LUÍS DE MAGALHÃES

O BRASILEIRO SOARES

prefácio e actualização de texto de

CLARA CRABBÉ ROCHA

I

A Eça de Queirós, meu mestre e meu amigo

Joaquim Soares fora para o Brasil aos quinze anos. Seu pai, lavrador em Bouças, tinha na Baía um irmão, que ia fazendo fortuna. A esta família dos Soares, na Guardeira, sua aldeia natal, chamava o povo os Soares da Boa Sorte. Com efeito, filhos de um jornaleiro da quinta da Cardenha, todos prosperaram e enriqueceram. O pai de Joaquim Soares, rendeiro de uns pequenos bens quando casara, conseguiu ao fim de vinte anos de trabalho comprar a herdade que cultivava, e ficou proprietário de umas terras que, bons por maus anos, davam de vinte a trinta carros de pão. Um irmão deste, com a ajuda do Sr. Morgado da Cardenha, fez-se padre e ficou sendo o capelão da casa. O terceiro foi para o Brasil à aventura; porém com tanta felicidade que, pouco tempo depois, morrendo-lhe um patrão que não deixava filhos, casou com a viúva deste, cujo negócio de secos e molhados tinha uma certa importância entre o pequeno comércio da Baía. Era tudo gente remediada.

Joaquim Soares foi, pois, para casa desse tio, como marçano. Ao tempo da sua partida, quando os pais o foram despedir a bordo da galera América, ele era um minhoto atarracado, de largos ombros, bíceps de atleta, tórax saliente, e o pescoço curto e grosso, como o dos valentes bois do Borroso. A cara tinha a expressão vulgar e trivial da raça: más feições, muito cabelo numa grenha áspera e curta, e esses dentes pequenos, iguais e sólidos do campónio, que parecem feitos para rilhar a côdea da broa. Era trigueiro e feio: a barba mal lhe apontava; sobre o lábio grosso negrejava apenas a farrusca do buço penugento; mas no seu olhar havia um não sei quê de bondade infantil, que atenuava o aspecto desagradável dessa face quase alvar -- de nariz chato e arrebitado, com narinas de bulldog, de boca grande, fendida rectamente, e de enormes bochechas de uma saúde exuberante de sanguíneo.

Na Baía o tio Manuel explorou-o como um escravo. O rapaz era de uma bondade, de uma submissão, que o recomendavam muito especialmente ao seu egoísmo especulador. Assim todo o duro serviço da loja lhe caiu às costas, e a cada instante via-se ao fundo da baiuca o vulto do pobre marçano, curvado, derreado, transportando aos ombros os grossos fardos de géneros.

Mas um dia chegou-lhe finalmente o tempo de ganhar. Subira um posto: era já caixeiro. O tio deu-lhe então um quarto melhor, tirou-o do vão de escada infecto e escuro onde o alojara até ali. E foi esse o seu primeiro dia alegre naquela longa clausura de anos, passados no fundo sombrio do armazém, como num cárcere onde o amarrasse a grilheta do trabalho. A vida sorria-lhe um momento, e mal se imagina a viva comoção, a alegria sincera, com que ele guardou no escaninho da arca a primeira moeda de prata que recebeu do tio. Até lhe parecia que a grosseira imagem litografada de S. Joaquim, seu patrono, que a mãe colara no interior da tampa, ao guardar-lhe a roupa, tinha abençoado com um sorriso esse primeiro troféu da sua luta pela riqueza!

Coisa de um ano depois, o tio, que já sofrera em tempo um leve ameaço de paralisia, sentiu-se perturbado uma tarde, ao erguer-se da mesa. Custava-lhe a falar, e todo o lado direito insensibilizara-se de repente. Um médico, chamado à pressa, confirmou a hemiplegia, dando porém esperanças de melhoras. Contudo durante alguns dias foi difícil compreender-lhe a fala entaramelada, e teve de recolher-se ao quarto, abandonando de todo a loja, cuja direcção ficou a cargo de Joaquim Soares, então seu primeiro-caixeiro. Esta gerência durou mais de um mês; mas em todo esse tempo não houve a menor alteração no movimento comercial da casa. Nem bulhas entre os marçanos, nem queixas ou reclamações dos fregueses, nem irregularidades de escrituração. Tudo em perfeita ordem, tudo no mais escrupuloso e completo arranjo. A marcha habitual daquele negócio rotineiro, sem as aventuras da alta especulação, continuou monotonamente sob a gerência de Joaquim Soares. E nesta administração de poucas semanas, nalgumas compras importantes, nalgumas vendas por junto a comissários que iam mercadejar, o rapaz mostrou uma disposição prática para o comércio, aliada a um espírito de probidade, que fez pasmar o Lucas Pinto, negociante de panos crus e chitas, antigo íntimo de Manuel Soares, e por este encarregado de deitar os olhos sobre os negócios mais importantes da casa, entabulados ou resolvidos por seu Sobrinho.

Mudou subitamente, depois disto, a atitude do tio para com ele. Manuel Soares ficara arrasado, sofrendo sempre, movendo-se a custo, tomado a miúdo desses acessos de irritação que a imobilidade forçada produz nos génios activos. Não podia sair do quarto, e gradualmente foi abandonando toda a gerência do negócio ao sobrinho, que começou então a mandar no estabelecimento como verdadeiro patrão. A loja prosperava, as vendas por grosso e as comissões ao interior cresciam, a ponto de ser preciso abrir novos armazéns para o negócio de exportação que a casa começava agora a fazer.

Naturalmente Joaquim Soares esperava ser o herdeiro do tio; mas no seu espírito bondoso, recto e modesto, isto não era uma ambição: era uma simples probabilidade dos acasos da vida e da ordem natural das coisas. O tio estava viúvo e sem filhos: os seus únicos herdeiros eram os irmãos -- o padre e José Soares, o pai de Joaquim. Estes iam em bom caminho de fortuna e achavam-se há muitos anos separados do irmão: Joaquim Soares contava pois com toda a casa, como que por um dever de afecto e até de reconhecimento da parte do tio.

Entretanto o velho Soares, recolhido ao quarto, pregado a uma cadeira como a um potro de martírios, piorava com os anos. Era apenas a sombra do que fora, e a sua existência esmorecia lentamente como uma luz que se extingue. Um dia sentiu-se pior, e percebeu que morria. Quando o sobrinho veio ao quarto, à noite, depois de fechada a loja, disse-lhe em voz sumida, mas sem comoção e com a maior frieza:

-- Isto está por pouco... Naturalmente não passo desta noite... Se eu morrer, toma conta no que por aí encontrares. Cautela com os amigos... Há aí um testamento na minha secretária particular... Não confies as chaves a ninguém.

Joaquim Soares quis ficar ao pé dele. O velho recusou secamente.

-- É escusado. Vai deitar-te. De manhã encontraram-no morto na cama. Expirara como vivera, unicamente consigo, desligado de todos os corações e de todos os carinhos -- sem um beijo respeitoso e algumas lágrimas quentes nas suas mãos geladas. Joaquim Soares, só depois de dispor todas as coisas para o enterro do tio, pensou no testamento. Contudo, à sua abertura perante as testemunhas legais, sentiu-se abalado por uma estranha vibração nervosa. Teve um palpite, um palpite repentino de uma grande desilusão. Mas serenou imediatamente, seguro no seu desinteresse e na paz da sua consciência honesta.

O testamento era lacónico: uma página apenas de papel selado, onde depois do longo cabeçalho do estilo se consignavam estas simples disposições:

Deixo todo o activo e passivo de meu negócio, mais todos os papéis de crédito e dinheiros à ordem, e tudo quanto em minha casa for encontrado, bem como a dita casa e todas as mais propriedades e bens que possuo, a Manuel Ribeiro Antunes, filho de Ricardina Antunes, desta cidade da Baía, e presentemente residindo no Rio de Janeiro, o qual reconheço por meu filho, e constituo meu único e universal herdeiro, com a obrigação dos seguintes legados:

A Lucas Pinto, meu antigo companheiro, o meu relógio de ouro e corrente;

A meu sobrinho e caixeiro Joaquim Soares, como lembrança dos bons serviços que prestou ao meu negócio, os meus botões de ouro de camisa.

E mais nada! Ao princípio Joaquim Soares ficou como assombrado. Ignorava completamente que seu tio tivesse um filho natural-- segredo absoluto, que nunca suspeitara. Sentiu então um primeiro movimento de revolta. Doze anos de dedicação, de trabalho violento e contínuo, de zelo, de cuidados, de sacrifícios pessoais, com um ordenado miserável -- tudo isto pago com uns botões de oiro que não chegariam a valer duas moedas fortes! E nem uma expressão de sincera estima, de gratidão, de afecto! Nem no último dia da sua vida uma palavra ou gesto, que lhe traduzissem um sentimento qualquer da parte do homem a quem ele sacrificara durante tanto tempo o avanço do seu futuro comercial!...

Mas depois reflectiu. Pensou no facto da existência de um filho, nos deveres da paternidade, nos direitos da filiação... E em pouco tempo na sua alma bondosa e indulgente, sempre aberta à piedade e sempre pronta à resignação, o acto do tio mostrou-se-lhe sob um outro aspecto: era o cumprimento de um dever, a aceitação de uma responsabilidade. E por isto explicava a secura aparente, a indiferença afectiva do tio nos últimos momentos: não o quisera iludir sobre a sua sorte no testamento; sacrificara o coração às exigências do dever moral!... E foi cheio de lágrimas que, antes do saimento, se debruçou sobre o esquife para lhe beijar pela última vez a mão.

II

Lucas Pinto procurou-o ao outro dia de manhã cedo. Joaquim Soares, todo vestido de preto, com colarinhos de merino, apareceu-lhe de fisionomia abatida -- muito pálido e os olhos inchados e vermelhos de chorar. Estava no escritório, fazendo a correspondência.

-- Você já trabalhando, Soares?! -- disse o negociante ao entrar.

Era um homenzinho magro e sumido, de raros pêlos ruços, olhar azul de uma mobilidade desconfiada e cobiçosa, nariz adunco, e a espinha curvada da assiduidade à carteira. Havia um misto de covardia e inveja na sua face cadavérica, onde a fisionomia oscilava entre a expressão do medo e da perfídia -- esse aspecto clássico dos avarentos, de feições secas e amarelentas, como as efígies cunhadas no ouro das suas moedas. Agitava-lhe o peito uma tosse seca e áspera, que se confundia às vezes com o seu riso entrecortado, sem expressão de alegria; e as mãos, de uma magreza esquelética, tinham nos dedos uma curva de garra, uma crispação rapace -- como a de um milhafre que descobre a presa. Sórdido, com uma velha sobrecasaca puída e coberta de nódoas, uns enormes sapatos, empoeirados ou enlameados segundo a estação, e na cabeça encasquetado um grande chapéu de palha gorduroso e sebento, o Pinto das chitas arrastava-se de loja em loja, nas vizinhanças do seu estabelecimento, apoiando-se a um guarda-sol de gancho, imprevisto e traiçoeiro, salteando os segredos do comércio, escutando à porta dos escritórios antes de entrar. Uns temiam-no, outros odiavam-no. E ele com a sua cobiça de usurário e o seu prazer de tiranizar e ter na mão a vida alheia, insinuava-se, oferecia os seus serviços para os negócios que surpreendia ou adivinhava, e, uma vez cravada a garra nos bens das suas vítimas, martirizava-as com todas as pequenas opressões mesquinhas da agiotagem -- os vexames de hipotecas, penhoras, citações, protestos de letras -- rejeitando com inflexível dureza rogos, súplicas ou propostas de acomodação. Engolira assim os primeiros lucros de empresas nascentes, muito negócio em prosperidade, muita pequena fortuna acumulada nas lutas de um comércio honesto. Era riquíssimo, mas chorava-se sempre; e o seu negócio das chitas, rotineiro e medíocre, era a máscara humilde com que disfarçava a sua alta condição monetária na aventura desse latrocínio legal da usura.

-- Você já trabalhando, Soares? -- perguntou o velho. -- E não tenho pouco que fazer, Sr. Pinto -- respondeu o caixeiro. -- Há dois dias que não vejo a correspondência; há aí facturas e encomendas a aviar... E depois o testamento do tio põe-me às costas uma enorme responsabilidade... Não sabe nada? Pois aí o tem. Leia.

O Pinto leu avidamente. Ao meio do testamento empalideceu, soltou um oh! de assombro e fitou o caixeiro.

-- Leia -- repetiu este sereno. O usurário correu trémulo as últimas linhas. No fim deixou cair o papel sobre a carteira de Joaquim Soares, com um ar abatido e desconcertado.

-- Ora esta, Soares! -- murmurou entre dentes.-- Quem se lembraria disto? Quem pensaria tal de um homem como seu tio? Que traição, amigo!...

E realmente o Pinto considerava uma traição este testamento do seu velho companheiro, porque Soares tinha sido, de todos os pequenos comerciantes da Baía, o único que conseguira prender a estima do avarento. Esperto, manhoso, egoísta, soubera-o evitar. E no fundo o Pinto sentia uma certa admiração por esse homem de um sagaz instinto de raposa, que escapara às malhas da sua rede de agiota, desse homem que vivera sempre explorando os outros, com um poder de dominação insinuante e uma previdência velhaca, pouco vulgares. Em rnais de uma ocasião o Pinto fora o instrumento das suas manhas. Ele alugava-o pelo resultado financeiro do negócio, e atrás da porta via os seus rivais esperneando na ratoeira do terrível prestamista. Entendiam-se, no fim de contas; mas no íntimo dessa ligação aparente os seus egoísmos, duros e ásperos como pedras, não se fundiam nem ligavam. Assim, morto o homem, na alma do Pinto acordavam os instintos da sua eterna fome de ouro, e encolhido, desconfiado, aproximava-se ao cheiro do espólio, com a sua marcha oblíqua de hiena que pressente um cadáver.

Não tendo conseguido apanhar o tio, lançava agora as suas vistas sobre o sobrinho recém-ricaço.

Aquela leitura deu-lhe em cheio no coração, como um tiro à queima-roupa. E trémulo, pálido, o olho azul com uma cintilação de ódio impotente, resmungava entre dentes palavras soltas de desapontamento.

-- O filho... o filho da Ricardina. Ora quem se lembrava já do filho... E era dele?!... ah! ah! (casquinava a sua risada seca). Dele, ou de outro... vão lá sabê-lo. Um bandalho de porta aberta... Este testamento é uma traição, Soares!

Mas Soares, ignorante de toda a intriga em que o Pinto o iniciava por estas expressões soltas e que lhe revelara o testamento, instou para que o esclarecesse:

-- Explique-me isto, Sr. Pinto. Quem é essa gente, este filho, esta Ricardina Antunes? Que segredo era esse tão guardado, que nunca o suspeitei, vivendo há tanto tempo na companhia do tio?

-- Coisas velhas... rapaziadas -- respondia o outro com azedume. -- É no que dão as asneiras de outro tempo. Sirva-lhe de lição, a você que é moço. -- Foi há bons vinte e seis anos essa história; uma amigação dos diabos com uma mulher que para aí houve, uma desavergonhada de uma viúva que vivia com todo o mundo. Soares era um babado com mulheres; mas, como esperto, foi sempre por elas que se fez gente. -- Isto aconteceu antes do casamento.

E com dificuldade, emendando-se a cada instante, lá reconstituiu a história desses amores do seu amigo.

Fora uma ligação trivial com uma pobre mulher perdida, viúva de um velho funcionário do império, que em paga de mil infidelidades lhe legara uma fortuna razoável. Soares aproveitando-se da sua conhecida fraqueza, dessa facilidade com que ela recebia todos os homens como uma fêmea roída pelo cio, atracou-a uma vez à má-cara com a brutalidade de um soldado em dia de saque. A mulher cedeu, receosa, vencida por aquela imposição violenta; e durante anos ele explorou-a dissipando-lhe os últimos vinténs, para a abandonar por fim, com um filho, quando morrendo o seu velho patrão, o Sousa, lhe sorriu o plano de apanhar-lhe o espólio casando-se com a mulher, uma velha ignóbil, quase demente, de quem depois ficou herdeiro. Abandonada, a Ricardina saiu da Baía com o filho, seguindo um outro homem, e lá morreu por longe deixando o pequeno ao desamparo. Soares nunca quis saber dele. Muitos anos depois, contudo, viu o seu nome firmando artigos e poesias em vários jornais do Rio. O rapaz, começara a vida como tipógrafo, desenvolvera ao contacto dos livros e dos trabalhos de oficina um talento literário prometedor. Mas o pai, homem bronco e prático, que a respeito de letras só admitia as de câmbio, convenceu-se logo de que o filho dera num gazeteiro, num pelintra, e votou-lhe desde então um profundo desprezo, sobre o desamor que já lhe consagrava. E se algum assomo de remorso lhe feria a consciência, resmungava sempre enfastiadamente:

-- Ora... que se arranje! Não estou para sustentar malandros...

Foi esta história, cheia de episódios e peripécias, que o Lucas contou, já com grandes hiatos de falhas de memória, já com os pequenos detalhes que muitas vezes surgem no espírito repentinamente, depois de anos de um completo esquecimento.

O que eles não souberam porém explicar foi o reviramento súbito dos sentimentos do velho Soares para com esse filho natural. Talvez um conselho secreto de amigo? Talvez um remorso ao pressentir um fim próximo? Talvez uma transigência de católico medroso receando um juízo supremo, e combinando o seu egoísmo de vivo com a sua salvação de morto, em detrimento do pobre sobrinho que o servira como escravo?... -- Não percebiam, não penetravam esse mistério.

-- Mas que trapalhada, Soares! -- exclamou o Lucas Pinto num visível descontentamento.

-- Não há trapalhada nenhuma, Sr. Pinto -- respondeu serenamente o caixeiro. -- Tudo se reduz a eu participar ao herdeiro o falecimento de meu tio e as suas disposições. Depois ele que venha tomar conta do que lhe pertence... -- E cumprir os grandes legados!... -- concluiu o Pinto oom azeda ironia. -- Na verdade, Soares, sempre ambos merecíamos mais alguma coisa a seu tio... Deus lhe perdoe à memória, mas não é por este testamento que ele há-de entrar no Céu... Foi um grande ingrato, na verdade... Joaquim Soares levantou-se tranquilamente e disse, de um modo firme, numa voz em que transpareciam vibrações de sincera dor:

-- Ó Sr. Pinto, ainda não há um dia que o corpo de meu tio deixou esta casa, que era sua, e eu exijo que, boa ou má, a sua memória seja respeitada aqui, como se ele fosse vivo. Meu tio tinha bens, e portanto o direito de dispor deles como quisesse. O que mandou será cumprido. -- Mas esquecer-se assim de você, que foi aqui o seu escravo durante doze anos... esquecer-se de mim...

-- Basta, Sr. Pinto -- tornou um pouco mais exaltado Joaquim Soares. -- Peço-lhe o favor de não insistir em tal ponto. O procedimento de meu tio é o de um homem de bem: aceitou uma responsabilidade... os encargos que lhe resultavam de um passo errado. Este testamento absolveu-o do antigo desleixo dos seus deveres de pai, absolveu-o das suas culpas e dos seus erros. Repito que há-de ser fielmente cumprido em tudo o que depender de mim. Para recordação da sua memória basta-me a lembrança que me deixou... Não tenho alma de invejar o pão alheio, nem ponho preço à minha amizade como às sacas de café... -- Mas, homem, olhe ao menos para si -- dizia Lucas Pires desnorteado. -- Que diabo! Não seja criança, homem!... Você tem vinte e sete anos e por única fortuna o bem de Deus! Que quer você fazer, Soares? Quer recomeçar todo o seu trabalho, ficar na piolheira do balcão? Ser para aí um burro de carga toda a vida? Não seja criança, já lho dise... Trate de si, homem, trate de si...

-- Que trate de mim?! -- interrogou Joaquim Soares, sem compreender o sentido das palavras do seu vizinho. -- Mas é o que vou fazer: trabalhar por minha conta, procurar capitais com o crédito que tenho, estabelecer-me...

O negociante de panos fitou-o com firmeza e com esse olhar de profunda análise, da análise implacável que dão a experiência da realidade e a educação da luta brutal dos interesses.

-- Isso é o sonho de vocês todos! Estabelecerem-se... estabelecerem-se!... Criancices, amigo! Se você visse o que eu tenho visto, se conhecesse como eu o negócio, não se prendia nessas teias de aranha. Isto de comércio vai uma desgraça! Não se dá um passo; não se sai da cepa torta, Soares. Conte-me disso a mim, que há quarenta anos me vejo metido nesta vida. Olhe o que eu tenho andado: ganho apenas para comer, meu amigo, apenas para comer... E este é o negociozinho certo, a pingadeira de todos os dias. Porque lá esas altas empresas da moda -- lérias! Veja você o que por aí vai: quebras e mais quebras... Não se entra para isto sem fundos, Soares, sem fundos próprios, porque o crédito -- olhe que isto é verdade -- não passa de uma invenção do Diabo: serve só para tentar e para perder. Fundos próprios, Soares: este é que é o caminho seguro!... Sem isto nada. Eu sempre pensei que seu tio o deixasse herdeiro, e vinha propor-lhe um pequeno negócio. Assim...só lhe digo que pense na sua situação e que se decida quanto antes... sem perder tempo...

-- Que me decida a quê, senhor? -- perguntou o caixeiro meio intrigado, meio duvidoso, na sua ingénua boa-fé, sobre o sentido daquela advertência.

Lucas Pinto fez uma pausa. O seu olhar tomou uma vivacidade mefistofélica. A cobiça, a febre do ouro, a rapacidade ingénita do seu carácter, como que lhe saltavam da vista em chispas infernais. Dir-se-ia o Tentador numa prosaica encarnação de burguês patife.

-- Homem, sejamos francos! -- continuou, passado um instante.-- A vida tem necessidades que você desconhece, na sua boa-fé de rapaz, necessidades a que não se resiste, Soares... O mundo é assim, e não fui eu que o fiz. Não seja tolo, não deixe fugir as ocasiões!... Olhe que mais tarde arrepende-se. Bem sei que se fala, se diz... etc. e tal. Lérias, lérias, amigo, histórias! Palavreado dos que não podem -- e nada mais! Todos somos o mesmo, bem no fundo, creia isto; e mais tarde ou mais cedo vimos a cair na realidade das coisas... Se você visse o mundo como um homem, sabe o que fazia?...

Soares, cada vez mais perplexo, fitava-o, mudo, com um aspecto de idiota, de pé e as mãos apoiadas sobre a banca. O sangue afluía-lhe apopleticamente às faces. Lucas Pinto media as doses do veneno que pensava infiltrar no juízo do caixeiro. Supunha-o um pobre diabo fraco, inexperiente e maleável. E por lhe desconhecer a obscura hombridade, a íntima energia moral, contava com um triunfo nesta traficância, proposta quase a descoberto, sem a sapa lenta e cautelosa das longas intrigas. Por isso aclarava o seu pensamento, desmascarando o conselho, abandonando gradualmente o tom vago e sibilino do seu discurso.

-- Se você visse o mundo como um homem, sabe o que fazia?... Ia-se prevenindo...

Outra pausa.

-- Sim, ia-se prevenindo... Deixe-se de contos: não seja criança. (Uma tosse seca agitou-lhe o peito.) Veja se é de justiça que, depois de servir tantos anos o seu tio, fique para aí sem um real, sem nada de seu próprio para começar a vida... E o outro de quem ele nunca fez caso, e a quem nem o seu nome quis dar, há-de vir aqui e, sem mais razões, meter às algibeiras os contos de réis que você juntou trabalhando como um mouro; porque a verdade é que esta casa só foi casa depois que o negócio lhe começou a correr pelas mãos...

-- Mas então entende que eu devo intentar um processo contra o herdeiro?...

-- Um proceso! Que ideia! Um processo, sim... mas sumário! De que lhe valia a você uma questão nos tribunais? Está aí o papel legal registado nas notas de um tabelião. O que se não sabe é o total da fortuna, o que se não conhece é o dinheiro que aí está dentro, nem o movimento da casa... Papéis, letras, propriedades, tudo isso está nos livros dos bancos e dos negociantes, nos registos públicos. A escrituração da casa e o cofre, porém, estão na sua mão... É ter a faca e o queijo!... Ande, homem, não seja tolo. Veja as coisas como elas são... Que diabo! A vida tem destas necessidades, o comércio tem destes casos, como já lhe disse... Você não conhece o mundo.

Cego de uma cólera negra, quase perdido de cabeça, o pacífico Joaquim Soares oscilava entre a indignação da sua honradez e a tibieza do seu ânimo. Descomposto de feições, rugiu esta pergunta, num tom cavo de raiva surda, onde ia toda a sua repugnância à tentação abjecta do traficante: -- O senhor aconselha-me que roube!...

-- Que roube! Bem digo eu que você é criança!... Roubar a quem? A seu tio, que está morto? Ao rapaz que não tem nada?... Homem essa é boa!...

Este ponto de vista de uma subtileza cínica sobre um tão miserável crime, desnorteou de todo o espírito fraco do bom caixeiro.

Lucas Pinto pensou-o dobrado e vencido, e julgou conveniente aproveitar o momento.

-- Soares, a coisa faz-se entre nós, sem que o mundo o saiba... Um jeitinho aos livros, uma sangria à burra e ninguém fica mal... O rapaz não perde, pois que ninguém perde o que não tem; e de resto muito lhe fica, todo o negócio, todas as letras, propriedades... Seu tio só precisa agora da misericórdia de Deus... Você escusa de se acabar mais tempo nessa vida de negro que tem levado... e eu pelo meu conselho só lhe peço que me ajude num negociozito que nos pode render bom dinheiro...

Era muito. Joaquim Soares tremia, pálido, lívido, da indignação que o dominava. Percebera, por fim, a manobra do seu vizinho e às últimas palavras dele, fora de si, como um louco furioso, deitou-lhe ao pescoço as suas grossas mãos cabeludas e duras e levou-o adiante de si até à porta do escritório, contra a qual o entalou.

A cólera explodia-lhe em insultos entrecortados. -- Ah! seu desavergonhado!... E isso não é roubar!?... Olhe que o desfaço, seu grande canalha!

-- Aqui d’el-rei! -- gritava Lucas Pinto. -- Respeite um velho, Soares!...

-- Eu aqui não respeito ninguém, seu grande ladrão!... E brutalmente afocinhou-o sobre uma cadeira. Como todos os homens sem hábitos de pugilato, sem arte de luta, batendo apenas no ímpeto da cólera, os seus golpes eram incertos e tinham o ridículo dos ataques das crianças ou das mulheres; arranhava, arrepelava, dava pontapés! Ao reboliço acudiram os marçanos, que estacaram perante aquela cena, mal abriram a porta. Com a presença deles Soares como que veio a si, e de um empurrão atirou o Pinto contra a parede, perto da qual ele caiu de costas no sobrado.

-- Rua, seu canalha! -- rugia o caixeiro. -- Rua! nem mais um instante nesta casa... Fuja, que eu perco-me... Fuja, olhe que o mato!...

E impelido por outra onda de cólera crescia para o velho que, medroso, correu para a rua, escapando-se através da mercearia -- grunhindo e com as mãos nas faces feridas e pisadas.

-- Para a loja! Já para a loja! Quem os mandou cá meter o nariz? -- gritou este aos marçanos que correram, intimidados, atrás do vizinho das chitas.

E meio desafogado, mas trémulo e nervoso, passeou por muito tempo de mãos nos bolsos, através do gabinete, murmurando insultos e exclamações...

Duas horas depois ele mesmo deitava ao correio uma carta dirigida ao herdeiro de seu tio, anunciando-lhe esse testamento inesperado que o enriquecia.

Nas poucas linhas dessa carta ia o epílogo lacónico e simples de um grande acto de honestidade, de uma vitória, obscura mas heroica, sobre as tentações diabólicas do ouro.

E no entanto o pobre homem sentia-se como sob o peso de um remorso -- só por ter ouvido as palavras venenosas do avarento...

III

Passaram-se anos, muitos anos... Pelo Brasil, ora numa, ora noutra terra, Joaquim Soares labutou rijamente pela fortuna, atirando-se ao trabalho de cabeça baixa, indo buscar o lucro onde quer que ele estivesse, pondo ao ganho e à posse do dinheiro a exclusiva condição da sua intransigente probidade.

Activo, com uma segura disposição para o negócio, pôs de parte o comércio localizado e entregou-se a empresas de comissão que lhe permitiam um começo de vida quase sem capitais. Comprava aqui, vendia acolá, dirigia transacções a distância, tomava empreitadas de fornecimentos, carregações, transportes marítimos -- de maneira que a sua vida tornou-se numa contínua viagem pelo Brasil, desde o Amazonas, onde embarcava a borracha, até às campinas do Sul, onde negociava em gado e em couros. Muitas vezes no trato do negócio os outros comerciantes profetizavam-lhe um mau futuro pelos seus excessos de boa-fé e pelos seus minuciosos escrúpulos de honra. «Você há-de ser muito roubado, Soares! -- Ande lá, que um dia o senhor paga todas as suas criancices!» Mas a estes conselhos Soares respondia com uma pura serenidade de consciência: «Antes ser roubado do que roubar... Primeiro que tudo quero o sossego cá de dentro. Havia de me saber a fel o pão mal ganho, palavra de honra! E de resto sempre me tenho dado bem com o meu sistema.

Homem, isto é fortuna de família. Lá na terra chamam-nos os Soares da Boa Sorte.»

Por vezes no seu negócio aventuroso esteve em riscos de perder tudo. E nessas ocasiões difíceis havia da sua parte grandes rasgos de hombridade, franquezas sinceras sobre o seu estado comercial perante as praças em que tinha crédito, oferecimentos espontâneos de cauções a credores a quem devia quantias mal garantidas -- toda uma lisura de negócios e um timbre de cavalheirismo que, dia a dia, lhe confirmavam mais a reputação.

Depois era um mãos rotas para a pobreza, um protector nato de quanto conterrâneo sem eira nem beira lhe caía ao lado. Era o homem dos asilos, das caixas de beneficência, dos hospitais, das escolas, para onde dava dinheiro à doida -- comprometendo às vezes nestas generosidades os lucros de todo um negócio, o rendimento de um ano inteiro de trabalho.

E assim o seu capital engrossava lentamente, porque para Soares a riqueza não era um fim, mas um meio; e nele o trabalho não representava a sede do ouro, mas uma necessidade de temperamento. Queria ser rico para satisfazer a sua febre de generosidade, para ver em torno de si todo o mundo feliz; e se não fossem essas liberalidades loucas, em poucos anos teria amontoado algumas centenas de contos.

Mas as suas ambições próprias eram modestas; e um dia viu por fim realizado o seu grande sonho: poder liquidar um rendimento de mil libras! Tinha quarenta e sete anos de idade e trinta e dois anos de trabalho. Achou que era tempo de se reformar em capitalista, de regressar ao seu Minho, tanta vez saudosamente relembrado, para gozar em paz o fruto de uma tão longa labutação honesta.

E desde então a ideia da pátria, da sua aldeia da Guardeira, do velho pai e dos irmãos, que ainda todos viviam, a ideia fixa das boas almas dos expatriados em busca do trabalho, ao fim das suas valentes vitórias sobre a fortuna -- vir espalhar no torrão natal o dinheiro ganho fora, os troféus conquistados em batalhas contínuas nesses países do ouro -- essa ideia, aguilhoada pelas saudades, pelas reminescências castas e luminosas da infância, pela nostalgia das longas ausências, pela fadiga do trabalho, pelo gozo de um regresso triunfante, pela curiosidade de saber o que os anos fizeram de tudo o que se amou e estimou, antes de mais nada na vida -- essa ideia absorveu todo o espírito, todo o coração do bom Soares.

Liquidou os seus negócios, escreveu aos seus participando-lhe a resolução, deu o último abraço aos amigos e, um dia, com as lágrimas nos olhos, entre a esperança e a saudade, numa comoção inexplicável de receio e desejo, como na primeira loucura da juventude quando nos arrojamos à responsabilidade de um acto duvidoso -- de bordo de um dos grandes paquetes da Royal Mail, Soares, debruçado na amurada, viu perder-se pouco a pouco no horizonte, como um traço esfumado de névoa cinzenta, essa terra da América do Sul -- onde lhe ficavam tantos anos da sua vida, tantas recordações, tantas saudades...

XV

Na Guardeira a notícia do seu regresso estalou como o anúncio de um acontecimento superior, de um sucesso histórico cheio de consequências para a vida social do lugarejo.

Não se falava noutra coisa em toda a freguesia. Era o assunto obrigado da chocalhice indígena em todos os pontos de cavaco, desde as vendas e o adro da capela, depois da missa, até ao alto círculo oficial da administração do concelho.

-- Então o Joaquim da Boa Sorte volta do Brasil?... -- Assim ouvi, compadre; e dizem que rico... cheio como um ovo.

-- Os irmãos é que vão campar... -- Deixe lá que para nós também não é mal nenhum... -- Olha a dúvida! Do que aqui se precisa é de dinheiro... de um homem que aveze... Com os ricos é que eu me quero, amigo...

Mas a família -- que apregoara largamente a grande notícia -- essa impava de orgulho, estalava de satisfação. Os Soares tinham grande importância no lugar. O irmão mais velho, o padre Inácio, era o abade da freguesia; o segundo, o Ricardo, estava médico no partido do Soutelo, concelho limítrofe; e o cunhado, o Francisco da Silva, antigo mestre-de-obras e pequeno proprietário, tinha-se feito grande homem político da localidade, tendo sido por várias vezes regedor, membro da junta de paróquia, director do

correio e camarista no Município de Bouças, durante um biénio, por influência do morgado da Cardenha, que fora muito tempo o patrono generoso de toda essa família de clientes.

Eram homens práticos, videiros, com uma tintura de instrução que lhes dava superioridade sobre os conterrâneos. E assim a ideia de terem um sólido ponto de apoio monetário na fortuna do irmão ricaço, para alavancar mais fortemente a sua influência, aumentava o júbilo sincero em que os trazia a esperança de o abraçar em breve, pois no fundo eram bondosos e honestos.

Por isso quando receberam de Lisboa a notícia da sua chegada ao Lazareto a família resolveu ir esperá-lo ao Porto. Iriam todos, à excepção do pai, um velho quase nonagenário, meio paralítico, tão tomado das pernas que só nos bonitos dias de sol se arrastava tropegamente apoiado a um varapau até ao adro da igreja; e numa bela manhã, o abade, o médico e Francisco da Silva com a mulher e os dois filhos, a Ermelinda e o Augusto, tomavam lugar no carro da carreira, alegres, radiantes, endomingados, como quem marcha para uma grande festa ou se prepara para figurar num triunfo.

Quando entraram na estação de Campanhã ainda faltavam duas longas horas para a chegada do comboio do Sul. A plataforma estava quase deserta; apenas dois empregados, de boné e guarda-pó de linho, passeavam conversando.

Da marquise de ferro canelado caía o calor plúmbeo e asfixiante de um meio-dia de Julho. O asfalto queimava os pés. Lá fora a luz crua e a vibração do ar quente velavam a paisagem como sob uma ligeira gaze de prata cintilante. Sentia-se à distância o silvo de uma máquina que manobrava nas agulhas, e de vez em quando um carro de bagagens atulhado de malas passava, rolando com estrépito, impelido por um carregador.

A família passeou longamente a todo o comprimento do cais, olhando o relógio com uma viva impaciência. A Sr.a Maria do Rosário contava os minutos; mas Francisco da Silva, o marido, declarou em ar de censura que isto de comboios era uma pouca vergonha, que nunca se sabia às quantas se andava. O abade dissertava gravemente sobre os caminhos de ferro e suas vantagens, relembrando as antigas jornadas do seu tempo, a cavalo ou de liteira, quando para ir do Porto a Lisboa era preciso fazer testamento. E concluía dizendo para o irmão e para o cunhado: -- Lá nisto de estradas e caminhos de ferro é preciso confessar que muito se deve ao Fontes!

No entanto outras pessoas iam aparecendo na gare. Ouvia-se fora, no largo da estação, o rodar das carruagens que chegavam. O timbre do telégrafo vibrou, e logo depois a sineta deu um toque de aviso. A estação despertava; o chefe e os empregados apareciam; os carregadores espalhavam-se na plataforma, bocejando, amolecidos pelo calor. Nesse momento dois rapazes que saíam do restaurante, rindo e falando alto, passaram mesmo ombro com ombro ao pé dos Soares; e um deles, loiro, muito ajanotado, de luneta, ao dar de cara com a Ermelinda, disse em voz baixa para o outro, acotovelando-o:

-- Olha que bonita pequena!... Vês?... ali com aqueles tipos...

E ambos a fitaram cara a cara, com uma impertinência que a fez baixar os olhos.

Mas daí a instantes, nesse passeio ao longo do cais, os dois grupos cruzaram-se de novo, e o rapaz loiro tornou a lançar à Ermelinda um longo olhar insistente e delambido. E assim continuou em cada volta, em cada encontro, provocando insolentemente o namoro.

A hora, porém, aproximava-se. Ouviu-se ao longe a corneta do agulheiro, e um instante depois a máquina aparecia lá ao fundo, dobrando uma curva -- e entrava por fim estrepitosamehte nas agulhas, ofegante e empenachada de fumo.

Houve um movimento na plataforma. Todos os grupos se aproximaram da linha, estendendo ansiosamente o pescoço, querendo reconhecer alguém na fileira de cabeças que saíam das portinholas das carruagens.

Mas o comboio parou um momento para se recolherem os bilhetes. Os Soares, muito perturbados, procuravam distinguir de longe o irmão, cujas feições mal conheciam por uma fotografia antiga. Batia-lhes o coração, sentiam a garganta seca, tomara-os um mal-estar estranho -- essa espécie de angústia que se sente quando se aproxima enfim a realização de um sucesso longamente desejado. Foram uns minutos terríveis. Parecia-lhes que todas as caras que viam de longe, confusamente, assomar às portinholas lhes sorriam, lhes faziam sinais amigos. -- Será este? Será aquele? -- perguntavam entre si. -- E se não viesse, se tivesse perdido o comboio? Que decepção!

Por fim o condutor apitou, a máquina respondeu com um silvo agudo e o comboio entrou solenemente, vagarosamente, na gare, prolongando-se com o cais, enquanto os carrejões deitavam as mãos aos fechos das portinholas e os passageiros, com aspectos encalmados, exaustos de uma longa viagem sob o calor tórrido e o pó mordente, se debruçavam saudando um amigo que os esperava ou olhando com indiferença os grupos que enchiam a estação. Então à portinhola de um dos vagões, que passava em frente deles, os Soares viram uma larga face trigueira, emoldurada em duas grossas suíças, negras, fortes e curtas, uma face radiante, cujo olhar bondoso parecia procurar inquietamente alguém entre toda essa multidão.

O abade teve um palpite. Aquela fisionomia bondosa não podia enganar as suas reminiscências de infância. Era ele, era o seu Joaquim! E erguendo o braço gritou-lhe com a voz estrangulada pela comoção:

-- Ó Joaquim! Joaquim!! Os outros olharam; viram uma mão que lhes acenava, dois olhos marejados de lágrimas e ouviram distintamente pronunciar os seus nomes:

-- Ó Inácio! Ó Maria! Ó Ricardo!... ó filhos! -- Ó Joaquim! -- bradaram todos em coro correndo para a carruagem que parou um pouco adiante.

A portinhola abriu-se e um homenzarrão veio cair-lhes nos braços, repetindo-lhes os nomes, chorando como uma criança, com a voz cortada pelos soluços.

Foi um longo abraço mudo, comovido, nervoso -- em que sem uma palavra se transmitiu toda a confidência das antigas saudades, dos velhos sentimentos redivivos. Ele estreitava-os a todos, beijava-os, tornava a dizer-lhes os nomes, chorando, sorrindo, suspirando.

-- São os teus filhos, Maria?! -- perguntava olhando os sobrinhos. -- Ai que jóia de rapariga! Deixa-me abraçá-los também... E o pai? Como está o pai? Muito velhinho, coitado?! Vá, saiamos daqui depressa. Estou morto por me ver em casa ao pé dele...

E chorava de novo, nervosamente, numa efusão que a sua vontade era impotente para dominar.

Mas tornava-se preciso saírem dali. Os carrejões assaltavam-nos, pedindo-lhes a bagagem; a multidão que se dirigia para a porta impelia-os na sua onda. À saída o aperto era grande; e como Ermelinda deixasse cair o seu guarda-sol, sentiu que alguém o apanhava atrás dela. Voltou-se e viu o rapaz loiro que lho entregou, dizendo-lhe:

-- Este guarda-sol creio que lhe pertence... -- Muito obrigado -- respondeu ela simplesmente sem o fixar.

O Ricardo veio fora procurar um char-à-bancs que os levasse à Guardeira, enquanto Soares, todo atarefado, abria as suas malas na sala das bagagens.

Daí a instantes o carro partia a todo o trote, aos solavancos sobre as suas molas duras, cruzando rapidamente a cidade. Soares olhava as ruas e as casas, pasmado da diferença que o Porto fazia. Não reconhecia a cidade, e os prédios novos, de cantaria lavrada, azulejos frescos e claros, platibandas e grandes vidros nas janelas, encantavam-no, davam-lhe a nota dos seus gostos: coisas sólidas, bem feitas e bem pagas.

Quando o carro entrou na estrada da Guardeira, começando a rodar sobre o macadame, debaixo das grandes tílias, entre os muros musgosos das quintas e os silvados cinzentos do pó, quando se começou a sentir o ar do campo, impregnado dos aromas dos pinhais, do mato florido, do trevo, da terra recozida pelo sol, Joaquim Soares comoveu-se profundamente. Aquela paisagem e aquele ar fresco despertavam na sua alma velhas recordações, reminiscências quase apagadas, sentimentos adormecidos há muitos anos no fundo do seu coração. Era toda a sua infância que se erguia diante dele -- toda uma idade calma, simples e ingénua, a que lhe parecia voltar depois do seu longo exílio nessas terras distantes, entre o trato rude dos homens e a implacável batalha da vida.

E cheio de curiosidade, ia perguntando por estes e por aqueles, pela situação da aldeia, pelo destino de certas pessoas e de certas coisas. Imediatamente a conversa mudou de tom. Nas informações dos irmãos transpareciam os seus sentimentos pessoais e os seus interesses. Diziam bem de uns, mal de outros, narravam mil caos de intriga local, referiam as suas pretensões, os seus planos, deixavam claramente entrever o quanto contavam com ele para solidificar com o seu ouro a importância crescente da família.

O Ricardo, que avançara pouco no partido de Soutelo e que tinha adquirido da experiência do mundo esta sublime verdade -- de que só pela política se fazem as coisas --, aconselhava-o autoritariamente:

-- Com o teu dinheiro tens tudo aquilo na mão: és o rei. Há muito que se precisa de quem faça frente ao Carlinhos da Cardenha, que entende que ainda hoje se lê cá na terra pela cartilha dos capitães-mores...

Depois o abade queixou-se-lhe da falta de meios da freguesia para fazer obras de primeira necessidade na igreja paroquial. E o cunhado, pela sua vez, procurou induzi-lo a que tratasse logo de obter a conclusão de uma estrada que lhe devia passar à porta da quinta paterna. Soares radiante e feliz, cheio de comoção, com lágrimas saudosas para o irmão abade, que lhe recordava o velho tio, capelão da Cardenha, que o ensinara a ler, com ditos para os cabelos brancos do médico, e abraços para o cunhado que fora o melhor dos seus companheiros de infância, prometia tudo, dizia que sim a todos os conselhos e a todos os pedidos.

E quando ele chegou a entrar na Guardeira, quando a aldeia em peso o veio ver abraçado ao pai meio paralítico, cheio de lágrimas e de alegria, todos viram naquele corpulento brasileiro, de suíça dura, cabelo grisalho e uma larga face bonacheirona, honrada e feia, o Messias da localidade, o futuro rival político do Carlinhos da Cardenha, o pai dos pobres, o tesoureiro oficial de todos os que não tivessem dinheiro, o cofre inesgotável da população para todas as fantasias do fomento de campanário.

Choveram-lhe em cima as visitas da gente grada, e à frente delas o temido Carlinhos, um bacharel formado, de vinte e sete anos, com pretensões a deputado, e dando-se uns ares de vice-rei no concelho de Bouças. Todos estranharam este procedimento do Carlinhos, porque os Soares tinham-se posto de candeias às avessas com a casa da Cardenha, por o velho morgado se negar a empenhar-se numa pretensão do médico Ricardo Soares, que queria melhoria de vencimento no seu partido. Mas o Carlinhos, que tinha fumaças de homem finório e de vistas largas e que, além disso, havia comprometido seriamente a casa com dois anos de vida airada e uma viajata ao estrangeiro, pressentiu também em Joaquim Soares uma grande mina a explorar e pondo de parte o que ele chamava as ingratidões daquela gente dos Boa Sorte, tomando uma atitude nobre de generosidade e esquecimento, foi logo, amável e cortês, como um boiardo condescendente, visitar o servo enriquecido e parvenu.

Passado o tempo das primeiras expansões, o génio activo de Soares começou a sentir a necessidade de movimento. -- Que diabo! Canso-me a não fazer nada -- dizia ele à família.

Então todos os parentes voltaram à carga -- um com a política, outro com a igreja, o terceiro com a estrada. Soares entendeu, no seu ingénuo cristianismo, que era em honra de Deus que devia começar a espalhar o seu dinheiro na terreola natal. Determinou pois começar pela igreja e as obras principiaram à larga, todo o telhado novo, altares restaurados, imagens modernas, reformas nas vestimentas e paramentos -- e enfim, para cúmulo, um belo cálix de ouro maciço com o pé trabalhado a relevos custosos, obra para uns centos de mil réis.

O irmão abade, que na família herdara a representação eclesiástica, andava radiante e só pensava na grande festa com que inauguraria a sua capela depois de restaurada. Como testemunho de gratidão para com oirmão generoso levou a junta de paróquia a fazer tirar-lhe um retrato a óleo, de meio corpo, para ser colocado com um letreiro explicativo e laudatório na parede da sacristia.

Ainda as obras da igreja iam em meio, já Soares espontaneamente se oferecia para construir uma casa de escola. Nisto o morgado quis operar uma manobra de mestre atraindo a si o nababo recém-vindo. Mal lhe chegou aos ouvidos a notícia de que o brasileiro (Soares estava por fim confirmado definitivamente neste indispensável papel típico da aldeia minhota) pensava em doar a freguesia com uma casa para a escola primária, foi procurá-lo à Portela, a quintarola do pai onde ele ficara a viver, e cheio de frases e de excelências pediu-lhe licença para o abraçar e significar-lhe o desejo que tinha de o apresentar ao governador civil para este fazer o seu nome conhecido do Sr. Ministro do Reino, e obter-se da parte do governo um subsídio para a manutenção da escola, pois professores que aceitassem a parca remuneração dos municípios «não eram decerto os sacerdotes correspondentes ao belo templo da instrução popular, que S. Ex.a ia erguer dadivosamente no seu torrão nativo».

O bom Soares ficou encantado, mas recusou-se cheio de modéstia. Era um pobre homem, dizia ele, com desejos sinceros de servir a sua terra, mas não queria nada com a política; o seu gosto era viver em paz com todo o mundo, ver todos contentes e felizes. S. Ex.a o Sr. Dr. Carlos podia tratar pela sua própria influência desse negócio, que ele lá estava para correr com as despesas e para o mais que fosse preciso.

O irmão médico torceu o nariz a esta atitude de Joaquim Soares; mas este assegurou-lhe que em política se não metia, que nunca quisera tratar de coisas fora do alcance da sua cabeça, e que não tinha andado toda a vida para ganhar dinheiro para por fim criar com ele inimizades e indisposições. Faria o bem que pudesse, estava pronto a dar a camisa do corpo para socorrer a pobreza, mas lá em cavalarias altas de política -- isso de forma alguma. -- És um tolo -- afirmava-lhe o médico. -- Atiras toda uma fortuna à rua. Não te dava mais de dois ou três anos para seres deputado... para teres tudo isto aqui assim na mão.

E fechava a esquerda, como sofreando com as rédeas uma cavalgadura sujeita e domada.

-- O quê, Ricardo? Deputado, eu?! -- exclamou o brasileiro.-- Tu estás doido! Eu metia-me lá nessa... Ir para a Câmara fazer figura de asno, dizer que sim ou que não em coisas que não percebo, consoante o recado que me dessem cá de fora?!... Tu estás enganado comigo. Eu conheço-me, e sei para o que nasci. Fala-me em câmbios, em açúcares, em cafés, em gado, em carregações, em armadores -- e tens homem. Fiz-me gente a lidar com isso, e nesses pontos sei-me governar. Agora lá pela basófia de fazer figura ou para dizer que tenho os outros debaixo dos pés, meter-me nessas empresas de alto bordo para que não tive princípios, isso não vai lá! -- Homem, eu aqui, com os patacos que arranjei, posso talvez fazer algum bem. Mas metido na política, para que diabo sirvo? Sim, que queres tu que eu faça na Câmara?... Ora deixa-te disso! É pela figura? Leve o diabo tal mania! O que eu quero é que me deixem em paz... que me deixem viver obscuro e sossegado, como tenho vivido até hoje...

-- Pois olha, eu no teu lugar... -- ponderava ainda o médico, a quem estas doutrinas pareciam criancices.

-- Mas isso comigo é outro cantar... Tu tiveste estudos, andaste nas aulas, fizeste uma carreira pelos livros. Lá entendes disso. Eu cá fui um burro de trabalho, ora eis aí está... -- Nada! Deixemo-nos disso... deixemo-nos disso! Cada um para o que se criou.

Entretanto o morgado escrevia jubiloso ao governador civil que conseguira do brasileiro a construção da escola primária, e que julgava que para o animar se lhe devia oferecer uma comenda, terminando sempre com grandes protestos de fidelidade ao governo, almejando pelo dia que lhe pudesse prestar «outros serviços políticos superiores a estes pequenos negócios de campanário».

O seu jogo consistia em fazer crer ao governador civil que era o rei da terra com um Rothschild labrego à sua disposição, e em se dar por outro lado importância perante o lorpa do brasileiro, atirando-lhe com uma comenda ao peito.

No fundo de tudo isto estava o sonho doirado do círculo.

V

Ao fim dos trabalhos da igreja e quando os da escola iam já em mais de meio, Soares percebeu que nestas genorosidades a sua fortuna ia levando rombos perigosos. Achava-se forte, ainda novo, e resolveu recomeçar a trabalhar. Comprou a quinta ao pai, contratou com uma casa inglesa o fornecimento em larga escala de gado de embarque, e em pouco tempo a Portela era um depósito de juntas de bois de ceva, comprados em todo o Minho e Douro, que dali seguiam em manadas trôpegas para os embarcadouros dos paquetes ingleses no cais de Maçarelos. Como sempre, a boa sorte acompanhava-o nos seus negócios, e já ao fim do primeiro ano Joaquim Soares auferia lucros que lhe permitiam restabelecer o seu equilíbrio financeiro.

Porém, desde que comprara a quinta ao pai, o brasileiro ruminava o plano de fazer construir uma casa -- o belo palacete com portões de ferro ao lado, mirante, platibanda de granito e mastro no quintal para içar bandeira aos domingos e outros dias festivos. Havia já ido ao Porto duas vezes tratar do risco com um arquitecto, e apenas restavam umas dificuldades de escolha de local nos limites da própria quinta, quando o Dr. Carlinhos, que pelas suas artimanhas políticas conseguira, não o círculo desejado, mas o lugar de secretário-geral num distrito do Sul, resolveu vender a Cardenha, última propriedade que lhe restava, mas já crivada de hipotecas fortes, das quais ele se sentia incapaz de a desonerar.

O morgado anunciou a quinta nos jornais do Porto, mas os enlevos da época eram as construções urbanas, e os anúncios de propriedades rústicas, então, arrastavam-se meses sem sucesso algum nas últimas páginas das grandes folhas diárias.

Os Soares todos caíram sobre o brasileiro influindo-o à compra. A quinta não achava comprador, os credores só a tomariam em último recurso e o morgado largaria aquilo por cinco réis de mel coado. Fugia assim à maçada de uma construção nova; a casa era soberba, bem conservada, com um velho ar solarengo que lhe dava majestade, e pedindo apenas ligeiros reparos e embelezamentos.

Joaquim Soares decidiu-se: escreveu ao morgado e depois de rápidas negociações concluiu a compra por vinte e cinco contos -- quase só o valor da casa!

Os Boa Sorte não cabiam em si de felizes com a ideia de terem na família a posse daquela rica propriedade, onde o avô de Joaquim Soares, o velho Manuel Inácio, começara a vida à frente dos bois. Era como que uma revindicta das suas humilhações de proletários aquela aquisição da Cardenha pelo mais trabalhador e mais feliz de todos eles. E agora, correndo livremente o imenso casarão, sentiam-se desforçados das vezes que tinham esperado, submissos e humildes, ao fundo das escadas ou nas antecâmaras, por que o Sr. Morgado se dispusesse a recebê-los.

A Cardenha era o morgadio de uma família que no século XVIII dera em cónegos e em desembargadores as figuras mais casmurras dos cabidos e das justiças portuguesas. O morgado ficava-se sempre a caçar e a estafar cavalos nas terras de entre Douro e Ave, dando lautos bródios nas tradicionais festas do ano, enquanto os cadetes se espalhavam pelos coros das sés, pelos conventos ou pelos altos tribunais. Economicamente a casa resistiu muitos anos numa completa imobilidade conservadora, até que o morgado coevo da revolta Patuleia a empenhou em muito, tomando parte activa no movimento popular do Minho. Esse morgado era excepcionalmente um velho doutor em leis, amigo dos revolucionários de 20, um clássico humanista, com a cabeça cheia de Grécia e Roma, e, como tal, apóstolo de uma liberdade catónica, dogmática e rígida, que o fazia um partidário ferrenho de todos os radicalismos da nossa política de então.

Desiludido mais tarde sobre os destinos do seu país, o velho morgado abandonou o parlamento, onde tomara assento durante anos, e retirou-se às suas terras. O único filho e seu sucessor morria pouco depois de um desastre à caça, deixando a viúva, ainda nova, e um filhinho, o Carlos. Metido na Cardenha, o morgado António da Silveira passou o resto da sua vida a reler os clássicos latinos e a agricultar rotineiramente as suas terras. Todo o seu enlevo era o neto, que fez educar no Porto, destinando-o para seguir depois o curso jurídico em Coimbra. Quando o rapaz estava quase no fim do primeiro ano, o pobre velho, quebrado da muita idade, cheio de sofrimentos e desgostos, morreu. A nora ficou na Cardenha até à formatura do filho, que, tomando conta da casa, ao sair de Coimbra, a acabou de comprometer com as suas dissipações no Porto e em Lisboa e com uma viagem a Espanha e a França.

E assim passava o velho senhorio dos Silveiras, estirpe ilustre de juízes e frades crúzios, para as mãos de um torna-viagem, cujos avós lhe tinham cavado as terras durante longos anos.

A Cardenha tomava toda a encosta de um pequeno monte e alastrava-se pelo vale fronteiro até à borda de um riacho ladeado de altos choupos, onde se abraçavam as cepas das vides de enforcado. A casa ficava a meio do outeiro, tendo à frente desdobrado o largo tapete dos lameiros e dos campos verdejantes de milho, e nas costas as espessuras alombadas de uma densa mata de pinheiros-mansos, que trepava até à cristã sinuosa daquela pequena cordilheira. Sobre esse fundo verde-negro a pesada edificação do século XVIII destacava, rectilínea e branca, com a sua linha de sacadas, e a um dos lados o torreão, cujo parelho nunca se construíra e fora substituído por uma pequena capela de portão verde e cimalha triangular, onde se fixava uma cruz. Ao meio do edifício abria-se a grande porta encimada pela pedra de armas dos Silveiras, e a toda a largura da frontaria estendia-se o jardim, um Le Nôtre de canteiros de murta e teixos aparados, cheio de roseiras-do-japão, de alecrins enormes e de magnólias, com fileiras extensas de craveiros em vasos vermelhos e ao centro um tanque circular, onde a água caía de um repuxo, com um sussurro monótono e sonolento.

Vista de longe, a casa da Cardenha tinha um pitoresco antigo na orla do pinhal secular, com o seu torreão ameado, dominando as povoações do vale e o riacho com os choupos esguios. Mas era sobretudo bela à tarde, quando do monte fronteiro o Sol rubro e deformado, quase a desaparecer no horizonte sanguíneo, a vestia da púrpura ardente das suas últimas radiações, incendiando-lhe as vidraças e deixando toda a sua alvura em evidência na luz, enquanto em baixo os lugarejos se sumiam já nas sombras do vale. Era como o resplendor de uma apoteose de teatro, um efeito de cenário, onde a velha casa morgada sobressaía eminente e dominadora.

A parte rústica da propriedade era importante, tanto pela extensão dos terrenos agricultáveis, como pela sua uberdade. Nas mãos activas e felizes de Soares -- toda a gente o dizia -- a Cardenha ia ser um principado.

Poucos dias depois da compra, o brasileiro chamava mestres do Porto para reparar a casa. Quase que lhe conservou apenas as divisões. O mais foi tudo substituído, portas, janelas, sobrados, pinturas, papéis, estuques. Velhos tectos em maceira almofadados com magníficas vigas de castanho esculpido, largas portadas com ferragens de serralharia artística, alguns antigos azulejos -- nada resistiu à mania do moderno do brasileiro sem gosto e dos operários especuladores. Por fim a casa ficou com um

aspecto interior burguês e incaracterístico, que destacava da sua pesada majestade exterior.

A mobília acabou esta obra demolidora. Era a eterna monotonia do mogno e do mármore branco, do reps e do tapete com flores. Mas o golpe mais cruel no velho ar da Cardenha foi a transformação do jardim, onde os teixos foram abatidos, a taça de granito substituída por um lago oom ponte rústica, e as ruas cobertas com parreiras sobre esteios de pedra e ladeadas por estatuetas de faiança, representando as estações do ano e as partes do Mundo. Soares, porém, estava encantado com a sua obra, e no dia em que se instalou na nova residência deu uma festa principesca, um desses bárbaros jantares do Minho, em cujo menu entram o arroz de forno com patos, a orelheira com feijão branco, a sarrabulhada, o lombo assado -- e vinho verde a rodo.

VI

Instalado no seu palácio, Joaquim Soares achava-se só. Não conseguira que o pai largasse a Portela onde se entretinha a olhar pelos bois que quinzenalmente ali se juntavam a fim de seguirem para o embarque, e não pudera arrancar o abade à residência senão aos domingos para jantar. O cunhado e a irmã viviam à sombra do velho e não o deixavam: depois que ele entrevecera, Francisco da Silva passou uma venda que tinha, arendou a sua quintarola da Cortelha e foi fazer as terras da Portela, quase como um tutor ou curador dos bens do sogro. Apenas o irmão médico vinha passar à Cardenha uns dias, de vez em quando, com bem vontade de mandar ao diabo o partido e mudar-se para ali definitivamente.

Um dia Soares queixou-se ao abade da sua solidão. -- Olha, Inácio, não sei que me parece ver-me aqui só neste casarão. Às vezes ao jantar até me vêm as lágrimas aos olhos: dá-me vontade de me erguer da mesa e ir à Portela comer o caldo com o pai. E à noite?... É um sossego... parece isto um cemitério. Nunca em minha vida me senti tão triste, tão não sei como...

-- Homem, casa-te! -- disse-lhe o abade resolutamente. -- Ora, casar-me! -- tornou Joaquim Soares. -- Casar-me com quem? Por aí não vejo nada... e lá com alguma madama da cidade, isso só se eu fosse tolo... Não é que eu seja contra o casamento, não senhor: até nem se me dava de tomar estado se achasse alguém que me servisse. Mas isto de mulheres é o diabo... é uma sorte. Se calha bem é o céu; mas se calha mal -- é o pior dos infernos... E depois, eu nunca pensei em mulheres... pouco lidei com elas... e que lhes agrade não tenho senão o dinheiro. Se fosse pobre, mulher que me quisesse era porque gostava de mim; agora sendo rico, eu sei lá se é por amor da minha pessoa ou das minhas libras que elas me fazem os olhos doces...

-- Deixa-te disso -- dissuadia o abade. -- Ele há por aí muita mulher de juízo e de bons sentimentos...

-- Pois sim, sim, eu não digo menos. Mas é uma sorte, tudo vai no acertar. Já vês que estes enganos é que não têm cura. O nó que vocês lá dão na igreja só a cova o desata a valer. A gente separa-se, é certo; mas de que vale? Arredam-se os corpos, mas cá a liberdade fica amarrado como dantes. É pior às vezes, homem... é muito pior. Enfim, não sei... E o mais é que é preciso também que o coração puxe para aí. A gente não pode fazer uma coisa dessas assim a sangue-frio. Uma mulher não é uma moça de todo o serviço; é uma companheira para a vida... Homem, isto é negócio muito sério...

-- É que tens pensado pouco no caso. Vai para três anos que aqui estás e só cuidaste até agora de obras e de negócios. Puseste-nos a igreja como nova -- Deus to pague no céu! --, deste uma escola a esse rapazio que andava por aí a garotar, a jogar a pedra, meteste-te no negócio dos bois... e agora não pensas senão nesta quinta: é arranjos, é compras, é mestres para cima e para baixo; não tens um instante de teu.

-- Eu te digo, Inácio -- interrompeu o brasileiro. -- Eu te digo: para ser franco, eu já tenho botado as minhas vistas...

-- Sim? -- perguntou o padre intrigado. -- Isto é... quer dizer -- volveu Soares como que irresoluto nas suas confidências -- eu tenho pensado cá para mim que me serviria esta ou aquela...

-- Mas em particular, sabes? quis-se-me afigurar que a Ermelinda...

-- Qual! a nossa sobrinha?... -- Sim, a nossa Ermelinda... Já vês... ficava na família; era um descanso para a nossa irmã, um descanso para o pai... e depois, não sei... parece que é raça conhecida... é cá do meu sangue...

-- Sim... sim... -- monossilabava o abade, como julgando o caso concentradamente. -- Com efeito, isso não me parece tolice... Ela é bonitinha, é bastante prendada para moça de aldeia, é tua sobrinha... Mas ela?... Tens-lhe dado a entender?... tens-lhe mostrado?... -- Homem!...-- concluiu resolutamente com uma leve reticência como para se atrever a dar toda a clareza à sua ideia -- Já a namoraste?...

Soares fitou-o, espantado, olhos muito abertos, como se lhe tivessem feito alguma pergunta extraordinária e imprevista.

-- Namorá-la?!... Eu namoro lá ninguém! eu sei lá disso!... Tenho pensado comigo apenas... tenho imaginado... São contas minhas... para entreter o miolo.

-- Mas achas que o coração te vai para aí?... -- Quero dizer... se ela se não mostrasse mal disposta... Simpatizo, entendes? Por ora só simpatizo. Mas sinto um não sei quê quando a vejo, parece que me envergonho, não estou à vontade com ela como dantes... É isto que me faz crer... sim... que me tem feito lembrar... que há cá dentro alguma coisa pela rapariga...

-- Então por que lho não dizes? -- Não me atrevo... Bem vês: nunca me meti em tais negócios... Lá com mulheres entendo-me pouco. Isto costuma dizer-se de um modo que eu não sei... Não atino... não sou para estas coisas...

-- Pois sim! Mas sem isso... Houve um silêncio. Os dois irmãos olharam-se, sorrindo daquela conversa, que sentiam um tanto cómica para a sua idade. Joaquim Soares pasmava das confidências a que insensivelmente fora levado e que bem no fundo o surpreendiam quase tanto como ao irmão, pois esse amor nascente era no seu espírito um sentimento vago, como que um sonho cuja realização lhe parecia utópica, impossível. Mas agora que se tinha descoberto era preciso ir até ao fim. E indeciso, sem força para se abalançar a uma declaração formal, pensou em entregar a sua causa nas mãos do abade.

Olha: vê lá tu isso... Não digas como coisa minha... Fala-lhe por alto... dá-lhe a entender que... Tu lá sabes como isso se faz. Enfim, sem dares cavaco desta conversa, vê lá se ela não tem por aí o seu namorico e o que diz a esta ideia... mas como se nada houvesse por ora, entendes? assim como a rir... a falar por falar...

-- Bem, deixa estar -- respondeu o abade. -- Trata-se disso. Eu cá sei os caminhos... Descansa que te não comprometo...

-- Pois anda lá, que me fazes favor... É que eu com mulheres não dou uma para diante. Não está mais na minha mão. Tenho lidado pouco com elas e tudo me atrapalha -- isto é que é.

E o abade, abrindo à porta o seu grande guarda-sol e enfiando pela rua principal do jardim, dizia ainda ao irmão que de roupa de linho e chapéu de palha o fora despedir à saída:

-- Descansa, Joaquim. Eu cá sondarei o negócio.

VII

Na verdade, as mulheres não eram o forte de Soares. E esses climas cálidos do Sul, que incendeiam até à extrema animalidade o temperamento erótico do minhoto, haviam-no poupado deixando-lhe a consciência desafogada, sem remorsos de devassidões corruptoras.

No Brasil ninguém lhe conhecera a menor ligação amorosa. Vivera sempre livre, independente, com uma repugnância inata por aventuras desta ordem. Parecia que o caso do tio o impressionara fortemente, dando-lhe uma severa lição de moral. A ideia de um bastardo incomodava-o. O adultério fazia-lhe horror; na sua proba e simples honradez considerava-o como um roubo da felicidade e da honra alheia.

Assim, se não era um santo, se nem sempre marchou na estrada da vida apoiado, como S. José, à açucena mística, as suas fragilidades, os seus pecadilhos, eram desses a que a indulgência canónica fecha benevolamente os olhos, quando caem na vulgaridade de simples infracção sem agravantes ao caso sexto do Decálogo mosaico. «Fraquezas humanas, irmão! - dizia-lhe sempre o confessor.-- Mas ao menos observe o preceito do apóstolo: Se não puderes ser casto, sê cauto.» E com o protesto anual de boas intenções o confessor dava-lhe sempre, sem escrúpulos, o atestado de consciência limpa.

De resto a sua vida activa, laboriosa, fatigante, dominara, esmagara-lhe no fundo do temperamento a energia dos sentimentos. Em toda essa existência de trabalho não sonhara com outros nomes femininos que não fossem estes -- Compra e Venda. Era um sóbrio em tudo; e a satisfação das suas necessidades orgânicas havia de ser sempre breve, rápida, simples -- porque, dizia ele, tinha mais que fazer.

Moralmente mesmo, apenas uma única paixão lhe oonsulsionara a alma com ternuras castas e pungentes dores: fora o louco afecto que consagrara à mãe, afecto apaixonado e absorvente, mas ferido pelas saudades inconsoladas da morte repentina dela, ao tempo da sua longa ausência da pátria. De resto nunca namorara, nunca amara, nunca envolvera a mulher noutro sentimento que não fosse o do seu largo amor da espécie, da sua comovida piedade humanitária, da sua ingénua ternura bondosa e dedicada, com que abria o coração aos homens nesse estado emotivo que o cristianismo criou, chamando-lhe caridade.

Com um pouco de latim ao princípio da vida e as respectivas ordens, ele teria dado de certo um santo cura de almas, um adorável reitor de aldeia, casto, simples e cândido na sua fé evangélica, providência dos pobres, consolo dos tristes, defesa dos fracos -- um Jesus menos transcendente, menos filósofo, menos divino do que o da tradição, mas tão prático na sua bondade e no seu amor pelos homens.

Assim o bom Soares imaginara sempre no real amor dos sexos qualquer coisa de muito superior, com que a sua natureza não tinha sido dotada. Por isso quando um dia percebeu em si as perturbações, quase ridiculamente retardatárias da influência do amor, quando descobriu na sua alma de cinquenta anos os desejos, os receios, as comoções, todo o delicioso sofrimento da virilidade afectiva que principia a desenvolver-se, sofrimento que acompanha a crise psicológica da puberdade para a juventude, o pobre homem desconheceu-se e teve medo de si próprio. Era estranho para ele aquele estado, e sinceramente o atribuiu a uma fraqueza cerebral: -- Não estou em meu juízo! -- dizia consigo mesmo. -- Parece que isto não regula direito!

Começou a não poder fitar a Ermelinda, sempre que ia à Portela, a envergonhar-se, a perder a voz, a não atinar com as palavras. E sob o olhar descuidado dela, sob a sua gargalhada franca, sob as suas liberdades de sobrinha para com um tio maduro, o brasileiro sentia-se mal, constrangido, atrapalhado, incapaz de coordenar dois pensamentos, numa quase inconsciência sonolenta das suas palavras, dos seus gestos e dos seus actos.

Queria explicar a si mesmo o seu estado moral, mas a explicação que lhe vinha constantemente ao espírito, com uma persistência instintiva, achava-a ele absurda, monstruosa, quase impossível. -- Amor? aquilo amor?! Mas sabia ele lá o que era amor! Era ele porventura capaz de amar?!

E só a conversa com o irmão abade o fizera ter fé pela primeira vez na energia amorosa do seu coração.

VII

Francisco da Silva tinha dois filhos: a Ermelinda, mais velha, de vinte e quatro anos, e um rapaz, de vinte, o Augusto, malandro incorrigível que parasitara em casa do morgado Dr. Carlinhos, a pretexto de lhe tratar dos cães de caça e vigiar as bouças, e que matava o tempo atirando às codornizes ou correndo todas as feiras dos arredores ao passo travado do seu garrano.

Este Augusto era o coq villageois, o janota da terra, companheiro e macaqueador do morgado, com o qual se dava ares de grandes intimidades. A sua prenda de tocador de viola tornava-o indispensável nas esfolhadas e serões das aldeias circunvizinhas. Era infalível em todas as romarias, e aos domingos, depois da missa, debaixo das grandes carvalheiras do adro, derriçava com as raparigas endomingadas, encostado ao varapau, requebrando-se todo na cinta apertada pela faixa de lã azul, chapéu para a nuca, cabelo sobre a testa, e um olho pisco, por causa do fumo do cigarro.

Tanto este rapazelho ralava de cuidados os pais, quanto a Ermelinda lhes dava prazer e os enchia de orgulho. Parecia uma senhora -- diziam na terra. Era alta, magrita, de um moreno de cigana de oleografia. O rosto de um contorno oval tinha feições regulares: nariz correcto e fino com pequenas narinas palpitantes, maçãs do rosto ligeiramente salientes, queixo redondo apartado por uma covinha muito pronunciada, e olhos escuros, orientais, fendidos transversalmente, meio cerrados, de longas pestanas sedosas, e cobertos por um supercílio levemente arqueado, como duas curvas finas feitas de um traço a nanquim. Mas a feição característica, eminente, singularmente expressiva desse rosto era a boca -- uma boca pequena, vermelha, acetinada, que parecia feita com duas pétalas de rosa. E na sua pequenez, os beiços finos e bem talhados tinham uma contracção habitual, que como que os adiantava amorosos e ardentes no movimento de um beijo prolongado de espasmo histérico. Palpitavam-lhe os cantos da boca num ligeiro tremor nervoso, e, quando sorria, os lábios descerravam-se-lhe vagarosamente como numa lassidão voluptuosa, deixando ver o marfim anilado dos dentes de um talhe simétrico e rectilíneo.

Se tivesse outras proporções de volume, carnações mais sadias e largas, era um modelo de expressão para uma cabeça de bacante. Faltavam-lhe contudo a linha antiga, a acentuação naturalista, o tom dessa sensualidade pagã, forte, vigorosa, divina, que se expande nos contornos amplos e desenvolvidos da estatuária clássica. Mas modernizando o tipo da bacante no tipo da cocotte, pondo os bosques arcádicos onde os faunos perseguiam as dríades fugitivas, no boulevard contemporâneo onde os dandies seguem as prostitutas transformando o tonel de Baco na garrafa de champanhe, civilizando o prazer, refinando nervosamente a sensualidade -- aquela fisionomia era a criação espontânea desse meio, a figura típica para o ídolo dos novos ritos do amor livre.

Os caçadores da cidade que atravessavam a Guardeira e passavam sob a varanda alpendrada da casa da Portela ficavam às vezes surpreendidos ao ver aquele tipo de aldeão, tão pouco vulgar, destacando pela sua esbelta finura, pela sua expressão delicada e mordente, de entre a beleza grosseira e animal das mulheres do campo.

De pequena o tio abade dera-lhe lições de leitura e escrita, e a madrinha, a Sr.a D. Catarina, mãe do Dr. Carlos, tinha-a dias inteiros na Cardenha, ensinando-a a costurar e a bordar, e iniciando-a num género de vida bem diverso daquele a que a destinava o seu nascimento.

A Ermelinda brincava com o Carlinhos, de quem herdava os bonecos velhos. Costumara-se a pisar tapetes, a repoltrear-se comodamente em boas cadeiras, a servir-se por talheres de prata, e na companhia de D. Catarina, uma senhora de Lisboa de alta educação e de família fidalga, ia conhecendo todos os artigos de luxo, todos os pequenos requintes de gosto e de conforto que entram nos costumes da mulher das cidades. Rendas, veludos, sedas, batistes, jóias de preço, perfumarias caras -- eram-lhe coisas familiares, que via e com que lidava habitualmente.

Quando o Carlinhos foi para o colégio, no Porto, era ela a única companhia de D. Catarina, pois António da Silveira passava os dias no seu escritório a reler pela centésima vez todos os grandes monumentos da jurisprudência clássica e a sua eterna história romana, ou nos campos, sob um enorme guarda-sol de campónio, a vigiar os trabalhadores. E então a rapariga escutava longas histórias da vida de Lisboa, tomava conhecimento de certos nomes de família da boa sociedade, de certos termos do alto mundo, aprendia a existência dos centros elegantes ou notáveis como S. Carlos, o Chiado, S. Luís, o Grémio, o bairro fidalgo da Junqueira, Cascais e Sintra. D. Catarina, nas raras vezes que vinha à cidade fazer compras ou ver o filho ao colégio, trazia-a consigo, e ela entrava nas lojas, nas casas das modistas, sabia o preço dos objectos da moda e ficava conhecendo uma ou outra senhora da primeira roda do Porto, com quem a triste viúva de Luís da Silveira se encontrava na rua, falando um instante.

Aos quinze anos fez-se repentinamente mulher. Cresceu muito, desenvolveu-se-lhe o peito, alargaram-se os quadris, as feições afirmaram-se acentuando-se, de tal sorte que numa das vezes que o Carlos, já então com vinte anos, voltou de Coimbra, D. Catarina teve de os vigiar de perto, porque o rapaz não se tirava de casa e procurava sempre o quarto da mãe, onde a pequena estava habitualmente, ficando-se horas inteiras pasmado a olhar para aquela fisionomia singular e estranha, entre modesta e provocante. Mas o Carlos demorava-se pouco na Cardenha, e a vida de Coimbra fazia-lhe esquecer logo a rapariga. D. Catarina conservava-a por isso em sua companhia, tanto mais que depois da morte do sogro se achava absolutamente só. E apesar do rompimento entre os Boa Sorte e os senhores da Cardenha, Ermelinda continuava ali «porque -- dizia Francisco da Silva --, não tinha alma de tirar aquela companhia à senhora morgada, que lhe queria, à sua filha, como a própria mãe».

D. Catarina estimava-a pelas qualidades de finura de trato nela ingénitas, destoantes da grosseria e brutalidade aldeãs. Depois que ela começou a fazer-se mulher, depois que o seu carácter se foi definindo, a fidalga reconheceu-lhe um fundo egoísta e reservado, uma propensão marcada para um extraordinário amor próprio, superior e dominante em todos os seus outros sentimentos. Mas Ermelinda era doce e reconhecida com D. Catarina, e esta, acostumada à sua companhia, estimava sinceramente a afilhada.

Formado, Carlos demorou-se na Cardenha desde um Maio, em que fizera o acto de 5.° ano, até ao Novembro seguinte em que resolveu a mãe a ir viver com ele para Lisboa, onde, asseverava, ia tratar de fazer carreira pela política.

Nesse intervalo, porém, as impressões repetidas que nele produzira durante as sucessivas férias a beleza de Ermelinda, somadas todas deram em resultado uma paixoneta erótica, uma toquade sensual, cega e violenta, contra que valeu apenas essa qualidade de egoísmo frio, já então desabrochado na alma da mulher e que a fazia vencer-se a si própria pelo único interesse do seu futuro.

Ermelinda percebeu o desenvolvimento da paixão no morgadinho, e viu logo os inconvenientes dela. Não lhe convinha uma situação de amante com homem nenhum. Queria a sua fortuna e o respeito do seu estado garantidos e bem seguros pelas leis. Não acreditava nos juramentos humanos, porque não acreditava em si mesma. Sabia-se capaz de perjurar, mesmo contra a sua consciência, e tinha portanto um cepticismo generalizado a todo o mundo a respeito dos sentimentos de lealdade e de boa fé. Por isso, apesar do seu exterior nervoso, sensual e histérico, resistiu com valor à paixão tentadora de Carlos.

Uma tarde, ao fundo de uma rua do jardim, num recanto sombrio coberto pela ramaria de uma grande magnólia, junto de um muro donde se avistava toda a paisagem do vale, Ermelinda, que tinha andado a apanhar flores para os aposentos de D. Catarina, sentou-se um momento.

Era uma tarde de Setembro, dessas tardes de uma melancolia vaga, em que os poentes iluminam o horizonte cor de opala com a luz esbatida e temperada do Outono, cuja radiação vibra como que em surdina... Vinham do vale sons amortecidos -- de cantigas em coro ao recolher do trabalho, de carros chiando lentamente pelos atalhos, de cães latindo às portas das herdades, de rãs coaxando nos charcos. E sobre estes rumores esparsos e destoantes vibrou três vezes o toque das ave-marias em badaladas graves, distanciadas, cheias de um misticismo poético e simples. Na linha serpeante do pequeno rio estendia-se uma tira imóvel de neblina, de entre a qual irrompiam os ramos esguios dos choupos vagamente esfumados na grande serenidade do ar. Sobre o fundo azul-pálido do horizonte alastrava a grande mancha negra do monte fronteiro, indistinto na sombra do lusco-fusco, e no céu a primeira estrela cintilou, com uma luz dúbia e fraca, com a palpitação fosforescente de um fogo-fátuo.

Ermelinda, encostada ao parapeito do muro, olhava contemplativa aquela cena outonal do entardecer. Trazia um roupão de lã cinzenta, espécie de vestido que habitualmente usava, por não ter o carácter de uma toilette de senhora, que não poderia sustentar como ela queria, nem a simplicidade de um trajo de criada, incompatível já com os seus hábitos educados. Os ramos espessos e pendentes da magnólia faziam atrás dela um plano de sombra, e portanto o seu busto, debruçado sobre o muro, desenhava-se indeoiso na claridade frouxa do crepúsculo, num vago de contornos, como o das pinturas de Henner.

Carlos atravessava o jardim, e descobriu-a ali. Avançou em silêncio, e entre a ramaria da árvore fitou-a longamente, com um desejo irreprimível de animal cioso, la lançar-se a ela, tomá-la de assalto entre os braços, quando Ermelinda, pressentindo-lhe as passadas, se voltou com rapidez.

-- Oh! Estás muito romântica!... -- disse-lhe todo nervoso. -- Não, Sr. Carlos, estava descansando um pouco -- respondeu Ermelinda no tom mais indiferente do mundo.-- Corri todo o jardim atrás de flores para pôr no quarto da mamã. Não há nada que preste. Está tudo numa lástima... -- Sim! Tu és pouco para poesias... Quem não tem coração...

-- Ora essa! -- interrompeu ela rindo. -- Tu?... Tu és um pedaço de gelo... -- Mas o gelo lá tem o sol que o derrete, como diz aquela lengalenga muito comprida que o menino me contava em pequeno... -- E riu-se de novo.

-- Mas é que não há sol que desfaça o gelo da tua alma, minha ingrata... -- replicou Carlos, descambando num lirismo chocho, com que queria suavizar a brutalidade da sua fúria erótica.

-- Ah! Sr Carlos, não me chame nomes que não lhe mereço...

-- Oh! isso mereces!... Vês-me sofrer assim... vês como eu ando por tua causa...

-- Se é aí que quer chegar, Sr Carlos, é melhor deixar-me-- atalhou ela com uma grande frieza. -- Já lhe disse ao menino que não estamos em posição de nos entendermos a esse respeito. Sr. Carlos, é preciso ter juízo... -- Ora, não sejas tola, não te faças fina... -- dizia o rapaz já fora de si.

E deitou-lhe nervosamente as mãos aos pulsos.

Ermelinda retesou os braços para o desviar, e serenamente: -- Sr Carlos, poucas graças dessas! -- disse. E como ele a apertasse mais, acrescentou com voz dorida: -- Ai!... olhe que me magoa... -- Não, já não te deixo! -- murmurava surdamente Carlos. -- Não sejas criança... Amo-te muito... -- Olhe que eu grito... olhe que eu grito contra si, Sr. Carlos!... E corria-lhe com as mãos os braços, querendo estretá-la contra si. Ermelinda debatia-se em silêncio; mas como Carlos se adiantasse demais ameaçou-o sem exaltação: --Pois grita, grita à vontade!... És minha, entendes?... és minha!... Ermelinda então mostrou ceder, como vencida; mas quando Carlos lhe deixou os braços para lhe tomar a cinta, ela, vendo-se um momento livre, deu-lhe uma bofetada com toda a sua força, fazendo-o recuar dois passos, estonteado pela dor e pelo insulto. E aproveitando esse instante de indecisão deitou a correr pelo jardim. Quando entrou no quarto de D. Catarina, disse com a maior naturalidade do mundo: -- Ai! lá me esqueceram as flores ao pé da magnólia grande. Vou ver se o José as pode ir agora lá buscar... Sinto-me hoje tão cansada, madrinha... nem faz ideia!

IX

D. Catarina ainda pensou em levar a Ermelinda para Lisboa, mas a rapariga declarou não querer sair de ao pé dos pais. No fundo ela procurava apenas evitar a perseguição de Carlos, que já duas vezes tentara de novo possuí-la. Portanto, quando os últimos senhores da Cardenha foram residir para Lisboa, Ermelinda voltou para casa dos pais, onde não vivia de cama e mesa havia quatro para cinco anos, desde a morte do Sr. Morgado velho. Na Portela passava os dias costurando e tratando das flores. De tempos a tempos escrevia à madrinha, que lhe respondia em longas cartas cheias de afectuosos conselhos. Mas esta correspondência durou pouco, porque D. Catarina meio ano depois de chegar a Lisboa caiu de cama com um tifo que em cinco dias a matou. Ermelinda sentiu deveras a morte da madrinha, única pessoa talvez que ela estimava verdadeiramente no mundo. Depois desta perda achou-se completamente só, sem ninguém com quem comunicar. Tudo na aldeia lhe era inferior em gostos e em hábitos; e ela, não o fazendo sentir, punha-se contudo numa tal reserva de maneiras e palavras que a ninguém consentia uma aproximação de trato íntimo. Em casa o seu quarto, muito arranjadinho, com duas janelas engrinaldadas por trepadeiras, papel claro, cortinas de cassa, e sempre um vaso com flores sobre a mesa de costura, contrastava com a nudez sóbria e sem conforto do resto da habitação. Ficara com muita roupa ainda em bom uso que a madrinha lhe havia dado, ao sair da Guardeira; e para ela era já uma necessidade enraizada o sentir na pele o contacto doce das holandas finas ou da malha do fio de Escócia. E tanto nisto, como nas mais pequenas coisas, acentuava-se o destaque de uma educação diversa e de tendências e costumes diferentes dos da sua família. Nestas altura nenhum rapaz dos sítios se atrevia a requestá-la. Os mais pimpões, que se tinham arriscado a arrentar-lhe, diziam despeitados, na sua decepção: «Está ali guardada para um príncipe. Ora a tola!...» Mas guardada ou não para um príncipe, a Ermelinda continuava intratável e pouco comunicativa. Afastada desde pequena da companhia da família, não sentia por ela aquele afecto radicado nos episódios da convivência doméstica, nas tradições de uma pequena história íntima, que ata e estreita os laços de sangue. Decerto pensava no seu futuro, reconhecia que a vida que levava não lhe servia como uma condição definitiva. Mas cheia de tino prático reservava-se, paciente, sem se comprometer nalgum passo leviano que lhe cortasse as probabilidades de sair um dia do seu estado social. Esperava com fé um imprevisto, um caso fortuito -- como havia muitos, dizia ela. O convívio da família era no seu espírito uma necessidade transitória. E firme, segura de si, cautelosa e vigilante, farejando os acasos, calculando sempre, vencia os estímulos espontâneos do seu temperamento, as exigências imperiosas do seu sangue ardente, as solicitações da sua carne de hetera. «Depois... depois...», dizia a si mesma quando picada pelos incitamentos da tentação. E estas palavras traduziam todo o egoísmo pérfido e consciente daquela alma. Prometia o prazer livre à sua carne quando estivesse garantida contra as consequências dele, quando se achasse segura pelo dote e independente pela fortuna. Não eram a virtude, a consideração do dever, o temor religioso, a crença moral, que a desviavam do erro; era o medo dos resultados funestos de um mau passo -- a gravidez no celibato, a miséria de um enlace pobre, a condição subalterna da concubina, a sorte vária, instável e como escrava, da prostituta. A sua maldade tinha uma direcção de bom senso, de previdência, de consciente malícia, que tocava quase as raias do cinismo. Era uma precocidade de manha prática, de desiludida compreensão da realidade da vida -- bem rara numa alma de tão poucos anos, e esses passados num mundo restrito de aldeia, longe das convulsões, dos embates, das lutas, das intrigas, que agitam a existência dos grandes centros. Mas na Guardeira ninguém lhe suspeitava este carácter, ninguém a conhecia na verdade do seu tipo moral. A sua reserva passava por um encanto de tristeza; o seu mutismo concentrado explicava-se como saudades da madrinha que tanto a estimara; a sua vida sedentária, passada invariavelmente no quarto ou no pequeno jardim da Portela, tomava-se como prova de gostos modestos, de amor a uma existência caseira e recolhida. «Que jóia!», dizia todo o mundo. E os próprios pretendentes recusados não se atreviam à menor murmuração sobre a sua fama de mulher honesta. Havia, contudo, transpirado na aldeia a história da paixão do Dr. Carlinhos. Contavam-se de um modo vago umas cenas de declaração e de promessas de casamento, que Ermelinda recusara. Mas isto servia apenas para a maior exaltação das suas qualidades, pois essa imaginária recusa foi de todos considerada um acto de rara modéstia e de tino excepcional. O Dr. Carlos, dizia-se, poderia mais tarde arrepender-se de um casamento com mulher de posição inferior à sua, que teria de apresentar à fidalgaria de Lisboa, e-- o que mais era --achar-se impedido de realizar um consórcio rico, que lhe ajudasse a endireitar a casa. Ermelinda sentir-se-ia infeliz se tal se desse, e teria querido evitar a posição desagradável de mulher desprezada e esquecida. Era um procedimento sem igual, toda a gente concordava! e a toquade erótica do morgado, que nem sequer oferecera a Ermelinda uma posição de amante, sustentada e mantida, era interpretada na aldeia como um amor puro e respeitoso, com um honesto fim matrimonial! Quando, ano e meio depois da morte da mãe e dois depois da mudança de residência para Lisboa, o morgado teve de abandonar a sua vida à rédea larga e voltar para a Cardenha, entregue a feitores rotineiros e roída já pelas hipotecas, passou meses sem ver Ermelinda, pois os Boa Sorte não tinham dado o braço a torcer depois do rompimento com António da Silveira, e Carlos, pelo seu lado, ficara-lhes com má vontade pelo facto de eles não assistirem ao funeral do avô. Por questões políticas, Francisco da Silva teve de fazer as pazes com o morgado. E quando Carlos foi à Portela pagar-lhe a visita, viu então a Ermelinda, que tinha nessa época vinte para vinte e um anos. Mas durante a sua ausência, na vida fácil de Lisboa e do Porto e na viagem a Paris, ele havia-se quase saciado de mulheres. Tinham sido elas a causa principal das suas dissipações. Em dois anos contara as amantes pelos meses, quando não pelas semanas. Ocasiões houve em que os seus amigos lhe chegaram a conhecer três -- simultaneamente. De todos os tipos, de todas as raças célebres pelas suas especialidades em mulheres de prazer, este frascário havia gozado, dando nesse espaço de tempo plena expansão à sua sensualidade represa ou mal alimentada até ali na prostituição reles e barata de Coimbra. Portanto Ermelinda não o impressionou de todo, nem a sua formosura, mais firme e definida agora, fez reviver de algum modo a chama apagada. E, indiferentes e frios, cumprimentaram-se des- prendidamente nas raríssimas ocasiões em que sucedia verem-se. Era esta a situação da filha de Francisco da Silva quando o tio Joaquim chegou do Brasil. Mal se recebeu na Guardeira a carta em que o parente, desconhecido para ela, anunciava o seu regresso com tenções de se estabelecer entre os seus, Ermelinda suspeitou a probabilidade do acaso com que havia tanto tempo contava. Ainda Joaquim Soares, a bordo do paquete, com a sua carteira cheia de letras de alto valor sobre Londres, vinha a caminho da pátria, já no seu lugarejo natal uma sobrinha, cuja existência ele apenas conhecia, calculava friamente o meio de ver deposto a seus pés, como a oferenda de um vassalo rendido, o troféu monetário que esse conquistador da fortuna trazia dos países do ouro. De maneira que quando o bom homem a abraçou, a beijou nesse dia do regresso à sua aldeia, donde saíra aos quinze anos, Ermelinda contou logo transformar aquelas carícias ingénuas como a pessoa de quem vinham, nesse penhor sagrado, nessa liberdade casta e virginal do primeiro beijo e do primeiro abraço, que as mulheres, entre o gozo e o pudor, concedem puramente aos noivos. E a pouco e pouco, sem que Soares desse por isso, ela entrava-lhe furtivamente no coração, e num hábil disfarce estendia-lhe todos os laços. Eram a maneira de o receber, a maneira de o olhar, a maneira de lhe sorrir. Era a distinção, como que natural e não premeditada, com que o tratava, o ouvia ou lhe falava. Era o interesse que, o mais a propósito possível, ela mostrava pelos seus negócios e pelas suas empresas. E, representando maravilhosamente um difícil papel de ingénua, permitia-se com ele liberdades acirrantes: deixava-se beijar fitando-o com uma languidez voluptuosa de criança amimada; tomava-lhe a mão para lhe ver o brilhante do anel; punha-lhe, a rir, uma flor na lapela, tocando-lhe os lábios grossos com os fios crespos dos seus cabelos negro-azuis; e às vezes para saltar um portelo, passeando no campo, atirava-se-lhe aos braços atléticos com a gargalhada franca e pura de uma rapariguita inocente. Se subiam juntos as escadas de pedra, que davam para a varanda alpendrada, ela passava-lhe adiante, apanhando o vestido; e outras vezes, sentando-se, cruzava como que distraidamente uma perna sobre a outra, deixando ver o artelho fino entre uma brancura de saias, mais tentadora do que a completa nudez. Mas a todos estes artifícios, com que lhe espicaçava a carne e o coração, conseguia dar uma aparência de tal forma simples e natural que ninguém suspeitava do seu bem tramado plano, em que não desanimara durante três anos. Supunham-na muito amiga do tio, cativada da sua bondade insinuante. E ela para confirmar esta suposição repetia a cada momento a uns e a outros: «O tio é um santo: morro por ele!» E assim, mostrando-lhe uma simpatia desinteressada, fazia crer que o brasileiro grosso e vulgar não lhe era repugnante; e, prendendo-o, enredando-o, numa aparência de simples estima, colocava-se para o casamento em pers- pectiva no terreno seguro de o aceitar, em vez de se fazer aceitar por ele. O pobre homem, desacostumado às carícias femininas, começou por pagar centuplicada a simpatia da sobrinha: enchia-a de presentes, queria-lhe como a uma filha, dizia ele. E a pouco e pouco, levado pelos carinhos, pelas distinções, pelas preferências da rapariga, preso da sua bem representada candura, crente na sua inocência, deixou-se arrastar, desprevenido e cego, no declive da paixão. Ermelinda sentia os progressos da sua conquista, e, como uma pequenina aranha venenosa, estilava da baba subtil da sua maldade os fios ténues e brilhantes em que esse pobre moscardo do tio se havia de deixar prender.

X

-- Tu precisas de casar, rapariga -- dizia o abade à sobrinha, sentado num banco do hortozito da Portela, enquanto Ermelinda arrancava as ervas dos craveiros, alinhados em vasos e em caixões de madeira sobre o parapeito do muro que dava para a estrada. -- Para quê, tio? Estou tão bem com meus pais...-- respondeu ela numa serena indiferença. -- Pois sim, mas isso não é posição -- retrucou o padre. -- Há viver e morrer. É lei do mundo, filha... é lei do mundo. E depois uma moça da tua idade não pode assim ficar ao deus-dará... Quem tens tu nesta vida que te ampare faltando-te teus pais? O malandro do teu irmão?!... -- Ora... é melhor nem falar nessas coisas -- continuou a rapariga, sem se interomper na sua jardinagem.-- A morte é bem triste quando vem: para que se há-de a gente ralar pensando nela?... E se isso acontecesse, não me faltaria o amparo de pessoas amigas... Tinha os tios... -- Estamos todos velhos, rapariga. E depois um tio nunca é um marido... sim, por mais amigo que se seja, não é aquela estima sem reservas do casamento, vês tu? Olha: tenho pensado muito nisto... custa-me ver assim acabar-se a família: meus irmãos não se casaram; apenas tua mãe; nasceram vocês dois, e não vos vejo com inclinações para aí; teu irmão é um gaiato, que o que quer é derri- çar sem se prender; tu não te decides, e aí está; Ora eu bem sei que não te quadram estes moços daqui. Tiveste outros princípios, outra educação na casa dos morgados, afidalgaste-te de maneiras, e se, louvores ao céu!, te não fizeste soberba, também não te serve homem da tua primitiva criação... Bem sei isso... Mas enfim, é preciso... é um passo necessário... Era bom deitar os olhos... Às vezes, onde menos se espera... Ermelinda ouvia-o, tentando dissimular a sua surpresa. Onde quereria o tio chegar? Seriam aqueles conselhos unicamente uma lembrança, uma ideia do abade, ou haveria já através deles qualquer manifestação dos sentimentos do brasileiro? Cautelosamente dispôs-se a explorar o terreno. -- Mas então com quem quer o tio que eu case? -- perguntou, passado um momento. -- Reconhece que não há aqui homens de que eu possa gostar; hei-de mandar vir um de fora, por encomenda? Depois o tio sabe muito bem que eu não sou das que se deixam levar por namoros. Ai! eu tenho visto no que isso dá: em pouco tempo não se entendem, e é um inferno. Nada. O casamento é um passo muito sério... deve ser muito pensado... É por isso talvez que até hoje me não decidi, e mais o tio bem sabe que não me têm faltado basbaques, plantados um dia inteiro aí defronte dessa janela. -- Pois de acordo, plenamente de acordo, filha -- tornava o abade. -- Pensas muito bem. Assim é que é. Mesmo por te ter na conta de uma rapariga de juízo é que eu entendi dever falar-te... assim. -- E calou-se de súbito, como se tocasse no ponto grave da questão. -- Mas o tio imagina que alguém?... -- perguntou Ermelinda numa interrogação terminada em reticência. O abade hesitava em se lançar francamente no caminho aberto pela sobrinha. Lembrar-lhe o irmão, como se da parte deste nada houvesse por enquanto, era fazer dele um joguete de interesses, era tratá-lo como o objecto de um negócio vergonhoso, que decerto -- pensava o padre -- a dignidade da rapariga repeliria. Parlamentar o caso, como enviado do brasileiro, era ultrapassar os limites do seu mandato, ir além dos termos que lhe haviam sido indicados. O abade via-se seriamente embaraçado. -- Eu te digo -- resmungava ele... -- eu te digo... Sim... nestas coisas de coração... tu sabes... a gente lembra-se, imagina... bota as suas contas. Ora eis aí está!... -- Mas o tio botou as suas contas a alguém? A pergnta era decisiva. Debruçado sobre os joelhos, com os olhos no chão, querendo dar-se um ar despreocupado, o abade verrumava a terra com a ponteira do seu enorme guarda-sol. -- Botar as contas... é um modo de dizer. Lembrei-me apenas... -- Mas de quem?... -- perguntou Ermelinda com a mais natural curiosidade. O abade levantou a cabeça sorrindo-se. -- Do tio Joaquim!... -- respondeu finalmente. -- Ora!, o tio está a rir! -- disse ela num tom de incredulidade e ligeiro desapontamento. -- E como se a conversa estivesse morta e já sem interesse, começou a regar os seus cravos. Entalara entre os joelhos a saia de chita, de largo xadrez cor-de-rosa, para se não molhar, e em bicos de pés sobre uns tamanquinhos de verniz, que usava quando vinha ao jardim, com os braços altos, o peito saliente, quebrada nos rins, numa postura de cariátide, dando ao corpo toda uma linha graciosa desde a cabeça erguida até ao contorno fino dos calcanhares, borrifava por um regador pequeno, um a um, os grandes vasos de barro vermelho. De repente, porém, o regador ia-lhe tombando das mãos, e se o abade lhe não acode tê-la-ia encharcado. Mas ela, reparando que o tio lhe notava o rubor súbito e a ligeira tremura dos lábios, disse-lhe a rir, tomando um longo hausto de respiração: -- Devo estar muito vermelha. O regador pesava tanto... A sua perturbação, porém, tinha outra causa: era a comoção da vitória, o prazer estonteador do enfim! ao cabo de uma demorada empresa!...

-- Mas pensa nisto, rapariga! -- tornava o abade, querendo reatar a conversa. -- Olha que é um negócio sério. -- Ora tio, isso não tem pés na cabeça! -- respondeu ela, mostrando-se cada vez mais despreocupada. -- Mas porquê? -- Porque nós nunca pensamos um no outro... -- Nunca pensaram um no outro... Não está má essa! Mas pensem agora... -- volveu o padre. -- De resto eu não te digo que decidas já. Digo-te que penses... que converses com o travesseiro... -- Ora... -- repetiu com uma reticência Ermelinda, abaixada a pôr uma estaca numa roseira. -- Qual ora! -- insistiu o velho. -- Por acaso desagrada-te o tio?... Eu bem sei que ele não é já muito rapaz... -- Não é por isso... -- Também não é aí nenhum Narciso de formosura -- notava puxando pelas suas reminiscências mitológicas. -- Também não é por isso... -- Então por que é? Desembucha para aí, rapariga! -- Ora por que há-de ser!... porque o tio é muito rico e há-de querer uma mulher de outra educação, de outra classe... -- Lérias, lérias... histórias da vida! --exclamou padre Inácio. -- Ora adeus, minha amiga! Teu tio o que quer é uma mulher de juízo e de boa fama. Não vês o que aquilo é?... um santo homem tão simples e tão modesto que até recusou a comenda quando foi da inauguração da escola... Então ele não podia ser o Sr. Comendador, como o brasileiro do Carvalhido, ou aquele barão aí de ao pé das Ortigueiras, que também por lá andaram nesses Brasis atrás da fortuna?! Deixa-te de tolices! O Joaquim é aquilo que ali está, vês tu? O que ele quer é fazer bem: tem aquele coração nas mãos para todo o mundo. É uma alma de pomba... é um santo. Importa-se-lhe agora lá com o nascimento das mulheres, quando elas possam ser esposas honestas... -- Pois sim, mas... -- disse Ermelinda, meio meditativa.

Mas o quê?... -- Eu sei lá se o tio me quererá... -- Temos nós outra!... Pois isso também eu não sei... Mas... mas supeito-o... -- Suspeita-o? Porquê? Ele disse-lhe alguma coisa? -- interrompeu ela. -- Dizer não disse: sim, ele não mo declarou... -- gaguejava o padre. -- Deu-mo contudo a entender... Queixa-se de que está só na Cardenha... que lhe custa não ter quem lhe goze o dinheiro... que se lhe aparecesse uma rapariga nas condições que ele desejava, assim não muito fora da sua igualha, mas num pé de educação cuidada, se não botava fora do casamento... Percebes?... um meio palavreado... Mas eu dei logo no vinte, e falei-lhe claro. Disse-lhe o que te disse a ti; se tu lhe servias, que me parecia que estavas na conta... que era o que ele precisava, etc. -- E ele? -- Ele pôs-se com essas mesmas lérias: que tu talvez não gostasses dele, que era um velho, que por te estimar muito não te queria ver forçada a um casamento sem vontade... e por aqui adiante. -- Por isso te digo: pensa no caso. Se tu vês que te convém, que és capaz de o estimar, eu dou-lhe umas esperanças, ele fala-te e temos o negócio arranjado. Se não te convém, dize-mo igualmente com franqueza: não se lhe diz nada, e fica tudo como dantes. Estás por isto? -- Pois sim, tio... -- respondeu Ermelinda, como hesitante. -- Pois sim, eu pensarei. Já vê que é muito sério. Mas enfim... o seu conselho... -- E depois de uma pausa acrescentou sorrindo: -- Daqui a três dias dou-lhe uma resposta... -- Ora ainda bem! -- exclamou o padre. -- Pede ao Espírito Santo que te alumie e te inspire um bom propósito! Adeus, filha, adeus. Vou cá dentro ver o pai. E subiu apegado ao guarda-sol as escadas que davam entrada para a casa.

XI

Quando se decidiu o casamento toda a Guardeira ficou boquiaberta. Uns chamavam sonsa a Ermelinda e entendiam que tinha havido armadilha em todo aquele negócio, lamentando o brasileiro. Outros -- os mais íntimos -- defendiam a rapariga jurando sobre a sua inocência e sobre o seu juízo. Decerto --diziam estes -- não era um casamento de amor; mas Ermelinda estimava o tio, respeitava-o muito, e no fim de contas só ele a podia manter no pé em que a haviam educado, em outros tempos, os fidalgos da Cardenha. Os Boa Sorte exultavam. Soares, esse julgava-se o homem mais feliz do mundo. Não acreditava que da parte da Ermelinda pudesse haver paixão, mas cria facilmente que ela o estimava deveras e que se lhe entregava sem repugnância. Ao declarar-se-lhe falara-lhe com a sua rude franqueza. Pedia-lhe apenas que fosse sincera para com ele, que não se constrangesse a um casamento de conveniência, pois, mesmo solteira, nunca a sua protecção lhe faltaria. Mostrou-lhe que conhecia a diferença de idade que havia entre eles «porque, acrescentava sorrindo, costumava ver-se ao espelho». Mas se não era um rapaz que a pudesse encantar estava certo, contudo, que a estimaria mais do que nenhum outro homem. -- Ó tio, basta-me a sua estima para me fazer feliz -- respondera Ermelinda. -- Sabe que eu sempre fui muito sua amiga... Creia que hei-de ser tão boa esposa, como tenho sido sobrinha... E o pobre Soares chorava lágrimas de um doce enternecimento de criança!...

XII

0 casamento foi pouco tempo depois. Soares imediatamente à decisão H mandou ir a irmã ao Porto com a sobrinha para tratarem do enxoval. -- Quero tudo do melhor! -- recomendava. -- Nada de economias! E Ermelinda, com esta carta branca, corria dias inteiros as lojas da cidade, escolhendo, comprando, mandando cortar vestidos à larga em casa das modistas. Pelo seu lado Joaquim Soares chamava um estofador do Porto para arranjar o boudoir da noiva. Ela foi consultada, e depois de uma larga conferência resolveu fazer forrar as paredes a azul-claro, com estofos de cor igual na mobília e reposteiros. À cerimónia na igreja paroquial afluiu toda a aldeia. Quando Ermelinda entrou, correu nas alas das mulheres endomingadas um murmúrio admirativo. Trazia um vestido de seda branca enfeitado com ramos de flor de laranjeira, e o grande véu de noivado envolvia-a como na transparência diáfana de uma nuvem. «Parece mesmo um anjo do céu!», corria de boca em boca. E efectivamente o seu corpo alto e fino, de uma elegância magra, em que o sexo como que se espiritualizava tomando um aspecto angélico e celeste, todo o seu porte recolhido -- os olhos baixos, os braços pendentes, a figura tranquila e macerada rompendo da alvura nebulosa e virginal do véu esponsalício--, faziam-na assemelhar-se às visões incorpóreas e vaporosas dos espíritos alados do catolicismo. E a aldeia em peso não se fartava de admirar. Soares, com a sua eterna lágrima de comoção ao canto do olho, seguia atrás com a irmã pelo braço, la rutilante na casaca de pano luzidio, entre cujas lapelas destacava o peitilho da camisa, coberto de bordados ao longo da abotoadura e polido com um esmero cerimonioso e festivo. Mas na sua passagem, a Sr.a Joaquina do Beiral, a mulher do tendeiro, que tinha na terra uma reputação de Messalina, voltou-se para uma comadre que a acompanhava e disse-lhe num sorriso de vício desavergonhado: -- Ai! coitada... Não lhe paga a fortuna o aguentar um boi destes... Ao fim da cerimónia, que foi longa, com missa e órgão, as alas do mulherio mais se apertavam para ver o par, já enlaçado sacramentalmente pela liturgia da Igreja. E o pasmo, cortado de alguns risinhos abafados de escárnio despeitado, atingiu o cúmulo quando Ermelinda, apanhando a cauda do vestido e curvando o tronco ligeiramente, entrou seguida do esposo para a caleche da Companhia, tirada por cavalos ruços, com cocheiro e trintanário fardados, que Soares fizera vir expressamente para a cerimónia. Ao ver partir a caleche e atrás o char-à-bancs pingão, em que seguia o resto da família, a Sr.a Joaquina, já no adro, com gestos de rameira bêbeda, repetia à comadre, como falando para Ermelinda: -- Ó pomba, não te invejo a sorte! Eu cá não avezo desses luxos, mas ao menos é só com os que me agradam... -- Ora deixa lá -- observou a comadre Justina. -- Ela há-de ser como as mais... E terminaram a observação com uma grande risada, cheia de malícia e descaramento, batendo palminhas e dobrando-se pelos quadris no excesso do riso.

XIII

Os primeiros meses do mértage foram para Soares um paraíso. Ermelinda era dócil e boa. Não tinha para com ele o impulso apaixonado de uma noiva que, vencidas as primeiras indecisões do pudor, se lança aos braços do marido, procurando os seus beijos e o seu contacto. Mas era condescendente e carinhosa com ele, como uma amante que, por ser paga, representa obrigatoriamente o seu papel. Cedia à impertinência das suas festas, aos extremos fastidiosos dos seus carinhos. Entregava-se sem repulsão, mas sem gosto, aos seus beijos e aos seus abraços. Respondia-lhe um eterno sim às suas perguntas repetidas de um lamechismo serôdio de pé-de-boi apaixonado. Se ele a procurava na sua toilette abria-lhe logo a porta, estivesse como estivesse. Mostrava-lhe sempre a melhor cara e oferecia-se-lhe para uns pequenos serviços que lisonjeavam o pobre homem: dar-lhe o laço na gravata, ajeitar-lhe o colarinho, segurar-lhe um botão do casaco, ir buscar-lhe um lenço, um jornal, o chapéu de palha para ir à quinta. No que ela, porém, mostrava um verdadeiro interesse pela pessoa do marido era em tudo o que dizia respeito aos seus negócios. Mal Soares lhe confiava o mais ligeiro plano, ela tratava logo de o animar, de o apoiar, de lhe colorir o projecto com as cores mais sedutoras, de o envolver nos cálculos mais irresistíveis de tentação. Era o seu meio oculto de o afastar, criando-lhe novas preocupações, outros trabalhos, todo um grande meio de afazeres e negócios que lhe absorvessem o pensamento e a vontade, que o desviassem da sua pessoa, obrigando-o a repetidas ausências da Cardenha, e a deixassem a ela só e livre, numa completa independência de rainha, nesse senhorio onde arrastara outrora uma existência secundária de criada grave ou dama de companhia. Aparentemente aceitava-o com doçura, com condescendência, não querendo afectar uma paixão inacreditável e inverosímil. No fundo aborrecia-o profundamente e procurava afastá-lo por um meio subtil, disfarçado com habilidade numa aparência de verdadeiro interesse. Garantida num dote de quarenta contos em bons papéis do Crédito Predial, com a doação explícita de todas as suas jóias e objectos de uso, Ermelinda tinha segura a grande amarra do seu futuro, a âncora da sua vida. Agora era largar os panos às variações dos seus desejos e dos seus caprichos. Tinha tudo prevenido para uma tempestade, e o mar da existência não a assustava já como outrora. Mas inteligente e fina, confiada no êxito do seu paciente estratagema, que já lhe tinha vencido a primeira batalha, não se precipitava, nem tomava uma atitude declarada e franca. Como sempre, esperava; e, esperando, conservava diante do mundo crédulo e ingénuo a sua máscara de tino e de honestidade. A vida na Cardenha corria, pois, pacífica e monótona. Soares cuidava da quinta, preparava novas empresas, alargava rapidamente os seus domínios e a sua fortuna. Ermelinda governava a casa, sem as miúdas preocupações das mulheres parvenues, numa simples vista de olhos, mantendo tudo em ordem por uma rija disciplina entre os criados. De resto passava os dias tratando das flores, ou no seu gabinete azul, estendida molemente num divã, no aconchego do aposento íntimo, com um romance banal entre as mãos -- apenas para matar o tempo. E ali eram longas miradas ao espelho, horas perdidas na contemplação de si mesma, revendo-se, gozando-se -- saboreando numa beatitude sensual todo o seu luxo de roupas finas, cujo contacto doce lhe acariciava a pele. Aos domingos a casa emergia da sua paz habitual pela celebração do jantar de família, que era o enlevo de Soares. Reunia o pai, os dois irmãos, a irmã, o cunhado e o sobrinho, e durante o jantar era um tilintar alegre de talheres e de copos, cortado pelo bom humor ruidoso de Soares, pelos ditos do médico, pelas sentenças do abade e pelas intermináveis histórias do tempo dos franceses, tema predilecto do velho Soares. Comia-se e bebia-se pan- tagruelicamente. E ao fim destes banquetes, em que Soares mantinha as peças fortes do leitão, do cabrito, do perú, da perna de vitela, ele erguia-se da mesa radiante de felicidade, entre todos aqueles que amava e protegia com a sua riqueza, e sinceramente comovido exclamava com lágrimas na voz: -- Isto é que é viver!... O mais são histórias!...

XIV

Um dia, subitamente, um novo ataque de paralisia deixou fulminado o velho José Soares. Foi justo ao toque do meio-dia. O abade estava com ele: ouviram-se as badaladas do Angelus, e o velho, apesar de sentir as pernas mais fracas do que o costume, quis erguer-se para rezar, segundo um antigo hábito. Chegou a levantar-se apoiando as mãos aos braços da cadeira: mas de repente sacudiu-o uma convulsão, a face contraiu-se-lhe num esgar medonho deixando-lhe a fisionomia transtornada, de uma fixidez de máscara, e o corpo caiu redondamente no sobrado de bruços e a face contra a terra, como se recebesse em cheio no peito todas as balas de uma fuzilaria de pelotão. O abade, aterrado, abanou-o, chamou por ele, mas sentindo-o imóvel gritou pela família. Veio Francisco da Silva, a mulher, alguns criados; correu um homem à Cardenha, outro ao Soutelo a chamar o Ricardo. Mas o pobre velho, nonagenário, estava mais do que morto, e quando Joaquim Soares chegou, cansado de correr, pálido e com os cabelos em pé, viu já o cadáver do pai sobre o leito, desfigurado e horrível, com a boca contraída num sorriso hediondo, como o de um louco. Foi uma cena horrorosa. Soares torcia-se de desespero, debruçado contra a cama, apertando o cadáver entre os braços. Os seus soluços entrecortados, a sua voz estrangulada pareciam de um homem sofrendo uma tortura.

Quiseram tirá-lo dali, mas foi impossível. Ele, com a sua força de touro, repelia a todos cegamente e segurava-se à cama, como um náufrago desesperado a uma derradeira prancha. As suas palavras mal se percebiam cortadas pelas lágrimas e pelas convulsões dos soluços. Eram longas queixas contra a sorte, que o feria no meio da sua completa felicidade, palavras de desprezo para a sua riqueza que não lhe valia contra estes golpes, reminescências do pobre velho -- ditos, gestos, acções, que passavam no seu espírito indecisamente, num tumultuar de recordações incoerentes. Embalde o abade, também quebrado pelo sofrimento, lhe aconselhava resignação. Embalde a irmã e o cunhado o repreendiam amoravelmente. Soares vivia apenas daquela grande dor, sentia só, de todo o mundo, a presença daquele corpo inerte e rígido, cujo rosto conservava o seu esgar sinistramente cómico. Só Ermelinda, chegada um instante depois, o pôde sossegar. Ao vê-la atirou-se-lhe aos braços, e como ela o arrastasse para um velho canapé de palhinha, aí ficou chorando baixo muito tempo, com o rosto escondido no seu seio. A custo o levaram, perto da noite, para a Cardenha. Ricardo tinha chegado do Soutelo, e com outro médico confirmara o óbito. Entrava o armador para tomar medida do caixão e receber as ordens para o enterro. Começava-se a toilette do morto. Soares, quebrado pela fadiga da violenta emoção, caíra num abatimento profundo. Quando, porém, lhe falaram em ir dormir à Cardenha revoltou-se, e só depois de muitos esforços Ermelinda o fez finalmente ceder. Encostado ao braço dela seguiu então os atalhos sombrios da aldeia, fitando com os olhos marejados de lágrimas as estrelas que bruxuleavam longe, muito longe, no vago côncavo da noite...

XV

O luto prendeu-o em casa por uns dois meses tornando a aproximá-lo mais da mulher, que durante esse tempo havia sido deveras carinhosa e meiga para com ele. Soares estivera mal alguns dias, agitado, cheio de febre, com dores de cabeça que pareciam fender-lhe o crânio. E ela não o deixava, afagando-o, consolando-o, animando-o, pregando-lhe afectuosamente a resignação e a paciência. Quando foi à missa do sétimo dia não parecia o mesmo homem: emagrecera, perdera a cor, e os olhos inchados das lágrimas e pisados de olhe iras cerravam-se, como medrosos da luz, das pessoas, das coisas... Desta prova Ermelinda saiu com o seu nome confirmado numa inabalável reputação de esposa modelo. Soares chamava-lhe a sua santa e confessava que, se não fosse ela, não resistiria àquele golpe duro e brutal: o abade beijava-a comovido, e todos concordavam em que se não podia exceder tanta dedicação, tanto carinho, tão bom juízo e tão finos sentimentos de caridade. Para toda a Guardeira era ponto de fé que o brasileiro devia a existência aos extremos de consolação e ao nobre exemplo de coragem de sua mulher. Para o distrair -- dizia ela -- animava-o a dar começo a certas empresas. Assim, ao fim de três meses de reclusão, transformado o desespero na saudade tranquila que é a dulcificação da dor, Soares pensou de novo nos seus trabalhos. Entrou a ir frequentes vezes ao Porto para tratar da formação de uma sociedade de capitalistas, que explorasse a força motora de uns açudes do rio Leça, numa indústria de fabricação de papel. Em pouco tempo, com a complicação crescente do negócio, os ajustes, as entrevistas, as conferências, que precedem tais empresas, teve Soares de passar dias inteiros no Porto, dando ordem para que o não esperassem ao jantar. Uma vez mandou aviso dizendo que não ia ficar à quinta nessa noite. Ermelinda mandou-lhe pelo portador um bilhete, pedindo-lhe que ao menos não viesse tarde no dia imediato; mas à meia-noite, ao deitar-se, vendo desocupado todo o grande leito conjugal, teve um suspiro de satisfação. -- Até que enfim!... -- murmurou ela ao adormecer. Entretanto sobrevieram dificuldades no negócio da pequena fábrica de papel. A política meteu-se nisso: houve toda uma intriga no Governo Civil do Porto e nas Administrações da Maia e de Bouças, intriga que ia comprometendo a empresa. Casualmente, porém, caiu o Ministério, e com a nova gente Soares tinha certa a vitória, pois que três dos seus mais ricos associados eram trunfos reconhecidos dessa situação. Logo que chegou ao Porto o governador civil recentemente nomeado, Soares não o deixou mais, e lá conseguiu que ao novo administrador do concelho se recomendasse desde o princípio o protectorado da fábrica. Quando o administrador foi tomar posse do lugar, Soares saiu logo antes de todos a cumprimentá-lo e convidou-o para se hospedar na Cardenha sempre que viesse à administração, visto não residir na localidade. O administrador aceitou gostosamente e nessa mesma noite dormiu num dos largos aposentos do velho solar dos Silveiras. O administrador Alfredo Sampaio era um bacharel em Direito saído recentemente dos bancos da Universidade. O pai, procurador encartado no Porto, destinara-o à carreira da advocacia contando dar-lhe as causas da sua enorme clientela. Mas durante a sua formatura o jovem Sampaio fizera em Coimbra uma alegre vida de cábula, gastando ao pai as melhores libras ganhas a correr os escritórios e tribunais com os autos debaixo do braço. De maneira que quando se tratou de dar conselhos e instaurar processos, o jovem doutor nem um requerimento sabia fazer. O pai empurrara-o então para a burocracia, e como era influente entre os progressistas do Porto, conseguiu a nomeação dele para o concelho de Bouças, a fim de completar os dois anos de administração concelhia necessários para os concursos de secretário-geral. Era um rapaz de vinte e tantos anos, alto, branco, com feições efeminadas e miúdas, um pequeno bigode loiro petulantemente erguido nas guias, e o cabelo, muito aparado, aberto ao meio em duas marrafas cor de ouro fosco, empastadas sobre os frontais. Usava lunetas sem aros, e, através dos vidros, os seus olhos azuis, lânguidos e mortiços, tinham uma expressão de sensaborona doçura seráfica, como se fossem de um anjo míope. Vestia-se com uma preocupação de catitismo -- muito correctozinho, muito esticadinho, muito pregadinho. Todo ele era excelências, cortesias, requebros, amabilidades, exclamações admirativas para tudo o que era dos outros, um riso sempre aberto para saudar as graças do próximo. Completara a Sua educação de homem de sala nos clubes balneares da Foz, de Espinho e da Figueira, onde se fizera apresentar a todas as senhoras de um nome mais conhecido, e onde jogara o bilhar e o whist com todos os titulares e figurões políticos que conseguia obter para parceiros. De maneira que falava da condessa disto e do visconde daquilo, do conselheiro fulano e de madame cicrana, como de relações muito íntimas. A cada instante metia a sua pessoa nas conversas: «Foi há dois anos em Espinho. Dançava eu com a Sr.a Viscondessa de... e tinha por vis-à-vis o barão de... com uma bonita menina da Beira, da casa de tal. -- Uma vez na Figueira o deputado coisa contou-me em segredo...» E lançado neste caminho não se calava, saboreando a pronunciação destes nomes de grande nota, como se fossem rebuçados de rosa.

As suas grandes prendas de clubman eram recitar e valsar infatigavelmente. As senhoras provincianas da roda mais modesta adoravam-no por isso, e ele no meio delas imperava sem contestação, como homem que tinha pares entre as banhistas da high-life. Já duas meninas de Braga se haviam apaixonado por ele, mas o jovem Alfredo tinha juízo bastante para não dar assim a sua mão de esposo a título gratuito, num casamento de amor. Com este passado, mal Soares o apresentou à mulher, Alfredo Sampaio começou logo a posar de homem do mundo diante dela. À noite, nos longos serões, enquanto o brasileiro lia os jornais ou punha em ordem a enorme papelada dos seus negócios e Ermelinda, sob a luz do candeeiro, ponteava preguiçosamente um bordado, o belo Alfredo repetia as suas histórias de Espinho e da Foz, ou falava do seu tempo de Coimbra contando casos de efeito -- partidas de rapaz, noitadas estróinas, excentricidades boémias da sua troupe. E muito cheio de si cruzava continuamente a perna para mostrar a meia bordada e o sapato de verniz, puxava os punhos lustrosos, com botões de ouro em forma de ferradura cravejada a turquesas, lançava para o ar em baforadas repetidas o fumo do seu charuto, espetado numa ostentosa boquilha de âmbar. Ermelinda gostava de lhe ouvir as tagarelices. Às vezes ele citava um nome que ela conhecia pelas antigas conversas de D. Catarina. «O D. Francisco de Souselas..., dizia Alfredo. -- Bem sei, notava Ermelinda, é irmão da Condessa de Monte Alegre. -- Ah! conhece?... -- Muito de nome: a condessa era amicíssima da madrinha...» E a citação destes nomes históricos, estas conversas sobre personagens de alta condição, faziam-na reviver para os seus assuntos de outro tempo, quando a madrinha, abrindo diante dela maços de sobrescritos timbrados com coroas e armas, lhe contava novidades da capital e histórias íntimas de famílias de extensa linhagem. Havia cerca de seis anos que D. Catarina retirara da Cardenha, e desde então Ermelinda nunca mais convivera com ninguém que tivesse os seus gostos e o seu trato. A sua antiga existência reservada e infimamente solitária da Portela continuara-se na Cardenha. Moralmente o seu estado era o mesmo, ainda que as condições de posição e de riqueza tivessem variado. Alfredo era pois a primeira pessoa cuja convivência lhe dava a nota das suas predilecções e das suas tendências naquele triste deserto da Guardeira. E além dessas conversas prendiam-na à pessoa dele os seus hábitos e costumes delicados, os seus cuidados minuciosos de vestuário e de asseio. Fazia-lhe bem ver ao pé de si um homem que mudava todos os dias de roupa branca, que variava de gravatas e de casacos, que não aparecia à mesa sem um excessivo apuro de toilette, que se adivinhava num quarto pelo perfume suave da tília. E, se o via distraído, olhava-lhe as mãos brancas e transparentes, em cujos dedos afilados, de mulher, se enroscavam os aros de ouro dos anéis ingleses. Uma vez mesmo descobriram que já se tinham visto algures. Num relance, um olhar delambido de Alfredo, uma certa entonação açucarada da sua voz, evocaram no espírito de Ermelinda uma rápida visão antiga. Era uma imagem apagada da sua memória, que parecia aclarar-se e reviver, como um quadro abandonado há muitos anos a um canto, que um dia, limpando-se do pó, expõe aos nossos olhos uma fisionomia meio esquecida. -- Ermelinda ia jurar que já tinha visto Alfredo fosse lá onde fosse... -- Ele não se recordava, não tinha a menor ideia. Ela porém, asseverava que sim, só não lhe lembrava onde. -- Mas de repente exclamou, corando um pouço: -- Ah! já sei... Foi na estação de Campanhã quando o Joaquim voltou do Brasil. Era por força o Sr. Sampaio: a mesma altura... a mesma cor... loiro... de lunetas... -- Em Campanhã?! Seria... seria... -- disse o administrador. -- Eu devia andar então em Coimbra e nada mais natural do que encontrarmo-nos na estação... Mas não me recordo. -- Ora!... Era com certeza! Cada vez me convenço mais. Até à saída me apanhou o guarda-sol, que me caiu...

-- Ah! sim... sim -- interrompeu o outro. -- Agora me lembro... Era então a Sr.a D. Ermelinda?... Estava com seus tios... Andaram a passear muito tempo na plataforma antes de chegar o comboio. Recordo-me muito bem... perfeitamente. Era eu mesmo, com efeito... Ora tem graça! Que coincidência!... -- Tem graça realmente! -- disse Ermelinda. -- E como isto agora me lembrou!... -- De maneira que -- volveu Alfredo sorrindo-se -- somos já velhos conhecidos... E a lembrança deste caso lançou-os rapidamente numa intimidade de relações antigas. A pouco e pouco Ermelinda entrou a interessar-se pelas suas coisas. Quando ele vinha à Guardeira, esperava-o sempre o seu quarto da Cardenha num arranjo irrepreensível. Encontrava invariavelmente grandes ramos de rosas frescas num vaso de faiança, sobre a mesa onde havia os jornais do dia e alguns livros. Logo pela manhã um criado vinha arranjar-lhe o banho, e de umas vezes para os outras achava a sua roupa branca brunida e pronta nas gavetas da cómoda. Alfredo estava melhor do que em sua própria casa. Estes cuidados, estas deferências não lhe passavam, porém despercebidos. Foi-lhe fácil adivinhar a história do casamento de Soares, e em pouco tempo formou um juízo seguro e verdadeiro daquele ménage. Ermelinda, de resto, agradava-lhe: achava-a bonita, apetitosa, e além disso -- dizia ele em ar de velho Tenório experimentado -- mulher com o competente editor responsável... Uma mina! Um achado precioso! Neste pé começou a fazer-lhe a corte. Ao princípio arriscou meias palavras e olhadelas furtivas, a que Ermelinda correspondia sem embaraço. Mas o difícil era a declaração, porque Alfredo tremia sempre ao contemplar os bíceps formidáveis de Soares, desenhando-se-Ihe através das mangas do casaco, à menor contracção do braço. Depois falhavam-lhe também as ocasiões. Soares, que tinha concluído as conferências preliminares e as operações puramente financeiras do negócio da fábrica, começava agora a dirigir os trabalhos de construção, e por isso vinha invariavelmente ficar à Cardenha, pois o Leça passava coisa de uma légua distante da Guardeira. E além disto, sempre que o administrador estava seu hóspede, Soares julgava-se obrigado a nunca o desamparar. Passaram-se dois longos meses nesta indecisão. Alfredo, acirrado pelos desejos, apaixonara-se. Ermelinda, que o percebera, esperava apenas que ele se declarasse. A pouco e pouco convenceu-se de que era chegada a ocasião tão esperada, e maduramente pesou a ideia de tomar em Alfredo o seu primeiro amante. Todas as circunstâncias a favoreciam. Fora Soares quem metera o rapaz de portas a dentro; era ele quem lhe pedia que estivesse na casa como se fosse sua. Ela conhecera-o por seu intermédio, aceitara-lhe a intimidade por desejos do marido. Havia todos os meios de disfarce e todas as razões para se desculpar, se isso fosse preciso. Dominado pela paixão, Alfredo pretextava negócios urgentes na administração e demorava-se às vezes toda uma semana na Guardeira. Para experimentar o pobre Soares mostrou um dia desejos de alugar ali uma casita, pois aquelas permanências tão longas na Cardenha, dizia ele, eram já abusar da sua hospitalidade. Mas Soares opôs-se tenazmente, assegurando ao administrador que a sua presença não o incomodava nada nem o constrangia nos seus hábitos: ao contrário, até a considerava como um favor, pois que as suas conversas distraíam muito a pobre Ermelinda, que -- coitadinha! -- não fora criada para conviver só com aquela gente da aldeia. Alfredo rejubilou intimamente com estas disposições do seu amigo. Contudo a vida que se fazia na Cardenha não lhe oferecia ensejos favoráveis para se explicar de vez com Ermelinda, e essa situação vaga prolongar-se-ia indefinidamente se um acaso os não deixasse por fim um dia sós, em presença um do outro. Estavam uma manhã ao fim do almoço quando um criado veio dizer a Joaquim Soares que o mestre-de-obras, que dirigia a construção da fábrica, desejava falar-lhe imediatamente. 0 brasileiro ergueu-se, passou rapidamente o guardanapo pelos beiços, e saiu dizendo: -- O Sr Doutor dá-me licença, sim? Eu volto já. -- Ó Sr. Soares... por quem é! -- respondeu o administrador. Fazia um dia lindíssimo. Um belo sol de Junho entrava alegremente na grande sala de jantar, que dava sobre o jardim. Pelas janelas abertas viam-se retalhos de campo, sombras de pinhais, verduras de lameiros, e a faiscação do sol nas searas de milho, imóveis no ar parado. Lá ao fundo do vale um ângulo do rio aparecia, azulado como uma placa de aço, entre o renque dos choupos, tufados pelas parras opíparas das videiras. Havia uma tranquilidade profunda de calma, um desses sossegos dormentes, que dão à natureza o aspecto de uma grande paralização misteriosa. Não perpassava uma corrente de ar, não se ouvia o gemido extenso dos pinhais, nesses frémitos ligeiros, nesses pequenos movimentos, nesses rápidos sons, que deixam adivinhar a vida sob a imobilidade aparente da paisagem. Um calor tórrido vinha dos campos queimados pelo sol, abrasando o ar, como na proximidade de um grande forno. E ao fundo o azul muito puro, esmaltado pela luz, descia levemente sobre a terra, recortado no horizonte pelos dorsos dos montes e pelos rendilhados das árvores distantes, que lhe faziam como que uma franja sumptuosa de verduras. Sobre a toalha adamascada desfolhavam-se as rosas do centro-de-mesa, entre os copos e os pratos com restos de vinho e de comidas... O criado retirara-se momentos antes discretamente, enquanto Alfredo tomava os últimos goles de café, porque em toda a sua vida íntima e nos seus arranjos domésticos Ermelinda renovara na Cardenha os hábitos finos de D. Catarina da Silveira. O calor infiltrava-lhes um entorpecimento doce. Encostados ao espaldar das cadeiras sentiam-se invadidos de uma preguiça voluptuosa. E, em frente um do outro, fitavam-se com languidez, sem forças para trocarem uma palavra.

Alfredo, porém, pressentiu que o momento se aproximava e que era preciso não o deixar fugir. Para começar tirou de um charuto: -- Vossência dá licença?... -- perguntou. -- Pois não... -- respondeu Ermelinda. Ele acendeu um fósforo e demoradamente chupou o fumo azulado, que se enovelava no ar em espirais vagarosas. Depois, lançando os olhos pela janela, murmurou como numa observação distraída: -- Que lindo dia! -- Lindo! -- respondeu Ermelinda olhando na mesma direcção. Seguiu-se um silêncio. Alfredo não sabia como continuar. Sentia-se mole de corpo e de espírito, com longos bocejos, que reprimia mordendo os beiços. Tinha vontade de espeguiçar-se como um gato lascivo, de estirar voluptuosamente o corpo saturado de luxúria. Não lhe vinha uma ideia: o seu espírito absolutamente vazio, desnorteado pelo imprevisto da situação, deprimido pela sensualidade, não lhe sugeria um único expediente. Contudo, no meio desta inércia invencível, percebia que perder esse momento era talvez perder Ermelinda. E, indeciso, irresoluto, pensou em levar as coisas à lei da natureza: pôr de parte os discursos e atirar-se como um animal inflamado pelo cio. Mas a serenidade de Ermelinda, a sua frieza aparente, a expressão calma do seu olhar, mesmo quando o fixava com amor, desarmavam-no desses ímpetos brutais. E num desespero íntimo, irritado, nervoso, jogado entre o receio e o desejo, sentia-se comprometido pela sua perplexidade. Então lançou-se numa declamação vaga, falando da Primavera e da vida, das rosas e do amor, dos vulcões e do coração, num labirinto de rodeios pretensiosos, de alusões disfarçadas, todo um lirismo alambicado e postiço que o fazia gaguejar ridiculamente. Ermelinda ouvia-o, muda, de olhos baixos, um pouco constrangida. Não tinha previsto a intervenção de tanto palavreado. Desejara ver o seu futuro amante mais decidido e menos divagador. Responder-lhe neste mesmo tom era difícil para ela, que justamente da vida mundana apenas conhecia as delicadezas do íntimo trato doméstico. A respeito do namoro -- guardara a rudeza selvagem das mulheres do campo. No homem procurava o macho, e toda a sua selecção tinha um exclusivo carácter físico. Queria machos bonitos e asseados -- unicamente. De resto, do amor não percebia mais nada. Amor para ela era o gozo -- uma luxúria de fêmea aluada. Fora assim que o aprendera desde pequena, vendo por toda a parte os animais em coito franco e livre. O que ela compreendeu, porém, foi que Alfredo estava numa crise de desejo. Isto incendiou-lhe os apetites. Se ele se erguesse naquele instante e a tomasse nos braços, Ermelinda entregava-se-lhe ali, sem mais reservas, sem ir mesmo fechar as portas... O momento, porém, era crítico e a rapariga sentiu por sua vez o falso daquela posição. Por isso animava Alfredo com o olhar, e num sorriso tentador respondia-lhe, muda mas expressivamente, aos seus devaneios piegas. Ele contudo parecia não a entender, e atolado em retórica, com medo de se ter adiantado demais nas suas confissões ou de ter seguido um mau caminho, repisava as mesmas frases sem avançar um passo. Mas como Ermelinda continuasse silenciosa e de olhos baixos, Alfredo reconheceu que era preciso uma provocação mais directa. Fitando-a com firmeza, de um modo terno, ergueu-se devagar da cadeira e dirigiu-se para ao pé dela. -- Amo-a muito... sabe? -- disse-lhe a meia voz. E vagarosamente tomou-lhe uma das mãos, que ela lhe abandonou. Mas como a não sentisse resistir-lhe, baixou-se a pouco e pouco e ajoelhou-lhe aos pés. Ermelinda estava recostada contra o espaldar, numa pose de abandono meditativo, a cabeça pendente sobre o peito, os olhos fixos no regaço. Alfredo estreitava-lhe agora as mãos nas suas, e de joelhos, muito cómico, dizia-lhe ansioso, procurando-lhe o olhar:

Oh! Confirme-me com uma palavra a esperança que eu leio nos seus olhos. Diga-me que posso esperar... E nisto beijou-lhe a mão. Ermeliinda sentiu atravessar-lhe o corpo uma vibração estranha, como que uma corrente voluptuosa de lubricidade; mas percebeu passos no corredor e, endireitando-se na cadeira, disse-lhe a meia voz com decisão e rapidez, afastando-o: -- Pode sim... Mas levante-se: vem gente! Alfredo teve apenas tempo de se sentar. Soares entrava. -- Desculpe-me a demora, Sr. Doutor -- disse ele.-- Custou-me a despachar o homem. E começou a contar ao administrador o que tinha acontecido nas obras da fábrica: um muro que desabara do lado do rio, alguns centos de mil réis perdidos, as obras paradas por mais de uma semana... Ermelinda saíra entretanto, e logo depois o criado aparecia trazendo o correio. Soares continuava a referir o caso da fábrica, botando as contas aos prejuízos causados por esse contratempo, quando o administrador, que ia abrindo a sua correspondência, encontrou entre as cartas um ofício do secretário-geral reclamando a sua presença no Governo Civil, para receber instruções confidenciais de S. Ex.a o Governador. -- Lá tenho de ir à cidade! -- exclamou ele contrariado. -- Um maldito ofício... -- Ah! Já lhe aborrece tanto a cidade, Sr. Doutor -- notou-lhe o brasileiro. -- Então vejo que se dá bem com os nossos ares!... Alfredo, confuso, quis explicar-se: -- Não, meu amigo. É que tenho aqui umas maçadas que queria arrumar por uma vez. E depois isto é o diabo das eleições que começam... Uma espiga! -- Pois olhe, tem companheiro -- tornou Soares. -- Preciso de ir falar aos meus sócios, para lhes dar parte do que aconteceu na fábrica. E se hei-de ir amanhã, vou hoje com o Sr. Doutor...

«Bem! lá se vai uma bela ocasião por água abaixo!», pensou Alfredo. À tarde, porém, partiram. Alfredo apenas pôde trocar com Ermelinda um aperto de mão. Nem uma palavra, nem um sinal que lhe pudesse garantir o terreno já conquistado. Mas, chegado ao Porto, teve uma ideia feliz: escrever-lhe! Escrever-lhe, depois da sua promessa, era tomar posse das primeiras concessões, legitimá-las, fazê-las bem suas. Isto abrir-lhe-ia o caminho para os sucessos posteriores, e todos os seus manejos subsequentes se lhe tornariam mais fáceis e exequíveis. E então em uma folha de papel perfumado compôs uma longa cantilena amorosa, uma declaração com todos os chavões do estilo e segundo todos os preceitos e regras da arte. Ele era um incompreendido, ela a primeira mulher que o entendia. Só nela achava o coração que sonhara para companheiro do seu. Que fatalidade não se terem encontrado mais cedo, quando ambos livres poderiam santificar aquele amor perante o altar! Mas ainda assim nada os poderia separar no mundo, porque a lei do amor estava acima de todas as considerações sociais, e ela só por si era bem grande e alta para tudo justificar aos olhos de Deus. E por aqui adiante as eternas banalidades do Secretário dos Amantes. Ermelinda respondeu numa carta lacónica e breve, dois dias depois. Dizia-lhe que o amava, que sentia saudades daquela boa manhã tão duramente interrompida e terminava pedindo-lhe que voltasse depressa. Alfredo partiu nessa mesma tarde para a Cardenha. Mas lá, por mais que ambos procurassem as ocasiões, por mais que Ermelinda prolongasse o jantar e o almoço, a ver se o marido se levantava da mesa antes deles, por mais que tivessem tentado encontrar-se, como por um acaso, no jardim -- havia sempre uma circunstância qualquer que lhes gorava os manejos, concertados de longe em olhadelas rápidas, nalgumas breves palavras trocadas de passagem, ou em pequeninos bilhetes que Alfredo lhe metia no cesto da costura ou entre as páginas dos livros.

Soares acompanhava-os sempre; fizera-se a sombra de Alfredo, o seu cão fiel, seguindo-o pela casa, pelos jardins, pela quinta, indo com ele muitas vezes até à administração. Ermelinda chegou um dia a notar-lhe: -- Tu não tens ido à fábrica... Isso vai a caminho? -- Vai -- respondeu ele. -- Deu-se de empreitada ao Vieira o resto da obra de pedreiro. É um homem de toda a confiança... Não tenho nada lá que fazer. Os dois roíam-se de impaciência. Cada vez mais peados! Cada vez menos livres! E agora com o mau tempo que sobreviera -- chuveiros contínuos, o jardim alagado, caminhos espapaçados em lama, não saíam uns de cima dos outros, e ficavam-se na sala um dia inteiro, silenciosos, bocejando sonolentamente, os dois homens com o nariz sobre os jornais, Ermelinda fazendo o seu crochet vagarosamente. Uma manhã, porém, depois do almoço a que assistiu o abade, Soares, que lia o seu correio, disse de repente: -- Parece-me que tenho de ir à Régua ver os engenhos de uma fábrica de papel que se desfez há tempo... -- E mostrando uma carta ao abade, continuou: -- É do Sousa, do meu sócio. Pede para ir com ele lá acima tratar disso... -- E quando vais? -- perguntou o abade. -- Talvez amanhã à tarde -- respondeu o brasileiro. Alfredo olhou-o de soslaio. Que devia fazer? Retirar-se para o Porto -- era claro! Ficar seria de uma inconveniência verdadeiramente comprometedora. Mas Soares, que continuava a ler a carta, interrompeu de novo: -- É amanhã com efeito que tenho de ir... E ainda bem que o Sr. Doutor por aqui está para fazer companhia à Ermelinda, que fica sozinha... O abade olhou-o um tanto pasmado. Alfredo, muito vermelho, sem saber bem o que dizia, resmoneou umas palavras confusas de escusa e de agradecimento. -- Mau!... Deixemo-nos de cerimónias, Sr. Doutor -- respondeu-lhe Soares--, deixemo-nos de cerimónias. Isso não está no nosso ajuste... É um favor que me faz ficando -- creia... O Sr. Doutor entretém muito a Ermelinda com as suas histórias... E ela então, coitada!, que lhe custa tanto ficar só... -- Ó Sr. Soares... é muita honra... -- agradecia o administrador, fazendo por disfarçar o íntimo contentamento. Ermelinda entrava, e então o abade chamando de parte o irmão disse-lhe em voz baixa: -- Ó Joaquim, não me parece lá muito corrente ficar o homem aqui assim com a Ermelinda... É uma rapariga nova... Soares olhou-o pasmado. -- Ora o que tu quiseres! -- disse ele. -- Pois tu és capaz de duvidar da Ermelinda?!... E estas últimas palavras tinham um tom de agasta- mento. -- Não, homem de Deus! Não te zangues! Eu não duvido nada... Mas, já vês, pode falar-se... pode dizer-se... Sempre é desagradável. -- Quem fala lá coisa nenhuma, Inácio! Então toda a gente não sabe quem é minha mulher?! -- Pois não te digo que não -- tornava o padre. -- Mas olha que isso não é grande coisa... Ao menos podia vir para aí a mãe fazer-lhe companhia... Era mais decente... Não dava tanto nas vistas. -- Tu estás a brincar?! -- replicou o brasileiro, erguendo a voz. -- Eu fazia lá tal coisa. Isso era uma desfeita para a Ermelinda e para o Dr. Sampaio... era desconfiar deles... pôr-lhes uma guarda à vista... Que disparate! -- Homem --concluiu-- não me incomodes mais com essas tolices... -- Bem, bem... -- murmurou o abade. E voltaram ambos para ao pé da mesa.

XVI

Soares partiu para o Porto na tarde seguinte. O abade, Francisco da Silva e a mulher tinham vindo à Cardenha despedir-se, e a pedido de Ermelinda passaram a noite com ela. Logo depois de servido o chá, Alfredo deu-lhes as boas noites e retirou-se ao seu quarto. Aí, porém, foi sentar-se no vão da janela para lhes espiar a saída. Coisa de uma hora depois, sentiu abrir o portão. Espreitou: e ao luar distinguiu os três vultos seguindo a larga rua central do jardim. Sem perder um momento foi colar o ouvido à porta do quarto. Absoluto silêncio. Abriu cautelosamente um dos batentes e olhou: lá ao fundo, no extremo do grande corredor, viu ainda luz na sala onde habitualmente se passavam as noites. Ermelinda estaria só? Eis o que o preocupava. Escutou a ver se pressentia algum ruído de vozes. Nada: tudo calado. Encheu-se de ânimo e, pé ante pé, dirigiu-se vagarosamente para a sala. Ermelinda estava sentada num sofá, com um bordado esquecido no regaço. Parecia meditativa e concentrada. Esperá-lo-ia? Esta ideia animou-o a mostrar-se. -- Está só? -- disse da porta a meia voz. Ela olhou-o com um ligeiro movimento de sobressalto. -- Estou --respondeu simplesmente. -- Entre. Alfredo entrou cerrando a porta atrás de si. Dirigiu-se ao sofá e sentou-se ao pé de Ermelinda tomando-lhe as mãos. -- Enfim! -- exclamou numa ênfase ridícula. Ela abandonou-lhe as mãos e fitou-o, sorrindo lascivamente. Alfredo percebeu então que as palavras eram inúteis e até cómicas em tal momento. Aproximou-se mais, tremendo de comoção, e a sua boca procurou nervosamente a dela. Colaram-se os lábios num beijo longo e mudo. Ermelinda deitou-lhe as mãos aos ombros, Alfredo estreitou-a contra si num abraço convulsivo...

XVII

Nas quatro noites que Soares passou fora de casa, Alfredo pela volta da uma hora cosia-se com a parede do longo corredor, entreabria a porta do quarto de Ermelinda e fechava-a depois por dentro. E até às quatro, cinco horas da manhã, o leito conjugal era desonrado nos delírios de um adultério, que uma lubricidade insaciada alimentava. Ermelinda tinha o cuidado de preparar o despertador para os alarmar antes que os criados acordassem, podendo surpreender Alfredo. E era o seu rufo metálico, áspero e irritante, que os fazia despegar dos braços um do outro, meio embriagados de prazer, ainda com beijos vagos e frouxos, como as últimas pétalas caídas da flor desfolhada dos seus desejos... E nas manhãs seguintes Ermelinda tinha a mesma impassibilidade serena do costume, o mesmo ar natural e inocente, como se tivesse passado a noite na companhia do marido. Alfredo, porém, traía-se às vezes nos seus rubores súbitos, nos seus receios diante dos criados, na frieza estudada que afectava para com a amante, e nos longos silêncios de que nada o podia tirar. De dia, para fugir à tentação de um encontro, de uma cena que os pudesse comprometer, Alfredo saía para a administração, onde ficava longas horas estirado diante da sua banca, manejando maquinalmente a faca do papel, com os olhos fitos no tecto, entregue à divagação das doces recordações da noite. Às vezes atacava-o um desejo súbito, sentia a sua carne espicaçada pelo aguilhão do prazer e inconscientemente, erguendo-se, dirigia-se para a porta, como para fugir dali, correr à Cardenha, tomar Ermelinda nos braços e num contacto longo, peito contra peito, os lábios colados, o olhar magneticamente fixo, aniquilar-se num desmaio voluptuoso, expandir a seiva do seu amor numa florescência ardente de beijos. Mas ao senti-lo tocar no fecho da porta, corria pressuroso o contínuo da administração a saber se o Sr. Doutor queria alguma coisa. -- Chame-me o Sr. Guedes -- dizia ele. E o Sr. Guedes -- o escrivão -- entrava desfazendo-se em cortesias. Alfredo, para dizer qualquer coisa, fazia-lhe algumas perguntas sobre o expediente e voltava de novo à sua concentração de namorado saudoso. Em casa Ermelinda fazia a sua vida habitual, num absoluto descanso íntimo, como se nenhum acontecimento grave tivesse modificado as condições normais da sua existência. E quando Sampaio aparecia ao jantar dava-lhe diante do criado um aperto de mão de um delicadeza fria, sem corar, sem trair em nada o segredo do seu adultério. Mas ao fim do quarto dia de ausência Soares apareceu na Cardenha, de guarda-pó de linho, todo empoeirado, na char à banes da carreira. E ali diante do amante, que sentiu um calafrio de medo, misturado com uma picada de remorso, ao rever a corpulência atlética e a larga face bondosa do brasileiro -- Ermelinda lançou-se aos braços do marido e, procurando-lhe a face num beijo tranquilo, disse-lhe sem afectação, com um carinho natural: -- Tens-me feito tanta falta, Joaquim!... Alfredo pasmou consigo mesmo de tanto cinismo! Quase lhe custava a acreditar que fosse ele o primeiro amante dessa mulher, que parecia ter já uma larga prática, um hábito completamente educado dos disfarces, das comédias da traição conjugal. Ele é que era o fraco, o ingénuo, a criança -- naquela conquista! Apesar das suas exteriores fanfarronadas don-juanescas, Ermelinda fora na verdade a sua primeira vitória nas grandes batalhas do amor. Tinha namorado algumas mulheres casadas, mas simples coquettes, com as quais nunca havia passado além dos modestos limites de algumas trocadelas de olhares. E assim ia percebendo vagamente o misterioso carácter de Ermelinda, e, no fundo da sua alma, descobria-se como escravizado por aquela mulher, sem sentimento e sem coração, que lhe dava apenas a sua carne -- egoisticamente e com o fim exclusivo de satisfazer a sensualidade da sua organização de hetera.

XVIII

O administrador voltou ao Porto, e de lá todos os dias escrevia à amante longas cartas, cheias de uma pieguice babosa desde o Meu anjo, com que abria a epístola, até à assinatura com que a fechava. Mas para Ermelinda começavam cedo os espinhos do adultério. Sentia-se incapaz de vencer a repugnância que lhe inspirava o contacto do marido, e temia que ele suspeitasse alguma coisa através da sua frieza e dos modos secos que às vezes não podia reprimir. As noites eram para ela um tormento. Confrangia-se ao sentir na sua epiderme fina a dureza córnea e a aspereza cabeluda da pele de Soares. Parecia-lhe que as suas mãos de brutamontes a esmagavam, e toda aquela corpulência hérculea de boi de ceva inspirava-lhe uma repulsão invencível de nojo. Às vezes quase chorava ao recordar-se do corpo efeminado e brando de Alfredo, da sua pele fina e cetinosa, de todos os seus requintes de gozo -- essa arte delicada que ele punha nos seus contactas, nas suas carícias, nos seus longos beijos demorados, que soavam docemente, como uma queda vagarosa de gotas de água no mármore de uma taça. E, sem se poder reprimir, desprendia-se-lhe dos braços, pretextando uma dor de cabeça, uma indisposição; mas reconsiderava depois, e era num duro sacrifício que lhe suportava os beijos grosseiros. Mais tarde quando o pressentia adormecido, roncando como a trompa de um músico principiante, encolhia-se contra o lado oposto da cama e, ao adormecer, os seus lábios contraíam-se, como procurando no sonho a boca fresca e o hálito puro do amante. No dia seguinte só respirava quando via o marido a caminho do rio Leça, a choutear na sua égua lanzuda. Foi durante um destes passeios de Soares que Alfredo apareceu um dia na Cardenha. Havia uma semana que se não viam: Alfredo não viera de propósito durante esse tempo para não excitar suspeitas. Ela viu-o da janela subir a escadaria ao fundo do jardim e, trémula de prazer, fez-lhe sinal para que subisse depressa. E sem mais precauções, apenas ele entrou na sala, fechou a porta por dentro e atirou-se-lhe aos braços, caindo ambos embriagados e felizes sobre o largo sofá de reps. Daí em diante a paixão de Alfredo e o erotismo de Ermelinda esqueceram todas as conveniências e precauções. Beijavam-se nos corredores, nos vãos das janelas, entre as árvores do jardim, e na ausência de Soares a toilette azul era o seu refúgio, a sua alcova -- o seu ninho, como Alfredo dizia alambicadamente. Este ia ao Porto e voltava às vezes no mesmo dia, pretextando trabalhos eleitorais. De resto passava as manhãs, as tardes e as noites na Cardenha, dando fugidas à administração, onde assinava os ofícios que o Sr. Guedes lhe apresentava. O seu arrojo crescia perigosamente. Ermelinda combinara com Alfredo entrevistas nocturnas na toilette azul. O quarto tinha uma porta para o aposento conjugal e outra para o corredor. De forma que se Soares acordasse de repente e desse pela falta da mulher na cama, esta desculpar-se-ia com uma indisposição qualquer que a obrigara a levantar-se, ao passo que Alfredo pelo corredor se safaria sem perigo para o seu quarto. E assim se encontraram umas poucas de vezes, sem que Soares despertasse.

Uma noite, porém, Ermelinda, sem querer, deixou tombar uma cadeira contra uma cómoda. 0 silêncio adormecido da casa aumentou o estrondo do choque e Soaras murmurou da cama, numa voz de sono: -- Ó Ermelinda... Alfredo, enfiado, eclipsou-se pela porta do corredor, enquanto a amante com o maior sangue-frio respondia ao marido: -- Sou eu que ando aqui; não te assustes. Estou com uma dor de cabeça!... Vim ver se passava com água-de-colónia... Eu já me deito... -- Ó filha, que te constipas!...--observou-lhe com voz afectuosa o marido. E ela serenamente, com o castiçal em punho, dirigiu-se à cama. -- Estás tão vermelha... -- disse ele ao vê-la de perto... -- Mas ficas assim mais bonita. E beijou-a. Era a febre de uma hora de amor nos braços do amante -- a dois passos do leito onde o esposo adormecido roncava o honesto sono da sua fidelidade!

XIX

Dois meses durou esta vida. O seu acanhamento transformara-se num arrojo descarado. Agora até nas costas de Soares se beijocavam, ou de longe, na presença dele, sorriam lascivamente um para o outro. Por vezes Alfredo falava em procurar casa, mas Soares opunha-se sempre, pois que amiudadamente precisava da intervenção do administrador nos seus negócios. Os moleiros do Leça faziam uma guerra aberta à fábrica de papel, e tinham-se realizado capturas de homens que destruíam de noite as construções principiadas, sangravam as águas do rio, ou tentavam incendiar as pilhas de madeira. Para tudo isto a cooperação e a amizade do administrador eram indispensáveis. Mas o público ia rosnando daquela longa hospedagem e o próprio Francisco da Silva, com o seu cepticismo de aldeão manhoso, dissera um dia ao abade: -- Homem, o Joaquim é decididamente tolo. Todos sabem que a Ermelinda é uma mulher de juízo. Mas, com mil demónios!, chegar assim a estopa para o lume parece-me asneira... -- Já lho disse, mas tu que queres? -- exclamava o padre desolado e triste. E ambos encolhiam os ombros. O presidente da Câmara, um cirurgião cheio de finura e de malícia, a quem na terra chamavam o Mestre Raposa, também certa vez em doce cavaco familiar com os colegas, antes da sessão camarária, largara a sua piada sobre o caso: -- Na verdade, o Soares da Cardenha recebe como poucos. É casa, mesa, roupa lavada... e esquentador para a cama. E os Srs. Camaristas haviam rido muito com a chalaça. Por outro lado, a Sr.a Joaquina do Beiral fazia à porta da sua tenda os mais desbocados comentários sobre as intimidades do administrador com a Ermelinda: -- Olá! a rola já tem rolo... Ah! ah! ah! Eu bem dizia... Anda-me assim, filha! que a vidinha são dois dias e o que se leva deste mundo é o rico corpo consolado... E estes ditinhos repetiam-se a cada instante. Mas onde a coisa se tornou deveras notada foi na romaria da Santa Eufémia. Havia muito que Soares falava nesse passeio ao administrador. -- É preciso ir lá um dia. É um sítio lindíssimo... Olhe que há-de gostar, verá. De maneira que, quando o abade disse uma vez na Cardenha que a festa da Santa Eufémia era no domingo seguinte, assentou-se em que o passeio fosse nesse dia. Iriam todos num char à banes. Levava-se o jantar no carro e comia-se por lá numa bouça, debaixo dos pinheiros, se o dia estivesse bonito. Alfredo lembrou que se fizesse um piquenique. E para pôr em destaque diante de Ermelinda os seus costumes civilizados acrescentou: -- Eu cá dou o champanhe. Mas o Ricardo, que era casca grossa e português à antiga, revoltou-se contra a proposta: -- Deixemo-nos desses estrangeirismos, amigo doutor. O que há-de ser é boa merenda à portuguesa... Peixe frito... o belo salpicão... uma boa posta de lombo e vinho -- cá do verdasco... que é o nosso champanhe. -- Anda-me assim! -- disse o brasileiro rindo. -- Isto por aqui, Sr. Doutor, é tudo Portugal velho... Eu cá sou também pela merenda.

E assentou-se nisto. Na véspera foi na Cardenha um dia de azáfama. Soares queria que se fosse cedo para gozar o fresco da manhã, dizia ele. E por isso toda a noite se lidou na cozinha na confecção desse jantar empanzinador, feito segundo as praxes da nossa velha culinária provincial. Era comida para se servir num refeitório de frades bernardos. Ia preparado um leitão para se assar no espeto, ia o alguidar da sarrabulhada, a clássica cabidela, a boa peça de lombo com as competentes rodelas de limão, não sei quantas pescadas fritas às postas -- tudo isto em terrinas, travessas e alguidares, dentro de grandes cestos cobertos por toalhas frescas cheirando a lavado. Ao anoitecer, quando o Ricardo, que chegara do Soutelo no seu macho espanhol, subia as escadas da Cardenha, disse ao sentir o cheiro forte das frituras que se espalhava por toda a casa: -- Olá! já se anda com as petisqueiras às voltas... Bom sinal!... bom sinal! E franzia o nariz, aspirando com uma voluptuosidade de glutão esse perfume consolador de cozinha farta. Na manhã seguinte, logo às seis horas, o char à banes do Zé Coxo, puxado por três pilecas castanhas, com ramos de carvalho nas colheiras por causa da mosca, entrou pelas ruas do jardim e veio parar à porta de casa. O cocheiro passou as guias à roda do ferro do travão, saltou abaixo da almofada, enrolou um cigarro e ficou-se a passear diante da porta, à sombra das latadas, através das quais a luz se coava esbatida, amaciada em tons verdes, numa penumbra recolhida. Lá fora chilreavam os pássaros, as grandes magnólias erguiam as suas folhagens paradas, ainda húmidas do orvalho, reluzindo ao sol na serenidade fresca da manhã, e sobre a água imóvel e polida do lago, onde as verduras se reflectiam profundamente, dois cisnes brancos nadavam deslizando com suavidade, num fundo de paisagem idílica. Soares, que sentira o rodar do carro, apareceu à janela. -- Já aí estás, ó Zé Coxo? -- perguntou de cima.

-- Às ordens, patrão! -- respondeu o cocheiro descobrindo-se. Momentos depois as criadas em vestes domingueiras, larga roda de saias, muito ouro ao pescoço, assomavam às portas com grandes cestos à cabeça. O Zé Coxo, de pé na almofada, acondicionava os volumes no tejadilho, com todo o cuidado, dizendo a sua laracha às raparigas. Mas Soares apareceu também com dois criados, cada um dos quais trazia um gordo garrafão revestido da sua respectiva couraça de verga. -- Isto lá para cima, ó Zé... Olha que fique bem seguro, disse para o cocheiro. E dando de cara com o Ricardo, que havia muito tempo passeava no jardim, perguntou-lhe sorrindo, mostrando-lhe os garrafões: -- Chegarão?... -- Para mim hão-de chegar... -- respondeu o médico num gracejo de bebedor de fama. -- Mas isto vão sendo horas... Quando não depois aperta aí o calor, e com o pó da estrada nem o diabo se aguenta. Esse raio desse Inácio ainda não apareceu?... E o Francisco e a Maria?... -- Eles aí vêm todos -- disse Soares olhando ao fundo do jardim. -- Bem. Vou ver se o doutor se mexe. A Ermelinda já está pronta. Os três vinham radiantes: Francisco da Silva envergava a roupa de pano fino, com o chapéu alto, muito lustroso, que depois da sua elevação às grandezas da vida pública arvorava sempre nos dias festivos ou solenes. O abade cuidadosamente escanhoado, todo domingueiro, volta muito azulada, seguia-o, trazendo na mão um saco de damasco -- um dos seus luxos! -- onde se guardavam a batina nova, os sapatos de fivela e as meias altas, porque tinha de tomar parte na festa. E a Sr.a Maria do Rosário pusera a sua manta de renda e o vestido de seda preta, uma rica peça que tinha mandado fazer no Porto quando foi do casamento da filha. No carro estava tudo em ordem. O Zé Coxo dava as últimas voltas à corda que cingia e segurava ao toldo os

cestos da comida e da louça, a Sr.a Maria do Rosário tinha já tomado lugar ao fundo de um dos bancos, quando a Ermelinda desceu a escada lentamente, entre o marido e o administrador, conversando enquanto abotoava com vagar as altas luvas de pele da Suécia. Vinha muito bonita: um vestido de voile azul guarnecido com largos galões brancos e um pequeno chapéu de campo com um ramo de miosótis a um lado, meio encoberto pelo grande véu de gaze. Daí a um instante o carro rodava pela estrada, entre as bouças polvilhadas por essa luz rósea da manhã, que as agulhas dos pinheiros tamisam finamente. Iam todos numa alegria despreocupada de excursão, sacudidos pelos solavancos das sob-rodas, rindo, conversando, acariciados pelo ar fresco, que fazia tremular vivamente as pontas do véu branco de Ermelinda. De instante a instante deixavam para trás grupos de romeiros, as mulheres peneirando grandes rodas de saias negras, com os lenços vistosos cruzados no seio, onde reluziam os enormes corações de filigrana de ouro, os homens de chapéu braguês para a nuca, colete desabotoado, casaco ao ombro, marmeleiro ferrado na mão e a viola passada a tiracolo por um cordão vermelho. E aqui ou acolá, arrastando-se entre as muletas ou sobre jumentos lanzudos, magros e cobertos de mataduras onde as moscas pousavam, alguns mendigos esquálidos, de aleijões repugnantes e monstruosos, como os pobres de Callot, seguiam miseravelmente pedindo esmola, com as suas lamúrias que se arrastavam numa melopeia chorada. Das casas que bordavam a estrada mulheres em pé, encostadas às ombreiras, rodeadas da pequenada em camisa, olhavam pondo a mão em viseira sobre os olhos, por causa da luz. Às portas das tabernas viam-se grupos pitorescos de romeiros, que paravam para beber. Cá fora, presos à argola, os garranos atarracados e as gordas éguas, de selote e retranca, enxotando a mosca com a cauda, enchiam-se gulosamente da erva fresca, que um rapaz lhes despejava aos braçados na manjedoura; e um ou dois carros de aspecto poeirento e sujo, a cujas pilecas esgalgadas o cocheiro dava numa escudela as sopas de vinho, esperavam à porta com algum passageiro mais sóbrio que não entrara para tomar o decilitro reconfortante. De dentro vinha um ruído de vozes, um tinir de copos, a chiadeira das frituras e, de espaço a espaço, o dlin-dlin de uma guitarra achocalhada, que alguém afinava. Quanto mais se aproximavam maior era a concorrência. Grupos de lavradores a cavalo seguiam-nos, ao travado, envolvidos numa nuvem de poeira; os romeiros a pé marchavam dançando e cantando; outros carros, apinhados de gente até ao tejadilho, iam vagarosamente oscilando sobre as molas duras. -- Muita gente -- notou Alfredo. -- Deve estar animada a romaria... -- Verá logo, verá logo -- atalhou o abade. -- É assim... E mostrava ao administrador a mão direita com os dedos juntos pelas pontas. -- A última vez que vim a esta romaria-- observou Soares -- foi no ano em que o pai -- que Deus haja! -- teve as febres e que a mãe, coitadinha, fez a promessa da novena. Vocês lembram-se? E vieram-lhe duas lágrimas aos olhos. -- Se nos lembramos! -- disseram os irmãos com voz saudosa. Mas o carro começava a subir ao passo uma ladeira. Ermelinda e Alfredo, que iam conversando animadamente, aproveitando o estrépito que as rodas travadas faziam na descida -- calaram-se de súbito. O abade notou que a sobrinha ia um tanto vermelha. Que diacho estariam eles a cochichar?... E lá com os seus botões ia remoendo os conselhos que em tempos dera ao irmão. Os outros, porém, entretidos, não reparavam em nada e a conversa generalizou-se, falando-se na decadência das festas populares, sempre com recordações do passado, evocadas nessa eterna frase saudosa -- No meu tempo... --, frase com que os velhos se vingam dos anos, condenando o presente.

-- Estamos perto -- notou o Ricardo. -- Subida esta rampa temos de nos apear. Para cima vai-se à pata, que não há estrada para carros. Com efeito, um momento depois o char à banes parou à porta de uma tasca atulhada de gente. Outros carros esperavam com as lanças nuas, sem cavalos. Sentia-se já um burburinho de arraial próximo, ruíos de zé-pereira, estalos de foguetes, pregões de vendedeiras e as notas ásperas das gaitas de barro sopradas pelos garotos. Os Soares apearam-se. As duas criadas e o criado, que vinham na almofada, carregaram com os cestos e os garrafões. O abade tomou então a dianteira e, seguidos dos criados, meteram por uma vereda ensombrada de carvalheiras que ia numa curva larga coleando ascensionalmente a colina. De um lado e de outro, debaixo das árvores enfileiravam-se as vendedeiras com os seus tabuleiros cobertos de toalhas brancas, oferecendo as cavacas doces, a regueifa de Valongo, o pão-de-ló de Margarida; e os caotineiros ambulantes circulavam apregoando a fresca limonada. Noutros pontos em tascas armadas com panos e esteiras, onde se fritava peixe, via-se ao fundo o taberneiro de mangas arregaçadas, debruçado sobre a pipa calçada por duas achas, enchendo sucessivamente ao torno os grandes canjirões que se despejavam nas goelas dos fregueses. E entre a multidão os quinquilheiros, cercados de gaiatos bulhentos, vendiam-lhes assobios, cornetas de barro ou anéis de chumbo. À sombra dos pinheiros, grupos alegres e ruidosos merendavam sentados no chão, emborcando canecas de vinho verde, tasquinhando com gula a grossa chouriça acompanhada a grandes nacos de boroa, enquanto presas pelas rédeas aos ramos das árvores algumas pobres cavalgaduras, melancólicas, sonolentas, abatidas por uma longa marcha, tosavam o mato para entreter a fome. Os Soares iam subindo, acotovelando-se com a multidão, cumprimentados por um ou outro conhecido, com quem topavam, trocando uma saudação cordial. O abade, que ia à frente, apressava o passo com receio de não chegar a tempo para a festa; Soares conversando com Francisco da Silva evocava recordações da sua infância, dessa novena a que ali fora com a mãe; e o médico, um velho sátiro brutal, deitava olhadelas concupiscentes às raparigas bonitas, trigueiras, de ancas largas, seio repolhudo, olho negro e quente, que a cada passo encontrava em recantos discretos, derriçando com os conversados. Quase ao alto da subida o administrador ofereceu o braço a Ermelinda, que essa marcha difícil fatigara. E quando numa volta do caminho atingiram a plataforma da colina, saindo de repente da penumbra esverdeada do arvoredo para a plena luz e para o grande ar de um céu desafogado, pareceu-lhes que a alma se lhes dilatava num largo hausto de vida. A seus pés desdobrava-se uma extensa massa de pinhais, alastrada numa área de léguas, rolando de socalco em socalco em cachões imóveis de verdura sombria, oomo os redemoinhos de uma torrente. Ao fundo, debruado pela orla branca do areal, o horizonte estendia-se, morrendo nessa indecisão de linhas de entre mar e céu, que se confundem esbatendo-se levemente numa aguada azul. E no contorno suave da costa, arredondada em baía, as casas brancas das povoações marítimas reluziam ao sol, com manchas berrantes de telhados vermelhos... -- Que lindo! -- disseram os dois quase a um tempo. E as suas almas, enlevadas nesse êxtase espiritual que dá a contemplação dos horizontes largos vistos de uma eminência, sentiam-se como que aliviadas do naturalismo grosseiro daquela orgia aldeã, que acabavam de atravessar. Mas o abade, que os viu parados, chamou-os. Era preciso irem à festa. O seu amigo cura já os esperava. Tinham um bom lugar ao pé da sacristia. E os dois lá marcharam em direcção à capela, uma ermidinha pobre, caiada de branco, com portão verde e uma pequena torre onde um pequeno sino repicava festivamente. O adro, juncado de funcho, tinha à entrada arcos de murta enastrados de grandes jarros, de pétalas nevadas e frescas. Em roda algumas tascas e barracas de arraial. E por toda a parte um apinhamento de gente alegre, um batuque contínuo de danças espinoteadas ao som das violas, e sobre os fatos de pano negro ou de cotim pardo dos homens os salpicos dos lenços domingueiros das mulheres, num mosaico movimentado de cores vivas e cruas. Na capela o aperto era grande. Abafava-se. Mas diante do abade e do administrador, aquela massa de gente empilhada abria um estreito carreiro, por onde os Soares foram seguindo até à sacristia. A cerimónia ia começar. No trono, sobre o altar-mor, erguia-se a imagem da santa padroeira, rodeada de palmitos em vasos azuis e de círios acesos, sobre o fundo vermelho de um dossel de damasco. Sentia-se o cheiro característico das igrejas em festa -- cheiro de flores, de incenso, de cera derretida e de corpos transpirados. Os Soares tomaram lugar num banco ao pé do altar-mor, e aí casualmente o administrador ficou junto de Ermelinda. Isto não passou despercebido ao mulherio, alinhado nas primeiras filas. Lá estava com o seu lenço muito gomado e o capote domingueiro a Sr.a Joaquina do Beiral, que com um sorriso malicioso fez um sinal expressivo à sua comadre Justina: -- Hein? lá está ela com o amigo... E a outra, com esse despeito profundo da plebeia que vê aburguesar-se uma mulher da sua condição, respondeu com os dentes cerrados, num ar de honestidade ofendida pelos torpes exemplos do mundo: -- Não que sempre deu numa... Daí a pouco todo esse pequeno mundo cochichava, sorrindo, deitando olhadelas furtivas para o grupo dos Soares. Ermelinda percebeu claramente onde essas frechadas de uma ironia grosseira vinham bater. Era claro que já na aldeia se murmurava da familiaridade de Alfredo na casa da Cardenha. E ela receava que essas murmurações chegassem por qualquer via aos ouvidos da família. Esse facto poderia acordar no espírito do marido ou dos tios suspeitas que os levassem à descoberta da sua falta. Por isso toda a festa foi para ela um martírio. Perdera a sua serenidade habitual. 0 livro de missa tremia-lhe nas mãos, e os seus olhos repassavam dezenas de vezes a mesma página sem lerem uma só palavra. Depois da sua culpa era a primeira vez que aparecia em público com o amante, a primeira vez que ostentava as suas intimidades com ele, diante de testemunhas estranhas, sem a benevolência amiga e crédula dos parentes. Sentia-se espiada, descoberta, escarnecida, discutida brutalmente por esse mulherio mexeriqueiro, que desprezava. As orações da missa cantada, a música, o sermão -- tudo isso lhe vinha bater aos ouvidos como um som indistinto, uma ressonância de barulhos longínquos. Os minutos pareciam-lhe séculos. Não via fim a essa tortura. E uma vez que Alfredo, maçado daquela longa cerimónia se curvou para lhe falar ao ouvido, ela respondeu-lhe secamente a meia voz: -- Cala-te. Olha que nos descobrem... O administrador empalideceu. De súbito a difícil situação em que se achavam mostrou-se clara e nítida ao seu espírito. E, como Ermelinda, suspirou pelo momento em que se pudesse ver fora dessa exposição, terrivelmente comprometedora. Assim, quando a festa acabou, sentiram-se aliviados, como desoprimidos de um pesadelo esmagador. Alfredo afastou-se discretamente e veio conversar com o regedor de Simães, que o cumprimentara do fundo da capela. Ermelinda, mais tranquila, ficou-se ainda ao pé da mãe, concentrada, rezando. Mas o abade, que fora deixar os paramentos à sacristia, apareceu com o cura. -- Vá, vamos à comezaina -- disse ele -- que estou a morrer de fome. Aqui o padre António oferece-nos o passal, onde há uma latada que é um regalo. É a dois passos daqui. Não se pode arranjar melhor... -- Lembras bem -- notou Soares. -- Está-se lá mais à vontade, sem que todo o mundo nos venha meter o nariz nos pratos. -- É melhor, é... -- disse Ermelinda, que achava neste alvitre a sua salvação.

0 passal era um quinteiro pequeno, pegado à residência do cura, logo no primeiro declive da vertente do monte. Do muro, sobreposto em terraço a um socalco, via-se ao fundo, entre os pinheiros, uma nesga de mar. Havia uma latada cheia de sombra, debaixo da qual um fio de água pura corria de uma pequena cascata, com os seus musgos, os seus seixos e o seu respectivo S. João de barro pintado. Era um recolhimento fresco de cerca de convento, um retiro discreto onde o barulho dessa violenta quermesse meridional chegava esmorecido e confuso. O cura, um padre gordo, nédio, epicurista, amando as boas merendas e as sestas calmas, espécie de anacronismo fradesco, preciosa revivescência dos monges bernados, espessos, fartos e felizes, fazia rasgada e cavalheirosamente as honras do seu passal. E todo amável oferecia a cozinha para se assar o leitão e aquecer a comida. As criadas, ajudadas pela ama do cura, uma matrona branca e frescalhota, estenderam a toalha sobre a larga mesa de granito, que havia junto à cascata; e o Ricardo, com todo o cuidado de um escrupuloso devoto do Baco minhoto, foi mergulhar dois garrafões do vinho verde, para os refrescar, na pequena taça onde a água caía. Tinham trazido cadeiras. Sob a frescura acariciadora da latada, entre o tilintar dos copos, dos pratos e dos talheres, que as criadas dispunham sobre a mesa, animara-se o cavaco. Falou-se da festa, do sermão, da música, falou-se do tempo, do aspecto das searas, das probabilidades de um S. Miguel farto, da maturação da uva -- toda uma mistura de assuntos eclesiásticos e rústicos, que faziam o exclusivo interesse daquela pequena roda de padres e lavradores. O administrador, que desde a cena da igreja se quisera mostrar indiferente a Ermelinda, meteu também a sua colherada, falando muito de papo da crise agrícola, do estado dos mercados, das quintas regionais e de outras fórmulas e coisas burocráticas, a que no governo civil se chamava a questão da agricultura. Era perto de uma hora da tarde. Lá fora a romaria redobrava de animação. Sobre o quinteiro recolhido e tranquilo passava uma onda sonora, feita de todos os ruídos dessa festa orgíaca. Começou-se o jantar, para o qual o cura oferecera a sopa, uma terrina enorme cheia do mais apetitoso caldo-verde. Houve um momento de silêncio -- essa concentração exclusiva do homem esromeado em frente do seu prato. Sentia-se o tinir dos talheres, a deglutição ruidosa desses comilões grosseiros e o murmúrio dormente da água, pondo no ar uma nota de frescura. Mas gradualmente a conversa reanimou-se. Entrou a circular o vinho verde. Os grandes copázios esvaziavam-se deixando nódoas arrubinadas nos beiços dos homens. Vinham as travessas fumegantes, com um cheiro forte a espécies e a estrugidos. Os pratos eram saudados com aclamações joviais que o vinho excitava. Soares, já muito animado, exigia que o deixassem trinchar; e atulhava os pratos de um modo brutal, que chocava o administrador. -- Coma-lhe e beba-lhe -- dizia o médico com autoridade. -- É cá a minha receita... E voraz, insaciável, embuchava-se de arroz e de grandes nacos de toucinho muito branco, que tremiam gordurosamente nos dentes do garfo. O cura e o abade, esses comiam em silêncio, mortos de fome pelo longo jejum. Soares exprobou-lhes o mutismo: -- Ó reverendos, isso então é só dar aos queixos? -- Regra de frade, amigo Soares! -- respondeu o cura. -- Ou bem que se fala ou bem que se come... Mas quando se serviu o leitão é que a alegria chegou ao cúmulo. O médico deteve a travessa no caminho e exclamou de um modo solene: -- Cá essa autópsia é comigo... Todos riram, e ele em pé, com a gravidade de um professor em frente de um cadáver, tomou um prato e apoiando-lhe uma das bordas sobre o pescoço do leitão, muito tostado e tenro, degolou-o com todo o rigor clássico de um bom trinchante. Depois sabiamente desossou-o, separando as costelas, as pernas, as mãos, e fê-lo servir em roda.

O leitão foi declarado delicioso. Todos repetiram à excepção de Alfredo e Ermelinda. O vinho verde espumava nas canecas. Um cheiro forte da comida subia da mesa, atulhada de pratos com viandas gordas. Ria-se, falava-se, gritava-se; e o próprio abade, que cuidadosamente espiava os menores movimentos da sobrinha e do administrador, parecia por fim despreocupado das suas suspeitas, todo entregue aos prazeres da boa mesa. Quando se serviu o arroz-doce, o cura pediu licença para oferecer um mimo da sua garrafeira. Era um Porto divino, de 1815, licoroso, aromático, que luzia nos copos com reflexos de topázio. Beberam-lhe rijamente. Fizeram-se saúdes. Esse vinho capitoso acabava de os excitar, subia-lhes à cabeça deixando-os alegrotes, numa meia embriaguez ruidosa e jovial. Foi assim que se levantaram da mesa, uns atrás dos outros, fartos, ligeiramente tontos do álcool, os coletes desabotoados pondo à larga os ventres cheios. E aos grupos iam-se espalhando pelo quinteiro do passal, falando, rindo, no sossego do dia sereno, ouvindo o correr da água entre as hortas. Ao fundo havia um pequeno pomar, um maciço de laranjeiras crescidas. Era um canto sombrio e húmido, discretamente afastado. Foi aí que Alfredo e Ermelinda foram ter, enquanto a Maria do Rosário ficava sob a latada conversando com a ama do cura, e os homens, debruçados no muro que defrontava com o mar, discutiam animadamente. Era o primeiro minuto que se viam sós, depois de tantas horas de uma aproximação vigiada com desconfiança. Em volta deles, por toda a encosta da colina, a festa continuava com frenesi. Ouviam-se as músicas, as cantigas, o sapatear das danças. Sentia-se o ruído dessa multidão feliz, solta à lei dos instintos animais, comendo, amando, espojando-se. E de todo esse monte em festa vinha como que um aroma embriagador de sensibilidade forte e bruta, de naturalismo desenfreado, de orgia báquica, excitada pelo vinho, congestionada pelo sol, mordida pelo pó da terra, assanhada pelo contacto dos corpos, tocando-se, roçando-se no empilhamento daquela massa humana.

Esta febre de luxúria bárbara esquentou-lhes o sangue. A longa repressão de todo o dia, o ar vivificador e fecundo da larga natureza, os ecos desse delírio orgíaco, como os dos ritos da Vénus oriental, acirraram-lhes, esporearam-lhes rudemente os desejos. Olharam-se tremendo, e ocultos entre as laranjeiras, com o ouvido à espreita, como dois namorados de aldeia, uniram-se num abraço, colando os lábios... Mas quando saíam desse retiro, onde se tinham afastado por minutos, viram diante de si o abade, que parecia procurá-los com um ar inquieto. Alfredo fez-se um tanto vermelho, mas Ermelinda, deitando a mão ao braço do padre, disse-lhe tranquilamente: -- Ó tio, venha ver como estão bonitas estas laranjeiras... Era quase sol-posto quando saíram do passal. Muitos romeiros debandavam já, descendo o monte. Outros dançavam ainda na plataforma esperando o fogo e a iluminação da noite. Em baixo o Zé Coxo esperava com os cavalos engatados. Entraram, e o carro começou a rodar, descendo a estrada coalhada de gente, que se afastava aos avisos do cocheiro: -- Eh patrão! Eh tiozinho!... O cansaço invadia-os. Iam todos calados, numa concentração triste. Ao entrarem em casa o Ricardo cambaleava de sono e Soares queixava-se de dores de cabeça. Desde esse dia, porém, o caso entrou a ser largamente discutido na Guardeira. Era o tema de todos os mexericos. Não havia dúvida, desta vez: todos tinham visto com os seus olhos aquela grande pouca vergonha na festa da Santa Eufémia sempre juntos, sempre falando... A gente séria lastimava Soares: mas os que lhe invejavam a riqueza e a sorte, vingavam-se escarnecendo-o e comentando injuriosamente o boato. Contudo estas murmurações faziam-se sempre a meia voz, à boca pequena, porque os Boa Sorte eram realmente um potentado na terra, e de resto todos julgaram perigoso falar às claras desse escândalo em que figurava, como principal personagem, o Sr. Administrador...

XX

O abade, a cujos ouvidos chegavam estas parolices de soalheiro, confrangia-se todo, indeciso em aconselhar o irmão, que lhe recebera mal as primeiras advertências. Certo dia, porém, acirrado pelo clamor crescente da voz do povo, preocupado com as suas próprias suspeitas e averiguações, procurou-o à hora em que o sabia assistindo aos trabalhos da malhada. Era ao meio-dia. Na larga eira de pedra estendiam-se os montões de espigas de milho, cintilando ao sol com reflexos de ouro brunido. Homens e mulheres, em linha, erguiam simultaneamente os manguais que, descrevendo um círculo no ar, se abatiam com força sobre o milho, fazendo despegar o grão. Ouvia-se o tam-pam... tam-pam isócrono dos malhos, como a pancada de um grande pêndulo, cortando as conversas dos homens e as risadas das raparigas. Os lenços vermelhos, azuis ou amarelos das mulheres, cruzados no seio, alternavam com o tom uniforme das camisas brancas dos homens, através de cujo peitilho desabotoado se via a carne trigueira, bronzeada pelo tempo. Nos campos, entre o restolho, cantavam as codornízes ou erguiam-se ruidosamente revoadas de lavercas. Ao longe, de um pinhal distante, vinha repercutido em ecos extensos o ruído de machados entalhando-se em troncos secos. E sob o azul puro, afogado no alagamento da luz intensa e crua do meio-dia, bandos de pombas passavam num voo sereno, com as asas abertas tocadas do sol.

Na torre da igreja, lá em baixo, ao fundo do vale, soaram as três badaladas do meio-dia: a sineta da quinta chamou ao jantar e a linha dos malhadores desfez-se, os homens enfiando as jaquetas, as mulheres ajeitando os coletes e os lenços da cabeça. Depois numa fila atravessaram o campo e perderam-se além no cunhal de um muro. O abade chegava justamente nesse momento. Soares viera ao meio da eira e examinava na palma da mão alguns grãos de milho. -- Heim?, que bela novidade, Sr. Padre Inácio! -- exclamou logo que o viu. -- Isto é que foi um ano farto e bom. Que tens tu a dizer a este milho amarelo?... -- Rico grão, na verdade! -- respondeu o outro encantado pelo tamanho e pela cor viva dos grãos de milho. -- E dizem mal da terra! -- tornou o brasileiro, com esse amor às coisas rústicas, que fica sempre no coração de quem nasceu e passou os seus primeiros anos no campo. -- Trabalhem... trabalhem... Tratem-na bem, que ela agradece tudo o que se lhe faz. Vê lá tu este principado... Nas mãos do Sr. António da Silveira, que Deus tenha!, mal lhe dava para não mandar comprar couves a casa dos vizinhos... O Dr. Carlinhos deu com tudo em pantana... Vê agora como isto está. Olha-me para aquele lameiro: faz favor de me dizer se já viste por aí erva como aquela? Olha-me essas vides de enforcado, de que eu plantei os bacelos apenas comprei a quinta... ali abaixo onde os viodimadores estão a despegar. Hein?, que braços! onde aquilo trepa!... Isto é que é terrinha... -- E mudando de tom: -- Sabes do que às vezes tenho pena? É de não ter um filho a quem deixe isto, para o conservar com amor... Vai em três anos que estamos casados, e nada... -- Ora, homem, tens mulher nova... Espera -- observou-lhe o irmão. -- Hum!... -- duvidou o brasileiro. -- Já não creio... E houve um silêncio. Mas o abade aproveitou a deixa para entrar no assunto. -- Ouve, Joaquim -- disse finalmente. -- Esse teu dito fez-me lembrar uma coisa desagradável que ontem me contaram... e que te diz respeito... -- Que me diz respeito?... -- Sim. Foi na tenda do António do Beiral! Não sei quem falou da tua fortuna, que era pena não teres um herdeiro, e a descarada da Joaquina atirou com esta bu- cha: -- Ora, o administrador se encarregará de lho arranjar... -- Ai a bêbeda! -- exclamou Soares, empalidecendo. -- Isto são ditos, bem vês. Mas é desagradável. Eu bem to preguei em tempo... Tu sabes o que são as línguas do mundo. Em o povo entrando a tagarelar... lá vai tudo. É claro que toda a gente séria crê no juízo da Ermelinda... e na honestidade do Dr. Sampaio... Mas estas coisas são o diabo, Deus me perdoe!... Começa-se a falar, e tu sabes que quem diz um conto sempre acrescenta um ponto... de sorte que se este agora afirma que suspeita, o outro logo jura que viu. Meu amigo: é preciso muita cautela!... Soares tinha voltado à sua habitual paz de espírito. -- Olha, Inácio -- respondeu ele -- eu mando ao diabo as línguas do mundo. Mal de mim se as atendesse! Que cada um viva em paz com a sua consciência e quanto ao mais... deixar aldravar. Palavras leva-as o vento, o que fica são as acções das pessoas... Em todo o caso, a Sr.a Joaquina que tome tento na língua, quando não paga-as caras... Sou manso, mas em me chegando a mostarda ao nariz não fico por mim! -- E de resto eu não admito a ninguém que venha meter-se na minha vida. Da Ermelinda até hoje, como tu sabes, só tenho tido provas de estima e de fidelidade... Tu bem viste o que ela foi para mim quando morreu o pai... -- E vieram-lhe duas lágrimas aos olhos. -- Eu cá fio-me no que vejo e não no que as más línguas taramelam. Lá quanto ao administrador devo-lhe muitos serviços; e em minha casa tem sido sempre um cavalheiro. Eu raras vezes abandono a casa, eu como com eles, ou estou com eles -- eu vejo tudo. Mas além disto -- tu bem me conheces -- não sou homem de duas caras: ou bem que se confia ou que se não confia... E, em consciência, julgo-me obrigado a acreditar mais na minha mulher e num homem de gravata ao pescoço do que nessa safada da Joaquina, que é a vergonha das mulheres desta terra. Portanto que se calem... e cuidadinho!... -- Ó homem!, mas tu podias talvez evitar... -- balbuciava o abade. -- Qual evitar, nem meio evitar! Que queres tu que eu faça?... Que meta a Ermelinda num convento? Que ponha no meio da rua o administrador?... E tudo isto por que motivo, por que razão? Pelos ditinhos da Sr.a Joaquina do Beiral e de outras desavergonhadas como ela!... Ora, Inácio, Isso não tem pés nem cabeça! Ninguém me convence de que devo ter menos fé em minha mulher do que nas maledicências do mundo. Lá isso é que não pega! -- Deixa-te dessas tolices, Ináoio... O padre, desconcertado, murmurou a meia voz: -- Está bom... Basta!... E meio corrido, meio revoltado contra a boa fé cega do irmão, abandonou logo o assunto. Mas as murmurações não cessavam. Alfredo quase se não tirava da Cardenha, e para os criados da casa era já indiscutível a existência de relações amorosas entre a sua ama e o Sr. Administrador. O criado de mesa jurava que uma tarde os tinha visto aos beijos na sala onde se passavam as noites, e a criada de Ermelinda dizia ter encontrado um lenço do hóspede debaixo do sofá, no quarto azul.

XXI

Um dia Ermelinda recebeu pelo correio uma carta anónima. Era numa folha de papel esta meia dúzia de palavras, em letra de um disfarce evidente: Pessoa que a estima aconselha-a que mude de vida. Seu marido pode, com a maior facilidade, ter conhecimento dos seus amores com o Sr. A. S., e não respondo pela existência se tal suceder.

Meia desorientada pela certeza de que o segredo do seu adultério fora por fim descoberto, Ermelinda mostrou a carta ao amante, que, trémulo de medo e receoso das consequências de uma delação, disse, querendo disfarçar as suas apreensões num tom de irónico desdém: -- Temos aí algum Otelo... Mas as cartas anónimas sucediam-se amiudadas, sempre no mesmo tom. Os criados começavam já a mudar de maneiras para com os dois amantes, como sentindo ali um acontecimento a explorar; e um certo dia um bilhete de Alfredo, mandado do Porto, não chegara às mãos de Ermelinda. Contudo, numa carta anónima recebida depois, referia-se o misterioso espião ao desaparecimento desse bilhete, transcrevendo-o em seguida textualmente. Era claro que mais de uma pessoa estava de posse daquele segredo; e Ermelinda começou desde esse momento a preocupar-se com o seu destino.

Então, subitamente, puseram a maior reserva nos seus amores. Alfredo foi para a cidade e de lá fez constar que adoecera de repente. Soares chegou a ir vê-lo, e encontrou-o com efeito em casa, queixando-se de uma pontada nervosa. Contudo as cartas anónimas não cessavam, e agora reduziam-se a relatar por miúdo a vida dos dois amantes. Uma delas dizia:

Na terça-feira o Sr. Soares foi ao Porto e encontrou muito incomodado o Sr. A. S. Contudo, nessa mesma noite, às duas horas da madrugada, este último cavalheiro entrou pela porta da capela na casa da Cardenha, e por essa mesma porta saiu às quatro horas para as cinco. O cavalo que o Sr. A. S. montava ficou na bouça da Carreira, preso a um pinheiro. Já se suspeitava dessas entrevistas nocturnas, mas agora a pessoa que a vigia certificou-se delas com provas irrecusáveis. Pede-se à destinatária desta carta que medite no caminho que vai levando a sua vida.

Ermelinda, é claro, era pois severamente policiada. Quem seria o autor dessas cartas? Qualquer dos criados? Mas, se o fosse, havia terceira pessoa metida naquela espionagem, pois a redacção e a letra não podiam pertencer a nenhum deles, visto serem todos quase analfabetos. E além disto o interesse que transparecia nesses bilhetes traía claramente a mão de uma pessoa de família. Seria, portanto, o irmão? Era impossível. Esse fora empregado para uma alfândega da raia a empenhos de Soares, logo depois da morte do avô, e lá decerto que lhe não chegariam os zuns-zuns da Guardeira, nem era homem para se intrometer em tal negócio, mesmo que dele tivesse absoluta certeza. Não podia também acreditar que essas cartas lhe proviessem do pai ou da mãe. E assim, por exclusão de partes, era sobre os dois tios que recaíam as suas suspeitas. Mas como lutar com eles? Como convencer pessoas que se mostravam tão sabedoras das minuciosidades da sua culpa? Como justificar-se perante provas tão evidentes? E se tudo isto acordasse a eterna boa fé de Soares? Se alguma das cartas lhe fosse parar às mãos? Se o inimigo anónimo se lembrasse de revelar ao marido afrontado a sua vergonha? Que faria ele? Decerto, desvairado, se vingaria com cega crueza como esse Otelo, a quem desdenhosamente o comparara Alfredo, e cuja lenda teatral ela conhecia de um modo vago pelas citações de romances tétricos, publicados em folhetins, nos jornais. Porque Ermelinda, com a sua espontânea e sagaz penetração, compreendera que a docilidade pacífica, a mansidão de boi de charrua de seu marido, eram susceptíveis de se transformar, sob a crise da ira, na ferocidade cega, indómita e vingativa de um touro atacado e ferido. E ela adivinhava-o tão duro na cólera, como condescendente na bonomia; ela percebera que a sinceridade da sua rude boa fé, da sua franca lealdade, davam a medida da intransigente justiça, da implacável indignação, que revoltariam aquela alma ingénua e crente, num momento de desespero e amargo desengano... E assim Ermelinda começava a sentir o falso da sua situação. Não podia permanecer ali, sempre rodeada de uma espionagem temível, sempre arriscada a uma surpresa em flagrante, capaz de lhe comprometer a própria vida. Os seus amores, entre sobressaltos e desconfianças, eram de uma insensatez perigosa, como a de uma pessoa que brincasse com lume sobre um paiol de pólvora. Mas, por outro lado, que lhe restava? Acabar com essa ligação criminosa, despedir Alfredo, voltar a entregar-se exclusivamente ao marido? Era já tarde para uma resolução tão decisiva... O vício enraizara-se; a carne habituara-se ao gozo; o temperamento tivera enfim uma expansão irreprimível. Já não o prendiam as antigas cadeias da virgindade, o ténue fio de respeito pela sua própria pureza. Uma

vez mordido o pomo, o paraíso estava irremediavelmente perdido. Que caminho lhe ficava, pois, aberto? O da fuga, o da deserção, o do abandono definitivo da vida aparentemente honesta. Restavam-lhe o mundo, as paixões, o gozo, os amantes, a independência miserável da prostituta, a aventura indefinida do amor livre. Restavam-lhe a vida fácil, as loucuras da boémia galante, o culto orgíaco do prazer. Restavam-lhe, enfim, a alegria de uma mocidade caprichosa e leviana, e ao fundo a tristeza, o spleen lamacento de uma velhice de pecadora decaída -- talvez arrastada na miséria, talvez espicaçada pelo remorso... Mas a ideia da fuga aterrava-a. Hoje, apesar do seu adultério, era ainda para o público uma mulher honesta, que o marido faria respeitar apresentando-a pelo seu braço. Amanhã, fugindo -- mesmo sem trocar com Alfredo mais um só beijo que fosse --, seria já uma adultera reconhecida, uma concubina degradada, a quem o mundo voltaria as costas. E então nesta luta íntima, nesta oscilação de um instante, a mulher fria e calculista de outrora surgiu repentinamente. De que lhe valia esse respeito exterior imposto ao mundo por uma pura convenção -- se ela ficava sob o risco constante de um desastre íntimo, talvez da própria vida?! E que lhe importava, por outro lado, a fama de honestidade, agora que justamente ia abandonar o único meio em que isso lhe poderia servir para alguma coisa?... Lá longe não conhecia ninguém, não tinha que baixar os olhos diante de pessoa alguma. Que se diria dela? Que era uma mulher casada que deixara o marido -- um facto trivial, uma acusação que a não incomodava, pois nada queria desse mundo que a podia condenar. Não. A lógica da sua vida era aquela: devia aceitá-la. Casara com o tio para obter a liberdade do gozo: seria, pois, absurdo recuar perante um primeiro passo de emancipação na vida. De resto não precisava de ninguém. Era rica: tinha um rendimento de perto de três contos, absolutamente garantido por um dote antenupcial; tinha as suas joias que valiam algumas centenas de libras; tinha enfim, a beleza, um capital inestimável, que o seu bom tino continuaria a saber administrar com formidável usura. Era pois uma criancice indecidir-se por mais tempo. A sua única salvação estava na fuga: fugiria, portanto! Resolvida a este expediente extremo, precisava de assentar um plano e fazer alguns preparativos. Para ela não era uma condição da fuga projectada o facto de Alfredo a acompanhar. Não o amava. Ali precisava dele. Em Lisboa, para onde determinara ir, Alfredo era-lhe dispensável. Lá sorria-lhe essa vida livre, essa independência de amor físico, que era o seu sonho dourado, fazendo dos homens o que eles costumam fazer das mulheres -- um simples instrumento de prazer, o gozo de uma noite que se esquece no dia seguinte. Assim, escreveu laconicamente ao amante: Decidi-me a fugir. Aqui não me sinto segura, porque as cartas anónimas não me deixam e o Joaquim pode vir a saber tudo de um momento para o outro. Vou para Lisboa. Vem dizer-me se queres ou não acompanhar-me.

Alfredo, entre o medo da aventura e a paixão que se lhe desenvolvera por Ermeíinda, cedeu a esta última tentação e foi à Cardenha jurar-lhe que a seguiria para toda a parte. Ao fim do jantar, no jardim, a alguns passos do marido que conversava com o irmão médico, os dois combinaram largamente e em todos os seus detalhes o plano da fuga. Soares tinha de voltar à Régua dentro de dois dias, e demorava-se lá perto de uma semana. Alfredo fingir-se-ia novamente doente, não fazendo porém, desta vez, as visitas nocturnas. No dia em que ele recebesse um aviso da amante iria à Guardeira num carro, devendo estar no cruzamento da estrada de Leça com a estrada do Porto à Póvoa às duas horas da noite. Ermelinda prometia aparecer-lhe aí. No dia imediato Alfredo voltou para o Porto, e no seguinte a esse Soares partiu para a Régua.

Então só, Ermelinda, com a maior tranquilidade, dispôs tudo para a realização do seu plano. Durante a noite, com as chaves que o marido lhe deixara sempre, abriu o cofre e tirou todos os papéis de crédito, que lhe pertenciam, e o dinheiro, em rolos, dos últimos juros das suas obrigações do Crédito Predial, que Soares tinha intactamente apartado a um canto, com a designação escrita da sua proveniência. Depois guardou tudo num pequeno saco de mão de marroquim vermelho, juntamente com as suas jóias, e um retrato de D. Catarina, que ela estimava imenso. Numa pequena trouxa meteu dois vestidos e alguma roupa branca. Finalmente, fechou os dois volumes num velho armário de parede, e escondeu a chave. No dia seguinte, um tanto comovida, mas reprimindo-se energicamente, foi à Portela ver os pais, encobrindo o seu adeus num pretexto de passeio habitual; e no caminho deitou ao correio o bilhete avisando Alfredo. Entrou em casa pela volta das três horas. Antes de jantar chamou a mulher do feitor e mostrou-lhe uma carta de uma senhora do Porto das suas relações, que lhe pedia um costume de lavradeira para tirar um retrato. -- Pode vocemecê emprestar-me a sua roupa? -- perguntou-lhe. -- Pois não, minha senhora; já cá lha mando -- respondeu a outra. Ao fim do jantar deu um demorado passeio no jardim e voltou só ao lusco-fusco. Mandou acender a luz e esteve até às dez horas e meia trabalhando e lendo, segundo o seu costume. O abade entrou um momento e conversaram. Ela notou-lhe o olhar inquiridor, e adivinhou nele por fim o terrível espião das cartas anónimas. Com efeito, era o abade o polícia incansável que a não deixava. Vendo a cegueira do irmão, sentindo-se incapaz de abalar a sua boa fé e receando uma explicação frente a frente com a sobrinha, tentou desviá-la daquele mau passo por um meio que lhe incutisse um receio forte, sem ele contudo se descobrir.

Por isso o abade andava numa dobadoira; passava noites inteiras fora de casa, como um rapazelho que se ensaia na vida estróina, e um dia no correio, tendo-lhe dito o director que escolhesse ele próprio as suas cartas, não recuou perante a tentação de subtrair um bilhete de Alfredo para Ermelinda, quando no sobrescrito reconheceu a letra daquele. A sobrinha, porém, nessa noite, tratou-o como de costume e disse-lhe até para ir jantar no dia seguinte -- tanto que o padre saiu persuadido de que as coisas tomavam finalmente um bom caminho. Mas, antes de se deitar, Ermelinda recomendou à criada que ao outro dia metesse aquela roupa de lavradeira numa saca, porque da cidade a viriam buscar pela volta das dez horas; e, além disto, que logo de manhã levasse à mulher do feitor um embrulho e um bilhete que lhe entregou. -- Fica tudo aí fora no quarto azul. Quando se levantar venha buscá-lo -- concluiu despedindo-a. A criada não suspeitou de coisa alguma. A mulher do feitor era quem aviava todas as encomendas da ama, recebendo-as ou mandando-as para a cidade por um irmão, que era cocheiro nos carros da carreira. Desta vez, porém, tudo aquilo fora um hábil estratagema para conservar em pleno mistério a manobra da sua fuga. Ermelinda receava ser casualmente reconhecida atravessando de noite os campos, os pinhais e as estradas. Da Cardenha ao ponto onde marcara o rendez-vous gastava-se perto de meia hora, mesmo andando bem. Era fácil ser descoberta pelos madeireiros que dormiam na mata, por qualquer homem de guarda às eiras, ou até por algum retardatário de esfolhadas distantes; e uma toilette de senhora, mesmo disfarçada com um lenço e um chale, podia traí-la, sujeitando-a a um insulto, ou indo talvez levar à povoação um alarme antecipado e perigoso. Por isso inventou o pretexto de uma amiga lhe ter pedido um costume de lavradeira para, sem levantar suspeitas, obter o vestuário indispensável ao seu disfarce. De resto este pequeno detalhe da sua aventura interessava-a, fazia-a sorrir intimamente, dava ao caso um pitoresco de romance, que a seduzia. E quanto ao embrulho que deixara para a mulher do feitor, esse continha unicamente um dos seus melhores vestidos, cujo destino o bilhete explicava assim:

Sr.a Maria: Guarde este vestido em paga do que me emprestou, e que não lhe posso já restituir.

À meia-noite tudo dormia profundamente na Cardenha. Mas instantes depois, Ermelinda saiu cautelosamente do quarto vestida de lavradeira, com um lenço na cabeça, o capotilho sobre os ombros e a trouxazita na mão. Para evitar qualquer ruído ia em palmilhas, levando as chinelas debaixo do braço. Cosida com a parede desceu ao primeiro patamar da escadaria principal às apalpadelas, tacteando na escuridão: aí abriu sem barulho uma pequena porta dando para um longo corredor, que seguiu em bicos de pés; e um momento depois, tendo transposto outra porta, penetrava na capela alumiada por uma luz bruxuleante de lâmpada. Dirigiu-se ao altar-mor, atrás do qual se sumiu, passando à sacristia. Lá abriu uma terceira porta, e achou-se ao ar livre. A frialdade da noite fê-la estremecer ligeiramente. Ao limiar da porta parecia indecisa, talvez picada de um remorso, mordida por uma dúvida... Saía dali -- para onde?... Era um mistério que lhe cercava a existência, como essa noite de um negro-azul calado, cheio de segredos, que se estendia diante dela... Mas animou-se, sorrindo; cerrou a porta cautelosamente, e calçando as chinelas seguiu adiante com resolução. Desse lado da casa começavam os campos e àquelas horas mortas não havia ali viva alma. A noite estava clara, com um rutilar de estrelas profundo, como a palpitação luminosa de miríades de insectos fosforescentes. Corria um vento fresco, que trazia dos pinhais distantes exalações balsâmicas de resinas. Num casal, para as bandas do rio, um cão latia com fúria. Os galos cantavam por toda a aldeia. Ermelinda penetrou no campo para os lados da eira.

Mas, já perto, lembrou-se se estaria alguém de guarda aos milhos recentemente colhidos; nisto sentiu o rosnar de um cão, que pressentira gente, e ocultou-se atrás de uma grande meda de palha. O cão, porém, veio ter com ela, farejando. Ermelinda teve de se descobrir para que ele não ladrasse. O animal reconhecendo-a começou a agitar a cauda, mas ela a meia voz mandou-o retirar: -- Passa fora! Fora daqui, marujo... E o rafeiro obedeceu, de cabeça baixa e rabo pendente. Então, contornando as medas enormes, deixou ao largo a eira e procurou a vereda na orla do pinheiral que cobria o dorso do outeiro. Ladeou muito tempo a massa de sombra dos pinheiros e depois internou-se nela, seguindo apressada por entre o mato crescido. A brisa da noite refrescava-lhe a cara, agitando-lhe sobre a testa os cabelos crespos e revoltos. Os tojos e as silvas pegavam-se-lhe às saias; as chinelas dificultavam-lhe a marcha. Qualquer sombra a assustava; parecia-lhe distinguir vultos cosidos com os muros de valação. A voz lúgubre e plangente do pinheiral, em extensas escalas, semelhante ao som longínquo de um órgão sagrado acompanhando um salmo fúnebre, acordava no seu espírito terrores negros e supersticiosos, como se atravessasse um país estranho de legendas mortuárias. Mas na escuridão da mata fez-se repentinamente uma claridade: um pedaço de céu fos/crescente de estrelas abriu-se sobre o pinhal, como rasgando um negrume de nuvens. Agora entre as bouças entalava-se uma leira de terra de semeadura: Ermelinda, mais tranquila, reconhecendo o caminho, começou a atravessar o campo. Do outro lado desceu um pouco à esquerda e cortou outra vez por entre os pinheiros. Então, saltando um portelo, achou-se na estrada de Leça. Mal tinha dado alguns passos viu crescer para ela um vulto da outra banda da estrada. Sobressaltada, parou; mas, receando trair-se, continuou a marcha. Mais perto distinguiu um vareiro, que trazia às costas uma rede cheia de pinhas. Cruzaram-se trocando uma saudação: -- Salve-a Deus!

-- Salve-o Deus, tiozinho! E o trote leve do vareiro perdeu-se nas suas costas, entre o ruído manso e lento dos pinhais. Ao fim de um quarto de hora de marcha chegou ao cruzamento da estrada de Leça com a estrada da Póvoa ao Porto. Ao dobrar-lhe, porém, o ângulo de intersecção, viu um ponto de fogo na sombra, como o lume de um charuto. Parou indecisa. Seria Alfredo? A pequenina brasa parecia avançar. Então sentiu passos. Esperou com um leve receio, mas um instante depois reconhecia claramente o ulster alvadio do amante. -- És tu? -- perguntou-lhe a meia voz. -- Sou -- respondeu-lhe Alfredo. -- Vamos... vamos. E rapidamente, adiantando-se, conduziu-a ao carro que esperava mais adiante. Entraram. O cocheiro, despertado à voz do administrador, acendeu as lanternas, que tinham sido apagadas de propósito, e fez partir a parelha a trote largo, a caminho do Porto. E ali mesmo, mal o carro se pôs em marcha, ela entregou-se-lhe num longo abraço...

XXII

Na manhã seguinte, estava o abade depois do almoço a dispor sobre o friso de uma velha estante, em compridas filas, as maçãs que colhera esse ano, quando lhe entrou pela porta dentro Francisco da Silva, com as feições decompostas, todo trémulo e brandindo ameaçadoramente um varapau de marmelo. O abade fitou-o espantado, que nem largou a maçã que ia meter à fileira. -- Oue é isso, homem? -- perguntou. -- Que é isto?! -- rugiu o outro furioso, atirando consigo para cima de uma cadeira. -- É a minha vergonha, sabes tu?... É o raio desta vida, que antes queria estar agora debaixo da terra, ou ter a alma nas profundas do inferno... -- Credo! Mas que te aconteceu! Minha irmã tem alguma coisa?... Fala... -- Antes tivesse, com um milhão de demónios! Então ainda não adivinhaste nada?... -- perguntou o lavrador, como envergonhando-se de ter ele mesmo de dar aquela notícia. -- Adivinhar!?...-- exclamou o padre cada vez mais pasmado. -- Mas só se tu soubeste alguma coisa desagradável a respeito da Ermelinda... -- aventou, com um palpite repentino.

-- Nem mais! É dela mesmo. Foi essa desavergonhada que fugiu oom o administrador!... -- Fugiu?!... Ai que desgraçada! -- tornou o abade empalidecendo. -- Fugiu, sim, com aquele mariola que o tolo do teu irmão foi meter de portas a dentro como se fosse um amigo de muitos anos! Isto nem pelo demónio, Inácio! Antes queria rebentar. Que vergonha! Ter uma filha aí da laia da Joaquina da Tenda e da Justininha do Cego! Eu nem sei onde tenho a cabeça! A minha vontade era ir por aí fora, procurar os dois, e contar-lhe os ossos do corpo com este cajado! Era o meu regalo! Era o meu desabafo!... E brandia o marmeleiro como se tivesse em frente os fugitivos. O abade tinha ficado preso às tábuas do sobrado, numa petrificação de sofrimento mudo. Francisco da Silva, cortado pela dor, torcia-se sobre a cadeira, e agora explodia num choro nervoso. -- Ó Francisco -- dizia-lhe o abade --, sossega, homem, sossega! As lágrimas são para as mulheres... É preciso ânimo. Quem sabe lá como as coisas se terão passado?... É bom averiguar primeiro... -- Qual averiguar! -- respondia o pai lavado em lágrimas. -- Está mais que averiguado. Fugiu -- aquela grande desalmada, aquela brejeira, que é a minha vergonha!... E então relatou como se tivera conhecimento da fuga. De manhã a criada foi chamar Ermelinda ao quarto e encontrou a cama vazia com a roupa desfeita; como a não tivesse sentido sair, ficou admirada, mas correu o resto da casa e foi ao jardim procurá-la. Nada! Daí desceu à quinta, interrogou alguns trabalhadores: ninguém a tinha visto. Voltou aos aposentos da ama, e todo o seu espanto foi quando encontrou no quarto azul o robe de chambre, que ela costumava vestir de manhã, e ao lado um colete de lavradeira. Lembrou-se então do recado de Ermelinda a respeito da roupa da mulher do feitor, mas saia, capa, lenços e chinelas -- tudo tinha desaparecido: restava só o colete. Teve de repente um palpite e procurou o embrulho que devia entregar àquela mulher. O embrulho estava sobre a cómoda com o respectivo bilhete. Em poucos momentos galgou as escadas, correu à abegoaria e rapidamente contou à Sr.a Maria Rosa o acontecido. No embrulho acharam um vestido de seda: o bilhete, que a mulher do feitor leu como pôde, deu-lhe a explicação de tudo. -- Fugiu: não há que ver, Sr.a Maria, fugiu com o hóspede... -- asseverava a criada. -- Ai Pai do Céu! O que será do patrão! -- dizia a outra apertando as mãos na cabeça. Daí, muito em segredo, largaram ambas para a Portela. Francisco da Silva, que estava no celeiro, sentiu barulho em casa. Correndo lá, encontrou a mulher estendida no chão, inerte e pálida, rodeada de Maria Rosa e da criada da filha. Foram as duas que lhe contaram tudo, e ele, sem mesmo se lembrar da mulher desmaiada, saiu desorientado, correndo instintivamente à residência. O abade facilmente se convenceu de tudo, pois as pesquisas que fizera para julgar das murmurações correntes contra a honestidade da sobrinha haviam-lhe dado uma triste confirmação a essas suspeitas anónimas do público. Mas ele queria consolar o cunhado: -- Olha, Francisco: deixa-me em todo o caso ver. Talvez a fuga se não tenha ainda realizado... Talvez a Ermelinda esteja ainda no Porto... Pode ser que haja um meio de evitar essa desgraça... -- Não há, não há... -- negava o lavrador. -- Já não espero nada! Para mim morreu: é como se a tivesse visto enterrar agora... Eu não quero saber mais dela, não quero saber mais do Joaquim, não quero saber de ninguém! Amanhã, largo com a minha companheira para o Soutelo, meto-me em casa do Ricardo -- e arranjem-se por cá como puderem. Não tenho cara para andar por aí depois de uma vergonha destas: nem sei como aparecer ao Joaquim... Que a culpa foi muito dele! Meter assim em casa um valdevinos que nunca vira -- só um doido! Aquilo às vezes moía-me cá por dentro. Mas que queres? Ser um pai o primeiro a lançar suspeitas da filha... não era cá para o msu

génio! E quem o diria, Inácio?! quem o diria! A Ermelinda, toda grave, toda sentenciosa, com o seu ar de senhora, uma rapariga que era a luz dos nossos olhos... dar um coice destes!... Ah, raio de sonsa!, parece que foram as fidalguias dos da Cardenha que te meteram o vício no corpo! E eu queixava-me do Augusto... Esse ao menos nunca me envergonhou, e agora lá segue o seu caminho, ganha o pão para a boca e não me suja o nome. Maldita a hora em que me casei! Quebradas tivesse eu as pernas quando fui para a igreja! Custou a serená-lo. Por fim resolveu-se a voltar para a Portela, onde o abade o acompanhou, seguindo para a Cardenha. Aí chamou a criada e a mulher do feitor e obteve mais pormenores. A porta da sacristia aparecera apenas cerrada. Faltava bastante roupa branca, um vestido, algum calçado e uma saquinha de mão. Um retrato de D. Catarina, que costumava estar sobre uma mesa no quarto azul, havia desaparecido, e a criada achara as chaves da senhora metidas debaixo do travesseiro. Então o abade tomou conta das chaves, fechou tudo, e ordenou que se mantivesse sobre o caso o maior segredo. Ao chegar à residência encontrou o Ricardo a apear-se do seu rijo macho espanhol. A notícia caiu sobre a cabeça do médico como um raio; e, ao fim de uma longa conversa, resolveram ir ambos à cidade ver a volta que se havia de dar àquilo tudo. Ao meio-dia largaram para o Porto no carro da carreira. Pelo Guedes haviam sabido da morada do pai de Alfredo Sampaio, no Porto. O procurador estava no escritório e recebeu os com muitas cortesias. -- São irmãos do Sr. Soares?... Muito gosto... muito gosto em conhecê-los. É um verdadeiro amigo de meu filho... Queiram sentar-se... Então, Sr. Abade... Esta cadeira, Sr. Doutor. Mas os dois, apressados, pediam desculpa: apenas desejavam saber do senhor seu filho...

-- O Alfredo não está cá... Ora que pena! Pensei que vossas senhorias sabiam... Pois foi ontem para Lisboa... chamado a toda a pressa pelo Sr. Ministro do Reino. Política... política... vossas senhorias sabem... O rapaz vai fazendo o seu caminho. É necessário trabalhar... hoje em dia é preciso ter-se uma carreira... Não havia dúvida. A ordem do Sr. Ministro tinha sido um pretexto para a fuga, como ao outro dia o próprio pai o veio a saber avisado pelo governador civil da demissão que o filho apresentara. E o padre e o médico, desembaraçando-se a muito custo do verboso solicitador, acharam-se no meio da rua tão adiantados como antes. O lance delicado aproximava-se. Como avisar o pobre Joaquim Soares? Em caminho da Praça Nova os dois irmãos discutiam esse ponto difícil e melindroso. Ora lhes parecia que o melhor alvitre era escrever-lhe, ora chamá-lo à pressa por um telegrama vago; já assentavam em ir um deles à Régua anunciar-lhe de viva voz o triste acontecimento, já em não lhe dizer nada com antecipação e esperar o seu regresso. Contudo, na Praça Nova, outro facto lhes veio confirmar a certeza da fuga dos dois amantes. Como o abade entrasse em casa do seu correspondente na cidade, Santos Cunha & C.a, para levantar um pequeno depósito, soube casualmente pelo guarda-livros, seu velho amigo, que três dias antes o administrador de Bouças descontara ali uma letra de um conto de réis com um juro forte. Para que era esse dinheiro? Decerto para a fuga, para se manter algures com a amante... Alfredo estava pois realmente apaixonado por Ermelinda para comprometer assim a sua carreira com um abandono de lugar, e as suas finanças de filho-família com uma dívida relativamente importante. Era, porém, necessário tomar uma resolução. De todos os alvitres discutidos o único que lhes pareceu razoável foi o de o avisar por um telegrama, no qual a notícia não tivesse nenhuma indicação precisa. Nenhum deles se achava com força para, frente a frente, lhe dar conta de um tal sucesso, nem para numa carta o explicar por miúdo -- além do que urgia porem-se fora de qualquer responsabilidade, tomando rápidas e imediatas disposições, como requeria a grave natureza do caso. Optaram pois pelo telegrama, que o médico redigiu de um modo vago: -- «Vem aqui imediatamente. Acontecimento muito grave reclama a tua presença.» Ainda pensaram em esperar o irmão no Porto; mas a mesma falta de coragem que os prendeu, quando se tratou de o avisar directa e claramente, fazia-os também recuar agora perante uma explicação cara a cara. Por isso, apenas expediram o telegrama, foram tomar a diligência da tarde e voltaram à Cardenha.

XXIII

Aquela notícia vaga, indeterminada, aberta a todas as suspeitas, a todas as conjecturas, às mais extravagantes e absurdas hipóteses, lançou Joaquim Soares numa agitação febril de dúvida cruciante. O telegrama surpreendeu-o em meio do jantar, e ele não pôde mais comer. O comboio da tarde partira momentos antes -- e da janela da hospedaria divisava-se ainda o seu penacho de fumo contornando rapidamente, ao silvo da máquina, os ziguezagues sinuosos da margem. Correu ao telégrafo: fez um despacho a um dos irmãos, e imenso tempo esperou a resposta, ia, vinha, passava em frente da porta da estação telegráfica, querendo e não querendo entrar. Às vezes decidia-se, e metendo a cabeça ao guichet inquiria com um monossílabo: -- Já? Por ora nada -- respondia o empregado. E, brandindo furiosos murros no ar, o brasileiro retirava num desespero louco. Por fim o telégrafo fechou-se ao pôr do Sol. Era a hora marcada para a interrupção do serviço, e Soares consternadamente teve de resignar-se com as explicações do telegrafista, a quem ele, quase de joelhos, prometia uma forte remuneração para se conservar no telégrafo, esperando a resposta. -- É impossível, senhor. É do Porto que cortam as comunicações. Eu nada lhe posso fazer... Mas creia que, se estivesse na minha mão, não arredava pé daqui enquanto não lhe respondessem -- dizia o homem sinceramente condoído. O brasileiro morria de angústia. Tinha de esperar até à madrugada seguinte! Remoendo os seus sustos, os seus receios, discutindo todas as possibilidades e probabilidades, ir à toa pela vila fora, abalroando cegamente com os transeuntes, perdendo-se no meandro complicado das pequenas ruas. De repente achou-se perto da estação do caminho de ferro: quase sem dar por isso dirigiu-se para a ponte. Estava uma noite serena de Outono, sem luar, profundamente estrelada. De um e outro lado do rio erguiam-se os fraguedos ásperos das margens em duas pinceladas de negro: e só da banda da vila picavam aquela escuridão indistinta algumas luzes mortiças -- de janelas abertas e dos lampiões das ruas. A ponte erguia as grandes curvas da sua armação, como a silhouette de um steamer colossal movido por uns poucos de pares de rodas gigantes. Em baixo o Douro marulhava entre a penedia, reflectindo vagamente as claridades do céu. Vinha do estreito vale uma frescura de brisa humedecida pelos vapores do rio, e ao longe sentia-se o sussurro monótono de um ponto, no qual as águas se despenhavam fervendo em cachoeira. Com a cabeça em febre, o brasileiro debruçou-se sobre as guardas da ponte. O mistério de toda aquela sombra dizia com o mistério que o torturava, com o segredo desse acontecimento muito grave, anunciado pelo telegrama, e que caía repentinamente na sua vida, como um cataclismo que o ameaçasse de longe sem ele lhe poder avaliar a natureza, a força ou as consequências. E aí, durante horas, revolveu com amarga lentidão, os seus negros pensamentos. Que teria havido? Decerto qualquer coisa de muito íntimo e pessoal, para a não terem confiado a um telegrama; ou um desastre de fortuna, desses extraordinários para que as condições do crédito comercial exigem um segredo absoluto, ou uma desgraça de família, muito cruel para se revelar repentinamente, muito particular para se expor à publicidade de uma comunicação aberta. Uma quebra, um prejuízo, uma doença, uma morte, um incidente desagradável -- o que seria de tudo isto o terrível acontecimento vagamente anunciado nessa fatal notícia? O espírito de Joaquim Soares girava em tomo desta sombria interrogação, como um náufrago em torno de um prancha de que as vagas o afastam continuamente. Ao fundo do turbilhão negro dos sobressaltos e dúvidas erguia-se em frente dele o vulto de Ermelinda, para quem instintivamente convergiam todos os seus cuidados e receios. Seria à pessoa da sua adorada mulher que se referia esse acontecimento?... A esta ideia a angústia da incerteza atingia as proporções de um martírio: e o pobre homem procurava adivinhar, concentrando todo o poder do seu espírito, como para promover nele esse iluminismo dos palpites, que nos fazem pressentir o futuro numa antevisão de agoiro. Às vezes formavam-se-lhe na imaginação quadros lúgubres, que ele afastava passando a mão pela fronte, aljo- frada do suor das agonias. Eram visões de alucinado, cenas tristes de morte, em que via o corpo magro de Ermelinda estendido no leito mortuário, as mãos em cruz sobre o seio, o rosto pálido de cera, iluminado por esse último sorriso amargo dos moribundos, que tem qualquer coisa de um derradeiro raio de luz rompendo as nuvens tristes de um céu de Outono, numa tarde de tempestade. E então de toda a vida, de todo o mundo, de todo o universo, apenas via e sentia aquela visão dolorosa e fúnebre: o ser era para ele aquele cadáver fantástico: tudo o mais era em torno como uma sombra opaca de caos. Distinguia-o claramente a alguns passos de si na corrente do rio, aureolado numa claridade de crespúsculo, beijado pelas estrelas, envolto no lençol de espuma das águas sussurrantes, como a sombra meiga e poética de Ofélia... E ali ia como que o seu mundo, a sua crença, o seu deus -- ia toda a razão da sua vida, toda a causa da sua existência! Esse vulto flutuante na torrente dos seus sonhos era como que o esquife da sua alma... Na terra apenas lhe ficara a matéria impura, uns destroços abjectos de carcaça apodrecida -- a miséria do seu corpo!... Foi no auge desta alucinação desvairada que o atacou uma espécie de vertigem do abismo. A vida era nada sem ela: para que ficar ali?... Ermelinda seguia na noite desconhecida do outro mundo, como uma sombra, uma visão incorpórea, uma evocação espiritual dos sonhos. Em baixo o Douro sussurrava: era o deslizar do seu corpo leve... Segui-la... segui-la -- era o seu destino, era o cumprimento da sua jura sagrada... A sombra tentava-o, a brisa falava-lhe, a voz das águas fazia-lhe um apelo lacrimoso de saudade... E então, debruçando-se nas guardas da ponte, fez um balanço como para se precipitar: mas nesse momento um carro, descendo de Lamego, começou a trotar sobre o tabuleiro, e, como que despertado pelo abalo e pelo ruído, Soares sentiu-se cair de toda a altura daquele sonho desvairado na realidade desesperadora da sua situação. Estonteado, voltou à vila; à luz de um lampião viu o relógio: eram onze horas. Foi à hospedaria, fechou a mala e deitou-se sobre a cama vestido, esperando a madrugada. Quando se levantou chovia. O céu pardo, barrado de nuvens sujas, que se desfaziam num chuvisco contínuo e impertinente, dava às coisas um aspecto triste, de uma melancolia, de um spleen indefinido. E a primeira luz da manhã, coada através desses vapores plúmbeos, punha em tudo tons cinzentos, uma monotonia de grisaille, aqua- relada em pinceladas largas, duras, sem nitidez de linhas, sem desenho. Quando entrou na carruagem, achou lá dentro instalados três passageiros, estendidos sobre as almofadas, dormitando. Arrumou-se a um canto, a face contra o vidro de um dos postigos laterais, por onde os pingos da chuva escorriam tristemente, como lágrimas. A viagem foi um tormento. Quanto mais se aproximava, mais as dúvidas, os receios, a exaltação do medo e da incerteza o tomavam. Sentia impaciências terríveis: parecia-lhe que o comboio marchava com uma lentidão pacífica de charrua; revoltava-se contra as demoras nas estações. A sua preocupação lia-se-lhe no rosto: a um passageiro ouvira dizer a meia voz para outro: «Este homem, coitado!, parece que vai aflito...» Na estação de Campanhã nenhum dos seus! Mais duas longas horas de angústia até à Guardeira! Os minutos iam-lhe parecendo séculos: todo aquele transe pesava-lhe na alma com o cansaço de uma eternidade rasgada de tormentos. E a tristeza do dia, carrancudo, nublado, húmido sem um sorriso de luz, sem uma réstea animadora de sol, acabava de o envolver numa atmosfera de sombria desolação. Procurou um carro, prometendo ao cocheiro uma boa gorgeta para largar o que pudesse. Este enfeixou as pilecas excitando-as com o açoite, e, atravessando como um raio toda a cidade de lado a lado, começou em breve a trotar na estrada da Póvoa. Soares comia o espaço com a vista, olhando a longa fita de macadame pela portinhola da tipoia, nomeando com satisfação os lugarejos passados. Enfim, ao longe, numa curva da estrada, descortinou as torres da Guardeira, esfarrapando com as suas pirâmides aguçadas a névoa triste e gotejante, e do outro lado do vale a frontaria solarenga da Cardenha, rodeada das velhas árvores, erguendo-se pacífica e soberana a meia encosta, como uma rainha orgulhosa no seu trono. O carro desceu rápido a íngreme ladeira, atravessou sobre a ponte o riacho, e instantes depois enfiava pelo portão da quinta, parando à entrada do jardim. Soares dirigiu-se a casa correndo. A porta estava aberta: galgou as escadas. Ao cimo encontrou o abade pálido e oomo petrificado. -- Que há, Inácio?! Dize-me o que há, pelo amor de Deus! -- bradou-lhe o brasileiro desesperado. O padre, ao ver a sua consternação, sentiu-se tolhido de movimentos, com a voz embargada, como um paralítico. -- Fala, homem! Por tudo quanto há, dize-me o que houve!...

Duas grossas lágrimas rebentaram dos olhos do abade, imóvel e mudo como uma estátua. -- Meu Deus, mas fala!... Já sei... Foi a Ermelinda? Está mal?!... Mas dize... Ah! está mal, está mal... Bem mo dizia o coração... E louco, perdido de dor, na última crise de um sofrimento sobre-humano, correu pela casa gritando: -- Ermelinda! Ermelinda!... O irmão seguia-o; Soares abriu a porta do quarto conjugal: mas recuou pasmado ao ver a cama feita e sem ninguém... Uma última vez balbuciou: Ermelinda!... numa voz inexprimível de desespero e incerteza, como o derradeiro grito de um afogado. O abade entrara no quarto. -- Mas o que é isto, Inácio?... o que é isto?!... -- Escusas de chamar mais por ela -- respondeu o padre finalmente. -- Então... morreu?! -- interrogou no auge do desespero. O outro olhou-o serenamente. -- Não. Fugiu... -- disse. Um rugido monstruoso, uma voz inaudita, cheia de arrancos de cólera e soluços de agonia, ecoou por toda a casa. Soares torcia no ar os braços como numa convulsão de envenenamento, e, deitando as mãos aos ombros do abade, perguntou-lhe cara a cara, com um aspecto demudado e feroz: -- O que dizes tu?!... Fugiu?... -- Fugiu -- repetiu-lhe o outro pálido e tremendo. -- Fugiu com o... administrador? -- Sim... com o administrador. Soares apartou-se do irmão. Deus alguns passos, visivelmente aflito. Os soluços cortavam-lhe a garganta, o corpo tremia-lhe numa convulsão horrível. De repente sufocado, o olhar fixo, a face vermelha, levou as mãos com desespero ao peito oprimido, e, soltando um grito lancinante, caiu no chão redondamente, a arquejar como um moribundo.

XXIV

Quando voltou a si do longo desmaio encontrou-se deitado na cama e viu à cabeceira os dois irmãos. Lançou um olhar vago pelo quarto, um olhar estúpido de quem acorda num mundo que não conhece. O médico receou um ataque repentino de loucura ou uma dessas absolutas paralisações de memória, causadas vulgarmente pelas emoções fortes, e que lançam o espírito na indiferença inerte do idiotismo. Tomou-lhe o pulso para reconhecer o estado febril, mas a este contacto o corpo vibrou como atravessado de uma corrente eléctrica, e Soares erguendo-se de um salto lançou-se aos braços dos irmãos num choro convulsivo e abundante. Sentado num sofá, com a cabeça escondida contra o peito de um deles e apertando as mãos do outro nas suas, chorou imenso tempo, numa expansão forte da sua sensibilidade de criança. Quando as lágrimas foram menos abundantes e os soluços começaram a espaçar-se, os dois julgaram perceber-lhe algumas palavras entrecortadas. -- Queres alguma coisa? -- perguntou o médico. -- Não me deixem... não me deixem... -- balbuciava ele. Mas corno lhe parecesse sentir no quarto próximo -- justamente a toilette azul de Ermelinda-- rumores de vozes estranhas, tornou: -- Não quero aqui ninguém... Só vocês... só vocês... Mandem aquela gente embora...

E o abade saiu a mandar retirar os criados, que estavam com efeito no aposento ao lado. -- Estás melhor? -- perguntou-lhe o médico. -- Como hei-de eu estar!... -- respondeu Soares numa voz que parecia resignada. Mas de repente voltou-lhe outra crise de choro, porém desta vez seguida de um desespero de louco furioso. Praguejava, contorcia-se, corria o quarto apostrofando a mulher e o amante, os irmãos, a sua maldita sorte, a sua triste vergonha!... Eram gritos, gemidos, soluços, súplicas e blasfémias, risadas e lágrimas, que lhe explodiam da garganta como a lava incandescente do sofrimento que lhe refervia no íntimo do peito. Os seus passos pesados e incoerentes abalavam o sobrado. A sua voz cavernosa ecoava por toda a casa, como uma trovoada de palavras. Todo o corpo vibrava numa excitação geral dos nervos e do sangue: os músculos tremiam-lhe em contracções violentas, a face estava apoplética, os olhos vermelhos e inchados do choro, os cabelos em pé, as narinas palpitantes, o peito arquejando como um fole. De vez em quando levava as mãos à garganta como sufocado; parecia que o estrangulavam: as cordoveias salientes e tesas tinham uma rigidez de cordões metálicos; a boca abria-se-lhe num desespero de asfixia, com a língua roxa, como a dos enforcados; o tórax alargava-se arfando opressamente. Então um ai horrível, um ai quase ventríloquo, profundo e cavo, um ai como os dos asmáticos e dos moribundos, rompia-lhe do peito, num medonho desabafo da sua agonia violenta... Era o paroxismo da dor, a epilepsia terrível dos grandes cataclismos morais! Os irmãos acreditaram por instantes que ele ia enlouquecer ou morrer. Só uma natureza hercúlea podia assim resistir a crise tão intensa e tão longa. O médico receava uma apoplexia, a fulminação repentina de um grande rompimento vascular. Uma tosse seca, de esgana, oomeçou a atacá-lo. A vista turbava-se-lhe, nublada de lágrimas; as palavras -- injúrias, pragas, rogos, obscenidades -- saíam entrecortadas em monossílabos incompreensíveis; uma baba espumosa escorria-lhe aos cantos da boca. A crise parecia aumentar sempre, crescer indefinidamente, atingir uma tensão, donde apenas se resolveria pela morte ou pela loucura. Mas num momento a sufocação tomou-o, paralisou-lhe todos os movimentos, e ele caiu de novo, como uma massa pesada e inerte, sobre o tapete do sobrado. -- Foi o que valeu! -- exclamou o médico. Desapertaram-no, abriram a janela, borrifaram-no com água. Mas não vinha a si, caído num prostração profunda. Entretanto as convulsões iam lentamente diminuindo, os olhos cerravam-se, a respiração, se bem que apressada e forte, restabeleceu-se por fim. Um suor frio cobria-o; um resto de tosse abalava-o, já brandamente, de momentos a momentos. Então arrastaram-no para o sofá, deitando-o. Começou a murmurar palavras vagas, sem contudo abrir os olhos; a respiração era cada vez mais regular, as faces empalideciam. O médico não lhe deixava o pulso. O abade atrás dele murmurou uma curta oração... -- Dorme -- disse Ricardo. -- Passou do desfalecimento ao sono. Se tem outra como esta -- vai-se... E cerrando as janelas, sentaram-se ambos a seu lado. Soares dormiu longamente, horas a seguir. O cansaço de tanto tempo de tortura cruciante, seguida de uma crise de tal forma violenta, e a falta de alimentação prostravam-no num entorpecimento profundo. Agora, pela face macerada, as olheiras roxas, os lábios descorados, a fisionomia abatida, media-se a intensidade do seu agudo sofrimento. E o seu aspecto tinha a desolação triste de um retalho de natureza depauperada, batida, destroçada pelas convulsões de um temporal. Era lusco-fusco quando acordou. Os irmãos temiam a repetição da crise, e o médico apenas contava com a sua fraqueza e o seu abatimento para ela ser passageira e fraca. Soares estava de facto debilitadíssimo. A voz mal se lhe percebia, os movimentos eram lentos e trémulos como os de um homem exausto de forças. Apenas repetia aos irmãos: -- Não me deixem... -- De resto não perguntava nada, não pedia nada, encolhido ao seu canto, trémulo e sem calor. O médico falou-lhe em comer; respondeu apenas um sim quase imperceptível. Veio luz; Trouxeram-lhe um caldo forte e vinho do Porto. Nos primeiros momentos comeu com um apetite devorador sem dar uma palavra; mas de repente parou, duas grossas lágrimas bailaram-lhe nos olhos, e erguendo-se do sofá exclamou: -- Não posso... não posso! Isto é um inferno! Voltava-lhe com as forças a energia para um novo acesso de cólera: e o seu pensamento fixo, achando os nervos retemperados pelo descanso, ia explodir outra vez na excitação daquela dor invencível. Foi a muito custo que os irmãos o contiveram, animando-o, consolando-o. Rasgou-se assim a longa incomunicação em que se achavam desde a chegada de Soares. O abade apelava para a sua fé de cristão, pregando-lhe a paciência, recordando-lhe os tormentos de Jesus, resignado e manso como o cordeiro simbólico. O médico começou então a historiar-lhe o caso vagamente, excitando-lhe perguntas que não tardaram, cheias de um desejo minucioso de detalhes, de uma necessidade absoluta de se certificar convictamente daquele sucesso. Ele ouvia, com uma aparência serena, a face laivada de rubores de vergonha, os olhos baixos, fitando a cadeia do relógio. De vez em quando soltava um suspiro, murmurando apenas: -- Que inferno!... Desalmada!... Fui bem pago!... -- e outras frases curtas e amargas. Parecia conformado, parecia caído num período de dor menos aguda, num abatimento desalentado de tranquila desesperança. Chorou de novo, mas sem exaltação: eram grossas lágrimas espaçadas, rolando-lhe às duas e duas pela face, que ele enxugava continuamente com o lenço, não cessando de suspirar. Ao fim de longa narrativa, disse simplesmente muito comovido:

-- Bem! acabou-se!... Já era sorte de mais: tardava-me o pontapé... Siga o seu destino, já que assim o quis... ou Deus lho impôs! No fim de contas ela é uma desgraçada... Eu é que devia ter juízo. Já tinha idade para isso! E ninguém mais lhe arrancou uma palavra. Às nove horas disse que queria dormir no escritório, pois o impressionava aquele quarto. Saiu apoiado aos irmãos, que ali mesmo sobre um divã lhe fizeram uma cama ligeira. Ele enterrado na sua poltrona, diante da banca de trabalho, conservava-se sombrio e calado. -- Bem... agora deito-me -- volveu daí a pouco. -- Tu, Ricardo, tens lá dentro o teu quarto... Inácio, até amanhã. -- Não queres que eu fique aqui contigo? -- perguntou-lhe o médico. -- Não é preciso -- respondeu. -- Estou já sossegado... E tenho tanto sono... -- Pois então dorme, descansa, que é o que é preciso -- volveu o outro. -- Em estando para isso sais daqui um tempo, vais espairecer... Goza o que tens e coração à larga! Acabou-se. A vida é assim... E despediram-se, o médico retirando-se ao quarto, o padre descendo a escadaria do jardim. Sozinho no escritório, Soares passeou longamente com as mãos atrás das costas. Voltavam-lhe a febre, a agitação, como pelo atrito contínuo da sua ideia fixa no cérebro. A visão de Ermelinda era o seu pesadelo, a sua tortura, o seu martírio. Já não lhe aparecia, porém, impoluta e santa, qual vulto celeste, como na alucinação quase doce da noite anterior... Agora era uma sombra danada e escura que diante dele se torcia, ébria de gozo, nos braços de um outro homem... Era uma evocação do inferno, uma deusa estranha de lascívia pecadora, acirrando-o pela carne, mostrando-lhe a sua nudez deslumbrante que rescendia um aroma de sensualidade diabólica! Via então todas as cenas ocultamente passadas a seu lado, ouvia o ruído daqueles beijos adúlteros, que lhe rasgavam a alma como punhaladas; distinguia os dois corpos num abraço contínuo, os troncos unido-s, os lábios na permutação longa do mesmo hálito. E procurava-os no espaço, seguia-os como sombras errantes de uma visão dantesca, querendo desligá-los, para os estrangular depois numa vingança de tigre ciumento. Mas, por momentos, sentia-se misericordioso -- invadia-o uma piedade imensa, uma bondade comovida e generosa!... Quem sabe o que ela sofreria do seu erro?... Quem sabe o que amargara na sua paixão?... Decerto amava o outro, seguia-o delicadamente, dando-lhe a vida, o futuro, sacrificando-lhe todo o seu destino, pondo-lhe aos pés a reputação, a dignidade, a riqueza e a fortuna. Era um amor invencível -- pecador mas generoso, culpado mas nobre, perdido mas sincero! E via nela então uma desgraçada, uma infeliz, uma vítima inocente da sorte! la a perdoar, magnânimo como um Cristo; mas sentia atrás de si as gargalhadas do mundo, as chufas do público; percebia de todos os lados a troça, o ridículo, a risada cínica dos incrédulos... Ele, porém, indignado e desdenhoso, acusava apenas o acaso; erguia uma voz de defesa a favor daquela mulher que o envergonhara; respondia ao insulto com a bênção! Contudo as gargalhadas do mundo cobriam a sua voz impotente, e de longe vultos sarcásticos apontavam-no com gestos afrontosos... Era um martírio, um grande inferno que se abria diante dele... A sua alma balouçava-se entre a vingança e o perdão, entre a cólera e o desprezo, entre a raiva e o abatimento... E no confuso revolver dessas vagas, no torvelinho dessas ventanias contrárias, ele sentia-se sem vontade, sem determinação, sem consciência, como um navio destroçado entregue aos caprichos do temporal. Mas na sua natureza bondosa e crédula a misericórdia vencia sempre. E Ermelinda aparecia-lhe agora de olhos baixos e lacrimosos, como uma ré, arrependida talvez do seu crime não premeditado... Essa visão enchia-o de piedade. Que fazer?... Recebê-la outra vez? Não: o seu contacto era agora uma impureza, a sua companhia apenas um pecado imundo... Não queria o seu corpo maculado para sempre, não queria o seu amor poluído no adultério! Para ele morrera, e tudo o que restava da sua pessoa era uma saudade íntima, orvalhada de santas lágrimas... Mas ao menos queria minorar-lhe com a caridade a sua tortura, entregar-lhe de moto próprio o que era dela, e que decerto agora não exigiria, envergonhada pela falta e pela consciência da sua ingratidão. Não se vingaria; ia arredá-la só, distanciá-la de si, matá-la no seu espírito, sem lhe fazer sentir nem o seu desprezo nem a sua cólera. Com a chave que o abade lhe entregara antes de se retirar foi abrir o cofre. Tudo o que lhe pertencia estava intacto; os papéis e os dinheiros de Ermelinda haviam porém desaparecido!... O quê?! Ainda outra desilusão?...Ela fugira sem um tremor de remorso, tendo premeditado friamente este seu passo na vida? Não era pelo amante que o deixara, não era por um amor louco mas desinteressado que se perdera?!... Soares não podia mais. Era um cruel despertar de toda uma existência de boa fé e sinceridade. As últimas ilusões do seu bondoso coração de optimista caíam-lhe desfeitas ao vento áspero do desolado outono da sua vida... Não, ele não fora para Ermelinda nada daquilo que imaginara ser!... Fora só durante algum tempo um grilhão dourado que ela acabara de partir... Fora a mina que explorara, o negócio que a enriquecera, o degrau que pisou desdenhosa e fria para subir ao ideal dos seus desejos!... Mentira-lhe sempre, enganara-o, enredara-o, tentara-o, conquistara-o traiçoeiramente. Entrara-lhe no coração, de manso, como uma víbora, para depois lhe cravar os dentes venenosos... Ele não passara de um amante rico mas ingénuo que se deixou explorar; não passara do primeiro amigo, que a lançou, dando-lhe com o dinheiro a liberdade do gozo, a independência do amor e do prazer!... Tudo fora uma comédia, tudo uma farsada, onde ele fizera um papel ridículo! Percebia agora um milhão de coisas que havia explicado com a inocência caprichosa da mulher; percebia as suas preferências hipocritamente ingénuas, as suas criancices fingidas, a sua seriedade postiça! Recordava-se de certas resistências passivas aos seus carinhos, depois da intimidade com Alfredo, umas pequenas mudanças súbitas no trato conjugal, que ele havia tomado por leves indisposições de humor. Percebia o seu interesse pelos negócios, mascarando um artifício para o afastar de si; percebia finalmente todos os segredos, todos os estratagemas, todos os mil invisíveis detalhes lessa longa conspiração tramada contra a sua fortuna e contra a sua honra!... Ah!, a vida era aquilo?! O mundo era aquela comédia de hipocrisia e mentira?! Em tudo o egoísmo, em tudo o interesse, em tudo a cegueira do capricho campeando como lei?... Mas como o percebia ele só agora ao fim de meio século de existência -- ele um homem de trabalho, um soldado na luta da riqueza, um conquistador arrojado e feliz do ouro e da fortuna?... Por que nunca traficara ele, por que nunca roubara, por que nunca mentira, por que nunca procurara como os outros os prazeres, os ruídos da vaidade, os gozos egoístas da vida?... Tinha sido um obscuro, um medíocre, um desconhecido, um pobre diabo honrado e traído, honesto e coberto de afrontas!... Ah! não se conhecia?! Pensava que ao menos podia ter o consolo de uma intimidade casta, de uma estima sincera, de uns beijos dados sem preço e sem condições?... Nada! Visse-se a um espelho... Esses beijos eram para os tipos finos, para as bocas novas cheias de apetites e voluptuosidades... Para ele o prazer de aluguer, o gozo ajustado -- no catre da prostituta, como no leito da esposa!... Um riso de desdém assomou-lhe aos lábios. Em frente estava uma console com um espelho. Alumiou-se com um castiçal e olhou. Achou-se hediondo e teve para a sua fealdade uma gargalhada de desprezo, digna de Diógenes. Que mostrengo! A pele dura e negra; o cabelo basto e curto, já grisalho, fazendo-lhe como um capacete ajustado no crânio; a suíça áspera, o olhar idiota, as narinas grossas e chatas de bull-dog, a boca larga, de beiços brutais, arqueando-se num sorriso alvar de patego!... E queria amor -- aquilo?! Mas para ele bastava a sensação, o erotismo anima! das sadias naturezas campónias, o corpo musculoso e grosso de uma Vénus de freguesia!... -- Ah! Ah! Ah! -- ria como desvairado... -- E fui casar-me com uma mulher que parecia um anjo!... Forte besta. Foi bem feito... Então olhou-se no meio daquele mundo que se lhe revelava agora, aquele mundo negro e torpe, que lhe sucedia no espírito à visão luminosa do seu optimismo. Que vezes lhe haviam dito já os seus amigos no Brasil: -- Soares, a sua boa fé há-de perdê-lo! -- Sim: tinha-o perdido! Vira sempre os homens através da limpidez da sua alma: vira o coração humano pelo prisma da sua misericórdia benevolente de cristão sincero! O mundo era o egoísmo, era o interesse, era a luta, era a guerra, era o parasitismo, a mentira, a fraude, a vingança. Ele era o amor, o desprendimento, a verdade, o perdão... Era-lhes impossível entenderem-se: viver tornava-se-lhe um martírio, o mundo transformara-se para ele num inferno! E a ideia da morte, do repouso eterno, da quietação final no aniquilamento, apareceu-lhe luminosa e apetecível como uma esperança... A morte seria a noiva que o não enganaria, a amante fiel de todas as horas, perdendo-se na eternidade abraçada ao seu cadáver... Confusamente murmurou: -- Morrer é melhor! Eu já me não conformo com a vida... E, como sonâmbulo, abriu uma gaveta da sua banca. Tirou de lá uma velha pistola, a pistola que o acompanhara no Brasil nas suas viagens de caixeiro ambulante. A sorrir, carregou-a. Era terrível o seu sorriso. Iluminava-lhe o rosto grosseiro e vulgar de uma maneira estranha. Os olhos tinham uma serenidade de altivez heroica, os lábios contraídos uma expressão dura de resolução suprema: toda a face um ar de melancolia doce, um clarão indescritível de bondade, que lhe transformava -- espiritualizando-as -- as feições irregulares e boçais. Lentamente apertou a bucha, deixou escorregar a bala no cano escuro... Depois ergueu o cão e acertou a espoleta sobre o ouvido... -- Pronto... pronto... -- balbuciou. Ergueu-se e lançou o olhar pelo quarto: viu o cofre aberto. -- Cá fica... eles o dividirão como quiserem... -- disse sorrindo-se. E o seu rosto transformava-se cada vez mais. Aquele sorriso descrente e superiormente irónico acentuava-se na prega desdenhosa dos cantos da boca... Havia um não sei quê de firmeza estoica, de grandeza de alma, de superioridade moral na sua fisionomia decidida, enérgica, e ao mesmo tempo altivamente sarcástica. Maquinalmente dirigiu-se ao meio do quarto. Desabotoou lentamente o colete e a camisa, suja da viagem e engelhada pelos movimentos da sua grande excitação da manhã. O peito cabeludo e arqueado mostrou-se através da abertura do peitilho, deixando ver também o pescoço atlético, grosso e curto como o de um touro. Afastou o casaco: apontou com serenidade ao coração, olhando a boca da pistola -- e disparou. A sala estremeceu com o tiro: o corpo cambaleou dois segundos -- e ele tombou de costas no sobrado, a mão esquerda sobre o peito vermelho de sangue, a direita segurando a pistola fumegante... Mas no seu rosto pairava aquela expressão estranha dos derradeiros instantes. Os olhos abertos tinham na sua fixidez terrível como que um clarão profundo de inteligência: dir-se-ia o desabrochar de um pensamento elevado e belo no terreno de uma fisionomia vulgar... O nariz, um pouco afilado, perdera o seu aspecto grosseiro e duro; a testa contraída franzia as rugas numa expressão de energia orgulhosa e calma. A boca sorria com um riso indizível, misto de desprezo, ironia e piedade, fixado na rigidez da máscara como a cristalização fisionómica dos seus últimos sentimentos -- de cepticismo, de desengano e de perdão!...

Julho a Outubro de 1883


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TextGrid Repository (2022). Portuguese Novel Corpus (ELTeC-por). O Brasileiro Soares: Edição para o ELTeC. O Brasileiro Soares: Edição para o ELTeC. European Literary Text Collection (ELTeC). ELTeC conversion. https://hdl.handle.net/21.T11991/0000-001B-D986-7