sentes mal disposto, instou D. Francisco.

-- Não me lembro de nada, no entanto... E parou um instante como por se recordar, proseguindo:

-- Ando compondo o canto IX e d'elle me lembram estes versos:

Se por amor se alcança ser amado
Quem meu amor eguala na firmeza?
Se por nobreza d'um e d'outro lado
Quem póde avantajar-se me em nobreza?
Se por thesouros, se por grande estado,
De meus estados sabes a grandeza;
Se por esforço, bem conhece o mundo
Que não ha n'elle Polymion segundo.
Só não sei se meu rosto resplandece
Delicado e gentil para agradar-te;
Que só consulto o espelho que offerece
Em claros feitos o glorioso Marte.
Mas nem creio que affecto te merece
Belleza vã da natureza ou d'arte,
Nem que anteponhas a viril semblante
Aspeito vil de efeminado amante.
Se o céo, oh rica prenda, te formara
Com sogeito capaz de humano preço,
E tudo finalmente me faltara,
Te merecera só no que padeço.
Mas não attendas isto, só repara
(Se que repares em meu bem mereço)
Que a creação, o sangue, a propria terra
Me promettem victoria em tanta guerra.
Não creio, não, não creio que anteponhas
Á minha fé incognito estrangeiro:
Meu mal só nasce de que não te exponhas
A declarar a el-rei o amor primeiro.
Dispõe-te, pois, que quando te disponhas
Como merece amor tão verdadeiro,
Presente estou, nem força nem fortuna
Tanto poder terá que nos desuna.
N'este affecto que vês, n'este amor puro,
Thronos, reinos, thesouros não respeito:
Teus braços para o throno só procuro,
Outro reino não quero que teu peito;
Nem mais thesouros (pela fé t'o juro
Que a tão doce prisão me tem sujeito)
Que os saffiros, rubis, e o aureo vello
De teus olhos, tua bocca e teu cabello.

-- Bravo, exclamára Soares.

-- Muito bem, acudiu D. Francisco. Tens n'essas instancias formosos versos. Continua.

-- Não ha mais: são esses os ultimos que escrevi.

N'isto passavam elles o arco de Santo Agostinho e entravam em Coimbra: era noite.

Quem seriam, pois, estes mancebos cultores da poesia?

Eram D. Francisco Manuel de Mello, um dos nossos mais benemeritos escriptores, Antonio de Sousa de Macedo, auctor do poema Ulyssipo e de outras obras estimadas, e Vicente de Gusmão Soares, auctor da Lusitania Restaurada.

II

O fidalgo e o pagem

Moravam na Couraça dos Apostolos dois dos estudantes: Macedo e D. Francisco, e eram mesmo companheiros de casa. Na phrase d'hoje, porventura já d'aquelle tempo, Sousa de Macedo era Veterano do Calouro Mello. Dirigiram se, pois, a sua casa, emquanto, despedido d'elles á porta de Belcouce, Vicente de Gusmão Soares tomava para a rua das Fangas.

Já começavam a subir a Couraça quando lá no alto da ingreme rua distinguiram ainda um cavalleiro, que descia e que não podiam conhecer não só pela distancia como pelo escuro da noite que começava a cerrar-se. Prestes, ao aproximarem-se, viram os estudantes parar o cavalleiro, voltar-se para o renque de casas, que se retratam lá em baixo no Mondego, e falar com alguem.

Chegavam os estudantes ao cavalleiro exactamente quando uma voz feminina parecia responder a uma pergunta feita.

-- Não sei quem é; não o conheço.

N'aquella pennmbra, já mais trevas do que luz, D. Francisco Manuel conhecera na gualdrapa do sellim as armas do conde de Sortelha, não conhecendo, comtudo, ao cavalleiro.

Macedo, que conhecera n'elle um escudeiro, ou pagem, pela libré que trajava e o ouvira perguntar por alguem á sua porta, interrogou-o:

-- Quem buscaes?

-- Um estudante de Lisboa, por nome D, Francisco, que mora n'esta rua. Será vossa mercê?

D. Francisco Manuel, que se approximára, mal vira as armas da casa de Sortelha no teliz do cavallo e na capa de baeta de cem fios do pagem, tomou á sua conta o responder á pergunta;

-- Eu sou a quem procuraes.

Apeou-se immediatamenre o pagem e descobriu-se diante do estudante, accrescentando que para elle trazia de seu amo e senhor uma carta.

-- Dae-m'a, pois, respondeu D. Francisco, trasbordando de um jubilo, que mostrou occultar a Sousa de Macedo. Tomando a, accrescentou, perguntando:

-- Ides para Lisboa, ou voltaes a Goes?

-- Hei de esperar em Coimbra a vinda do sr. conde e partir d'aqui com elle para Lisboa.

-- Dizei me onde ides pousar.

-- Á estalagem do conde de Cantanhede, onde o senhor D. Luiz pernoitará quando vier.

-- Fico vos obrigado. Dizei-me ainda o vosso nome.

-- Francisco Cardoso, para servir a vossa mercê.

E o pagem, que era um esbelto mancebo, airosamente vestido com o seu sombreiro preto, sua capa de baeta de cem fios, gibão de gorgorão de lã, calções de sargeta, meias e escarpins de panno de linho, dando as boas noites e despedindo se dos estudantes, montou a cavallo e desceu a Couraça.

Os dois entraram em casa.

Antcnio de Sousa de Macedo, a quem não escapara o contentamento de D. Francisco, e cimentando logo na mente duas idêas, para d'ellas tirar alguma illação, disse a D. Francisco:

-- Ignorava que houvesses relações com a casa de Sortelha.

-- Temos. Desde pequeno que vou com meus paes aos saraus de D. Francisco.

Apezar da muita naturalidade e disfarce com que o interrogado respondera, Sousa de Macedo, se apparentemente pareceu acceitar a resposta, no seu modo de ver intimo regeitou a para logo, cada vez mais convencido de que a carta não era do conde de Sortelha. Mas de quem seria então? O pagem fôra explicito. Antonio de Sousa de Macedo conhecia o conde de Lisboa, mas não era das relações d'aquella casa, nem sabia mesmo de que pessoas se compunha áquelle tempo. Lembrando se, porém, da annunciada saida de Coimbra de D. Francisco, por causa de dois amores: o da patria, que elle collocara depois do de uma mulher, que era o segundo, sendo aos olhos de Macedo antes o primeiro e mais exigente, formára tenção de ir no encalço da idêa até chegar a um qualquer resultado.

Assim, redarguira com intuito prescrutador:

-- Ouvi em Lisboa falar da belleza de uma sua filha...

-- Duas filhas tem o conde, é certo, respondeu D. Francisco, mas sem essa belleza preconisada.

-- Quem desdenha quer comprar, disse comsigo Antonio de Sousa; e, para D. Francisco, redarguiu:

-- Formosas te não parecerão a ti, poeta e sonhador de gregas esculpturaes; sel o hão talvez para muitos de menos ruim contentar. Mas, continuou o famoso auctor da Eva e Ave, occultando na adversativa a proseguição do seu inquirir, careço de estudar uma corpulenta lição de direito, e, se o julgas acertado, vamos primeiramente ceiar.

-- Não tenbo ainda appetite nenhum. Só mais tarde ceiarei. Vou ler esta carta e escrever algumas para Lisboa. Adeus. E cada um entrou no seu acanhado domicilio.

Famosos tempos aquelles em que nossos avós não conheciam ainda as virtudes do chá! Efeminada e delambida potagem, que vieste fazer á Europa vetusta, e viril, e forte e combatente? Contribuir pára amollecer seus filhos robustos, roubando lhes os doces somnos, com prejudicial excitação nervosa, e, de camaradagem com o tabaco, envenenar os descendentes dos homens fortes que nunca jamais se arreceiaram do mar enfurecido, que rasgavam com a proa de suas naus, nem de mouros, indios, cafres ou chinezes, em cujas terras longinquas, implantavam destemidos a arvore da Redempção, plena de seiva, de rama e de sombra vivificadora!

Nos tempos em que vivemos considera-se o chá como elemento creio até que civilisador, e bem creado, cortez e polido, pois que não é raro ouvirmos do homem menos devotado a modos palacianos, embora honrado portuguez às direitas, -- que não tomàra chá em pequeno! Mas Affonso d'albuquerque e D. João de Castro, que não consta da historia haverem tomado chá em creanças, avassallaram o oriente que se deliciava com elle! Mas D. João I e Nuno Alvares, que em menos de meia hora levantaram um throno e collocaram n'elle um rei, foram modelos de brios e não tomaram chá! Mas as mulheres da Peninsula, que não tomaram chá, foram collos de garça e chamaram-se formosas como Leonor Telles, sendo as de hoje em dia rosas pallidas de estufa que a mais leve brisa amarellece e desfolha!

Proscripto sejas, ó chá, que me roubaste a portuguesa ceia de meus avós; nos campos, saboreada ao pé da lareira, onde a labareda e candeia cravada no mancebo enchiam o recinto de luz, com phantasticas historias promiscuamente adubada; nas cidades á luz de velas em candelabros, pausa e descanço á doce languidez de saraus, com versos e musicas e danças!

Porém, dirá o leitor benevolo e curioso de saber o que diz a carta que o conde de Sortelha enviára ao estudante, que nenhum empenho tem em conhecer a antipathia que eu tenha ao chá, e que melhor avisado andarei proseguindo a narração d'esta veridica historia, do que divagando á larga por episodios fastidiosos. Razão haveis, illustrados ledores. Dir-vos hei, comtudo, que assim como o fructo, se não prohibido, ao menos diffcultado, mais saboroso nos parece e mais ardentemente se deseja, assim mais appetitosa achareis esta narração de factos da vida de um homem importante, nas armas e letras portuguezas.

O que dizia a carta não sei, porque se perdeu esse documento; mas de que fôra lida anciosamente, beijada em seguida e bem guardada depois, vos posso eu dar conhecimento. Irrequieto o estudante depois da leitura d'ella, abrira a porta do quarto, passando pé ante pé pelo de Macedo, descendo a escada e sahindo de casa.

Que assumpto seria o d'aquella carta, que tanto parecia haver inquietado a D. Francisco e o forçava a sahir áquella hora da noite? Sigamo-lo nós, leitor, e vejamos a direcção que toma.

Desce a Couraça embuçado na capa, e occultando mesmo o rosto na dobra d'ella, que lhe cobre q peito. Apezar do escuro da noite, a precaução tinha uma razão de ser na sua posição politica de calouro, que o aconselhava a não ser conhecido, para de tal modo evitar as cassoadas, já então muito usadas em Coimbra. Chegado á porta de Belcouce passa o arco romano que alli existia n'aquelle tempo, segue pela rua das Fangas, dobra o cotovello d'Almedina, atravessa a calçada, entra na Praça, pelo lado dos açougues, e toma a direcção da estalagem do Conde de Cantanhede. Apenas chegado, pergunta por um pagem do conde de Sortelha, que chegara de Goes, pouco havia. Appareceu aquelle, mal soubera ser procurado por um estudante.

-- Não vos fiz ha pouco as perguntas que desejava, por não estarmos a sós, e para vol-as fazer venho.

-- Prompto para servir a vossa mercê, sr. D. Francisco, e com tanta mais vontade quanto tambem eu tenho empenho em vos falar, respondera o pagem.

Entraram na casa de jantar, onde se acabava de pôr na meza a ceia para Francisco Cardoso. D. Francisco, que não ceiara com Antonio de Sousa, achou que devia pedir também ao creado ceia para si.

-- Pois quererá vossa mercê comer em minha companhia? acudira muito admirado Francisco Cardoso.

-- Certamente, respondera o estudante. E os dois começaram a comer e a conversar.

Fineza grande era, na verdade, a que D. Francisco Manuel de Mello fazia ao pagem. As leis da nobreza d'estes reinos e senhorios de Portugal ainda hoje se oppõem como muito mais o fariam então, a que um pagem qualquer se podesse sentar à meza de seu amo! Tinha e tem a sociedade em que vivemos, muitos preconceitos ainda, e por vezes cada qual mais ridiculo. Para que distincções no acto mais natural e forçado do ser humano, era que necessariamente se nivelam, n'aquella exigencia da carne, o fidalgo e o seu pagem? Envergonhar-se-ha o nobre de que o vejam comer, mastigar e engulir? Não saberá elle que, pelo menos no phenomeno da mastigação, é similhante ao pagem? É que D. Francisco Manuel de Mello era republicano utilitario: não direi communista de Paris ou d'Alcoy, mas egoista bem entendido.

-- Dizei-me vós uma cousa, Francisco Cardoso, D. Branca de Vilhena, ao dar-vos a carta, nada mais vos disse? perguntára D. Francisco.

-- Se disse! Eccommendou me muito que buscasse falar a vossa mercê por lhe dizer que fosse mui cauto quando chegassem.

-- Notavel cuidado! Pois não poderei eu comprimentar vossa ama e senhora quando visitar a D. Francisco seu pae?

-- Será que vossa mercê desconheça o projecto que tem o sr. conde de casar a sr.ª D. Branca...

-- Casar D. Branca da Silveira?! exclama pondo-se de pé o estudante.

-- E creio ser cousa assente entre o sr. conde e... respondeu Cardoso.

-- E quem? volveu rapido D. Francisco Manuel.

-- Não vol o posso dizer.

-- Não podeis? Haveis de poder: exijo o.

-- Porém a sr.ª D. Branca pediu-me para que o não dissesse a vossa mercê.

-- Ha, pois, dobrez em vossa ama para commigo?! Oh! mas não póde ser! Exclamára o estudante, sentando-se pensativo.

-- Socegue vossa mercê, sr. D. Francisco, que vae precipitado n'esse juizo. A sr.ª D. Branca ama-vos ardentemente, sei o eu.

-- Mas vae desposar a outro homem!

-- Ainda não sei se casará com outro homem, apezar de muito o querer o sr. conde. Bem sabe vossa mercê que esse casamento projectado póde não se ultimar, dado que meu amo saiba da affeição que tendes desde creanças.

-- Ultima, porque eu possuo poucos haveres, minguada casa. E depois de breve meditar: Dizei me, porém, quem pretende a mão de Branca de Vilhena, oh! dizei-m'o já.

-- Direi, se vossa mercê promette occultar esta denuncia.

-- Prometto.

-- O pretendente é seu tio, o novo conde de Villa Nova, D. Gregorio de Castello Branco.

-- O dengoso Thaumaturgo?! exclámara rapido o estudante, erguendo se de novo e passeiando agitado.

-- Socegue vossa mercê, torno a repetirvol-o. A sr.ª D. Branca de Vilhena será sempre vossa, posso affirmal o eu.

-- Como? perguntara D. Francisco parando, de olhar fito em Cardoso.

-- Dizendo a vossa mercê que a sr.ª D. Branca me tem confiado os segredos de sua alma, como se fôra a um irmão.

-- Pois D. Branca disse vos...

-- Tudo, interrompeu Francisco Cardoso.

-- Indiscreta foi.

-- Vossa mercê offende um amigo com essas palavas. Pois o que monta ser eu seu pagem d'ella para que sua boa alma me não confie um segredo? Ao contrario do que pensaes, creio eu que de bom aviso foi o confiar-me a sr.ª D. Branca este segredo de vossos corações, pois que, pelo muito que lhe devo a ella, alma sempre generosa e boa para com os pequenos sobre tudo, vos hei de prestar a ambos alguns serviços por ventura do vosso agrado.

-- Não vos julgueis offendido, Francisco Cardoso, que nenhuma intenção tive de vos maltractar. Um pagem confidente dos segredos de sua ama não é, por certo, caso dos mais ordinários, e então...

-- Ao contrario ninguem melhor pode conhecer oviver intimo de seus amos do que o seu criado. Certamente vossa mercê não attentou bem, pois que se o fizera, casos acharia em que um pagem póde salvar ou póde perder e matar. Não conhece vossa mercê o caso do gentil homem Alcoforado? É bem vivo na tradição... Foi morto pela lingua de um criado...

-- Não foi. O duque suspeitava, e quem de todo acabou com elle na deliberação, foi ver um dia uma joia que dera à esposa D. Leonor de Mendonça, no chapeu de Antonio Alcoforado. A denuncia do crime foi aquella leviandade.

-- Perdõe-me, sr. D. Francisco, mas saiba que de meu avô, que Deus haja e lá foi creado em Villa Viçosa, me veiu essa historia mui certa. Tão nobre e dignamente respondera ás arguições de D. Jayme á offendida esposa, que o duque sairá vencido, e envergonhado mesmo de haver enrostado á mulher tão feia mancha. Á saida, porém, dos aposentos de D. Leonor, foi o creado Pedro Vaz quem taes cousas lhe disse, verdadeiras ou falsas, que D. Jayme retrocedendo enfurecido, a prostrou a golpes de punhal. Bem vê, pois, vossa mercê que eu sei essa historia, e que foi aquelle Pedro Vaz quem perdeu a desditosa senhora.

-- Vilão procedimento foi o d'esse Vaz contra a innocente senhora, dissera mal humorado D. Francisco, com aquella narrativa.

-- Desculpe-me vossa mercê, se o contrariar, que só por amor da verdade o farei, e pela honra de um dos meus e minha propria. D. Jayme não amava a esposa, com quem casára por não desprazer ao senhor rei D. Manuel, sendo ella creança ainda: a senhora duqueza, nova, linda, não devia viver feliz. Antonio Alcoforado entrava de noite nos paços do Reguengo de Villa Viçosa pelas janellas do jardim: apontavam os bem dizentes para uma dama do paço, de quem não diziam o nome, e os malevolos para a duqueza. Por amor de quem entraria Alcoforado, sr. D. Francisco?

D. Francisco não esperava por certo que tão sabedor fosse um pagem do conde de Sortelha, e cada vez mais se admirava d'elle ao modo por que o ia tractando. Ficara algum tempo silencioso a encaral-o, e dizendo para comsigo: - Este homem não é desprovido de talento; póde-nos ser util ou muito perigoso. É preciso cautella. -- Parecendo lhe porém, desairoso não volver resposta ao pagem, disse-lhe apenas como quem deseja pôr termo ao incidente:

-- Por quem entrava Alcoforado nos paços de Villa Viçosa a horas mortas da noite, nenhum de nós o sabe, bem como explicar a razão por que D. Jayme tanto se penitenciára depois de assassinar a mulher. Porque se penitenciaria o duque? Pensae nisto pois que haveis natural esperteza.

E mudando logo de rumo, deu velas ao vento para o porto que deixára perguntando a Cardoso:

-- Sendo, pois, a senhora D. Branca vossa amiga, tanto que a desejaes servir, duvida nenhuma tereis em nos prestar, a ella e a mim, que serei lembrado, alguns serviços neste affecto que nos prende desde creanças?

-- Já me disse vosso amigo, por que o sou d'ella: podeis contar commigo.

-- Olhae bem: ponderae o que dizeis.

-- Póde confiar em mim, sr. D. Francisco.

-- Confiarei, e bebamos pela manutenção da promessa.

-- O quê? Pois quereis?... Não vedes que sou...

-- Bebamos, foi a resposta de D. Francisco.

E beberam. Terminada a ceia D. Francisco pagou as despezas, despediu se do pagem, saindo e tomando a direcção da Couraça.

III

Uma cheia no Mondego

Na tarde do dia seguinte áquelle em que os tres academicos passeiáram na Ponte de Coimbra, saía d'esta cidade um cavalleiro garbosamente montado em um formoso mursello, e seguiu a direcção de S. José dos Mariannos, collegio extramuros da cidade contra o nascente d'ella, no monte aureo. Era um moço de pouca edade mas já bem talhado de formas. Vestia calções de melcochado preto, meias de agulha, finas, roupeta e jubão de gorgorão de lã rôxa, capa de crise alienada, apassamanada e bandada, levando na cabeça um chapeu com pluma preta. Descendo sobre a Arregaça atravessou aquella baixa de olivedos a galope, subiu a pequena encosta que lhe vedava na frente a vista do Mondego, e desceu sobre as Torres, pittoresca aldeia na margem direita do rio, perto do ponto em que a barca de passagem dos Palheiros vae reatar na margem esquerda a estrada para Poiares, Arganil e Goes.

Apenas avistára o Mondego notára o cavalleiro que suas aguas corriam turvas e barrentas, e parecia encorparem a olhos vistos. Não se admirára, porque tão precipite desabou de madrugada e quasi durante a manhã sobre Coimbra uma forte trovoada, com chuvas torrencialissimas que aquelle avolumar de aguas era natural consequencia no rio que, desde o seu nascimento até áquella cidade, corre sempre entre serras altas e muito escarpadas.

Notaveis são as cheias do rio Mondego. Quem o comtemplar no verão, minguado d'aguas, quasi arroio preguiçoso sobre areias amarelladas, mal cuidará como se ostenta temeroso e arrogante no inverno, avassalando insuas, arrancando azenhas, arrebatando vidas, desfazendo açudes, subvertendo bateis! Se não tem, como o Douro, passos arriscados, tem cheias tão perigosas pelo repentino e traiçoeiro manifestar, que não ha escapar á sua furia.

Provêm estas repentinas enchentes umas vezes do desgelo da neve na serra da Estrella, outras das chuvas torrenciaes, que não achando por aquelles montes chapadas que as embebam, as deixam cair sobre o Mondego em catadupas ruidosas, arrastando arbustos e terras dos algares, que vão lambendo e cavando.

Estreito á Portella é o leito do rio e piçarroso quasi sempre, por forma que aquellas aguas, comprimidas entre margens graniticas, correm volumosas e precipitadas até que nas alturas de Coimbra se espalham e alargam pelas insuas e campo de Bolão, deixando sepultada a parte baixa da cidade. Occasioes ha em que tão subita se manifesta a enchente que mal deixa tempo ao moleiro, á lavadeira e ao pastor para se lhe escaparem, não podendo salvar das aguas o pão, a roupa e o gado. Espectaculo imponente é então o comtemplar da ponte de Coimbra uma d'essas enchentes. Contorcendo-se como uma serpente monstruosa, e revoluteando em cachões medonhos, á flor dos quaes ora apparece uma trave, ora um moinho inteiro, ora um animal morto, quando promiscuamente se não avista com aquelles destroços o cadaver de um ser humano, o Mondego é, na verdado, pavoroso.

O cavalleiro, depois de contemplar parado por alguns segundos o rio, chegou as esporas ao cavallo e continuou caminho das Torres. Seriam seis horas da tarde. Alli chegado, atravessou a aldeia e foi parar ao porto do embarque ou desembarque de quem vae ou vem das terras da margem esquerda do rio, ou das da direita para aquella. Apeando se, e prendendo o cavallo a uma arvore, começou de passeiar, parando de espaço a espaço a olhar para a estrada, que da elevada serra do Carvalho baixa para o Mondego, como quem espera ver descer por ella a alguem.

E o rio cada vez mais formidavel e temeroso.

Do lado opposto avistavam se no porto algumas pessoas, que pareciam altercar com os barqueiros, talvez porque estes se escuzavam a passal-as para cá, receiosos da cheia, que já apavorava.

Decorrera uma hora. Passageiros havia já em ambas as margens do rio, que pretendiam atravessal-o. No porto em que se achava o cavalleiro, nenhum barqueiro estava, mas do lado opposto, para onde haviam passado, e onde permaneciam, áquelle tempo temerosos do rio, como até então á espera de passageiros.

Haveria hora e meia que o cavalleiro avistára o Mondego, e, por tal modo tinha elle engrossado n'aquelle tempo, que alargava em suas aguas espumantes os salgueiros e sinceiraes das margens.

O dia, que se conservava escurecido por grossas nuvens, principiava áquella hora a tornar-se mais escuro ainda, com a approximação da noite; e na impossibilidade de poderem passar para a margem esquerda retrocederam para as Torres alguns homens que, perto do cavalleiro, esperavam debalde pelos barqueiros, deixando o só. Este, cravando sempre a vista na escarpada descida da serra do Carvalho, e como desenganado de que por ella não descesse a pessoa ou pessoas que esperava, tomára a deliberação de montar a cavallo e de voltar à cidade. Mal desprendera o andaluz mursello e pozera o pé esquerdo no estribo, avista elle na margem opposta uma cavalgada de dez a doze pessoas, que da aldeia dos Palheiros já descia para o rio. Prendeu de novo o cavallo e esperou. Depois de alguns minutos de demora viu o cavalleiro desprender-se da margem de la o barco, guiado por seis homens com varas, tres por banda, trazendo, ao que lhe parecia, parte da comitiva, que vira chegar a cavallo.

O barco fez-se ás aguas morosamente, tomando logo um andamento rapido, antes mesmo de vadear metade da largura do rio, como convinha quasi em linha recta, para depois aportar em qualquer ponto da margem direita. Inuteis eram os esforços dos seis barqueiros por lhe retardar a marcha, tal era a corrente impetuosa! Observava o cavalleiro aquella marcha do barco sem d'elle tirar a vista, com uma anciedade de quem n'elle vê pessoa que lhe seja querida e por cuja existencia tenha grande cuidado. Ao porto em que se achava impossivel era já o vir aportar o barco, tanto se afastara na descida; sem conseguir rasgar ao menos meia corrente. N'isto, chegam a seus ouvidos os sons de um vozear no barco, que se afastava rio abaixo levado das aguas, e nota que os esforços dos seis tripulantes haviam conseguido ganhar meia largura do rio com o barco, que principiára a resvalar para a margem em que se achava. De grande perigo estava salva aquella gente.

Passando da anciedade ao contentamento, o cavalleiro desprende o cavallo, monta rapidamente e galopa na direcção das Torres, para ir ao encontro dos passageiros.

Chegado proximo do ponto em que o barco aproára a terra, parou alguns instantes como quem procura reconhecer aos que desembarcam. De repente, sem se approximar d'elles, retrocede em mais rapida carreira e vae de novo parar no porto d'onde sahira pouco antes.

Mal elle chegára, eis que do porto da margem esquerda se desprende outro barco, tripulado por maior numero d'homens do que o primeiro. Pelas varas o conhecia o cavalleiro, sem poder distinguir quem fossem os passageiros, não só pela distancia como por falta de luz. A noite descia precipitada sobre o rio. O batel, preso por mais varas, não se deixava levar como o primeiro, pela corrente das aguas, mas não conseguia também vadear aquelle leito caudal, ou attingir metade da distancia, ponto em que a força era maior. A proa tentava cortar as aguas e a corrente arrastar comsigo o barco. N'estas circumstancias, indo agua abaixo como o primeiro e deixando para traz o cavalleiro, tomou este o expediente de ir seguindo o barco pela margem direita. Chegado era este defronte do sitio em que desembarcaram os primeiros passageiros, sem conseguir dobrar o leito do Mondego. A noite cerrava-se. Os primeiros passageiros que alli esperavam pelos segundos, vendo que o batel já não podia aportar áquelle sitio, montaram tambem a cavallo e foram-no seguindo com a vista. O cavalleiro fazia o mesmo a distancia.

Teriam decorrido dez minutos. Notavam-se os esforços dos tripulantes nas vozes mal distinctas com que se animavam quando o barco começou a cortar a corrente. Grande era o perigo que corria aquella gente se não conseguiam dobrar o mais grosso das aguas: dobrado que fosse, o barco deslizava então como o primeiro até aportar a algum ponto da margem. Era quasi noite escura: o batel conseguira attingir o meio das aguas e já escorregava para o lado de Coimbra.

-- Estão salvos! exclamou o cavalleiro, que não despregava os olhos do barco.

De facto, emquanto os que primeiro passaram se apeavam e corriam para o ponto em que o barco abicasse a terra, para auxiliar o perigoso desembarque, e emquanto o cavalleiro a distancia, por não ser visto, moderava o passo ao cavallo, o barco entrava n'uma horta da margem, já completamente invadida pelas aguas. Ao dobrar os salgueiros e estacadas, que resguardavam aquella insua das enchentes ordinarias do Mondego, ouviu-se de repente no barco um grito enorme formado por muitas vozes afflictas, e logo aquelle tombou para um lado, como se perdêra o equilibrio sobre uma haste que o sustivesse. Resvalára a proa sobre uma grande estaca por modo que quando o meio do fundo chato já não podia ceder á pressão das varas de oito barqueiros, o barco aos movimentos de um dos cavallos que nelle vinha, desequilibra se, mette uma borda na agua e deixa escapar de si a um vulto, que os de terra já não distinguiam se era homem se mulher.

Um grito dolorosissimo se eleva repentinamente do barco.

As aguas na insua nem eram muito altas nem tão correntias. Um homem corajoso podia nadar n'ellas.

Ao presenciar aquella scena, o cavalleiro prende o cavallo ao primeiro tronco que achou, corre precipite ao logar do sinistro, onde alguns homens de terra se aprestavam já para entrar n'agua, passa correndo por elles, como se fôra uma sombra, e precipita se a nado nas aguas, demandando o barco.

O Cavalleiro, que mal houvera tempo de prender o cavallo e de tirar a capa que mais o poderia embaraçar para voar em auxilio dos naufragos, não mais attentára no destino do barco. Este ao tombar-se, resvalára de todo pela estaca e conseguira equilibrar-se novamente.

-- Salvem-no! salvem-no! brada uma voz para quantos a escutavam.

Mais do que um barqueiro tivera saltado ás aguas, se não fôra perigoso ainda deixar o barco sem boas amarras. O cavalleiro, mal distinguindo já os objectos nada para um ponto em que lhe parecia descobrir um vulto escuro, emquanto um dos que primeiro desembarcaram o vae seguindo mais de vagar, por menos bom nadador. O barco conseguia embicar em terra. Estavam salvos aquelles!

Já mais do que um dos barqueiros, posto a salvo o batel, nadava tambem para o ponto do sinistro, quando a alguns metros de distancia d'elle ouviram todos exclamar ao cavalleiro:

-- Salvo! Bem hajas, meu Deus! Animo! Está salvo!

Com uma coragem inaudita e uma força sobrenatural o cavalleiro toma nos braços o corpo de um homem semi morto, levanta-o por modo que a cabeça ficasse fóra das aguas, sustentasse nadando com as pernas e demanda a margem, como se nos braços levasse a uma creança!

Corre toda aquella gente ao ponto para que se dirigia o cavalleiro, bemdizendo cada qual a seu modo o homem forte, quando este, de facto, chega a terra e lhes entrega o corpo que salvára das aguas.

Rapido, como ao entrar n'ellas se afasta, sem que ninguem o podesse conhecer, nem elle mesmo buscasse reconhecer a quem salvára!

Ao caminhar para o cavallo que havia deixado preso, encontrou o cavalleiro um grupo de homens e de mulheres de Torres, que perto demoravam e que alli tinham corrido ao saberem do perigo. Voltavam para a aldeia e levavam nos braços a uma senhora completamente molhada e desmaiada.

-- Por Deus! boa gente, parae um instante! exclamára o cavalleiro, encarando de perto o rosto da mulher desmaiada. Parecendo conhecer aquelle rosto, o cavalleiro soltára um grito singular, mixto de dor e de satisfação, que áquella gente não entendera e correu rapido ao cavallo, que montou, galopando para Coimbra.

Já haviam entrado nas Torres os que levavam nos braços a senhora desmaiada, quando o desconhecido passou a galope.

Depois que o cavalleiro soltára junto da mulher desmaiada aquelle grito que só d'ella podia ser entendido, voltou esta a si, procurando nos que a cercavam a alguem conhecido. Perguntou por seu pae, indagou se ninguem tinha perecido no rio e pediu para andar por seu pé, até á aldeia, onde minutos depois entrava em casa de uma familia das mais abastadas do logar, que sabendo do perigo que correra uma senhora, e do estado em que se achava lhe offerecera a sua casa, e o conforto de que precisava.

Haveriam decorrido cinco minutos quando á mesma casa chegavam os demais passageiros, trazendo com vida o homem salvo pelo cavalleiro, que ninguem conheceu e lá se ia a caminho de Coimbra.

Quando o cavalleiro já atravessava os olivaes da Arregaça notou que após de si alguem corria a cavallo em brida desesperada. Parou. O que vinha, ao chegar ao cavalleiro que parára, exclamou perguntando:

-- És Gonçalo Gomes?

-- Ide vosso caminho, que não vae aqui Gonçalo Gomes, respondera cavalleiro, proseguindo sua marcha.

Já perto da cidade notou o desconhecido que d'ella saía uma liteira a toda a pressa, e que tres homens a seguiam a cavallo. Attentando bem nos cavalleiros reconheceu em um d'elles ao pagem Francisco Cardoso, conjecturando que os dois fossem o Gonçalo Gomes e o que lhe perguntára por aquelle.

IV

O medico Boccarro

Se a perspicacia do leitor não descobriu ainda quem fossem os passageiros da Barca dos Palheiros, e quem o audacioso cavalleiro que se precipitára no Mondego por salvar a um d'elles, siga-me e suba commigo á Estalagem do conde de Cantanhede, no bairro baixo da cidade de Coimbra.

São dez horas da manhã. O nosso conhecido Francisco Cardoso annuncia á porta de uma sala ao physico Bocarro Francez, que se achava por aquelle tempo n'aquella cidade, o qual foi logo introduzido.

Jazia n'um leito um homem de vinte e cinco annos, e perto d'elle, sentado em um tamborete, um outro de quarenta e oito a cincoenta. Erguendo-se este, quando Francisco Cardoso annunciára o physico, foi ao encontro d'aquelle, risonho e satisfeito:

-- Ora viva o meu caro Bocarro, exclamou, abrindo-lhe os braços. Com que então, por Coimbra? E eu que o não sabia!

-- Assim é, sr. conde; mas, se na qualidade de medico aqui venho, como se me afigura, confesso que magoado sou.

-- Amigo sois, conheço; não ha porém, que receiar. Branca está boa, e D. Gregorio com vossas mesinhas prestes o será.

E indicava ao medico o homem que jazia deitado. E os dois caminharam para o doente.

-- Sabeis do caso, não é verdade? Tem sido ruidoso em Coimbra.

-- Tudo ignoro. Apenas chegado de Lisboa, seriam cinco horas, jantei; e, porque enfadado vinha, deitei-me e adormeci. O vosso chamamento foi hoje para mim completa surpreza. Fazia-vos na vossa casa de Goes.

-- Em breves termos conhecereis o modo desastrado como iamos sendo victimas do Mondego. Tomae lá o pulso ao doente, e vêde se tem febre.

-- Não está mal: alguma prostração...

-- Embora! Pois conheça o meu caro fi Boccarro que esteve quasi afogado.

-- Então a sr.ª D. Branca tambem...

-- Essa desmaiou apenas, acho que por ser rebaptisada, como eu e os demais que no barco vinhamos.

-- Historiae, pois, o caso: bem sabeis que quem promette faz divida, como disse Thales, o sabio.

E os dois sentaram-se perto do doente.

-- Tão forte e chuvosa passou hontem por Coimbra uma trovoada que produziu no Mondego uma cheia grande. Chegavamos de Goes a uma barca de passagem que demora a uma legua d'esta cidade. Temiam-se os barqueiros da enchente, negando-se a passamos. Emfim, deante de melhor paga que lhes propuz, partiu o primeiro barco com alguns pagens e cavallos: luctaram seis homens com o rio, mas vadearam-no e chegaram a porto de salvamento. Partimos nós depois; e se bem que um maior numero de tripulantes levava o barco, desesperada foi a lucta por domar o collo ao soberbo rio. Entramos uma insua já na margem direita, e iamos prestes a desembarcar quando de repente o fundo do barco dá n'uma estaca, oscilla sobre ella, pende desequilibrado a um dos lados e arroja de si ás aguas ao sr. D. Gregorio de Castello Branco, correndo perigo egual os que oo barco iamos.

-- Notavel é que ninguem mais cahisse!

-- Ha males que vêm por bens. Com aquelle desequilibrio do barco escorregou seu fundo pela estaca onde encalhára, e eil-o prestes equilibrado de novo, depois de ter mettido dentro grande quantidade de agua.

-- Fortuna foi, realmente. D. Gregorio salvou-se, pois, a nado?

-- O inesperado da queda acho que por fórma o perturbou, que se não fôra um desconhecido que prestemente se arremessou ás ondas para o salvar, D. Gregorio teria sido victima do Mondego.

-- Um quid, tem de novella o caso, respondera Boccarro.

-- Tem, certo é; e tanto mais que ninguem conheceu ao cavalleiro, o qual, nadando para terra com D. Gregorio nos braços de bronze, montou a cavallo e desappareceu, rapido como uma xara, deixando-nos semi-morto o joven conde.

-- Bisarro cavalleiro, que não esperou agradecimentos!

-- Certo que sim; pois tel-os-hia se conhecer se deixasse, e sinceros, e leaes; que não vi ainda por vida minha o juro, tão desinteressado feito. Sem hesitar um instante, precipita-se ás aguas temerosas, busca no escuro da noite aquella vida em perigo e vem restituir-nol a tão nobremente, que não sei bem que mais deva admirar n'elle, se a coragem, se a força de seus braços. Nobre façanha! Aquelle homem é, de certo, um homem forte, que se já não contar muitas acções d'aquellas, é, sem duvida nenhuma, capaz de iguaes commettimentos, se não maiores.

-- É, respondeu Boccarro, porque bem sabeis, conde, aquelle principio de Sophia -- o que produz a causa isso a conserva.

-- Dizeis bem; mas, observae melhor o conde, agora que sabeis a causa de seus males. Acho-o prostrado, abatido...

Os dois ergueram-se dos tamboretes e foram-se para o leito de D. Gregorio. Boccarro perguntou, tateou, observou e disse risonho ao conde de Sortelha;

Não ha que receiar pelo doente: dentro em pouco restabelecido será: conheceis o aphorismo: In commotionne et profluvio alvi non mediocri et vomitibus ultro abortis, etc, o estomago bolsou as aguas superfluas, repousa agora para voltar ao seu funccionar ordinario.

-- Não prescreveis então nenhum medicamento?

-- Preciso não é. Natura prestes fará a sua obra. Se fôra caso para remedios já sabeis que não hesitaria em sua applicação: Extremis morbis, extrema exquisitè remedia optima sunt. Aqui não carecemos d'esta verdade do mestre.

-- Que dizeis com respeito a alimentos?

-- Caldos por hoje: depois vá-se alimentando consoante o exigir o estomago, mas sem abuso. Conheceis a sentença: Si quis á morbu cibum capiens non confirmatur, pleniore id arguit corpus nutricatu uti.

-- E achaes que poderemos sair para Lisboa depois d'ámanhã?

-- Não me desconformo, com tanto que hajaes a bastante cautela com o doente, não obstante o aphorismo: circa initia, et finis, etc.

-- Isso faremos. Mas, dizei-me: ficaes por Coimbra ou podeis acompanhar-nos para Lisboa? Iamos bem comvosco.

-- Não posso, pois que forçoso me é o demorar-me aqui uns quinze dias.

-- Porém, volveu o conde semi-risonho, dizei me sempre o que annunciam os astros no tocante á nossa jornada. É bom apparelhar para ella, e vós bem entendido sois no assumpto.

-- Mais grave consulta me fazeis, senhor conde. Falliveis são nossos juizos em tão alto sugeito. No emtanto direi: Os astros dominantes inclinam ao Lethes alguns monarchas, affirmando que domina varia excentricidade do sol claro, no qual um pequeno circulo declina: a roda da fortuna lhe chamamos. A conjuncção aquatica favorece nos, e a fortuna no quadrante e conjuncção de fogo. O Orbe magno, cujas causas naturaes de ligamento governa immortal Omnipotencia, propicio é, accorrentada ainda a canicula ardente. Nada temeis pois.

E assim continuaram a conversação por algum tempo o conde de Sortelha e Manuel Boccarro Francez, seu medico em Lisboa e accidentalmente em Coimbra.

Não estranhe o leitor aquella resposta do oraculo astrologico, por menos clara e intelligivel. No seculo XVII teve grande voga a astrologia. Homens de verdadeiro merito e de talento se devotaram áquelle estudo improficuo e palavroso, em que a cega ignorancia e atrazo scientifico plenamante criam, e não sei mesmo se os astronomos. Assim foi que, não só a rude gente dos campos senão a que mais culta se dizia, por vezes consultava os entendidos em antever e rasgar futuros! André de Avellar, Manuel de Figueiredo e Boccarro passavam por Astri-peritos. O movimento dos astros, phases da lua, brilhar de cometas, influencia de signos, mysterios da geração, pedra philosophal, tudo devassavam os astrologos dos seculos XVI e XVII. O medico do conde de Sortelha dizia d'este modo, falando da pedra philosophal:

Bem claro se demonstra quando vemos
Fazer de cinza vidro e cal de pedra;
Os metaes transmutar assim podemos.
Se o Lapis formosissimo se empedra:
Mas de diversas cousas não faremos
Nem dos metaes sómente insigne a Pedra,
Que teve mais occulto o fundamento,
E só se ha de tisar do vivo Argento.

O enxofre e o azougue, como femea e macho, mettidos n'um vidro forte bem tampado, cozido com um fogo philosophico, que ardia sem queimar, trausmutava-se em licor lacteo, depois negro, por fim branco de neve, verdadeira quinta essencia, de que se fazia prata. Continuando o a cozer no fogo philosophico, tomava a côr do rubi e ficava prompta.

«... A insigne Pedra dura, e leve,
E em fogo mais potente em pós desfeita,
Tão grande perfeição foi a que teve,
Que sómente se viu do ouro perfeita:
Porque já convertia em tempo breve
Uma parte somente que se deita
Em mil de azougue, ou de metal liquado
Tudo com ouro perfeito e apurado.
Depois ficando este ouro inda semente
Uma parte deitada convertia
A mil de outro metal no reluzente.
Mais fino que o que a Arabia em fios cria

E deliciaram-se nossos avós com estas cousas! Melhor elles cuidassem na conservação da pedra philosophal que do meio das aguas lhes tirara Pedro Alvarez. Em tudo se convertia aquella pedra. Desde a cana de assucar até ao ouro de Minas Geraes e aos brilhantes, que variada collecção de transmutações!

Ainda assim parece que a chimica alguma cousa deve áquella illustre avoenga, a alchimia, prima co irmã da astrologia.

Deixemos, porém, aos homens da sciencia o aquilatar aquelles servidos, e vejamos se os nossos dois personagens já terminaram a conversação.

De facto persuadido de que propicios lhe seriam os astros, o conde de Sortelha despedira-se de Boccarro, depois que este comprimentara a filha, D. Branca de Vilhena da Silveira, e se despedira tambem do conde de Villa Nova, D. Gregorio Thaumaturgo de Castello Branco, cuja vida estivera jogada ás aguas do Mondego e perdida, se um desconhecido cavalleiro lh'a não salvasse denodadamente.

Como dissera o conde ao medico Boccarro, não se falava em Coimbra senão no grande perigo que correra o conde de Sortelha e o de Villa Nova, na passagem do Mondego à barca dos Palheiros. O caso do desconhecido era phantasiado por modos varios, chegando alguem a dizer que elle era nem mais nem menos um estudante e que fora conhecido de alguem da comitiva.

São notaveis estes juizos do povo em casos similhantes. Sem dados nenhuns, além dos que lhes offerece sua imaginação caprichosa, tantas conjecturas fazem encarando por mil modos um negocio qualquer, que por vezes deixam de ser o vox populi para ser o vox Dei.

No caso presente attingiriam aquellas conjecturas a verdade? Sabel o-hemos.

Diversos estudantes das relações de amizade do conde em Lisboa o procuraram durante o dia. Não viera, porém, D. Francisco Manuel de Mello. Seria que D. Branca desviasse o estudante de um acto de cortezia por evitar suspeitas de seus amores no pae, que a queria casar com o conde de Villa Nova? Mas não é de presumir tal resolução. Se os dois se amavam com a effusão de corações virgens não haveria obstaculos que evitassem a approximação d'elles. Pois é lá possível impôr leis aos affectos? E n'aquellas idades? Não é.

Passára o dia. Por onze horas da noite um vulto dirigia seus passos para a Estalagem do conde de Cantanhede. Outro vulto o esperava alli. Approximaram se e cooheceram-se.

-- Como está vosso amo? perguntára o recemchegado. E a sr.ª D. Branca?

-- Já repousa o sr. conde e espera-vos ella.

-- Mas não presentirá o conde a minha visita?

-- Descance vossa mercê. Um creado amigo póde salvar ou perder; já vol o fiz notar. Subi, sr. D. Francisco.

Subiram ao segundo andar da estalagem. Francisco Cardoso bateu mansamente à porta de um quarto, que se abriu, e á qual appareceu uma creada de D. Branca de Vilhena. D. Francisco entrou com a creada nos aposentos da fidalga; a porta cerrou-se e, Francisco Cardoso ficou de fóra passeando no corredor.

-- Obrigada, D. Francisco Manuel. Foram as primeiras palavras de D. Branca ao estudante. Este beijou-lhe a mão jubiloso, respondendo:

-- Não haveis de quê, formosa minha. Pertence-vos a minha vida: e, vendo eu a vossa em perigo, pois que fatalmente o pensei, tentei salval a, ou perecer comvosco. Felizmente para nós nenhum perigo correstes. De que me servira ficar na terra sem vós? Estiolaria como a planta sem o sol do vosso amor.

-- Obrigada, obrigada meu D. Francisco, repetiu D. Branca amorosissima. Porém... Uma vaga inquietação me assalta de tempo em tempo. O dever, a obediencia a meu pae, as exigencias da sociedade... Ai! meu D. Francisco que não sei se seremos felizes?

-- Que quereis dizer, Branca da minh'alma? Acaso a revelação de vosso pagem...

-- Pois já elle vos disse alguma cousa? atalhou D. Branca!

-- Já, infelizmente já. E o que pensaes vós, minha querida!

-- Hesito entre o dever e a affeição: não sei que faça.

-- Não sabeis? Pois eu vol o digo. Antes, porém, certificae me que me amaes como eu vos amo.

-- Inutil exigencia, D. Francisco. Crêde, porém, que jamais se apagará em meu peito a vossa imagem, quer vossa esposa venha a ser, quer o seja de outro homem.

-- Oh! nunca sereis de outro, nunca! Dizei m'o dizei m'o.

-- D. Francisco, socegae, respondeu D. Branca, e vêde bem que vos não posso affirmar tal cousa. Tenho pae, D. Francisco, e cumpre me ser filha obediente. Sois cavalheiro como poucos; bem vêdes que não posso desviar-me do caminho da obediencia sem infamar o meu nome e de meus avós. E mal sabeis vós, meu D. Francisco, que quem podéra ter aniquilado essa difficuldade, que se oppõe á nossa ventura, ereis vós mesmo.

-- Eu! Não vos comprehendo! Procedendo como?

-- Não procedendo, como procedestes, respondeu D. Branca.

-- Por Deus! anjo meu idolatrado, explicae-vos prestes.

-- Não tendo arriscado vossa vida por salvar, como salvastes, a do esposo que me quer dar meu pae.

-- Que dizeis, D. Branca?! Pois elle era? Oh! maldição, maldição para mim! exclamára afflictissimo o estudante.

-- Allucina vos a paixão, D. Francisco. Maldição, dissestes? Nunca maldito sereis. Ainda se não conhece o salvador valoroso de D. Gregorio, e já mil louvores lhe cobrem e bemdizem o nome. D. Francisco, meu D. Francisco, aquietae-vos, e vede bem que salvastes a um homem prestes a morrer. Pois não vos consola este feito? a vós, tão brioso! tão cavalheiro e tão meu?

E D. Branca, falando assim ao abatido amante, sem notar que a creada a observava, tomou as mãos a D. Francisco, trouxe-o brandamente para si e abraçára-o terna e amorosamente, continuando:

-- Aqui tendes a paga do vosso procedimento brioso. Regeitaes esta maldição?

-- Oh! Deus vol o pague, sonho meu constante, respondera D. Francisco, reanimado por aquelle primeiro abraço, e depondo na fronte d'ella um pudico e primeiro beijo.

-- As fidalgas como a sr.ª D. Branca pagam assim aos seus servidores, disse a creada para o estudante. As creadas felicitam-no contentes, como eu faço.

Aquellas palavras de Isabel da Silva, que tal nome era o seu, arrancaram dos braços de D. Francisco o corpo esbelto de sua ama, roubando lhe a elle uma ventura apenas antevista e que desejara mais prolongada, interminavel até. Já não fôra, porém, pouco o que D. Branca concedera deante de uma creada confidente e amiga.

Cumpre agora apresentar ao leitor a filha do conde de Sortelha, como nol-a descrevem physica e moralmente as memorias d'aquella epocha.

D. Branca de Vilhena da Silveira era senhora de mediana estatura. Delicada de formas sem ser debil, era forte e vigorosa como as portuguezas d'então, mais affeitas do que as senhoras d'hoje á educação physica, nos passeios a cavallo, nas caçadas e nas danças dos saraus. D. Branca era um bem caracterisado typo de mulher peninsular: era uma andaluza. Rosto sobre o comprido, bocca e dentes lindissimos, nariz levemente aquilino, testa rasgada, olhos e cabellos negros como o ebano. Extremamente bondosa, D. Branca era como a flôr sempre aberta tanto para os raios do sol, como para os affagos da brisa e orvalhos da madrugada. Nunca jámais lhe estendera a mão a indigencia que não fosse soccorrida, a orphandade que não fosse amparada, a dôr que não achasse n'ella um allivio.

Tal era a mulher, que D. Luiz, conde de Sortelha, destinava para esposa do conde de Villa Nova.

Dois dias depois dos narrados acontecimentos, por oito horas da manhã, sahia da Estalagem do conde de Cantanhede em Coimbra na direcção de Lisboa uma liteira, e pouco mais tarde uma brilhante cavalgada com os condes de Sortelha e de Villa Nova, D. Branca de Vilhena da Silveira, e suas aias, e pagens e peões de ambas as casas.

No Alto das Calçadas parou a cavalgada para volver á cidade um olhar de despedida, e contemplal a princeza elegante da Beira, recostada no pendor do monte sobre o Mondego. Das muitas vistas encantadoras de Coimbra a que mais formosa se ostenta é, sem duvida, a que d'alli se gosa. Quadro imponente de magestosa poesia! Aquella pinha de edificios, remirando-se nas aguas trementes do rio, occupa lhe o primeiro plano: campeiam no segundo os mosteiros de Sant'Anna e Therezinhas, a povoação de Cellas, e Mont'arroio, avistando-se no campir d'elle a cordilheira accidentada do Bussaco até Pena cova. O contraste de alvura dos edificios e do sempre verde-escuro dos montes por fórma nos impressiona a alma de risonha alegria e de maga tristeza» que é um ficar-se a gente preso alli n'aquelle encanto!

Qui no a visto a Sevilla
No a visto a maravilha

dizem os hespanboes d'aquella notavel cidade d'Andaluzia sobre o Guadalquivir; mas nós, sem embargo da falta de palacios mouriscos em Coimbra e da celebrada cathedral, bem podemos dizer:

Quem não viu esta cidade
Não viu nada; na verdade

V

A queda de virgem

Na rua de S. Thiago, ou do Limoeiro em Lisboa, existia em 1630 o palacio do conde de Villa Nova, e na rua de Pero Esteves, perto de S. Vicente de Fóra, o do conde de Sortelha.

Ás trindades do dia 19 de abril pela porta de Arroyos entrava na capital a comitiva, que de Coimbra sahira no dia 15. Iam na frente alguns pagens a cavallo, seguiam duas liteiras com D. Branca de Vilhena e com suas aias, logo após os condes, e por fim a restante creadagem. Chegados ao palacio do conde de Sortelha alli se apearam todos e entraram. Ficaram sómente á porta os creados de D. Gregorio á espera d'elle, que subira por se despedir e beijar a mão de D. Branca. Anoitecêra entretanto.

Ainda não era illuminada Lisboa áquelle tempo. Foi só no reinado de D. José que o intendente Pina Manique introduziu na capital aquelle melhoramento. Assim a curtas distancias mesmo, em «noites sem luar, era difficil conhecer um vulto ou outro. Haveria um quarto d'hora que os creados de D. Gregorio esperavam, quando um cavalleiro, passando pelo palacio do conde de Sortelha a se internar na cidade, fizera uma leve paragem a pouca distancia. O cavallo em que montava, parando em logar que parecia conhecer, nitrira contente e escarvára o chão. A uma janella do palacio assomara um vulto e se recolhera prestes. O cavalleiro partiu. Minutos depois montava a cavallo D. Gregorio de Castello Branco, e, seguido dos seus, trotava para a rua do Limoeiro. Ou fosse porque D. Gregorio levasse marcha mais acelerada ou porque o cavalleiro, que vimos parar á porta da casa de Sortelha e marchar antes d'elle, intencionalmente ou sem proposito marchasse a passo, é certo que foi alcançado de D. Gregorio. O cavallo, em que montava, ao sentir perto de si o tropel da comitiva do conde de Villa Nova, começára a jogar inquieto e aos galões aprumando-se com o cavalleiro. Este conseguiu refreal-o; e, desviandose a um lado para que passasse D. Gregorio, exclamou em voz que podera ser ouvida dos que passavam:

-- O jogo é de um az contra um dous. Quem ganhará, D. Gregorio ?

Temos em Lisboa alguns heroes d'esta historia. Cumpre seguil os de perto, agora que nos achamos n'esta cidade.

Tem decorrido um anno: estamos em 1631. Governavam Portugal por Castella n'este tempo os condes de Castro Daire, D. Antonio de Athayde, e o de Valle de Reis, Nuno de Mendonça.

Por um fatal concurso de circumstancias, ao modo porque o sol parece atufar-se cada tarde no vasto pelago do Oceano, o da gloria das conquistas portuguesas caminhava fatalmente tambem desde 1880 para um occaso que não promettia aurora. Só pensava o governo de Hespanha em nos enfraquecer, embora com detrimento seu, apagando o nome portuguez que tanto a assombrára nos volvidos dias da nossa gloria. Sem defensa, as nossas conquistas estavam á mercê do hollandez ambicioso, do pirata destemido. Scintiliava apenas um ou outro lampejo de heroismo portuguez em Colombo e nas proezas de Ruy Freire de Andrada. Era o vasquejar da luz antes de extincta.

A Bahia retomada carecia de soccorro prompto ameaçada continuamente dos Hollandezes invejosos.

Aparelhava-se então á custa de Portugal em Lisboa a armada em que o almirante Oquendo devia ir expulsar dos nossos mares do Brazil o almirante hollandez Heyn.

Apezar do revez da Corunha, em que melhor fôra deixar-se ir na voragem dos mares o bravo D. Manuel de Menezes para não ser victima da Hespanha, e do qual escapára D. Francisco Manuel de Mello e poucos mais aventureiros, que de Lisboa sahiram na breve armada em 1626, este, como todo o homem forte, correu a alistarse de novo, sendo já militar efectivo desde 1628.

O estudante de Coimbra, como dissera na ponte d'aquella cidade a Macedo e a Gusmão Soares, sahira da notavel Athenas no mesmo dia em que o fizera o conde de Sortelha; e, como sombra do corpo esbelto de D. Branca de Vilhena, fôra a seguindo até Lisboa, onde, como ha pouco se viu, outro não era o cavalleiro, que, defronte do palacio d'ella fizera parar o cavallo fogoso e nitrente.

Dois amores o fascinavam, como elle manifestára a Antonio de Sousa Macedo. Pelo de uma mulher deixara deixára o remançoso viver de Coimbra, o estudo e gloria das letras: pelo das armas, ia pôr de novo a vida á mercê dos mares revoltos, em favor da patria de seus avós, pois que o nome da d'elle fôra apagado com a ponta da espada do duque d'Alba, na carta da Europa, do dia em que o desventuroso prior do Crato tivera de franquear Lisboa ao inimigo, sem forças para defender a ponte d'Alcantara em que foi derrotado.

D. Francisco era descendente dos homens fortes, que abriram de par em par as portas do Oriente e do novo mundo á velha Europa. Aspirava como elles á gloria militar e a ir provar nas affastadas terras, que conquistámos, o seu valor, por se tornar digno da dama de seus pensamentos. Assim foi que a nobreza do reino correra á conquista, e depois em defensa de Ormuz, e de Diu, e da India, voltando á patria ennobrecidos, os que não voaram com os pannos dos muros, nem foram engulidos pelos mares do cabo tormentoso, a depôr a coroa do marcio louro aos pés d'aquellas que lhes davam como galardão de seus feitos a mão de esposas, como lhes haviam deixado levar o coração enamorado. Antes d'estas provas não consentiam os civicos costumes d'aquelle tempo que uma dama se unisse ao homem efeminado e indigno d'ella, que não fosse e voltasse d'aquella sorte de baptismo de valor ao menos com uma nobre cicatriz no rosto varonil.

Aprestava-se, pois, a armada de Oquendo, e D. Francisco para ir n'ella. Como explicar, porém, esta sahida de D. Francisco, deixando D. Branca de Vilhena prestes a ser esposa de D. Gregorio de Castello Branco? Elle, que não havia muito lhe lançára perto do Limoeiro, como o leitor ouviu, aquella luva do jogo de um az contra um dois? Seria que muito crêsse na fidelidade do coração d'ella? Mas a obediencia filial? A brandura de seu genio? Os mares que interpunha a dois corações? Se o amor é como a lua, no dizer do grande Antonio Vieira, que ao metterse-lhe a terra de permeio se eclipsa, o que succederá se for o mar?!

Possivel será que um dia atinjamos o porquê exactissimo da sahida de D. Francisco, e continuemos a historiar.

Morava elle então no Rocio. Depois das trindades do dia 9 de abril, subia a rua da Ourivesaria um pagem a cavallo, que foi seguindo para o Rocio. Era Francisco Cardoso, creado da casa de Sortelha, o qual, apenas cbegado á casa de D. Francisco, entregára para elle uma carta de sua ama, partindo logo sem resposta alguma, para a rua de Pero Esteves, a S. Vicente de Fóra.

Ás onze horas da noite d'aquelle dia, subia a rua Direita da Sé, seguido de um creado e ambos a cavallo, o nosso D. Francisco Manuel de Mello. Levava a direcção de S. Vicente de Fóra. Já na extremidade da rua notou D. Francisco que para si tomára a direcção um homem que vinha a pé. Quando este, de facto, embargára o passo ao cavallo, bradou-lhe D. Francisco:

-- Desvia, peão!

-- Peão sou, senhor D. Francisco, e cavalleiro tambem se fôr mister, respondeu o homem, continuando:

-- Agora serei o que a vossa mercê aprouver.

-- Ah! vós sois, Francisco Cardoso? Alguma nova boa ou má me trazeis sem duvida.

-- Certo é, e para vol-a dar vim vindo, apenas receioso de que nos não encontrassemos, dado que vossa mercê viesse pela rua de S. Jorge e se embrenhasse em Alfama. Quereis, pois, attender-me?

-- Sim, quero. E desviando-se do creado, e inclinando o corpo sobre a direita a que lhe ficava Cardoso, attendeu ao pagem de D. Branca de Vilhena.

-- Apeae-vos ao Arco de S. Vicente e não passe vossa mercê d'alli a cavallo.

-- Porque?

-- Porque o estrepido de cavallos não acorde suspeitas nos visinhos.

-- É, pois, tão pouco o que tendes a dizer?

-- Mais ainda: Entre vossa mercê hoje pela porta do jardim. Pela costumada não póde ser. Ha lá no palacio sarau esta noite.

-- Bem sei: D. Gregorio está n'elle?

-- Está. Nada quereis de mim?

-- Obrigado.

E aprumando-se no cavallo, D. Francisco buscou nas algibeiras algum dinheiro, que deu a Francisco Cardoso, accrescentando:

-- Se fôrdes ainda n'esta noite á Estalagem Negra, bebei lá á minha saude e á de...

-- Graças, sr. D. Francisco.

Afastaram-se. D. Francisco e o creado seguiram para o arco de S. Vicente, e Francisco Cardoso para o lado opposto. D'este breve dialogo, trocado a meia voz entre os dois, resulta que D. Francisco tem tido entrada no palacio do conde de Sortelha, ao menos de noite, e que Francisco Cardoso era o medianeiro amigo dos amores de D. Branca. Mas, observará o leitor, sendo das relações do conde o ex-estudante de Coimbra, como faltou elle ao sarau? Lá se devêra achar, que não ha ahi quem evite a approximação da amada, com musicas e danças. Pondera bem; mas, qual nas circumstancias d'elle, anteporia a etiqueta das salas á doce conversação dos dois a sós? Tenho para mim que nenhum.

D. Branca, mandára dizer a D. Francisco que não fosse ao sarau, mas que a buscasse a ella, que precisão tinha de lhe falar; e additára ao pedido por escripto aquellas palavras de Cardoso, especie de modificação de plano. Vae-se-nos mostrando tanto no correr d'esta historia aquelle Francisco Cardoso, que bem é apresental-o melhormente ao leitor.

Era elle um homem de mais alguma edade que D. Francisco. Fôra creado desde menino na casa de Sortelha, onde muito lhe queriam e da qual alguem o suppunha filho natural. Ora se mostrava conformado com a sua sorte de pagem do conde, ora reagia contra a injustiça da sorte e dos homens, no soltar de uma phrase, no elevar da cabeça, no volver do olhar altivo. Facil era o perceber-lhe talento natural e perspicacia, não lhe faltando audacia e coragem. Tudo isto conhecera n'elle em Coimbra o heroe d'este livro. Vira um homem que podia ser amigo e salvar, ou perigoso e perder.

Qual seria, porém, o movel do seu proceder de medianeiro? podia escusar-se a D. Branca; podia denunciar aquelle amor ao conde de Sortelha, amor que tão cego começava e tão inconsequente podia ser; podia avisar a D. Gregorio; podia, finalmente, levar ao coração do conde um gravissimo desgosto. E do muito que podia não fazia nada. Talvez elle se julgasse irmão de D. Branca! Talvez...

Ha mysterios tão grandes na vida, segredos tão bem guardados, arcanos tão escondidos, que melhor será interromper a serie de perguntas conjecturaes que a mente começava a formar. Talvez que no futuro saibamos explicar o que agora não podemos.

Com effeito, D. Francisco não passára a cavallo além do arco de S. Vicente, e o creado retrocedeu um pouco, apeou-se e esperou.

Deixemos aos dois amantes no jardim, onde D. Branca, pretextada no sarau natural razão para se retirar por um pouco, pontualissima foi em ir ao encontro de seu amante.

O conde de Sortelha não suspeitava de similhante paixão na filha, e D. Gregorio de Castello Branco, se bem que não sentia grande paixão por sua futura esposa, não lhe era comtudo indifferente. Estimava a por seus encantos e por sua bondade. Assim, podia estar com D. Francisco, meia hora pelo menos, sem que a menor desconfiança adejasse sequer no pensamento, ainda da mais desconfiada das muitas fidalgas que no sarau se achavam.

Era mais de meia noite quando D. Branca voltou ás salas, acompanhada de Isabel da Silva, aquella que o leitor já viu em Coimbra. Vinha levemente desbotada, como se alguma dôr moral ou physica, lhe tentasse apagar das faces as rosas d'aquella sua florida edade. Tambem se não attentou em tal circumstancia. As danças continuaram, e as musicas, e os cantos. D. Branca não dançou mais, nem mais cantou n'aquella noite, desculpando-se com uma leve dôr de cabeça, que a salteára ao chegarse ella a uma varanda que olhava para o Tejo. Acceitára-se naturalmente o caso.

D. Francisco voltára a casa feliz. Mocidade, mocidade quem te podéra gosar sempre! Magicos devaneios, douradas illusões, fugitivos momentos de prazer se davam D. Francisco e D. Branca. Eram venturosos n'aquella fascinação mutua, n'aquelle incoercivel affecto, que os attrahia como se foram duas correntes magneticas.

Tres pessoas já estão de posse d'este segredo amoroso: Francisco Cardoso, Isabel da Silva e o leitor. Oxalá que o não revelem.

VI

Dois philosophos

Não mui longe da egreja de Santa Justa corria a rua de Lopo Infante, distribuindo travessas e beccos a um lado e a outro. Antigo era o chamado Becco da Estalagem Negra, assim denominado de uma celebre estalagem que alli havia. A rua de Lopo Infante, as mais proximas, e as travessas e ruas de todas ellas tinham por grande maioria de habitadores officiaes mechanicos e alguns homens do mar. Aquella estalagem, situada em um becco, só tinha da casa que inculcava o nome e pouco mais. Alli vinham pousar ainda grandes recovas dos almocreves da Estremadura principalmente, que traziam á capital cargas de azeite e levavam outras de géneros differentes. Recoveiros do Alemtejo e das Beiras alli pousavam tambem. Era, portanto, casa onde se reuniam homens portadores algumas vezes de sommas importantes. A sua visinhança da parte baixa da cidade, onde se mercadejava, como actualmente, e onde se cuidava de negocios pendentes de tribunaes publicos ou de secretarias do governo, elegiam-n'a para aquelles individuos, que, por tratar de negocios sómente, buscavam então Lisboa. Havia, porém, alli dentro, n'aquelles casarões afumados, uma tavolagem notavel e afamada em Lisboa. Depois de nove horas da noite de cada dia começavam a entrar para ella homens de todas ou quasi todas as camadas da sociedade, para se darem ao jogo de parar até alia noile, e por vezes até madrugada. Um velho portão lhe dava entrada para um pateo vasto, com pias de pedra em volta, onde bebia o gado das cavallariças proximas, estendidas na frente do portão por grandes lojas contiguas e successivas, como as casas que por cima lhe ficavam. Sabia-se para estas por duas escadas de pedra, uma de cada lado, que tinham por patamar commum uma comprida varanda de madeira, já muito velha, em toda a largura d'aquella casa na frente.

Vou convidar o leitor a ir commigo visitar a Estalagem Negra, e a entrar na casa de jogo, ou de tavolagem como então se dizia. Lá no interior d'aquelles corredores, e salas, e quartos adedalados jazia a mesa do jogo. Mais de cincoenta homens de todas as gerarchias a circomdavam, sentada uma primeira fila de jogadores, em pé, por detraz d'aquelles, outra fileira d'elles curvada sobre a primeira, por melhor ver o jogo, e ainda por detraz das duas uma terceira, de pé tambem, mas já sobre cadeiras e bancos. Curvados aquelles homens uns sobre os outros, mostrando no rosto cada qual um sentimento diverso, filho da cubiça, colericos uns, famintos outros, risonhos pouquissimos, mas com esperança todos, quadro era aquelle para muito estudar, muito observar e muito aprender. Alli se perdia a honra de esposas, o pão de filhos, o credito de todos. Era meia noite.

-- Deixae-me sahir gritava por mais de uma vez um dos jogadores, ou dos mirões da primeira fila para os que, sobre si curvados, o não deixavam levantar ao menos. Depois de não pequeno trabalho, conseguira dar aquelle logar a outro e sair da mesa o homem. Ganhára d'aquella vez, ou perdera?

Conseguindo livrar-se d'aquelle supplicio de Sisypho, e pondo as mãos nas ilhargas aprumou-se todo como quem destorce e alinha o corpo que, por muitas horas, permanecera contorcido; viu depois o relogio d'algibeira que lhe administrava o tempo, por elle tão mal baratado, e tomou a direcção de um determinado quarto ao fundo de escuro e mal soalhado corredor, bateu-lhe á porta, que se abriu, e entrou n'elle.

Pouco espaçoso era o quarto e pouco mobilado. Um velho canapé a um lado; defronte, uma pequena mesa com um candieiro acceso, algumas cadeiras em volta, e nada mais.

-- Já vos esperava, meu amigo, haverá boa meia hora.

-- Perdoae vossa mercê, descuidei-me algum tanto sem vontade. Mas, eis me aqui.

-- Manuel Boccarro falou-vos?

-- Não estava em casa; ficou lá a vossa carta.

-- Pouco passa da meia noite: se a recebesse não poderá tardar.

-- Não, decerto, que, como mathematica que é, ainda não vi ninguem mais regular e pautado nas acções.

-- Predicado é esse para o estimarmos, que melhor é ser relogio do que conego de S. Thomé. Mas ide vós ver se o homem chega, que possivel é não ter vindo nunca a esta casa e não dar n'ella rego direito.

E o jogador, ou mirão saiu, atravessou aquelles corredores mal allumiados e foi até ás escadas de pedra, que davam para o pateo.

Ainda bem não assomára á velha varanda, eis que vê entrar o portão a um homem, envolto n'uma capa, como para não ser conhecido, que se dirige a uma das escadas. Foi-lhe ao encontro o jogador.

-- Será o Doutor Boccarro, quem sobe esta escada? perguntou o que esperava.

-- Este é, respondeu o recemvindo. E conhecendo a pessoa que lhe dirigira a pergunta, accrescentou: conduzi-me, pois, á casa que me foi indicada.

Internando se n'aquelle labyrinto de casas chegaram ao quarto nosso conhecido já. Entraram. O individuo que alli esperava ao medico Boccarro, apenas este entrára, disse para o jogador:

-- Agradeço vos os bons officios: agora preciso ficar com o sr. Boccarro.

Francisco Cardoso, porque era este, saiu ficando os dois. Sentaram-se.

-- Saberá porventura o meu caro amigo Boccarro o para que o convidei a encontrar-me n'esta casa?

-- Certo que não, respondeu o medico.

-- É o medico como um confessor exactamente. Segredos ha na vida, que só a elle se podem e devem confessar. Para me ouvir de confissão o convidei a vir a semelhante casa. Quereis, pois, ouvir me?

-- Falar podeis, D. Francisco: sabeis que vos estimo além do ser amigo e admirador.

-- Amo loucamente a D. Branca de Vilhena. É sem duvida, este o meu amor primeiro. Havendo entrada n'aquella casa desde menino foi aquella encantadora creatura a que primeiramente me chamou á vida de homem, despertando em meu peito sentimentos que não conhecia, por seu estranho manifestar. Quiz e quero desposál-a... Oppõe-se o conde de Sortelha, que por melhor julga entregal-a ao conde de Villa Nova, seu tio.

-- Ao tio! Não me frisa esse proposito.

-- Ao Thaumalurgo, sim, ao homem que ella não ama nem poderá amar nunca jámais, porque o amor de um tio a sobrinha rica é como o de ichacorvos ás imagens: pancadas na devoção, echos no seu proveito.

-- Mas deveis falar a D. Luiz e pedir-lhe a senhora D. Branca em casamento. Entendo que vos deve attender, porque me recordo agora de um facto que por

si só, além do vosso sangue tão nobre como o d'elle, e do vosso maior merecimento, bastará a de todo acabar com elle.

-- Não attinjo ao que possaes alludir: affirmo-vos, porém que já lhe falei.

-- E que resposta vos deu?

-- Ficando indeciso como a questão entre Burgos e Toledo, terminou por me negar sua mão, adduzindo conveniencias de familia e outras razões tão caroaveis como esta.

-- Pois heis de lhe falar outra vez. Á maravilha me recordo eu do seu contentamento e admiração por um homem que salvou a vida a D. Gregorio, no Mondego enfurecido, e que, certamente, poderia ser e devia o esposo de sua filha.

-- Que dizeis, Boccarro! acudiu D. Francisco, É certo então que D.Luiz conhece que fui eu quem...

-- Não sei; antes creio que não, aliás...

-- Mas como o sabe o doutor?

-- Em Coimbra ouvi que fostes vós, e par Dios que vos admirei!

-- E nunca lhe falastes no caso, doutor?

-- Nunca. Sou, porém, de parecer que D. Francisco lhe fale outra vez e lhe recorde mesmo aquella proesa.

-- Jamais!

-- Não digaes tal cousa: aquelle caso e os cupidissimos costumes de D. Gregorio...

-- É escusado, interrompeu D. Francisco, como panno azul que nem serve para bodas nem para doridos.

-- Sem embargo, ou vós lhe falaes ou lhe falo eu.

-- Obrigado. Poderei buscal-o ainda, porque uma razão ha mais forte do que pensaes para que me prefira ao rediculoso Thaumaturgo. Receio, comtudo...

-- Rasão mais poderosa, dizeis? Qual?

-- Batemos á porta de minha confissão, que até aqui para ella caminhavamos. D. Branca de Vilhena já me pertence, e possivel será que...

-- Em tal caso vossa deve ser perante a egreja apostolica e romana, atalhára Boccarro.

-- Impossível por esse meio! Jurei a D. Branca que não faria valer esta falta de ambos deante do conde de Sortelha. D. Branca prefere a morte a que seu pae tome conhecimento da queda de uma virgem.

-- Que fazer então?

-- Eu vos digo o meu parecer, caro doutor. Oquendo faz se á vela depois d'amanhã. Eu vou na frota. Antes irei a casa do conde e por ultima vez lhe pedirei a mão de D. Branca. Se m'a recusar, como creio, partirei para a Bahia deixando o corpo de D. Branca á mercê do pae utilitario, levando commigo o seu coração. É possivel que eu fique n'ella, Boccarro; e, para que isto se não saiba, sereis vós o medico, e o amigo, e o confidente d'ambos, salvando-a da deshonra aos olhos d'esse mundo preconceituoso.

-- Explicae melhor vosso pensamento, D. Francisco Manuel.

-- É preciso que se o conde detestavel obstinar em casar a filha com um seu tio, este não seja o pae de um filho de D. Branca.

-- Não comprehendo, em verdade...

-- Eu termino: D. Branca não póde casar com o Thaumaturgo, levando-lhe no ventre um successor. Forçoso é que D. Branca adoeça de uma doença qual entenderdes, e que só no campo e longe da capital achará cura, indo acompanhada por vós.

-- Mendaz proceder me propõe D. Francisco, ou, melhormente, seus verdes annos!

-- Sim, falaz haveis de ser, Boccarro. Possuis um segredo d'honra; confiei-vol-o como a um confessor, e não só haveis de guardar sigillo por dever de vosso grau, se não que buscareis remedio como medico que sois, e amigo d'ella e meu.

-- Porém... objectou Manuel Boccarro, talvez que do proximo enlace de D. Branca com D. Gregorio se não possa occultar este segredo.

Pater is est quem nuptiae demonstrant.

-- Mais falso alvitre é esse, caro doutor! Se eu não casar com D. Branca não darei a minha mão a outra mulher, como a um falso pae um filho que fôr meu! Ninguem como o medico, a quem se faz depositario de um segredo semelhante, póde salvar uma reputação. E, dado que por humanidade o não queiraes fazer, fal-o-heis por dever de vosso moisterio porque o é. Amanhã buscarei falar ao conde e procurar-vos-hei depois para vos entregar uma somma de dinheiro quiçá precisa, e uns esclarecimentos necessarios.

-- Vede, porém, D. Francisco, se aquelle homem que me conduziu a esta casa será sabedor...

-- Não é, atalhára D. Francisco: conhece apenas a mutua affeição como o conde de Sortelha e mais alguem.

-- Salvaremos, pois, D. Branca de Vilhena da Silveira.

-- Obrigado meu amigo.

-- Nada haveis que me agradecer: sem embargo de que eu pudera regeitar a doente, guardando o segredo cural-a-hei, e cura será até agora não achada na minha empelota.

-- Esse é o siso, doutor, e tudo o mais é ser escudeiro do Fernão da Acha.

-- Não tanto como dizeis, D. Francisco Manuel. Mais siso houvera eu se vos respondesse, que por minha fé vos promettia guardar o sigillo da confissão feita, abstendo-me de medicar a doente, quem sabe se para dar uma falsa virgem ao ludibriado esposo! Enfim, valha nos Lucina, pois que na minha alçada de physico cabe, sem desdouro para mim e para os meus, o serviço que vos farei.

-- Quizera-vos, Boccarro amigo, mais philosopho. Pareceis não conhecer o mundo. Quantos casos d'estes, escondidos em brancos trages, em véos alvissimos e coroas de flôres não guardam a sociedade e o tumulo? Ora dae que eu seja como o sabio de Abdera, e me ria da humanidade.

-- Ride, sim, que eu por mim chorarei como o d'Epheso, esses enganos envenenadores da felicidade do coração

-- Deixae tal proposito, Boccarro, e dae-vos ao estudo da humanidade, em suas aspirações e nas suas fraquezas, que mais proveito vos advirá da observação. Debalde opporeis um codigo de deveres sociaes ás exigencias do coração humano. Para affectos e repulsões incoerciveis não ha comportas nem diques; ha victimas. A historia da humanidade é uma historia d'hecatombes.

Ouviu-se n'isto soar uma hora da madrugada.

Os dois não philosopharam mais, dando por terminada a conferencia e por assentado o proceder ulterior de cada um.

VII

Pedido de casamento

Morava D. Francisco n'aquelle anno de 1631 na Casa dos Bicos, á Ribeira.

São dez horas da manhã de quatorze de maio. Desde as nove e meia que um seu lacaio o aguarda á porta com dois cavallos. Apenas, porém, no relógio da Magdalena soára a ultima d'aquellas horas assomou á porta principal o ex-estudante de Coimbra, montou a cavallo, e, seguido do lacaio a cavallo tambem, tomou a direcção do Terreiro do Paço, e atravessando o mercado da Ribeira e Praça do Pelourinho, passou pela Misericordia e foi-se apear a Porta da Capella, logar em que, annos depois, se reuniram os fidalgos da acclamação.

Deixando o creado com os cavallos á porta da casa da India, n'ella entrou e lá se demorou meia hora, volvendo a montar de novo a cavallo.

D. Francisco Manuel de Mello entrando logo na rua das Virtudes, atravessou o Terreiro do Pelourinho velho, cortou pelas ruas de Gilanes e da Padaria, chegou á Sé, entrou na rua do Limoeiro e lá se foi caminho de São Vicente.

Ia vestido com aceio e montado com elegancia e garbo. De tafetá de Serpa era o gibão, com suas orladuras d'ouro, roupeta de vintadozeno preto apassamanada e bandada, os calções de melcochado verdemar, meias de seda côr de carne e sapatos com um só botão, gorgueira bem encanudada, chapeu com cintilho e plumeiro preto. Deixara aquelle dia o militar e pesado uniforme, que no dia seguinte o cobriria, para ostentar as galas do fidalgo enamorado, que vae pedir por ultima vez ao pae a mulher dilecta de seu coração.

O proprio escudeiro ia mais loução, com o seu pellote de baeta de cem fios, roupeta de catasol côr de pinhão, calções de perpetuaba azul ferrete, meias de agulha, escarpins de linho e chapeu desabado.

Chegado á rua de Pero Esteves e ao palacio do conde de Sortelha, D. Francisco apelou-se, e conduzido por um pagem a uma sala de espera, alli se conservou até que o pagem volveu, depois de haver dado parte ao conde, que se não fez esperar muito.

Ornavam a sala cadeiras de couro com pregaria dourada, contendo nas espaldas as armas de Sortelha em relevo, consistentes n'um escudo esquartelado; no primeiro se viam as armas dos Goes, seis crescentes de prata postos em pala, e no segundo as dos Silveiras, tres faixas vermelhas orladas de uma silva, e assim nos contrarios, havendo por timbre nm drago azul.

Quatro ricos bufetes de castanho com seus lavores, e dois bellos contadores de pau preto, tauxiados de madreperola; alguns paineis com retratos de familia e dois espelhos de Veneza emmoldurados em dourados festões de flores completavam a mobilia d'aquella sala.

Mirava-se a um espelho D. Francisco, como tão proprio é de um moço enamorado, quando o Conde de Sortelha assomára a uma porta que dava para outra sala mais interna.

-- Adeus, D. Francisco Manuel! dissera o conde, com ar muito paternal e risonho. Hoje por esta casa, é certamente uma despedida que nos vindes fazer, não é verdade? Ouvi que levantava ferro amanhã a armada d'Oquendo.

-- Levanta, se não houver contraria ordem, respondeu D. Francisco. Venho realmente por me despedir, e por vos fazer um pedido.

-- Falae ora D. Francisco, que sereis servido. Mas, entremos para esta casa onde melhor estaremos. E os dois entraram para a sala contigua d'onde saira o conde. Era ella um pouco mais vasta do que a primeira e mais ricamente adornada. Dois grandes espelhos de Bohemia havia nas paredes lateraes; ricos paineis com as façanhas de D. Affonso V em Africa; contadores preciosos de pau preto constelados de madreperola e marfim, e prata, em volta; cadeiras baixas de braços, forradas de velludo carmesim com espalda oval, tambem estofadas do mesmo veludo; grandes jarras da china e tapetes de raz.

- Mui hei que vos ralhar, D. Francisco, proseguiu, o conde. Pois occultais me ha mais de um anno já um segredo, uma proesa vossa! A mim que desde creança vos quero bem! Mas, esperae, que são precisas duas testemunhas. E D. Luiz tocou uma campainha de prata. Appareceu logo a um reposteiro um escudeiro novo, ou nicho da casa, a quem o conde se dirigira e dissera alguma cousa, que D. Francisco não ouvira. O creado partiu, e D. Luiz, vindo para D. Francisco, continuou:

-- Revelae aquellas palavras em voz baixa, ditas sem vossa venia.

D. Francisco Manuel, admirado do tracto alegre do conde, e sem atinar com o assumpto a que elle chamára segredo e proesa, e no qual só queria falar com testemunhas presentes, chegou a suspeitar que D. Luiz da Silveira mudara de parecer, e antevendo o annunciado pedido lhe ia dar o consentimento para casar com D. Branca, quiçá sabendo da intimidade com sua filha.

-- Por quem sois, senhor conde! Mas, se vos apraz antes que me ralheis diante de gente, attendei ao meu pedido.

O conde, que não attingia a natureza do pedido, e suppondo ser, na verdade, cousa que de outrem não fosse ouvida, chegando mesmo a crer que D. Francisco lhe vinha pedir por emprestimo alguma somma de dinheiro, respondeu-lhe:

-- Sim, falae.

-- Venho uma derradeira vez pedir-lhe a mão de D. Branca.

N'isto, quando o conde surprehendido, ia para lhe responder, ouviram-se passos e viu se correr um pouco o reposteiro e apparecer áquella porta o conde de Villa Nova, D. Gregorio.

D. Francisco ficára fulminado com aquelle apparecimento; mas, tomando logo o seu habitual sangue frio e calma de espirito, depois de cumprimentar a D. Gregorio, disse a D. Luiz da Silveira:

-- Creio, sr. conde, que menos francamente me podereis ora responder.

-- Se trataes negocio em que não deva haver de entrar terceiro, eu me retiro, acudiu D. Gregorio, percebendo o alcance das palavras de D. Francisco.

-- Bem ao contrario, respondeu D. Luiz da Silveira. Antes, porém, e mui de proposito vos chamava e a... mas, noto que falta D. Branca.

-- Pede-vos desculpa por se achar levemente incommodada, me disse.

-- Pois dispensemol-a, proseguiu o conde; e voltando-se primeiramente para D. Francisco Manuel e depois para D. Gregorio, continuou:

-- Ahi o tendes, o vosso salvador no Mondego!

-- O quê! pois foi D. Francisco Manuel?

-- Mal informado estaes, sr. conde, atalhára aquelle: nem sequer tenho conhecimento do caso...

E desejando que lhe acreditassem a mentira por se furtar a agradecimentos, concluiu:

-- Nada haveis que me agradecer; e, se vos apraz, sr. D. Luiz, ou me volvei agora resposta, ou m'a enviae a casa, que forçoso é o ir avistar-me com Oquendo na casa da India antes das duas horas.

D. Francisco Manuel falava mal humorado e pouco prasenteiro, como quem se acha torturado pelo assumpto da conversação, e o quer evitar prestes. Ao contrario, o conde de Sortelha escutára-o risonho, e alegre lhe respondera:

-- A modestia de vossos brios forçou-vos a uma negação. Sei tudo. Fostes vós, D. Francisco, quem n'aquella tarde famosa, parece que tendo ido passeiar a cavallo para aquelles sitios vos lançastes ao rio e salvastes a D. Gregorio! Daeme a vossa mão, D. Francisco: horae-me com um aperto d'ella.

-- Obrigado, sr. D. Francisco, disse D. Gregorio, indo para elle, e apertando-Ihe tambem a mão. Sem duvida vos devo a vida; e, se serviço fôra aquelle que se podesse pagar, eu quizera...

-- Deveis a vida a Deus, que vol a deu, e não a mim. Paga! Ora, por Deus, não repitaes similhante cousa, que não frisa a nenhum de nós, por nos aviltar!

-- Não vos agasteis, porém...

-- Porém, se consentis que eu ultime um negocio a que vim...

O conde de Villa Nova ia para se retirar, não só por cortezia, mas por se ver pequeno diante de D. Francisco Manuel, quando lhe deteve a sabida o de Sortelha.

-- Falemos agora do assumpto que vos trouxe aqui, antes de partirdes para o Brazil, D. Francisco. Vindes por ultima vez pedir me a mão de D. Branca. Por mim, que vos tenho visto crescer em talentos, valor e brios, sendo contente minha filha, prazer teria mesmo n'esse enlace: porém, como já de outra vez vos disse, está o casamento tractado com D. Gregorio... Sabe o a côrte, conhece o a nobreza...

-- Vão n'elle os interesses das duas casas, accrescentou nesciamente o conde de Villa Nova; amo a minha sobrinha...

-- Impossivel! bradou D. Francisco Manuel pungido do ciume d'aquellas palavras. Mas, dado que fora assim, D. Branca não vos póde amar; será uma victima!...

-- Perdão! olhae o que dizeis, D. Francisco! Impensadamente falastes em victimas, sem duvida.

-- Ao contrario, mui adrede foi. Sim, victima vossa será D. Branca da Silveira. Pois que amor vos poderá dar a vós vossa sobrinha? Nenhum! Apenas um convencional respeito, unicamente submissão forçada, nada mais do que passiva escravidão! Isto podereis achar em vossa sobrinha. O terno sentimento, o apaixonado desejo, finalmente, o amor, não o busqueis n'ella, que forçada será a entregal-o a quem Deus quizer, e não a vossas mesquinhas e rachiticas convenções de matrimonio, de degradação da especie, de atrophiamento da prole. Se podesseis consultar a historia, n'ella verieis nascer os indomaveis e fortissimos luzitanos da fusão dos iberos e celtas, como a raça goda dos consorcios entre romanos, vândalos, alanos, suevos e visigodos.

As castas latinas morrem na devassidão do baixo imperio. Os descendentes de Gonçalo Mendes da Maia e de Vasco da Gama resvalam no despenhadeiro do quasi total aniquilamento da nobreza do reino! Onans das praças e Trimalciões das salas, abomino vos! Sr. conde de Sortelha! Um descendente da casa de Bragança, não menos nobre do que vós e os vossos, a quem lastima, vos pede perdão de alguma phrase menos solita, e se despede para não mais volver a este palacio. Adeus, sr. conde de Sortelha! E apertou a mão, que o conde verberado automaticamente lhe extendera. Sr. D. Gregorio Thaumaturgo de Castello Branco, ficaes esposo de vossa sobrinha, que eu me retiro amante de D. Branca!

E sahiu rapido e menos palacianamente do que soia D. Francisco Manuel de Mello fôra aspero e mesmo inconveniente; mas, que muito, se como amante de D. Branca lhe não poderá soffrer o animo o ouvir as banalidades e dislates de D. Gregorio sem devidamente as corrigir! O conde de Villa Nova ia tornar infeliz uma

senhora. Tinha d'isto a certeza D. Francisco, porque sabia, como notorio era então, que nefando viver era o d'elle. Eram vicios seus os que o céo castigára com chuva de enxofre e fogo na capital de Pentapole; que a inquisição punira em D. Rodrigo da Camara conde de Villa Franca, no dia 20 de dezembro de 1652, e que maculam hoje em dia collegas d'elle nas dignidades sociaes. Perdida a esperança de poder ser esposo de D. Branca, D. Francisco deu de mão a conveniencias e cortezias esmagando o pae assassino da ventura da filha e o nescio esposo que não anteviu, como lhe cumpria sabendo da affeição da sobrinha, que nunca poderia possuir o coração d'ella, d'ella docil, meiga e boa.

Deixemos os dois condes entregues ás apreciações aceradas do proceder do nosso heroe, e assistamos á partida no dia seguinte da frota de D. Antonio Oquendo, almirante real da armada de Castella.

Mas, dirá o leitor, levanta ferro a armada em que deve sair de Lisboa D. Francisco sem que este se despeça de D. Branca? Não é natural. E não é, respondo francamente: mas, se o leitor já conhece a porta por onde aquelle entrava nos jardins do conde de Sortelha a encontrar-se com a namorada, bem deverá suppor que magoada despedida seria a d'elles... O mar interposto aos dois amantes! Aquella eterna imagem da vida e do movimento e tambem da morte que tem em seus abysmos!

São quinze de maio: a maré inclina se a juzante, e o vento é terrenho e de feição. Levam ancora os navios portuguezes em que vão mil dos nossos sob o commando do mestre de campo general D. Alvaro de Mello, da ordem de S. João; segue o terço ás ordens de Bocca Negra e de Banhuelo e, por ultimo, a nau almirante com D. Antonio Oquendo.

Como Camões na tolda da nau S. Bento volvia um olhar saudoso para os montes de Cintra, D. Francisco Manuel de Mello, encostado ao mastro da nau S. João Baptista, não despregava os olhos das torres de S. Vicente de Fóra. É que lhe ficava perto d'ellas metade da sua alma, se inteira a não deixava antes!

VIII

Em Goes

Na Provincia da Beira Alta, e no districo de Coimbra, jaz entre as serras do Rabadão e do Carvalbal a villa de Goes. Filha de um dos fortes companheiros d'armas do conde D. Henrique por nome D. Anlão Estrada, fidalgo galiego, a não a suppormos mais antiga, considerando alguns tenues restos de maior antiguidade, assenta esta terra na margem direita do pequeno rio Ceira, confluente do Mondego, em uma varzea fertil e amena.

De Vasco Pires Farinha, que alli fundou um grande morgado, veio este aos Silveiras, que foram Escrivães da Puridade de D. Duarte e de Affonso V e condes de Sortelha, senhores de Goes. Importante devia ser aquelle morgado, visto que os senhores d'elle entre aquellas serras altissimas, longe da capilal do reino fundaram em tempo de D. Manuel um palacio magnifico junto do rio. Alli campeou de pé até ha poucos annos aquelle representante vetusto de outras eras. Terminado por dois torreões quadrados, corria-lhe o corpo do edificio ao longo do rio, em cujas aguas, represadas ao açude de Santo Antonio, se mirava aquelle velho, com suas janellas geminadas e suas torres cobertas de hera viçosa em tufos frondosos e pittorescos.

Cedeu ás exigencias modernas aquelle monumento respeitavel da nobreza de Goes; e, derruido até aos fundamentos, acho que nem da ossada formidavel deixou vestigios á posteridade.

Mas no anno de 1631 era elle novo e habitado, se não em todo o anno ao menos nos mezes calmosos.

Grande azafama vae alli no dia 20 de junho depois de trindades. Chegára da Ponte do Sotão um pagem a cavallo annunciando a chegada n'aquella noite de D. Branca, acompanhada de duas aias, do medico da casa em Lisboa e de alguns pagens, entre os quaes o nosso conhecido Francisco Cardoso. D. Branca, nascida e creada em Goes, adoecera gravemente em Lisbea e vinha por conselho da medicina, e até acompanhada do physico, restabelecer-se com os ares patrios. Tal foi a razão que o pagem dera da vinda de D. Branca sem o pai, a irmã e o tio. Estes só mais tarde podiam chegar a Goes, afim de passarem alli parte do anno comprehendida desde a chegada até novembro ou dezembro. Accendem-se lumes, preparam-se leitos, ordena se a ceia. O villico do conde de Sortelha sua e tressua com tão inopinada vinda. Nem ao menos de Coimbra o mandaram prevenir!

Enfim, são dez horas. Os habitantes de Goes ao verem illuminar consecutivamente o vasto palacio sem terem ouvido annunciar a vinda do conde, affluiram á ponte, invadiram a estrada até S. Paulo, povoaram o terreiro da entrada do palacio.

Mais ainda do que hoje em dia, a propriedade estava então alli accumulada: a população era pobre, e a vinda do conde de Sortelha annunciava, promettia a todos o emprehendimento d'obras, por tanto, trabalho bem remunerado, e o espalhar de largas esmolas pela população miseravel.

As tres liteiras em que vinham D. Branca, duas aias e o medico chegaram ao largo do palacio, seguidas de alguns creados a cavallo. Apearam se e subiram as escadas, indo adiante D. Branca pelo braço do physico.

O villico do conde e alguns creados os receberam em cima com tochas accesas na mão.

A população, ao ver subir a fidalga que muito a soccorria em suas necessidades, exultou jubilosa chegando mesmo a dar lhe vivas, que D. Branca agradeceu do alto do balcão da vinte degraus por banda.

No dia seguinte foi a fidalga visitada da gente rica da villa. A todos recebeu afavelmente, como era costume seu. Apezar da pallidez do rosto, estava encantadora n'aquelle dia, com seu gibão roxo apassamanado de prato, saia de barras com debrum de lhama d'ouro sobre o verdugadim, ou guarda infante e chapins azues com tacões escarlates. Descoberta a cabeça formosa, deixava admirar-lhe o cabello apartado á direita, d'onde a moda mandava uma pequena paveia para o lado esquerdo, depois de lhe encobrir em pasta parte da testa espaçosa, caindo o demais em bucres até aos hombros graciosos.

Deixemos agora, leitor curioso do viver e crer de nossos avós, a filha do conde de Sortelha no seu palacio de Goes, com seu medico e suas aias e seus creados, e voltemos á capital do reino. Saudaveis são os ares d'aquella villa, excellente a alimentação dos ricos, saborosas e fresquissimas as aguas: nada devemos receiar, pois, pela saude de D. Branca de Vilhena, a quem viremos visitar um dia. Aproveitemos a volta a Lisboa do pagem Francisco Cardoso, e sigamol o sem entrar em Coimbra, voltando pela Louzã, e pelo Espinhal a tomar a estrada real em Ancião.

Entremos pois em Lisboa, onde nos faltam os dois principaes heroes d'este livro: D. Francisco Manuel e D. Branca da Silveira, mas onde temos D. Gregorio Thaumaturgo e Francisco Cardoso.

O palacio do conde de Villa Nova demorava perto do Limoeiro, n'aquelle terreno em que Salter de Mendonça edificára o seu, aproveitando as ruinas d'aquelle, arrasado pelo terremoto em 1755.

Alli, em umas casas do palacio a rez do chão praticam dois homens: Francisco Cardoso e Marcos Ribeiro, então creado de D. Gregorio.

-- E como chegou a Goes a doente? perguntáva Ribeiro a Cardoso.

-- Sem grande incommodo, e lá ficou satisfeita.

-- Achaes que se possa restabelecer tão longe de Lisboa, lá n'aquellas serras?

-- Por certo, e em breves tempos. Os ares são excellentes alli; o palacio está bem situado e é vasto.

-- Ora Deus o queira para se ultimar esse casamento, já tão demorado, e que tão tresloucado traz o sr. D. Gregorio. Nunca o julguei capaz de tal affeição, elle que...

-- Conveniencias talvez de unir os bens das duas casas, atalhára Cardoso.

-- É possível; ainda que D. Branca é muito linda, na verdade. Mas, ouvi que fôra pedida em casamento por um fidalgo militar, de quem agora não lembro o nome: será isto verdade?

-- É, sim: por D. Francisco Manuel de Mello, aparentado ainda com a casa de Bragança.

-- N'esse caso já o sr. D. Gregorio não traz virgem de todo o coração da senhora D. Branca; porque se não faz um pedido assim sem ella ser contente n'elle.

-- Póde ser; mas é isso cousa natural. Quantas casam ahi que não tenham tido já alguma affeição? Talvez nenhuma.

-- Mas não é bom.

-- Nem bom nem mau, me parece a mim. Pois que monta despertar este ou aquelle homem o coração de uma mulher para o amor, se é certo que o casamento e a mortalha no ceu se talha?

-- Será assim; eu porém, é que não quizera para minha uma mulher a que já se namorasse d'outro homem.

-- É ser demasiado escrupuloso. Mas, dizei-me cá: então quando chegará do Algarve vosso amo, o sr. D. Gregorio?

-- Ainda não sei; mas, talvez que d'aqui por tres semanas...

-- Sendo d'esse modo, e melhorando, como é provavel, a senhora D. Branca, poderá ter logar o casamento em setembro ou em outubro, e talvez mesmo que na capella do palacio de Goe?

Mais algumas palavras trocaram os dois, despedindo-se e dizendo-se adeus até á noite.

Os dois eram conhecidos de ha muito d'aquella casa de tavolagem no Becco da Estalagem Negra, onde jogavam o gagao e a carteta, e onde os dois namoriscavam a filha do estalajadeiro, Catharina d'Enxobregas, moça de quinze ou dezeseis annos, a qual, pendendo mais para Marcos Ribeiro, não era indifferente aos galanteios de Francisco Cardoso, mais vivo e bem falante do que o Ribeiro.

Á noite estiveram na tavolagem e se avistaram com a moça, que os enfeitiçava a ambos. Depois de haverem jogado pediram ceia e cearam junctos. Bem comidos e bebidos ficaram se os dois a conversar á meza, intromettendo na conversação alguns copos de vinho, de um grande pichel de estanho que tinham sobre a meza.

Francisco Cardoso era homem esperto e manhoso. Jogador ao vicio affeito, no qual perdia quasi sempre, não punha grande escrupulo nos meios de alcançar dinheiro. Solteiro aborrecia o casamento, mas não as mulheres. Desejava a posse de Catharina, mas sem que para isso houvesse de casar com ella. Occultava, porém aquella affeição, aquelle desejo carnal a todos, especialmente a Marcos Ribeiro, que elle sabia pretender casar com ella.

Á moça procurava agradar, sem de modo algum lhe manifestar seus pensamentos. Confidente, como o leitor sabe, dos amores de D. Branca e de D. Francisco Manuel Cardoso servia a este pela paga, como a D. Branca pela affeição que lhe tinha, dizia elle, pela muita bondade d'ella. Era o bargante d'aquelles tempos, disfarçado na libré de pagem do conde de Sortelha.

Tal era, pois, o homem que n'esta novella vae representando um papel principal.

Ribeiro e Cardoso conversaram muito e foram bebendo post coena, como dois romanos, ou dois sybaritas.

Ou fosse fingidamente, ou, na verdade fumos de temulencia do muito beber, Cardoso começou de desnortear idéas, soltando phrases desconnexas mais significativas, que para logo chamaram a attenção de Marcos Ribeiro.

-- Tambem eu, sim... lhe quero a ella, que é bonita... Mais vinho, linda Catharina!... Armas... tambem eu tenho... nos botões da libré! Ah! Ah! Ah!... Sou Francisco... tambem... A mim, tubarões famintos... devorai-me!... Catharina!...

-- Que retorcido aranzel é este? exclamou Ribeiro, meio pungido de ciumes. Catharina? Acaso tambem este a amaria?

-- Ou sim... ou não... Sepultura, ou papagaio de Guiné... continuava Cardoso.

Marcos Ribeiro prestava muita attenção ás truncadas palavras do contuberoal, mas não poude attingir mais do que a suspeita d'elle amar tambem Catharina. Deveras picado, e como por certificar-se melhor, tractou de lhe tirar o vinho, que Francisco Cardoso ia bebendo de espaço a espaço, e de lh'o substituir por agua, a fim de ver se, alliviado da embriaguez, poderia descobrir o sentido das palavras que lhe ouvira. Banhou-lhe a fronte com agua, levou o quasi de rastos para junto de uma janella, que abriu, sentando o n'um dos poiaes d'ella, e esperou que se desannuveasse aquella cabeça toldada de fumos vineos.

Depois de esperar uma hora, e ao ouvir meia noute, não conseguindo que Francisco Cardoso desse acordo, de si, resolvera deixai o na Estalagem Negra aquella noite. Mas elle falára duas vezes em Catharina! Esta idéa emburilhada em papeis de fingida bebedice, quiçá por ficar uma noite perto de Catharina, taes estos de revoltoso ciume lhe metteu no corpo, que para logo mudou de parecer, resolvendo leval o d'alli fosse como fosse. Depois de ter pago a ceia e de se despedir de sua namorada, que lhe parecia condoida de Francisco Cardoso, circumstancia que mais o anavalhou. Ribeiro enfiou lhe o seu braço direito no esquerdo, ergueu o e lá se foi indo com elle por aquelles corredores adeante.

Scismando Ribeiro nas palavras de Cardoso: Catharina... armas... tubarões à maneira por que lhe amparáva o corpo cambaleante ia cogitando meio de descobrir o verdadeiro sentido d'ellas.

Mas seria verdadeira temulencia de Francisco Cardoso? dirá o leitor. Teria elle em vista algum fim reservado e occulto? Falar tão pouco embriagado o que tanto pudera dizer? Talvez o saibamos.

IX

Sarau na provincia

São decorridos dois annos. D. Francisco Manuel de Mello já voltára a Portugal. Dois annos! Que mudanças se não podem operar n'este pequeno lapso de tempo? se às vezes em menos, e muito, menos, desabam thronos e se fundam outros! Andam as historias cheias de exemplos. O do nosso D. João I elevou-se em meia hora! Em pouco mais o do oitavo Duque de Bragança.

D. Branca de Vilhena estava casada com seu tio o conde de Villa Nova, e Marcos Ribeiro, seu creado com Catharina d'Enxobregas, filha do dono da Estalagem Negra. Francisco Cardoso, que servira de medianeiro dos amores de D. Francisco e de Branca era então mordomo do conde de Villa Nova, para cuja casa viera com D. Branca, deixando a de Sortelha. A elevação áquelle logar, a seducção do desempenho de tal cargo acorrentaram no ao serviço do conde por forma que era elle o seu mais intimo servidor, e por ventura confidente.

Dos amores, que chegaram a não ser castos, duas pessoas, alem dos amantes, possuiam o segredo: Manoel Boccarro Francez e Francisco Cardoso. Os dois condes apenas conheciam aquella affeição de creanças, como lhe chamavam, que julgavam extincta; no peito de D. Branca, no dia em que entrára em casa de seu tio condessa do mesmo titulo; em D. Francisco, quando se lhe sumira no horisonte o mais alto pinaculo da Serra de Cintra. Engano era aquelle manifesto. D. Francisco e D. Branca haviam nascido para se amar sempre a despeito de contrariedades. Deixou já por ventura o Mongibello de conter no seio ardentes ondas de fogo sulfureo, embora as não vomite em lava calcinadora? Não. Quando parece extincto labora em secretos dilluvios de fogo. Tal se me afigura o peito humano.

Dois annos havia que os dois amantes se não tinham visto. Apenas D. Francisco contemplára mil vezes o retrato d'ella, que levára ao peito, como uma reliquia, encaixilhado n'uma pequena medalha d'aço pulido, bordada a prata e ouro, lisa por um lado, e contendo as armas de Sortelha no outro, por forma que só puxando-se a tampa corrediça do brazão se poderia ver a miniatura de D. Branca sobre marfim, como debaixo da lisa a effigie da Mater Dolorosa. Que prenda aquella! Duas mães! De um lado, «a Estrella d'Alva que desterrou a noite, chave do céo que desfechou o dia, luz do Oriente que alumeou a terra da idolatria» no filho que chorosa lamenta, crucificado por nós; do outro, a mulher fraca mas formosa, peccadora sem culpa, mãe que abandonou seu filho aos braços das exigencias sociaes por ostentar uma coroa de falsa virgem! Aquella medalha era o symbolo de duas dores, horto de duas agonias, calvario de dois corapoes! Virgem e peccadora, desventurosas ambas! Que thema doloroso para um poeta como D. Francisco! Ambas aquellas imagens o consolavam: a Santissima, na resignação da magnitude da dôr, a de D. Branca, no sacrificio á obediência paterna!

Era por fins de setembro então. Os dois condes com suas familias passavam o verão em Goes. Apenas em Lisboa se achava Manuel Boccarro Francez, a quem D. Francisco podesse falar de D. Branca e d'ella haver algumas novas. Procurou, pois, a Manuel Boccarro. Falaram-se. D'elle soube tudo quanto desejava, e lhe podia acalmar a febre da saudade de D. Branca de Vilhena. Era isto porém pouco e muito pouco para o exigir de seus affectos.

Entrara o mez de outubro. No palacio de Goes permaneciam ainda as familias dos condes, d'onde só voltariam á capital do fim do anno. Força era que D. Francisco só contemplasse a imagem da amante na medalha que d'ella houvera, lá sobre as aguaa de Pernambuco e da Bahia; mas no reino, a curta distancia d'ella impossivel lhe seria a elle o interpor maior espaço ao avistarem-se, ao falarem-se talvez. Saiu de Lisboa para Coimbra com um creado, e d'alli para Goes sem elle.

Ordenára-lhe, comtudo, que fosse cada tarde a cavallo até á Barca dos Palheiros, já conhecida do leitor, onde possivel seria alcançar novas d'elle, e determinações.

Chegou áquella villa em vinte e sete de outubro, ao escurecer. Chovia e D. Francisco Manuel, sem temer que fosse conhecido, mas por não despertar suspeita em ninguem, começou a mensurar o passo do cavallo ainda antes de chegar a S. Paulo, apertando o ferragoulo ao corpo, e erguendo lhe a gola larga e o capuz, em que occultou parte do rosto e a cabeça.

Quando de S. Paulo, na margem esquerda do Ceira, partira D. Francisco para a villa, que lhe ficava na frente e ao encarar o vasto palacio do lado opposto áquella margem, em cujas aguas vinham reflectir-se os muitos lumes que partiam das janellas d'elle, parou um instante a meditar na causa de tão illuminado o ver, a hora em que pela primeira vez, e quiçá ultima, D. Francisco vinha áquella terra. Ao entrar na ponte de tres arcos, construida por D. Manuel, perguntou a um homem que voltava dos trabalhos do campo, não só de quem era aquelle palacio, por bem se certificar, mas qual a causa de tão illuminado estar. Soube então do homem que fazia dois annos n'aquelle dia que D. Gregorio casára com a fidalga, e que havia alli festa e sarau por essa causa n'aquella noite. Dolorosa noticia fôra aquella! Magoadora coincidencia, na verdade! Era o sarcasmo d'uma sorte avessa a insultar-lhe o coração. Entrou na rua da Ponte e n'ella se hospedou, n'uma estalagem que ali havia chamada de Lopo Caraça.

Ninguem conhecia nem mesmo podia suspeitar d'elle, que dissera a Lopo Caraça ter de sahir cedo para a Pampilhosa.

Depois de mandar pençar o cavallo, sahiu, fazendo crer ao estalajadeiro que ia ver a terra, pois que era a primeira vez que a ella vinha. Eil o na rua, hesitante

como bussola perdida. Alli, a dois passos d'elle, estava o idolo do seu primeiro amor, cujo coração lhe pertencia, estava o norte de seus pensamentos, e, comtudo, não se podia approximar d'ella! Nem se quer ao menos ver lhe o rosto formoso!... Se comtudo podesse avistar-se com Francisco Cardoso! Porém, como, sem ser conhecida a existencia d'elle em Goes? Ainda que aquelle antigo medianeiro guardasse inviolavel segredo, o facto de alguem os ver conversar bastaria a levar a nova ao palacio do conde de Sortelha, d'onde viriam interpellações ao pagem, agora mordomo de D. Gregorio. É demais, não se negaria Cardoso a ser mensageiro para com a condessa ? Não poderia mesmo, por agradar ao conde de Villa Nova, denunciar-lhe a sua estada em Goes? Não formára D. Francisco d'aquelle pagem um conceito duvidoso, vendo n'elle um homem capaz de salvar ou de perder? Estas e outras observações fugitivas lhe passavam pela mente em tropel confuso, ao passo que machinalmente caminhava para o palacio.

Quando deu por si estava perto das escadas. Affastou-se rapidamente, porque viu brilhar a luz de um lampeão na mão de um pagem no alto da escadaria e, já bem perto de si, caminharem para o palacio duas senhoras, seguindo a um creado do conde de Villa Nova, que lhes alumeava o caminho com outro lampeão. No meditar distrahido com que se approximára, tanto deixou approximar o creado, e as senhoras, que já não pôde occultar-se ao largo sem ser notado do creado ou escudeiro, que fizera uma leve paragem reparando n'elle.

Já não chovia, mas a noite continuava escura. Foi-se encostando a uma parede fronteira ao palacio e alli se coseu com um canto do muro.

Má hora fôra aquella em que, dois annos antes, promettera não voltar mais a casa do conde de Sortelha!

Já se começava a ouvir afinar os instrumentos, sacabuxas, dozainas, boazes e charamellas, cujos sons se harmonizavam com a voz dos altaneiros e baxões. Musicos e cantores estavam prestes: ia começar o sarau.

D. Francisco Manuel, maldito do destino, ao ouvir echoar por aquellas salas as harmonias do minuete, com que a festa começava, partiu d'alli apressadamente e dirigiu se á estalagem. Que pensamento o saltearia?

Chamou Lopo Caraça, pediu que lhe indicasse o quarto em que pernoitaria, e convidou o a acompanhal-o a elle. Alli chegados, D. Francisco perguntou-lhe com dissimulado intento:

-- Diga me, sr. Caraça, fica perto da Pampilhosa um logarsinho chamado Bordeiro?

-- Saiba vossa mercê, meu senhor, que Bordeiro não é para esse lado.

-- Não é? Haviam me dito que sim, e que era perto de Goes.

-- Lá longe não é, saiba vossa mercê; mas é cá para a banda d'Arganil. A estrada para a Pampilhosa é por aquella lomba a cima, e a de Bordeiro aqui mesmo pela borda do rio, e apontava para os dois lados oppostos.

-- Fico lhe obrigado. Diga-me, porém, outra cousa: não haverá aqui um caminheiro, que ainda mesmo esta noite e d'aqui a uma hora queira partir para Coimbra a levar uma carta?

-- Isso agora... disse o Caraça admirado, de noite... se fôsse ao romper da manhã...

-- Ha de ser dentro em uma hora. Alcance-me um caminheiro, ou um recoveiro, que boa paga terão ambos. Dê me um tinteiro e papel.

Lopo Caraça, com aquella ideia de boa paga não hesitou mais, nem com mais reticencias respondeu a D. Francisco. Deu lhe papel e um tinteiro e sahiu a procurar-lhe um homem.

Meia hora depois sahia de Goes a cavallo um portador da carta que D. Francisco escrevera, tendo recebido instrucções em voz baixa e dinheiro.

Tão rapido se despediu o homem, que bem se presumia o contentamento d'elle, sem duvida pelo avultado da paga.

-- Agora, sr. Caraça, avise para que alguem me tenha prompto o cavallo antes de romper o dia, e não divulgue que tem aqui um hospede.

-- Fique vossa mercê descançado; mas não quer v. s.ª comer alguma cousa? Deve vir precisado... talvez venha de longe...

-- Não quero mais do que descançar um pouco este corpo cançado. Diga-me quanto lhe devo.

-- O que vossa mercê entender, meu senhor, respondeu Caraça, atido á generosidade do hospede.

Briosamente lhe pagára D. Francisco os serviços prestados, despedindo se d'elle com a repetição do pedido feito, de não dizer a pessoa alguma que tinha em sua casa um hospede.

D. Francisco tinha deixado em Coimbra o creado mui de proposito, porque o vir com elle despertava suspeitas, não só pelo estado, mas por suas armas bordadas na libré que vestia.

Sabendo, porém, de um modo indirecto, onde e a que distancia de Goes ficava Bordeiro, escrevera ao creado para que elle sem demora alugasse uma liteira e se apresentasse com ella na Varzea de Goes, onde D. Francisco o buscaria.

Mais tarde saberemos o para que mandava D. Francisco vir de Coimbra uma liteira á Varzea de Goes, que fica a uma legua, ou a seis kilometros d'aquella villa.

X

Mordomo e amante

Nos paços do conde de Sortelha vae animada a festa entretanto.

Emquanto D. Francisco, torturado n'um equleo de saudades d'aquella mulher formosa, que era a esposa de seu tio, se arremessa vestido sobre o leito, para dar algum descanço ao alquebrado corpo, até que a estrella d'alva reponte no oriente para fugir d'aquella terra maldita, é D. Branca a rainha do sarau. Quem lhe diria a ella que alli, tão perto de seus paços estava D. Francisco Manuel de Mello, o esbelto mancebo, a quem votára seu coração em volvidos tempos de ventura?

Até proximo da uma hora da manhã velára D. Francisco nas amarguras de um teimoso cogitar: por fim vergou aquelle espirito como se prostrára o corpo: adormecera.

O sarau tocava tambem o seu termo.

-- Até que, flnalmente, jà te posso falar! dizia Gonçalo Gomes, para Francisco Cardoso, affastados no vão de uma janella. Deu-se commigo esta noite um caso

singular!

-- Qual foi?

-- Eu sempre te conto o que observei; mas, qual! É lá possível!

-- Dize breve.

-- Quando eu acompanhava para aqui a fidalga da Quinta de S. Paulo, e quando chegava quasi às escadas do palacio, vi deante de mim um vulto d'homem, que, mal presentiu meus passos, e se viu entre o fogo do teu e do meu lampeão, se afastou apressado para a banda do muro.

-- Nada tem de extraordinario o caso. Alguem da villa que passeava.

-- Não póde ser! Se fosse alguem da terra não fugia, nem trajaria como o vulto; nem teria umas feiçoes que eu já tinha visto algures, e talvez havia annos.

-- Então quem era? Quem te pareceu? Responde sem reticencias, que me não posso demorar.

-- Pareceu me ser aquelle homem que salvou no Mondego ao sr. conde de Villa Nova, em 1630.

-- Quem fala aqui n'elle! Deve estar a estas horas na Bahia. Mas, continuou Cardoso, pensando mais no caso, tu conhecias tal homem? Nunca m'o havias dito...

-- Tinha attentado muito em suas feições quando nas Torres por mim passou a galope e ainda o encontrei na Arregaça, já noite escura, quando fui a Coimbra por uma liteira; mas não o tinha visto mais.

-- Pois tenho que não póde ser elle. Primeiramente porque nenhuma razão ha para que um homem que appareceu á Barca dos Palheiros, do mesmo modo se ache em Goes presentemente; depois pela razão que já te dei de que esse homem foi para o Brazil.

-- D'esse modo sabes tu quem elle era?

-- Sei... isto é: ouvi boquejar n'elle em Coimbra, como muita gente ouviu, e soube casualmente em Lisboa que tinha ido para a Bahia, d'onde, que eu saiba, não voltou ainda. Nada, nada, não voltou ainda, não póde ser. Adeus, que o sarau ainda não acabou e eu tenho que fazer.

E deixou ficar Gonçalo Gomes no vão da janella, muito apprehensivo com as feições do vulto, apezar do que dissera o Cardoso. Este, mais impressionado ainda como deveremos suppor, partiu d'alli resolvido a sahir quanto antes do palacio, a fim de ver se alguma coisa descobria. Assim o fez. Sem ninguem dar por sua sahida desceu a escadaria, atravessou o pequeno largo. Ao entrar na rua da Ponte occorreu-lhe logo a ideia de bater á porta de Lopo Caraça, para lhe perguntar se em casa tinha algum hospede. Assim o fez. Caraça dormia já, e só lhe respondeu de dentro um ensomnarado creado, ou curador da estrebaria, dizendo-lhe que o dono da casa estava lá para dentro e lhe não falava.

Cardoso deu-se a conhecer ao creado e este veiu realmente abrir a porta, sabendo estar alli o mordomo do conde de Villa Nova.

-- Dize-me uma cousa: está cá esta noite alguem?

-- Ahi chegou depois de noite um sugeito desconhecido, que já está a dormir tambem; mas preveniram-me para que o não dissesse a pessoa alguma. Agora ao sr. Cardoso isso é outra cousa.

-- Viste-o? Chegou a cavallo? Vinha só?

-- Vinha só, porque alli dentro só está um cavallo, unico a quem vi a cara.

-- Deixa m'o vêr.

E foi logo entrando para a cavallariça por conhecer o cavallo, dado que nos arreios houvesse algum signal. De facto, Francisco Cardoso conhecera nos cantos do xarel as letras D. F. M.

-- Em que quarto está o homem que montou este cavallo? continuou o mordomo.

-- Está no quarto que diz para a rua, logo sobre a loja.

-- Eu preciso vêr esse homem, sem que elle me veja a mim.

-- Isso agora não será tão facil. Lopo Caraça prohibiu que se soubesse... Então o sr. Cardoso conhece este hospede?

-- Não conheço, e pôr me certificar, é que o quero vêr.

-- Mas ao quarto não se póde ir; elle fechou a porta, e eu estou encarregado de lhe bater a ella e de o chamar ao romper dia para fazer jornada.

-- Para onde, sabes?

-- Ouvi dizer que para a Pampilhosa.

-- Sóbe lá acima, e observa se tem aberta a porta, e se dorme.

-- Mas o patrão recommendou tanto que se não dissesse nada, e eu...

-- Ninguem o saberá, sobe já, que me não posso demorar.

O homem saiu e voltou sem demora dar parte que a porta só estava cerrada, a luz accesa, e o hospede sentado em uma cadeira junto á cama, na qual dorme recostado. Mais rapido do que o creado subiu Francisco Cardoso, voltando mal reconhecêra o personagem, dando algum dinheiro ao creado e despedindo se d'elle, rogando lhe que não se deixasse adormecer, porque voltaria, talvez sem grande demora.

Que pensamentos adejariam na mente do mordomo do conde de Villa Nova?

Quando entrou no palacio terminara o sarau. Ainda pôde entrar, sem dos que começavam a sair ser notado, e sem haverem dado por sua falta. O seu primeiro cuidado foi approximar-se da condessa de Villa Nova e dizer-lhe:

-- Vossa senhoria não dorme agora no quarto verde?

-- Agora, não, respondeu muito admirada D. Branca. Mas, porquê similhante pergunta?

-- Porque é forçoso que vossa senhoria n'elle fique esta noite, respondeu mysteriosamente o mordomo.

-- Não póde ser; mas, que é isto, Francisco Cardoso! Explicae-vos já.

-- Não é occasião propria. Durma vossa senhoria no quarto verde esta noite e espere n'elle por mim. Tenho um segredo a communicar-lhe.

-- Porém... o sr. conde... valha me Deus!

-- É forçoso, srª D. Branca, disséra por ultimo o mordomo, deixando a pobre senhora attonita e indecisa.

A condessa de Villa Nova, como o leitor deve suppor, via-se constrangida a obedecer ao mordomo, que lhe possuia um segredo importante de sua vida, e que muito affeiçoado se fizera de D. Gregorio de Castello Branco. Francisco Cardoso manifestava, havia tempos, um caracter desleal, que muito inquietava a D. Branca de Vilhena, receiando que elle o podesse divulgar a seu esposo, de quem se fizera intimo e confidente nos apetites impudicos. Preciso lhe era acceder ao pedido -- ordem de creado!

Os convivas haviam sahido já, e D. Branca, chamando uma aia, mandára preparar o leito do quarto verde, não sem admiração d'ella, que perguntou a D. Branca se estava incommodada de saude e a queria a seu lado aquella noite. A condessa respondeu-lhe que podia ficar só.

Começavam a apagar-se os lumes das vastas salas e a familia a recolher-se a seus aposentos. D. Branca entrára na sua camara, onde se demorára algum tempo, e saíra para o quarto verde. Seriam duas horas da madrugada.

D. Branca, na maior anciedade, agitadissima esperou que todos repousassem no palacio e que Francisco Cardoso a buscasse para lhe communicar o segredo que tão sobresaltada a tinha.

Todos repousavam ás tres horas da manhã. Francisco Cardoso approximou se cautelosamente da cerrada porta do quarto, que abriu, e no qual entrou, fechando a sobre si á chave. Mais attonita permaneceu D. Branca ao vêr fechar a porta. Assustada e afllicta dirigiu-se ao mordomo com dignidade:

-- Porque fechaes essa porta? O que tendes a dizer-me? Falae breve.

-- Socegae, minha querida e sr.ª D. Branca, que uma boa nova vos trago.

-- Tantas precauções para me dar uma nova! Dizei, pois.

-- Está em Goes o pae de vosso filho, disse o mordomo com serenidade.

-- Oh! Virgem do ceu! Que sáia! Que sáia já! Onde está? A que vem? Que se não saiba n'esta casa! Assim respondera, afflictissima D. Branca, atropellando idéas na mente. Salvae-me, Francisco Cardoso!

-- Salvo, minha querida Branca, respondera o mordomo, ajoelhando aos pés d'ella, tomando-lhe a mão direita e beijando lha.

-- Que vejo! exclamou D. Branca, repellindo-o e retraindo-se nobremente.

-- Vêdes a vossos pés um homem que vos adora ha muitos annos no maior dos silencios, e que aproveita a occasião para vos offerecer o seu amor. Amo-vos muito, D. Branca.

A pobre senhora estava estupefacta com o que via e ouvia, e nem achava uma resposta que volver a Francisco Cardoso. Fazendo, porém, um supremo esforço na melindroso conjunctura, em que um algoz a tentava arrastar para o abysmo da perdição, occorreu-lhe a idéa de não maltratar com uma repulsa formal o audaz criado, que fatalmente a dominava, dizendo-lhe meigamente:

-- Não sabia d'essa afeição que me tinheis e tendes! Vem tardia, porém, Cardoso. Erguei-vos.

-- Ao contrario, respondeu o mordomo erguendo-se. Ha muito que eu buscava este momento, que cautelosamente tenho procurado. Manifestar-vos o amor que vos tenho ha mais tempo, loucura fôra, porque nunca podéra ser legitimamente vosso. Como o foi D. Francisco, sim. Para isto fui vosso confidente e agora intimo do sr. conde de Villa Nova. Não é minha a culpa, querida D. Branca, é dos nossos costumes sociaes, é da natureza, que me ordenou vos amasse.

O cynismo d'aquellas revelações aturdira a amavel D. Branca. Como ella quizéra erguer-se á altura da sua dignidade e do seu poderio para o mandar sair do quarto, e, buscando a D. Gregorio, fazei o punir severamente! Coagida, enojada de tanta desfaçatez, e atrevimento, e abuso de confiança, continuou brandamente a livrar-se, d'elle insinuando-lhe a idéa de esperança.

-- Pois bem, Francisco Cardoso, se achaes propria a occasião, acceito o vosso affecto, sim, acceito. Oh! mas ide vos, deixae-me, deixae-me, por piedade, com esta afflição que me mata. Bem vedes que vos posso perder com um grito que solte, e que...

-- E que vos perdeis tambem senhora D. Branca! Tenho a vossa vida na minha mão, bem o sabeis.

-- A vida só me serve a mim para martyrio, de barato a dou! Porém, a vossa...

-- A minha pertence-vos, querida D. Branca; podei dispor d'ella.

-- Disporei, sim, em meu serviço. Ide-vos e contae com a minha amizade.

D. Branca tinha se ido approximando da porta em cuja chave tinha a mão ao dizer aquellas palavras, sem que o mordomo desse por aquelle movimento senão quando viu abril-a, Cardoso transigiu com ella e saiu rebeijando-lhe a mão, que ella lhe extendeu.

XI

O D. Prior de Folques

Como seria tormentosa aquella noite para D. Branca, imagine o leitor! Ao pé de seu amante e sem lhe poder falar! Proxima de D. Francisco Manuel e d'elle distanciada por Francisco Cardoso, que, abusando miseravelmente do segredo dos seus amores, se interpunha diabolico e brutal! Velou toda a noite. Nas ramificações do seu pensar salteou-a a idéa de que D. Francisco alli viesse para comsigo levar o fructo dos seus amores, ignorado de seu pae e do esposo. Dois espinhos a pungiram então: o da saudade do filho que lhe arrancavam e o de não mais se approximar de D. Francisco, que bem claro mostrava fugir d'ella, por não diligenciar ao menos vel-a, estando alli, em Goes, tão perto do seu palacio.

Logo de manhã, disse ella a uma aia que mandasse recado ao D. Prior de Folques, para lhe falar.

O D. Prior de Folques era amigo intimo da casa de Sortelha, e vinha frequentes vezes a Goes quando alli estava o conde: hospedava se no palacio e por alli se demorava semanas. Era o confessor de D. Branca. D. Fr. Francisco de S. Theotonio, que tal nome era o seu, seria já homem de setenta annos n'aquelle tempo. Era um homem evangelico o bom do cruzio. Apenas o pagem Gonçalo Gomes o avisára, correu prestes ao encontro de sua confessada, que o esperava no quarto verde, onde tão tormentosa lhe fôra a noite.

-- Que o Senhor dê um bom dia á condessa de Villa Nova! disse elle entrando no quarto. Tão cêdo me buscaes, sr.ª D. Branca, que venho cogitativo no caso. Precisaes de mim?

-- Oh! sim, preciso muito, D. Prior. A noite passada foi para mim tão tempestuosa é cruel, de tão vario meditar e pertinaz insomnia que supponho ter peccado gravemente.

-- Peccado gravemente! vós, D. Branca?!

-- Absolvei-me, D. Abbade.

E ajoelhou aos pés d'elle.

-- Sim, absolverei e consolarei em Deus Nosso Senhor; mas dizei-me, primeiramente, que peccado foi esse que tanto vos pesa. Nosso Senhor Jesus Christo não curou enfermo nenhum sem que este lhe manifestasse a doença. O filho prodigo não foi perdoado emquanto não confessou seu peccado: Pater peccavi in coelis et coram te. Dizei, dizei, pois senhora condessa. E sentou-se para a ouvir de confissão.

Inviolavel é o sigillo da confissão. Saibamos sómente que D. Prior de Folques não considerou peccado mortal o de D. Branca, mas nem mesmo venial, absolvendo-a, e saindo do quarto para dizer missa na capella do palacio, a que D. Branca assistiu.

Depois da missa e do almoço, a condessa de Villa Nova ficou-se á meza a conversar com o Prior de Folques, sahindo as demais pessoas da familia.

-- Não se esqueça do meu pedido, D. Prior, nem de...

-- Vou pôr-me a caminho atalhou o cruzio; ide vós, senhora condessa, repousar um pouco. Vede que podeis adoecer.

E separaram-se. D. Branca recolheu se aos aposentos do esposo, e D. Frei Francisco ao seu quarto, d'onde sahia um quarto de hora depois. Soavam as onze horas da manhã no relogio da villa.

O D. Prior dos cruzios de Folques sahira a pé. Se fôra em Coimbra o não fizera elle, mas em Goes não havia que receiar os reparos de ninguem. Vestia um habito de sarja de lã preta com sua murça, chapeu de abas largas, e abordoava-se a um pau nodoso, especie de bengalla. Foi seguindo a margem direita do Ceira na direcção da Quinta da Capella, dos Barretos Chichorros, de Goes. Depois de atravessar o Cereijal, e quando algum tempo depois chegou a um ponto em que o caminho se bifurcava, deixou o da parte esquerda, que o levaria á Quinta da Capella e tomou sobre a direita. Foi andando por baixo dos olivedos, até que, vendo alvejar algumas casinhas na folhagem de basto arvoredo, parou, sentando se no tronco secular de um castanheiro, que então existia á entrada d'aquella pequenina aldeia. Trazia lhe aos ouvidos uma aragem do oeste as harmonias de pifanos e atambores, adufes e crótalos. Algum tanto admirado de ir achar em festa aquella poetica aldeia, e desejoso de conhecer a causa d'aquelle batucar em dia não sanctificado, ergueu-se e caminhou para ella.

Logo que chegára á porta da segunda casa ao lado esquerdo, parou, bateu com o bordão, e poz-se a notar uma folia de rapazes e moças da aldeasinha, que além, na frente d'elle, no alpendre de uma linda capella e debaixo de um frondoso chorão que tinha á porta, dançavam o jovial sarambeque.

A porta da cosinha abriu-se apparecendo ao limiar d'ella uma rapariga de vinte a vinte e dois annos, forte, corada e bem parecida. Mal poz a vista no velho exclamou perturbada:

-- O sr. D. Prior de Folques!

-- Eu sou, sim, minha rapariga.

E foi entrando. A moça parecia contrariada com aquella visita: tal era o seu enleio, que foi notado do D. Prior.

-- Que tens tu, que tão extranha me pareces? Mas, agora noto, que vens sem o meu engeitadinho! Está dormindo, não é assim? Deixa-o dormir, deixa, que está com seus irmãos no céo. Ora vamos; e ia entrando. Não me dás hoje por cá do teu jantar? É verdade! que festas são essas ahi fóra no largo? Em dia de trabalho é peccado não trabalhar...

-- Casou-se hoje o sr. Duarte Galvão, e depois os rapazes fazem festa, respondeu a moça.

D. Francisco de S. Theotonio tinha entrado com certa familiaridade, propria de quem pela primeira vez o não fazia. Assomando á porta que dava para uma pequena casa de jantar, e lançando um olhar a toda ella, viu posta a meza do jantar e sentados a ella a mãe da moça que abrira a porta e um desconhecido de vinte e um annos de edade, pouco mais ou menos. Bem vestido, descoberta a cabeça de longos cabellos annellados, ar nobre e feições varonis, aquelle desconhecido apenas vira chegar á porta o respeitavel cruzio, erguera-se e fôra para elle, emquanto a velha se erguera tambem e lhe fôra beijar a mão.

-- Deus vos dê boa tarde, cavalleiro, dissera o D. Abbade, vendo erguer o desconhecido e vir para elle.

-- Tenha a vossa Paternidade tambem, e bem vindo seja.

-- Obrigado.

E sentando-se convidou o desconhecido a retomar o seu assento. Sentados, disse o cruzio para o mancebo:

-- Então, joven cavalleiro, se não vos parecer indiscreta a minha pergunta, podereis dizer-me quem sois?

-- D. Prior, respondera o desconhecido, sou um homem que, perdido no caminho de Cellavisa e Arganil, aqui vim parar, e breve continuarei meu caminho.

Contrahira levemente as feições o velho, como quem vira na resposta uma desculpa menos bem pensada, e volveu-lhe:

-- Melhor é serdes franco commigo, que só por me certificar da vossa identidade vos fiz aquella pergunta. A mesma causa nos traz a esta casa: vós vindes por uma parte, e eu venho por outra.

-- Não vos comprehendo... Falae, falae sem rodeios.

-- Sem rodeios, sim, falarei. Vós vindes talvez por uma creança abandonada...

-- Abandonada, não! atalhou rapido ao D. Prior dos cruzios o desconhecido.

-- Perdoae a um velho, que talvez já não saiba o que diz. Abandonada, sim; porque a creança que não tem paes é uma creança abandonada. Vindes quiçá buscal-a, dizendo vos seu pae, e eu venho para me oppor, como padrinho d'essa creança, que não tem mãe.

-- É falso! tem mãe, interrompeu de novo o desconhecido.

-- Vêde o que dizeis, cavalleiro! Não tem mãe, affirmo eu.

-- Pois seja assim, redarguiu o cavalleiro, reconhecendo a inconveniencia em que podéra ter cabido. E, meditando um instante nos perigos de uma discussão deante d'aquella gente, d'aquellas duas mulheres, convidou o D. Prior a comsigo conferenciar.

As duas mulheres sahiram, ficando os dois, e uma terceira pessoa que o leitor não tinha visto ainda. Era uma creança linda como uma manhã d'abril. Dormia n'um berço, e tão formosamente que era um ficar se a gente alli a contemplar lhe o sorriso angelico, que de espaço a espaço lhe contrahia as formosissimas faces. Que ventura! Se na terra existe a casta diva é no sonho de uma creança.

-- Senhor D. Francisco Manuel de Mello, a que vindes a esta casa? Vindes buscar o vosso filho?

-- Venho, respondeu o mancebo ao velho cruzio.

-- Mas ponderaste a profundura do golpe que descarregareis sobre D. Branca e sobre mim, que lhe quero muito, que sou seu padrinho, que venho aqui vel o bastas vezes?

-- Acaso mediu a condessa de Villa Nova a extensão da espada que me cravou no peito? Acaso lembrou ella o amor que falsamente me dizia ter, quando casou com seu tio D. Gregorio? Ora dae que eu afaste de si aquella creança, que só póde contribuir para a perder.

-- É que vós não sabeis quanto ella ama o pequeno Jorge! e quanto a vós!

-- A mim! respondera ironicamente D. Francisco. Se me votára o amor que eu lhe dei nunca jamais casára com o tio. Pois é-se fraca até ser mãe e foge-se do pae de um filho?

-- Estaes muito novo, mancebo. Se soubesseis que de mysterios ha no peito humano! Na minha já dilatada vida, no meu ministerio mesmo, quam numerosos são os factos similhantes! Se podessem falar as sepulturas!... Tremo ao lembrar-me das tragedias que conheço... Vós não sabeis ainda o poder da necessidade! Não condemneis D. Branca, que ha mulheres como ella, tenho-as eu conhecido. São como hastes d'açucena; cedem a qualquer brisa, vergam ao soprar da mais branda aragem. Fel as Deus assim mancebo. E quereis vós condemnar D. Branca! E quereis vós stygmatisar uma obra das mãos do creador! Antes respeitae n'ella um modelo de obediencia fllial.

-- D. Prior, para escorregadio terreno me chamaes! Dizei-me, respeitavel ancião, quem lhe abriu o virgem peito para m'o dar em affectos, como á rosa para nos offerecer seus aromas? Foi Deus! Foi o creador! Sim foi elle quem ordenou a amasse eu a ella. Como explicaes vós então este antagonismo, esta incoherencia, esta imperfeição? Como...

-- Suspendei! acudiu prestes o velho cruzio. Calae-vos, heretico mancebo, que temo o castigo do céu!

-- Sim, não falemos em cousas d'estas, senhor D. Prior de Santo Agostinho. Antes demos por acabada esta coaversação. A tarde adeanta-se, e forçoso me é partir, pois me espera um creado com uma liteira ao fundo da Ladeira do Receio. Ajudae me vós a resolver a mãe da ama de meu filho a que a deixe acompanhar o menino para a minha quinta de Entre-ambos os-rios, junto ao Porto, e a que vá tambem se quizer ir. Será este o maior serviço que prestareis aos tres, aos paes e ao filho.

-- É pois innabavel a vossa resolução?

-- Pois seja feita a vontade do Senhor ainda manifestada na vossa. Haveis de, porém, satisfazer a um pedido de D. Branca...

-- Satisfarei se exequivel for.

-- Haveis de mandar-lhe o retrato do menino.

-- Mandarei.

-- Agora um conselho, se consentis.

-- Um conselho vosso, D. Prior, bem vindo será sempre.

-- Não deveis partir esta tarde, mas sim na madrugada d'amanhã, para fazerdes a jornada de dia. São maus os caminhos.

-- Porém, sou esperado...

-- Accedo, pois que eu mesmo careço de repouso: não durmo ha duas noites e tenho soffrido muito.

-- Eu vos mando lá um homem .

-- Tendes ahi um cavallo?

-- Tenho, n'uma loja proxima.

-- Demos então por acabada esta conversação, e ficae certo que tudo será feito. E sahiu.

As mulheres entraram n'aquella casa e tractaram de pôr na meza o jantar a D. Francisco. Pouco tempo decorrera e já o Prior dos cruzios de Folques volvia a entrar em casa.

-- Jantae commigo, D. Prior, dissera D. Francisco ao cruzio.

-- Graças, mancebo: parto para Goes. Quero, porém dizer vos antes uma coisa.

Os dois affastaram-se das mulheres para a casa de fóra e o velho cruzio perguntou lhe:

-- Ninguem além de mim, do physico Boccarro e de Francisco Cardoso conhece este segredo?

-- Ninguem.

-- Pois não vos fieis de Cardoso, disse com mysterio o velho.

-- Porém...

-- Vou abençoar vosso filho em nome de Deus. E entrou dentro deixando-o pensativo, approximou se do berço, contemplou a creança, abençoou-a, despediu se de D. Francisco e sahiu para a casa de fóra, onde chamou as duas mulheres e com quem conversou alguns instantes emquanto D. Francisco se approximára do berço. Depois retomando a estrada de Goes, afastou-se mui triste o D. Prior dos cruzios de Folques.

XII

Antes e depois da acclamação

Era o Theatro das Arcas em Lisboa perto do Rocio e não longe da rua e becco de Lopo Infante, onde o leitor já entrou na Estalagem Negra. Havia n'elle funcção de bonifrates na noite de 28 de setembro de 1636. D. Francisco Manuel de Mello assistira ao espectaculo, que terminou ás duas horas da madrugada.

Depois de sair e de atravessar a rua dos Arcos, e quando entrava na praça da Palha, notou elle que um vulto caminhava adeante de si, e viu que de uma extremidade da praça outro vulto lhe fôra ao encontro, e mal se approximára lhe despedira uma pancada a cabeça e o prostrára á segunda expedida, continuando a repetir pancadas no homem caido. D. Francisco Manuel não hesitára um instante em correr em auxilio do fraco contra o forte e traiçoeiro; e, desembainhando a espada e interpondo a, aparou n'ella nova pancada, fazendo logo frente ao aggressor, que se defendia com uma grande bengalla das cutiladas de D. Francisco. A noite não estava muito escura e o aggressor, que se tivera uma espada fôra um contendor serio de D. Francisco, distinguindo o movimento da espada, por forma evitava os golpes e tentava descarregar uma pancada na do nosso heroe, que este, exasperado pela defeza e pela intenção que percebeu no homem, não desejando antes mais do que afastal-o, cresceu para elle verdadeiramente hostil e sem demora lhe cravou a espada no hombro direito. Caiu logo da mão do ferido a forte bengalla, ou cacete com que prostrára um e tentava dar no outro, e D. Francisco Manuel, mettendo a espada na bainha, foi-se para o caido, sobre quem se curvou, ao qual achou bem mal ferido, e ao que lhe parecia quasi morto. Ao erguer-se, para de algum modo pedir soccorro a uma patrulha, ou a alguem que passasse, já não viu o homem que desarmára e que se afastava rapido pela rua dos Arcos. Ninguem passava. Permanecendo um instante a meditar no caso, entre as diversas idéas que lhe atravessavam a mente houve uma que o forçou logo a curvar-se sobre o homem prostrado, para o reconhecer. De facto, o homem caido era Francisco Cardoso, o mordomo do conde de Villa Nova. Não podéra conhecer o outro.

Francisco Cardoso já não era o mesmo d'outro tempo, depois que passára para o serviço de D. Gregorio que o fizéra seu mordomo, abstivera-se de ser medianeiro dos amores da condessa e de D. Francisco.

N'estas circumstancias D Francisco Manuel começava a soerguer o corpo de Cardoso, ao menos para o assentar até que alguem passasse e lhe desse auxilio, quando se viu cercado por tres homens que, vendo-o agarrado a um homem caido e que parecia morto, o consideraram assassino e talvez ladrão, e lhe deram a voz de preso. Perfilou-se com a ronda D. Francisco e contou-lhes o caso. Não o crêram, redarguindo um d'elles que era falso o que dizia, por isso que foram avisados por um homem que toparam perto da rua de Lopo Infante, de que corressem a salvar um homem de ser assassinado.

-- Esse foi o assassino, bradou D. Francisco,

E lembrando-lhe, para maior e mais evidente prova, de que o tal tivesse deixado o pau, correu a procural-o ; mas debalde, porque o homem o levára

-- Está preso, em nome d'el-rei, redarguiu o que parecia commandante da patrulha: acompanhe-me á prisão.

E emquanto se dispunha a acompanhal-o e dizia aos dois que levassem aquelle homem prostrado ao Hospital de Todos os Santos, que ficava perto, onde lhe prestariam alguns soccorros, se não estivesse morto, redarguia-lhe D. Francisco Manuel:

-- Não me podeis prender, meus caros senhores, não só porque estou innocente, mas porque sou militar, que só me entregarei á prisão a um official da minha patente.

-- Está preso, já disse e repito: acompanhe-me. O pretexto para se escapar, depois de assassinar um homem, não era máu! Vamos.

-- Não vou! exclamou indignado D. Francisco. Cuidae d'esse desgraçado, se ainda tem vida, e hajam boa noite.

E começou-se a afastar. O que parecia commandar aquella ronda, correu lhe á frente e lançou lhe a mão a um braço, chamando os dois que começavam a erguer o morto, ou ferida. Travou-se lucta. D. Francisco arrancára da espada, depois de se desprender com um forte empuxão, e despedia um golpe ao da ronda quando foi immediatamente sustido por um dos dois, que o abraçára pelas costas, emquanto o terceiro corria ao braço da espada para lh'a tirar. Não era empreza facil a de desarmar um homem d'aquella força muscular, que já em 1630 era como o leitor sabe. Foi dilatada a resistencia em que, afinal, D. Francisco cedeu mettendo a espada na bainha.

-- Sabeis quem eu sou, miseraveis? Sou D. Francisco Manuel de Mello, incapaz de matar de tal modo a um homem.

-- Sereis, mas agora sois o unico compromettido, com a circumstancia de resistencia á auctoridade.

N'isto deu Cardoso signaes de vida.

-- Acudi áquelle homem, cegos, que se me quereis evar preso, preso estou, dou-vos minha palavra.

Effectivamente D. Francisco foi preso em companhia do cabo da ronda, e os dois conduziram ao Hospital de Todos os Santos o mal ferido Francisco Cardoso.

No dia seguinte, depois da parte dada pela ronda, que, realmente, compromettia a D. Francisco, foi mandado recolher ao castello, onde devia ser julgado pelo Juizo dos Cavalleiros logo que a auctoridade civil terminasse suas diligencias. Alli permaneceu preso até ao meiado de dezembro d'aquelle anno, occasião em que, julgado innocente, por se provar que nenhum dos ferimentos feitos em Francisco Cardoso fôra com espada mas com instrumento contundente, como constára do exame de peritos, D. Francisco foi solto, absolvido pelo Juizo dos Cavalleiros com louvor, até por ter salvado, por ventura da morte, a um homem traiçoeiramente accommettido de um sicario na praça da Palha.

Havia rebentado entretanto em Evora uma explosão de liberdade. O povo erguêra-se poderoso e terrivel na sua fôrça e no seu odio a castelhanos, e depozera as auctoridades de Filippe II nomeando-as de sua escolha e suas, na soberania que tinha, em nome de Marmelinho d'Evora em quanto não podesse ser no do duque de Bragança, D. João, a quem acclamavam por seu legitimo rei. Debalde o conde duque d'Olivares chovera enviados pacificadores a Evora; inutilmente diligenciavam a pacificação da cidade e de grande parte do reino, onde o echo da revolta fora despertar as mais intimas fibras do patriotismo dormente ou, quando menos, entorpecido no captiveiro de sessenta annos ominosissimos. Deputára o valido de Filippe II ao conde de Linhares e a D. Francisco Manuel de Mello, para serem elles os vencedores d'aquelle punhado de rebeldes, que não mediram a profundura do abysmo voraginoso em que se despenhavam.

Infructiferos foram tambem os esforços dos dois, que cbegaram mesmo a ser desacatados na noite do primeiro de janeiro de 1638. Em taes circumstancias partira para Madrid D. Francisco Manuel, seguindo por Villa Viçosa. N'esta Villa tivera conferencia com seu parente o duque de Bragança. Não dizem as historias o que entre os dois se passára. Affirmam, porém, que pouco depois de chegar a Madrid D. Francisco fôra mandado prender por Olivares, notado de menos diligente e quiçá de entendido com os revoltosos e com o duque de Bragança. Assim foi que na Torre velha e no Castello de Lisboa o achamos preço até dezembro d'aquelle anno de 1638.

Expiada a falta de diligencia na prisão politica, D. Francisco foi chamado a Madrid e posto á frente d'alguns terços na Catalunha, que se insurgira contra Filippe II ao grito de seus fueros e de suas regalias. Em Bergas e Anascot obrára elle prodigios de valor nos ultimos mezes de 1639.

Preparavam-se entre tanto grandes dissabores ao celebre ministro omnipotente e a seu rei Filippe. O anno de 1640 fôra em Portugal, e notoriamente em Lisboa, um anno de conspiração latente. Era a nobreza do reino um volcão, que se approximava do termo em que terrivelmente explosiva sepultaria em suas materias igneas a Miguel de Vasconcellos e á dominação estrangeira. E assim foi Mal o echo do brado ingente se repercutira no quartel d'Anascot, deliberára D. Francisco voltar para logo a ponta de sua espada contra castelhanos, mas em defeza da patria em que nascera livre, e onde extinctos não eram ainda os homens fortes, que dominaram o mundo em volvidos tempos de gloria nacional.

Não podendo voltar ao reino por Hespanha, partira aforrado para França, depois para Inglaterra e por fim para Hollanda. Alli nos representava o nome de Tristão de Mendonça n'aquelle tempo, o qual aparelhava uma armada para enviar a Lisboa, não tendo, porém, a quem confiasse o governo d'ella. Em boa hora chegára, portanto, D. Francisco Manuel. N'ella se fez ao mar, vindo por Inglaterra, e aportando á barra de Lisboa em 16 de Fevereiro de 1641.

Temos, pois, realizado um facto, que D. Francisco antevira, estudante em Coimbra. O laço que nos prendia á Hespanha cortára-o a pujança da liberdade portugueza no primeiro dia de dezembro de 1640, e D. Francisco corria ao reino a offerecer a sua espada a D. João IV rei de Portugal.

XIII

Um sarau nos Paços da Ribeira

Vae continuar a acção d'esta historia em Lisboa, na phase mais importante do viver do heroe. Agora tomará o leitor conhecimento de outros personagens, mais ou menos importantes ao seu singelo entrecho d'ella.

Depondo a espada aos pés de D. João IV, o viver de D. Francisco não poderá ser remançoso na côrte, pois que a guerra, essa calamidade terrivel, esse monstro bifronte, que ora talla campos e arrasa populações vomitando chammas na passagem, ora prepara a sociedade o rejuvenescimento hodierno, esse monstro vae mostrar se em sua força ao longo das lindes do nosso pequeno reino.

Como se os dois povos, embora desproporcionados na pujança, se arreceiassem um do outro e temessem o choque terrivel, o embate medonho, a luta não começára immediatamente á coroação do duque de Bragança. A Hespanha armipotente tentára abater a cerviz revoltada do nosso povo com a morte de D. João IV, jogando a arma da traição que levou o arcebispo de Braga, Sebastião de Mattos de Noronha, a morrer preso na Torre de S. Julião da Barra, e no patibulo do Rocio o marquez de Villa Real, o duque de Caminha e o conde d'Armamar. Voltará-se aquella arma contra quem a jogava; forçoso era, pois, á Hespanha, pedir á força de seus batalhões o que lhe não podéra dar a traição.

Sem exercito e sem haveres, de proveito foi para Portugal aquella tregua, que nos deixou colher alento no organizar dos terços, que lhe oppozemos.

Bemquisto do rei e da nobreza por seu valor e suas letras, D. Francisco assiste na côrte algum tempo. Repetidos eram n'ella os saraus, os bailes magnificos, em que os fidalgos do reino e as grandes senhoras se não cançavam de felicitar a nova realeza, offerecendo cada qual seu valimento para a consolidação de um throno erguido sobre quarenta espadas, embora sustidas do amor da patria.

Era o dia 19 de Março de 1641, anniversario natalicio de D. João IV.

Os paços da Ribeira são todos jubilo e todos gala em a noite d'aquelle dia.

Antes de assistirmos, caro leitor, ao grande sarau parece me bem que visitemos a casa de jogo no becco da Estalagem Negra.

Dois factos importantes, ou mesmo tres nos lembra já aquella casa. Alli se avistára o medico Boccarro con D. Francisco, antes d'este partir para o Brasil na armada de Oquendo; alli vivia Catharina de Enxobregas, que casára com Marcos Ribeiro, arrendatario da casa de Villa Nova, e fôra d'alli que sairam dois homens ás duas horas da madrugada de 20 de setembro de 1637, quando terminava o espectaculo dos Bonifrates no Theatro das Arcas. Entremos alli n'aquella noite.

São dez horas. Antes de chegar á casa da tavolagem passava se por um comprido corredor, nem sempre bem allumeado, que, distribuindo portas para um lado e outro e ramificando se, abra uma para a casa de jantar, contigua á cosinha.

Pendia do tecto n'aquella casa, ao centro de uma grande mesa antiga de castanho, um candieiro de quatro lumes; guarneciam-na bastantes tamboretes de couro, e via se na parede do fundo, opposto á porta da entrada, um usado armario de pau preto com louça e a porta que dizia para a cosinha propriamente. A mesa estava posta, com a sua toalha já repintalgada de gorduras, coberta de pratos d'estanho, de pães e de picheis, esperando a chegada dos hospedes para a ceia.

Adiante de nós vae um. Quem será elle?

-- Fôra o homem pelo corredor, até á porta da casa de jantar e entrára n'ella, dirigindo-se á que dava para a cosinha. Alli chegado parece que não vira ninguem e chamára:

-- Ninguem! Olá de dentro?

Appareceu um creado de meia edade, d'avental branco já sujo.

-- Preciso comer alguma cousa. Dê-me de comer, lhe dissera o recemvindo, e sentára se de costas para a porta da cosinha.

Pouco depois trazia o cosinheiro a ceia, que o homem parecia saborear a seu contento. Já quasi no fim d'ella sentiu-se o homem de repente vendado por alguem que viera de dentro, da cosinha, e que familiarmente lhe tapára os olhos com as mãos. Contente o homem tombou logo o pescoço para o lado, e levou suas mãos ao reconhecimento das que vendavam, dizendo:

-- Sempre travessa e sempre amiga. Já sei quem és! E quando assim falava tentava apertar o corpo da pessoa que por amizade o vendára com as mãos, quando o corpo se retrahiu, depois de lhe dar um beijo na fronte. Ergueu se e voltou se logo o homem para quem o beijára correndo a estreitar em seus braços o corpo de uma forte môça de vinte e dois a vinte e tres annos, que se deixou abraçar, fugindo-lhe logo com um significativo signal de silencio feito pelo indicador da mão direita sobre os labios, levemente dilatados.

-- Já voltou? perguntára o homem, mal vira aquella imposição de silencio.

-- Não, mas espero o esta noite.

-- Diabo!... Dissera o homem. Mas, senão vier...

No corredor passára um vulto de homem que se demorára um instante a fixar aquella scena. Os dois não deram por aquillo.

O homem do convite da moça sentára-se outra vez, e comera alguns bons bocados, que ella lhe offereceu bebendo sempre e fazendo lhe saudes a ella. Depois da uma hora, a môça que era Catharina d'Enxobregas a mulher de Marcos Ribeiro, vendo o alegre já e menos commedido nos actos, e porque já fosse tarde, convidou o a sair, para se fechar a estalagem. Houve relutancia n'elle, que não queria sair, resolvendo se, a final, ao poder de um abraço da moça, e de promessas só d'elles entendidas.

Este homem, que pouco depois vimos cair na praça da Palha era, como o leitor suspeitará, Francisco Cardoso, o mordomo da casa do conde de Villa Nova, e não lhe será difficil descobrir aquelle que o aggredira por modo tão desenganado, e que teve de sustentar a defensa de D. Francisco Manuel, que o feriu no hombro direito e de cujo ferimento sarou tardiamente.

É devido o promettido. Dados esses esclarecimentos para intelligencia do entrecho, bem é que assistamos ao grande sarau nos vastos Paços da Ribeira em commemoração dos annos do monarcha portuguez. Empreza difficultosa é, que tentarei concluir, como poder e souber, falto de estudos exactos e precisos d'aquella epocha, se não muito afastada, ao menos pouco bem descripta, a não ser nas mil publicações mais ou menos volumosas relativas a combates feridos em toda a linha divisoria de Portugal e Hespanha.

Os paços da Ribeira, grande fabrica de D. Manuel que se extendiam quasi do Largo do Corpo Santo ao Terreiro do Paço, despediam centenares de jorros de luz, por suas janellas, sobre a corrente do Tejo, onde os navios illuminados se espelhavam nas aguas, similhando um céo tropical. Lá dentro resoam musicas magnificas, e danças, e cantos. Entremos, e sigamos a um homem que nos vae na frente. Veste garnacha de setim negro aprensado, forrada de tella de prata com passamanes d'este metal e de ouro, roupeta da mesma fazenda com botões de diamantes, calções de obra, com forro de tella, e chapeu de tafeta com cintilho de diamantes. É o presidente da vereação de Lisboa.

Que esplendor n'aquellas salas! Serpentinas e candelabros preciosos inunda-n'as de luz; decoram lhe as janellas cortinados de vellilho branco e de melania verde, abrilhantam n'as centos de fidalgos, com seus justilhos de roupa, de grande preço, peitilhos de diamantes, saias custosas debruadas de lhama d'ouro sobre verdugadins ou guarda-infantes, volantes de finas rendas, na cabeça, chapins de varias cores com rubis ou diamantes.

Os homens vestem roupetas e gibões de lemiste, de berne, e de arbim; calções de crise, de melcochado e de gorgorão; gollinhas e voltas de finissimo beiraminho, meias de fina seda e sapatos com tacões carmezins:

D. João IV passeia com o marquez de Ferreira e com o conde de Vimioso. Veste porpoem de pano preto vintadozeno de Portalegre, refegado do peito sem guarnições abaixo do joelho, como loba, com poucos broches e orladuras d'ouro, roupeta de gorgorão de preço, gola de beiraminho e meias de seda. Do pescoço lhe pende um rico colar de brilhantes com a insignia da Ordem de Christo.

-- Que mulher é aquella, que dá o braço a D. Luiz da Silveira? perguntou D. João IV ao conde de Vimioso.

-- É sua filha D. Branca de Vilhena da Silveira, esposa do conde de Villa Nova, respondeu o conde.

-- Ah!! E parou a contemplal-a, prolongando aquele ah! de exclamação exquisita. Pois não é feia, não, continuou; não te parece marquez?

-- Nota vossa magestade bem, respondeu o marquez de Ferreira; é elegante e vem bem vestida.

-- É mais do que elegante ; é bonita mesmo a condessa; sim, senhores.

E, depois de a fixar segunda vez e de dilligenciar passar perto d'ella, disse para os dois:

-- Vêde se me buscaes Antonio Paes Viegas, ou Antotonio de Sousa de Macedo. E, deixando os, foi se para o conde de Sortelha, D. Luiz, que dava o braço á filha, porque o esposo estava retido em Madrid pela politica do conde Duque.

A condessa de Villa Nova estava, em verdade, elegantemente vestida, com seu gibão e vasquinha ou aia de esperança. Sobre um bem proporcionado guarda infante, golilha bem encanudada ao pescoço, e chapins de seda branca com botões custosos e tacões incarnados.

D. João IV, depois de cumprimentar ao conde de Sortelha, disse para a filha, sorrindo levemente:

-- Ditoso o monarcha que tem uma tão gentil garda-mór. E disfarçando logo a amabilidade real accrescentou:

-- Que novas haveis do conde? Quererá o Olivares que lh'o vamos tomar por força d'armas?

D. Branca estava enleiada com a presença do rei e não atinava com uma resposta, especialmente vendo cravadas d'ella as vistas de tantas damas, invejosas d'aquella honra. Apenas balbuciou corando muito:

-- Tem esperança de voltar breve, ao reino.

Aproximava-se Antonio de Sousa de Macedo, por aviso do conde de Vimioso. D. João IV foi-lhe ao encontro e disse-lhe baixo e rapidamente:

- Quero papel e tinta n'um gabinete proximo. Macedo partiu a cumprir a ordem do monarcha, e este voltou ao grupo do pae e filha. D. João IV estava encantado com a belleza da condessa, que não conhecia, e cuja meiguice o tinha enamorado.

Começava a grande orchestra do paço a afinar os baixões, charamellas, fagotes e sacabuxas para se dançar a pavana, a galharda e o minuete. Chegava a rainha. D. João IV que se preparava para dançar com D. Branca, não gostou de ver entrar na sala a mulher, acompanhada da camareira mór, a marqueza de Ferreira. Deu a mão a beijar ao conde de Sonelha e á filha, e foi ao encontro da rainha, como pedia a pragmatica.

Entrára a esse tempo na grande sala D. Francisco Manuel de Mello. Trajava de militar em aquella noite. Era elle um formoso homem n'aquella epocha da vida, em que tinha vinte e nove annos.

Antonio de Sousa de Macedo, que se achava em Lisboa vindo d'Inglaterra, e que já voltara á sala, cumpridas as régias ordens, avistando foi-lhe ao encontro.

-- Já nos faltava o poeta: sê bem vindo, dissera-lhe Macedo.

-- Não digas tal, que onde tu estás não ha falta d'homens. Ninguem me pode desejar aqui, disse elle,vendo passar perto de si o conde de Sortelha e a filha. Sou como a alma de Garibay que nem a quiz Deus nem o diabo.

-- De mau humor vens. Pois nem aquella que além vae te quererá a ti? respondeu Macedo, que, por confissão de D. Francisco, em tempo feita já, sabia da affeição d'elle a D. Branca.

-- Não. Essa, como outras muitas, desprezam-nos o amor, offerecendo infame sacrificio á maldita merca.

-- Não a maltrates, que não teria força para desobedecer ao pae.

-- Mudemos a conversação, que uma palavra leva a outra e ambas á bocca o erro.

-- Seja, mas sempre te direi que admiro não vires captivo d'Hespanha, já que as portuguezas te não querem prender.

-- De Castella nem costumes nem ciumes, respondeu D. Francisco. Mas falemos d'outro assumpto.

-- Falemos e será repetindo uma pergunta que me fez el rei.

-- A meu respeito?

-- Sim. Como vae o Fidalgo Aprendiz? Sua magestade está com grande desejo de o ver representar.

-- Isso tarde será, porque o tenho longe da conclusão.

-- Pois el-rei já falou em mandar compôr para elle algus tonos pelo mestre da orchestra. E bem vês que é uma honra para ti e para o teu talento.

-- Fazes mais alarde do meu talento que nem escudeiro de Famalicão com carta do primo desembargador. Conclul o-hei, pois, descança.

-- Rompia a orchestra para se dançar a pavana rica. D. João IV, que era muito entendido em musica, mandou dizer ao mestre da orchestra, que melhor era e queria antes que se começasse o baile pelo minuete. Assim se fez, dançando elle com a rainha e mais de cem senboras e cavalheiros.

D. Branca não dançou, nem D. Francisco Manuel. Aquella sentára-se junto do pae, e este afastára-se para uma vasta galeria, que dava para o Tejo, podendo d'alli não só ver as danças, mas contemplar D. Branca, que lhe ficava fronteira.

Tinha o D. Branca fixado, mal elle entrara vindo da sala dos Tudescos para aquella, e seguirão com avista sempre, mais ou menos distraidamente. Se havia muito que não estivera tão proxima d'elle! Algumas vezes o tinha visto, é certo, por que D. Francisco, se bem que não mais voltasse a casa do conde de Sortelha, e muito menos á de Villa Nova, alli passava algumas vezes a cavallo, para lhe ver q rosto formoso atravez das vidraças do palácio, e recordar volvidos tempos de ventura. Não se quizera aproximar mais por evitar o turvamento do socegado viver da condessa, sendo-lhe alias facil a aproximação, ausente, como estava em Castella D. Gregorio de Castello Branco. Olharam-se muito, recordaram ambos o passado, despertaram seus corações...

D. Branca, sem que o pae desse por isso, com movimentos muito naturaes tinha tirado do peito um objecto, que parecia contemplar mui triste. Observára D. Francisco aquelles movimentos e concluira que D. Branca via o retrato de seu filho. E via.

Pobre mãe! Revê te em teu filho, sim, beija-o, oscula a creança com tanto amor gerada e nascida e que te arrebataram, e a quem nunca poderás chamar-lhe filho!

E pareceu a D. Francisco, realmente, que D. Branca disfarçando com um lenço aquella acção beijára a medalha, que logo occultou, parecendo limpar tambem algumas lagrimas.

Notára o pae uma alteração no rosto da filba e perguntára-lhe se algum incommodo sentia. Respondeu-lhe D. Branca que lhe faltava o ar e mostrou desejo de ir até á galeria, onde estava D. Francisco. Ergueu se logo o conde e para alli se dirigiram os dois.

D. Francisco, ao ver a direcção que tomavam, quiz afastar-se, mas não pôde. Quem o prenderia, se não a aproximação de D. Branca?

O conde e a filba entraram na galeria: curvára lhes D. Francisco a cabeça, ao passarem por elle. Parecia que D. Branca não attentára no amante, quando o pae o reconhecera e se lhe dirigira.

-- Muito ha que vos não vejo, D. Francisco, e sinto ora prazer em vos encontrar, lhe dissera o conde, estendendo lhe a mão, que D. Francisco tocou cerimoniosamente, continuando: -- Sentiu-se mal minha filha n'aquella sala: deve achar-se bem aqui. Então a condessa de Villa Nova não cumprimenta o seu companheiro d'infancia?

-- Felicito o, por se achar entre nòs, D. Francisco, dissera tartamudeante D. Branca, fitando a medo n'elle seus olhos formosíssimos.

-- Agradeço o prazer que dizeis sentir ao ver-me, sr. conde, e senhora condessa.

-- E que é verdadeiro, disse o conde.

-- Por tao longe tendes andado, acudia D. Branca...

-- Mais perto podéra ter vivido, se no mundo não foram as palavas e as promessas mais largas que compridas, respondeu seccamente D. Francisco.

D. Branca não lhe pôde volver resposta; mas o pae, notando ainda a causa d'aquella singular resposta, disse lhe apenas:

-- Por mostrar que vos quero e não sou vosso inimigo haveis de fazer-me um favor, D. Francisco: ides amanhã a minha casa?

Permanecera silencioso D. Francisco, que se lembrava haver promettido não voltar alli

-- Não respondeis?

-- Irei, disse por fim D. Francisco.

Acabaram as danças. D. João IV, acompanhado do marquez de Ferreira, de D. Pedro Mascarenhas, seu veador, de Luiz de Miranda Henriques, estribeiro-mor, e de Antonio de Sousa de Macedo entrava na galeria, e caminhava para o grupo.

-- Pensei que nos houvesseis deixado, disse o rei. E reparando em D. Francisco, que não tinha visto ainda: -- Adeus, D. Francisco, meu poeta e chronista!

-- Obrigado a vossa magestade. E beijou lhe a mão.

D. João IV reatou a conversação com o conde de Sortelha e com a filha emquanto D. Francisco, chamando á parte Antonio de Sousa de Macedo lhe disse rapido em voz baixa:

-- Segredo quanto ao passado!...

-- Descança, respondeu Macedo.

-- Prolongou-se a conversação, falando-se muito em guerra, em musica e em poesia. Por fim D. João IV, que parecia ter estado bem alli, despediu-se do conde e da filha, que de novo lhe beijaram a mão, extendendo-lhe as suas familiarmente; a esquerda ao conde e a direita á filha, que, ao aperta-lh'a, sentiu a impressão, de quem toca um objecto encandescente e de que foge logo...

XIV

Os jesuitas no Paço

O sarau nos paços da Ribeira acabara á uma hora da madrugada. Aquelle grande reunião de cavalheiros e damas da primeira nobreza do reino, luxuosamente vestidos á franceza, rainha da moda, que já então nos sugava grandes sommas com seus tecidos e verdugadins, invenção da Montespan, como em nossos dias renovados com o nome de crinolines pela mulher do imperador pusillanime, que não preferiu a morte gloriosa dos combates á vergonha de ir depor aos pés do rei Guilherme a virgem espada, aquella grande reunião, repito, desconjunctava-se saudosa da importancia palaciana que lhe dava o duque de Bragança, por ella feito rei de Portugal.

D. Francisco e D. Branca de Vilhena sairam do paço enamorados, como se fôra havia dez annos. Assim como depois de algido e tenebroso inverno sempre nos é agradavel o sol da primavera, áquellas duas almas foi saudoso e inevitavel o aquecerem-se de novo ao sol do amor, que tanto os fascinára na juventude!

Ensejo favoravel se lhe offerecia no convite que lhe fizera o conde de Sortelha para ir a sua casa. De Francisco Cardoso, mordomo do conde de Villa Nova e seu amigo, imprudente fora confiar já depois do mysterioso aviso que lhe fez o D. Prior dos Cruzios de Folques, sem descer a explicações. Forçoso lhe era, pois, aproximar se de D. Branca e concertar com ella, com um cuidado grande, o modo de poderem ambos falar do seu filho, que lá estava na Quinta de entre ambos-os-rios junto ao Porto.

Não procrastinou um só dia a visita que promettêra ao conde, em cujo palacio vivia quasi sempre a filha, na ausencia do mando, que a revolução colhera em Madrid.

Foi no dia seguinte, saindo de sua casa no Rocio e descendo pela rua da Prataria até S. Nicolau, e d'alli á Magdalena, começou a subir para a Sé e lá se foi pela rua do Limoeiro caminho de S. Vicente.

N'aquellas salas, que nós ja conhecemos, foi D. Francisco bem recebido, e alli lhe deu o conde mil explicações, accrescentando pezaroso que ja tardio era o arrependimento; que D. Gregorio fugia a esposa; que não havia prole, que representasse as duas grandes casas; que a sua filha era infeliz.

D. Francisco Manuel de Mello, que ja tinha mais annos e menos ardor, mais prudencia e menos paixão, não contrariou o conde, nem o taxou de culpado como podéra, na sorte que preparára á infeliz menina, ambicioso da união das duas casas. Acceitou-lhe as satisfaçoes, dizendo-lhe apenas, por fim da conversação, que desejava cumprimentar a filha, não lhe parecendo mal a elle que se falassem os que juntos se crearam e amigos deviam ser como dois irmãos.

-- Pois não, D. Francisco: vamos até la dentro. D. Branca ficou no jardim a ler á sombra de um caramanchel, quando me foram chamar sem me dizerem que ereis vós. Vamos, pois, até la.

E foram. A manhã estava deliciosa: era já uma perfeita manhã de primavera. Entraram no jardim, seria meio dia. D. Branca foi quasi surprehendida com a visita de D. Francisco. Tão distraidamente lia, e tão densa era a folhagem de jasmineiros e roseiras que a cobriam, que só despertou e suspendeu a leitura ao vêr junto de si o pae e o amante dilecto de seu coração. Ergueu-se muito risonha e tão corada como as rosas que a emmolduravam, e foi-lhes ao encontro.

-- Bem vindo senhor D. Francisco ao jardim da nossa infancia!

-- Obrigado, senhora condessa de Villa Nova, respondeu elle, meio risonho, meio grave. E apertou-lhe a mão.

-- Separou nos a sorte e a vida das armas, a que vos destes.

-- Não fales em separações, minha filha: por melhor acho eu que passeiemos pelo jardim, contando-nos D. Francisco suas bellicas proezas, e admirando o Tejo amplissimo n'este lindo dia.

-- É já larga a chronica, senhor conde de Sortelha! Olhae para o periodo começado no desastroso naufragio do grande D. Manuel de Menezes e terminado na minha difficil saida de Catalunha, e vede o que ahi vae! E foram passeiando.

-- É verdade, é: são quatorze annos! Muito agradecido vos deve estar el-rei!

-- Pouco tem elle que me agradecer: corri ao chamamento da patria redemida, como era dever meu. Se ella m'o agradecerá não sei nem o penso; que de el-rei forçoso me é suppor não direi ingratidão, mas esquecimento. Conheci-o duque de Bragança em Villa Viçosa, senhor conde, no anno de 1637, em que uma grande parte da população portugueza expozera a vida por elle, que, entregue ás delicias do seu bem estar, ao prazer dos motetes e villancicos religiosos na capella de Villa Viçosa, não correu como nosso progenitor a tomar o pendão da revolta, que já nos teria dado á liberdade então. Deixou immolar algumas cabeças o pacato duque! e medroso da Hespanha lá me sacrificou quatro mezes de liberdade. Já vêdes que o conheço e que nenhuma paga posso esperar d'elle que mais cuida de si do que dos seus.

-- As circumstancias eram especiaes, D. Francisco... disse o conde.

-- Eram, sim, as melhores para a nossa redempção. E o que fez elle? caçou, ouviu misereres e deixou a quarenta homens o trabalho de lhe arrancarem a coroa da cabeça de Filippe III! Olhae como elle já vae tratando Francisco de Lucena: começa a desconfiar d'elle, que valentes serviços lhe presta. Dos mais e de mim o que será? Prasa a Deus que a côrte me não seja como Guimarães, onde prendem a gente é soltam os cães!

D. Branca sorriu se com aquelle dito, e disse lhe:

-- Singular lembrança, D. Francisco!

-- Permitta Deus que ella não tenha plural... respondeu D. Francisco.

Tinham-se approximado de um parapeito que dava sobre a grande bacia do Tejo.

-- Sentemo-nos aqui, disse o conde, e deixemos ao futuro e a Deus essas previsões. Vós sois um bom portuguez e um leal servidor: que podeis receiar?

E, depois de estar sentado alguns segundos, disse para os dois:

-- Ora ficae-vos contemplando esse Tejo admiravel, que eu breve serei comvosco. E, levantando se, entrou no palacio.

-- O meu filho! onde está o meu Jorge? Dizei D. Francisco, exclamou D. Branca, mal se achou, a sós com o seu amante.

-- No Porto, lindo e formoso como sua mãe! respondeu D Francisco.

-- E quando o trazeis para Lisboa ? Desejo tanto, tanto vel o!

-- Mui brevemente, minha Branca! Mas não o tens tu visto? disse D. Francisco, por ficar certo d'ella te recebido o retrato do menino.

-- Ai! tenho, tenho! mas sempre pequenino! Agora deve ser um homem. E sem mais reflectir, n'aquelle contentamento maternal, levou a mão ao collo, tirou do peito uma medalha e disse a D. Francisco:

-- Queres vel o, D. Francisco? Vamos para aqui, onde ninguem mais o veja. E contente e alegre, como dez ou quinze annos antes, tomou D. Francisco pela mão e correu para o recesso de verdura e flores, onde estava a lêr quando o amante chegára. Apenas alli entrou abriu a medalha para mostrar o retrato do

filho ao pae. Por dois lados se abria: e como o seu contentamento e ventura eram grandissimos não attentou que abria a medalha pelo lado opposto áquelle onde estava o retrato do menino. Caiu no chão um papelinho dobrado trescalando a pivete.

-- Que papel é este? perguntára D. Francisco, abaixando-se e tomando-o.

-- Oh! dae m'o já, exclamara D. Branca, afflictissima, tirando-lh'o da mão.

-- Que é isto, D. Branca? Que papel é esse, que tão grande cuidado vos dá?

-- Não vol-o posso dizer, respondeu a pallida senhora, serenando; é um segredo de D. Gregorio... E fechou o logo na medalha, deixando, ainda assim, que D. Francisco n'elle percebesse, apezar de dobrado, a volta de um D e um B grande italicos. Abrindo logo a outra face da medalha D. Branca mostrou a D. Francisco o retrato do filho, depois de o beijar.

-- Está muito parecido, não está ? perguntou ella, tentando por todos os modos desviar a attenção do amante do papel caido no chão.

-- Representao fielmente aos tres annos de edade

-- Ai! como já estará um homemsinho! Quando o verei eu em Lisboa, D. Francisco?

-- Antes de eu partir para a guerra, que mui breve será.

-- E não se poderá nunca saber...

-- Já lhe assignalam no Porto outra mãe, o que succederá egualmente em Lisboa.

-- Mas haveis de m'o trazer um dia, sim?

Já lhe não pôde responder D. Francisco, por que o conde de Sortelha se aproximára.

Depois de mais alguma conversação D. Francisco despediu-se do pae e filha, promettendo, comtudo, visital-os mais vezes.

São decorridos dois mezes; é por fins de maio. Voltemos agora aos paços da Ribeira, onde D. João IV dá audiencia a dois jesuitas insignes, o padre Antonio Vieira e João Paschasio Cosmander.

-- Mas olhae, Antonio Vieira, que eu não tenho galardoado os serviços dos homens da acclamação, o elevar d'esse modo a Cosmander...

-- Vossa magestade, acudiu aquelle,tornando-me o primeiro engenheiro do reino, dará soberana prova, não direi d'apreciação do meu talento, que para pouco é, mas de incitamento aos demais, como de afleição á Companhia de Jesus, consoante o fizeram os augustos predecessores de vossa magestade.

-- Porém, Francisco de Lucena é de contrario parecer, arrasoando que não é bem considerarmos a estrangeiros não engrandecendo os nacionaes. D'este aviso são tambem outros como D. Francisco Manuel de Mello, que me prestou já valiosos serviços, trazendo-me aos portos de Lisboa uma armada do Hollanda, e combatendo agora na fronteira aos inimigos da patria. E notae que não engrandeci ainda a tão prestadio vassallo.

- N'esse particular, permitta vossa magestade que o mais humilde e menos prestimoso filho da Companhia recorde a vossa magestade que não têem patria o talento e o saber, respondeu Antonio Vieira. E com respeito a D. Francisco Manuel de Mello... pedirei vénia a vossa magestade para dizer que assas recompensado o considero no galardão que lhe advem do cumprimento dos deveres de legitimo portuguez, que supponho ser.

-- É, comtudo, uma excepção, Antonio Vieira, que poderá ferir o amor proprio nacional, embora julgueis sem nacionalidade conhecida o prestimo individual.

-- Pondere vossa magestade em seu alto juiso o caso, que me parece não se dever ratinhar o grande merecimento de Cosmander na republica falta de homens e...

-- Olhae que sois injusto, Antonio Vieira, atalhou el-rei.

-- Não serei, senhor. Vossa magestade sabe como a nascente dynastia está exhausta de tudo, porque tudo nos levaram. Organizam-se os terços com velhos; recrutam e alistam se estrangeiros: o thesouro não tem mealha. Talentos havemos nós, senhor: mas é o talento melindrosa planta que não medra, quer na escravidão, quer na guerra. Vêde como definhamos no passado captiveiro? Na guerra que se me antolha propinqua e dilatada mal poderá crescer o mimoso arbusto. Assim, de bom aviso acho eu que se empreguem na republica os que, mais venturosos, nos vierem d'algures, até que um dia os possamos dispensar.

-- Emfim, dissera D. João IV, por se ver livre de Antonio Vieira, ouvirei mais uma vez a Francisco de Lucena, e tomarei parecer com o marquez de Ferreira, com o conde de Vimioso e com Antonio Paes Viegas.

-- Sabia e prudentemente soe vossa magestade procede, A Companhia de Jesus, que tantos e valiosos serviços fez ao senhor rei D. João III, que Deus tem em seu santo reino, por bocca do seu mais ignorado e pequeno filho vos promette envidar suas forças, em prol de vossa magestade. Não combateremos o castelhano nas fronteiras, mas jogaremos a arma da palavra, que não fere menos se não mais que a espada de vossos generaes. Com ella consolidou,

Moysés o reino de Deus, com ella debellou e venceu a idolatria o Filho de Nazareth. Humilimo apostolo, protesto a vossa magestade pregar ao povo liberto a palavra de Deus.

-- Obrigado, Antonio Vieira. A patria vos agradecerá o que por ella fizerdes, que muito e muito sei eu que ha de ser. Adeus, pois.

O padre Vieira e Cosmander beijaram-lhe a mão, e sairam, e D. João IV tomou a direcção do gabinete do ministro Francisco de Lucena.

-- Cosmander, irmão sapiente. ja vedes que nos foi util esta conversação com el-rei: deixámol o abalado e ficámos conhecendo dois inimigos, quando menos.

-- Lucena, e D. Francisco Manuel, disse o engenheiro jesuita

-- Esses são, continuou Vieira. Pois tentaremos com o auxilio de Deus inutilisar-lhe as adherencias, e quanto antes. Mister é que a luminosa Companhia, a que pertencemos, occupe na monarchia nascente um dos primeiros logares, consoante o já occupára nos reinados dos reis D. João III, D. Sebastião e D. Henrique de religiosissima lembrança.

-- Conseguil-o-hemos nós? perguntou Cosmander.

-- Conseguiremos, sim. Desde os tumultos d'Evora, que foram alentados por nossos irmãos do collegio do Espirito Santo, já D. João IV sabe que lhe somos afeiçoados. A mim compete agora florear no pulpito a bandeira da independência nanional, por modo que el-rei claramente veja na Companhia de Jesus um exercito aguerrido, e em mim um mestre de campo como qualquer D. Francisco Manuel de Melio...

E, continuando similhante conversação, os dois jesuitas se foram afastando dos paços da Ribeira.

XV

No palacio e na estalagem

No gabinete de Francisco de Lucena conversava este com D. Francisco Manuel de Mello quando el-rei entrou.

-- Por cá! dissera D. João IV para D. Francisco. Estão, dizei-me vós, meu poeta e meu chronista, como vão os trabalhos litterarios que vos pedi fizesseis?

- Algo adiantados, senhor, e mais proximos estariam da conclusão, se não fôra o demonio da guerra que lá se enfurece mais e mais nas fronteiras chamando-me as attenções.

-- Mas eu dispenso-vos por agora da luta. Graças a Deus temos lá forças bastantes. A um talento poderoso como o vosso facil me parece o acabamento de prompto.

-- Obrigado a vossa magestade; mas, não é o meu engenho tão fertil como parreira de S. Thomé, que dê fructos duas vezes no anno.

-- Modesto sois, primo D. Francisco. Ora, pois, fazei o que vos parecer, voltae á guerra ou ficae, que n'ella ou aqui me servireis lealmente.

-- Beijo as mãos a vossa magestade.

-- Ora sabei, Francisco de Lucena, que ahi voltou o Cosmander e o padre Antonio Vieira ambos em defesa da causa do primeiro.

-- E vossa magestade prometteu-lbe algama cousa? perguntou o ministro.

-- Não prometti mais do que ouvir o vosso parecer, e o de mais alguns amigos.

-- O meu parecer, real senhor, será hoje o mesmo que já tive a honra de apresentar a vossa magestade Cosmander não pôde nem deve ser elevado á cathegoria de primeiro engenheiro do reino, dado que na verdade o merecesse, o que eu contesto.

-- E vós, D. Francisco, como pensaes n'este assumpto? perguntára el-rei. Sois tambem do aviso que já me expozestes?

-- Direi, real senhor, que se as obras dos homens sao contrastes de suas intenções e pedra de tocar de seus animos, bem claro conhece vossa magestade os quilates das de seus vassallos leaes. E não me parece que se devam ter em mór conta as obras de mercenarios estrangeiros do que as dos nacionaes. Cosmander pertence a Companhia de Jesus, que perdeu ao senhor rei D. Sebastião, e traz nas vejas o sangue dos que nos têem empolgado as conquistas. Aqui tem vossa magestade como eu arrasôo no caso.

-- Pois sobreestaremos no caso, terminou el-rei. E depois de lhe beijarem a mão os dois, D. João IV saiu, deixando-os.

-- Pois é um facto, parecia continuar Francisco de Lucena uma conversação interrompida.

-- É d'onde procederá essa nascente e já terrivel intriga? perguntou D. Francisco Manuel.

-- Não sei; mas, desconfio dos jesuitas. E até me affirmam que nas côrtes, que el-rei vae convocar para janeiro do anno proximo, se apresentará uma queixa de mim, taxando-me de desleal.

-- Quanto aos jesuitas de barato dou que assim seja: com relação ás queixas em côrtes não creio n'ellas, e melhor fôra que el-rei as não convocasse, porque as côrtes nas republicas são como as purgas nos corpos: revolvem humores velhos e ás vezes ficam mais achacosos do que antes da mezinha.

-- Não sei, em boa verdade, D. Francisco, o que me virá d'este parto, cuja concepção parece realissima. Louvam me e maquinam contra mim, talvez porque eu não tenho annuido ás ambições dos homens da acclamação.

-- Preciso é, pois, precaver, meu amigo, e acautelar de masculinas sereias, pois que o mais terrivel artificio que inventou a malicia é offender com louvores.

-- Cauto serei, meu D. Francisco, especialmente com os filhos de Loyola, que depois de terem por muitos annos enchido o reino de absurdas prophecias, em que promettiam a vinda do Encoberto, agora que o vêem chegado, aspiram à recompensa de seus trabalhos.

-- É sem numero o numero de mofinos: façamos-lhe guerra, como elles nol-a fazem a nós, disse D. Francisco.

A conversa ainda se prolongou, concertando-se os dois para oppôrem tenaz resistencia ao solipsismo da Companhia de Jesus.

Approxima-se o entrecho d'esta historia do ponto mais importante d'ella. Convem arrebanhar os personagens de modo que de nenhum se esqueça o leitor, no momento do terrivel choque que pôde dar a morte a alguem, ou privar da liberdade aos que a tiverem.

Chegára o dia 24 de Dezembro de 1643. Tinham decorrido dois annos depois dos narrados acontecimentos.

O conde de Villa Nova ainda não voltara ao reino. A condesea vivia o mais do tempo, em casa do pae, deixando a casa entregue ao mordomo Francisco Cardoso, e mais creadagem. Depois d'aquella scena em que o mordomo abusára da confidencia que tinha no segredo da sua honra, D. Branca evitava-o, indo, comtudo, passar alguns dias ao palacio da rua do Limoeiro.

Percebera o astuto Cardoso a intenção da condessa, não attingindo, comtudo, a razão porque ella menos vezes vinha residir alli, preferindo o palacio do pae, depois do sarau nos paços da Ribeira, quando el-rei fizera annos.Reparou, sem embargo, diligenciando ainda assim prescrutar-lhe a causa.

Um dia estava elle em casa do conde de Sortelha a conversar com o pagem Gonçalo Gomes, quando chegara ao portão do palacio um coche da casa real, do qual descera Pedro Vieira da Silva, amigo particular de D. João IV.

Fez-se anuunciar por Gonçalo Gomes á condessa, a quem pretendia falar da parte de el-rei, que uma boa nova lhe mandava, disséra elle.

Introduzido nas salas que já conhecemos, veiu receber-lhe a visita a condessa, crendo, na verdade, que D. João IV lhe enviasse alguma noticia do esposo, havida por confidencia politica de algum secreto agente de Portugal na Hespanha.

-- Quem era aquelle, que o não conheço? perguntára Cardoso a Gonçalo Gomes.

-- Parece que é um dos meninos bonitos de el-rei, que se prepara para ser ministro d'alguma coisa, respondeu o interrogado.

-- É a segunda vez que vem aqui, não é? perguntou Francisco Cardoso, com velhaca intenção, e como sabendo de se haverem feito anteriores visitas.

-- Parece-me que já é a terceira, respondeu Gomes.

-- E virá sempre trazer novas do sr. D. Gregorio?

-- Ao menos assim o diz elle.

Francisco Cardoso pôz-se a scismar, não combinando bem o facto de passar pelo palacio de seu amo aquelle enviado da côrte sem perguntar n'elle pela condessa, onde natural era que estivesse, para a buscar em casa do pae, mostrando ter certesa da ordinaria habitação de D. Branca. Fez no caso profundo reparo, e exclamou, depois de pensar um instante e com o rosto muito risonho, como quem achara a solução de um problema:

-- Permitta Deus que venha annunciar a chegada do sr. conde!

-- Oxalá, respondeu Gonçalo Gomes.

Emquanto os dois assim praticavam, dizia Pedro Vieira á condessa, com ares muito innocentes:

-- Aqui tem v s.ª esta carta do sr. D. Gregorio que veiu por intermedio de el-rei nosso senhor.

D. Branca, que já com aquella recebia a terceira carta, sabendo mentir-lhe o regio confidente como das outras vezes, e no presupposto de que elle nada soubesse do conteudo d'aquelle papel, tomou-o e dispunha-se a lei o quando Pedro Vieira accrescentou:

-- Pede-vos el-rei, sr.ª condessa, uma resposta por escripto, e a graça de lhe devolverdes esse papel depois de lido, pois que ha n'elle segredos de estado, que um leve descuido tornaria perigosos.

A condessa leu o papel e empallideceu levemente.

-- Dizei a el-rei, sr. Pedro Vieira da Silva, que fico sciente e bem inteirada da boa nova da vinda do meu esposo e que me releve o não responder eu por escripto. Que lhe beijo agradecida a regia mão. O papel devolvo o eu, como sua magestade ordena.

E indo a um bufete tirou d'elle uma folha de papel, na qual fechou e lacrou com suas armas o que lêra, e entregou o a Pedro Vieira da Silva.

-- Porém, peço venia para lembrar a v. s.ª que os pedidos ou lembranças de el-rei costumam acceitar se como ordens.

-- Assim é: mas não me considerará el rei desobediente, quando offensa fôra que vos faria a vós, não confiar de tão gentil enviado a singela resposta que já vos dei.

-- Agradecido vos sou, sr.ª condessa, pelo que em mim confiaes. Mas não havereis de dar por escripto alguma resposta a sua magestade? insistia Vieira ds Silva, como quem sabe do que se tratava.

-- Não, agora não, respondeu friamente a condessa, como indicando a idéa de pôr um termo á pratica.

O futuro secretario de estado, vendo que de nada lhe valêra a sua diplomacia n'aquella conjuntura de manifesta repugnancia de D. Branca, não se atreveu ao combate, em que só alcançaria persuadir a condessa do conhecimento que elle tinha de um negocio, em que não devia haver terceiros.

Despediu-se, pois, da condessa e saiu, murmurando:

-- Ser-nos-ha manifesta a victoria: esperemos mais alguns dias.

Ao cimo da escada principal do palacio encontrou Pedro Vieira da Silva a Francisco Cardoso, que lhe curvou a cabeça sem proferir palavra.

Entretanto D. Branca saíra da sala em que recebera o enviado d'el rei, murmurando tambem:

-- Valha me Deus com tal insistencia! E não poder eu resistir a el-rei! Não terei remedio para este mal senão recebendo-o no palacio d'apar o Limoeiro!

Emquanto estas cousas se passavam de tarde no palacio de Sortelha, preparava Marcos Ribeiro na Estalagem Negra, á meia noite, um conluio contra o seu rival Francisco Cardoso.

N'um quarto dos mais retirados da estalagem, dizia Ribeiro para dois homens de má catadura:

É certissimo o que vos tenho dito: ainda hontem á noite... portanto, meus amigos, o negocio tratado. Depois do que hontem aconteceu aqui, talvez deixe de vir a esta casa, ao menos tão amiudadamente. Se não voltar, nós iremos procura-lo; não é esta uma condição do contracto?

-- É, respondeu um dos homens.

-- Sim, iremos, disse o outro.

-- Eis aqui o signal, continuou Ribeiro: e dando a cada um trinta cruzados de boa prata, accrescentou: Quando findar o praso, havereis o resto da somma. A nossa mão.

-- Eil a, disse um dos homens.

-- Pelo inferno, continuou Ribeiro, apertando-lhe aquella mão.

-- Juro!

-- Por Belzebuth! accudiu o segundo, a quem faremos presente do seu corpo damnado.

Passava se esta scena ao cair da noite. Aquelle pacto em nome do inferno, feito na escuridão de um retirado cubiculo daquella estalagem, parecia, na verdade, um pacto infernal. Aquelles dois homens eram dois assassinos, professos na arte de matar. Rufiões das toureiras da Mouraria e d'Alfama, qualquer d'elles, a troco de uma quantia que lhe saciasse a ambição, cravava um punhal em seu seu semelhante, sem que jamais os intimidasse a imagem das galés ou a da forca do Rocio.

O monstro do ciume, que nem sempre é valente, agitava-se cobarde e traiçoeiro, espumando rancores e mortes, n'aquella especie de caverna de Caco, onde moravam a tavolagem, a infelicidade e a morte.

Quando os tres sairam do cubiculo, e se dirigiam para a casa de jantar da estalagem, afigurou-se a Marcos Ribeiro que alguem atravessára além, em sua frente, um corredor transversal. Notou a passagem de um vulto, de capa e chapeu; mas, suppondo ser um jogador, que passava para a tavologem, não ponderou o caso e dirigiu-se com os dois para a casa de jantar, que ó leitor já conhece, onde com vinho pretendiam sellar o pacto que fizeram.

-- Ó Catharina! Mulher! manda me cousa que se coma e um pichel de vinho, disse á porta que dava para a cosinha, o esposo de Catharina d'Enxobregas.

-- Pouco depois, o sordido cosinheiro trazia um grande prato de estanho com badulaque, punha na mesa pão e o pichel de vinho, e volvia a preparar a ceia dos almocreves do Alemtejo e da Estremadura, que n'aquelle dia eram muitos na estalagem.

-- Á saude de tres homens de bem! bradou Ribeiro, empinando um grande copo.

-- Vá, de valha! responderam os dois. E beberam, ficando-se alli na comesaina até tarde.

Á porta de entrada que dava para o corredor, appareceu um sujeito, que, não descobrindo inteiramente o rosto, perguntou aos tres:

-- Algum de vós será Marcos Ribeiro?

-- Sou eu, respondera o que tal nome tinha.

-- Preciso falar-vos em particular, disse o estranho.

-- Eu vou, respondeu Ribeiro. E deixando os dois foi se ao desconhecido, que o esperava no corredor.

-- Preciso falar-vos em particular, lhe disse o embuçado.

-- Ao serviço de vossa mercê, respondeu Marcos Ribeiro, ao ver um homem cujo rosto não conhecia, bem vestido e de modos distinctos e fidalgos. Pode v. s.ª acompanhar-me. Depois de chegarem á porta do pequeno quarto, onde ha pouco vimos concluir um tratado, de morte talvez, os dois entraram.

-- Não havies uma luz? perguntou o desconhecido.

-- Eu accendo já uma vela, respondeu Ribeiro. Pode V. sr.ª vir entrando. E ao dizer isto feria lume com fusil e pederneira, accendia uma mecha de papel enxofrado com ella uma vela de sebo, posta sobre uma meza.

-- Fechae aquella porta á chave disse o estranho, arrastando uma cadeira para junto da meza e acenando-lhe para que fizesse o mesmo. Fechada a porta, Ribeiro sentou-se defronte do estranho do outro lado da meza.

-- Conheceis-me perguntou o desconhecido ao modo porque das algibeiras do gibão tirava e punha sobre a meza duas bolças de torçal cheias de dinheiro.

-- Não conheço; ainda que já vos vi, não sei onde nem quando.

-- Tenho n'estas bolsas duzentos mil réis em bons Portuguezes, Calvarios, S. Vicentes e Engenhosos. Passarão a ser vossos. Marcos Ribeiro, por escambo de um leve serviço: quereis fazer m'o?

Attonito com tão subita proposta, e pasmado da sem-ceremonia e do ouro que sentira tenir, Ribeiro respondeu timidamente:

-- Emfim... conforme... acho estranho...

-- Não sou homem para rodeios empregar: quereis, ou não quereis?

-- Dizei, respondeu Marcos Ribeiro, depois de alguma hesitação.

-- Haveis de saber-me ao certo se em casa da condessa de Villa Nova entra algum homem de noite, e quem será esse?

-- A condessa minha senhora, vive com seu pae e não é possivel...

-- Sejamos breves: viva onde viver, interessas-se um meu amigo em saber o que já disse. Acceitaes, ou não?

-- Não teria duvida se eu não fôra o rendeiro d'aquella casa na Estremadura, e o serviço não fosse para mim infamante. Espião...

-- Não é peior do que ser mandante de assassinatos! respondeu o estranho, cravando n'elle um olhar penetrante.

-- Que diz V. sr.ª? exclamou, pallido como um cadaver, Marcos Ribeiro.

-- Já disse, e já fiz a proposta. Quereis ou não quereis?

Marcos Ribeiro, fulminado com tão singular proposta e allusão directa, feitas por tão secco e despido modo, inquieto, cubiçoso, atemorisado, respondeu balbuciante, e quasi sem consciencia da resposta:

-- Acceito, e dou a minha palavra d'honra...

-- Só quero empenhada a vossa palavra d'homem.

-- Empenho a; porém...

-- Mais nada: contae esse dinheiro. E arrastou para elle as bolças.

-- Não é preciso; porém, se vossa mercê me dissesse quem era, melhor seria.....

-- Um chatim como vós sois, respondeu o estranho e singular personagem, interrompendo-o.

-- Comtudo, V. s.ª parece offender-me...

-- É engano: são as vozes do dinheiro, que se parecem com os ais dos lagartos do Nilo, traiçoeiros.

-- Não entendo...

-- Nem mais é preciso entender. Eu voltarei. Lembrae vos de mim, que vos não malquero, porque a semelhança dos successos é pae e mãe das sympathias, respondeu o desconhecido, sorrindo levemente pela vez primeira para o Ribeiro, e erguendo se para sair.

Traçando a capa sobre o rosto com a mão direita, e levando a esquerda aos copos da espada que trazia à cinta, o estranho individuo deu as boas noites ao aturdido rendeiro e saiu.

Quem seria este sujeito, sabel-o ha o leitor quando chegar ao fim do capitulo immediato, cuja acção corre na mesma noite de Natal em que estamos.

XVI

Nas matinas do Natal

Disparam-se os primeiros tiros entre portuguezes e castelhanos nos plainos de Badajoz e Elvas em 9 de junho de 1641. Termina o anno, e começa e acaba o de 1642 com escaramuças de pequena monta em toda a linha dos dois reinos, sendo os mais notaveis feitos d'armas d'aquella pugna ingente, a defeza d'Olivença por Francisco de Mello, a d'Ellvas, por D. João da Costa, e a tomada de Elches, de Valverde, de Leão e de Guardian, por Fernão Telles de Menezes e D. Sancho Manuel.

No mez de setembro de 1643 invade a Hespanha o conde d'Obidos. D. Francisco Manuel de Mello acompanha-o na entrada, e nos primeiros dias do mez de dezembro d'aquelle anno volve a Lisboa, a chamamento d'el-rei, para fazer parte da junta da fortificação do Alemtejo. Já não topa na capital o seu amigo Francisco de Lucena, morto em 28 de abril d'aquelle anno, victima das intrigas dos aulicos e dos invejosos, em cujo numero avultava o ambicioso Pedro Vieira da Silva. Decepara-lhe a cabeça o cutello do salão, que pendural-o da grossa corda de tres ramaes fora pouco seguro modo de lhe arrancar a vida!

Triste presentimento era aquelle que lhe tomára as faculdades pensadoras: sem a ledice de outros tempos entrara em Lisboa D. Francisco. Nem o filho, que alli já tinha, nem D. Branca da Silveira, cujas imagens lhe seriam carissimas, eram bastantes a lhe espancar do rosto a nuvem triste, e do coração um espinho indefinido que o pungia.

A morte de Francisco de Lucena, que a critica da historia ainda não pôde classificar de justa perante as razões de estado, mostrava lhe de um modo evidentissimo a pusillanimidade de D. João IV, que, depois de se aproveitar dos conhecimentos e da pratica governativa de Lucena, quando o reino não tinha um homem com a precisa idoneidade, o abandonára á mercê dos intrigantes, á torrente dos invejosos, á infrene ambição de Pedro Vieira da Silva e de outros.

D. Branca da Silveira, aquella sua affeicão de creança, aquelle seu amor primeiro, aquella mulher, que nascera para sua companheira na vida, era esposa de outro homem, e só lhe poderia dar a elle fugitivas caricias, reprovados affectos, amores criminosos perante as convenções sociaes.

E em que termos seria concebida a denuncia que perdeu Lucena? D. Francisco era seu affeiçoado, se não era amigo. Arrastaria a delação mais algum nome á voragem sanguisedenta, que se abrira na declamação de D. João IV? Estas e outras considerações que lhe suggeria a mente fertil, lhe empanaram o coração por fórma que D. Francisco volvia a Lisboa apprehensivo e desalentado.

A tudo accrescia uma causa de constante inquietação, que o salteára desde aquelle dia em que tomára um papel cabido da medalha em que D. Branca guardava o retrato da creança. Era um vago presentimento de que D. Branca se daria a amores com outro homem na ausencia do conde de Villa Nova. Era uma sombra de ciume, que o acompanhava desde então, mal definida ainda, mas assustadora já. Perante Deus e seu coração era D. Branca sua esposa, embora D. Gregorio fosse o marido legal. Debalde diligenciára elle decifrar aquellas letras mysteriosa que no papel percebera: sem resultado o fazia sempre. Por mais de uma vez se resolvera inquirir elle a própria D. Branca e pedir lhe formal explicação d'aquelle papel, que viera turvar o seu espirito, e outras tantas fugira a ideia por se não julgar em pleno direito de lhe pedir contas a ella, que lh'as podia negar.

D. Francisco Manuel voltava, pois, a Lisboa cuidadoso e resolvido, se na capital permanecesse, a fiscalisar a sua amante, por modo que podesse attingir a causa da perturbação que vira em D. Branca no jardim do palacio de seu pae, quando lhe tomára da mão apressadamente o papel, que trescalava a pivete, e no qual vira as mysteriosas letras D. B.

Como sabemos, estamos no dia 24 de dezembro. Havia nos paços da Ribeira sarau em que se cantariam a el-rei e á côrte na capella d'elle alguns villancicos ao Natal. Não fôra tão grande a concorrencia como no sarau a que já assistimos, quando el-rei fizera annos.

A grande orchestra da real capella terminava:

Quando en los rigores
Del Disiembre nasce
En el tosco abrigo
De unos portales:
Quando fugitivos
Vientos le combaten
Siente los rigores,
Lhora los pesares.
Como en esto Nino
Incendio ay tan grande
Con los vientos cresce,
Con los yelos arde,
Quexa-se que huelvan
Nácar sus criatales,
Purpura eu nieve,
Rubi au diamante.
Pero dividiendo
Rigor y desayre
Tiene donaire etc.

Terminadas as matinas, e emquanto não chegava a meia noite para se ouvir a missa do gallo, el rei e a côrte entraram nas grandes salas illuminadas, onde a conversação se animára entre cavalheiros e damas.

D. João IV, sem que a mais leve sombra de remorso lhe pairasse no animo depois da morte de Lucena, era todo riso e attenções á condessa de Villa Nova, que estava com o pae e com a irmã. D. Branca parecia menos acanhada diante d'elle do que no sarau dos seus annos.

D. Francisco Manuel conversava a distancia com o mordomo mór, D. Manrique da Silva, e com o conde de Castello Melhor.

A insistencia da conversação de D. João IV com a condessa de Villa Nova chamava as attenções das damas, as primeiras sempre em notarem essas cousas e os cavalheiros mesmo já para o grupo volviam alguns olhares curiosos. D. Branca da Silveira era realmente formosa. No vigor da mocidade talvez não entrasse os paços da Ribeira fidalga mais donairosa do que a gentil guarda mór. Isto sabia ella no seu orgulho de mulher, isto conheciam as demais damas invejosas.

-- El-rei não se digna cumprimentar esta noite senão a condessa de Villa Nova, dizia a marqueza de Ferreira para a condessa de Odemira.

-- Tantas attençoes e requebros são, em verdade, demasias para se notar, respondera a condessa do Vimioso.

-- Não venha por ahi a rainha, que não deixa de ser zelosa!... accudiu a marqueza de Gouvêa.

D. Francisco já pouca attenção dava ao que diziam o conde de Castello Melhor e D. Manrique da Silva. Não despregava os olhos do grupo em que avultava o novo rei. Parecia distrahido e tão inquieto que o mordomo-mór lhe dissera:

-- Tens cousa que te incommode, D. Francisco?

-- Não: apenas notava que el-rei tão enlevado fosse hoje na contemplação da condessa de Villa Nova que ainda não nos dirigisse uma fala.

-- É que a condessa é muito bonita! disse o Castello Melhor, e el-rei saboreia de perto aquelle formoso fructo.

-- Pois quiçá não ande sua magestade do melhor aviso, porque a mulher é como a laranja: se muito a apertam logo amarga, e depois... respondeu D. Francisco, retrahindo-se.

-- Palavras, palavras! Leva as o vento como a plumas, disse D. Manrique da Silva. É não fiar em apparencias.

-- Nem ja eu que me fie n'ellas. Bem sabeis que o mesmo céo nos engana apparecendo azul cada dia, sem ter côr nenhuma, dissera D. Francisco.

E, respondendo de tal modo, D. Francisco mentia! Era aquella a segunda vez em que elle topára o rei em renitente conversar com D. Luiz da Silveira e com a filha: era aquella a vez primeira em que a D. Francisco apparecia ensejo de poder devassar um arcano que tanto havia o preocupava. Faria a côrte D. João IV a D. Branca? Symbolizariam aquellas letras D. B. Duque de Bragança? Tremeu com a idéa... E era possivel, com effeito. Demais conhecia elle o caracter de D. Branca. Incapaz por sua branda indole de uma repulsa ao rei, acolheria vaidosa os galanteios de D. João IV preferindo ás murmurações das fidalgas invejosas a honra do ser requestada do restaurador da monarchia.

D. Francisco Manuel sentiu enroscar-se lhe ao coração immediatamente a serpente medonha do ciumes que lh'o estorcia em apertos insupportaveis.

Um sumilher da cortina viera dar parte a el-rei de que se aproximava a meia noite. D. João IV dirigira-se á capella seguido da nobreza, menos de D. Francisco Manuel que se ficára para trás, talvez mai de proposito. Começára a missa: D. Francisco foi o ultimo a entrar na tribuna da capella, collocando-se em logar d'onde bem podesse ver ao rei e a D. Branca.

Durante a missa por mais de uma vez volvera o rei a cabeça por ver a condessa de Villa Nova, que lhe ficava á esquerda. Na obrigada devoção a que se dava a côrte talvez só D. Francisco notasse aquelles regios movimentos de cabeça. Escusado é dizer que cada um d'elles correspondia a um maior aperto da hydra que lhe esmagava o peito. El-rei amava D. Branca, tal foi a conclusão que de suas observações colhera. Então, e ao reunir mais uma circumstancia ás que sobejamente já tinha, qual foi a de que D. Branca ao tocar na mão do rei, naquella despedida do sarau de seus annos, retirára a d'ella rapidamente, acabou comsigo na suspeita que tinha tido até alli, vendo n'aquelle acto a entrega ardilosa do primeiro bilhete amoroso. Era, porém, suspeita grave apenas.

Saiu da capelia raivoso, tresloucado. Quando acabára a missa estava elle passeando na sala dos Tudescos. Alli foi ter com elle o mordomo mór, que, ao vel-o assim passear só e, ao que se lhe antolhava, pensativo e triste, lhe perguntou:

-- Que tens tu, D. Francisco Manuel de Mello? que tão alheado me pareces? Antevê acaso o valente mestre do campo alguma desfeita em seus terços na fronteira castelhana?

-- A fortuna, que é melhor engenheira que o Cosmander preparou-me uma derrota a que terei de assistir, respondeu o heroe.

-- Vaes então partir para Elvas? Mas el rei disse-me ha dias que te encarregára de escreveres a vida do senhor Dom Theodosio, seu pae, e que tu mesmo andavas compondo um papel politico de resposta á Hespanha. Assim, melhor me parece, que deixes lá zunir as balas e te votes com a penna ao serviço de tao nobre monarcha.

-- Nobre, como carniceiro de gente, respondeu friamente D. Francisco.

-- Que dizes, D Francisco? Estás louco?

-- Estou, porque vejo que só Dios acierta a reglar con regia tuerta.

-- Não te comprehendo.

-- Nem o busques, D. Manrique, disse, a final, D. Francisco. Vou sair antes que el rei me veja. Encarrego te de lhe participares que um incommodo de saude me forçou a sair do paço sem lhe beijar a mão. Fazes-me o que te peço?

-- Certamente; mas, que diabo tens tu? disse o mordomo-mór.

-- Já t'o disse.

-- Porém...

-- Dou-te a S. Fernando que és terrivel com perguntas! E apertando-lhe a mão saiu do paço, subiu a rua da Ourivesaria, chegou ao Rocio e cortou para o lado do theatro das Arcas, e rua de Lopo Infante.

Acabára a missa e já se espalhava pelas vastas salas a côrte de D. João IV.

Dava este o braço á rainha, que, despedindo-se dos fidalgos e damas, se recolhera logo. El-rei acompanhou-a até junto da porta em que a marqueza de Ferreira e outras aias a esperavam, voltando a conversar com alguns fidalgos.

Quando D. João IV dialogava com o conde do Vimioso e com Pedro Vieira da Silva, approximou-se d'elles D. Manrique da Siva e lhe apresentou a despedida de D. Francisco.

-- Meu primo tem cousa que lhe dê cuidado depois que voltou da guerra, disse o rei. Pedi lhe que me escrevesse a vida do senhor meu pae, que santa gloria haja, por lhe dar algum descanço nos trabalhos da guerra, e por que escreve como Tito Livio e noto que mais parece seduzil o o fragor das armas do que o remanço da livraria.

-- Um valente como elle custosamente cambiará pela penna a espada vencedora, disse o conde do Vimioso.

-- Nada! D. Francisco tem cousa. Mas aqui vem quem nol-o poderá dizer, accrescentou o rei.

Era o conde de Sortelha com as filhas que vinham beijar a mão a el rei e despedir-se. Ao ouvir as palavras d'el-rei o conde perguntou:

-- Que saberei eu que com mil vontades o não diga a vossa magestade?

-- A causa de umas tristezas de D. Francisco de Mello, disse o rei.

-- Pois em boa verdade, que não sei, real senhor.

D. Francisco visitou me ha dias e não me pareceu sorumbatico, tal foi a resposta do conde de Sortelha.

D. Branca, ao ouvir nomear el rei a D. Francisco tremera como um vime novo. Saberia el-rei dos seus amores? foi esse o pensamento que a salteou instantaneamente.

-- Poetas têem d'aquellas tristezas, acudiu o conde do Vimioso.

-- Talvez; ponderas bem, como neto e filho de poetas e poeta por ventura, respondeu o rei. E voltando-se para o conde de Sortelha:

-- Então já nos deixaes, não é assim?

-- Se vossa magestade não ordenar o contrario, respondeu o conde.

-- Não. Adeus, conde, e dava-lhes a mão a beijar. Ouvi que tinheis um formoso jardim com bellas vistas a S. Vicente: hei de ir vel-o. Apraz-vos a visita ás vossas flores? accrescentou D. João IV, cravando em D. Branca um olhar ardente.

-- Será grande honra para as casas de Sortelha, de Villa Nova e de Figueiró o haverem de receber a vossa magestade.

D. Luiz da Silveira e as filhas sairam, e pouco depois a restante fidalguia, terminada a reunião.

Convem agora, por cabal intelligencia do livro, informar ao leitor que D. João IV, rei de Portugal pelo concurso dos nobres do reino, a quem mal pagára valiosissimos serviços, se preparava para pungir profundamente a fronte do conde de Villa Nova com o ferrete mais vil e cobarde estigma da deshonra.

Entretando na real camara D. João IV ordenára ao camareiro para ficar só, prevenindo-o de que não entrasse sem ser chamado.

Ainda bem se não vira só, tirou do bolso do gibão um papel dobrado em pequeninas dobras, beija-o, desdobra-o e lê n'elle: Obedecerei. Acto continuo approxima-o de uma vela e queima-o, dando um sopro em suas poucas cinzas.

Que papel seria aquelle, e que rasão de estado levaria el rei a queimal o e espalhar suas cinzas como um bisneto seu faria mais tarde ás do duque d'Aveiro e dos desgraçados Tavoras?

De longe vem a pratica de queimar a realeza a seus inimigos, e de espalhar ao vento dos céos as suas cinzas temerosas.

XVII

Um duello nas sombras

Estamos em 4 de janeiro de 1644. É noite escura e ventosa. Não brilha uma estrella nos céus, velados por negro manto de nuvens. Sopra rijamente a ventania d'oeste, encapellando a grande bacia do Tejo. Parece approximar-se uma tempestade.

Proximo da Sé, debaixo do Arco da Consolapão, contiguo á egreja de Santo Antonio, chegavam dois cavaleiros ás dez horas, vindo da rua da Padaria um deante do outro. Apeou-se o da frente e logo o que o seguia.

-- Matheus Alvares, disse o da frente, espera-me aqui até á meia noite. Se eu não fôr vindo a tal hora retrocede, recolhe os cavallos e espera por mim ao Arco do Ouro. Põe cuidado em não seres conhecido.

E, sem esperar resposta, aquelle sujeito passando pela Sé entrou na rua do Limoeiro.

Perto dos velhos papos reaes, que davam o nome à rua, existia o palacio do conde se Villa Nova. Uma grande porta, sobrepujada pelas armas do conde em marmore branco, dava entrada para um vasto recinto quadrangular, cercado por quarenta e oito columnas da ordem composita, de cinco metros de altura cada uma. Corria sobre ellas a alquitrave e o friso singelo, do qual nasciam as paredes do palacio de um só andar.Olhando uma das faces externas para a rua do Limoeiro, no pequeno recinto, a modo de corredor, que começava na porta principal para ir terminar no grande pateo, ardia, pendente do tecto, esmorecido e vasquejante lampeão. De um lado e outro, portas havia para os aposentos do guarda portão e de outros servos da casa, e em volta de todo o vestibulo corria uma galeria entre as columnas e as paredes internas, medindo tres metros e meio de largo. A escadaria que do pateo dava para o palAcio ficava á parte esquerda, ao centro d'aquelle corpo do dificio. Foi conhecido aquelle recinto pelo Pateo das Columnas, até que o terremoto de 1755 prostrou o palacio.

O individuo, que vimos apear à Porta do Ferro e deixar alli o cavallo, completamente envolvido nas dobras de uma grande capa que lhe occultavam o rosto até aos olhos, como o chapéo de abas largas lhe escondia a fronte, ao chegar á porta do palacio, cuja meia porta estava aberta, entrou subtilmente e mensurando o passo.

A rajada, que soprava violenta de espaço a espaço, punha em movimento oscillatorio o grande lampeão, que povoava, tanto aquelle recinto como o pateo, de sombras movediças, e fazia com que por entre as columnas parecesse caminhar ou correr alguem.

Na casa do porteiro havia luz e alguem conversava dentro. O desconhecido aproximou-se de mansinho, cauteloso, mas não tanto que a ponta da espada não batesse na hombreira da porta e não fizesse algum ruido.

-- Chiton! ouviu de dentro a uma voz, e logo calarem-se os que falavam.

Por fortuna do embuçado uma violenta rajada suecede logo ao bater da ponta da espada na pedra, fazendo ranger o lampeão na corrente de ferro que pendia do tecto.

-- Pareceu-me ter ouvido alguma cousa, dizia dentro uma voz.

-- Seria a do vento que traz o lampeão em bolandas, respondia outra.

O embuçado, ao ouvir o curto dialogo, afastou-se brandamente, internando-se no pateo e tomando para a esquerda. Nem viva alma por alli!

Ao chegar á escadaria do palacio e quando ia para subir o primeiro degrau, vê o encoberto saltar de traz de uma columna a um homem, embuçado como elle, e dirigir-se-lhe. Retrahiu-se dois passos puxando mais o chapéo para o rosto e levou a mão ao punho da espada. O que viera de traz da columna, em vez de crescer para elle, pôz o pé no primeiro degrau para subir, quando o outro, avançando os passos que retrahira, dava já o primeiro nas escadas do palacio. Ambos hesitantes, o que já estava disse para o que chegára:

-- Seja quem fôr o que me pretende tomar a dianteira, para traz, e já!

Desembainheram-se instantaneas duas espadas, que mandaram na rajada aos eccos da bifurcada escadaria, o retintinulo som do primeiro choque.

-- Defende te, covarde! continuára o aggressor, repelindo golpes rapidissimos, que o silencioso contendor aparava e devolvia.

De repente, ouve se abrir uma porta lá no atlo da escadaria e brilhar uma luz alli. Recua precipite o silencioso personagem para a sombra do canto proximo, ao tempo que o aggressor corria tambem a esconder-se de traz da columna d'onde saíra.

N'isto descia a escadaria á pressa o mordomo do conde de Villa Nova, Francisco Cardoso, com um candieiro na mão, e abria-se a porta da casa do guarda-portão, d'onde sahiu aquelle e Gonçalo Gomes, com uma vela accesa.

Vendo se entre dois fogos os espadachins, e não querendo ao que parecia ser conhecido nenhum d'elles, o que estava nas sombras do canto exclama por entre os dentes -- vingança! investe para o portão, passa rapido pelos dois, completamente embuçado, e corre para a rua, que desce a passo accelerado, o que occultára de traz da columna, corre a Francisco Cardoso, mal este desce o ultimo degrau, atira-lhe um pontapé ao candieiro e um tremendo bofetão á cabeça, deixa o cambaleante na escuridão, passa pelos dois, cuja vela o vento apagára, e sae tambem para a rua do Limoeiro.

O silencioso espadachim já lá ia ao longe cosido com a parede, de modo que o aggressor o não podia vêr. Ao chegar ao Arco da Consolação ou Porta do Perro, onde deixára o cavallo e o companheiro a quem chamára Matheus Alvares, antes de montar pediu áquelle que lhe atasse o pulso do braço direito com um lenço.

-- O que? pois vossa m...

-- Chiton! lhe brada o recem-chegado. Ata-me este lenço e partamos.

-- É, porém, esta, senhor, a primeira vez em que, entre muitas já, este desastre acontece...

-- Avia, e cala, respondeu o ferido, montando logo a cavallo e descendo ambos pela Padaria á rua Nova, que seguiram até ao chafariz, tomando adeante pelas ruas da Calcetaria, Fangas da Farinha, Tanoeiros e rua dos Cobertos até entrarem no Terreiro do Paço.

O segundo combatente desceu até á egreja da Magdalena e d'alli tomou sobre a direita para S. Nicolau, Praça da Palha, Rua dos Arcos de Lopo Infante.

Bem vejo como o leitor almeja por saber não só quem eram estes homens se não mesmo o que se passaria no palacio do Pateo das Columnas, depois da briga dos espadachins. Quem eram os contendores não direi eu, pois que ambos occultaram seus nomes; mais informalo-hei do que lá se passou do palacio do conde de Villa Nova.

Os creados, depois de accenderem luzes, taramelaram como gente de sua estofa, até que, fechado o portão, por ordem do mordomo, cada qual recolheu a seus aposentos.

Havia dias que a condessa de Villa Nova alli residia, pois que a cada momento se esperava de Hespanha a D. Gregorio Thaumalurgo de Castello Branco, seu esposo.

D. Branca viera com sua irmã e na mesma camara habitavam. Francisco Cardoso, que, como o leitor sabe, acudira ao tinir de empadas, voltando acima encontrava D. Branca e a irmã que para elle vinham afflictas, por conhecer a causa do ruido singular no pateo.

-- Como o portão estava aberto, disse com malicia o mordomo, entraram no pateo dois homens e n'elle se acutilaram por algum tempo, até que quando eu appareci de um lado e Gonçalo Gomes do outro os dois fugiram.

D. Branca estava pallida como um defunto! Dirieis, ao vel-a assim, ser ella o cadaver galvanisado arrancado á morte, para mostrar ainda ephemera e passageira vida! Ficou silenciosa por algum tempo, até que, erguendo se sobranceira ao torpor que a vergára, e simulando tranquillidade apparente, perguntou a Cardoso

-- E não foram conhecidos esses homens?

Francisco Cardoso hesitou alguns instantes na resposta, e respondeu, sorrindo diabolicamente:

-- É verdade! Não me lembrei de lhes ver os rostos ninguem os conheceu. Aquillo eram certamente birbantes d'Alfama...

-- Talvez; porém, preciso é fechar-se quanto antes a porta do pateo, dissera D. Branca.

-- Já o mandei fechar, sr.ª condessa.

-- Obrigada, Francisco Cardoso; e ella e a irmã lhe davam as boas noites e se retiravam.

A terivel occasião, a calva deusa que uma só vez se mostra na vida aos mortaes, apparecia pela segunda ao mordomo do conde de Villa Nova, dando-lhe no rosto com a longa e unica trança dos cabellos da nuca. Não era elle homem para a não segurar: deitou-lhe a mão á trança... e passando por D. Branca, que seguia atrás da irmã, disse-lhe ao ouvido por modo que só ella ouvisse:

- Está ferido lá embaixo D. Francisco Manuel... quereis acudir-lhe?

E tomando a direcção de seus aposentos, Francisco Cardoso retirava-se lentamentte por um corredor á direita.

D. Branca ficára petrificada ao ouvir tal cousa. A irmã, que diante d'ella caminhava, não ouvindo seus passos, voltou-se para trás a procural-a.

-- Vae indo, minha querida irmã emquanto dou uma ordem ao mordomo. Vinde cá Francisco Cardoso, disse ella, o mais naturalmente que pôde.

A irmã foi caminhando para sua camara e Francisco Cardoso, que fingira affastar-se, voltou logo a D. Branca.

-- Onde está D. Francisco? exclamou afflictissima.

-- Recolhi-o na bibliotheca: está ferido por um estranho e é preciso acudir-lhe já, disse com certa afflição o mordomo Cardoso.

-- Oh! correi lá e esperae-me.

Francisco Cardoso, radiante de jubilo, desceu, ao pateo, abria a porta da livraria que ficava ao rez do chão para o lado do Tejo, entrou alli, accendeu uma vela e esperou

A noite que estivera ventosa mudara suas rajadas em chuva abundante que dos quatro beiraes corria ruidosa no pateo. A condessa de Villa Nova, sem muito se demorar descia á livraria com um rolo de pannos e uma tesoura na mão esquerda e com uma lanterninha de furta fogo na direita. Apenas a condessa entrou a porta, Francisco Cardoso, que alli a esperava, fechou-a logo.

D. Branca, percorrendo a casa com a vista anciosa e não vendo ninguem, conheceu immediatamente a cilada do infame Cardoso, voltou-se para elle altiva e poderosa, exclamando:

-- Abri ja essa porta, miseravel!

-- Insultaes-me, senhora D. Branca, por verdes que chegou a minha vez? dissera cynicamente e com sorriso infernal, Cardoso.

-- Abri sem demora! repetiu a condessa exasperadissima.

-- É cedo ainda, minha senhora! Pois que?! Adoro-vos desde creança, tenho sido vosso amigo, e tanto que vos não denunciei jamais ao sr. D. Gregorio, e vós, que daes horas certas a vossos amantes, não tereis uma para mim! Oh! Haveis de ter e ha de ser esta noite! disse o mordomo inflammado caminhando para ella.

D. Branca, salteada sem duvida por algum pensamento redemptor, que a livrasse da conjunctura difficil em que se achava, retrocedera de rosto para elle até a uma grande mesa de pau preto, em que ardia a vela accesa por Cardoso no meio da livraria; e chegando alli, e ao sentir-se encostada a ella exclama em voz alta:

-- Alto! infame! Quero aquella porta aberta ou vos tiro a vida!

E rapida, e varonil e forte, puxa uma gaveta da meza, tira d'ella duas pistolas do conde, engatilha-as e aponta-lh'as, cresce para elle terrivel, e vae-o levando adiante de si até a porta por onde entrára!

-- Abra essa porta!

E a porta abriu-se, e D. Branca saiu por ella salva do traidor e villão confidente de seus malfadados amores!

E a mulher docil, e meiga, e boa, e fraca confirmava de um modo tão louvavel e digno o que D. Francisco Manuel de Mello dissera a D. Manrique da Silva nos paços da Ribeira - a mulher é como a laranja, se muito a apertam logo amarga.

XVIII

Um Assassinato

O aggressor do Pateo das Columnas entrára na rua de Lopo Infante, e alli, na Estalagem Negra. Era quasi meia noite.

A estalagem estava deserta e quasi apagados os lampeões defumados dos corredores. Na casa de jantar dormia o cosinheiro, sentado n'uma cadeira de espalda de couro, com a cabeça tombada para traz, e a bocca escancarada. Ao fundo do estreito corredor, onde vimos, pouco ha, receber Marcos Ribeiro duas bolsas de dinheiro para espiar a condessa de Villa Nova, havia luz no quarto.

Embuçando se mais na capa, o personagem dirigia-se para alli, sem notar que, pé ante pé, o seguia um vulto d'homem depois que entrára na estalagem, reparando apenas em que á porta do tal quarto um vulto assomára e se retrahira logo, não fechando a porta; por onde sabia uma luz duvidosa e frouxa, que se estampava na parede fronteira e do pavimento do corredor.

Quando já ia no meio d'elle, pareceu ao embuçado que mais do que a sombra de seu corpo se estendia outra ao lado da sua no chão, produzidas pelo lampeão do corredor grande, que atravessava a estalagem e ficava para traz. Voltou se rapidamente quando já perto de si viu um homem com o braço direito armado de um punhal para lh'o cravar. Desembuça se rapidissimo, arranca da espada e atira um golpe ao peito do assassino, na occasião em que este, conhecendo-lhe o rosto em que a luz batia, ajoelhava de mãos postas e lhe pedia perdão.

-- Quem és, villão ruim?

-- Marcos Ribeiro. Perdão! respondeu de joelhos aquelle.

Tres homens tinham assomado á porta do quarto, tambem armados de punhaes, mal ouviram o desembainhar da espada; retirando, porém, apenas viram de joelhos a Marcos Ribeiro, e fechando-se no quarto, por não serem conhecieos.

-- Ergue-te, assassino! que sem me haveres conhecido me cravarias um punhal! Ainda te escapou a victima d'esta feita a ti e aos teus assalariados.

-- Perdão, sr. D Francisco! repetiu Ribeiro.

-- Quem te disse nome? Responde já!

-- Ninguem.

-- Mentes!

-- Não minto. Vossa mercê já me feriu em tempo na praça da Palha, d'onde o conheço, como ha dias tive a honra de dizer a v. s.ª. Depois, tanto pensei que bem me recordo de vos ouvir dizer aos da ronda o vosso nome todo, quando eu já ia na entrada da rua dos Arcos.

-- Pois ereis vós?! E porque d'aquelle modo acommeitieis a Francisco Cardoso?

-- Não me force v. s.ª a dizel-o. É elle um infame, um traidor que precisa morrer!...

-- É, pois, para elle que tendes comprados assassinos e que vós mesmo o sereis?

-- Um ladrão da honra alheia, mata se, sr. D. Francisco, respondeu exaltado Marcos Ribeiro.

-- Agora tudo percebo. Porém, vós não matareis nem mandareis matar aquelle homem; porque a matardes, não sei se a outrem deverá ser. Não matareis ninguem, repito. Só tem desculpa o assassinato em defeza propria.

-- É em defeza propria: defendo a minha honra, sr. D. Francisco!

-- Socegae, Ribeiro, e pensae no que vos disse: não matareis. Agora ouvi-me: Certa foi a vossa informação: lá topei um homem.

-- E quem era elle, senhor?

-- Não sei. Venho, pois, dizer vos, que vos dou por desobrigado já.

E depois de mais alguns conselhos lhe dar, D. Francisco Manuel embuçava-se para sahir dizendo por ultimo:

-- Conto que não falareis a ninguem n'este negocio.

-- Fique vossa mercê bem certo disso.

-- Cautela! disse, e sahiu.

O que é o homem?! Ser imperfeitissimo embora de culto espirito, que olvida n'um momento a sua imperfeição para se ostentar aos olhos d'outrem prototypo de virtudes e de perfeições moraes e civicas! Homens que vendo a sua imagem no espelho dos outros, não vê no seu a d'elles! Desprezivel egoista capaz dos maiores esforços, das abnegações mais portentosas! Composto de vicio e de virtude; amalgama do bem e do mal; hybrido conjunto de bellezas e defeitos! Não matareis! disse o homem que, pouco antes, cedendo ao mesmo impulso, obedecendo á mesma força motriz crusava a sua espada com a de outro homem, a quem talvez tirasse a vida, se uma fortuita circumstancia não constituisse entre as duas espadas uma muralha como a de Thsin-chihoan-ti, na China! A cada um d'elles impellia o ciume, execrando sentimento, negação de toda a virtude, que, por fatal coexistencia, nos acompanha do berço á campa, e eguala o ser pensante ao irracional instinctivo!

N'esta parte, D. Francisco Manuel de Mello não valia mais do que o rendeiro Marcos Ribeiro: era homem como elle, apenas com a differença de que aquelle, fraco e sem vislumbre de coragem, por tanto, traiçoeiro, assalariava uns assassinos para lhe lavarem o manchado nome, ao passo que o brioso D. Francisco aggredia frente a freme o homem que pretendia offender-lhe o coração, embora inquinando um nome, que não era seu.

Deixemos este ponderar, leitor amigo, e voltemos com a soberania do nosso pensamento ao palacio do conde de Villa Nova.

Francisco Cardoso entrára no quarto raivando vingança, espumando sanha! Era o leão raivoso comprimido nos anneis da boa muscular, sem lhe poder deitar as garras dilacerantes!

Ao cabo de agitado passear, sentou-se e começou de escrever. Era um juiz infernal a lavrar a sentença de morte a D. Branca da Silveira. Francisco Cardoso dava parte a D. Gregorio Thaumaturgo de Castello Branco, da infidelidade da esposa, e denunciava-lhe seus criminosos amores com D. Francisco Manuel... e com o rei. Estava perdida a senhora.

D. Branca, por sua parte, não tivera peor noite do que a tormentosissima de Goes. Alli, conseguira ella conter nos limites da fidelidade o mazorral Cardoso, na livraria, declarára-lhe guerra formal elevando-se á altura da mulher offendida e aggravada, que dá de mão a conveniencias e prefere a lucta a peito descoberto, a deshonra aos olhos do conde, á vilissima servidão e dependencia de um creado.

Uma unica taboa de salvação lhe deparava a mente em conjunctura assim: era communicar a D. Francisco Manuel o succedido com o mordomo, afim de evitar ao amante o rompimento do sello que fechava aquelle segredo de seus amores de creança. Mas o communical o a D. Francisco, que a adorava, poderia ter graves inconvenientes.

Ha pouco se haviam batido dois homens no pateo do seu palacio, e o coração presago dizia-lhe que um d'elles era o amante cioso. Podia salvar se ainda, é certo, conseguindo D. Francisco intimidar o mordomo; mas, tambem poderia perder o amante, o pae de seu filho, cuja ira seria para deveras temer, maiormente depois que elle topára um outro homem a penetrar em seu palacio. E a ideia de elle haver conhecido ao embuçado!

Pobre senhora! Nascida para dar na vida os seus mais ardentes e puros affectos a D. Francisco Manuel, e condemnada fatalmente a só poder ser d'elle criminosa barregan, que, além d'isto, lhe torturava o coração amante na catasta do ciume do marido e já de outro desconhecido comborço!

No dia seguinte por dez horas da manhã, uma carruagem parava no Pateo das Columnas e d'ella se apeava o bispo capellão-mór de D. João IV, D. Manuel da Cunha.

Àdmittido á presença de D. Branca, e depois d'esta lhe beijar o annel, o bispo capellão-môr, sentado de fronte d'ella, falava desfarte:

-- Casos ha na vida, senhora condessa, que demandam o maior cuidado e maxima prudencia por não chegarem a ser pabulo da maledicencia. Él-rei nosso Senhor, salteado e ferido hontem à noite nas escadas de vosso palacio...

-- Pois está ferido? interrompeu a condessa de Villa Nova.

-- Levemente, continuou o bispo. Encarregou-me a mim, por não depositar o segredo em pessoa de menos confiança, de vir saber de v. s.ª se o aggressor conheceria acaso a sua magestade, e bem assim se a senhora condessa sabe quem fosse o sacrilego, que a tanto se atreveu.

D. Branca estava assustada com as falas do bispo capellão-mór; e, receiosa por D. Francisco Manuel, balbuciou esta resposta:

-- Como não sei quem podesse ser o temerario, que sem duvida não conheceu a sua magestade, alias a tanto se não atrevêra, não posso responder a vossa excellencia.

-- Nem ao menos suspeitaes, senhora condessa, de nenhum homem?

-- Tambem não.

-- Assim, muito vos roga el-rei e vos encommendo eu guardeis o maior segredo no caso.

-- Dever meu é esse, excellentissimo senhor; ha, porém, tres familiares d'esta casa que sabem do acontecimento; e, se bem que de dois d'elles em nada deva receiar, do terceiro não confio tanto.

-- E quem é esse tal? perguntou o bispo, inquieto.

-- É o mordomo Francisco Cardoso, respondeu D. Branca. Já me lembrei de o escusar do meu serviço...

-- Por fórma nenhuma, atalhou D. Manuel da Cunha. Ao contrario, convém bem tratal o.

-- Isso tentarei fazer, senhor D. Manuel da Cunha.

-- A Deus vos encommendo, pois, senhora condessa.

E erguendo se, e dando-lhe o annel a beijar, saiu.

Tres dias depois d'estes acontecimentos, por nove horas da noite, a convite da condessa de Villa Nova, dirigia-se D. Francisco Manuel de Mello para o palacio d'ella. Quando entrava a grande porta que dava para o Pateo das Columnas saiam por ella tres homens correndo, que tomaram direcções diversas. No inopinado do encontro e na fuga d'elles não pôde reter a passagem a nenhum. Entrou. Logo adiante do lampeão, apagado áquella hora, e no escuro do adito tropeçou em um objecto que, sem demora, reconheceu ser um corpo humano. Curvou-se sobre elle e observou no homem cahido o cadaver de Francisco Cardoso. Estava assassinado o mordomo de D. Gregorio de Castello Branco. Depois de reflectir um pouco, nem sequer chamou o guarda portão; e, em vez de entrar, sahiu apressado, lembrando-se de que já estivera preso por causa d'elle, quando o defendêra havia já annos de um aggressor que o podéra matar, e convencido mesmo de que os assassinos de Francisco Cardoso não podessem ser outros senão os apaniguados para aquelle fim, pelo offendido Marcos Ribeiro.

XIX

Vingança de rei

Eu creio no poder da Providencia, creio.

Fere a justiça divina mais certeira e mais inexoravel do que por vezes a do homem, que na sua fallibilidade pune muitas vezes ao innocente.

Tomára a justiça humana conhecimento do facto, verificando-se que Francisco Cardoso fôra apunhalado, e mandara lhe dar sepultura.

A entrada que Francisco Cardoso tinha de ha muito na Estalagem Negra, foi o fio que levou a policia ao descobrimento dos assassinos do mordomo.

Preso Marcos Ribeiro, sem difficuldade confessou quem foram os matadores; mas, por se livrar a si, declinou o mandato, que só d'elle era; em D. Francisco Manuel I...

Debalde acudiu a nobresa em grande numero em favor de D. Francisco Manuel: foi preso e remettido para a torre da Cabeça Secca.

Entretanto seguia o processo os tramites legaes, sendo, afinal, condemnados á morte os assassinos, e o denunciante a galés e D. Francisco, julgado absolto pelo juizo dos cavalleiros do crime de assassino, não o foi, comtudo, do de mandante, declarando aquelle tribunal que se livrasse da prisão em que estava.

Temos, pois, o heroe d'este livro preso innocentemente pela justiça dos homens!

Duas scenas importantes convem descrever agora ao leitor, antes de proseguir a narrativa da monstruosa e barbara perseguição de D. Francisco. Ambas se passam antes da prisão.

N'um gabinete particular dos paços da Ribeira tres homens conferenciavam no dia seguinte áquelle em que Francisco Cardoso apparecêra morto no Pateo das Columnas. Eram elles D. João IV, Pedro Vieira da Silva e o bispo capellã-omór. Seriam nove horas da manhã.

Mandei-vos chamar cedo, dizia o rei, porque, sendo vós os amigos de quem eu confiei o segredo, justo é que comvosco concerte o meio de que nos serviremos para que o tal mordomo não fale, e meu primo seja punido como o caso merece. Este segredo de uma leviandade minha só vós o conheceis no Paço: preciso é, pois, que nòs os tres e ninguem mais o conheça. Dissestes-me hontem D. Manuel, que por parte da condessa de Villa Nova nada havia que receiar, havendo, porém um mordomo do conde astuto e desleal. Forçoso é, pois, que esse homem não fale.

-- O meu parecer, real Senhor, é que vossa magestade o tome a seu serviço, no qual, bem tractado, se não atreverá a boquejar no succedido, dado que elle tenha conhecimento de que Vossa magestade estivera no Pateo das Columnas, disse o bispo.

-- Eu sou de outro aviso, acudiu o ministro, e se vossa magestade me auctorisa a prover no caso; affirmo que de prompto remedio o farei.

-- Sem duvida que auctoriso. Este fatal acontecimento não deve transpirar de modo algum. Com respeito a D. Francisco, bem é que elle saiba a affronta que me fez desembainhando uma espada para mim, dissera com mau modo o rei.

-- D Francisco Manuel não vos conheceu, certamente, acudia D. Manuel da Cunha, por desviar de D. Francisco a tormenta que o ameaçava.

-- O meu silencio lhe devera ter bastado a reconhecer-me, disse o rei, exasperado com a recordação do encontro.

-- O meu aviso na materia é que busquemos um meio, facil de achar, de vossa magestade o metter n'uma torre.

-- Ao menos temporariamente, disse o rei.

-- Durante o tempo que a vossa magestade aprasa. D. Francisco Manuel, se bem que deixou a Catalunha para vir á patria em sua defeza, tenho para mim que não será dos mais leaes vassallos de vossa magestade. Não é minha opinião, mas de muitos leaes amigos do throno. O mesmo padre Antonio Vieira que tão bons serviços elle e os seus dos presta, me tem dito por vezes qae duvida de seu caracter.

-- Ponderae bem, Pedro Vieira, a força d'essas suspeitas, dissera D. Manuel da Cunha, não só por desviar do padre Antonio Vieira a mancha de inimigo de D. Francisco, como d'este a de traidor á patria.

-- Lembre se vossa excellencia que era elle um dos mais intimos amigos de Francisco de Lucena, e que...

-- Não faleis mais n'esse nome, atalhou D. João IV, ou ralado de remorsos ou hypocrita e beatificamente.

N'isto tocava uma campainha no gabinete do ministro, que proximo ficava.

-- Se vossa magestade consente eu vou ver quem será.

-- Podeis ir, disse o rei para o ministro. E continuando para D. Manuel da Cunha:

-- Occorre me uma idêa, D. Manuel, famosa por nos certificarmos da fidelidade de D. Francisco. A condessa de Villa Nova tem, necessariamente, relações amigas com meu primo D. Francisco Manuel; assim, podemos induzir a condessa a convidal-o a se fazer partidario de Castella; e dado que elle por lhe agradar, quando menos, diga que sim, motivo teremos logo por lhe castigar o desacato á minha real pessoa.

-- Eu penso, real senhor, que D. Francisco não conheceu a vossa magestade, aliás não desembainhára a empada contra a vossa inviolavel pessoa, e não sei mesmo se a condessa se prestará ao desempenho de tal commissão, dado que de algum modo ella estime a D. Francisco, disse o bispo, espantado de tão repugnante lembrança.

N'isto entrava Pedro Vieira da Silva risonho e satisfeito com um papel na mão.

-- Muito vosso amigo é o acaso, disse elle. Aqui tem vossa magestade a noticia do assassinato do tal mordomo Francisca Cardoso, praticado hontem á noite no Pateo das Columnas, por tres homens que estão presos.

-- Estamos, pois, livres d'esse, que não falará, disse el-rei contente.

-- Mais contentamento terá vossa magestade. Um dos presos diz que fôra D. Francisco Manuel o mandante.

-- D. Francisco! tornou o rei, admirado.

-- Não é crivel similhante cousa! acudiu o bispo capellão mór.

-- Isto confessa um tal Marcos Ribeiro rendeiro da casa de Villa Nova, disse Vieira da Silva.

-- Parece me infamia grande lançada n'um cavalleiro como D. Francisco, tornou o bispo.

-- Emfim, a justipa averiguará do caso, respondeu o ministro.

-- E saberá disso D. Francisco Manuel? perguntou el-rei.

-- Certamente, real senhor, pois que já se acha preso na torre da Cabeça Secca.

-- Já preso? dissera o rei, muito admirado, e meio pesaroso meio satisfeito.

«Pois que façam nossas justiças o seu dever, terminou el rei seccamente.

Conheça agora o leitor a outra scena.

A condessa de Villa Nova, na maior afflicção, ao saber da morte do mordomo, que lhe foi dada por um domestico da casa pouco depois de perpetrada, mandára logo chamar o conde de Sortelha e avisára a D. Francisco Manuel para lhe vir falar. O conde appareceu uma hora depois, e D. Francisco Manuel que promettera ir, não appareceu.

De facto, emquanto nos Paços da Ribeira se passava a ceena que vimos, praticava D. Francisco Manuel de Mello com D. Branca, apesar do ministro Pedro Vieira da Silva ter mentido ao rei, dizendo lhe que já estava preso na torre da Cabeça Secca. O ministro indicára em confidencia, logo que lhe deram a nova, a prisão d'elle, visto que um dos presos o taxava de mandante. Considerára o caso como realisado, por agradar e satisfazer ao rei cioso e vingativo.

-- Ambos estamos perdidos, meu D. Francisco! Eu infamada, e vós...

-- Vós infamada, porque vos appareceu assassinado um mordomo! Não comprehendo. Quanto a mim menos attinjo o porquê de vossos receios.

-- Pois não sabeis?...

-- Nada sei.

-- O rendeiro Marcos Ribeiro foi preso esta noite em sua casa mais uns dois homens, e parece haver indicado o vosso nome como connivente...

-- O que dizeis, D. Branca! exclama D. Francisco exaltado.

-- Disse m'o ha pouco meu pae, que desde a morte de Cardoso aqui está, e tem seguido o negocio de perto.

-- Abominavel calumnia! Quem o mandou matar foi elle, D. Branca! Foi elle, a quem o ciume ralava havia já annos, como ha tres dias me dilacerava o coração a mim, depois de me haver atormentado muito e muito desde que a condessa de Villa Nova, que era minha, quiz tambem pertencer a outro!

-- Perdoa me, D. Francisco! Se soubesseis..

-- Quero saber, sim, quem foi o infame que ousou...

-- Suspendei, D. Francisco, essa linguagem! Por Deus! callae vos!

-- Dizei-me prestes quem foi o homem que recebera hora certa para vir a esta casa.

D. Francisco estava allucinado com aquella noticia de ter sido apontado como cumplice no assassinato de Francisco Cardoso; e, não tencionando pedir contas a D. Branca, por não ser esposo d'ella, agora estimulado por aquella horrivel nova, sentira-se com direito não só a verberal a, mas a querer saber quem era o rival que lhe offendia o seu amor de muitos asnos.

-- Vamos! Exijo o, em nome do amor que me déstes, quero sabel o na qualidade de pae de Jorge de Mello!

-- A obediencia... balbuciou, chorosa a condessa.

-- A obediencia! outra vez a obediencia! Callae vos, mulher mundana, que ora tomaes a obediencia como egide do crime, assim como em tempo fizestes d'ella escudo de desleal e fementida amante!

-- D. Francisco! D. Francisco! que me mataes!... exclamou D. Branca deixando-se cair desalentada e quasi sem sentidos n'uma cadeira.

-- Perdido?! Perdido, porquê? Acaso poderão colher informações villãs? continuou D. Francisco. Eu! assassino! Miseravel calumnia que de prompto esmagarei como a vibora dolosa!

Não falaes? Sim, melhor será que não digaes nada. Que me importa saber quem é vosso novo amante? Seja quem fôr, um, dois, vinte, trinta, que importa ao ludibriado amante? Senhora condessa de Villa Nova! conheço a sem razão do meu exigir. E voltando-lhe costas sahira apressado da sala deixando n'ella a D. Branca fulminada sobre uma cadeira.

A idêa da denuncia occorrera-lhe inquietadora, quando, d'ella um pouco afastado, lutava com a do ciume, e queria saber quem fosse o homem com quem cruzára a sua espada na escada d'aquelle palacio. Era preciso sahir d'alli, colher a certeza do caso e desfazer aquelle peior inimigo. Sahira, pois, n'aquelle presupposto, e tomára a direcção do Rocio.

Ao entrar em casa achava uma ordem para se recolher á Torre da Cabeça Secca, passada pelo corregedor do crime e cidade, a fim de se averiguar um facto criminoso, em que o seu nome se achava envolvido.

Era, pois, uma realidade a fatal nova que lhe annunciára D. Branca!

Não era D. Francisco Manuel homem para vergar ao peso de tal ordem. Tomando a penna escreveu uma carta a Jacintho Freire de Andrade, e outra a Manoel Severim de Faria, entregou-as a um creado, fardou-se, fez algumas recommendações em casa e sahiu para se recolher á prisão que lhe fôra indicada, sem duvida por ser militar, suppozera elle, sem ao menos conjecturar que já alli andava a poderosa mão da occulta influencia que lhe devia consumir o melhor de sua vida nas prisões de Lisboa e no desterro do Brazil!

Males ha que vem para bens, diz um proloquio vulgar. São os proloquios, maximas ou sentenças, uma sorte de elixir da verdade, se não a mesma verdade, fructos da experiencia recolhidos pelos povos desde as mais remotas eras, e que vão atravessando as gerações e os tempos apenas modificados na fórma com que cada seculo exprime suas idêas.

Aquella annunciada detenção que foi, como veremos, prisão dilatada, potro de iniquidades, equleo de agonias, catasta de privações, tambem foi a frondosa arvore do poeta, a eu ja sombra vivificante devia elle immortalisar o seu nome nos Apologos Dialogaes, monumento unico no genero, idêa e fórma; precursoras dos escriptos de Lopes de Mendonça no Fenis d'Africa, nas Epanaphoras, na Historia da guerra da Catalunha, e em tantos livros, onde com mão profusa topamos a flux um thesouro de conhecimentos humanos na mais pura locução portugueza.

XX

Uma Visita mysteriosa

Não pôde o entrecho d'esta historia da vida de D. Francisco Manuel de Mello ser muito cheio de peripecias e agnições. Antes da morte de Francisco Cardoso algum tanto phantasiei, tentando sempre que a fabula fosse verosimil, e a historia certa. Agora deslisará naturalmente, mais como narrativa para o fim a que se encaminha.

D. Branca de Vilhena, que deixámos como fulminada por electrica faisca, foi chamada à vida por sua irmã, Magdalena da Silveira, que a viera buscar, e sem sentidos a encontrára.

O conde de Sortelha, a quem chegavam por seus pagens novas dos acontecimentos, sabia com grande magoa como toda a Lisboa commentava a morte do mordomo da filha, e mil conjecturas se faziam cada qual mais cerebrina e especiosa, tendentes ao descredito da condessa de Villa Nova, sua filha. Quando lhe chegou a noticia da prisão de D. Francisco, o conde de Sortelha sentiu grande dor, porque muito affeiçoado lhe era. Indo ter com a filha participou-lhe a nova triste.

-- Oh! meu Deus! meu Deus! exclamou D. Branca.

Está preso um innocente! É uma calumnia do meu rendeiro Marcos Ribeiro, meu querido pae. Disse-m'o D. Francisco.

-- Pois se calumnia é, desfazel a-hemos promptamente. Eu vou já pôr-me a caminho da Torre, onde conhecerei d'elle essa tragedia, que virei publicar ás auctoridades, afim de que logo seja solto.

Pouco depois, D. Luiz da Silveira sahira do Pateo das Columnas na sege do conde de Villa Nova. Era pouco mais de meio dia.

Enganado ia o bondoso do conde na missão que se impozera! Nem os seus esforços, nem os de outros amigos poderiam arrancar já da prisão ao innocente.

Não podendo falar ao prisioneiro o conde voltára a casa da filha ás tres horas da tarde. D. Francisco não recebia a ninguem; estava incommunicavel.

Conserve-se o preso embora incommunicavel: para nós, caros leitores, o não estará elle. Façamos-lhe uma visita, pois nos é permettido, e seja ella a primeira como bons amigos que d'elle somos.

Não tenhamos receio de entrar na Torre da Cabeça Secca. São dez horas da manhã seguinte.

Um habitante da Cafraria passeia em um curto corredor junto da porta da prisão, como antes uma guarda de cossoletes, mosqueteiros e arcabuzeiros, com seus peitos e espaldares d'aço, escarcellas, braços, morrião e manoplas.

Ahi tem o leitor a habitação de D. Francisco. Uma pequena casa mal soalhada, e quasi terrea, alumeada por uma fresta sobre o Tejo, communicando por estreita porta para uma escuridão grande que nem é bom perscrutarmos o que seja. Junto da fresta um catre pouco decente, e defronte desconjuntada mesa, e duas cadeiras velhas já sem espaldas.

Mas, que monta a nossa descripção, se melhor e mais verdadeira nol-a fez elle?

«Casinha desprezivel, mal forrada,
«Turva lá dentro mais que inferno escura;
«Fresta pequena, grade bem segura,
«Porta só para entrar logo fechada.
«Cama que é potro, mesa destroncada,
«Pulga que por picar faz matadura
«Cão para agourar, rato que fura,
«Candeia nem co'os dedos atiçada:
«Grilhão que vos assusta eternamente,
«Negro boçal e mais boçal ratinho,
«Que mais vos leva que vos traz da praça:
«Sem amor, sem amigo, sem parente,
«Quem mal se doe de vós diz: coitadinho!
«Tal vida levo, santo prol me faça.

D. Francisco Manuel está sentado n'uma velha cadeira, apoia os cotovellos na mesa e sustenta a cabeça nas mãos. Medita, sem duvida. Não lhe turvemos o meditar, e busquemos melhor occasião. Entremos dois dias depois, por meia tarde.

Desferrolha se a porta e o preto dá por ella entrada a um sacerdote de uns quarenta annos de edade acompanhado de um rapazinho que terá treze.

D. Francisco desperta ao ranger dos ferros da angustiada porta, volve para alli o rosto; e conhecendo os dois, levanta-se de braços abertos a estreitar n'elles aos recemchegados.

Ambos são conhecidos do leitor aquelles homens; o que poderá acontecer é não se lembrar de nenhum d'elles. Já são decorridos largos annos depois que os vimos. É possível, porém, que os conheça, se lhes ouvir as falas.

-- Jorge! meu filho! Tu por aqui? E tu, meu caro amigo?

-- Sim, para de ti saber a causa de tão estranha prisão corri a ver te e trouxe teu filho. Não m'o levas a mal?

-- Obrigado, padre, e a ti, meu filho, que tão novo entras n'estes logares medonhos. Não tens medo de aqui estar?

-- Eu, não tenho, e quero ficar, respondeu o pequeno.

-- Pois queres ficar preso?

-- Quero, se o papá não for comnosco...

-- Então queres deixar os teus estudos?

-- Não quero; mas o pae tudo me ensinará.

-- Até a soffrer! Sim. Pobre creança! disse D. Francisco. Mas sentemo-nos.

E tomando o filho pelos braços, sentou-o no leito, e elle e o seu amigo, assentaram-se nas duas cadeiras.

-- Dize-me, D. Francisco, o que ha de verdade no que se diz ahi para fóra? Sabes de tudo?

-- Ha mentiras e calumnias, respondeu. Ha um infame cobarde, que mandou matar a um homem e que poz o ponto em mim.

-- Porém, como? Conhecia-te esse homem?

-- Conhecia. Dias ha o tinha eu comprado para me prestar um serviço.

-- E conta-me cá, continuava o padre, tu tiveste algum duello?

-- Pois sabes d'isso! exclamára admirado D. Francisco.

-- Vaga e informemente: conta o caso.

-- Não póde ser hoje, e apontou com a cabeça e com um olhar para o filho, que folheava um livro de alguns que estavam sobre a cama. Mais de espaço falaremos.

-- Sim, percebo: ámanhã virei; mas, o que preciso é sabemos nós: é corrermos todos os teus amigos em tua defensa, e quanto antes.

N'isto corria de novo o ferrolho da porta, que se abria e dava entrada a mais dois homens: Jacintho Freire de Andrade e Manuel Severim de Faria. D. Francisco e o padre ergueram-se e foram recebel-os.

-- Que novas trazeis, meus amigos?

-- Poucas e pouco para serem ouvidas, respondeu Andrade. O corregedor procedeu a devassa pronunciou-vos e remetteu-vos para o juizo dos cavalleiros.

Alli será, pois, a defensa.

-- E quem depoz contra mim? exclamou um tanto exaltado D. Francisco.

-- Os tres assassinos, respondeu o Chantre d'Evora, que se achava então em Lisboa.

-- Canazes! Presinto, meus amigos, que aguas teremos com o negocio, disse D. Francisco.

-- É meu parecer que não. El-rei já tem conhecimento do caso: com a protecção d'elle e o testemunho dos amigos desfaremos essa irrita pronuncia.

Á porta appareceu o negro com uma carta para D. Francisco, que lançou mão d'ella. Feita a cortezia costumada leu a rapidamente, exclamando para todos:

-- Ora o caso tem mysterio! ouvi:

«Um dos vossos maiores amigos irá falar vos depois de trindades para interesse vosso. Sabe se que não sois assassino; mas ha uma força estranha que vos condemna. Talvez a do destino... Forçoso é que estejamos sós...»

-- Que vos parece o caso? perguntou D. Francisco depois de ler.

-- Singular! respondeu Severim de Faria e o sacerdote seu collega.

-- Não conheceis a lettra d'essa carta? perguntára Jacintho Freire?

-- Não conheço; mas não me parece de homem, respondeu. Vêde lá. E deu-lh'a.

-- É caso para scismar, sem duvida. Esta reticencia... disse Jacintho Freire, esta reticencia no destino...

-- Á ventura buscarei essa aventura, disse D. Francisco sorrindo, emquanto os padres miravam a lettra.

E porque a tarde se adianta e luz nos falta já, se sois do meu aviso, vou-me preparar para a visita incognita.

-- Certo que somos, responderam os tres.

De fado, era quasi noite. Os quatros, por D. Francisco não ter para todos assentos, tinham praticado passeando, e o rapaz, o filho de D. Francisco, em quem Jacintho Freire e Severim de Faria não tinham altentado, por estar na penumbra da prisão e se inflamarem na pratica, tinha adormecido descuidado.

-- Vem, Jorge! disse o padre Vicente de Gusmão Soares.

-- Adormeceu, coitadinho! disse D. Francisco.

-- É notavel que não tenha visto este menino, disse Faria, indo para elle.

-- Quem é? perguntou Jacintho Freire.

-- Um collegial de Santo Antão, respondera Soares.

-- É um filho de D. Francisco Manuel, meus amigos e d'elle, acudiu risonho o preso.

-- Acordae-o lá, para o conhecermos, pediu Severim de Faria.

-- Deixal o dormir antes: seja elle dormente o anverso socegado do pae cuidadoso. Deixa-m'o cá ficar, Soares, que amanhã o mandarei: faz-me companhia melhor que a dos ratos, disse D. Francisco, sorrindo tristemente.

-- Porém, não consentirão... dissera Vicente de Gusmão Soares.

-- Somente nos dois primeiros dias é que me retiveram incommunicavel: depois vieram ordens para falar com os amigos e a todos receber. Adeus, pois, até amanhã, meus carissimos amigos.

E abraçando-se e despedindo-se sairam, ficando o pae e o filho.

Depois que a porta se fechára, D. Francisco poz se a contemplar o filho dormente -- Dois innocentes presos! disse elle. E tomando alguns livros que tinha sobre o leito arrumou os em cima da mesa, cobriu o filho, compoz as cadeiras e principiou a passeiar. Dez minutos depois, era noite cerrada.

Accendeu uma candeia, cravada na parede da prisão, e continuou seu passeio e seu meditar, aguardando a promettida visita do incognito amigo.

Havia mais de uma hora que esperava; e, porque não apparecesse o homem, sentou-se e poz se a ler um manuscripto de lettra francesa, que trouxera de França, intitulado: Dialogo entre o merito e a fortuna, de um seu amigo, n'aquelle paiz. J. Lucas, mais tarde publicado n'um livro: Maximes d'amour.

Absorto na leitura não dera pelo abrir da porta, por onde entraram dois sacerdotes, que se foram approximando d'elle.

-- Tens razão, disse elle, peixe grande papa peixe pequeno.

-- Talvez não, lhe dissera Fr. João Marmelleiro, Provincial de Santo Agostinho, que perto se achava d'elle, emquanto o outro se conservava a distancia.

-- Ah! exclamou D. Francisco erguendo-se e apertando lhe a mão. Vós sois Fr. João? E quem é aquell'outro amigo? disse attentando no outro.

-- É Frei Alexandre de Jesus, respondeu, sorrindo, o Provincial dos Agostinhos.

D. Francisco foi para elle, que se conservava cabisbaixo e na sombra, para lhe apertar tambem a mão, quando o vulto se adiantára ao seu encontro erguera a cabeça e se expozera á luz. D. Francisco, ao fixal o, recua e exclama:

-- Que vejo! Ah! tudo percebo.

-- Fugis me! disse admirado aquelle personagem.

-- Não! não posso fugir-vos, senhora condessa de Villa Nova! Fugir não posso a quem me visita na prisão, e a quem, se me deu a morte, agora me traz a vida. Era vossa, pois, aquella carta?

-- Minha era, sim, que vos preciso falar urgentemente.

-- Sentae vos, pois D. Branca, e vós Frei João Marmelleiro. E dava-lhes as duas cadeiras.

-- Porém, Vós, haveis de ficar de pé?! disse Frei João, que olhára e não vira outra. Tomae a minha.

-- Sentae-vos, meu amigo, e deixae que eu aprume este corpo alquebrado.

D. Branca sentara-se de costas para a porta d'entrada e Frei João voltado para o centro da mesa, permanecendo D. Francisco de pé no topo fronteiro a D. Branca.

-- Não póde ser demorada esta visita, D. Francisco. Sabei que a justiça já conhece vossa innocencia, mas que são agora os vossos inimigos e vossos emulos, que vos preparam o maior damno. Além d'estes, feristes ha pouco em combate a...

-- A quem? exclamou D. Francisco anciosamente.

-- A el rei, D. Francisco! a el-rei! Fazei agora justiça a D. Branca.

D. Francisco levára as mãos á fronte e ficára silencioso, comprimindo n'ellas a cabeça escandecida.

-- Estou perdido! Conheceu me pelo trato como Polifemo as ovelhas. Não serei solto...

-- E poz-se a passear agitadissimo.

- Sereis. Agora que já conheceis o inimigo, vós, e nós todos que somos vossos amigos, trataremos de o vencer.

-- Inutil! disse desalentado D. Francisco. Demasiado o conheço. E queira Deus que após o carcere não venham os pós de Milão!... Estou perdido, meus amigos! Com D. João IV conspirarão os meus inimigos e a politica muliada dos jesuitas, com quem nunca jamais estive bem.

-- Não sossobreis, respondeu Fr. João Marmelleiro: promettei me que haveis de juntar aos nossos os esforços proprios, escrevendo a el rei.

-- Não escrevo! respondeu D. Francisco, exaltado.

-- Haveis de escrever! Sou eu que vol-o peço em nome de...

-- Suspendei, senhora condessa! exclamou D. Francisco. Prometter-vos que hei-de escrever a el rei não o faço eu, que promessas de quem não tem liberdade são como os pomos de Sodoma, fruta por fóra, cinza por dentro.

-- Mas são promessas de quem precisa sair d'esta prisão, acudiu o provincial dos Agostinhos.

N'este comenos volvia se a sonhar no leito o pequeno Jorge de Mello, e proferia o nome do pae.

-- Meu Deus! Quem tendes n'aquelle leito? exclamára D. Branca erguendo-se e correndo para alli.

-- Um filho do carcereiro que me é companhia na prisão, disse D. Francisco, interpondo-se.

-- Oh! Deixae me ve-lo! Quero vel-o! Quero ver o vosso companheiro! E approximava se do leito.

-- Porém...

-- Oh! por Deus! D. Francisco! Deixae-me ver esta creança! Exijo-o!

-- Olhae o que fazeis! disse D. Francisco.

-- Faço o que me ordena o coração de mãe! E passando por D. Francisco, caminhou precipite ao leito e descobriu o filho, cravando n'elle um olhar inexprimivel de dôr, de alegria, de ventura e de amor.

O provincial dos Agostinhos, confessor em Lisboa da condessa, tinha se erguido e não dava mostras de espanto com as interjeições de D. Branca, antes se mostrava contente seguindo a condessa com um olhar amoroso.

-- Ai! filho! Meu filho! exclama D. Branca na suprema ventura de mãe, abraçando e cobrindo de beijos o filho attonito, que acordára e estava sentado no leito.

-- Meu pae! quem é esta senhora que me abraça tanto? perguntou o pequeno Jorge.

-- É... E callára-se.

-- Dizei-lh'o, sim, pedia o provincial, deante d'aquelle quadro dos mais sagrados e grandiosos d'affeição maternal.

-- É tua mãe, Jorge!

-- Pensava que a não tinha! disse o pequeno, desviando se dos braços de D. Branca, pousando lhe as mãos nos hombros e pondo-se a olhar muito fixamente para ella.

D. Francisco e o provincial desviaram-se com as lagrimas nos olhos, emquanto D. Branca, n'aquelle esmaecimento d'alma, gosava n'uma acanhada prisão a suprema felicidade na vida!

N'isto rufavam lá fóra os tambores e vibravam as cornetas o toque do recolher. Era preciso sair

Assim é sempre na vida a ventura! Apenas antegostada e logo desfeita!

XXI

Morte violenta

São decorridos cinco annos, em que D. Francisco Manuel de Mello mudado de torre em torre, tem sentido escoar-se-lhe lentamente a vida na continnua agonia de nma innocencia castigada.

Nem os esforços dos homens de lettras de então, nem os da nobreza, cujo parente era, nem os escriptos famosos que lhe immortalisam o nome, inspirados do amor da patria nas prisões, são bastantes a abrandar a sanha de D. João IV!

Comprehende-se o effeito que no homem produza o rasteiro sentimento do ciume, mas não se admitte tamanha perseguição sem conceder ao rei instintos deshumanos e crueis, ferocidade até. Com que direito punia elle a um rival? Com o de D. João II, e mais longe o de D. Pedro I em punir adulterios? Mas se o adultero era elle? Mas se elle era o seductor da condessa de Villa Nova, que abusava do seu poderio de rei para a render! como da sua posição para inclinar a justiça contra D. Francisco! Triste manifestação da perfeição de, um principe, que tem de ser o paladino da redempção da patria, o modelo de virtudes civicas, o fundador, emfim, de uma dynastia em que já contamos os dois ultimos Pedros, heroes no valor e na virtude!

Deixemos, porém, estas considerações, e continuemos a nossa historia.

Voltára ao reino o conde de Villa Nova, D. Gregorio Thaumaturgo de Castello Branco. Nada ignorava elle ao entrar no Pateo das Columnas. Certeira lhe fôra parar á mão a informação rancorosa do seu assassinado mordomo. O astuto creado tudo havia descoberto! e tudo relatado!

Já desde Madrid se lhe enroscára no peito o demonio da vingança. Prevenido vinha para ella... Da mulher facil lhe seria o tomal-a; de D. Francisco vingado estava tambem. Restava pedir contas a D. João IV que lhe ennodoára o thalamo. Era caso mais serio, e tanto que o conde Thaumaturgo, depois de meditar no caso e de maduro pensar, resolveu perdoar a leviandade ao monarcha, que se deslumbrára com a belleza da mulher, parecendo lhe até bem, e mesmo honroso para si, que el-rei apreciasse a condessa, visto que elle não era dos mais finos amadores da feminina belleza.

Entrára em casa D. Gregorio dissimulado, e satisfeito mesmo, de modo que D. Brana se persuadiu sempre que o marido tudo iguorava.

Era, porém, percorrido o quadrante de seu amargurado viver!...

Dezoito annos havia que D. Branca dera o ser a Jorge de Mello, e que vira sair para o Brazil o amante idolatrado, agora captivo por sua causa, agora amargurado e desditoso.

Era na quadra das flores, na estação em que desabrocha a rosa, o jasmineiro e a madre-silva.

Por meia tarde do dia 29 de abril de 1649 saira triste D. Branca do palacio para o jardim. Assentára se descuidosa á sombra de um tufo de verdura e flores, que subindo por uma parede do palacio se debruçava de cima sobre uns murtaes do passeio.

Depois de permanecer algum tempo silenciosa e pensativa, tirou do collo aquella medalha conhecida do leitor, com o retraio do filho, abriu a, fixou-lhe as feições uma e muitas vezes repetindo egual e maior numero de beijos, até que de novo a occultou no seio formoso. Tirando depois de um bolço do gibão um macinho de papeis, a condessa de Villa Nova começou a percorrel-os e a ler alguns d'elles. Era o seu thesouro de amorosa adolescencia que D. Branca viera estender ao sol de abril; eram papeis de D. Francisco. E poz-se a ler:

Blanca de los cabos negros
Hermosos tan cabalmente
Que por esses negros cabos
Diera el rey sus cabos verdes.

-- Jesus! que fatal presentimento tivera D. Francisco! disse ella, continuando:

Lo negro sobre lo blanco
Nos pones discreta siempre
Que ai negro cabello mandas
Adorne la blanca frente.
Cabos que parescan hojas
Segun rajan, sogun hieren
No sabe el amor forjalos
Sin que tu beldad los temple.
Cabos no de finisterra
De fines cielo ser pueden
Porque en viendo los la vista
No ay mas cielo que desee.
Cabos de buena esperança
Tan poro me lo parecen
Pues que de vencerlos todos
Es fuerça se desesperen.
Dulce tempestad el alma
Corro entre elles dulcemente,
Desde el azavache en ondas
A las arenas en nieve.

-- Y a la campana en tenieblas! exclama de repente uma voz, por cima da cabeça de D. Branca.

Um calafrio espantoso tomou a condessa ao taes palavras ouvir, que mal pôde erguer-se, esconder machinalmente os papeis e fugir do jardim. Entrou no palacio assustada e pallida, como um cadaver. Áquella voz que não conhecera impressionou-a por modo, que apenas se achou junto a uma aia, lhe cahiu nos braços desmaiada.

A creada gritou, veiu outra, e ambas a conduziram para o leito proximo de sua camara, indo uma d'ellas chamar a D. Gregorio.

Este correu apressado; e vendo a mulher desmaiada, volveu a buscar-lhe um copo d'agua, que levou aos labios de D. Branca, recostada nos braços das duas aias. D. Branca ao beber os primeiros tragos desviou a cabeça, como quem se sentia agoniada; porém o conde, approximando lhe aos labios o copo, com prazer viu que D. Branca o esgotára.

-- Obrigada! exclamou ella, instantes depois, abrindo os olhos e fixando-os tanto, tanto em D. Gregorio, que este, ao ver aquelle olhar sereno, impassivel, penetrante, desviou d'ella o seu, dando alguns passos em volta do leito. D. Branca não o acompanhou com a vista: depois de ainda estar alguns segundos a olhar para o mesmo ponto cerrou-os de novo, e ficou-se ou dormente ou desmaiada ainda...

O conde sahiu, menos alegre do que entrára. Porque?

No dia seguinte D. Branca de Vilhena da Silveira, estava morta!... Era um cadaver aquella mulher formosa!...

Espalhou se a nova, commentou-se, e ás trindades d'aquelle dia a irmandade da Misericordia, cujo provedor era o conde de Villa Nova, acompanhava o esquife da condessa, fallecida aos trinta e seis annos de sua vida... á morada derradeira, ao palacio da morte, ao nada!...

Como flor mimosa, que sempre fôra na vida, D. Branca morreu na primavera das flores abertas, desfolhou-se á tarde como rosa desabrochada de manhã!

No logar vasio, que deixou, brotou para um filho a saudade das campas, e para o pae uma perpetua solitariedade d'alma!...

Que Deus pese em sua justa balança as faltas de D. Branca!

N'aquelle mesmo dia, depois de noite cerrada, entrava a Torre da Cabeça Secca o provincial dos Agostinhos, Fr. João Marmelleiro, e buscava na prisão a D. Francisco Manuel de Mello.

O provincial entrára triste, e triste o cumprimentára.

D. Francisco Manuel, que já sabia da morte repentina, ou pouco menos, de D. Branca, estava tão abatido e golpeado pela dôr, tão pallido e macilento que melhor parecia um moribundo do que um homem, que lhe deveria sobreviver a ella compridos e amargurados dezesete annos.

Aquelle encontro com ella no Paço da Ribeira ao cabo de fria ausencia accendera-lhe de novo a paixão que sempre lhe tivera, a despeito de tudo, como elle então escrevera:

Si a no mas de mostrarte poderosa
Blanca mandas que llegue a tu presencia,
Porque el alma outra vez, sin resistencia,
Rinda sus fuerças a tu vista hermosa!
O mudame el precepto; y generosa
El laurel, que te offerece mi obediencia,
A la candida sien de la clemencia
Sirvale de grinalda misteriosa.

Quando, decorridos annos, D. Branca o visitou na prisão, sem embargo do enorme desgosto que lhe causara no fatal encontro do Pateo das Columnas, sentira reateiar a labareda da paixão em seu peito amoroso, por modo que, olvidando o passado, D. Francisco só para ella vivia, só na mãe de seu filho pensava.

-- Já conheço a nova triste, amigo Frei João... Oh! mas dizei-me alguma cousa de tão fatal acontecimento!...

-- Só vos posso dizer, D. Francisco, meu amigo, que já não vive D. Branca, aquelle anjo de bondade e de doçura...

-- De que molestia falleceu, que tão subita nol-a arrebatou? perguntára D. Francisco.

-- Não sei, nem que o soubera o poderia dizer...

-- O que? Não poderieis?

-- Não, e não me façaes outras perguntas... Ouvi de confissão a D. Branca, e para cumprir sua ultima vontade aqui vim. Trago vos um legado de saudades. E dizendo, tirava da algibeira um embrulho, que lhe dava. Tomou o respeitosamente D. Francisco, e beijou-o arrecadando no peito.

-- Adeus, meu D. Francisco. Relevae que não vos faça companhia; mas, é que não posso estar aqui.

Ámanhã virei... Sêde forte como sempre o haveis sido. E apertando lhe a mão choroso e magoado. Frei João Marmelleiro sahiu da prisão, deixando D. Francisco a soluçar e a gemer.

«Dôr grande só com lagrimas se pinta». Bemditas sejam as lagrimas e ditoso quem as pôde chorar ainda, e não tem o coração esteril e árido como as areias do deserto, calcinado como vulcão extincto!

Depois de passeiar algum tempo, D. Francisco Manuel sentára-se á mesa, e começára a escrever:

«Para que eternamente circunstante
«En la memoria viva la memoria
«Estas letras tambien haran notoria,
«Como se fueran lagrimas, ó hymnos
«De mi eterno dolor la amarga historia.
«Apenas dá la aurora el primer paso
«Por los candidos parámos de Oriente,
«Quando avista las sombras del ocaso,
«Apenas el verano floreciente
«Viste de flor los campos, quando otubre
«Tyraniça los campos insolente.
«O meta inevitavel de ia vida!
«O deuda universal de la creatura!
«Deuda mayor pagada que devida!
«O tu mil vezes benaventurado
«Espirito feliz, que en alto assiento
«Por nueva obligacion vives llamado!
«A tu nombre immortal, quanto al tormento
«Casi tan immortal, de mortal hombre,
«Consagro este devoto monumento,
«Pyra a tu fama, y cantico a tu nombre!

Ao acabar de escrever, D. Francisco Manuel erguera-se e passeára agitado. Tinha-o salteado uma ideia, na verdade triste. Emquanto elle, vivo ainda, orphanado de D. Branca lhe escrevia um saudoso epicedio, baixava á terra o corpo esbelto d'aquella mulher encantadora!... Desapparecia para sempre aquelle astro, em volta do qual gravitara toda a vida; apagava-se, para não mais brilhar, aquella sua luz salvadora das tempestades da existencia!

Avergado á dôr profunda que o pungia, sentira se alquebrado de corpo e de espirito; e, buscando o leito, n'elle se deitára para descantar. Dez minutos depois, cedendo a uma prostração adormecêra.

As grandes dores moraes, se por vezes vem acompanhadas de insomnias terriveis, muitas outras são viva imagem da morte, na inacção a que reduzem o homem.

Uma hora depois a candeia vasquejava amortecida, para complemento lugubre d'aquelle dia de tristezas, e D. Francisco, ao derramar ella o seu ultimo lampejo, levanta se do leito com grande agitação febril, deita a mão da espada, e, no delirio, accommette dois pontos no vasio da prisão, em que a febre lhe apresentava dois inimigos, despedindo golpes a um e outro lado.

A luz extinguira-se: D. Francisco combatia sombras nas trevas da prisão.

Cançado do singular combate, extenuado pela febre e fadiga, D. Francisco caíra por fim no pavimento da cadeia, ao tempo em que o negro guarda da prisão, attrahido pelo ruido que ouvira e golpes despedidos nos moveis e nas paredes, apparecia á porta com uma luz na mão.

- Matei-vos, villanagem!... Vinguei te, minha Branca!... Taes foram as palavras que lhe ouviu o guarda. Pediu auxilio o negro, apparecendo um cossolete da guarnição, e conseguindo ambos deitar no leito o infeliz prisioneiro.

No dia segunte estava doente e era visitado do seu medico Manuel Boccarro Francez, que o leitor conhece já de Coimbra e de Lisboa.

XXII

O escriptorio do avarento

No dia seguinte, por nove horas da manhã, estava sentado junto do leito de D. Francisco Manuel o nosso conhecido medico Boccarro.

Não era perigosa a doença. Uma commoção violenta o tomára na vespera com febre e delirio, mas que passára com a noite, se não cabalmente, ao menos de fórma que pequena reserva deixara.

Boccarro, que mais entendia serem as melhores mezinhas as distracções, falou-lhe em lettras e na ida para o Brasil.

-- O que andaveis escrevendo agora, D. Francisco? D. João IV quer que eternizeis o nome nos escriptos e na injusta prisão que soffreis.

-- Comecei os Apologos, Agora, porém, doente e desalentado...

-- A doença passa, e o alento volta. Não escrevestes vós no Fenis d'Africa que las dichas llegaran a ser fastidio a no las templar el desastre?

-- É certo. Mas tambem lá disse que és la muger vida y muerte del hombre.

-- É. Convem, pois, recordar-vos o que ha pouco me lestes no Maior Pequeño: Consuelate tu, a quien la muerte arrevato lo mais dulce.

-- Gusano de si proprio, y de si proprio sepultura és nuestro pensamiento, meu caro physico, respondeu D. Francisco. Já vedes que não posso continuar a escrever: morreu-me o pensamento das lettras, e só ficou vivo o da saudade e o da injusta perseguição que soffro.

-- Erguei-vos, hoje como sempre o haveis feito. O tyranno pensa que opprime o virtuoso, e somente se opprime a si; porque ao virtuoso para coroa lhe sobra a virtude, que é vitupErio do tyranno: São idéas vossas, D. Francisco.

-- Haveis rasão, amigo Boccarro; mas ya la carne vencida está postrada, disse D. Francisco.

-- Mas não morta. E se é certo, como acceito, uma de vossas maximas, que mas vence el que se vence que quien todo lo mas vence, occasião é esta para vos mostrardes maior do que fostes na Catalunha e no Alemtejo.

-- Metralhaes-me com minhas armas, bem vejo, como vos concedo razão. Comtudo, veremos o que de mim exige esta carne amortecida.

-- Amanhã ou depois o não estará ella, respondeu Boccarro. Erguei-vos do leito, d'essa sepultura de vivos, que bem e muito bem vos fará. E adeus, que deveres do meu ministerio me chamam ao collegio de Santo Antão.

-- Quem esta doente alli? exclamou D. Francisco.

-- Um velho servidor, descançae.

-- Dizei ao Vicente de Gusmão Soares que traga o meu Jorge, e que venha até cá.

-- Sim, direi. Adeus.

E o auctor das Anacephaleoses, saiu, deixando o prisioneiro disposto a levantar-se.

Voltemos alli no dia seguinte. Mas o que é isto? Vasio o carcere? Fugiria D. Francisqo? Morreria? Nada é do que o leitor conjectura. Chegára ao prisioneiro ordem para mudar para a Torre de Belém, permissão que elle solicitára antes da morte de D. Branca, e D. Francisco, para evitar aquella masmorra, onde pela ultima vez vira a sua querida amada, cuja imagem lhe apparecia alli a cada momento, resolveu sair logo para Belem.

Pois vamos lá, que por bem pagos nos daremos o leitor e eu.

Salve! Atalaia da barra!

Sentinella do Restello

Padrão glorioso e bello

Da nossa gloria maior!

Desculpe o leitor esta saudação, que não posso eu esquivar me a dar-lh'a. Não posso, nem devo mesmo peneirar n'aquella formosa torre sem a saudar reverente, como outr'ora os galeões das Indias, como em volvidos tempos de nacional explendor os capitães portuguezes, que levavam o nosso nome às ignotas regiões; e traziam de lá para este occidental rincão do mundo as pareas de mil povos, a submissão de regalos, o dominio de terras não conhecidas.

Não posso. Dão devemos nem podemos deixar de respeitar n'aquelle monumento, o valor provado nas privações, a coragem nas lutas, a civica virtude de nossos maiores em todos os feitos preclaros, que no mundo obraram. Salvé! Symbolo da nossa gloria! Salve livro aberto em rendadas pedras das proesas de mil indigites, da nossa historia immortal!

Entremos agora. Melhor e mais condigna habitação tem n'ella D. Francisco Manuel. Alli lhe traz a brisa do mar alentos de vida ao peito opprimido; alli vê passar as naus portuguezas, que escurecem a fama da rainha do Adriatico; d'allí póde sandar a cada momento o pendão das quinas, pelo qual já combatera em terra e mar e alli continuar, melhormente inspirado, os seus trabalhos de historia, de moral e de litteratura.

D. Francisco já não está só. Sentado n'um escabello D. Francisco tem na mão um manuscripto, que lê a um individuo de nossas primeiras relações em Coimbra, a Gusmão Soares.

-- Formoso dialogo, D. Francisco! exclama Soares. Que titulo tem?

-- Escriptorio do avarento; mas não me interrompas. Escuta o Portuguez, e vê como conta sua historia.

«Eu era de quinze dias chegado á casa quando por contas ruins dos dizimes, ou dizimas, e eis aqui que dão com o meu dizimeiro em outra áspera prisão que a em que elle nos tinha, e bem julgado ou mal julgado em nove dias nós já eramos todos d'elrei; d'aquella terra (bofe que me esquece o nome), é verdade que (como ouvistes) eu fui creado em paços...»

-- Singular escripta é essa! interrompeu Gusmão Soares. Parece allusiva...

-- Ouve e cala, respondeu sorrindo, D. Francisco. E continuou a leitura:

«Tocou-me (como digo) a mim a sorte de emplasto na côroa do rei que estava fendida; e porque a mais fina desgraça é encontrar com os trabalhos pela mesma rua que outros topam com o descanço, deram em me gabar sobre os mais, afim de me derreterem e consumirem; mal estou com estes meus quilates, que de nenhuma outra cousa me servem que traze-me hypothecado aos perigos...»

-- Tem paciencia, meu D. Francisco, mas esse Portuguez que conta a sua historia ao Cruzado ao Vintem e ao Dobrão conta a tua historia, dissera Soares. És tu, forçosamente.

-- Forte capigorrão espantadiço me saiste tu! Deixa falar o Portuguez, que é de bom ouro, e já foi escolhido para remendar a côroa de um rei, disse D. Francisco a rir. E continuou lendo.

-- O Cruzado tambem me pareces tu, atalhou outra vez o padre Soares, depois de ouvir algumas respostas e falas das outras moedas.

-- Cala-te, meu velho sengo. Estás como os velhos a fazer reparos. E continuou a ler:

«Não faço senão gemer e chorar minha triste sorte; pois ao tempo que mil moedinhas falsas de por ahi além occupam as mãos do Príncipe e os olhos do povo, eu (pobre de mim!) sendo ouro fino de vinte e quatro quilates, me vejo preso, inutil e esquecido, sem ser visto dos homens que a necessidade me deu por creados...»

-- És tu, sim, és tu! E ralha se quizeres das minhas interrupções, dissera Soares.

-- Estás esgorjando por entender o caso. Escuta: «Dae-me comtudo vosso parecer e diga cada qual o que sentir; porque este estar sentindo e soffrendo as demasias dos homens, é cousa insoffrivel. Desde que tenho uso da razão discurso sobre este ponto, e quando me persuado que lhe descubro remedio então me parece mais cego ou duvidoso, sendo sem falta para mim este ponto, o ponto fixo dos mathematicos e philosophos, que quanto mais fixo se lhe offerece, então se mostra mais errante e equivoco do que nunca. Ás vezes, entendi que seria aproposito fugirmos do mundo e deixal-os a elles com elle, e sem nós, que não poderia haver egual vingança...»

-- Pensas bem, interrompeu o padre.

«Este é o meu cuidado, minha ancia e meu desejo e se vira isto remediado em meus dias, certo que tornára a remoçar de novo, e luzir como quando era mancebo.»

-- E não és tu! Ora sê franco, D. Francisco: tu quizeste lategar a teus inimigos, e buscaste a mais mimosa parabola que nunca vi, para o fazeres. Confessa.

-- Sou eu, sim, meu amigo, mas a ninguem o digas.

Como Lucas de Aguiar finge na vida alegrias, eu finjo-as n'estes apologos, respondeu o prisioneiro.

-- E não dás á estampa esse trabalho? perguntou Soares a D. Francisco.

-- Darei, sim, quando concluido, que mui longe o tenho do termo. Apenas conclui o primeiro apologo, sendo a traça da obra de mais folego. Falta-me a Visita das Fontes, Relogios Falantes, Hospital de Lettras, apenas delineados.

-- Põe teu cuidado em os começar e concluir, D. Francisco, que, se me não illude a amisade, esse livro será unico no genero, não só em nossos dias, mas muito além por esse futuro, disse Gusmão Soares.

-- Sinto-me desalentado, amigo, e tanto, que nem me atrevo a mandar a D. João IV a vida do pae, que em tempo me encommendára escrevesse. Aqui a tenho eu: queres vel-a? E abrindo uma gaveta tirou d'ella um manuscripto que deu ao padre.

-- Famoso trabalho é este, D. Francisco, dizia Gusmão Soares folheando o esmerado manuscripto. Porque o não mandas a el-rei?

-- Porque sinto remorsos em o fazer como arrependimento de haver escripto o Echo Politico. Não quero que a posteridade me apode de adulador de um tyranno inepto. Para ahi ficará ao destino, que o salvará da destruição, ou que o rasgará para embrulhos dos tendeiros da Rua Nova. Hoje, maiormente, depois que D. Gregorio matou a esposa, por causa d'elle, fôra grande indignidade em mim, offensa mesmo ás cinzas d'aquella martyr, adular um fraco rei que fez forte a fraca gente. Não quero manchar-me.

-- Respeito esses sentimentos, respondeu Soares; mas talvez que D. João IV abrandasse o rigor com que te persegue...

-- Nunca jamais mercadejarei a liberdade! Prefiro que os provindouros vituperem o rei e lamentem a victima, ao alcançar uma liberdade, que, já agora de nada me servira, comprada com a infamia, obtida sem dignidade.

-- Razão tens, conheço; mas o muito desejo que eu tenho de te ver livre de prisões, transigiu em mim com sentimentos de outra ordem, por modo que não me parecia desairosa a offerta.

-- Amigo, respondeu D. Francisco, má hora que tal faça! Pois que? Correm em meu auxilio quarenta homens de conta; confessam os assassinos de Cardoso que me não conheciam, e sou condemnado em custas maiores que os meus haveres e n'um degredo perpetuo! Que vergonha para um reinado de liberdade da patria! Que deploravel manifestação de integridade nos ministros da justiça! Que mancha indelevel nos arminhos da proterva realeza! Não, não quero commutações, não quero perdões, nada quero do duque de Bragança! Servi-o lealmente com a espada, defendi-lhe os direitos com a penna, firmei-lhe o throno com o conselho que me pediam, e no cabo arremessam-me para uma prisão, como alparca velha para um muladar! Amigo Soares, raras vezes hacen sinrason las raçones de un rey y raras veces son raçonables las raçones propuestas a un rey. Tenho isto para mim como grande verdade. Rei sem magnanimidade, ministros aduladores, generaes invejosos, justiça venal, vendas e subornos em todos, ahi tens meu amigo, a gente que cerca ao grande musico! Deixa-me fugil-os como a empestados. Deixa me ir acabar longe d'estes selvagens, que tudo me arrebataram, entre os da America certamente mais caroaveis, e, quando menos, mais justos.

-- Vae, sim, pois que o desejas, mas não te exaltes mais agora; peço-t'o, dissera Gusmão Soares.

-- Ponderas bem. Consideremos a lei como uma util necessidade: não lutemos mais. Dá porém, tu, que és padre e ministro do recto juiz, que eu empraze esse imbecil monarcha para o tribunal d'elle, como Jacques Molay ao infamissimo Luiz o Bello!

«Deus! cuja potestade reconheço no bramir d'estas ondas, que dia e noite me são eterno pregão de teu nome; na brisa do mar que me traz alentos novos ao peito enfermo; no canto do alcyon, que vem gemer nas ameias d'esta torre chamando-me á vida lamentosa dos tristes, acolhe, justo Juiz, minha appellação, attende a supplica de um innocente!

-- Muito bem; mas, não te exaltes mais. Socega ora, que lá vejo vir visita muito de teu contento.

-- Quem me busca?

-- É Jorge de Mello, teu filho. Guapo moço!

Vem cá, D. Francisco; vem vel-o coberto de armas reluzentes como tu foste n'aquella edade. Chega-te a esta janella.

E D. Francisco, indo á janella da torre, poz-se a contemplar o esbelto militar, imagem fiel do que elle fôra n'aquella epocha da vida, o qual se encaminhava para a torre, onde bastas vezes vinha estar com o pae desgraçado.

O padre Vicente de Gusmão Soares, porque os dois ficassem junctos, despedira-se. Façamos, nós, leitor amigo, o mesmo, e deixemos que o filho console o pae e d'elle receba necessaria e proveitosa instrucção.

O melhor mestre é o pae instruido.

XXII

Ultimos fins do homem

Esplende o dia quinze de abril de 1653. Eil-o outra vez mar em fóra o heroe d'este livro, demandando nas costas da America o desterro que lhe decretaram.

Por onze horas da manhã d'aquelle dia em que a egreja resa de S. Pedro Gonçalez, ou S. Telmo, dominico hespanhol, o santo protector dos navegantes desde o seculo XIII, sae a barra de Lisboa D. Francisco Manuel de Mello. Cobre lhe um veu de tristesa o rosto prematuramente desfeito por maguas dilacerantes. Como no anno de 1631, D. Francisco volve lá do extremo horizonte dos mares um olhar de profunda saudade para a grande cidade, que talvez, não mais visse, a que talvez não mais voltasse.

Que magua, ao ver indo lentamente desapparecer de suas vistas as torres de S. Vicente, como outr'ora, em que perto d'ellas lhe ficava o seu thesouro mais querido! Agora deixava alli, não a esperança, o amor a ventura mesmo, mas a morte d'alma, a saudade, um tumulo!... E o filho! E D. Jorge de Mello! o continuador do seu nome, a viva imagem de D. Branca de Vilhena!? Cá lhe ficava tambem!...

Em volvidos tempos despedira-se de Lisboa com o coração esperançado, agora com elle morto!...

-- Adeus, patria, que tanto amei! adeus, Jorge, meu querido filho! adeus, Branca tão minha, que me roubaram!

Na curva face das aguas o navio atufava-se no mar. Seria uma vida a sumir se na campa?

Á mesma hora em que saira de reino D. Francisco Manuel, passeiava n'aquella galeria sobre o Tejo, que já conhecemos nos Paços da Ribeira, el Rei D. João IV, D Antonio Luiz de Menezes, o ministro Pedro Vieira da Silva e o Bispo capellão-mór.

-- Estão, pois, concluidas as fortificações de Lisboa? perguntára D. João IV a D. Antonio Luiz de Menezes.

-- Ainda não, real senhor, mas adeantadas vão já. Depois que nos deixou Cosmander e que vossa magestade mandou executar o plano de D. Francisco Manuel, as obras soffreram notavel mudança, respondeu Menezes.

-- Desprezaram então alguns planos de Cosmander? continuou o rei.

-- Saiba vossa magestade que sim; por incompativeis com os de D. Francisco, melhormente traçados, algumas alterações houve no plano geral.

-- Estaria o Cosmander já vendido á Hespanha, quando para cá nos veiu? perguntou o rei a Pedro Vieira da Silva, com certa intenção, por ventura maldosa, visto que fora aquelle ministro quem mais consideração lhe dera. -- Se o estava, pagámos lhe bem em Olivença o serviço que nos fez! continuou elle. Não vos parece, D. Manuel da Cunha?

-- Deus castiga mesmo n'este mundo as traições dos homens e suas injustiças, respondeu o bispo.

Vieira da Silva não gostára da pergunta do rei, que envolvia implicita arguição, e censura, e folgou muito que o monarcha fosse pedir ao bispo a resposta final.

-- Que navio é aquelle que leva ferro, e do qual tantos barcos voltam para terra com gente? perguntára o rei, parando no passeio e attentando.

-- É um navio que leva do reino a vossa magestade um prestimoso vassallo, e valente servidor, disse D. Manuel da Cunha.

- Pois não temos nós muitos para os malbaratar. Quem é?

-- Sae para o degredo perpetuo D. Francisco Manuel de Mello... dissera o bispo com visivel pesar.

-- Ah!... exclamára o monarcha, tomando aspecto grave e ficando silencioso alguns segundos.

-- Não o sabia.... e tenho pena, disse D. Antonio. Foi infeliz!

-- Foi d'elle a culpa, accudiu o ministro.

-- Ou de outros, Pedro Vieira. Bem sabeis que se não provou evidentemente que D. Francisco mandasse matar. A justiça, porém, é cega e seus ministros não são Argus, respondeu o bispo.

D. João IV, no silencio que se impozera e que disfarçava no olhar fixo para os barcos, que voltavam com muitos homens e algumas senhoras da despedida a D. Francisco, estava incommodado com aquella nova. -- Seria já o remorso que lhe desse a primeira punhalada? Não só por nada mais dizer no caso e tentar desviar a conversa, como por não ouvir ao capellão-mór, que já começava a ser a voz do futuro, perguntou para os tres:

-- Conheceis alguns d'aquelles?

-- O conde de Caslello Melhor e D. Manrique da Silva, conheço eu, respondera D. Antonio.

-- N'quelle barco vem D. Rodrigo de Castro, D. João da Gama, D. João Pereira e D. Francisco de Sousa, accrescentou o bispo.

-- Eu só conheço o bispo fr. Dionysio dos Anjos e o arcediago de Valdige, disse o ministro Vieira da Silva.

-- Por mim só conheço Jacintho Freire de Andrade e o dr. Gregorio de Valcaçar, accrescentou por sua parte o rei. Muito custa a reinar! meus amigos. Vêdes? De que me serve o poder, se mais do que eu podem as nossas leis! D. Francisco tem muitos amigos e possivel é que volte ainda. Vamos ver se nos chegaram novas da guerra.

-- E depois de assim falar D. João IV desviava se d'alli, por não mais ver o navio que levava D. Francisco Manuel. Seguiram n'o os tres; o futuro marquez de Marialva scismando em que el rei deixasse sair do reino um homem de quem mesmo da prisão acceitara os relevantes serviços, o bispo capellão-mor temendo o castigo de Deus para o rei cruel e deshumano, e Pedro Vieira da Silva satisfeito por se ver livre de um importuno.

Decorreram annos. D. Francisco no desterro conclue os Apologos Dialogaas e todo se devota as lettras, onde encontrava a melhor guarida, e D. João IV em Lisboa era salteado de doença, que o matou na edade de 52 annos.

Dão se casos n'esta vida transitoria para muito pensar e repensar. Como Filippe o Bello, o barbaro, o inhumano assassino dos Templarios, que nem mesmo em Voltaire acha desculpa nenhuma, havia seguido ao tumulo ao cabo de um anno ao grão mestre Molay que o emprasara para o tribunal divino, D. João IV sentia os rebates de morte prematura, depois que D. Francisco o emprazara tambem para o tribunal de Deus, ao ter de fugir a patria e o filho para o exilio do Brazil!

Desviando se, comtudo, do paralello, D. João, golpeado do remorso, soffria havia já tempos a morte lenta do condemnado quando falleceu em Lisboa, sobrevivendo-lhe largos annos ainda a victima desventurada! E não haverá n'isto a justiça divina? É caso para scismar inda o mais incredulo.

Outro facto suecede agora de singular consequencia. Condemnára a sentença iniqua em degredo perpetuo para a Africa a D. Francisco, depois commutado com a mesma perpetuidade para o Brazil.

Apenas porém, D. João IV expira, e sem que houvesse outra sentença, D. Francisco Manuel de Mello é posto em liberdade e volta ao continente nos fins de 1657!

Ahi se patenteia, pois, a toda a luz o perseguidor do grande homem, o vingativo monarcha, a quem o destino escolhera para dar o seu nome aos esforçados cavalleiros de 1640, aos conspiradores immortaes!

E sempre assim topamos o homem! As perfeições do espirito inquinadas sempre!

O scepticismo das proeminencias do espirito humano chega por vezes a apoderar-se do meu espirito, quando seriamente attento no homem.

Cinco annos volveram mais, em que D. Francisco ora vive em Lisboa, ora na sua quinta de Entre ambos os-rios junto ao Porto, entregue ás lettras, seu enlevo mais querido, depois da morte de D Branca.

No anno de 1663 D Francisco deixa Portugal e viaja por França e Roma até ao de 1666, em que volve á patria, deixando por lá impressas suas obras já em Roma, já em França.

Era por setembro. Avisinhava-se o outomno, vinha perto o inverno.

Buscavam as andorinhas o céu e clima da patria, e D. Francisco Manuel que na França presentira a approximação do da vida, explicava as azas como ellas, e demandava o patrio ninho, o abrigo derradeiro entre os seus, que na vida muito amára.

Ai! mas andorinhas vão para voltar na primavera seguinte e D. Francisco Manuel vem para a habitação da morte, d'onde só espirito immortal surge triumphante do nada! Para a vida do corpo não ha resurreição da campa na terra que habitamos, hospedei de um dia, fumo que passa, sonho de sombra!...

Buscou o ninho da quinta de Alcantara, doente e triste, e só!...

Prendia-lhe a guerra o filho nos combates. Nem elle, a creança feita homem, continuador do nome immortal de seu pae, filho querido da malaventurada D. Branca de Vilhena, nem elle ao pé de si, para o consolar nos extremos momentos! Lucta com a morte energico e corajoso como com a desgraça, que sopeiára sempre. E sem ninguem!... Que tristeza!

Outubro entrara lugubre, envolto em nuvens negras, em tempestades, em chuvas violentas. Negras nuvens lhe toldavam a elle o peito, tempestuosa lhe era a pouca vida que tinha, lagrimas de saudade lhe vertiam abundantes os olhos macerados pela dôr!

A sombra do gnomon approximava se no quadrante de seus dias amargurados da ultima hora da sua vida...

Ao romper da aurora do dia 13 de outubro de 1666, quando as aves acordavam para a vida com gorgeios alegres e trilos festivos de graças ao creador, o espirito sublime de Francisco Manoel de Mello voava nas azas de Deus ao seio immortal, deixando aos gusanos da terra o involucro destructivel, o corpo myrrado, o nada!...

As trindades d'aquelle dia a irmandade de S. José de Ribamar acompanhava o feretro do grande homem, levado á mão por seis amigos, atraz do qual ia o padre Vicente de Gusmão Soares, á morada extrema em sepultura raza.. .

Descança em paz, espirito sublime, martyr silencioso, victima sem queixas da prepotencia dos homens!

Justiça te será feita no tribunal do Altissimo, plena satisfação te dará sempre o homem culto e virtuoso, relendo á farta tuas obras immortaes, inspirando se do teu espirito sublime, aprendendo de ti a phrase genuina, a expressão apropriada, a pura locução portugueza, e não menos a amar, a sentir e a soffrer as inclemencias da vida, as injustiças dos homens!

FIM

Appendix A

Note:

Não tenho á mão o Pavilhão Negro: cito de memoria e talvez mal


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