INFAUSTAS AVENTURAS DE MESTRE MARÇAL ESTOURO

VICTIMA D'UMA PAIXÃO

Segunda edição

LISBOA

VENDE-SE NA LIVRARIA DE A. M. PEREIRA

50 -- Rua Augusta -- 52

CHRONICAS DO SÉCULO XVII

BREVE PREFACIO Á NOVA EDICÇÃO

Accolheu o favor publico as Aventuras de Mestre Marçal Estouro, n'isto menos infaustas do que o indicava o titulo, e eil-as ahi vam outra vez correr mundo em nova edicção.

Era intenção do author subjeitar ainda a obra a mais apertado estudo. Mas, pois que tal como sahiu logrou ventura, seria já intempestivo escrúpulo, e quasi desprimor para com tamanha e tam experimentada benevolência, o fazer-lhe profundas alteraçoens.

Limitou-se pois agora o seu cuidado a corrigir uma ou outra imperfeição e obscuridade, de forma ou de idéa, que podesse destoar sensivelmente da intenção exposta no prologo da edicção de 1863, ou por qualquer outro modo prejudicar o esmero indispensável na execução de um livro, que faz o possivel por ser consciencioso.

Fevereiro 20 -- 1871.

J. DA S. Mendes Leal.

PROLOGO DA EDICÇÃO DE 1863

Os pequenos trabalhos, que fazem parte da collecção agora encetada sob o titulo de chronicas do século XVII, viram originariamente a luz em diversos jornaes. Viram-n'a, mas pouco e mal a podiam supportar. Uma publicação entrecortada nem consente ao escriptor a meditação intensa, necessária para corrigir, nem ao leitor a aturada attenção, indispensável para julgar.

Colligiu aqui o auctor algumas obrinhas, acaso para o diante seguidas de outras análogas, no intuito de manifestar que, sob feições diversas, ha n'ellas a unidade de um pensamento.

Todas com effeito são, a bem dizer, membros até hoje dispersos de uma só familia. Tem todas o fito visível de descrever, com o sincero culto da pátria e da historia, uns tantos períodos da vida portugueza no século XVII, ainda mal conhecido e avaliado entre nós -- n'aquelle século de grandes agitações e prodigiosa actividade, já na politica já na sciencia, que viu a invenção dos logarithmos por I. Neper e do barómetro por Torricelli ; o descobrimento da circulação do sangue por Marvey ; a publicação do calculo differencial por Leibniz ; a construcção da primeira machina de vapor por Papin e a descripçâo do primeiro telescópio de reflexão por Marsenne ; a fundação da Academia franceza e a creação do Banco de Inglaterra, como se n'estas instituições se achara retratada a indole, e se estiverajá fadando o futuro influxo dos dois povos ; a expulsão dos mouros de Hespanha e a revogação do édito de Nantes ; Richelieu e Mazarin, o protectorado de Cromwell e a omnipotência de Luiz XIV ; Locke e Descartes, Bossuet e Pascal, Moliere e Corneille, isto é, a philosophia, a eloquência, a poesia exalçando o facho á humanidade ; o supplicio de Cinq-Mars e a condemnação de Galileo, isto é, as trevas disputando a luz ; finalmente as revoluções de Inglaterra, de Hungria, de Nápoles, da Catalunha, de Portugal, isto é, as commoções da independência das nações presagiando a lucta da emancipação dos povos !

A feição especial da sociedade portugueza n'este século fecundo, os seus infortúnios illustrados de gloria, são, crê o auctor, muito para enlevar, attrair, estremecer, exaltar, e acaso advertir ! Pareceu-lhe pois que um modesto conjuncto de estudos, esboços sequer, do crer, viver e sentir nacional em tal época -- de que não estamos ainda tão distantes como pensam, ou dizem alguns -- se elle conseguisse, á falta de outro mérito, dar-lhe seu tal ou qual geito e sabor caseiro, não seria absolutamente inútil, ao menos pelo que da terra natal tentou colher, e procura transmitlir. Isto só quer, e a isto só aspira, a collecção das CHRONICAS DO SÉCULO XVII.

Bem suspirara o auctor limal-a e polil-a com mais remanso e esmero do que lhe é actualmente permittido. Nâo podendo porém escolher a occasiâo, subjeita-se-lhe.

Sirva esta circumstancia de desculpa.

Dezembro 25 -- 1862.

J. da S. Mendes Leal.

I

De como Mestre Marrai tomou estado

Mestre Marçal, que, mal apparecia, dava alegrão ao rapasío e vadiagem, desde as portas da Alfôfa até ao arco dos Escudeiros, era, em 1622, um individuo esguio, sinuoso, engoiado, alluido e desengonçado, cujo esqueleto, mal cosido n'uma rede de músculos por uns restos de membrana fibrosa, dançava desregrado e perpeluo bolero no amplo interior do corpete e calções de estamenha, que íluctuavam ironicamente pelos contornos angulosos d'aquella múmia ambulante. O arcabouço, equilibrado nos fusos a que elle por basofia chamava as suas pernas, linha por bases dois pés que davam quatro, todos recortados de promontórios, e por cúpula uma cara empastada em pergaminho, que poderá servir ás descripções analylicas do próprio Flourens e ás mais minuciosas observações de osteologia comparada.

Por que successivas degradações chegara mestre Marçal a este extremo de tenuidade, de esvasiamento, de exhaustação, de quasi transparência? Ensaiarei descrevel-o n'este breve epitome das suas desgraças. Aprenderá o mundo o que faz uma sina fatal, o que pode um affeclo obstinado, e em que abysmos precipitam as cegueiras da paixão violenta e contrariada.

Começarei por assentar um facto que atlesta (sinto declaral-o, mas força-me o dever de verídico historiador; que attesta, dizia, a pouca sensibilidade do século em que se passa esta instructiva historia, e a indifferença profunda com que o vulgo profano tractava as intimas dores e o coração inapreciado do meu heroe.

Os gaiatos do sitio, afferrados à onomatopeia como todos os gaiatos de todas as épocas, tinham-lhe posto por alcunha: « mestre Estouro.»

Não podia o mestre sair á rua que o não seguisse um coro turbulento, grunhindo, guinchando, latindo, chiando e ganindo-lhe uma acclamação burlesca e estrepitosa, com taes variedades imitativas, que abrangiam o diapasão completo do reino animal.

-- « Lá vae mestre Estouro, lá vae mestre Estouro !» -- vozeava a turba maltrapilha apenas o avistava. E logo de investida atraz d'elle, engrossando-lhe a cauda á popularidade alfamisla.

Mestre Marçal porém ia seu caminho com a mageslade dos graves infortúnios, e só respondia com a silenciosa e magnânima superioridade, que dá o costume das calastrophes, deixando berrar a mó dos garotos, como hoje em dia um estadista impávido, que leu Horácio em pequeno, deixa trovejar as tempestades parlamentares.

-- Mas por que motivo chamam os gaiatos a mestre Marçal «mestre Estouro?» perguntará o leitor admirado.

É justa a curiosidade, e para satisfazel-a principio a interessantissima narrativa, que é como se relata.

Era mestre Marçal natural de Lisboa, onde exercera em tempos felizes a profissão de fogueteiro, com tamanho applauso, que não havia festa ou romaria, um par de léguas em redondo, na qual se não invocasse o seu valioso auxilio, como se diz na actualidade.

Presumo que o leitor intelligente percebeu já a razão por que o fogueteiro entrara involuntariamente na posse do significativo cognome de «mestre Estouro.»

Feita esta observação indispensável, prosigo e apuro os factos de que resa a chronica.

Desgraçadamente para o mestre, o governo de Philippe III, na sua paternal solicitude, não gostára de ver os porluguezes brincando com pólvora, cerlamente por temer que se queimassem. A lei de 9 de janeiro de 1610 deitára a perder o officio, a que o mestre, duzentos annos adiantado ao século em que vivia, chamava já modestamente «a sua arte.»

Como estivesse a corte de Caslella continuamente sonhando revoltas, e receiasse ver sair de cada província um novo prior do Crato, ordenava a ditta lei que se não uzasse de nenhuns fogos ou arteficios nas «festas de Santos, nem por outras-occasiões, e que «nenhuma pessoa, de qualquer qualidade, (calidade «refere o texto) que fosse, os podesse fazer, ou man«dar fazer, ou lançar, sob pena de tres annos de «degredo para Angola, com baraço e pregão, e vinte «cruzados em dinheiro, etc. etc.»

N'estas lastimosas circumstancias, já se vê, a sciencia pyrotechnica de mestre Marçal, longe de lhe ser proveitosa, dava-lhe causa a trances continuos.

Para maior desventura, mestre Marçal não era só fogueteiro por necessidade de ganhar a vida ; era fogueteiro por índole, por gosto, por vocação, por espirito de artista. Nascera com aquelle feitio. A manipulação da pólvora, do carvão, do salitre, do enxofre e da limalha ; o fabrico das rodas e estopins ; o preparo de todas aquellas industrias era-lhe uma necessidade de organisação. Tinha a bossa ou protuberância da foguetividade, característico este que tinha de escapar ao mesmo Gall.

Havia-o a natureza nos seus annos florescentes dotado de rotundidade satisfacloria. Os desgostos produzidos por aquella maldicta lei tinham-lhe porém mirrado e dessecado as carnes, exercendo de dia para dia uma depressão sensivel na sua espessura.

Em compensação, parecia ir ganhando proporcionalmente em comprimento.

Ao cabo de seis annos, não podia já mestre Marçal tolerar a privação imposta por Sua Magestade Catholica, e exordiava o descobrimento do spleen. Esticava a olhos visto, e alongava do mesmo modo.

Os seus amigos, notando que passava da atrophia ao marasmo, aconselharam-lhe distracções.

A Providencia, que vigia os Marçaes como qualquer outro mortal, proporcionou-lhe uma distracção.

Para ultimar o litigio, que havia oito annos trazia sobre umas geiras de terra no Alemtejo e una alfarrobal no Algarve, de Olhão sua pátria viera a Lisboa a senhora Medéa Brandoa, viuva de um mercieiro e honrado commerciante de figos seccos. Tendo rematado com bom êxito a demanda, quiz a sua boa ou má estrella que um dia encontrasse em Chellas o nosso ex-fogueteiro, que andava então pelos seus vinte e cinco, e ainda não havia attingido a perfeição de diaphaneidade e longura a que estava predestinado.

A viuva, conservando saudosas reminiscências do primeiro matrimonio; pensava em deixar de o ser, e mestre Marçal, como dissemos, procurava distrahir-se.

Para encurtar preâmbulos, a senhora Medéa entrou em combustão. Fora o misero, depois da sua viuvez, o primeiro e único homem que se lembrara de lhe pôr os olhos. Quanto ao mestre, no estado de resequimento progressivo em que ia, uma scentelha bastava para o atear.

Ao contacto desta chamma, desatou em labaredas o incêndio latente da tia Brandoa.

Ficou logo evidente aos olhos menos perspicazes que o fogueteiro, aposentado por ordem superior, conquistara de um rasgo o coração, as geiras e o alfarrobal da senhora Medéa. O mestre podia dizer como César: veni, vídi, vici.

Não era a viuva affeiçoada ás moratórias e dilações : tinha-lhes tomado aversão declarada nos oito annos da demanda.

Ao cabo de um mez offerecia a sua mão ao futuro martyr. Ao cabo de três semanas estavam cazados. Ao cabo de oito dias achava mestre Marçal que a lei dos Philippes era uma amostra do paraiso em comparação do seu novo estado !

A senhora Medéa, que jurava frequentemente pela santa do seu nome com grave escândalo do Agiologio Romano, resumia e verificava todas as fúrias do mythologico homonymo com que a haviam prendado na pia baptismal.

Aquelle nome, extravagante bem que prophetico, constituia uma singularidade, de que não pude achar explicação nas porfiosas investigações e numerosos códices d'onde extrahi e colligi esta mui veridica hisloria.

Peço indulgência para o enxerto d'esla breve annotação, e ato o fio ao discurso.

As mais sanhudas imprecações da Medéa grega de Euripides, da Medéa latina de Séneca, e das trez Medéas francezas de Corneille, de Legouvé e de Longepierre, eram amenidades bucólicas ao pé da phraseologia hirsuta e praguenta d'esta Medéa algarvia, que desbancava as suas predecessoras.

Amestrada pela experiência do primeiro marido, colheu o infeliz Marçal por uma docilidade e submissão affectada, de que se indemnisou amplamente aos primeiros tres dias de consorcio.

Mestre Marçal esteve a ponto de estalar como a sua mais atochada bomba. Não podendo estalar. continuou a emagrecer, coisa que assombrou toda a gente.

II

Do como mestre Marçal buscou espairecer-se de seus pezares

O desditoso fogueteiro, minado por novos dissabores, como vimos, fora apoucando, diminuindo e adelgaçando até chegar á perfeição, ao ideal, á esthetica do género.

Não tendo achado no casamento o recreio e diversão de que tanto carecia, entrara de novo a scismar lembranças do passado. Mestre Marçal não comia, mestre Marçal não dormia, mestre Marçal esquivava-se á companhia de seus amigos, mestre Marçal finalmente ia-se tornando o spectro de si mesmo.

Diziam a principio os não iniciados -- que haviam de ser os enlevos em segunda mão do que a civilisação gallicista chama hoje «lua de mel», lua que para o triste era de fel. Mas o tempo decorria, e mestre Marçal a diluir-se, a rarefazer-se cada vez mais, prodígio que o fazia rivalisar com as sombras de Virgílio.

Mestre Marçal, infeliz no consorcio, acoutava-se mentalmente, com desesperada saudade, ao sanctuario das suas recordações artisticas, aggravando magoas incuráveis.

Pelas festas do anno, correndo todos os riscos (e não eram poucos!) da objurgatoria conjugal, outhorgava-se o misero e innocente desafogo de fabricar o seu valverde, ou bicha de rabiar, symbolo dos attractivos da sua cara e bem cara metade. Quando todos no bairro dormiam o somno do justo, calafetadas hermeticamente portas e janellas, saboreava o vedado regalo de escorvar e accender estas puerilidades pyrotechnicas, no pavimento térreo da sua morada, que estava muito longe de ser um palácio.

Mestre Marçal, ou antes a senhora Medéa, porque era ella quem figurava em casa, morava no becco da Amargura , sitio que perfeitamente dizia com o seu estado, ao pé da rua de Jerusalém, como quem ia das portas da Alfôfa para a antiga freguezia de S. Bartholomeu intra-muros, ou Bertholameu, como pronunciavam os contemporâneos do mestre.

Os habitantes d'aquella parte da cidade, que aproximadamente occupava a área agora comprehendida entre a Costa do Castello e a rua de santa Luzia, em geral homens de trabalho, recolhiam cedo e tinham o somno pesado. Por consequência pouco risco havia nesta infracção das ordenanças, que para o artista desherdado tinha a irritante e acre volupluosidade das fruicções defezas.

Deus sabe todavia quantas exhortações, acompanhadas de gestos um tanto exaggerados, este momentâneo passatempo valia ao pobre do mestre.

Que era porém um valverde e uma bicha de rabiar para o artista cubiçoso de gloria, que tão alto alçava as suas aspirações como ao diante veremos? Os rudimentos e ingenuidades da arte na infância mal podiam contentar um homem da tempera e da estiva de mestre Marçal.

Na occasião em que a desastrosa lei o colhera no melhor das suas manipulações e das suas esperanças, estava mestre Marçal em vésperas de fazer uma revolução completa no systema dos foguetes.

Imagine-se o effeito d'aquelle embargo legal posto ás concepções de um grande ingenho em vésperas de parto.

Quantos Marçaes, ainda hoje, não precipitam assim das alturas do poder as inconstancias politicas, justamente no instante em que iam salvar a pátria, depois de alguns annos de baldada incubação !

O tempo, em vez de mitigar a paixão do mestre, cada vez a exacerbava mais, exactamente como o génio da senhora Medéa. O illustre pyrotechnico perdeu por fim de todo a paciência.

A famosa lei, como todas as leis, tinha pouco a pouco degenerado dos seus rigores primitivos. Eram já conhecidos vários exemplos de pequenas transgressões, que haviam ficado impunes. Para dizer a verdade, motivara a desusada indulgência a falta de conhecimento cabal das clausulas prohibitivas, allegada e provada pelos involuntários transgressores. Indicava porém este accidente, que se não devia considerar absolutamente impossível esquivar-se o culpado á implacabilidade das justiças de Sua Magestade Catholica.

Mestre Marçal deliberou insurrecionar-se também, sem pedir o beneplácito da consorte, já se sabe.

No dia em que tomou esta resolução, mestre Marçal pensou que envergonhara em heroicidade os Doze de Inglaterra, como na pessoa envergonhava o nome do seu Magriço.

Foi o primeiro cuidado do mestre comprar clandestinamente uma porção rasoavel de pólvora bombardeira, astutamente fraudada, que tratou de subtrahir á perspicaz vigilância da senhora Medéa, muito mais maliciosa que a dos corregedores do crime.

Vencida esta difficuldade, que não era das somenos, começou com delicias a cogitar no que faria da sua pólvora.

Mestre Marçal, como dissemos, presava sobretudo a especialidade do foguete, e esperava n'ella alcançar uma reputação verdadeiramente estrondosa.

Desde 1610 fora este o único período em que, na phrase do philosopho, «se sentira viver.»

Notavam-lhe os visinhos um ar lépido e prasenteiro, que fez por momentos acreditar na sua viuvez. Até se lhe podiam descobrir tendências nascentes para arredondar de novo.

A senhora Medéa scismava com esta súbita innovação ; mas como elle cumpria os seus deveres conjugaes com irreprehensivel orthodoxia, e até com certo addicionamento de boa vontade devido certamente á melhoria do estado moral, como não alludia sequer ao mais insignificante valverde, não se lhe podia pôr pecha.

A digna esposa do fogueteiro, que nem por isso andava menos desconfiada, pela primeira vez na sua vida tragava em segredo as conjecturas suspeitosas, esperando colher assim o deliquente em flagrante, e desforrar-se por atacado.

Entretanto ia mestre Marçal amadurecendo o seu plano, e preparando disfarçadamente os modos de executal-o, com astúcia digna das chancellarias em que se trata do equilibrio europeu.

Depois de luminosas meditações, concluirá o mestre que os simples foguetes de respostas, e ainda os de lagrimas, eram a deshonra da arte, e que por tanto cumpria urgentemente dar impulso decisivo a este importante ramo dos conhecimentos humanos.

Como todos os espiritos superiores, adivinhava elle outro século. Vivendo hoje, mestre Marçal seria uma victima da ingratidão publica, se não estivesse ao menos director de um instituto, ou presidente de um centro.

Feitas cuidadosamente as suas ponderações, cálculos e combinações, mestre Marçal suppoz ter achado a pedra philosophal, o bezoar, a ultima ratio com tanta ancia procurada.

A ambição do mestre fora sempre descobrir traças de fazer um foguete, que, não só estoirasse, mas se transformasse n'alguma coisa.

Ninguém pôde imaginar com que desvello e ardor se encerrava no seu sanctuario afumado, e, sacando de uma bolsa de coiro, que tinha escondida em sitio recatado, todos os ingredientes e petrechos necessários, se punha a trabalhar na complicada cabeça do seu foguete modelo. É a cabeça, como todos sabem, a parte essencial de um foguete. As horas de trabalho de mestre Marçal eram quando a senhora Medéa se ia a tractar de suas compras, horas rendosas em que a afiada lingua da matrona se exercia á custa do próximo desde a visinhança até ao mercado.

Preparado tudo, e chegada a occasião propicia, um dia de hynverno, pelos fins da tarde, pouco antes de Trindades, mestre Marçal levantou-se do canto do lume, deu umas voltas pela casa em ar de quem nâo sabia como havia de matar o tempo, poz-se em bicos de pés para examinar assim por de mais uma gaiola appensa á parede, pegou na sua coróça para encobrir a exuberância das algibeiras em que dissimulara o machinismo, e deu indícios de querer sair.

-- «Aonde vaes?» -- inquiriu a voz agra e strídula da senhora Medéa, que o seguira com os olhos, e observara com assombro aquelles desusados preparativos.

Havia muito que estas objecções estavam previstas.

Mestre Marçal respondeu com o ar mais cândido d'cste mundo :

-- «Vou ao celleiro do tio Cosme buscar meio selamira de alpista para o pintarroxo. Coitado do animalinho» -- acrescentou para servir de peroração sentimental e reforço suasório.

Tinha a senhora Mcdéa a mania das aves, talvez por gritarem tanto como ella ; e o honrado fogueteiro, que dispozera tudo com sagacidade satânica, atacava-a pelo fraco.

Foi a carinhosa esposa do artista verificar immediatamente o fado; e, não achando um bago no comedouro, porque o precatado consorte havia previamente despejado tudo na gamella do bácoro, respondeu em tom mais benigno e concessivo :

-- «Nâo te demores.»

Com a simpleza e boa fé de uma pastorinha de egloga caíra a prevista senhora Medéa na armadilha. Aproveitou sem embargo a opportunidade para desafogar a atrabilis inextinguível, soltando, na solicitude da sua gerência domestica, uma serie de exclamações admirativas e irritadas sobre a voracidade das aves caseiras.

Mestre Marçal, que tinha prolixamente meditado a índole da esposa e as artes de logral-a, com invejável naturalidade retorquiu dando geitos de largar a coroca, como se não tivera o mínimo empenho de sair.

-- «Nâo, se não queres....»

Tanto bastava para que a senhora Medéa insistisse.

-- «Pois não vês que o pobre do animal não tem nem um grão para a noite!»

-- «Também de noite para que?»

-- «Para que? Não verão os fígados que tem este bruto ! Queres que morra á fome, desalmado?» -- terminou a agastada matrona subindo uma oitava á ira.

Mestre Marçal curvou a cabeça com a resignação do costume, conchegou a coroca como victima da obediência, levantou a aldrava, o saiu abafando nas abas do sombreiro um sorriso de Talleyrand !

Vencido este passo, que por boas razões reputara o mais árduo, parecia tudo o mais ao meu heroe empreza comparativamente fácil.

Bem certo é o dictado : «o homem põe e Deus dispõe !»

Saindo de casa com a feição mortificada e submissa de quem vae fazer um recado por condescendência, mestre Marçal teve animo de seguir pelo becco sem appressar o passo, na altitude morosa que linha adoptado na ultima parte do seu papel : receiava ainda, e não sem motivo, que a espia conjugal o estivesse atalayando.

Tanto que dobrou a esquina foi uma verdadeira transfiguração. Caminhava expedito e ágil como se a lei dos Philippes se tivera abrogado na véspera, ou o seu casamento houvera sido annullado com todas as solemnidades.

III

De como mestre Marçal Estouro subiu ao calvário, julgando trepar ao capitólio

O honrado mestre, livre de olheiros, e seguro de que por este lado o não estorvariam, tomou ás portas da Alfôfa, e não esqueceu ahi o religioso dever de se encommendar á devota imagem do senhor Santo António, que ficava por cima das ditas portas, e representava o Santo no acto de livrar o pae da forca, pintura em azulejo de muito respeito e veneração, onde, por devoção particular do artista, se figurava o padroeiro de Lisboa rodeado de frades da Companhia, antecipando a bagatella de duzentos e oitenta annos a introducção dos jesuítas.

O mestre, pouco versado em archeologias, não reparou no anachronismo, e desceu pela íngreme ladeira de S. Chrispim, que ficava quasi fronteira ás portas.

Como chegasse abaixo, embrenhou-se n'um verdadeiro labyrintho ou meada de viellas encruzilhadas, de alfurjas,e beccos immundos, e desfechou no Rocio pela rua da Bitesga, que era n'aquelle tempo uma travessa enviusada toda em cotovellos e recantos.

Tomou então pela rua á esquerda do hospital de Todos-os-Santos, edificio grandioso, assente em grande parte do terreno que hoje oceupa o mercado da Praça da Figueira, e dirigiu-se ao convento de S. Domingos, contíguo ao dito hospital, a fazer sua vénia e oração ao sancto do seu nome, que é, como todos sabem, especial advogado e protector dos que professam aquella arte peregrina, por cuja maior honra e explendor ia elle affrontar as penas dos contraventores, e a colera da senhora Medéa que lhes não ficava a dever nada.

Pelo caminho escurecera de todo, como era indispensável ás experiências do mestre. Os frades estavam a Vésperas. Só se tivera ensurdecido no paraiso, deixaria o sancto de ouvir a fervorosa oração do seu inspirado servo.

Ao sahir de S. Domingos, ladeou mestre Marçal o palácio da Inquisição, que tantas vicissitudes passara, onde hoje se levanta o theatro de D. Maria II, e entrou na rua de Valverde, titulo que o bom do fogueteiro, por uma interpretação que sabia aos trocadilhos do seu tempo hoje chrismados em calamburgos, julgou do melhor agouro em tal empreza.

Caminhando e fazendo eslas observações horoscopicas, enfiou o mestre pela rua, agora calçada, do Duque, e deu finalmente comsigo em S. Roque, sahindo da cidade pelo postigo do Condestavel, e encaminhando-se às terras da Cotovia e sitio da Valentona.

Tudo isto se passava á prima noite de um dia húmido de septembro do citado anno de 1622.

Muito erraria quem n'esta breve descripção procurasse a Lisboa moderna, tam mudada e tam diversa da Lisboa que ainda quasi se limitava à antiga cidade de D. Fernando.

Aquelle sitio da Valentona e Cotovia, cujos vestigios ha poucos annos sobreviviam, e cuja ultima designação se conserva, ficava então em descampado, e prolongava-se até ás immediações do ponto que actualmente se denomina Largo do Rato, onde, coisa de 80 annos depois, se fundou o convento de Nossa Senhora dos Remédios, da ordem trinitaria, theatro das proezas da celebre Madre Theresa de S. José.

Ainda em 1755, desde o alto da Cotovia até á travessa do Pombal, rua de S. Rento e Cardaes de Jesus, o terreno, por onde presentemente se inclina uma grande parte da cidade alta, era quasi um ermo, retalhado em terras de semeadura, e geralmente applicado á cultura dos cereaes, com poucas casas, posto que já entre ellas avultasse o edificio occupado agora pela Imprensa Nacional, as casas da Real Fabrica da seda concluídas em 1740, e emfim o convénio dos Jesuitas, não ha muitos annos devorado pelas chammas, onde successivamenle se estabeleceu o Collegio dos Nobres, a Academia de Marinha, e ultimamente a Escola Polytechnica.

Mestre Marçal, que se tinha previdentemente munido dos instrumentos necessários, absorto no seu projecto, internou-se pelas terras, alegrando-se d'aquella soledade que n'outra qualquer occasião o houvera arripiado de terror.

Para remate de precaução linha com antecedência visitado e examinado o sitio, e sabia com o que poderia contar.

Sou aqui forçado a descer uns furos á gravidade oratória, para não prejudicar a escrupulosa fidelidade da chronica. Bem conheço a enorme temeridade e marea-se-me de remorso a audácia. Já agora, porém, impossível é fugir ás instancias da minuciosidade descriptiva a que me obriguei, e ás necessidades didácticas do meu assumpto.

Apesar de todas estas precauções, não sei realmente como introduza na scena o termo, a idéa, o objecto por que me aperta a Clio investigadora. Indispensável ninguém dirá que não seja ; mas vai pôr n'uma braza a fidalguia da dicção, vai cobrir de lucto a austera dignidade e a engomada emphase da rhelorica escholar. Perdoae-me, offendidos manes de Empédocles, de Longino, de Hermogenes, de Dionysio, de Halicarnasso, de Phocio e Quintillianno. Valei-me, reformadores do século XVIII, que não temestes o ódio da periphrase nem as revindictas do circumloquio, e principiastes a chamar as coisas pelos seus nomes. Inspirae-me, doutrinas de Jaucourt, desculpae-me exemplos de Boileau :

Rien n'est beau que le vrai. .. J'apelle un chat un chat... Etc... etc... etc...

De tudo isto necessito para me escudar contra as maldições, que, d'além da Castallia improfanada, me vibram as coléricas sombras dos árcades magestosos, justamente irritadas d'este altentado, doesta trivialidade, d'este inaudito arrojo, d'esta plebeidade sem antecedentes, com que ouso apresentar aos olhos e ouvidos do leitor delicado... um... um caniço !

Quia se sub silentio ahscondit.

Um caniço era com effeito o accessorio absolutamente preciso para completar o maravilhoso foguete, escrupulosamente acommodado, com todas as suas pertenças, no vasto bolço dos largos calções de rico, já calvo em partes.

Se Marçal ousasse sahir de casa e atravessar a cidade com um caniço na mão, não só provocaria da parte da senhora Medéa uma serie de perguntas a que lhe não seria fácil responder, mas attrahiria duplicadas vaias dos gaiatos do bairro, e seus consócios, já demasiadamente propensos, como vimos, a acclamar o mestre com um luxo de epithetos, que poderia admiravelmente enriquecer o vocabulário nacional.

Tinha elle acautellado mais esta diíficuidade, e por aqui se verá como a sua previsão e prudência abrangia as intimas particularidades.

A encosta, que leva á actual praça da Alegria, era quasi toda coberta de hortas. Aquella circumstancia, minima na apparencia, não escapara tambem á sagacidade do mestre, que os grandes ingenhos tudo aproveitam, e exercera influencia decisiva na sua escolha. Havendo hortas, necessariamente havia canaviaes. Tendo examinado minuciosamente aquelle apreciado individuo da illustre família das gramíneas, o qual (ainda me lembra a tempo este incidente nobiliário) teve já na antiguidade mais remota o singular privilegio de diffundir a orelhuda reputação do rei Mydas, o mestre cortou o que lhe pareceu mais acommodado ao seu intento : em poucos minutos, com perícia e destreza que attestavam a assiduidade e o costume, estava despojado das folhas, e perfeitamente adaptado ao uso a que era destinado.

Mestre Marçal possuía a cauda do seu foguete.

Voltando ás terras solitárias, terminou o apparelho, ajustando ao caniço já preparado o tubo conductor, e a cabeça do artificio onde se escondia ignorada a sua futura gloria. O barbante unctuoso e enresinado solidificou emi todas as suas partes o mechanismo externo.

Com palpitaçoens que senão exprimem, o alvoroçado Marçal feriu lume e accendeu o morrão. Interrogou depois longamente a densidade das trevas, para verificar se algum curioso assistia aos seus ensaios, não porque fosse inimigo da publicidade, mas porque a fatal ordenança acompanhava invisível os vários actos do infractor, e a circumspecção, como temos observado, era um dos seus mais eminentes dotes.

Foi satisfactorio o exame. Mestre Marçal podia julgar-se n'uma thebaida.

Disposto tudo, chegou ao tubo, cautelosamente escorvado, o lume do morrão com mão tremula de anciedade egual á do auctor, que vê aproximar-se o quinto acto do primeiro drama, com o quinto acto o desenlace tão esperado e tão temido, e com o desenlace uma paleada de metter os tampos dentro, ou uma roda de palmas que ás vezes não vale mais.

Subiu o foguete, descrevendo graciosa curva, como um cometa caudato, e estoirou com as suas onze respostas, conturbando os eccos da visinbança desavezados de tal estrondo. Mas -- oh ! desgraça ! -- o artificio interior, a nova transformação, o desíderatum, o X, a maravilha com tanto amor preparada, ou por precipitação no arranjo, ou por má disposição nos estopins, em vez de arder, foi ao longe sumir-se incógnita entre os cômoros de terra de um campo alqueivado para cevada.

A estrella de mestre Marçal apagara-se nos adubos de um vegetal destinado a alimentar quadrúpedes !

N'este ponto o estoiro das bombas no ar acordou todos os terrores que a paixão lhe adormecera na alma de artista. Mestre Marçal teve horror da sua audácia. O mallogro de tantas esperanças acabara o enleio e confusão do infeliz. Mestre Marçal infringira as leis para se certificar do seu descubrimento, para devassar novos mysterios, para glorificar a arte e o mundo, e nem sequer podia fixar o seu espirito sobre os effeitos e resultados de um invento que tanto lhe promettia. Que desfecho !

Tinha o honrado mestre perdido as azas de ícaro n'umas leiras humílimas. A realidade appareciaIhe túmida de belleguins e com um cardume de esbirros.

Immovel no logar em que havia commettido o crime, compromettido nos seus deveres de cidadão, e ferido nas suas aspirações artisticas, uma só coisa podia arrancar mestre Marçal ao turpor causado pelos pungentes remorsos da sua acção, e pelo desapontamento do seu fiasco : era a súbita lembrança das iras da senhora Medéa, accumuladas, só Deus sabia até onde, com tam prolongada demora.

Quando esta idéa terrível surgiu no cérebro abalado de mestre Marçal, a immobilidade do terror desatou n'uma fúria ambulatória, que lhe dava seus ares de família com a Atalanta de Scyros ou o Mazzepa de Byron.

O amotinado bestunto de mestre Marçal, desencalçado da sua natural prudência, não reflectia que, apesar da solidão do sitio, o seu foguete illegal havia, de ter-se ouvido, -- excepto se uma surdez contagiosa calafetasse todos os ouvidos por aquellas cercanias, -- e que, por consequência, a precipitação da sua carreira, muito similhante a uma fuga, excitando as suspeitas, o denunciaria aos menos perspicazes.

Mestre Marçal desorientado galgou ao acaso as terras de pão e as hortas que se encadeavam na direcção da cidade baixa. Não estava ainda bem em si do sobresalto, e do inesperado desenlace da sua obra. Com o dessocego e torvação que lhe infundia a perspectiva assustadora da senhora Medéa, endireitou pelas portas de santo Antão, scismando no modo mais fácil de conjurar a tempestade domestica.

Como -- pensava o pobre delinquente ralado de cuidados -- como justificar a dilatada auzencia no tribunal inexorável da assanhada esposa? Que pensaria ella ? Qual seria a ultima peripécia d'aquelle dia nefasto?

Nada d'isto lembrara a mestre Marçal em quanto o incitavam os alvoroços da esperança, e o enthusiasmo o inflammava. Com o desalento do frustrado tentame, na hora aziaga do crime, afluiamlhe em negro tropel ao cérebro escandecido todas as terrificas imagens, confirmando o bom senso do provérbio que diz : «um mal nunca vem só !»

A sagacidade e astúcia, de que dera tão exuberantes provas nos anteloquios e preâmbulos da melindrosa operação, haviam-lhe fugido com as suas illusões em debandada. Corria machinalmente, desamparado de força e de invenção. O grande homem infeliz vergava sob o pezo do infortúnio, e perdera até a consciência do próprio valor na derrota de tão altos sonhos.

Moderando pouco a pouco o passo, não por calculo, mas por cançasso, ia chegando defronte da egreja de S. Luiz dos Francezes, quando sentiu que um punho alentado lhe comprimia o hombro esquerdo com vigor mais que ordinário.

Mestre Marçal resfriou todo na sua consciência de criminoso, e deu um pulo desmesurado, procurando descortinar, por entre a cerração da noite, quem era o interruptor intempestivo do seu preoccupado regresso.

Só poude perceber, por cima de um vulto embuçado até á barba em ampla capa escura, um largo sombreiro carregado até aos olhos, e levemente inclinado diante d'elle em signal de cortesia.

O fogueteiro, mui urbano de seu natural, descarapuçou-se rasgadamente na presença d'esta afabilidade incógnita.

-- Boas noites, mestre Marçal ! -- disse uma voz aflautada e meliflua, d'estas que o vulgo designa com o epitheto caracterislico de «voz de sovelão.»

Mestre Marçal pasmou de encontrar conhecimentos em bairro tão distante do seu. Como porém nem a intonação nem a palavra inculcassem ameaça, correspondeu do melhor modo que poude, dizendo para o seu interlocutor :

-- Muito boas noites. A quem tenho eu a honra...?

No mesmo ponto uma palmada, não menos possante, no hombro direito fez dar a mestre Marçal segundo pulo, duas vezes maior que o primeiro, e coou-lhe um calafrio agudo pela espinha dorsal.

Outro vulto, perfeitamente egual ao antecedente, com a única differença de parecer um tanto mais refeito e varonil, cortejava do lado opposto o altonito mestre, que se abysmava de surpreza em surpreza.

Nova cortezia, ainda mais amável da parte do desconhecido, e ainda mais contricta da parte do mestre, foi permutada entre este e aquelle.

-- «Boas noites, mestre !» -- disse também segunda voz, como se fizesse ecco á primeira, salvo o ser o tom mais cheio, e a inflexão duplicamente benigna.

V

De como mestre Marçal reconheceu que era o mais popular homem do reino

Se já se tivesse inventado a Lâmpada maravilhosa e o seu auctor, cuidaria o mestre figurar nos contos phantasticos do bom mr. Galland.

-- «Muito boas noites» -- retorquiu elle repetindo-se involuntariamente -- «A quem tenho a honra de...?»

-- «Homem sois de préstimo e habilidade, mestre Marçal !» -- acudiu o interlocutor da esquerda, sem se dar ao trabalho de responder á interrogação inquieta do honrado fogueteiro.

-- «Mestre Marçal, sois um homem precioso» -- atalhou o da direita, encarecendo o elogio do seu companheiro.

-- «Favores, favores, senhores meus» -- tornou o mestre, estúpido de admiração -- «Mas a quem tenho eu.... como tenho eu a honra..,?»

Mestre Marçal balbuciava, tartamudeava, que nem saloyo vindo á cidade servir de testemunha em causa crime.

-- «Sois mais conhecido do que pensaes, mestre Marçal -- redarguiu o primeiro interlocutor.

-- «Quem é que não conhece mestre Marçal!» -- observou o segundo.

Esta popularidade inquietava cada vez mais o mestre.

-- «Não vos demoreis em razão do nosso encontro» -- continuou o primeiro. -- «Acompanhar-voshemos.»

-- «Como ?»

-- «Como se acompanha qualquer. Ao lado, atraz, adiante... como quizerdes.»

-- «É melhor ao lado» -- interrompeu o segundo.

-- «Conversaremos.»

Mestre Marçal não achou que responder.

-- «Com que então,» -- proseguiu, depois de breve espaço de silencio, o ultimo que fallára ; -- «com que então, mestre Marçal, tinheis tão boas prendas e estáveis calado !»

Mestre Marçal procurou ler no rosto do seu forçado companheiro o sentido d'estas palavras. Era impossível. Primeiro a noite; debaixo da noite o largo sombreiro ; debaixo do sombreiro a capa negra do embuçado.

-- «Ides açodado, mestre!» -- disse o vulto da voz aflautada.

-- «Confesso que estão á minha espera» -- respondeu mestre Marçal moderando o passo que machinalmenle apressara.

-- «Ai! temos tempo !» -- acudiu com ares de desfastio o mais encorpado.

-- «Temos tempo ! De que ?» -- ponderou timidamente o fogueteiro, sem poder atinar com a plausibilidade d'esta ingerência dos dois desconhecidos na sua companhia, nem com os motivos d'aquella expressão de communidade, que os seus interlocutores insinuavam na conversação.

-- «De que!» -- retorquiu o da direita como admirado e quasi escandalisado.

-- «É uma pergunta» -- acrescentou o mestre em modos de desculpa.

-- «De que? De acharmos o que procuramos.»

-- «Mas que procuramos nós?» -- exclamou o fogueteiro, tão completamente desnorteado, que já sem saber acceitava a locução collectiva.

-- «Vindes de longe, e não nos heis dado pouco trabalho em seguir-vos, mestre» -- advertiu em forma de commentario o primeiro embuçado.

-- «Ih !» -- murmurou para si mestre Marçal com a voz estrangulada de funestos presentimentos.

-- «Ha muito que estudaes os artifícios de fogo ?» -- acudiu o segundo vulto.

Mestre Marçal nem se atreveu a negar. Evidente era que estava descoberto o seu segredo. Passado o lance, custou-lhe a perceber como escapara d'elle.

-- «Por quem sois, meus senhores» -- exclamou tranzido -- «por quem sois, nâo me deiteis a perder!»

-- «Perder-vos» -- respondeu jogueteando com as palavras o primeiro embuçado, que parecia extremamenle faceiro e propenso ao molejo. -- «Perdervos ! Pelo contrario : queremos... aproveitar-vos.»

O arrevesado e cruel trocadilho, que desafiara uma gargalhada em duello, arripiou o mestre.

Depois de caminharem silenciosamente alguns passos, parou de repente o fogueteiro, e, dirigindo-se aos dois n'um tom plangente capaz de derreter penedos, disse-lhes juntando as mãos :

-- «Pelo amor de Deus, deixae-me ir para minha casa! Minha mulher espera-me, e. ..»

Não poude acabar. A imagem terrível da senhora Medéa, erguendo-se novamente do meio de tantas angustias, rematara ao infeliz a torvação com a lembrança do que seria a catastrophe caseira na presença d'esta ausência illimitada.

«Vossa mulher!» -- tornou o segundo embuçado. -- «Devíeis agradecer a Deus a demora que vos trouxesse distante de tal Eva...»

-- «Que pôde pedir meças á serpente» -- atalhou o outro viilio epigrammatico, versado como se ve nos estudos da historia sacra.

Mestre Marçal reflectiu que os dois incógnitos não só tinham seguido os seus passos, mas conheciam intimamente a sua vida.

-- «lsso nâo, mestre Marçal» -- continuou o que primeiro lhe retorquira. -- «Pedi o que quizerdes. Tudo vos faremos. Menos largar-vos.»

Como o honrado mestre em taes apuros lhes não podia sollicitar coisa que mais agradável lhe fosse, nâo teve remédio senão conformar-se.

-- «Muito de appetecer é a vossa companhia, mestre Marçal» -- proseguiu o outro embuçado, como para o consolar, não ficando atraz do companheiro em attenções. -- «Não vos deixaremos, não. Ninguém sabe para o que está guardado, e acertadamente se diz que é cega a fortuna. Hoje na fama, amanhã na lama. Vá lá um homem fugir á sua sina ! Assim, mestre, é vir comnosco, e o futuro a Deus pertence. Estaes com gente que sabe tractar, e fio-vos que ninguém vos molestará, nem vos heis de dar mal em nossa companhia. O vosso foguete via-se que era peça acabada. Pelo dedo se conhece o gigante. Jurara que se ouviu a meia légua, e bofe que me alegrei de ouvil-o ! Ha tanto que anda a gente desacostumada d'isto!»

Mestre Marçal não sabia o que pensasse. As ponderações philosophicas do seu ultimo interlocutor pareciam envolver um sentido duvidosamente significativo, que ora o ameaçava pavoroso como um auto do Santo Officio, ora lhe sorria aprasivel como esperança mysteriosa.

Conhecia que estava nas mãos d'aquelles homens. Estes modos lhanos e cortezes começavam porém a

dissipar-lhe as tremendas suspeitas do primeiro sobresalto. As observações finaes do embuçado que ultimamente fallára, lisongeando o seu amor próprio de artista, haviam-n'o singularmente impressionado. Dizia-lhe de um lado a consciência que o recente desbarato das suas ambições não merecia os mal empregados e inopportunos elogios. Segredava-lhe de outro lado a vaidade que os profanos, não podendo adivinhar os mysterios da sua ingenhosa concepção, e vendo n'aquella composição vulgar um foguete como todos os foguetes, podiam assim mesmo admirar a perfeição relativa do artefacto.

-- «Quem sabe» --dizia comsigo, -- «quem sabe se alguns fidalgos tiveram noticia do meu préstimo, e o desejam aproveitar para seus divertimentos e folgares?... Oh! lá isso não... a lei é... A lei !... EUes hão-de saber a lei, e se assim mesmo querem, é porque lá terão modos de compôr-se com as justiças de Sua Magestade... Com tanto que paguem bem, e me dêem um bom terreiro, mestre Marçal não seja eu se lhes não armo uns artifícios de fogo tam novos e vistosos, como nenhum castelhano era capaz de fazer, nem o melhor bombardeiro de Flandes idear.

Tanto que se arremeçava a taes alturas, a imaginação do mestre, principiando a tingir-se de côr de rosa, não punha freio às conjecturas.

-- «E como elles me conhecem ! -- continuou nas divagações do solilóquio mental -- «O que é um

homem ser nomeado nas artes do seu officio! Não ha ninguém que não saiba.»

Mestre Marçal lamentava seriamente os inconvenientes da celebridade, dando-se por victima da gloria.

-- «Pois não tenho a mais pequena idéa d'estas vozes» -- foi proseguindo como que a namorar-se mais e mais nas próprias cogitações. -- «

Não admira. Um homem não pôde conhecer toda a gente, que se praz em serpes volantes, e rodas floridas, e as mais fabricas admiráveis que se podem apurar n'esta arte peregrina.

N'este arrojo da complacente phantasia do mestre, iam chegando á testada do terreiro de S. Domingos.

Mestre Marçal quiz enfiar pela Bitesga que era o seu caminho.

-- «Por aqui» -- disse o vulto mais robusto, tomando-lhe o braço e guiando-o para o lado de Valverde.

-- «Mas para onde vamos nós, senhores meus ?» -- perguntou mestre Marçal, renascendo-lhe instinctivos os terrores ainda mal esquecidos.

-- « Vamos a casa de uma pessoa, que muito deseja travar conhecimento comvosco, mestre» -- respondeu em tom quasi confidencial o embuçado que primeiro o saudara.

Mestre Marçal tornou com isto ás anteriores conclusões, e deu promoção geral ás suas esperanças.

Corrigindo as supposições com uma observação mais altenta e plácida, assentou lá comsigo que os seus dois adjuntos eram escudeiros, e que os escudeiros o levavam a casa de um titular pelo menos.

Os receios da ordenança com todos os seus rigores, se não lhe despareciam de todo, iam progressivamente declinando.

Mais socegado e desopprimido depois d'esta decisão, mestre Marçal deu a andar com desembaraço e confiança. A poucos passos olhava já para os companheiros com certo ar de protecção.

O mestre era d'aquelles caracteres, muito frequentes e notavelmente afortunados, que transformam sem hesitação em absolutas certezas as suggestões do seu bestunto, e convertem n'outros tantos infalliveis dogmas todos os disparates, que tiveram o privilegio e a fortuna de lhes abrolhar no cérebro.

Atravessando o Rocio, subiram os três homens ao Bairro alto, e pararam á porta d'umas casas de boa apparencia, que faziam frente para a travessa da Cruz e esquina para a do Arcebispo, a qual corria parallela com a de Estevão Galhardo, ainda hoje existente, posto que mui diversa do que então era.

Não viu mestre Marçal apparato de serviçaes e pagens ; mas, como lhe custasse o demolir tanto do pé para a mão o phantasioso edifício architectado pelos seus incuráveis desvanecimentos, pensou que naturalmente o queriam receber com recato e se-

gredo, pois que, em todo o caso, o fim para que o buscavam sempre era melindroso.

O vulto mais baixo bateu, e uma velha escrava moura veiu abrir resmoneando.

Mestre Marçal e o outro embuçado ficaram fora.

Passados instantes de breve conferencia, saiu o embuçado que entrara e disse para o companheiro :

-- «Vamos ao Pateo das Comedias.»

Sem mais observações, este ultimo travou novamente do braço ao fogueteiro, que nem idéa fazia do que era o Pateo das Comedias, e todos juntos desandaram o que tinham andado.

De como mestre Marcai continuou a sua peregrinação nocturna

O honrado mestre, cujas faculdades se iam de mais em mais conturbando com estas complicações, fluctuava entre apprehensões nebulosas e risonhas esperanças.

O Pateo das Comedias, onde se achava estabelecido o theatro publico, ficava para a rua dos Arcos, que desembocava na da Bitesga. Pertencia este theatro ao hospital de Todos os Santos, que era o seu empresário, em virtude de privilegio especial, confirmado em 1595 por alvará de Philipe II.

Mal chegaram, o embuçado, que entrara antecedentemente nas casas da travessa da Cruz, separou-se do companheiro e sumiu-se n'um corredor tortuoso, que abria uma bocca de Adamastor ao canto do quadrilátero, cortado de algares e de

charcos pouco odoríferos, que se chamava o Pateo. A luz mortiça e vesga de dois candis afumados, appensos ao lado anterior das humbreiras do portal estreito e baixo, como que ainda mais realçava as trevas interiores d'aquelle mysterioso sorvedouro. Fora, no âmbito do pateo, a escuridão era completa.

Mestre Marçal, inteiramente noviço n'estas regiões, e de todo ignorante dos seus costumes, não sabia o que pensasse de um borburinho de vozes, que ouvia próximas. As vozes chilravam, riam e chacoteavam, n'umas pinhas inviziveis de gente galhofeira, com tal desenfado e petulância, que até a seriedade do mestre sentia as cócegas do riso contagioso.

De vez em quando saiam de um ou outro dos pequenos ajuntamentos alguns exploradores, práticos nas difficuldades do piso, e, orientando o rumo pelas immediações dos recemchegados, passavam, por elles com uns: «olâs!...» e uns «olés!...» extraordinariamente joviaes. Estas exclamações, um tanto á queima roupa, em vez de offenderem o vulto que ficara em companhia de mestre Marçal, provocavam-lhe malicioso sorriso, que este felizmente não podia ver. O mestre, cada vez mais captivo das conjecturas, attribuia com toda a modéstia á sua incomparável popularidade as admirativas exclamaçoens, que lhe zumbiam aos ouvidos.

Era comtudo evidente que só a presença do seu accessor, pelos modos respeitável e respeitada, impedia esta hilaridade vaga de se converter em applicação directa ao desditoso heroe.

O physico de mestre Marçal produzia o seu costumado effeito. Se os curiosos podessem n'aquelle momento adivinhar, entrando no mysterio das suas meditações, nao teriam menos que rir.

De repente, uma voz esganiçada em falsete, rebentando de uma fresta sobre o mestre como estilhaço lascado e cortante, despertou-o no melhor das suas chimeras.

-- «Olá! olá! ... Ole! olé!» -- dizia a voz resumindo as diversas intonações de cómico pasmo, que sussurravam cá em baixo. -- «Voto a Belzebuth que lobrigo ahi um entremez de carne e osso... de osso principalmente. Boas noites, tio Longuinhos, ou como é vossa graça... Tio Longuinhos heis de ser... Para aqui, tio. Bofe que nos estaes fazendo falta. Upa ! Alçae-me cá uma d'essas ripas, e estaes em cima. Precisamos d'uns espeques assim para representar o cavallo de Troya. . . ao natural. Upa, tio Longuinhos ! Uma pernada, vamos. Sereis dos nossos. Talhado andaes para isso. Por Gil Vicente, e sua filha Paula Vicente, que dera eu todas as comedias novas, e até os autos e chacotas da moda antiga, que eram de bem melhor sabor, para vos ter comigo nas taboas ! Farieis á maravilha o papel de Polyphemo entisicando de ciúmes. Pois o D. Lançarote!... Temos cá também um manto de Plutão presidindo aos infernos, que vos irá á maravilha. Eh! eh!... Trepa, tio Longuinhos. Upa!...

Tu tambien, insigne palma, Eres aqui forastera!

Cantarolou para remate o interlocutor acreo, applicando em romance castelhano, lingua vulgar no palco, á esguia pessoa do mestre, com visivel intenção de parodia, o popular moteto da palmeira, das velhas trovas do rei Abd-er-rahman.

Tudo isto fôra emphaticamente recitado, com tal volubilidade de palavras e tal variedade de inílexões, que não dava quasi logar á reflexão.

Mestre Marçal, posto já familiarisado com todos os apodos plebeus, como nunca em sua vida tivesse ouvido, disparado d'um jacto, tal aggregado de coisas desusadas, esdrúxulas, e absolutamente inintelligiveis para elle, ás primeiras palavras levantou a cabeça com o assombro de um homem que ouvisse um pintasilgo desfechar-lhe um discurso, e com o gesto attonito que provavelmente faria o propheta Balaão ao escutar as primeiras phrases da jumenta palreira. Resultou d'este movimento receber em cheio a saraivada da extravagante apostrophe.

Ficou aturdido.

Um coro de gargalhadas acolheu a eloquência exuberante e luxuosa do orador inesperado.

-- «Cala-te lá, farçante » -- grilou debaixo o embuçado, que ficara com o fogueteiro, em tom mais complacente que iroso.

No mesmo ponto as gargalhadas emudeceram. Quem já houvesse costumado os olhos á obscuridade, teria visto mergulhar uma cara travessa e vadia por traz da apertada adufa que lhe servira de tribuna.

Era o Gracioso da companhia.

Passado um quarto de hora, voltou o outro embuçado, e veio ao encontro do camarada. Como transpozesse a tarja vermelha e tremula, que a luz dos candis projectava á entrada do corredor, notou mestre Marçal, apezar da sua turbação, que a ponta de uma comprida espada arregaçava a orla inferior da capa ao desconhecido.

-- «Escudeiros são» -- concluiu para si, consolado de tudo, admirando tanto a perspicácia do seu espirito de observação, como a sagacidade de sua previdência.

Mestre Marçal, como se ve, estava disposto a olhar para as coisas com bons olhos. Não poderia tirar outras inferências sem confessar a si mesmo a ridicula jactância das suas imaginações, e a inópia dos seus juízos ; e n'isto não concordava elle facilmente. Quanto a perceber aquella enfiada de mysterios, era coisa de que nem já tractava.

Duas horas de pratica haviam-n'o familiarisado com os enigmas. Com pouco mais, seria capaz de decifrar á primeira vista, como Oedipo, todas as subtilezas dos gryphos thebanos, e de tractar intimidades com a álea das seiscentas sphinges do rei Amenophis.

-- «Voltemos a casa» -- disse o embuçado que descera do corredor. -- «Saiu ha pouco de cá, e estará quando chegarmos.» --

Abalaram todos do pateo. - «Até á vista, tio Longuinhos» -- gritou da sua adufa a mesma voz, que pouco antes pozera em perigo a razão vacillante do mestre.

-- «Maldito ! Tem pilhas de graça !» -- observou sorrindo confidencialmente o vulto, que ainda não largara o braço ao fogueteiro.

-- «Sabeis o que houve?» -- disse para aquelle o seu companheiro.

-- «Que houve?»

-- «O Barbas pregou dois murros na Lacaia, que lhe pôz um inchaço em cada face, e a Lacaia rachou a cabeça ao Imperador com um pedaço de gruta dos jardins de Babylonia que apanhou á mão.

-- «Arrufos ! Nada que dê de si, vereis» -- ponderou sentenciosamente o outro.

-- «Foi por isso que mandaram chamar sua mercê.»

-- «E então?»

-- «Está tudo acommodado. Não passou a mais.»

-- «Não vol-o disse eu? Nunca isto rende coisa de maior.»

Não perdera tempo o embuçado que entrara. Esmiuçara em poucos minutos as mais recentes occorrencias do tablado, que ainda hoje não é isempto de casos análogos.

Mestre Marçal, para quem tudo aquillo era de todo o ponto novo e indecifrável, julgava-se n'um mundo phantastico ouvindo contar, com tal naturalidade como se fora coisa trivial, a historia d'estas altercaçoens entre lacaias e imperadores. Todas as suas idéas hierarchicas se abysmavam diante da narração d'aquellas anedoctas, que, pela forma por que eram contadas, pareciam usuaes e correntes.

Pensou o mestre que o mundo podia muito bem ter dado uma volta desde o seu casamento com a senhora Medéa.

Quiz certificar-se.

-- «Perdoao» -- observou cortezmente ao que referira o facto -- « Pelo que oiço teremos brevemente execução »

-- «Uma execução »

-- «Certamente.»

-- «Que execução?»

-- «A execução da Lacaia»

-- «A execução da Lacaia ! Mas como entendeis a execução da Lacaia, mestre Marçal?»

-- «Com baraço e pregão, e tudo o mais do costume, coisa muito para se ver e admirar, e para servir de exemplo e escarmento aos perversos.»

A honrada indignação do mestre varrera-lhe a memoria do delicio recente, que bem podia arrumal-o n'esta cathegoria reprovada. Abrindo os diques à facúndia da sua virtude, proseguiu :

-- «Presumo que não a esquartejarão por decen-

cia. Como é pessoa do povo lambem não morrerá de garrote.»

-- «Mas para que hâo de executar a Lacaia? Os dois intorloculores estavam em pólos oppos-

tos : não podiam entender-se. O segundo embuçado ria maliciosamente nas dobras da capa traçada.

-- «Por que hâo de executar a Lacaia !» -- ponderou mestre Marçal, estupefacto da pergunta e dos ares de duvida que a acompanhavam.

-- «Porque hâo de execulal-a, sim?» -- retorquiu já impaciente o companheiro.

-- «Perguntaes-me por que hão de justiçar e executar a Lacaia!» -- insistiu o mestre exconjurando-se. -- «Porque? Polo que fez »

-- «Mas o que fez nâo é caso de forca.»

-- «Pois não é caso de forca um atrevimento d'aquelles? um crime de lesa magestade pelo menos? Em que tempos estamos!»

Insurgia-se a orthodoxia dos seus escrúpulos contra esta indifferença do incógnito companheiro, pouco mais ou menos como um confidente ministerial deplora o septicismo, que hesita em acreditar a absoluta e incomparável superioridade dos seus amigos.

O embuçado replicou procurando o sentido das palavras do fogueteiro, á feição de quem quer forçar o espirito a resolver um problema complicado.

-- «Crime de lesa magestade! Qual crime?»

-- «Pois ainda achaes pouco atrever-se uma lacaia, uma cuvilheira, penso... nem açafatule certo...

a levantar mão para um imperador... que eu não sei que imperador esteja agora cá na cidade... não ouvi ainda fallar... mas, como ainda ha pouco dissestes, foi aggravo a um imperador...

-- «Oh ! oh ! oh !...)) -- atalhou o embuçado menos prompto na comprehensão, percebendo a final, e fazendo a segunda á risada do companheiro. -- Oh ! oh ! oh !... Homem sois como não ha outro, mestre Marçal.»

-- «Sou um homem como não ha outro! Porque?»

-- «Sois. Descançae. Não haverá justiçados nem execução. Sinto dizer-vol-o : teremos de passar sem esse desenfado. O Imperador e a Lacaia lá se entendem.»

Esta conclusão extravagante derrotou de todo mestre Marçal. Suppõe-se, com bons fundamentos, que o illustre e desditoso pyrotechnico finalisou os seus dias, sem apreciar bem aquella intelligencia e camaradagem entre tão humilde oíficio e tão excelsa jerarchia.

Feliz ignorância, que seria hoje um enorme anachronismo !

N'isto chegavam de novo todos trez á casa da travessa da Cruz.

A escrava moura veio logo abrir, como se já os esperasse. Os dois embuçados entraram fazendo passar diante o mestre, cortezia que este julgou o mais favorável presagio.

VI

De como mestre Marçal veiu a achar nas casas da rua da Cruz a explicação d'aquelles mysterios

Entrou o mestre, guiado pelos seus companheiros, n'uma espécie de ante-sala. Havia ao canto uma pequena meza forrada toda de baeta verde usada, com guarnições de galão amarello. No topo, entre rumas de papeis, estava assentado um homem trajando de preto. Dava-lhe em cheio no rosto a luz posta sobre a meza, deixando na penumbra o resto do aposento, e realçando-lhe com o escuro da casa e o negror das vestes o semblante florido e prazenteiro.

Mestre Marçal chegou-se entre os dois embuçados, obedecendo ás prescripções doestes.

O homem, que estava á meza, fitou no fogueteiro uns olhos claros e vivos. Depois de folhear um quaderno, perguntou-lhe :

-- «Sois vós mestre Marçal?»

-- «Marçal sou para vos servir. Mestre não me permitte a minha modéstia dizel-o ; mas, com a ajuda de Deus e do meu santo padroeiro, muitos vol-o dirão.

-- «Sei, sei.»

O homem escreveu o que quer que fosse, e continuou :

-- «Natural ?»

-- «Natural... como?»

-- «Natural... d'onde?»

-- «Ah!... natural d'esta cidade, meu senhor.» Mestre Marçal nâo via a precisão de lhe averiguarem a naturalidade.

-- «Edade?»

-- «Trinta e dois annos. Hei-de fazel-os para o S. João que vem.»

-- «De vossa profissão, fogueteiro?»

-- «Quando havia fogueteiros» -- observou malignamente o mestre.

O homem sorriu.

-- E de vosso estado, casado? -- Casado, é verdade.

Suspirou mestre Marçal este «é verdade» como quem diz: «desgraçadamente.» O homem tornou a sorrir.

-- «Prompto» -- murmurou para si, terminando expeditamente a escripta. Depois, abrindo a porta que lhe ficava ao lado, foi para dentro.

Passados momentos voltou, e disse a mestre Marçal:

-- «Podeis entrar.»

Mestre Marçal tinha tomado a prudente resolução de já se não admirar de nenhuma occorrencia, por mais disparatada que lhe parecesse.

A sala que se seguia, e onde o mestre foi introduzido pelo individuo das perizunlas, ficando fora os dois homens de capa, desdizia pouco da mobília da outra, e pouco se lhe avantajava.

As janellas sem colgaduras. De friso a friso das humbreiras, nas paredes lateraes, longos renques de prateleiras de pinho da terra, vergando ao peso de grossos manuscriptos, atados com guitas ou nastros vermelhos. De rosto para a porta de entrada, e corrida com o fundo da casa, uma estante de guaiáco torneada, arrebentando de fólios veneráveis. A outra meza, mais vasta e mais aceadamente coberta do que a antecedente, outro homem, de escuro como o primeiro, estava como elle sentado á meza. Uma cadeira de espaldas, de couro de Flandes, com ornatos em relevo e pregaria amarella, indicava a preeminência da pessoa.

Era este novo personagem, creaturinha de seus sessenta annos, homem ainda fresco e bem disposto. Todo elle viveza e movimento. Nem nos modos nem no aspecto a menor apparencia de severidade. O olhar impenetrável, porém, tão frio e tão agudo, que parecia cortar. Tinha a cabeça já branca, o rosto vermelho, as mãos femininas. -- «Chegae-vos, mestre Marçal -- disse ao fogueteiro num tom benigno e paternal, que mais dilatou a este as esperanças e deveras lhe restaurou as alegrias.

Depois, dirigindo a palavra ao introductor, acrescentou :

-- «Verificastes ser o próprio?»

-- «Verifiquei» -- tornou o interpellado com toda a proxilidade das locuções formalistas. -- «O próprio é por sua mesma declaração e confissão.»

-- «Sou, sim, meu senhor» -- confirmou o mestre, que já se via festejado e favorecido ; -- «eu sou. Sou mestre Marçal, fogueteiro... no meu tempo... para tudo o que poder servir a sua mercê.»

-- « Já por vezes heis fabricado em vossa casa alguns artificies de fogo, que tendes lá mesmo deitado, não?»

Mestre Marçal, vendo nesta pergunta, antes verdadeira affirmativa, a razão da sua popularidade, e talvez a origem da sua fortuna, respondeu com o desdém da superioridade :

-- «Aquillo nada foi. Um desenfado apenas. Se vísseis...»

Franziu o homunculo o sobrolho espesso e grisalho, e atalhou :

-- «Ah! nada foi!»

Esta interrupção fez reflectir mestre Marçal. Como se podia ter sabido um segredo, que elle julgava tão recatado e occulto?

Estando porém convencido plenamente da inutilidade de dissimular com pessoa em quem via, mais que um protector, um admirador, quiz somente esclarecer as duvidas :

-- «Como soube sua mercê?» -- inquiriu entre a curiosidade e o mysterio.

-- «Sabemos tudo»-- acudiu laconicamenle o homunculo.

Depois continuou :

-- «Esta noite, depois de Trindades, fostes ás terras da Cotovia...»

-- «Experimentar um foguete» -- respondeu mestre Marçal, sem deixar concluir a phrase, e já a cem léguas das ordenanças -- «É certo. Mas nâo pense sua mercê que era um foguete como os outros.»

-- «Com que então, não era !»

-- «Não era, posto que o parecesse... Sua mercê assim mesmo gostou ?»

-- «Pois não havia de gostar ! Digo-vos que estou maravilhado.»

Mestre Marçal esfregou as mãos.

-- «Se soubésseis, meu senhor, que artificio novo e estupendo eu tinha ali preparado! Havia de assombrar tudo.»

-- «Dizeis, mestre ?»

-- «Digo que assombraria toda a gente.»

-- «Com que então havieis preparado um artificio, que havia de assombrar tudo! Mas, vamos : que quereis dizer nisso de assombrar?» -- ponderou o ho-

munculo; recostando-so, cruzando os braços n'uma attitude de apparente indolência, o por entre as palpebras meio cerradas vibrando dois raios sobre o fogueteiro desprevenido. Este respondeu candidamente :

-- «Assombrar... de admiração!»

-- «Ah!» -- articulou o interrogante com inflexão lenta e meditativa.

-- «Falhou» --redarguiu o mestre. -- «Toda a gente se póde enganar uma vez!» -- acrescentou philosophicamente.

-- «Não só uma vez, mas duas vezes, mestre Marçal.»

-- «Duas não seria facil»-- tornou este como perfeitamente seguro de si.

-- «Estaes então disposto a tentar de novo o lance?»

Mestre Marçal, cuidando ver n'esta provocação um indirecto convite a maior franqueza, olhou em torno com ar de precaução, aproximou-se da meza, e disse em voz baixa :

-- «Se achasse alguém de vulto que se quizesse utilisar do meu préstimo assim para coisa de maior, veria, veria então sua mercê, ou sua... que eu não sei com quem estou fallando...»

-- «Vejo que vos achaes em boas disposições, mestre Marçal. E com effeito não vos disseram ainda em presença de quem estaes?»

Mestre Marçal olhou interrogativamente para o

individuo que o introduzira; e, como este não respondesse, replicou balbuciando :

-- «Não, senhor meu: nada me disseram pelo caminho. Mas eu penso... creio... Em todo o caso, aqui estou prompto para o que me ordenarem. »

-- «Sinto dizer-vol-o, mestre Marçal , estaes prompto para entrar na cadêa do Tronco, aonde vos mando já conduzir.»

-- «É o senhor corregedor do crime» -- observou officiosamente o outro sujeito de negro, que era o escrivão da correição, com uma obsequiosidade de modos, que n'outro occasião teria penhorado infinitamente o mestre. Em tal momento porém todos os lenitivos se tornavam inúteis e todas as civilidades absolutamente supérfluas. O desmaio das suas phantasias era completo, e o desengano da sua situação terrível.

-- «Misericórdia !»-- bradou o mísero, vergadas as pernas como dois parenthesis.

E caiu em joelhos, fechando as mãos na cabeça, como se um raio lhe houvesse estoirado em cima!

VII

Da influencia que exerceu a língua da senhora Medéa no destino de mestre Marçal

Quando, defronte de S. Luiz dos francezes, fora interceptado pelos dois embuçados, mestre Marçal tivera suas suspeitas do que podia ser, e deve-se dizer que uns longes d'ellas lhe haviam visitado por vezes a imaginação nos vários incidentes d'aquella noite funesta.

Dissipara-lhe porém o terror e afugentara-lhe as imagens tétricas uma grave circumstancia, confirmando-o successivamente na commoda novella, que havia forjado para seu uso. Fora esta circumstancia a perfeita urbanidade, que, por um acaso feliz e sempre raro, achara nos quatro individuos com quem tivera de lidar.

Por ignorante do mundo, fazia mestre Marçal do trcto social das justiças de el-rei a idéa mais pavo-

rosa e menos favorável que era possível conceber-se. Como nunca tivera dares nem tomares com ellas, até ao dia malfadado em que a paixão da arte o levara a commetter o primeiro delicto, o honrado fogueteiro figurava-as lá comsigo de um desenho medonho, e pintava-as com as mais negras cores. No seu conceito um beleguim era inevitavelmente um ogre, um meirinho uma harpia, e um juiz a cabeça de Medusa.

Sendo difficil que o mestre citasse a propósito os mythos gregos, por não possuir na interpretação d'elles, segundo todas as probabilidades, a sagacidade erudita do abbade Banier, e não podendo também suppor-se sufficienlemente versado nas chronicas de Jornandes e Amiano-Marcellino para tractar familiaridades com a origem e sentido das temerosas ficções da edade-media, não se tenham litteralmente estas comparações por partos do seu bestunto, ou, como vulgarmente se diz, productos da sua lavra : são apenas uma traçado auclor para exprimir a ascendente intensidade do horror, que o bom do mestre ingenuamente media e graduava pelas differenles espheras da jerarchia judicial.

Eram aos seus olhos a affabilidade e os bons termos qualidades absolutamente incompatíveis com os homens daquella classe. Não podia imaginal-os senão arripiados de modos, hirsutos de figura, e ferozes de instinctos.

A fallar a verdade, mestre Marçal não errava de

todo. As relações ordinárias da justiça com as pessoas da sua condição tinham com effeito muito pouco de benévolas e aprazíveis. Não passava o carinho por ser o fraco dos homens de lei, e menos ainda na sequella dos honrados malsins de todas as ordens. Se ainda hoje as conjecturas do mestre não vão muito longe da realidade, póde suppor-se o que seria n'aquella época.

Toda a regra porém tem excepção.

Tinha tido mestre Marçal a phenomenal ventura de acertar com quatro excepções, ou antes com a excepção de um corregedor do crime, systematicamente obsequioso de palavras, que á sua imagem e similhança affizera, como é costume, todos os subordinados.

É verdade que não estava mais adiantado por isso. Era o corregedor polido como o aço, mas duro como elle.

Desde que o mestre, illudido pelas apparencias, assentara de si para si que os dois mysteriosos desconhecidos não podiam pertencer á justiça, peitado de outras idéas, e vencido do demónio da ambição e vaidade, esquecera de todo, não só a usual circumspecção, mas ainda as mais triviaes suggestões da prudência. Serenado o sobresalto do primeiro surprehendimento pela blandícia dos diversos interlocutores, haviam-lhe estes naturalmente parecido outros tantos confidentes.

Imagine-se pois qual seria o seu aturdimento e

stupefacção ao ouvir estas palavras, bem pouco esperadas : -- «É o sr. corregedor do crime!»

Quanto ao modo porque o digno corregedor fora tão bem informado a seu respeito, era a coisa mais simples d'este mundo.

Tendo por aquelles tempos, como já se relatou, occorrido contra as ordenanças prohibitivas algumas infracções, cujos auctores haviam ficado desconhecidos e impunes, temendo o governo de Castella que do resfriamento da lei se seguisse o seu descrédito, e do descrédito resultassem abusos perigosos, havia com grande urgência recommendado para Lisboa a maior vigilância e rigor.

Em consequência d'estas recommendaçôes, o regedor das justiças passara as ordens competentes aos tribunaes, e aos dois corregedores do crime, que então possuia Lisboa, os quaes corregedores tinham jurisdicção e alçada para prender e processar no recinto da cidade, e cinco léguas em redondo, que era o termo.

Dos corregedores passara o apertado aviso ao meirinho, e aos onze alcaides, que faziam a policia da cidade.

Descendo na escala, cada alcaide tinha-o egualmente transmittido aos doze homens, oito de chuça, e quatro de capa e espada, que a lei e o uso lhe attribuiam para exercício de suas funcções.

Um dos últimos era visinho de mestre Marçal,

que, vivendo retirado e desgostoso, não só ignorava o tracto d'elle, mas nem se quer uma vez lhe fallára, e portanto mal podia conhecel-o.

Tivera a mulher d'este homem , a propósito de certa franga pedrez, grandes desavenças e ralhos com a senhora Medéa, a qual, na forma do seu louvável costume, a brindara com um diluvio de sotaques e impropérios, dignos do artigo de fundo de um oráculo de moralidade n'estes tempos de civilisação.

Entre outras injurias grossas, chamara-lhe: «velha desdentada.» Como a respeitável matrona passava com effeito dos sessenta, e, em consequência de um ar nos queixos, conservava apenas seis dentes, em mau estado de servir, e em peior de se apresentar, dera em cheio o tiro, e a digna esposa do beleguim nunca mais perdoara tão desabrida affronla.

Não contente com aquella imprudência, que a indispunha com as justiças, a senhora Medéa tivera a notável inconsideração de ir contar a outra visinha, -- em segredo já se vê:

-- Que o seu Marçal queimara uma dúzia de valverdes em dia de Anno Bom !»

Isto com muitos queixumes do perigo de um incêndio, e dos desperdícios d'aquelle homem, que era a sua desgraça.

Affectando receios, que davam ao marido ares de verdugo e a prendavam com os méritos da resignação mais exemplar, rematou pedindo encarecidamente :

-- Que não boquejasse no caso a ninguém !

Cousa que a discreta creatura lhe affiançou com um sem numero de juras, muito parecidas com pragas.

Temendo porém crear bolor na lingua, julgou a visinha que novidade d'este calibre seria consciência ficar monopolisada. E foi-se em continente segredar a uma sua comadre, paredes meias :

-- Que mestre Marçal fazia o despropósito de deitar todos os mezes duas dúzias de morteiros em casa, e era um bargante que dava cabo de quanto tinha e não tinha a pobre da mulher.

Quando a nova se aproximou ao fim do beco, dizia-se ao ouvido :

-- Que o dissoluto e valdevinos do visinho Marçal punha por portas aquella boa alma da tia Medéa, porque tinha o sestro extravagante de deitar todas as semanas um fogo de vistas no pateo !

Ao sol posto d'esse dia, o honrado pyrotechnico, sem o saber, gosava no sitio a reputação de uma índole intractavel e de um perdulário insigne, em quanto a amoravel consorte, tida por modelo de mansidão e virtudes, era chorada como victima da sua abnegação conjugal.

Parecendo ter feito a sua educação com algum artigueiro habilidoso, a ex-viuva Brandoa adivinhava por este modo a arte peregrina, hoje primorosamente cultivada, de insinuar calumnias, e de encarecer os sacriticios que não fazia, caritativo empenho em que efficazmente a auxiliava o espi-

rito palreiro da respeitável corporação das mexeriqueiras, que em todos os tempos, e em todas as classes, teve sempre os seus valores entendidos.

De visinha em visinha, e de porta em poria, chegara a noticia á mulher do beleguim. A mulher do beleguim foi logo communical-a ao marido. O marido, homem prudente, ponderou que se não devia acreditar senão metade do que se dizia, e preveniu immediatamente o seu alcaide.

D'ahi por diante mestre Marçal tornara-se alvo de uma vigilância activa e persistente.

A saida do mestre a horas desusadas, e para longe do bairro, dera nos olhos ao visinho beleguim, que o espreitava quotidianamente. Seguiu-o por tanto com as precauções do officio.

Ao Rocio, encontrara um confrade da mesma esquadra, e aggregara-o a si communicando-lhe a empreza. Isto feito, não lhe escapara o menor movimento do desditoso Marçal, que nem no seu estado normal poderia competir em astúcia com os experimentados agarradores, quanto mais precaver-se d'elles quando tamanhas preoccupaçoens o turbavam. O mestre, seguido com obstinação e recato, nem dera por isso.

O que os dois beleguins tinham visto constituia prova suíTiciente para se apoderarem da pessoa do contraventor. A ingenuidade das suas confissões confirmara tudo sem trabalho.

O corregedor do crime, em cujas mãos mes- tre Marçal caíra, apezar dos modos affaveis e adocicados, tinha um masso de processos no logar em que os outros costumam ter o coração. Trazia elle o fito ambicioso em chegar, o mais depressa que podesse, a Desembargador dos Agravos com assento na Casada Supplicação, logar eminente e pingue, que era a terra da promissão para a magistratura da época.

Não são os indivíduos d'esta tempera inclinados a escrúpulos. Anhelando lograr aquelle fim, tão desejado como árduo, nada lhe custava, e todo o seu empenho era assignalar-se por algum serviço importante. O corregedor conhecia o espirito suspeitoso e desconfiado da governança de Caslella. Se alcançasse pôr o dedo n'alguma boa conspiração, ou sequer n'um simulacro d'ella, tinha como certo o abreviar consideravelmente a distancia, que ainda o afastava do termo das suas aspirações.

Quasi exclusivamente costumado a lidar com as manhas e subterfúgios dos criminosos endurecidos e matreiros, não podéra elle acreditar que a milagrosa simpleza de mestre Marçal fosse causa natural, e proviesse unicamente do acanhamento da sua penetração. Comprazia-se em architectar sobre a vulgar occorrencia, que tivera lugar com o fogueteiro, um problema judicial, cuja solução lhe daria créditos de sagaz e zeloso, e o poria em bons termos com o conde-duque, ministro omnipotente.

Quando a mais não chegasse, attestava o seu des-

velo pela integridade d'aquella lei, que tal attenção estava merecendo à corte.

O juiz, sem querer, egualava-se ao réo pela secreta inspiração do desejo, análogo em ambos; salvos os differentes graus da respectiva cobiça.

Nesta disposição resolveu-se a continuar o interrogatório, fitando no pobre de mestre Marçal uns olhos, que pareciam trespassal-o.

Mal tornara um pouco a si, o primeiro impulso do fogueteiro, ébrio ainda de terror, fora abraçar o corregedor pelos pés, exclamando em tom de angustia tão pathetica e tão verdadeira, que lhe apagava o ridículo da figura, e commoveria o mais duro coração.

-- «Senhor corregedor, não me desgraceis ! Senhor corregedor, era uma experiência, não era mais do que uma experiência! Como não desculpareis, senhor corregedor, se com isto nasci e com isto me creei ! Era já a profissão de meu pae. Nunca tive outra. Era a minha enxada, e estava tão costumado que não podia passar sem ella. Foi o demónio que me cegou. Mas eu protesto-vos que nunca mais, nunca por nunca ser, tornarei a bulir n'um bago de pólvora. Senhor corregedor, amerceae-vos de um pobre, que é a primeira vez que passa por esta desgraça e por estas vergonhas ! Senhor corregedor ! ..»

Mestre Marçal não sabia que era mais fácil mudar os celebres paços de Corte Real para a Trafaria do que abalar aquella alma petrificada. Um tigre perdoaria : elle regosijava-se.

VIII

De como mestre Marçal,

Ycriflcando o segredo do seu artificio, descobriu

a final que um foguete se podia transformar

n'um galeão

O corregedor, se não tinha a conjuração, possuía o infractor. Não o ilera pela melhor moradia em palácio.

Por única resposta, estendeu o braço e entregou a lei fatal ao escrivão da correição.

-- «Lede» -- disse em tom imperioso e terminante.

O escrivão leu da primeira até á ultima syllaba. Era escusado : mestre Marçal sabia-a de cór.

-- «Mas, senhor corregedor, se não foi por mal !» -- murmurou o fogueteiro com um abafador na garganta entaboada.

-- «Tendes modo de evitar maior pena» -- proseguiu o inflexível magistrado.

-- «Que modo, senhor corregedor?? -- tornou

ancioso o infeliz, erguendo-se e respirando como o naufrago que deita mão á ultima prancha.

-- «Confessar quem são os outros.»

-- «Sua mercê diz...?»

-- «Digo que reveleis o nome de vossos cúmplices.»

-- «Cúmplices! De que?»

Mestre Marçal não podia acreditar que fossem necessários cúmplices para fabricar os seus productos.

-- «Com que fim vos fostes a lançar aquelle foguete ás terras da Cotovia ?»

-- «Com o fim de experimentar um novo artificio de minha invenção.»

-- «E que artifício era?

-- «Uma transformação. Nâo saiu bem doesta vez ; mas...»

Mestre Marçal, nas incorrigiveis cegueiras da paixão dominante, ia a dizer :

-- «Mas para a outra melhor será.»

Um gesto expressivo do corregedor embainhoulhe a palavra imprudente, seccando-lhe a bocca.

-- «Ou este homem é mentecapto» -- pensou o magistrado -- «ou é o mais fino conspirador, que jamais caiu era mãos da justiça.»

Custando-lhe porém a desistir das complicações, que os homens de lei se prazem em enredar na phantasia, e não se resolvendo a perder ainda totalmente a esperança de um tenebroso processo, como aquelles em que o amoi- da argúcia enleva

a meude as predilecções forenses, continuou em voz alta :

-- «Assim, persistis em vossas negativas e absurdas desculpas? Não tendes cúmplices!»

Mestre Marçal daria tudo, até a senhora Medéa

-- principalmente a senhora Medéa -- para ter um cúmplice ; mas, por mais que fizesse, não podia achar senão a cumplicidade da ponta de barbante, que do bolso lhe pendia accusadora, resto do que lhe servira para dispor a malavenlurada machina.

Uma denegação muda foi a sua única replica.

-- «A prisão o fará fallar, se é o que supponho»

-- reflectiu comsigo o corregedor. -- «Se é só o que parece, já temos em quem punir a infracção.»

O bom do jurisconsulto, com a mira nos seus particulares intentos, o que prova como a desalmada sordidez do interesse não é de agora, pouco se lhe dava de averiguar a importância do crime : o tudo era colher uma entidade criminosa.

-- «Bem!» -- proseguiu, dirigindo-se ao escrivão. -- «Levem-m'o á cadêa do Tronco : ficará incom municavel.»

-- «Senhor corregedor'....» -- bradou o triste, pondo as mãos e erguendo-as ao céo no derradeiro e supremo esforço.

O corregedor inexorável fez um signal. O escrivão abriu a porta, e entregou o preso aos dois homens de capa, que esperavam na ante-sala.

Mais morto que vivo, mestre Marçal saiu machinalmente com elles.

Estavam já desertas as ruas. Os habitantes da cidade recolhiam cedo n'aquella época. O transito nocturno era subjeito aos mais graves inconvenientes. Apenas algumas raras andas, ou liteiras, de damas principaes, precedidas de um escravo que alumiava o caminho, e ladeadas dos pagens e homens de cavalio correspondentes á sua qualidade e jerarchia, segundo as regias provisões, atravessavam a passo lento as ladeiras tortuosas que iam dar à cidade baixa. Apenas algum embuçado bem precavido, escondendo egualmente o rosto e as tenções, perpassava preoccupado e rápido, ou se cozia com as esquinas topando os capas do alcaide.

Este silencio e estes vultos lobregos apertavam ainda mais o coração de mestre Marçal.

Torneando a rua dos Escudeiros, e passando a freguezia de S. Nicolau, os companheiros do mestre, que já a este pareciam de muito menos agradável convivência, entraram com o preso no Terreiro do Paço pela porta do Arco dos Barrotes, e seguiram costeando o palácio real pela porta do Arco das Pazes.

Os motejos dos arcabuzeiros da guarda do paço acompanharam o pobre fogueteiro até quasi ao torreão novo da Casa da Índia, d'onde os capas o levaram ao outro lado pela porta dos Armazéns, dirigindo-se depois à Tanoaria, e enfiando pela porta

dos Ciibcrlos até o encerrarem na prisão do Tronco, enxovia destinada aos malfeitores, situada na rua denominada tambem dos Cuberlos, que ficava, pouco mais ou menos, fronteira ao local onde existe o Arsenal da Marinha.

Quando mestre Marçal sentiu ranger os quicios de ferro, correr os pesados ferrolhos, e cerrar sobre elle as grades grossissimas, pensou que o fechavam n'um sepulchro. Quando ouviu as pragas, os brados, as vociferações, os alaridos, as blasphemias, que lá iam por dentro, cuidou que dava a sua entrada no inferno.

Felizmente o espirito móbil do mestre não conservava por muito tempo a intensidade das sensações.

Pela madrugada conseguiu adormecer, dizendo comsigo :

-- Que, a final, inferno por inferno, o de sua casa não era muito preferível.

Como o bom de mestre Marçal seguia a pbilosophia, muito catholica e discreta, de que tudo quanto Deus faz é pelo melhor, consolava-se com a idéa de ter assim evitado as verrinas conjugaes, que elle via erguerem-se ameaçadoras, com um «continuarse-ha» eterno.

Ao outro dia, mal acordou, o primeiro «Deus tos salve», que de longe lhe soou na masmorra, foi a voz stridente dá senhora Medéa, a quem a mulher do beleguim fôra officiosamente prevenir,

com apparente esquecimento das passadas affrontas, para saborear pessoalmente a vingança, que é o prazer dos deuses... e das visinhas tarameleiras. A senhora Medéa, da banda de fora das grades, desfazia-se em imprecações contra o parvo do marido :

-- Oue por culpa sua -- dizia ella -- estava entre ferros de el-rei !

Sobre isto regalava com uma furibunda aposlrophe os guardas incivis, pois que, sob o pretexto de se achar incommunicavel o preso, nâo a deixavam passar ávante para despejar na própria cara ao mestre o mais que lhe sobrava para dizer!

-- «Então por que não hei de entrar?»

-- «Já se vos disse, mulher. »

-- «Mulher!... Mulher, assim por de mais!... Não verão aqui o D. Escudeiro, aprezilhado de prata e vestido de chamalote ! Quem vos talha o gibão, meu senhor amo? Sois freguez da Rua Nova ou passeaes em S. Domingos?... Mulher! Olha e lá como fallaes!»

-- «Mulher ou diabo. Ca para nós o mesmo é.»

-- « Atrevidos! Villões desbragados! Almas de chinello ! Perros judeus !»

Um dos guardas, que se divertia particularmente com a torrente inexhaurivel dos impropérios da matrona, tornou-lhe com todo o serio de uma contricçâo sincera :

-- «Perdoae... Diabo não: era levantar-lhe um f^^.l.c, ^^ pobre do diabo !» Bocca que tal disseste ! A conclusão acabou de assanhar a Medea algarvia.

-- «Sempre quero ver» -- clamava ella com esgares tremendos, roxa de cólera, n'um falsete que dava idéas de hydrophobia, -- «sempre quero ver se uma mulher honesta não hade fallar a seu marido... para desafogar ao menos! Ai! que homem, santa do meu nome! que homem ! Os meus peccados! Eu sempre o disse. Mal haja a hora em que tive a desgraça de consentir em dar-lhe o «sim». Que leis são estas que separam os casados e mettem uma rolha na bocca á gente ?... Nossa Senhora dos Remédios, que remédio lerá a minha triste vida! Quem me havia de a mim dizer no tempo do meu Malaquias, que sempre me trouxe tão estimada, que ainda havia de chegar a estes vexames'.»...

Este chorado Malaquias era o defunto mercieiro, o primeiro marido, que lhe dava uma sova todos os oito dias.

No paroxismo da desesperação, a senhora Medéa fincava o punho no lado com gesto provocador, fiando-se na impunidade do sexo.

Terminou o dialogo da forma por que unicamente podia terminar, pegando-lhe os guardas por um braço -- se não foi pelos dois braços -- com mais vigor do que amabilidade, e pondo-a na rua sem maior cortezia.

Na rua a berraria foi tal, que os habitantes do bairro chegaram todos á janella.

Mestre Marçal, n'esla conjunctura temerosa, beradisse a invenção dos segredos, e glorificou os rigores da justiça, que lhe pareceram então o cumulo da benevolência !

Terminam aqui as primeiras aventuras do mestre. A paixão pyrolechnica, paixão original entre todas ellas, sendo a verdadeira origem dos seus dissabores domésticos, levara-o, como se vê, aonde o podia levar.

Dizem que os superiores affectos tem todos o seu calvário. Mestre Marçal, em prova da grandeza infeliz da sua bemquerença, teve dois calvários -- o ninho da esposa ; o ergástulo dos facinorosos.

Pensando bem não sabia qual era peior !

O empenho do Corregedor do crime, incansável em esmiuçar a sua conspiração, fez jazer o mestre mais de um anno encarcerado. A custo desenganada de que o fogueie perturbador não fora signal de perigosos attenlados, e reconhecendo por fim que o supposto conjurado era, quando muito, um monomaniaco, resolveu a justiça de Castella dar-lhe destino.

Dignando-se attender á prisão que já padecera, teve a benignidade de lhe commutar a pena de degredo para Angola na pena de degredo para o Brazil.

Como acontecesse partir o capitão-mór de Per-

nambuco, aproveitou-se a opportunidade de enviar para ali alguns degredados, entre os quaes mestre Marçal leve a honra de figurar !

Mal poz pé no convez do navio, como á claridade de um novo e súbito fiat lux, terminaram todas as suas duvidas acerca do desgraçado artificio, que, um anno antes, fora perder-se sem baptismo n'umas leivas de cevada.

Estava emfim sufficientemente esclarecido. Tinha o famoso foguete effectuado a problemática metamorphose : achava-se convertido no galeão, em que ia contra vontade, demandar as torras de Santa Cruz.

N'esta extremidade, uma coisa consolava mestre Marçal de todos os transtornos e infortúnios. Era a sua providencial separação da senhora Medéa.

O mestre tinha a malicia de pensar que, só por si, esta circumstancia compensava, e, feitas bem as contas, excedia muito os desastres, que lhe grangeara aquelle amor da arte, não comprehendido no seu tempo.

Se chego a conseguir alguns ócios, talvez me tente ainda a ordenar os inauditos e prodigiosos casos, que no novo mundo illustraram os méritos e o nome do mestre desterrado. Esses sim, que foram lances de contar. Mais dia menos dia não resisto ao desejo, dado que as singularidades physicas e moraes do meu chão e sincero Marçal Estouro não tenham demasiadamente enfadado o leitor.

o FORTE DE S. JORGE

SEGUNDA PARTE

DAS

AVENTURAS DE MESTRE MARÇAL

o forte de S. Jorge

PRELIMINARES

Nos ultimos dias de fevereiro do anno de 1630, uma poderosa armada dos Estados de Hollanda aproara ao Recife de Pernambuco, e desembarcara na enseada de Pau-amarello o corpo de tropas da expedição, que a companhia hollandeza, para ensaio commercial, enviara a conquistar a provincia.

Tanto que tal aggressão constou, a população de Olinda, capital da capitania, fugiu espavorida para os mattos. O melhor da força expedicionária dos Estados, atravessando em breve o rio Doce, e vencendo a insufficiente resistência das poucas tropas que poderam oppôr-se-lhe, entrou na cidade sem o trabalho de expugnal-a.

O capitão-mór, Mathias d'Albuquerque, depois de reconhecer a impossibilidade de suster o pânico, percorria o campo a fim de organisar a resistência, e tentava bloquear os invasores na sua conquista.

Para se entenderem as scenas, que vâo passar-se, convirá, antes de tudo, dar idea das localidades em que ellas succederam.

No século, de que escrevo, a povoação do Recife, ou Arrecife como então lhe chamavam, estava longe de ser o que é actualmente.

Gozava ella já todavia de grande importância commercial em consequência da sua situação.

O burgo, que ainda por outra coisa se não podia ter, quasi fronteiro á barra principal do porto, era com effeito admiravelmente accommodado aos armazéns e tercenas, que ali tinham em grande copia os commerciantes. Ficava-lhe a um lado o surgidouro dos navios mercantes, na confluência dos dois rios, Capibaribe e Biberibe, que bracejavam para o sertão em sentido divergente. Ficava-lhe ao outro lado o ancoradouro das embarcações de maior porte, que ordinariamente fundeavam ao norte do Picão, defronte do logar onde os hollandezes levantaram depois o forte, que se ficou denominando de Bruma.

Olinda era a sede permanente do governo da capitania. Muitas e singulares excellencias tinham originariamente determinado a escolha.

Fora edificada esta cidade no século anterior. A lenda do seu nome é graciosa como o paiz que domina.

Ao tempo da occupação, era aquella parte do

littoral infestada pelos terríveis Caretés, ou índios do matto, aos quaes se haviam successivamente aggregado nâo poucos desertores, assim portuguezes da feitoria como francezes dos navios corsários então frequentes em taes paragens. D'esta região, nas jangadas que rapidamente fabricavam, fácil era áquelles ousados salteadores levar a distancias consideráveis a devastação e o extermínio.

Vieram novas colónias de Portugal. Por muito tempo, na zona marítima, theatro de luctas porfiadas e sanguinolentas, se achou a pequena povoação europea exposta às improvisas excursões de similhantes aggressores. Tiveram estes porém de recuar ante a civilisação que avançava. Retirando-se em diversas direcções para o norte, não falta quem lhes atribua a origem das tribus ou hordas, ulteriormente denominadas taboyares e pilyagoares, que missionários zelosos, na época desta historia, começavam a doutrinar com vario successo.

Principiava apenas a colonisação regular, quando o primeiro donatário da capitania, o valente Duarte Coelho, entranhando-se um dia pela enseada, e subindo até ao sitio onde se levantou depois a cidade, ao aportar na margem, e ao dar com os olhos na formosa disposição dos terrenos, exclamou :

-- «Oh! linda situação para se fundar uma villa!»

Olinda, dizem, ficou por isto o logar. A exclamação fora um baptismo.

Subsequentemente, como crescesse o tracto e negocio, e o porto, pelas razões indicadas, se tornasse um dos mais frequentados e opulentos, formou-se o núcleo da povoação do Recife, que, nos tempos a que me retiro, era, como disse, um burgo de cento e ciucoenta moradores, quando muito, em parte pescadores, em parte homens de trabalho ou empi-egados no porto.

Tempos atrás fallara-se vagamente nos armamentos dos hollandezes. O governador gera! do Bi'azil, Diogo Luiz d^Oliveira, chegara a mandar a Pernambuco o sargenlo-mór do estado, Pedro Corrêa da Gama, que, olhando á conveniência da povoação do Recife, como poude a fortificou circumdando-a de robustas estacas das ricas madeiras da terra.

A este entrincheiramento, por um abuso de locução que rapidamente degenerara em geral costume, chamavam a praça.

Adiante da praça, dependência d'ella, ficava outra pequena fortificação, a que se dava o nome de forte de S. Jorge.

Para que se possa comprehender a importância d'este forte, em que vamos encerrar-nos, será indispensável entrar em mais algumas particularidades.

É o porto de Pernambuco fechado por um continuo recife natural, d'onde deriva o nome. O recife estende-se de sul a norte, desde a bahia de Todosos-Santos até ao cabo de S. Roque.

Ergue-se por grande extensão á flor d'agua esta longa aresta de rocha, immenso diadema de alguma vasta serrania, cujas raizes assentou Deus no fundo do Oceano.

N'aquelle ponto da costa, o recife mais parece molhe artificial, e intelligente obra de gigantes, do que accidente da natureza. Por espaço de uma légua, pouco mais ou menos, corre em linha recta a cem braças da praia, em forma de larga muralha, quasi ao nivel das ondas na preamar, coisa de seis pés sobranceiro na vasante.

Se o mar está liso e chão, quebra-se-lhe aos pés, franjando-o de uma extensa e formosa orla de espumas. Á mais leve agitação investem-no de toda a parte as vagas irritadas. Nos dias de temporal o escarcéo é medonho, a arrebentação tremenda, o expectaculo maravilhoso. Galgando e rugindo, como turba ciosa de leões titânicos, mares sobre mares sacodem ao ar as jubas arripiadas de neve, transpõem o eterno obstáculo opposto á sua cólera, precipitam-se, desabam além do molhe, e vão ainda turbar profundamente as aguas do porto.

A pouca distancia da povoação interrompe-se esta longa e natural muralha, como se o Eterno quizera abrir uma porta áquella terra fecunda. A interrupção, ou abertura, forma a barra principal, defendida por um forte denominado da Lage, ou de S. Francisco, assente da banda do sul sobre um rochedo solitário.

No interior do porto, entre este e o rio Biberibe, corre uma restinga de área, ou cabedello, de uns

cincoenta passos de largura, proximamente, á feição de comprida e estreita peninsula, que, partindo de Olinda, se prolonga uma légua para o sul.

Na extremidade d'esta peninsula ficava o burgo do Recife, fronteiriço á ilha de Santo António, mas separado d'esta pelas aguas combinadas dos dois rios affluentes. Além da ilha, estendiam-se as vastas planícies alagadiças, que o Biberibe inundava, e que por isso eram chamadas «Terra dos Afogados.»

Quem já no século XVIII percorresse os três bairros da povoação engrossada e feita principal, -- o moderno Recife, que ainda occupa o logar do antigo burgo, é pela maior parte é devido aos hollandezes -- Santo António, que se alarga pela ilha desde o palácio das duas torres até ao forte das cinco pontas -- a Boa- Vista, que mais além, do outro lado, dissemina as suas formosas cazarias pelas veigas do continente -- quem, dizemos, já por fins do século XVIII, visitasse os três bairros da povoação, mutuamente ligados pelas duas pontes que a ilha estende como dois braços abertos, de um lado para a peninsula do Recife, e de outro para a várzea do rio, difficilmente poderia fazer idea do que Mathias de Albuquerque denominava praça, mais por ampliação philologica, do que por consciência militar.

As pontes não existiam, e a ilha de Santo António estava ainda na maior parte coberta da sua vegetação primitiva. Por consequência o burgo isolado só pela restinga da área, a que era remate, se com- municava com o territorio, que Olinda, occupada pelos hollandezes, fechava no extremo opposto da estreita península.

O forte de S. Jorge, situado quasi a tiro do Recife, entre este e Olinda, servia pois de interceptar o accesso ao inimigo, e protegia as communicações que pelo rio se mantinham entre o burgo e as terras interiores.

Os hollandezes, tendo desembarcado, como se disse, no porto de Pau-amarello, quatro léguas acima, haviam entrado pelo norte. O sul, e portanto o porto, estavam livres ainda.

Pelo que toca á sua armada, emquanto o forte da barra se defendesse nâo podia ella senhorear os rios, porque a chamada barreta, outra fenda no dique de rocha, a meia légua da barra grande, não só era tambem defendida por um fortim, mas apenas dava entrada a lanchas.

Da península, sobre a linha longitudinal do molhe, alongava-se também um banco de arêa, submergido nas marés cheias, mas ordinariamente vadiavel na baixa mar, quando nâo havia aguas vivas. Era a communicação entre a cidade e o forte da barra, e só por ella poderiam os hollandezes vir assallal-a a íim de abrirem caminho aos seus navios.

Por aqui se pôde ver quanto importava conservar o forte de S. Jorge, pois que por um lado protegia o da barra e impedia que se lhe podesse formar assedio, e pelo outro defendia o burgo das suas relações com o interior, onde o capitâo-mór, como fica indicado, com os mais influentes da terra e algumas partidas de milicia, cubria o território, sem perder occasiâo de saltear os inimigos, que se aventurassem fora da cidade.

Mathias de Albuquerque chamava ao forte de S. Jorge a chave da posição. Esta posição, entendia elle essencial sustental-a, -- alguns dias só que fosse -- para dar tempo a armar-se a província.

Eífectivamente, a perda do forte de S. Jorge, tornava impossivel conservar o Recife. Do forte de S. Jorge passariam immediatamente os hollandezes a investir o de S. Francisco-da-Barra, que era, como fica dito, muito menos defensável do lado de terra do que do lado do mar.

Rendido este ultimo, a denominada praça ver-sehia simultaneamente assaltada pela armada no porto e pelo exercito na península.

A armada dos hollandezes compunha-se de mais de setenta velas, e subiam a sete mil homens regulares as suas tropas de desembarque, -- seis mil dos quaes estavam já em Olinda -- todas estas forças commandadas por Henrique Lonck, por Theodoro Weerdenburgh e pelo almirante PieterAdriens, illustre nos mares da Ásia. Mathias de Albuquerque não tinha ainda, para oppôr a todo este poder, senão as estacadas de Pedro Corrêa, dois mil homens da milicia com poucos soldados regulares, e cem cavallos, em parte a mesma gente que se havia dispersado na passagem do rio Doce e que elle agora tratava de reunir, reanimar, e reforçar.

Impossivel era encerrar e manter esta força na estreita lingua de arêa, bloqueada de lodos os lados. Quando fosse possivel, nâo conseguiria com isso senão fazel-a infallivelmenle cair nas mãos dos hollandezes, logo que estes vencessem os pequenos obstáculos que ainda os detinham.

Limitar-se pois a permanecer ali seria uma imprudência, que desde o principio entregaria a capitania inteira ao inimigo, sem mais trabalho do que tomar uma pequena e mal defesa povoação.

Como capitão experimentado, havia Mathias de Albuquerque acertadamente evacuado com o grosso da sua gente o littoral, onde corria o gravissimo perigo de comprometter n'um lance toda a província, e talvez as demais possessões. Tratava porém de defender o burgo em quanto podesse. Metteu-lhe para isso de guarnição alguns homens de esforço, que não o tinham desamparado no primeiro terror, e os soldados regulares que estavam de presidio na capitania. £stabeleceu-se depois em posições, que lhe permittiam abastecer e soccorrer o forte de S. Jorge até á ultima.

Bem via elle que era este o derradeiro baluarte do porto. Sendo impossível preserval-o, não se empenhava menos em disputal-o. Ganhava assim, como fica dito, alguns dias para levantar os ânimos abatidos, aguerrir as milícias bisonhas, e pôr em defensão as populações sobresaltadas, tanto mais attonitas da invasão, quanto mais se tinham recusado a acredital-a. O bom engenho militar não aproveita só a victoria: muitas vezes utilisa também os desastres. E Mathias de Albuquerque era um verdadeiro cabo de guerra !

Como todos conheciam a valia do posto ameaçado, tamanho devia de ser o ardor do inimigo em apoderar-se d'elle, como o cuidado do capitão jovem guardal-o.

Vejamos agora o que era o famoso forte.

Afastar-se-hia da verdade quem imaginasse que n'aquelle século a arte, illustrada por Vauban, tinha feito na America os progressos que fazia na Europa. N'esse tempo o principal da táctica, modificada pelo grande Frederico, revolucionada por Napoleão I, agora novamente reformada pela escolla prussiana, consistia principalmente em assédios e investidas de praças. As mais feridas batalhas davam-se ordinariamente para soccorrer os sitiados ou impedir soccorros. Os hollandezes e flamengos, instigados das suas longas lutas com poderosas nações, haviam aperfeiçoado consideravelmente as artes da fortificação. A sciencia porém tinha ainda muito que andar, e as construcções americanas d'este género, destinadas na origem a defender das invasões do gentio as nossas colónias, conservavam em grande parte as suas feições primitivas, e por consequência os seus insanáveis defeitos.

Estava n'este caso o forte de S. Jorge. Fora uma espécie de feitoria fortificada, como as que os primeiros navegadores do reino usualmente levantavam para segurança e protecção do seu commercio. O especioso nome de forte vinha-lhe d'uma tal ou qual muralha quadrangular, com dois baluartes, sem escarpas, nem fossos, nem revelins, nem obras exteriores. Muito mais se aproximava aos nossos paços acastellados, ou honras dos primeiros séculos de Portugal, do que a modernos reductos.

Pouca resistência poderia pois offerecer a forças

regulares e experimentadas, como eram as hollandezas. As cortinas, além d'isso, já gastas dos annos, ameaçavam mina. Os mais sérios obstáculos contra uma tentativa de assalto eram as grossas estacadas e tranqueiras que havia pouco se lhe tinham addicionado.

Consistia toda a artilheria d'esta fortificação informe em três peças, uma de bronze e duas de ferro, montadas em fortes madeiros de vinhalico.

António de Lima estava por governador n'aquella singular fortaleza.

Passemos a averiguar que soldado era António de Lima, capitão de bandeira, incumbido da árdua empreza pelo próprio Mathias d'Albuquérque, bom conhecedor e pratico de homens de guerra.

II

O governador

Acompanhado dos cabos da milícia, proprietários grados da provincia, n'uma das habitações do campo mais próximas ao burgo, um dia aguardava impaciente o capitâo-mór que lhe trouxessem novas do forte, pois que de momento para momento se esperava que os hollandezes o atacassem.

Com effeito, no fim de algum tempo, annunciaram a Mathias d'Albuquerque a chegada de um individuo, que trazia as suspiradas noticias.

Inútil será dizer se o individuo esperou.

Era este messageiro homem de estatura colossal. Acobreado o rosto ; a possante musculação em relevo nos braços nus ; sobre uns hombros de Hercules Farnesio uma cabeça esculpida em bronze.

Denunciavam para logo as feições d'aquelle homem o mixto do sangue africano e do sangue índio, visível nos typos combinados, bem que mo-

dificados e melhorados, das duas castas. Aos mestiços nascidos d'esla alliança dava-se vulgarmente o nome de mamelucos.

Attestava o trajo desordenado do mameluco violento esforço, e por consequência extrema urgência. Pingava-lhe, lançado ao hombro, o gibão redondo, de um leve tecido de lã em riscas, a que chamavam argelado. Escorriam em agua as calças do mesmo estofo, largas, curtas e soltas, quasi como bragas. Deixavam rasto no pavimento os borzeguins de pelle de nandú, ou avestruz, para resguardo dos rijos espinhos do matto, accessorio precioso que naturalmente lhe vinha dos estabelecimentos do sul. Por ultimo, os grossos sapatos, de vacca mal curtida, imprimiam no sobrado uma sombra húmida.

Ao mesmo passo pendia-lhe em bagas o suor de cada annel da densa cana, rente e crespa. Os limos, adherentes ainda ao vestuário, indicavam que o athleta americano, no arremeço d'uma longa carreira, não torcera caminho ante os obstáculos do transito.

Eífectivamente viera elle direito, investindo as cachoeiras, rompendo os matlos, vadeando ribeiros e paúes.

Malhias de Albuquerque fitou-o, e, lendo n'estes indícios a apertada instancia, disse-lhe laconicamente :

-- Conta, e breve.

-- O inimigo -- respondeu de prompto o mameluco sem acanhamento nem irreverência-- o inimigo mandou parlamentario ao forte.

-- Que mais?

-- Intimou-lhe que se rendesse, ou iria logo investil-o com tal poder que não deixaria pedra sobre pedra.

-- Esperava isso.

-- A guarnição, acobardada com as ameaças que os hollandezes fazem correr, desertou quasi toda. Só ficaram sete homens com o senhor capitão António de Lima.

-- Mais deserções ! -- exclamou o capitão-mór para os circumstantes. -- Ninguem resiste. Vereis que nem tempo nos dão !

Depois seguiu inquirindo anciosamente o mestiço:

-- E que respondeu António de Lima?

-- Oue a sua bandeira não se arreava senão quando algum pelouro lhe partisse, a ella a haste, a elle o braço.

-- Bravo, António de Lima ! -- acudiram subitamente enthusiasmados os valentes cabos da milicia, que circumdavam Mathias d'Albuquerque, como se o resoluto governador podera ouvil-os.

-- Vistel-o? -- perguntou mais o capitão-mór.

-- Chego do forte neste momento, meu senhor.

-- Ouaes são as suas tenções, sabes?

-- As próprias que declarou aos hollandezes. Quando o parlamentario veio, conservava ainda com-

sigo nove homens. Distribuiu-os todos em sentinellas, para fazer acreditar ao official inimigo que muitos lhe sobravam ainda.

O capitâo-mór nâo poude deixar de sorrir a esta malicia militar.

-- Apenas o official saiu com a resposta, despachou-vos logo um da guarnição, mas...

-- Não tornou a apparecer?

-- Não tornou, meu senhor. Passadas quatro horas, enviou-vos outro.

-- E fez o mesmo.

-- Fez peior. Em vez de cortar pelo pontal, direito á praça, onde podia deixar aviso, tanto que saiu as portas deitou-se a nado, passou para a ilha e de lá para o mato.

-- Cobardes! -- exclamou sem poder ter-se, Vieira, um mancebo voluntário, já de grande nomeada na capitania.

-- Vendo isto -- continuou o mameluco -- o senhor capitão António de Lima correu os ferrolhos, fechou as portas por sua própria mão, pendurou as chaves na garganta da colubrina, e sentou-se-lhe em cima á espera dos hollandezes. «Quem quizer sair -- disse elle -- ha de saltar das muralhas.» Como as muralhas são altas, as tranqueiras largas, e as estacas agudas, ninguém saltou.

-- Senão tu.

-- Eu não saí do forte. Fui do Recife lá. Recebi as ordens do senhor capitão António de Lima em

pessoa, obriguei-me a trazer-vos esta participação, e aqui estou sem ter perdido tempo, juro.

-- Vê-se. Deus louvado!-- observou o capilão-mór -- Houve ao menos um que não desertou.

-- Tenho meu irmão no forte -- respondeu o messageiro.

-- Com homens como António de Lima nunca se perde a esperança do possivel, e até do impossível -- concluiu Malhias d'Albuquerque, chamando os seus cabos a conselho, e despedindo o mameluco.

António de Lima, absolutamente decidido a sepultar-se debaixo dos muros velhos confiados á sua defensão, aguardava serenamente o inimigo como se contara dois terços ás suas ordens.

Em quanto tivesse munições, e um só dos sete homens em estado de pôr fogo á sua colubrina e ás suas bombardas, nem lhe lembraria deixar de resistir aos hoUandezes. No numero dos aggressores nem pensava, e a exiguidade da guarnição não o esmorecia. Era-lhe cuidado único o dispor e o aproveitar a gente e material que tinha, de modo que mais podesse deter e mais lograsse prejudicar o inimigo.

Passava por ser homem singular, aquelle capitão António de Lima !

A mais possante das três peças foi collocada na meia golla do baluarte, que olhava sobre a prolongação da restinga, e as outras duas ao longo da cortina, que dizia para o mesmo lado. Sabia que aos

hollandezes seria difficil descer o rio do lado de leste, ou acercar-se da banda de oeste, por falta de meios de transporte: concentrava, por consequência, todos os seus esforços e attenção na face provavelmente, quasi se podia dizer exclusivamente, ameaçada. Quanto aos flancos, sendo estreito o passo que o forte deixava, a artilheria era inútil.

Desde o desembarque dos hollandezes não fizera ainda o bom do governador senão estimular e activar a parte da guarnição que podia dispensar do serviço, bem como o^ carregadores do porto que lograva colher, empregando todos em cortar arvores nas mattas da ilha de Santo António, e em conduzir cepos e vigas da povoação do Recife. Eram as maiores e mais pesadas as que elle escolhia de preferencia. Scismavam os soldados, desejosos sempre de interpretar as ordens dos seus chefes, com esta accumulação de troncos e madeiros, que ajoujavam e derreavam os homens. Não podiam porém atinar-lhes com applicação razoável.

Começavam até alguns a murmurar, já se vê quando o governador não estava presente. Os mais ousados diziam entre si «que melhor seria proverem-se de artifícios de fogo e de mais armas e petrechos», não fallando no artigo mantimentos, que discutiam com severidade extrema.

António de Lima, naturalmente sóbrio de palavras, deixava-os desabafar, e ia acondicionando com um escrúpulo de symetria, que honrara qualquer dona de casa governada e ordeira, as pilhas de traves e os renques de barrotôes, que distribuía com irreprehensivel equidade ao correr da cortina do Norte por vários pontos anteriormente designados.

Tanto que acertou a idéa de evitar as deserções com fazer das chaves do forte bentinhos ás peças, não podendo já augmentar a collecção, simplificou engenhosamente o serviço de sentinellas para lhe sobrarem braços, e achou ainda artes de occupar a sua gente em fabricar taboado grosso para anteparo e resguardo dos artilheiros, não se esquecendo ao mesmo tempo de transferir as mais alentadas vigas do sopé da cortina para cima dos parapeitos.

Não se podia estar ocioso com o capitão António de Lima.

A guarnição começou -- isto é, os sete reclusos começaram a perceber. Que pena serem tão poucos os admiradores, e tão tarda a intelligencia !

Era pelos fins da tarde d'aquelle mesmo dia em que Mathias d'Albuquerque recebera o messageiro do forte.

Descia rapidamente o sol no extremo occaso, como a afundir-se no oceano, deslisando por uma larga tarja nevoenta, opulentamente franjada de ouro e purpura.

Os revérberos do poente davam toques nacarados á orla espumosa das vagas, que afloravam no molhe. Vinha do mar immenso um suspirar saudoso,

que se dilatava pela serenidade dos céos. Transcorria aquella deliciosa hora de enlevo e mysterio, que namora os olhos e acorda a poesia no coração.

O governador passeava desenfastiadamenle a banqueta do parapeito fronteiro a Olinda, como quem não tivesse mais cuidados do que espairecer-se no goso d'aquelle espectáculo magnificente. N'este ir e vir, chegando ao baluarte, como voltasse para desandar o que tinha andado, parou em suspensão, e poz-se a attentar para o lado do Recife.

Depois desatou n'umas interjeições, cujo sentido se figurou de bom agoiro à sentinella, que, pouco distante, media regularmente um numero inflexível de passos.

-- Quem temos? -- resmoneou lá comsigo António de Lima, continuando a fitar os olhos na direcção da chamada praça, e subindo, para ver melhor, acima da colubrina, que ainda conservava as chaves expressivamente pendentes da golla.

O que assim chamava a attenção do governador era uma vasta jangada, que, largando da ponta das Salinas, atravessava para o burgo, mareada por oito negros do porto. A machina grosseira parecia bem guarnecida de gente e armas. Um raio extremo de sol afogueava a extremidade dos arcabuzos, e ateava uma flamma rubra no aço dos piques.

António de Lima proseguia as suas observações em phrases soltas. -- Sim senhor! Sim senhor !.., numerosa vem a companhia !

Homem era de tão extravagantes predilecções o bom do capitão, que mal se podia ainda presumir o que seria. Na sua bocca estas phrases, e o mesmo tom satisfeito d'ellas, tanto podiam significar desconfiança de inimigos como esperança de soccorro.

Via-se unicamente que os movimentos da jangada por singular modo o captivavam.

Aportou ella em breve á povoação, onde foi recebida como se a estivessem aguardando, indicio que afastava as suspeitas. O troço de tropa, desembarcando em boa ordem, entrou na praça.

E o governador sem tirar d'ali os olhos !

Teriam passados dez minutos, uns vinte homens, proximamente, saindo das estacadas do Recife, marchavam pelo cabedello sobre o forte.

III

Augmento de forças

António de Lima estava já mais costumado a deserções do que a auxílios.

Seguindo a muralha pelo terrapleno, foi postar-se na face opposta, para de mais perto verificar o que vinha do Recife. Não tendo nada de crédulo, via perfeitamente que o inimigo não viria atacal-o em tão diminuto numero, nem de tal modo tomaria por tal caminho : era porém do voto de S. Thome: gostava de ver para crer.

Chegado o troço ao alcance da voz, soou o grito da sentinella, baixou sobre a forquilha o mosquete apontado á gente que se aproximava, e o morrão de corda, assoprado rapidamente, constellou as sombras crepusculares.

O pelotão estacou instantaneamente, fazendo alto com tal firmeza e regularidade, que bem attestava a pericia de quem o guiava.

António de Lima chegava n'aquelle comenos ao pé da sentinella :

-- Isso é -- disse, vendo a irreprehensivel pontualidade do soldado no cumprimento de todos os rigores da vigilância.

-- Oh! do forte! -- gritou de fora uma voz sonora e vibrante, posto que um tanto roufenha.

-- É Ayres Gil, -- exclamou a sentinella, sem poder ter-se, infringindo com o alvoroço a disciplina.

-- Cala-te ahi -- atalhou severamente o governador.

Depois, fazendo um tubo acústico das mãos arqueadas em volta da boca, bradou para fora :

-- A que vindes?

-- Amigos! -- respondeu a mesma voz.-- Ordens e reforço, que manda o senhor capitão mór.

-- Esperae : ides ser reconhecidos -- redarguiu das presumidas muralhas o governador.

António de Lima observava as praxes militares como se commandasse uma praça de guerra de primeira ordem.

Passado breve espaço, a robusta porta rasgada na face da cortina respectiva, corridos os grossos ferrolhos, rangeu pesadamente nos gonzos, e o sargento saiu fora a verificar a identidade dos recemchegados.

O preconisado Ayres Gil, um arcabuzeiro de soldo, que vinha dirigindo a tropa, disse-lhe como estava ali João Fernandes Vieira, e mais vinte moços dos engenhos, gente resoluta, para auxilio e defensão do forte, em quanto não chegavam outros soccorros, que se ficavam aprestando. Explicou-lhe mais, não sem certa ufania, como o sr. capitão mór, conhecendo o rigor disciplinar do governador e a conveniência de dar solidez á guarnição, lhe encarregara, a elle, Ayres Gil, o guiar e exercitar aquelles voluntários, advertindo-os nas obrigações do seu novo estado.

Vieira, moço de dezoito annos, já influente na capitania por sua intelligencia, actividade e reconhecido esforço, commandava com effeito os voluntários, que lhe obedeciam com espontânea dedicação e cega confiança. Ayres servia como de instructor. Em tal conjunctura eram preciosos os conselhos e a experiência de um soldado velho como elle.

O arcabuzeiro sabia melhor do que nenhum dos seus camaradas os perigos terríveis que ia ali correr; mas não era isso coisa que lhe alterasse a boa feição. Cumpria as ordens sem as discutir, desempenhava alegremente o officio, e parecia lisongear-se em extremo do honrado conceito que lhe grangeara a incumbência e o risco, n'outras se elle tinha visto, sem nunca lhe desfallecer nem o animo nem a facécia.

Quanto a Vieira, na aurora da vida, era já o futuro heroe de Pernambuco, um dos mais altos caracteres que podem levantar-se da historia !

Communicadas as senhas, e recebida a resposta pelo sargento, sem mais apparato, por não haver no forte luxo de gente para escoltas, obtiveram os voluntários licença de entrar.

António de Lima esperava-os no corredor abobadado, da banda de dentro do postigo, cossolète cingido, morrião na cabeça, rodella embraçada, e gineta em punho... á frente dos dois únicos homens disponíveis da guarnição. As quatro sentinellas das quatro faces, o sargento e aquelles dois, perfilados como postes, sommavam os sete homens que o mestiço contara, e constituíam efectivamente toda a guarnição.

Esta observância stricta dos regimentos de guerra parecera com tal numero ridícula, se tal situação não a fizera sublime !

Ayres Gil, entrando, teve que mastigar os bigodes espessos e revoltos para suster um accesso de riso obstinado.

Feitas as ceremonias do estillo, e recebidas as ordens particulares que lhe vinham do capitão mór, António de Lima abraçou Vieira que já conhecia e estimava. Depois, tomando-o de parte, disse-lhe com a rude e affectuosa franqueza, que era uma das feições do seu caracter :

-- Mancebo amigo, ides ser aprendiz em occasião e logar onde em pouco ficareis mestre, e onde muitos mestres não ousariam apparecer.

Vieira inclinou-se respeilosamente em signal de agradecimento.

O governador fez em seguida a resenha geral das suas tropas.

Comprehendendo o moço commandante dos voluntários, o arcabuzeiro e o governador, achavam-se no forte trinta homens.

António de Lima, desempoeirado das inquietações que lhe dera a penúria de gente em que o tinham deixado as deserções, cuidou ter á sua disposição o exercito de Xerxes.

Pois que o remanso nos dá intervallo, passemos a examinar mais particularmente o nosso arcabuzeiro Ayres Gil, já conhecido no forte, e pelos modos popular nas tropas da colónia.

Ayres Gil, baixo, refeito e reforçado, tinha a fortuna de possuir um nariz florescente n'uma cara avinagrada. Não era a temperança a virtude que o havia de levar ao céo. No mais, exemplar no serviço ; destro como nenhum ; folião até ali. Tão prompto em esgrimir o ferro como a lingua, e não menos expedito em atirar um sotaque do que um pelouro. Ayres Gil tinha visto todas as castas e ouvido todos os idiomas. Militara nos Paizes Baixos contra os flamengos ; contra os mouros em Africa ; na Índia contra os rumes. Era o typo do soldado velho, grave na fileira, firme no combate, ladino sempre, sempre senhor de si como quem anda familiar com a morte, e o melhor bebedor das cinco

partes do mundo, que ainda então não resava senão de quatro.

Podia asseveral-o afoutamente, pois que, depois de ter, como vimos, assegurado os seus créditos na Europa, Africa, Ásia, e nas Molucas, ensaiava na America proesas que não deslustravam os passados louros.

Pertencia em summa o arcabuzeiro veterano áquella classe de soldados, de quem dizia o padre António Vieira «que andavam curtidos e cortados.»

Examinemos agora o moço commandante dos voluntários.

Viçava em João Fernandes Vieira a flor dos ânnos, como se disse. O buço delgado e raro assomava apenas. A bocca, larga e rasgada, exprimia na rigidez das linhas a força da vontade. Desciamlhe aos hombros os longos cabellos castanhos, levemente annellados, ao uso do tempo. Era alto e secco, mas de uma harmonia de proporções que indicava extremo vigor. Nos olhos pardo-escuros, penetrantes e cheios de viveza, fuzilavam os clarões da mais enérgica intelligencia.

Havia no mesmo commedimento, que lhe era como natural, o instincto da superioridade secundado d'uma resolução maior que os obstáculos.

N'esta edade juvenil, Vieira tinha já um passado. Mostrára-se elle sempre activo, laborioso e incansável. Na intrepidez chegava á temeridade; na agudeza presagiava o génio ; no juizo e conselho en-

vergonhava os mais anciãos. Com taes predicados tornára-se, logo ao sair da infância, não só util, mas necessário, mas indispensável n'uma colónia rica, no meio de uma população enervada, e em tempo em que a fortuna, convidando à indolência, principiava a degenerar a forte raça dos antigos povoadores.

O trabalho, a probidade, a intelligencia e esforço achavam em tal situação emprego e lucro.

Aos grandes proprietários, entregues ao ocio, eram preciosos os indivíduos da tempera do moço Vieira : n'elles estava a providencia da colónia e a sua.

Estas circumstancias explicam a rápida prosperidade do mancebo, e a preponderância notável que em tão verdes annos adquirira.

Era elle natural dos Açores. Como tantos outros, que ainda hoje os pães arremeçam das mantilhas aos acasos e perigos de um destino incerto, aportara na capitania aos onze annos. A creança, depois homem raro, chegara a adolescente sem mais guias do que o seu grande animo e coração. Rompera já com tudo a obscuridade. Na estação em que os outros mal pensam no futuro, creara para si uma independência, e quasi uma cathegoria, grangeando as vontades de todos, e fazendo-se respeitar dos mais respeitados.

Successivamente exercera as funcçoens de agente, de administrador, de corretor. Fizera-se depois commerciante e achava-se proprietário. Com a sobriedade, a constância e a actividade, capitaes

productivos em todos os tempos, conseguira em breve prazo o que muitos não logram n'uma vida inteira. Era ainda mais para admirar esta victoria da prudência e da perseverança, n'aquella quadra da vida em que as paixões principiam a tyrannisar os sentidos.

Vieira todavia conhecia-as, e não andava isempto do seu influxo. As paixões, porém, nas organisações verdadeiramente superiores, mais são estimulo do que escolho. Se as almas que ellas inflammam se levantam acima do vulgo, tornam-se outros tantos incitamentos do grande, do bello e do bom.

Vieira amava. Como todas as percepções, que cedo lhe sazonara a intelligencia, esta paixão tinha n'elle aos dezoito annos a intensidade, a profundeza, a gravidade, a dedicação, que só vem de ordinário no estio da vida. Era mais que sensação; era sentimento. Em tal coração dilalava-se o amor n'uma aspiração infinita , insaciável de affectos, e todavia ignorada de todos, que o pudor santo das almas delicadas lh'o resguardava como intimo culto no sacrário myslerioso da sua immensa ternura.

Chamava-se o objecto d'estes castos e puros amores D. Maria Cezar Berenguer.

Era ella filha de um velho soldado da Índia. A nobreza de seu nascimento fizera-a desegual do mancebo em condição. Egualava-o, porém, nos espíritos. E nas prendas do coração correspondiam-se perfeitamente os dois.

Admirava-se em D. Maria Cezar mais do que a harmonia das linhas. Realçavam-lhe o alvor transparente e alabastrino uns cabellos azevichados e ondulosos, d'aquelles que fazem extasiar um pintor e enlouquecer um poeta. Um lume de estreitas em olhos negro-aveludados, que, sob as orlas das longas pestanas arqueadas, ora scismavam húmidos e languidos, ora fulgiam ardentes e imperiosos. Eram elles um mysterio quando os cerrava, eram um feitiço quando os abria. Os lábios desmaiavam coraes, os dentes envergonhariam aljôfares.

Quando o sol lhe illuminava de vitreos reflexos os anneis profusos, que em tumulto lhe desciam a afagar-lhe o collo como um fluido de ébano, quando se lhe distingia fugitiva uma rosa em cada face, não era possivel fital-a sem estremecimento. A estatura senhoril e esbelta assimilhava-se na elegância e flexibilidade à palmeira d'aquellas regiões. Acrescente-se para remate uma riqueza de formas, que poria em risco os sentidos, se a candura do rosto todo innocencias não tornasse a admiração temerária em respeitosa adoração.

Não era menos formosa a alma do que a imagem esboçada n'estes lineamentos. O enthusiasmo e a piedade revelavam na mulher o anjo, e no anjo descido à terra um d'aquelles caracteres excepcionaes que da fragilidade levantam o heroísmo.

Conhecidos estes perfis, tornemos á nossa narrativa.

IV

Idylio da guerra

Era o inimigo esperado a cada hora. A vigilância dos defensores do forte cada vez se tornava mais activa, como de razão. Por especial favor pediu Vieira a António de Lima o posto de maior perigo. Concedeu-lh'o este como a quem já o merecera por seus anteriores feitos. Encarrcgou-se portanto o mancebo de atalaiar e guardar a meia gola do baluarte, que olliaNa de um lado ao porto, e do outro á lingueta.

Passou-se a noite. Às horas de revesar a gente de guarda, como António de Lima viesse convidal-o a tomar algum descanço, pois que em breve careceria de forças, respondeu :

-- E vós, senhor governador, descançareis por ventura ?

-- Eu! -- acudiu este -- a minha obrigação é desvelar-me, que por todos me desvelo.

-- E eu -- redarguiu o mancebo -- o meu posto é este... se todavia m'o permittis, -- acrescentou fazendo a vénia devida.

-- Olhae que não estaes avesado a taes fadigas.

-- Por isso mesmo. Costumar-me-hei a ellas : custarão menos depois.

-- Seja assim, pois que o desejaes. Tão boa vontade injustiça fora recusal-a.

A pesada tarefa de Vieira, uma aturada sentinella, continuou até ao dia seguinte já sol claro.

Fora sempre o commandante dos voluntarios caçador intrépido, endurecido nos trabalhos de todo o género, e estava bem costumado ás vigílias e ao cansaço. Queria dar o exemplo aos que trouxera, e com as primeiras provas elevar-se na estima e conceito dos seus camaradas.

Os raros, que haviam permanecido com o governador, todos elles soldados velhos das companhias de soldo, veteranos como o arcabuzeiro Ayres Gil, admiravam tambem este esforço que em tam verdes annos lhes envergonhava ja a rude experiência. Assim, o mancebo era para todos novo e poderoso incentivo.

Sob a apparencia d'uma compleição delicada, Vieira tinha uma organisação de ferro, e uma vontade ainda mais rija do que elle. Possuía, alem d'isso, para lhe matar as horas da forçada e fadigosa insomnia, o

que aos outros faltava -- um sentimento ineffavel, que lhe trasbordava do coração, e multiplicando-lhe as forças lhe fazia superabundar a vida.

Entre os dois infinitos do firmamento e do mar, com o gemebundo resfolegar das ondas a um lado, e ao outro o sussurro das aguas espelhadas do rio, não se achava elle só n'esle vasto âmbito. Segredava-lhe tudo mysteriosas confidencias, o scintillar das estrellas no céo transparente de uma noite estiva, a murmurante solidão das mattas d'além, o silencio da terra adormecida, apenas cortado pelo grito compassado e rouco das sentinellas. Este singular dialogo do coração com a phantasia, na lingua divina que poucos entendem, e por isso muitos motejam, acompanhava-o enchendo-lhe o tempo sem o sentir.

Cada objecto lhe dirigia uma voz, e cada voz tinha um sentido. O seu caracter, naturalmente poético, eminentemente contemplativo, como todos os caracteres excepcionaes pela elevação do espirito, andava familiar com a natureza, e comprazia-se n'aquellas meditações longas.

D. Maria Cezar, a gentil donzella da casa de Berenguer, era, já se ve, o centro, o objectivo dos seus interiores enlevos. As pródigas imaginações do mancebo davam por moldura àquelle retrato estes amplos e magnificentes aspectos do mar, dos astros, do ermo e da noite.

Bastava para tel-o desperto a imagem da formosa menina. Era o seu ardor de nome e gloria um como accessorio d'aquelle amor. Instigava-lhe este ardente sentimento a ambição de vencer a distancia que os separava. Juntavam-se ao fervoroso patriotismo as esperanças de morrer carpido e honrado, ou de attingir um futuro, em que já se via aos pés de D. Maria, depondo ante elles quanto era e quanto alcançara, porque só por ella e para ella o quizera.

Os que teem experimentado o poder incontrastavel de uma d'estas paixões discretas, que abraçam e inflammam inteira a existência, sabem que sobreexcitação e que força superior ella póde imprimir e alimentar!

Viera o mancebo a amar D. Maria, como esta o preferira entre todos, espontaneamente, quasi sem o saber. Nem tinha pensado em interrogar o coração. Só se manifestara ao principio esta paixão por aquelles diálogos sem palavras, que são muitas vezes a ultima e sublime expressão da eloquência humana. Entenderam-se todavia admiravelmente os dois.

Vieira, abrazado em enthusiasmo, indignado da pusilaminidade que fora causa dos primeiros desastres, e anciando distinguir-se, offerecera-se a Mathias d'Albuquerque para ir soccorrer o forte. Apreciou o capitão-mór o rasgo, e confiou-lhe o commando dos voluntários.

Só depois de obtida esta honra perigosa, quasi mortal, ousou o mancebo patentear claramente a D. Maria Cezar o que lá lhe andava no coração.

E foi ainda sem palavras. Para que?

Vejamos como.

Começava a declinar o dia . Ficava a casa de Berenguer no caminho da ponta das Salinas. Vieira marchava na direcção do Recife, para de lá se encaminhar ao forte. Adiantando-se aos voluntários, que Ayres se encarregara de conduzir, levava a secreta esperança de ver D. Maria antes de se encerrar no posto, d'onde lalvez não voltasse. Como deixaria elle de ter tal desejo em occasião tão decisiva? Bem podia ser que nunca mais tornasse a encontral-a n'este mundo.

Ou fosse mysteriosa coincidência, ou adorável premodilação, D. Maria Cezar, acompanhada de seu pae, o veterano Francisco Berenguer de Andrada, estava sentada á sombra, que lhe cerravam sobre o portal duas ambaubeiras em flor, arvores gémeas, plantadas pela própria mão do velho soldado no dia em que lhe nascera aquella filha única.

Que sei eu se a donzella esperava ou não o mancebo? Correra logo fama, é verdade, de se ter elle offerecido para levar o soccorro, e, como fica dito, era aquelle o caminho. Vão lá porém jurar que não estava ali a gentil donzellinha por uma daquellas casualidades, que amoravelmente se parecem com a Providencia !

Não o jurarei eu, com certeza. Nestas coisas, que são de escrúpulos, não ponho a mão no fogo para affirmar nem para negar. Vou contando só.

Tanto, que avistou Vieira -- e bem de longe que o avistou -- animaram-se as faces á donzeila de um

nacarado luminoso como o arrebol da aurora era madrugada de primavera. Dirieis que o paniculo róseo da flor da bromélia, despegado dos seus braços vegetaes, caira sobre as pétalas legumenlosas de um cacto branco das selvas.

Vieira, por sua parte, o mesmo foi dar com os olhos na formosa menina, que levar machinalmente a mão ao peito para comprimir o coração.

Era como se lhe tivesse parado o sangue com a suspensão dos sentidos.

Não podia haver na realidade mais justificado enlevo, tanto era o poético mimo e o gracioso frescor da linda donzella de Berenguer !

Trajava ella um vestido de fina hollanda branca, avantajando-se pela singeleza primorosa ás amplas saias e vasquinhas de teias e brocados, tão usadas então, e de tal modo adereçadas e custosas, que vieram a provocar as rigorosas leis sumptuárias de Filippe IV. Descia-lhe o vestido a apertar uma cintura de nympha, fazendo-lhe sobresahir graças que dispensavam adornos. Apenas um cabeção bordado, recortado em bicos, disputando alvuras a uma garganta divina, lhe circulava o decote alto e conchegado. Uns punhos eguaes rematavam as mangas largas e tufadas.

A arte innata do instincto feminino suppriria a riqueza auzente, se a mocidade e a formosura não parecessem dar em vez de receber encantos.

Os dezesete annos desta creatura angélica eram o seu mais acabado enfeite. Realçavam-lhe admiravelmente a natural belleza o viçar e florir da juventude.

Frizados em pequenos anneis, emolduravam-lbe os cabellos o puro oval de uma fronte elevada e correcta, como se a tivesse talhado o cinzel de Phydias, e dos lados debruçavam-se-lhe pelas faces em duas ondas luxuosas.

É o toucado o que mais faz brilhar a índole artística de toda a mulher elegante de nascença. Outros ornatos poderá ella dispensar ; este é uma coroa que Deus lhe cingiu, e a que não sabe aproveital-a nasceu degenerada. Quanto a mim, o indicio da plebeidade ou o brazão de nobreza das mulheres está na cabeça -- sem trocadilho. Dou esta idéa de presente aos physiologos.

Sentada á sombra odorífera das suas ambaubeiras, D. Maria Cezar, evidentemente preoccupada e distrahida, misturava com febril precipitação os bilros pendentes de fios de seda e prata. Era uma singular machina a que servia áquelle trabalho de fadas. Consistia n'um semi-circulo estrellado, de pau de parobá vermelha, sobre uma haste comprida de goyabeira do matto, fixada n'um pedestal macisso da mesma madeira.

Os fios variegados eram certamente destinados a produzir alguma daquellas franjas matizadas, que segundo o costume rematavam as fachas, ou bandas, que mais de um cavalleiro cingia, em seu mal, por lhe valerem Deus sabe quantas frechadas e pelouros sobre posse.

Em tal occasião não seria prudente ficar pelo rigor symetrico da urdidura de D. Maria Cezar, que os dedos, muito longe do espirito, continuavam-lhe ao acaso uma obra sem nome.

Era o mancebo conhecido na casado Berenguer, como nas melhores da capitania. Não tinha elle tão pouco tracto do mundo que, passando pela porta, deixasse de cortejar os principaes da familia, mormente achando-os tanto ao pintar.

Berenguer fallou-lhe com grave affeclo, como um soldado que aporta a mão a outro soldado, com poucas esperanças de o tornar a ver. D. Maria, essa nem cumprimentar poude. Ardeu-lhe mais intenso o rubor no rosto de ordinário desmaiado, balbuciou uns murmúrios inintelligiveis, enredou de mais em mais os fios, e tremula de commoção, ou de dôr, deixou cair a franja começada.

Vieira curvou-se cortezmente para apanhal-a ; mas, sem saber como, na turbação em que estava, quebrou o trama, e, esquecendo-se de restituir a obra mutilada, guardou-a no peito. D. Maria tambem não o advertiu. Talvez não desse por tal.

Ha distracções destas, por mais que digam.

O mancebo, como visse já os arcabuzes, e sentisse o passo cadente dos seus voluntários, inclinou-se para se despedir, perdida tambem a voz, e partiu.

Quizera levar ao menos uma memoria, uma relíquia, para o alentar no perigo !

Que alma dedicada e sensível nâo tem já conhecido uma d'essas innocentes superstições? Quem não sabe como na ausência fallam esses objectos inanimados? Quem ignora como elles são guardados e venerados no recatado culto do coração? Sorri sarcasmos a estas puerilidades o frio scepticismo das almas esterilisadas. Mas essas mesmas vibram o epigramma contra um passado de que teem saudades, porque o seu soberbo presente, bem o sentem, vale muito menos.

Por horas de ante manhã, quando as sombras se condensam, houve quem visse o mancebo tirar do seio o que quer que fosse a branquejar nas sombras com lentissimo alvor, e chegal-o apaixonadamente aos lábios, e elle permanecer depois immovel no seu posto com redobrada vigilância até raiar clara a manhã.

A segunda noite correu deste modo sem o minimo incidente.

Os hollandezes não appareciam. O governador de impaciente umas vezes tinha tentações de os ir procurar á cidade, outras propendia a duvidar da sua existência.

Novos personagens

Como o sol já fosse alto, incandescendo os ares, o nosso amigo Ayres Gil, surgindo do corpo do forte, e subindo ao terrapleno da cortina do sul, saudou o dia com um bocejo capaz de desarticular as mandíbulas a um cyclope, e estirou os braços para o céo como se quizera arrancar um cometa pela cauda. O arcabuzeiro levantava-se de dormir um d'aquelles incomparáveis somnos, que Deus na sua admirável providencia outhorga ao homem vigilante como indemnisaçâo das fadigas incógnitas ao vulgo.

Desde a alvorada até ás dez da manhã Ayres Gil só revelara a sua existência n'este baixo mundo por um concerto de trompa nasal, tão sonoro e estrepitoso, que afugentara espavoridos os seus camaradas

de quartel, pouco lisongeados de o terem por visinho. A verdade obriga-nos a dizer que o bom de Ayres correspondia com estóica indifferença a esta ingratidão dos homens.

Ayres Gil, com tanta experiência, não ignorava as innumeraveis maneiras de saltear por entrepreza uma praça. Fizera pois, inspirado da prudência, o que Vieira tinha feito por devoção patriótica entretendo meditações de namorado. O honrado arcabuzeiro entendia as paixões por outro modo. Mal anoitecera, em vez de oscular a minima reliquia de franja tecida por mãos adoradas, abraçara-se fervorosamente a um bojudo pichel, de que andava sempre munido, e depois de lhe pregar quatro sorvos, que invejara o escudeiro Sancho, fôra-se a espalhar cuidados para a banqueta do parapeito, no angulo opposto ao que Vieira occupava,

Ayres não estava de serviço n'essa noite ; vigiava por curiosidade. Era homem extremamente curioso Ayres Gil.

Chegando á muralha começou a ensaiar o systema de Pythagoras n'um passeio lento, como de pessoa que não tem outra coisa que fazer senão tomar o fresco por desfastio. Não se cuide porém que se entretinha a fazer a nomenclatura das estrellas, nem a escutar a poesia dos echos nas maltas virgens. Para divertir a imaginação, recapitulava mentalmente a diversidade e quantidade que podia ler bebido de toneis de vinho nas adegas dos Fronteiros, de bar-

ricas de cerveja com os reytres de Alemanha, e de cabaças de agua-ardente de palma com os nayres de Cochim nos convívios clandestinos em que todas as religiões ali se fundiam na de Baccho. N'estes exercícios peripatheticos, à ida e a volta parava interrogando escrupulosamente os quatro pontos cardeaes. Satisfeito d'este minucioso exame, seguia o seu giro em altitude indolente, continuava o interrompido calculo já augmenlado de addições soffriveis, e concluía a fínal que o estômago do homem era um vaso de diminutíssimas dimensões.

Este desenfado do mosqueteiro durou desde o anoitecer até ao quarto d'alva.

Chamava elle a isto «guardar-se por sua conta.» O governador, que lhe conhecia o génio singular, nada absolutamente se inquietava com estas excentricidades, como agora se diz. Ayres Gil padecia o notável achaque de não poder dormir de noite, quando presentia o inimigo perto ; muito mais quando as muralhas das fortalezas, em que se achava de guarnição, lhe inspiravam uma confiança medíocre, e sob este ponto de vista o forte de S. Jorge tinha a mortificação de merecer ao arcabuzeiro o mais soez conceito.

De dia vigiavam todos, dizia elle, e sobre todos a claridade do sol, que não dava azo acolherem-n'o de súbito.

De dia conseguintemente era oulra coisa. Tanto pois que tinha occasião caía como pedra em poço, e rivalisaria com o próprio Epiménides, se não foram as obrigações rigorosas do serviço.

Dando a sua volta pelo terrapleno, para ver sempre se occorria novidade, procurava o nosso Ayres restituir a perdida flexibilidade ás juntas entorpecidas, quando, estirando o pescoço por cima do parapeito, acabou n'uma exclamação de jubilo um segundo bocejo ainda raais vigoroso que o primeiro.

Do lado da praça apparecia nova caravana. A affluencia d'ali para o forte havia-se convertido em romaria.

Foi immedialamente chamado António de Lima. O governador, verificado o successo, assentou lá de si para si, que, se o recrutamento continuava d'esta forma, acabaria a guerra com os hollandezes tomando-lhes Amsterdam.

Desta vez o armamento, com ser menos numeroso, não era menos importante. Umas tantas canoas carregadas subiam pelo rio com a maré. Seguindo a lingueta acompanhava-as por terra uma escolta de oito homens, sete dos quaes completamente armados e equipados.

As canoas vinham atacadas de munições de guerra e de bocca, entre as quaes figuravam com distincção algumas vasilhas de vinhos do reino, que o previdente capitão-mór extrahira dos armazéns commerciaes do Recife.

Ayres Gil notou esta circumstancia como particularmente auspiciosa.

A força principal da escolta compunha-se de uns cinco mosqueteiros do numero, acquisição preciosa em tal conjuntura pela experiência que elles tinham da guerra, e pela sua pericia nos exercicios de arma tão eminentemente util onde tanto minguava uma boa collecção de canhões e colubrinas como seria mister. Acompanhava os mosqueteiros um alemão de seis pés de altura, espadaúdo e ruivo, com o rosto da côr do cabello. Vinha este fazer o officio de condestavel da artilheria, como grande pratico e muito avisado que era no movimento e serviço d'ella.

Em toda a sua vida e viagens, Ayres Gil não tinha ainda encontrado competidor similhante com o cangirão á bocca. A presença do alemão esfriou por tanto consideravelmente o enthusiasmo, que se apoderara do arcabuzeiro à vista das bemaventuradas vasilhas. O seu magnânimo caracter era incapaz de baixos ciúmes: antevia porém uma concorrência perigosa no consumo do género.

Commandava a escolta o alferes do governador, moço da edade de Vieira, pouco mais ou menos, que tinha ido à Bahia com recados do capitão-mór, e que forçara as marchas para voltar a tempo de acompanhar o seu capitão de bandeira.

Mathias de Albuquerque remettia quanto conseguira colligir, principalmente toda a polvoia que tinha disponível. Mantas , falcões e morteiros, tão necessários para defender os sitiados e offender os sitiantes, não os mandava porque não os havia. As machinas, que eram de uso em taes casos, faltavam egualmente, como se a imprevisão fora antigo sestro portuguez. Entretanto aquelles subsídios -- e, posto não serem grandes, eram utilissimos e de relevantíssimo préstimo -- enviava-os o capitão-mór ao governador com muitas palavras de carinho e esforço.

Antonio de Lima não carecia de ser animado.

Além do alemão, dos mosqueteiros e do alferes, vinha na comitiva um individuo singular pelos seus modos e pelo seu todo. Era elle um homem de tal modo esgrouviado, macilento e lastimoso, que mais do que pessoa figurava sombra.

A sua apparencia encolhida e pacifica flagrantemente contrastava a altitude denodada e bellicosa dos seus camaradas. O capitão mór inculcava-o todavia como pessoa summamente proveitosa. E era-o com effeito, pois que, tendo exercido no reino a profissão de fogueteiro, podia servir de muito na preparação e disposição dos artifícios que lhe fossem ordenados, como lanças de fogo, e outras invenções usadas em circumstancias análogas.

Daqui se vê como o diligente Mathias de Albuquerque apropriava todas as aptidões e préstimos aos fins da defeza commum.

Foi a escolta reconhecida com as formalidades da véspera, e, como o forte ficava na proximidade do porto, as canoas desembarcaram as provisões quasi ao pé da porta. Três horas depois estava tudo recolhido.

A guarnição subia já a trinta e sete homens, sem incluir o estirado fogueteiro.

Ayres Gil, mal poude ser senhor de si, foi-se direito ao pyrotechnico recem-chegado, e apertou-lhe a mão com uns extremos de amisade, que lhe torceram a cara em dolorosos esgares.

-- Com que, por cá também, mestre Marçal! -- disse-lhe alvoroçado.

Marçal era o nome do fogueteiro.

Mestre Marçal respondeu com um suspiro de forçada resignação, que indicava sobejamente quanto era involuntária aquella sua heroicidade.

Mestre Marçal, cumprindo sentença de degredo, achava-se habitando Olinda quando os hollandezes a invadiram. Como de passagem levo referido, a noticia do desembarque e marcha do inimigo pôz a cidade em tal consternação e borborinho como não é difficil presumir. Nas primeiras horas, a população sobresaltada vacillara entre as mais oppostas resoluções, ora correndo ás armas para resistir, ora junctando o mais precioso para se retirar, até que a maior parte, aterrada com as novas da derrota do Rio Doce, se metteu precipitadamente pelo matto.

Em abono do infeliz desterrado deve dizer-se que por sua parte nem um instante hesitou. Mestre Marçal nunca pensara senão em fugir. Justiça é esta que a historia imparcial lhe não pode recusar.

N'uma só coisa houvera duvida no seu espirito : fora no modo de executar a fuga.

Mestre Marçal chegara á capitania na própria caravella que trouxera o capitão-mór ; isto é, havia pouco tempo. Por consequência nada ou quasi nada conhecia ainda o paiz.

Em Lisboa tinham-lhe recheado a cabeça de medonhas anecdotas de giboyas, onças e jaguares.

Como prudente que era, o mestre nunca saíra duas braças fora da povoação. Assim, não só ignorava completamente os caminhos, mas conservava as mais terriveis apprehensões acerca do numero e qualidade dos animaes carnívoros, que via pularemlhe aos bandos nos seus sonhos agitados.

Os tapuyas anthropophagos constituíam na historia dos seus terrores um capitulo separado, e ainda mais negro que o das feras.

Diz-se de um homem naturalmente afouto e bellicoso : «gosta do cheiro da pólvora !» Vão lá fiar-se em rifões !

Morria-se mestre Marçal por este excitante perfume, e pode-se todavia jurar que não descendia da raça dos Nun'Alvares e Antonios de Faria. Bem que desgostos particulares lhe tivessem amargurado a existência, a morte, sob qualquer forma que se lhe apresentasse, achava nelle uma antipathia invencível . Alegrava-o a chamma , deleitava-o a crepitação, regosijava-o o estampido; salvo na bocca de uma bombarda, canhão, mosquete, ou coisa que o valesse.

Quando todos fugiram, mestre Marçal fugiu também, e até primeiro que nenhum. Na confusão porém cada qual tratava de si. O mestre achou-se só. Como se não atrevesse a embrenhar-se no matto á imitação dos outros, resolveu na sua alta sabedoria transportar os leves penates para o Recife, cujas estacadas, com a visinhança e protecção do forte avançado, lhe inspiravam muito mais confiança do que uma viagem de exploração pelas florestas virgens, onde se arriscava a travar conhecimento com os seus incógnitos e tremendos habitadores.

Ponderava lá comsigo o mestre que, se o forte viesse a render-se, sempre haveria occasião de fugir com menos precipitação.

Dito e feito.

A resolução que lhe parecera a summa prudência, fora-lhe justamente maior desastre.

Conhecia já o capitão mór a sua historia e as suas aptidões, por ter navegado com elle desde Lisboa. Vendo-o no burgo, mandou-o chamar, e disselhe n'aquelle tom positivo que não admitte réplica :

-- A ponto nos chegastes, mestre : preparae-vos para aprestardes obra do vosso officio.

A estas palavras imaginou o bom do fogueteiro ver abrir-se o sétimo céo. Ao fim de tam longas perigrinações lograva entrar novamente no exercido da arte predilecta, que a pátria nâo soubera apreciar. E, para maior satisfação, com o pleno consenso da auctoridade. Na sua lógica limitada, mestre Marçal concluiu que os hollandezes tinham evacuado Olinda, e lhe encommendavam o festejo da fausta nova. O mérito perseguido era em fim estrondosamente rehabilitado.

Em quanto estas inferências se precipitavam em jorro do bestunto do mestre, o capitão-mór continuou a fazer-lhe algumas advertências, concluindo com esta ordem fulminante :

-- D'aqui a uma hora heis-de-me estar no forte.

-- No...?

-- No forte, disse.

O fogueteiro cuidava não ter ouvido bem.

-- Qual forte? -- insistiu timidamente, para se tirar de duvidas.

-- No forte que os hollandezes virão atacar por estes dias: sois lá preciso -- observou-lhe benevolamente Mathias de Albuquerque.

Mestre Marçal por um triz não foi ao chão com o sobresalto. Estava no seu destino passar a vida entre alvoroços e terrores. Aquella inopinada esperança, que lhe inflamara o enthusiasmo, caiu subitamente em temperatura muitos graus abaixo de zero.

Com voz sumida e mal segura começou uma obsecração pathetica e sentida relativamente ao estupendo absurdo, e aos numerosos inconvenientes, de o encerrarem a elle, ou de se encerrar alguém, entre quatro muralhas.

Mathias de Albuquerque era, como Henrique IV, inimigo dos discursos longos. No melhor da oração cortou-lhe as azas á eloquência, voltando-se para um sargento do numero, e dizendo :

-- Olhae aqui. Pois que este homem não quer ir para o forte, como se não podem ter boccas inúteis, deitem-m'o do outro lado no matto.

E virou as costas.

O mestre enguliu o resto do discurso, que se lhe petrificou de terror nas entranhas.

Meditando maduramente a alternativa fatal, reconheceu que por fim de contas não havia no matto muralhas que o abrigassem das feras.

Tomou depois o pulso ao seu pessoal valor, e averiguando que não tinha a menor vocação para imitar os antigos belluarios, concluiu optando decididamente pelo forte. Os hollandezes ao menos eram homens.

Feitas estas salutares reflexões, foi-se ter com o sargento, pedindo-lhe :

-- Que da sua parte declarasse ao senhor capitãomór como estava resolvido a cumprir as ordens de s. s.a, e a fazer parte da guarnição do forte de S. Jorge.

Mathias de Albuquerque mandou-lhe dar em continente um morrião e um arcabuz. Estes presentes, o ultimo sobre tudo, pareceram ao mestre de uma prodigalidade que orçava por desvario.

Mal saiu do burgo, o seu primeiro cuidado foi pedir a um negro das canoas que lhe levasse o arcabuz. Quanto ao morrião, sendo arma puramente defensiva, accommodou-se com elle. Como lhe caía nos olhos de largo que era, particularidade fastidiosa, aprumou-o na testa almofadando-o por dentro com dois lenços de canequim, presente malfadado da esposa que deixara inconsolável na metrópole.

N'esta disposição pouco militar, o novo elmo de Mambrino, sobreposto em alpendre ao rosto escaveirado e amarellento do mestre, dava ares de um apagador esquecido sobre uma vela de cera virgem.

Conservava-o todavia, o precavido fogueteiro, não só como preservativo que podia ter sua utilidade, senão também com o reservado intuito de o converter em alguidar para uso das abluções matutinas.

Mestre Marçal era homem regrado, e tam essencialmenle dado a economias, que é verdadeira lastima não viver hoje para ser convenientemente aproveitado na politica militante... e muito sincera .

Sem embargo d'aquelles cálculos domésticos, tornavam-se-lhe tanto mais carregadas as interiores cogitações quanto mais se aproximava ao forte.

Entrando ali parecia uma victima conduzida ao supplicio.

O resto d'este dia correu ainda como tinha corrido a véspera. Os hollandezes iam passando ao estado de mytho.

VI

Pylades e Orestes!

Mestre Marçal não largava o arcabuzeiro. Estes dois caracteres tão oppostos e contrários sympalhisavam mutuamente ; isto é, a sympathia do arcabuzeiro manifestava-se de ordinário por um diluvio de pragas capazes de rachar o céo ; a sympathia de Mestre Marçal tinha por incentivo a dependência e uma grande dose de medo.

Psychologistas ha que julgam naturalissimas estas affeições entre duas índoles essencialmente diversas. Dizem elles que, possuindo uma o que falta a outra, mutuamente se buscam, porque mutuamente se completam. A ser assim, faltando muito a mestre Marçal para ser Ayres Gil, e a Ayres Gil não menos para ser mestre Marçal, a sua união era com effeito de uma lógica irreprehensivel.

Fosse esta ou outra a razão, em mestre Marçal podendo, onde estava o arcabuzeiro estava elle. Pythias não mostrara tanto extremo a Damon, Pylades não se dedicara tão cabalmente ao seu hospede Oresles, Patroclo estremecera incomparavelmente menos o invencivel Achilles. Envergonhava o mestre todos estes exemplos da antiguidade, principalmente dês que estava no forte. O próprio fiel Achates houvera de ceder-lhe a palma.

Ayres servia-lhe de patrono e protector. E a protecção de Ayres era cousa preciosa para homem da tempera e feição de mestre Marçal, que tinha o singular privilegio de attrahir, onde quer que se achava, prodigiosa quantidade de chufas e de chascos mais ou menos salgados.

Mestre Marçal estava costumado; mas por fim de contas ninguém se resigna a uma apupada eterna. Nos apuros frequentes, a que o sujeitavam as suas prendas e figura, achava no arcabuzeiro o seu mais accessivel refugio.

Com esta explicação vulgar poderá talvez dispensar-se de maior incommodo a psychologia.

O governador do forte de S. Jorge, já se terá entendido, não era mais inclinado do que Mathias d'Albuquerque á oratória intempestiva. Emquanto o arcabuzeiro se andava em exercicios com os voluntários, mestre Marçal foi convidado a preparar e armar com toda a diligencia, por uns moldes riscados pelo governador e pelo condestavel, certas combinações e machinas de fogo.

A fallar a verdade mestre Marçal, pensando, preferiria fazer outra coisa. Momentos havia em que chegava quasi a esquecer a critica situação, em que se achava, com o alvoroço de trabalhar no seu presado officio depois de tantas vicissitudes. N'outros, porém, sentia um calafrio agudo percorrer-lhe a espinha dorsal, prevendo o mortífero destino d'aquellas peças, cuja insólita forma e extravagante composição reputava barbara infracção dos mais sãos preceitos.

Mestre Marçal via com verdadeiro horror profanadas e revolucionadas as regras tradiccionaes da profissão. Os foguetes, que no forte lhe mandavam preparar, tinham traves por cauda e levavam na cabeça um ferro de alabarda, accessorio que sempre julgara perfeitamente dispensável.

Em presença de similhantes disparates, o desorientado mestre, não podendo vindicar a arte ultrajada, dizia com os seus botões:

-- Que se na torre de Babel se tinham fabricado foguetes, deviam de ser naturalmente assim.

N'um accesso de generosa indignação contra os sacrilégios, que o forçavam a commetter, ainda ao principio tentou arriscar algumas observações. António de Lima, por sua desgraça, era mais testudo do que o próprio capitão-mór. O mestre, já experiente no trato dos homens de guerra, embainhou em continente as reflexões começadas, e continuou cabisbaixo a obra, lavrando um protesto mental contra a degeneração dos tempos.

Scismava desagradavelraente Mestre Marçal com os mixtos singulares, e as despropositadas cargas, que o faziam deitar nos foguetes e mais artifícios.

Os seus sentimentos humanitários orçavam pelos de um philantropo inglez, ou anuncio de caridade apparatosa. Não o affligia excessivamente o mal, que de taes manipulações podia resultar aos scismaticos e hereges, como chamava, aos hollandezes com piedoso patriotismo. O mestre, porém, tinha meditado profundamente a antiga máxima : «no que cuidaes, cuidamos. » Previa, portanto, que o inimigo não deixaria de retribuir estes mimos com outros eguaes.

Posto que propendesse a ter no mais soez conceito os seus rivaes estrangeiros, reflectia que, sendo os hollandezes gente de commercio e abastada, não olhariam elles a mais ou menos uns quintaes de pólvora, -- sem contar o resto, -- a fim de proporcionar as suas cargas à generosidade e exuberância das do forte.

Esta idéa, idéa pavorosa, innundava-o de suores frios, arripiando-lhe no craneo ponteagudo os restos do cabeilo, que fora farto nos seus tempos. O maior cuidado de mestre Marçal não era tanto pelo que ia como pelo que podia vir.

Se alguma vez o amor próprio se lhe doía do juizo que os pyrolechnicos hollandezes podiam fazer das monstruosidades a que assim o constrangiam, este dissabor era uma insignificância em comparação de outros receios.

Á hora do jantar, o governador, não querendo extenuada a guarnição, mandou dar descanço aos voluntários. Então se renovou ao mestre o martyrio das vaias. Os moços da ordenança, ainda não costumados áquella structura gothica do mestre, entenderam que em boa consciência não deviam desaproveitar tão propicia occasião de alegrar nos ócios da sesta os enfados do serviço.

-- Ih ! é um cipó mettido n'um sacco ! -- dizia d'ali um d'elles.

-- Qual ! é um cabo de foguete enfiado n'uma aljuba ! -- acudia outro, fazendo, para maior mortificação, deprimente refferencia á profissão do mestre.

-- São as ultimas modas do reino? -- perguntava-lhe terceiro, que tinha seus fumos de galan e bem ataviado.

-- Olhae, Pêro, atalhava um aspirante a feitor -- temos lá no Gorjau cannas doces mais grossas do que isto.

«Isto» era mestre Marçal.

-- Deixae-os fallar, mestre Estouro -- ponderou, com ares de quem lhe dava consolações, um que presumia de discreto -- deixae-os fallar. De mim vos digo que me inclino diante de vossos primores. Os de Olinda ficarão encantados d'elles quando os virem. Estou que heis de ser a gloria d'esta defensão contra os hoilandezes. .. se é que ha hollandezes, mestre!

Esta bateria de apodos só calou o fogo com a intervenção, maliciosamente demorada, do arcabuzeiro. Mestre Marçal respirou.

Assim se passou o dia.

Á prima noite, Ayres Gil teve por companheiro nas caricias ao bemavenlurado pichel a micer Arnoldo Schwartz, o novo condestavel da artilheria.

No forte haviam já chrismado o alemão em Arnau Estuardo, segundo o uso, então frequente, de aportuguezar todos os nomes. Hoje faz-se exactamente o contrario -- nos nomes e nas coisas.

O pichel de Ayres, apesar da sua valente capacidade, não poude resistir aos esforços combinados de dois athletas d'esta força. A provisão de oito dias foi-se em cinco minutos. Depois de alguns alentados tragos de ambos, a vasilha, ainda no terço, empinada sobre os ávidos lábios de micer Arnau, deu a alma a Deus em menos de um credo. O arcabuzeiro, fazendo as honras da hospedagem, cedera a vez da cortezia ao alemão. Com as sedes atrazadas que trazia, tomou este o cumprimento ao pé da lettra, e só restituiu enxuto de todo o vaso, que podia muito bem passar por um cântaro.

Inclinato capite redit spiritum

Tinha o mancebo em Lisboa estudado latim nos Geraes, e não perdia ensejo de mostrar as suas superioridades de erudição, ainda que applicasse os textos com mais chiste do que reverencia.

Ayres teve remorsos da sua continência da noite antecedente. D'ali por diante ficou entendendo que as máximas philosophicas da previsão constituiam o mais insigne despauterio d'este mundo.

Terminadas as libações com a total extincção do liquido, Ayres, sentindo-se em boas disposições, e confiando na providencia das pipas, que vira entrar de manhã, foi-se, como na véspera, para o seu observatório a continuar aquelles passeios hygienicos em que já o admirámos.

Mestre Marçal, intimado por elle, seguiu-o com a humildade de quem ali tinha as suas esperanças.

Todo o observador que n'estas occasiões attenlasse no mestre, havia de notar um phenomeno, que por sua parte os camaradas do fogueteiro não deixavam correr sem commentarios . Estirado como era , mestre Marçal, quando por alguma circumslancia imperiosa tinha de passar pelas muralhas, sabia taes artes de encolher e retrahir a sua longa estatura, que nunca excedia uma pollegada acima dos parapeitos. N'estas localidades preferia geralmente a linha horisontal: a vertical repugnava-lhe de modo invencível.

Via-se que mestre Marçal, ao revez de António de Lima, nada absolutamente duvidava da existência dos hollandezes.

O arcabuzeiro, não tendo como Vieira nenhumas razões particulares de se deliciar na solidão, pensara que mestre Marçal serviria para lhe variar e espairecer um pouco a monotonia da vigília.

Pouco depois, micer Arnau e tres mosqueteiros, camaradas antigos de Ayres, seguiram a mesma direcção e foram juntar-se aos dois.

Mestre Marçal, descançado á sombra do seu amigo, enroscou-se no angulo da banqueta, logar que suppunha menos aceessivel. Como não soubesse com certeza se teria muita occasião para dormir, dispunha-se com voluptuosidade a saborear n'um bom somno a indemnisação de tantos trabalhos.

De todas as possiveis idéas do mestre, esta era justamente a que menos quadrava ao arcabuzeiro. Ali se confirmava sem replica a trivial sentença: «que a protecção dos poderosos tem às vezes seus inconvenientes!»

-- Eh ! lá ! mestre Marçal ! -- gritou Ayres, sacudindo-o com a ponta da bota, de um modo, que, para quem não esTivesse costumado ás suas maneiras, podia muito bem passar por uma chuva de pontapés -- Eh ! lá, mestre Estouro ! Ainda não ha um quarto de hora que anoiteceu, e estaes-me já ahi estendido como um arcabuz sem corda.

O simile de Ayres não era perfeitamente exacto. Mestre Marçal tinha-se feito uma bola.

Estava o fogueteiro vae não vae a adormecer. Com o enfado da interrupção ainda a principio grunhiu alguns queixumes. Que remédio porém se não resignar-se ? Esticou então os dois fuzos, a que tinha a basofia de chamar as suas pernas ; e, instado pelas reiteradas intimações da bota, que não era de setim, levantou para o amigo a cara amarella, ornada de um sorriso mais amarello ainda.

-- Vamos, homem ! -- continuou Ayres -- Estaes em companhia de amigos.

Mestre Marçal dispensava perfeitamente os amigos da companhia ; mas, como versado nos usos do mundo, alongou o sorriso de orelha a orelha em modos de satisfação e complacência.

-- Contae-nos, para nos fazer passar o tempo, o que andava de novo lá pela corte quando partistes, coisa que valha a pena para gente christã.

Ayres Gil sabia que vibrava uma corda sensivel, como actualmente dizemos. O que a mestre Marçal parecera sempre mais novo na corte, e o que em todos os tempos julgara mais curioso e digno de attenção, era o que particularmente lhe dizia respeito.

Vendo que estavam todos dispostos a seroar á sua custa, o mestre fez da necessidade virtude. Sentando-se na banqueta, consolada a vaidade com a importância de narrador official, começou a epopêa das próprias aventuras, commentada pelas grozas de mein goth ! com que o alemão disfarçava os bocejos pertinazes.

No terrapleno dos dois baluartes, e da cortina que olhava para Olinda, tinha o governador feito levantar, parallelos aos parapeitos, uns espaldões grossos de terra bem calcada, com seus contrafortes para os tornar mais sólidos. Frequentes aberturas, em forma de portaes esguios, facilitavam a prestes circulação da gente, e os movimentos, quer de serviço, quer de resguardo.

Supria elle assim as mantas e outras defezas, preparando abrigos á guarnição contra os projectis contrários.

Foi sempre dever dos chefes militares evitar quanto possível os sacrifícios inúteis, e mais ainda os sacrificios de sangue. António de Lima sabia egualmente prevenir os damnos e arriscar a tempo.

Com antecipação haviam sido de espaço em espaço arrumados, n'estes contrafortes, feixes d'armas de todo o género e feitio, assacaladas e apparelhadas para uso immediato.

Os três mosqueteiros e o alemão tomaram posição no contraforte mais próximo, fazendo roda ao mestre. Ayres, posto haver suggerido a lembrança que fizera de mestre Marçal o quasi Tyrteo da guarnição, não se tirou do parapeito.

Na extremidade do baluarte o vulto immovel de Vieira attestava que, se aqui se predispunha a vigília, ali era persistente o cuidado.

Vieira, como Ayres, seguia com particular attenção os progressos da nebrina, que ao sol posto se começara a levantar do mar e se diffundia pelo isthmo carregando-se mais que o ordinário. O engenho e intuição do mancebo adivinhavam o que a experiência fazia presentir ao veterano.

Mestre Marçal chegou por vezes a interessar os ouvintes com a narrativa dos lances, em que no reino o pozera a rigorosa prohibiçâo de Castella relativa aos artifícios de fogo, seu remédio e seu officio. Não os compungiu menos com a historia, que o tornara infractor doesta lei, e, a final, summariamente o levara á cathegoria de criminoso e á condição de degredado. Commoveu-os mais que tudo com as lastimas e exconjurações domesticas, desafogo tardio ás estreitezas do captiveiro incomportavel que na pátria lhe armara esposa despótica.

O mestre, commettendo a temeridade d'estas queixas além do oceano, ainda de vez em quando olhava com terror, não lhe surgisse ali a consorte magestosa e irritada. Não poderia elle mesmo dizer qual receiava mais, se esta visão, se os hollandezes !

Grandes eram em verdade os altractivos oratórios e biológicos do mestre; mas a variedade das suas aventuras não lograva supplantar de todo a fadiga da trabalheira, que prostrava o auditório.

Os hiatos do condestavel pegaram-se com irresistivel contagio aos mosqueteiros. Na primeira e segunda hora a actividade de Ayres, que vigiava a um tempo o areal e o narrador, ainda conseguiu demorar a dispersão, espertando a palestra apenas esmorecia. Podia-se pensar que tinha suas razões para isso, tanto era o empenho que mostrava. Este mesmo esforço porém veiu a tornar-se insufficienle, e a derrota começou.

Não é fácil dizer se cançou o historiador ou a curiosidade. A verdade é que um após outro se foram esgueirando o condestavel, e um, e outro mosqueteiro, deixando affrontosamente em meio o conto do mestre.

Como diz o poeta francez : «acabou o combate à falta de combatentes.»

Mestre Marçal , falhando a instigação do seu amigo, perdoou magnanimamente a injuria aos desertores, e não será temeridade acreditar-se que interiormente a agradeceu. Ainda o ultimo ouvinte não recolhera a quartéis, já elle fazia inveja aos sete dormentes.

Ayres, não deu, ou fez que não deu, pela retirada dos companheiros, nem pela mudez que se lhe seguiu, tão exclusivamente se absorvera nas suas investigações. Substituira-se-lhe á anterior loquacidade uma preocupação profunda. Podéra julgar-se que adormecera também encostado ao parapeito, se não fora o ávido impulso com que de vez em quando se estendia e debruçava, como para melhor interrogar as trevas.

VII

Tríplice atalaya

Seriam as duas da madrugada, hora de pesadume e somnolencia, em que frequentemente o corpo vence o espirito. Só os roncos do mar invisível resoavam tristemente na calada da noite.

A névoa era cada vez mais espessa. Confundiam-se o porto, a restinga e o rio, toldados por este véo opaco e denso. Quasi se não podia differençar vulto a poucos passos de distancia.

Ayres Gil cada vez fitava mais attentamente os olhos, cada vez applicava com mais cuidado o ouvido. Agora prescutava immovel o silencio e as sombras ; logo se ia em passo lento ao longo da cortina a continuar de diversos lados as obstinadas pesquizas.

De tempos em tempos, o arcabuzeiro coçava o sitio onde devia ter a orelha direita, que lhe havia ficado na alabarda de um sargento zellandez nos polders de Anvers. Gesto era este, que em Ayres indicava o mais subido grau de apprehensão.

N'uma d'aquellas idas e vindas, como chegasse ao angulo da banqueta em que mestre Marçal repousava á feição dos bem-aventurados, achou ali Vieira, que lhe acenou com a mâo. Estacou de repente o arcabuzeiro, e, dissimulando o busto com a muralha, encostou acceleradamente o ouvido á borda do parapeito.

Vieira estava estatua.

Passaram-se alguns segundos. Como que Ayres concentrava todas as suas faculdades n'esta singular auscultação.

Concluído conscienciosamente o exame, o arcabuzeiro voltou-se, e fazendo da mão esquerda um anteparo á bocca, vibrou rapidamente estas palavras ao mancebo :

-- Parece que afinal os temos comnosco.

-- Parece que sim -- respondeu serenamente Vieira.

-- Olhae se as sentinellas dão signal. Vão lá íiar-se! -- proseguiu Ayres em voz submissa.

-- Tem pouca pratica, -- observou o moço no mesmo tom. -- E talvez seja melhor assim.

-- Pois que nós vigiamos.

-- Ide avisar o governador.

Dizendo, Vieira encostou o mosquete á muralha, e foi direito a um dos feixes de armas de que já se fez menção. Entre estas escolheu um pique lancinante, que tinha na base da lamina um como arpeu, robusto e afiado á feição dos croques dos nossos barqueiros do Tejo.

Ayres Gil contemplava-o com certa curiosidade.

-- E o vosso mosquete? -- disse indicando a arma que o moço arrumara.

-- Para que? -- redarguiu Vieira apontando para a densidade do nevoeiro.

-- Demónio de rapaz! -- murmurou Ayres com uma expressão admirativa, que encerrava o mais cabal panegyrico.

N'isto ouviu-se um ruido ténue e indistincto, que se podia julgar o sussurro do vento no arvoredo.

-- Avisae o governador -- repetiu Vieira instando.

Ayres disparou em mestre Marçal um pontapé capaz de estoirar um búfalo.

-- Hein ? -- respondeu, abrindo um olho, o mestre costumado a estes modos do arcabuzeiro.

-- Ide-me jà dizer ao sr. governador que temos aqui os hollandezes, para que faça tanger alarma.

-- Que hollandezes? -- perguntou mestre Marçal estremunhado.

-- O inimigo, bruto! -- assoprou-lhe ao ouvido o arcabuzeiro para ver se o resolvia.

-- Onde está o bruto inimigo? -- resmungou machinalmente o mestre, abanando a cabeça e voltando-se para o outro lado.

-- O inimigo que nos vem atacar! -- rugiu Ayres entre dentes, levantando-o desesperadamente pelo gasnate.

Mestre Marçal comprehendeu e despertou de súbito.

-- Ai! Jesus! -- murmurou com a voz estrangulada.

E recaiu meio apopletico de terror.

-- Alimária ! -- rematou Ayres arredando o infeliz fogueteiro com supremo desdém.

Depois continuou para Vieira :

-- Não quizera deixar-vos aqui só em tal occasião; mas é forçoso.

-- É. Ide.

Ayres foi precipitadamente. Mal tinha dado alguns passos, sentiu no hombro uma pesada mão calçada de ferro.

Era o capitão António de Lima em pessoa.

-- Aonde vaes? -- perguntou este.

-- Ia prevenir- vos.

-- Estou prevenido. Cada qual ao seu posto. Nem falla. Racho o primeiro que me boqueja uma palavra.

O arcabuzeiro repetiu comsigo :

-- Demónio do governador!

A formula encomiástica não era menos significativa a respeito de António de Lima do que o fora com referencia a Vieira.

Olhando para as rampas dos terraplenos, viu, subindo em diversas direcções, os homens da guarnição armados e promptos. Marchavam estes aos pontos antecipadamente designados, silenciosos como espectros.

A admiração do veterano ia em escala ascendente. Tinha visto muitas guerras ; nenhuma assim.

Nem só Ayres e Vieira vigiavam.

António de Lima também não dormia. Não era porém fácil saber onde estava, porque estava em toda a parte.

As sentinellas passeavam tranquillamente a descoberto.

Ayres tinha razão : não davam o minimo signal. Tão perfeita quietação induzia a acreditar n'uma confiança e desprevenção absoluta. Se dentro os mais experimentados assim o haviam entendido, o que faria fora !

António de Lima bem sabia que não arriscava aquelles homens, apparentemente offerecidos em alvo ao inimigo. Aproximando-se os expugnadores com o intuito evidente de surprehenderem o forte, não disparariam um só tiro. Todo o estrondo seria certamente um aviso, e elles eram os mais interessados em evital-o.

Pouco a pouco o rumor longiquo e vago, que já se ouvira, foi-se tornando mais aturado, mais regular e perceptível. Dissera-se que as ramadas dos cajuaes se agitavam soturnas sob o impulso da tormenta.

A noite porém estava abafadiça. Nem aragem bafejava.

Entretanto uma tarja profunda, mais escura no meio da escuridão, parecia condensar progressivamente as sombras ao rez da terra em frente do forte.

VIII

S. Jorge pelos Brazis!

Sentiu-se depois um como ranger de objecto pesado que se fixava na areia. Era apenas a suspeita d'um som.

Um dos voluntários, curvados na banqueta por ordem do governador, quiz erguer-se para observar.

O condestavel já ia chegar fogo ao ouvido do canhão que tinha ao lado.

Um revez da espada de António de Lima sacudiu-lhe a corda tão rente dos dedos, que micer Arnau, indo rápida e silenciosamente apanhar o morrão, foi examinando pelo caminho se tinha a mão no seu logar.

Com o outro braço o governador dobrou o voluntário sobre os joelhos.

Mal se ouvia, em torno dos parapeitos, o resfolegar anhelante e oppresso d'aquelles homens, que a vontade d'um só immobilisava n'este supremo instante.

Era uma situação de solemne e terrivel anciedade. O arcabuzeiro observava com maravilhado interesse, como homem saciado de expectaculos; que emfim acha lance digno de attenção.

Na muralha do baluarte, que Vieira defendia, surgiram pouco a pouco dois morriões, alteando-se progressivamente. O mancebo, pulando como o jaguar á espreita da preza, vibrou um bote irresistivel ao rosto do primeiro vulto que subia, e logo, n'um furioso movimento de rotação, aproveitando com mão certeira o falso das armas, cravou o arpeu recurvo do pique na garganta ao segundo, que já deitava as mãos ao parapeito para saltar. Depois, retrahindo o braço com assombroso vigor, arrojou aos pés do governador o hollandez lacerado e agonisante.

O gemido e o baque do primeiro tinham já annunciado aos expugnadores nocturnos como eram recebidos.

Ayres Gil, a quem nada escapava, não se poude ter que não rosnasse lá de si para si :

-- Aceiado modo de pescar, por vida minha !

Levantou-se então de fora um brado immenso, como se das entranhas da terra subitamente rebentasse uma população phrenetica.

-- Hollanda e Orange ! -- troou na restinga a multidão.

-- S. Jorge pelos Brazis ! -- respondeu a guarnição electrisada pela attitude do chefe e pela acção de Vieira.

Os hollandezes, em vez de surprehenderem, tinham ficado surprehendidos. Nem imaginavam o arrojo de os esperarem assim.

Impeliam-n'os porém os seus cabos, que mediam os inconvenientes de titubear na investida.

-- A elles, filhos ! -- continuou sem perder tempo o governador n'um súbito acesso de ternura, fatal aos assaltantes.

Juntando á palavra o exemplo, metteu os hombros a um tronco inteiro d'angelim, cuja enorme superficie quasi tomava o comprimento e sobrepujava a largura da muralha.

Ayres Gil e mais vinte braços secundaram-n'o em continente de uma a outra extremidade do collossal madeiro, ao lado do qual o mais valente roble parecera vergontea. Para o abalar fora pouca toda a guarnição.

Reappareciam já do sopé da cortina os hollandezes arremetendo apressados á escalada.

O governador e os seus redobraram o esforço com ímpeto fremente. O monstruoso tronco oscillou no pendor do parapeito. Um novo impulso, um impulso sobrehumano, despenhou-o eccoando lugubremente na escuridão. A energia das almas e dos braços suppria as machinas de guerra.

Seguiu-se à queda um grito indescriptivel, composto de todas as intonações da agonia e da desesperação. Ouviu-se ao mesmo tempo um estalar secco e múltiplo. Produziu o emprego d'esta improvisa balistica horroroso effeito. O madeiro, tombando réz com a muralha, esmagara tudo sob o peso descommunal.

Tinham os hollandezes, confiados na mudez inalterável do forte e na densidade do nevoeiro, avançado sem mais precaução do que o silencio. Quando se presentiram descobertos era já tarde para recuar. Duzentos d'elles estavam apinhados á raiz do forte, e nos degraus das escadas que precipitadamente haviam plantado contra a face da cortina.

Derribara Vieira os dois mais apressados e audazes. Acharam-se então os mais a bem dizer colhidos, julgando até ali que apenas teriam de degolar as sentinellas descuidadas, e apossar-se do resto da guarnição adormecida.

Ficaram as escadas quasi todas partidas. Os assaltantes, arrojados com ellas, jaziam moribundos. Metade da columna de ataque fora litteralmente triturada.

A outra metade retirou espavorida para o grosso da força.

Compunha-se esta força de l5OO homens. Pelas razões já ponderadas, seguira de perto as companhias de assalto, a fim de as reforçar promptamente no caso de resistência maior. Como consequência da mesma confiança e imprevisão, vinha formada na ordem que então se chamada de batalha quadra, cobrindo em toda a sua largura a estreita península.

Ao receber os fugitivos da mallograda tentativa, a molle inteira agitou-se confusamente.

Não foi preciso mais ao governador para verificar a situação e disposição do corpo principal.

-- Pontarias baixas, bombardeiros ! -- bradou. -- Fogo a todos os canhões.

Uma detonação formidável despertou os eccos gemebundos da floresta, e foi rebombar ao longe na immensidade do oceano. A colubrina e as bombardas soaram quasi unisonas.

Era impossivel com a fumarada e o negror distinguir o effeito da descarga.

Terrivel devia de ser comtudo, entrando os projectis nas fileiras bastas e cerradas.

-- Bombardeiros, outra salva como esta! -- clamou o governador. -- E vós, filhos, aos mosquetes!

O fusilar da mosquetaria, seguido novamente do estampido das peças, foi continuar o estrago no corpo de batalha do inimigo.

Quando o fumo se dissipou, os hollandezes tinbam-se tornado totalmente invisíveis na profundidade das sombras.

-- Bravo ! -- exclamou Ayres Gil, depois de observar attentamente. -- Os arenques de Hollanda mergulham.

-- Elles voltarão, -- disse António de Lima. -- Estamos ainda no principio da festa. Animo, filhos, e tudo prestes.

Depois, tomando a Vieira de parte, continuou para este apertando-lhe affecluosamente a mão :

-- Mancebo, sereis grande, ou morrereis com gloria. Aqui vol-o diz um soldado velho, e as prophecias no campo de batalha quasi nunca mentem.

-- Procuro imitar o vosso exemplo, senhor governador -- respondeu Vieira, escondendo-lhe a noite as faces accesás no varonil rubor de nobre modéstia e não menos nobres esperanças.-- Onde estaes quem ousaria voltar o rosto?

-- Na vossa edade, ter-vos-hia inveja, -- atalhou António de Lima. -- Na minha, presagio-vos o futuro. Conheço os homens de guerra.

-- Como discipulos.

-- Nada me digaes. Acabemos. Primores e comprasimentos não são para aqui... nem para nós. Aproveitemos esta breve pausa. Olhae-me para essa gente. Toda ella fez o seu dever...

-- Mais.

-- Mais talvez, por que a lucta é desproporcionada... Não: mais não. O dever do soldado é morrer no seu posto. Como vos dizia, toda esta gente obedeceu bem, e está disposta a fazer o que se póde esperar da força humana. Só não achareis em nenhum desses quieto o coração em quanto peleja o braço, nem a frieza que mede o golpe nos lances apertados. Esse é o esforço maior, o que faz os grandes homens e as grandes coisas.

-- É o vosso.

-- Já vos disse que não do que sou, mas do que heis de ser, vos quero fallar ; e aqui mesmo, e agora, para que a todo tempo vos lembre. Foi uma refrega ; mas o que vi me basta. Isto de cegar a morte com encaral-a fito dá-o Deus a poucos, e a quem o dá...

-- Senhor governador! por quem sois, -- replicou o mancebo confuso. -- Todos morreriam, como eu, á vossa voz, e pelo serviço desta terra. Que mais fiz, e que mais se hade de ousar?

-- Saber morrer. O que vos digo, senhor Vieira, é para vos convidar a muito mais, porque em pouco, vós, e eu, e quantos aqui somos, precisaremos de toda a força de nossos braços e de nossas almas.

-- Mas os hollandezes retiram.

-- A ordenar-se, para volverem de novo com maior fúria. E virão agora movidos da vergonha... mais, incitados do desejo de vingança. Estes herejes são bons soldados, soldados velhos, gente de guerra briosa e experimentada. Não vol-o occulto : quero o vosso exemplo... preciso d'elle... para esses moços dos engenhos principalmente, que nunca viram d'isto. Fazei-m'os heroes, que o podeis e sabeis. Não será demasiado.

-- Ah! senhor governador, em que mereço tantos louvores !

-- Pois fazei por merecel-os.

-- Tudo o que um homem poder tentar...

-- Sei. Por isso vos fallo como não fallaria a todos. Tenho para os outros palavras differentes. -- Vamos, filhos! -- proseguiu dirigindo-se à guarnição, que se affastara respeitosamente. -- Estaes prestes? Bem. Sabeis agora com quem lidaes. Já vedes que estes arenques de Hollanda, como lhes chama Ayres que os conhece, não são todos espinha. Quanto maior for a onda melhor será a pescaria.

-- E não se me dá de experimentar também ! -- acudiu o arcabuzeiro lisongeado, floreando um pique similhante ao de Vieira. -- Posto que, digam lá o que disserem, nada chega a um bom arcabuz, escorvado a ponto, que chega longe e mata um homem com aceio.

Professava Ayres systematico despreso por toda a arma que não fosse aquella sua predilecta.

-- Mas emfim, -- continuou -- cada coisa tem sua serventia. Estou que será divertido continuar a pesca de hollandezes. Quero ver que peixe é.

-- Pelo menos pega bem no anzol, -- observou d'ali um dos voluntários, moço faceto e enthusiasta de Vieira.

-- Dizei antes que o anzol lhe pega... como eu agora pegara n'um pichei attestado. Não vinha a tempo, micer Arnau?

-- Ya, ia, meinherr! -- accudiu o condestavel, cofiando com um palmo de lingua os beiços ressequidos da pólvora.

Foi por diante no discurso o arcabuzeiro, indicando o moço commandante dos voluntários :

-- Ápage! Com aquellas mãos de dama do paço tem-me um pulso de jogador de barra! Pelas barbas do viso-rey, como se dizia em Goa, que tenho visto muito assalto e escalada; mas sacudir-me assim para dentro um scismatico de doze arrobas, como um sapo espetado n'uma canna, é a primeira vez. Bem diz lá o dictado : «quanto mais viver, mais aprender!» E como elle, o perro herege, careteava pelo ar, quando veio ahi estourar-nos ao pé ! A propósito... E mestre Estouro?... Podia servir ao menos para chegar o morrão aos seus foguetes. Quem m'o viu ahi, o meu amigo mestre Marçal Estouro ?

Olharam todos investigando os cantos. Mestre Marçal havia-se tornado invisível, como o príncipe do annel encantado.

-- Não é tempo de procurar. Olhae, Ayres -- bradou o sargento de numero.

-- Bom, bom, bem bom! o peixe vem á linha! -- retorquiu o arcabuzeiro attentando.

Effectivamente, duas longas columnas, ou mangas, como se dizia então, avançavam por entre o nevoeiro, que ia rareando. Os hollandezes tinham mudado a sua disposição, e procuravam offerecer a menor frente possível aos tiros do forte.

António de Lima prevenira-os. Em quanto Ayres discorria, modificara elle a direcção dos seus três canhões, que recomeçaram a jogar contra os lados cruzando os tiros.

O alferes neste intervallo chegou-se a Vieira.

-- Não sei o que me adivinha o coração -- disse -- Casado sou de três mezes. Minha pobre mulher a esta hora...

Calou-se envergonhado da commoção que lhe prendia a voz.

-- A esta hora, -- acudiu Vieira para o animar -- lembra-se de vós, como vós della: conlar-lh'o-heis depois, e vereis como vos paga os extremos. Quem podéra dizer outro tanto !

O alferes meneou a cabeça em ar de duvida. Conseguindo vencer este abalo continuou :

-- Não é receio ; é saudade. Cedo era ainda para nos separarmos.

-- Que lembrança!

-- Dir-lh'o-heis vós, se...

-- Eu!

-- Prometteis?

-- Pois que o desejaes, prometto ; mas fio-vos que não será preciso.

O alferes apertou-lhe a mão em silencio, e voltou ao seu posto.

Aproximavam-se apesar da artilheria os hollandezes. António de Lima, que não queria esperdiçar munições, poupava os seus mosquetes. Tanto porém que os inimigos lhe pareceram a tiro, bradou em voz clara e tranquilla, como se estivera em alardo:

-- S. Jorge pelos Brazis ! Arcabuzeiros e mosqueteiros, fogo!

Duas descargas successivas enfiaram as columnas em marcha.

As mangas dos hollandezes oscillaram como se as tomara simultânea ebriedade.

-- Sentido, filhos! Aos espaldões! -- gritou de novo o governador naquelle tom de commando, incisivo, imperioso e absoluto, que não admitte hesitações.

No mesmo ponto, o forte foi litteralmente cuberto de pelouros, granadas, alcanzias, foguetes, e toda a qualidade de artifícios mortiferos.

Realisavam-se largamente as prudentes previsões de mestre Marçal. Os atiradores inimigos retribuiam por junto o que tinham recebido por vezes.

Abrigavam os espaldões a guarnição. Só o governador e Vieira, firmes e erectos nos seus logares, pareciam desafiar aquella tempestade de fogo, observando e vigiando os incidentes do ataque. Os voluntários, exaltados de os verem, praguejavam detraz dos abrigos, onde unicamente os continham as ordens severas do governador. Ayres Gil, que tinha seus privilégios, deixara-se ficar também na muralha. Com a sagacidade cautelosa do soldado velho, meio ajoelhado na banqueta do parapeito, apenas arriscava um olho para verificar o que ia lá por fora, e exercer opportunamente a sua critica.

Ayres era observador, e gostava de observar de perto, mas não para dar na vista.

-- Com seiscentos Belzebuths ! -- dizia elle -- o peixe traz ardentia infernal! Para mercadores não são poupados estes tratantes de Hollanda.... Puh! diabo! -- acrescentou de repente em sobresalto, tapando o nariz com ambas as mãos, e voltando com vivacidade o rosto.-- Puuuh ! que peste !

Um foguete, passando a dois dedos de Vieira, voara por cima da cabeça do arcabuzeiro e fora pregar-se no espaldão onde se incendiara. Era um composto de mixtos nauseativos,e rebentara espalhando um vapor infecto, ou como vulgarmente se diz, um cheiro de tombar. Congreve tinha ascendentes.

Se mestre Marçal estivesse presente, cahir-lhehiam no chão, em vez das faces que não tinha, os ossos maxilares, de pura vergonha por aquella deshonra pyrotechnica.

Os fogueteiros hollandezes tinham querido regalar a um tempo todos os sentidos -- o tacto e os olhos, os olhos e o olphato.

-- Eh!... eh! lá!... Conheço. Tal e qual como em Flandres! -- proseguiu o arcabuzeiro.

E levando da adaga, com o ferro n'uma das mãos, a outra cubrindo a parte inferior do rosto, foi-se direito ao incommodo artificio, e decepou de um revez a extremidade ponteaguda que se fixara profundamente no paredão de terra. Levantando-o depois pelo cabo, voltou à muralha, debruçou-se para medir o arremeço, e recambiou para fora o foguete ainda inflamado e fumegante.

O escrúpulo desta restituição abonava a sua austera probidade.

-- Tomae, Iscariotes! -- bradou sem já fazer caso do granizo de pelouros que lhe sibilava aos ouvidos. -- Tomae lá, almas damnadas! Provae-me ahi também destes perfumes do Oriente. Hein ? São rosas de Alexandria... Puuuhhh!

E voltou socegadamente para o posto que escolhera, tregeiteando uma infinidade de visagens de enojo e repugnância.

-- Viva Ayres Gil ! -- romperam os voluntários.

-- Calae-vos ahi, creanços amostradiços -- retrucou-lhes o arcabuzeiro agastado -- Boa é a occasião para vozes! Aproveitae-me esses restos de aroma, aproveitae : ficareis mudos de enjoados, mais do que se almoçásseis mocotó sem sal.

Era burlesco e heróico o enfado do arcabuzeiro, como o fora a sua acção. Faria ella tremer os mais atrevidos e rir os mais merencórios.

Vieira desatou ás gargalhadas. Não se poude ter o próprio governador, apesar da sua natural gravidade, e da attenção que prestava às evoluções dos hollandezes.

O arcabuzeiro encolheu os hombros como quem não achava razão nem ao applauso nem á hilaridade. Correndo escrupulosamente a folha da adaga pela aba do gibão, para a lustrar do impuro contacto, embainhou com toda a paz de espirito, eagachou-se de novo atrás do parapeito.

IX

Assalto

Entretanto o fogo dos hollandezes continuava horroroso.

Como que o archanjo das batalhas cubria com as azas o intrépido António de Lima. Por Vieira vigiava certamente o bom anjo dos seus castos amores.

Não respondia o governador. Insistia em poupar o seu fogo para resguardar a gente que não abundava. Tinha por costume esperar o momento opportuno.

Deu por fim um signal, naturalmente combinado. Da rectaguarda dos espaldões subiu aos ares um dos mais vistosos artifícios de mestre Marçal. Espalhava elle vivíssima claridade. Á sua luz divisouse distinctamente outra columna de ataque, próxima já da base da muralha, e em pé sobre as banquetas do forte a nobre estatura do governador e a figura elegante de Vieira.

Sobresaiam ambos no alto, egualmente impávidos, á similhança do velho melástomo e da palmeira nova, que par a par desafiam o raio na serrania.

Magnifico e tremendo era o contemplar aquelles dois homens, únicos visíveis, sós, levantados na coroa das muralhas, como a provocarem do heróico pedestal a multidão inimiga, que em ondas lhes marulhava aos pés.

Voltavam os hollandezes mais preparados á investida. Duas escadas tinham escapado ao primeiro desastre. Das outras haviam aproveitado as que podiam com algum supprimento servir ainda. As profundas mangas dos arcabuzeiros e mosqueteiros hollandezes, varrendo o forte, protegiam o movimento da columna. Avançava esta afoita e em boa ordem.

António de Lima verificara quanto queria saber.

Apenas porém a luz momentânea do artificio poz evidentes aos olhos dos atiradores inimigos os dois vultos soberbos, todos os tiros se dirigiram contra elles.

Ladeou alguns passos António de Lima, dizendo para Vieira :

-- Acautelae-vos agora. Atiram-nos como ao alvo. É tentar a Deus chamar sem necessidade a morte, quando nos será tão necessária a vida para esforço de todos e cumprimento do nosso dever.

-- Preciso avesar-me, senhor governador -- respondeu Vieira sorrindo, e conservando-se immovel no seu logar.

O vendaval de ferro passou deixando-o incólume.

Segundo a expressiva phrase de António de Lima: «cegara os olhos á morte.» Talvez n'aquella hora as orações de D. Maria Cezar subissem fervorosas á presença de Deus, e Deus se dignasse estender a mão sobre elle.

O fogo dos hollandezes cessou logo que os assaltantes se avisinharam para de novo plantarem as escadas. Não podia continuar sem offender os que arremetessem ás muralhas.

Ahi justamente os esperava o governador, que não era homem de esperdiçar balas.

-- Fogo, mosqueteiros, fogo sobre o ataque! -- bradou elle distinguindo a columna a cincoenta passos.

A guarnição impaciente e furibunda arrojou-se aos parapeitos. Uma descarga temerosa rareou as fileiras dos atacantes já visíveis.

-- Aos canhões, bombardeiros! -- continuou o governador.

As peças do forte, tanto tempo mudas, tornaram finalmente a responder, devastando as mangas dos atiradores.

Replicaram estes com energia vendo hesitar as suas companhias de assalto. Um dos voluntários, varado de um pelouro, caiu ao lado de António de Lima.

-- Oremos pelo primeiro martyr desta defensão! --

disse o governador estendendo a cruz da espada sobre o infeliz moço, que expirou sem exhalar um queixume. -- Oremos por este primeiro martyr, e juremos vingar-lhe a morte!

-- Mil vidas por esta ! -- exclamou impetuosamente Vieira. Vae tu com Deus, irmão -- acrescentou como se ainda o ouvira o que ali jazia -- E pois que adiante vaes, expõe ao teu e nosso Redemptor como todos aqui por sua gloria e por sua fé estamos promptos a morrer também. Quem te não inveja, irmão, não é digno desta terra!

Foi tudo isto momentâneo.

António de Lima era sinceramente christão; mas era também chefe sagaz. Se como christão cumpria um pio dever, como chefe combatia com a influencia religiosa esta primeira impressão de horror, tão perigosa em homens pouco affeitos aos cruentos espectaculos da guerra.

Vieira, mais por instincto do que por calculo, rematara a exaltação dos ânimos aggregando ao pensamento de Deus o sentimento da pátria.

Um indicava o céo, outro a gloria.

Ayres era indifferente. Tinha presenciado tão repetidamente scenas destas, que se lhe haviam tornado episodio commum. Não deixava o arcabuzeiro de ser devoto a seu modo, e até um pouco supersticioso, mas com o costume só via em cada cadáver um mosquete de menos, e uma alteração grave na symetria das fileiras. A morte era a seus olhos o accidente mais trivial da guerra.

A compuncção profunda de Vieira, em quem o valor não entibiava a sensibilidade, e a premeditada encommendação religiosa de António de Lima, foram para elle uma coisa sem significação.

Não succedeu o mesmo aos voluntários. Iam do furor passando ao delirio: eram leões.

N'isto, o fogo dos hollandezes parou novamente e de súbito.

-- A elles, filhos! -- gritou o governador. -- Occasião é de vingarmos o morto !

Voava o inimigo ao assalto, não já colhido na tentativa de surpreza, mas com a certeza e consciência da opposição que acharia.

O verdadeiro combate principiou.

Parecia todo inflammado o forte, tantas eram as invenções de fogo que dos parapeitos arrojavam.

No meio d'este incêndio, defensores e assaltantes, egualmente irritados, egualmente embravecidos, chegaram em breve áquelle paroxismo de furor, que faz desprezar a vida para só cuidarem produzir a morte. Choviam continuamente da muralha os madeiros, os arremeços e as matérias incandescentes. De dentro e de fora misturavam-se em pavorosa grita os gemidos e as blasphemias. Onde se fazia um claro surgiam logo novos combatentes.

Acima de todas as vozes ouvia-se a voz de António de Lima. Adiante de todos os braços estava o seu braço e o de Vieira. Os longos anneis da serpente humana em vão apertavam os frágeis muros: protegiam-nos peitos mais rijos do que elles.

Eram já degraus para os vivos subirem os cadáveres amontoados ante a fatal cortina. Qual arremetia por cima do corpo mutilado do irmão d'armas agonisante, insensível aos ais que brutalmente exacerbava. Qual fincava no peito roto de um moribundo os prumos d'uma escada, estalando-lhe os ossos com barbara indifferença. Cega ia a turba na investida. Era um inferno de brados, um inferno de fogo, um inferno de armas, um inferno de iras !

Continuava António de Lima a fazer de vez em quando subir ao ar os seus artifícios luminosos para esclarecer em redor a scena, e melhor avaliar todos os movimentos do inimigo. Quando pela ilha fronteira se diffundia esta claridade, á luz livida alongavam-se pelas clareiras as sombras vacillantes das arvores da margem, como se um povo de trépidos phantasmas fugisse daquella cólera humana. Mugia ao mesmo tempo além do recife o mar, pavorosa base deste horrisono concerto. O rolo das vagas, reflectindo alternadamente as chammas diversas, ora se tingia de rubro sanguíneo, ora do pallor de sudário.

Uma hora inteira durou o temeroso embate, sem que os hollandezes desistissem, sem que os do forte afrouxassem. Três vezes foram precipitados os primeiros; três vezes volveram mais enraivecidos e estimulados de maior pejo. Praguejavam os seus capitães vendo baldado o esforço de tantos contra tão poucos, e investiam com os mais intrépidos á escalada para serem com elles rechaçados e mal feridos !

Fugia a noite, levando aos hollandezes as esperanças que protegia a escuridade. Dissipara-se a névoa, e uma leve cinta clareava ao nascente, annunciando próxima a rápida aurora daquelles climas.

Os assaltantes quizeram tentar o supremo lance.

No baluarte confiado a Vieira estavam também Ayres Gil e António Borges, o moço alferes recemcasado, que até então mostrara o mais brilhante valor.

Differentes vezes tinham os inimigos querido ladear por aquelle flanco o forte, cozendo-se com a muralha da banda do porto, a fim de multiplicarem os ataques sobre todas as faces, operação que lhes faria melhor aproveitar a vantagem do numero, e diminuiria a energia aos defensores dividindo-os. O passo porém era estreito e difficil, e Vieira acudira sempre tanto a ponto, que poucos dos que o tentaram conseguiram retirar.

Ao quarto e mais furioso assalto, como toda a attenção fosse pouca para a frente da cortina, alguns hollandezes conseguiram no tumulto passar sem serem vistos do baluarte, e plantaram daquelle lado uma escada no estreito carril comprimido entre a muralha e as aguas profundas.

Em quanto a fúria do ataque redobrava na cortina, este troço destacado arremettia com precipitação ao baluarte.

O alferes, que era o mais próximo da muralha tão terrivelmente ameaçada, sentiu rumor e voltou-se rapidamente.

Já do parapeito sobre a banqueta saltava um hollandez gritando :

-- Hollanda e Oran...

Não acabou. O espontão do alferes cortou-lhe a um tempo o grito e a vida.

Quasi no mesmo instante, o infeliz mancebo estendeu como insensatamente ambos os braços, recuou cambaleando até á extremidade do baluarte, e caiu redondo.

A alabarda de um sargento frisão, jogada, de cima da muralha, havia-o atravessado pela garganta.

Avançou o hollandez com o impulso do golpe. No acto de saltar, Vieira, acudindo como um raio, acolheu-o no gume do pique e pregou-o de encontro à trave do canhão que estava ao pé.

Jazia, porém, o alferes resfolegando o sangue em borbotões pela ferida medonha. Vieira, esquecendo o mais, baixou-se para soccorrel-o.

Anciava já o desgraçado nas vascas da morte. Acenou-lhe negativamente com uma das mãos, como dizendo que inúteis seriam todos os soccorros; com a outra, que fechara sobre o coração, entregou-lhe uma pequena medalha de prata lavrada, e apontoulhe para o parapeito.

A medalha continha um annel dos cabellos de sua mulher, viuva ao sair do thalamo nupcial, como os presentimentos lhe tinham advertido.

O que elle indicava no parapeito eram três hollandezes, que assomavam desconfiados atrás dos primeiros, e faziam parte dos cinco mais ágeis e afoitos em subir.

Assim os derradeiros pensamentos do misero moço foram para ambos aquelles amores, cortados tanto em flor -- esposa e pátria!

-- A elles, Ayres! -- gritou Vieira, tremula a voz, razos d'agua os olhos, pallido o rosto, não da eminência do perigo, senão com o abalo do afflictivo e rápido lance.

Ayres Gil, vendo caido o alferes, exclamou com uma leve tintura de ironia, que em caso de necessidade podia atteslar a perfeita lucidez do seu espirito:

-- Não dizia eu que para nada prestavam armas tão franzinas!

E agarrou n'um mosquete ás mãos ambas, brandindo-o pelo tubo como se fora uma clava.

Iam já a saltar os três hollandezes : Ayres tomoulhes a frente, empenhado em demonstrar na pratica a excellencia das suas theorias.

Entrementes Vieira, julgando-os bem entregues, correu á muralha. Sobresahia alguns dedos ao parapeito a extremidade da escada : uma nova onda de hollandezes estava já em meio d'ella correndo em auxilio dos camaradas. O mancebo, sem dizer palavra, aferrou-se com a mão esquerda ao rebordo, deitou a direita á escada, e prolongando meio corpo fora da muralha, com formidável impulso, como um heroe de Homero, sacudiu no espaço aquelle cacho humano appenso aos degraus, e arrojou tudo para fora, como se uma catapulta o despedira.

A escada, neutralisado este immenso esforço com o ímpeto e o peso dos que subiam e se achavam já para cima do centro, pareceu vacillar na perpendicular, mas caiu para o lado do porto, arrastando comsigo bom numero de hollandezes para as aguas que se abriram.

Ayres gritou-lhe sem parar na peleja :

-- Toma! Caçada de armadilha depois de pesca de anzol !

E deu com segundo hollandez em terra, amolgando-lhe o morrião e o craneo.

Vieira soltou como um pallido sorriso de satisfação vendo o pego fechar-se remoinhando sobre aquella hecatomba humana, immolada aos manes do infeliz alferes. Foi a sua oração fúnebre.

Socegado por ali, quiz ir em auxilio do arcabuzeiro.

Não era preciso. Dois hollandezes jaziam aos pés de Ayres, derribados pelo terrível mosquete.

Na occasião em que Vieira volvia, o terceiro dava alguns passos desatinados, e caía a pouca distancia consideravelmente reduzido na estatura.

Aproveitando o intervallo para comprimir fortemente o dedo médio da mão esquerda, meio decepado de um golpe de adaga, Ayres fez um gesto de suprema indifferença, e deu com o pé n'um volume roliço, que saltou como animado a dois ou três palmos.

Era a cabeça do ultimo d'estes aggressores: um revez da espada de António de Lima separara-a cercea do tronco.

Vira o governador a lucta desegual do arcabuzeiro; comprehendera de relance o que ali ia; e accorrera caladamente, para não desanimar a guarnição, que repellia com denodo o assalto da cortina.

Frustrados n'este ataque, os hollandezes recuaram com perda maior do que antes.

Vinha já arraiando a manhã. Os objectos tornavam-se cada vez mais distinctos.

António de Lima observava attentamente :

-- Filhos, preparae-vos! -- disse -- Teremos novo assalto, mas será o ultimo... por hoje -- acrescentou em voz baixa para Vieira.

Vieira nem deu por tal : carregava o seu mosquete com as minuciosas cautelas de caçador apaixonado.

IX

Retirada

Para cubrir a derrota da columna repellida, rompera de novo o fogo entre o corpo de batalha inimigo e o forte. Pelo morrião emplumado distinguia-se á frente das suas companhias o cabo superior dos hollandezes, dispondo galhardamente novas forças para tornarem á investida.

Assobiavam bastos os pelouros em redor de Vieira. O mancebo assentou pausadamente o mosquete sobre a forquilha, e mirou com attenção.

Ayres Gil, que o tinha já no mais alto conceito, observando-o com preoccupada curiosidade, murmurou comsigo :

-- Por su Dios y por su dama !

Sabia o arcabuzeiro um pouco de todos os idiomas, e confundia-os frequentemente, -- sobretudo quando não queria pôr a todos na confidencia das suas conjecturas. Havia-lho pelos modos a longa experiência feito divisar em Vieira uns taes ou quaes ares de namorado.

Tendo assegurado bem a pontaria, o commandante dos voluntários chegou com mão rápida e firme o lume da corda á escorva.

O general hollandez caiu nos braços dos seus soldados.

-- Livraes-nos d'outra refrega -- clamou o governador.

-- Boa mira e mão segura! -- ponderou o arcabuzeiro, acrescentando modestamente:-- Bofél que o não fizera eu melhor.

Com effeito, os hollandezes desacoroçoados e privados do chefe, deram promptamente as costas sem tentarem nova fortuna.

-- Senhor Vieira,-- continuou António de Lima -- escolhei doze dos vossos e saí a colher prisioneiros. Serão inimigos de menos, e é gloria que vos cabe.

Ouvindo isto apresentaram-se todos os voluntários.

-- Quereis deixar-me só? -- observou-lhes o governador sorrindo.

Vieira não escolheu : tomou comsigo os primeiros.

Abriram-se n'um momento as portas do lado do recife. O mancebo ladeou rapidamente a muralha com os seus doze homens ébrios de enthusiasmo.

Não havia empreza que lhes parecesse difficil. Em vez de se apoderarem, como o governador queria, de algum disperso ou menos válido, que a fadiga da noite atrazasse da columna, ousaram dar sobre a retaguarda dos hollandezes, e, o que mais é, precipitar-lhes em fuga a retirada ao brado heróico.

-- S. Jorge pelos Brazis !

Quando voltaram, traziam mais de trinta prisioneiros, três vezes o numero dos da admirável sortida!

Trezentos dos seus deixaram os hollandezes mortos, e com elles grande copia de armas e tropheus.

Os portuguezes tinham no Brazil umas novas Thermopylas.

Perdera a guarnição, pouco mais ou menos, o terço da sua forca, cinco mortos e oito feridos sem contar o amigo Ayres, que não fazia caso de bagatellas.

Horas depois, o capitão-mór veio pessoalmente visitar o forte, onde foi recebido com delirantes acclamações.

-- Senhor governador,-- disse Mathias de Albuquerque abraçando António de Lima -- quem vos ha de pagar tal serviço?

-- Pago estou: fiz o meu dever, -- respondeu o intrépido capitão.-- Nem vos mereço eu tanto como pensaes. Aqui tendes a quem deveis hoje a conservação do forte.

E indicou Vieira.

Faziam então assim os homens de esforço e consciência. Agora andam os zotes a tomar o passo aos que valem e fazem alguma coisa, e não ha parva ignorância, nem invejita miserável, que não tente denegrir tudo o que excede a sua craveira anã.

-- Não me enganei com elle -- disse o capitãomór, abraçando também o moço commandante dos voluntários, confuso de tanta honra. -- Nem vos enganareis commigo, Vieira.

O mancebo pensou em D. Maria César. E as vozes da gloria entoaram-lhe o hymno da esperança na alma generosa!

Não se limitou a solicitude do capitão-mór áquella visita, nem a estimulos de palavras. A mesma constância, que sustentara o posto, lhe dava occasião de reforçal-o, permittindo-lhe reunir os necessários meios de prolongar a defensão.

Foi o exemplo grande incitamento. A gloriosa resistência de António de Lima levantou os briosa população fugitiva. Viu-se que os hollandezes não eram invencíveis. Envergonharam-se muitos das suas pusilanimidades, e de todos os lados affluiram soccorros, que deram azo a dispor mais largamente do pequeno numero de homens resolutos, que haviam permanecido com Mathias de Albuquerque.

Iam diariamente engrossando as companhias, como o chefe previra. Em breve pôde este organisar algumas bandeiras regulares.

A guarnição do forte foi successivamente augmentada até chegar a oitenta homens : não podia alojar mais o pequeno recinto.

Entre estes figuravam muitos da bandeira da nobreza, commandados por Affonso de Albuquerque, irmão do próprio capitão-mór, que n'este intervallo havia chegado do interior.

Os bastimentos e munições seguiram a mesma proporção, com grande copia d'aquellas abençoadas vasilhas de vinhos do reino, ao mesmo passo delicia e tormento de Ayres Gil e micer Arnau ; tormento porque António de Lima, ignorante das larguesas de Lucullo e avesso aos festins de Balthazar, distribuía os liquidos com parcimonia profundamente antipathica aos deis illustres confrades,

Dizendo os liquidos refiro-me somente aos liqui-

dos espirituosos. Agua tinham-n'a todos a fartar no Biberibe : os severos preceitos do governador de nenhum modo a poupavam. Tornava-se porém inútil para o arcabuzeiro a illimitada munificência, tal horror professava ao cristalino liquor, segundo então se dizia em poético phraseado.

Attribuia Ayres esta aversão a um caso da sua infância, no qual fora pescado das ondas do Tejo, exactamente como o patriarcha Moysés nas do Nilo. Cumpre accrescentar, em abono da indole do honrado veterano, que não tirava o minimo orgulho doesta gloriosa similhança com o legislador dos hebreus. Muito pelo contrario : em vez de recordal-a como brazão, fugia cuidadosamente de quanto lh'a podesse lembrar.

Em poucos dias nada faltou no forte. Se não foram as economias do governador, no conceito de Ayres infinitamente exaggeradas, nem este, nem micer Arnau quereriam sair d'ali mais.

Theodoro Vanderburgo, ocommandante em chefe das forças expedicionárias dos Estados, derramara-se com a nova da baldada investida. Tinha reconhecido o forte, e nunca o julgara susceptível de oppôr estorvo similhante.

Não podia entretanto accusar os seus de frôxidão. As perdas graves que tinham padecido, a morte de uma grande parte dos officiaes, e a do commandante da empreza attestavam quam grande fora o esforço e quam pertinaz a lucta.

Vanderburgo, illudido até ali com a fácil passagem do rio Doce, reflectiu então no que valiam homens, que, em tão diminuto numero, tão cruamente repelliam forças consideráveis dos soldados velhos de Hollanda.

Não conhecia o general bátavo a indole singular do povo portuguez, descauteloso, incrédulo do perigo, imprevidente, e por isso tão sujeito a espavorir-se nas crises como a despresar as advertências; mas depois, dissipado o pânico, chegada a occasião, capaz dos máximos sacrifícios, e com milagres de heroicidade resgatando as passadas negligencias.

Ficou-a então conhecendo, essa indole mal apreciada, e resolveu ir em pessoa contra o obstáculo que tomava o passo á frota, e lhe impedia o estender a invasão.

Começou em continente a fazer poderosos preparativos.

XI

Em que Ayres Gil desencanta mestre Marçal

Postos em fuga os hollandezes e recolhida a força que saíra a perseguil-os, procurou-se por toda a parte o fogueteiro por ordem do governador, que precisava d'elle. Nem vivo nem morto. Suspeitava o maior numero que tivesse cahido da muralha : só Ayres asseverava que não.

Ayres, como dito fica, tivera um dedo meio decepado. Vendo-o micer Arnau a sugar desesperadamente o golpe, observou-lhe :

-- Que em toda a parte uns parches embebidos em vinho eram eficcaz remédio para aquelle género de feridas.

Esta applicação foi infinitamente do agrado do arcabuzeiro.

Ordenara o governador distribuição dobrada aos homens válidos, logo que os hollandezes se retiraram. A occasião seria opportuna para experimentar o remédio, se duas rações de vinho não fossem para Ayres um gargarejo.

Aproveitando a feliz lembrança de micer Arnau, Ayres requisitou com instancia uma porção especialmente destinada a curar o dedo, ponderando que, para ser proveitoso o especifico, era necessário repetir a miúdo a applicação, o que exigia considerável quantidade de liquido.

O governador mandou-lhe dar uma malga cheia.

Como bom camarada, o alemão não o desamparava.

Entrando nos armazéns, a fim de encher a sua malga, a mais alentada e bojuda que podera encontrar, ouviu Ayres uns arrancos abafados, que pareciam sair do interior das pipas.

Parou admirado. Não se via cousa viva. Almas, seria inverosimil. Almas em pipas! Saía de todos os estylos e costumes das apparições !

-- Ainda se se dissera espíritos ! -- ponderaria um calamburista de hoje !

Só se fora a alma do duque de Clarence, que morreu afogado n'um tonel de Malvasia, dizem!

Ayres, porém, ignorava esta particularidade biographica.

Como os ais continuassem, aproximou-se.

Quanto mais se aproximava, mais se distinguiam aquelles gemidos, que pouco depois se converteram em exorações.

-- Não me mateis, por quem sois não me mateis, senhores hereges ! -- dizia a voz gemebunda. -- Juro-vos que não estou aqui de vontade, juro por minha vida...

-- Aposto que é mestre Marçal, -- exclamou o arcabuzeiro. -- Não dizia eu que havia de apparecer !

E, estendendo o braço livre, extrahiu d'entre as vasilhas o infeliz fogueteiro.

O pobre mestre passara de côr de camurça a uma tintura rôxo-terra. Tremia que nem que estivera em convulsões. A apoplexia degenerara em maleitas.

Mestre Marçal, não podendo acreditar que os hollandezes tivessem feito tanto arruido por tão pouco, pasmou de topar com o arcabuzeiro, e ainda mais de se achar são e escorreito.

Levara-o um bom instincto a acoitar-se n'aquelle inviolável asylo.

-- Vamos, homem, arredae-vos d'ahi, que me estaes infamando essas quartollas -- disse Ayres, pregando-lhe um safanão que o estatelou no pavimento em attitude pouco gymnastica.

Manifestando assim ao desencaminhado amigo o alvoroço do encontro, Ayres pegou na malga já cheia, e com a distracção bebeu tudo de um trago.

-- O remédio ? -- ponderou o alemão que tinha seus desígnios interesseiros.

-- Ai! verdade é, o remédio! -- acudiu o arcabuzeiro apresentando novamente a malga.

-- Não ha ordem para mais -- retorquiu a praça arvorada em fiel.

-- Por dentro ou por fora... vem a dar no mesmo -- rematou sentenciosamente Ayres.

Para corroborar esta conclusão desenvolveu uma enfiada de argumentos, com os quaes exuberantemente provou a micer Arnau, que, se o vinho o podia alliviar como applicação exterior, muito melhor o reconfortaria como tizana interna.

O dócil condestavel deu-se por convencido.

Limitou-se pois o apparelho do dedo a um pedaço de estopa atada com uma guita resinosa. Inclinava-se o arcabuzeiro ás preparações simples e ás operações expeditas.

Mestre Marçal, inútil na acção, não teve mãos a medir nos dias que se seguiram ao mallogrado assalto nocturno. Ia-lhe crescendo o numero dos freguezes, coisa que n'outro tempo o houvera transportado de jubilo, mas que em tal occasião o fazia continuadamente exhalar grozas de suspiros.

Lá de si para si entendia mestre Marçal, que o senhor governador, não só fora de extravagante prodigalidade na noite do ataque, mas ostentava um luxo mais que oriental na fabricação e abundância dos novos artifícios.

Reconhecera elle por experiência a utilidade das vasilhas, que diariamente iam entrando. Folgava pois com os reforços doesta natureza por uma razão absolutamente diversa das razões de Ayres Gil. Não tinha porém n'aquelle precário refugio tamanha confiança, que o fizesse totalmente esquecer do seu progressivo terror.

Com exercer em silencio a critica, não era menos escrupuloso observador o mestre. Verificara que os defensores do forte só no primeiro assalto haviam ficado reduzidos um terço.

Duas coisas receiava por tanto egualmente -- ou ser comprehendido no terço eliminavel -- ou que o implacável governador, homem quanto a elle possuído do demónio, se lembrasse de o substituir aos defunctos.

Reflectia mais o honrado mestre que ninguém podia antever a duração de similhantes lances com um individuo da tempera de António de Lima. Se os hollandezes viessem pôr cerco, segundo se dizia, e o cerco se prolongasse, mestre Marçal, homem como os outros, não poderia ficar eternamente entre duas vasilhas. Saindo d'aquelle experimentado abrigo, a quantas contingências não ficariam expostos os seus preciosos dias !

Mestre Marçal tinha-se avesado a tudo, aos meirinhos de Lisboa, ao corregedor do crime, á cadeia do Tronco, á esposa que o praguejava noite e dia -- até á estremosa esposa! -- , só não podia costumar-se á vida que levava no forte. No fundo do coração mestre Marçal alimentava o desejo, muito pouco patriótico, de que os hollandezes fizessem capitular quanto antes. Eram-lhe indiflferentes as condicções. Não o affligiam ambições descomedidas. Bastava-lhe a vida salva. De quantas soluções lhe entravam nos cálculos, esta unicamente lhe alentava esperanças.

Desgraçadamente para elle, António de Lima pensava o contrario.

Decorreram assim oito dias, sem mais novidade no forte do que a successiva entrada dos reforços e municiamentos que se disse. A presença do irmão do capitão mór, pessoa tão principal e auctorisada, e a de outros individuos da bandeira da nobreza que o acompanhavam, contribuia para estimular o ardor e exaltar os ânimos dispostos a arrostar novos perigos.

O exemplo dos primeiros defensores incitava os que se lhes haviam ulteriormente aggregado. Anelavam todos vir novamente ás mãos, uns para experimentarem os brios, outros para sustentarem a reputação adquirida.

Assim se estabelecem na guerra as úteis rivalidades, que levam aos grandes commettimentos.

O governador, conhecendo bem o com que devia contar, não perdera momento n'estes oito dias. Empregando tudo quanto na sua posição e com os seus recursos podia applicar, tractou de acrescentar e consolidar do modo possível as suas pequenas fortificações. Entretinha assim a actividade da guarnição, e, com a accumulação bem entendida dos obstáculos materiaes, economisava o esforço dos braços para quando já fosse indispensável.

Ouvia-se muitas vezes ao longe, na campina, o tiroteio dos forrageadores hollandezes com as partidas da milícia. Provava este indicio que não descançava também o capitão mór.

Os invasores com effeito não dominavam senão a cidade. Em quanto a sua armada não podesse forçar o porto, de pouco lhes servia a conquista.

Com estas novas não faltava já quem visse próxima a expulsão e total ruina dos intrusos.

São assim as turbas, fáceis em passar de vergonhosos terrores a cegas presumpções.

Depois da resistência do forte, a capitania povoara-se de heroes.

Quem não tem visto d'estes exemplos nos nossos dias? Faça-se hoje o que todos julgavam hontem impossível. Amanhã os mais tímidos tornar-sehão confiados, e cada um vos explicará a extrema facilidade da empresa.

Pois os Aristarchos do dia seguinte ! Virão esses aos bandos, provando-vos com fácil critica a insignificância do minimo, praticamente executado, em comparação do máximo, que theoricamente vos desenvolvem.

Tivemos sempre muito d'estes censores e discreteadores tão dicazes como inúteis. É até o que melhor produz aqui, e em mais abundância cresce. Se elles não fizeram, não fazem, nem hão-de nunca fazer outra coisa.

Estamos que será vicio do torrão. Vem como o joio, vem como o escalracho, vem como todas as coisas parasitas e damninhas, que medram da substancia alheia.

Na lavra estão soterradas as sementes malditas. Tanto que lhes dá uma restea de sol, eil-as a surgir e a florir, a brotar e a pular como cousas que não tem outro fito nem officio. Tudo palha e nada pão, isso é verdade ; mas na apparencia um louvar a Deus.

Foi sempre assim, e cada vez hade ser mais, como tudo o que se faz só para os olhos. Salvo se poderem metter na seara espertos mondadores, que a preceito a limpem do que não dá fructo.

E, mais anno menos anno, hão de fazel-o, se não quizerem que se vá em hervas a semeadura.

Ao cabo dos oito dias estavam uma tarde, ao pôr do sol, o governador, Vieira, e Affonso de Albuquerque nos terraplenos do sul. De repente sentiram-se da banda de Olinda uns tiros de arcabuz.

-- Teremos novidade hoje -- disse tranquillamente o governador.

-- Já me tardava -- observou Afifonso de Albuquerque.

Pouco depois, viu-se um troço de seis ou sete arcabuzeiros do forte, retirando apressadamente, acossados por um considerável pelotão de hollandezes.

Na rectaguarda dos arcabuzeiros, Ayres Gil fazia frente de vez em quando, e não inutilmente.

-- Micer Arnau -- disse António de Lima para o condestavel da artilheria, que se achava pouco distante no baluarte -- experimentae-me o alcance d'essa colubrina, e varrei-me d'ali aquelles perros.

Dois tiros bastaram para arredar os hollandezes. Um d'elles caiu ferido de um estilhaço de pedra. Antes que dessem por tal os camaradas, apoderou-se d'elle o arcabuzeiro.

D'ahi a pouco Ayres estava na presença do governador.

-- Então, homem, -- perguntou António de Lima -- sairam-se finalmente a campo?

-- Sairam -- tornou o arcabuzeiro -- e bem acompanhados.

-- Tomaste lingua?

-- E de perto.

-- Vi. Que gente é?

-- Quatro mil homens, diz o prisioneiro, e dos melhores da expedição.

-- Só?

-- E trem de sitio.

-- Ah!

-- Com bom numero de gastadores.

-- Quem os commanda?

-- O seu capitão-mór em pessoa... um demónio que tem um nome arrevesado... como todos estes hereges.

-- Já sei. E onde estão?

-- A cousa de meio caminho da cidade para cá, obra de meia légua.

-- Avistastel-os ?

-- Tão bem que me mandaram cumprimentar à pressa .

-- Assentaram arraiaes?

-- Estavam n'isso.

-- Bem.

Ayres fez meia volta, e foi ver se, por intervenção de mestre Marçal, teriam curso no Recife uns marcos de prata, que encontrara casualmente no bolso do hollandez aprisionado.

O governador, ficando só com Affonso de Albuquerque e o moço commandante dos voluntários, voltou-se para os dois, e com serena gravidade, não isempta de orgulho, disse-lhes :

-- Fazem-nos a honra de nos pôr assedio ! Tinha rasão na ufania.

Tamanho desenvolvimento de forças, tâo consideráveis apercebimentos, tâo longos preparos, e o facto de empenhar-se na contenda o chefe Vanderburgo, como lhe chamavam os da provincia, era caso para ensoberbecer o mais modesto.

Cerrada que foi a noite, viram-se ao longe, enfileiradas pela restinga as fogueiras do campo hollandez.

Estava effeclivamente posto o assedio.

No dia seguinte começaram os trabalhos de aproxe, segundo a natureza do terreno e disposição local do forte. Era a bem dizer um cerco em regra.

Um cerco para tal forte como o de S. Jorge ! Grande honra, bem o dizia o governador !

XII

Allegoria

A artilheria do forte jogava com frequência. Os sitiadores todavia tinham começado a trincheira.

Estamos noite fechada. A raiz da muralha ardem enormes fogaréos, que Antonio de Lima fizera lançar dos parapeitos para allumiar os trabalhos dos inimigos.

Estes trabalhos são praticados no escuro, com o fim evidente de evitar maior damno da artilheria do forte. Os fogaréos, emquanto duram, illuminam a larga distancia o terreno chão. Sobresaem portanto as linhas, em que se vêem enfileirados os cestões e fachinas. Ao mesmo passo conserva-se na obscuridade o alto das muralhas. Os defensores, sem servirem de alvo aos atiradores inimigos, podem assim dirigir melhor as pontarias, e estorvar os progressos dos obreiros.

Vieira e Aífonso d'Albuquerque examinam curiosamente a estreita peninsula. É de phantastico effeito a vacillação das sombras na areia afogueada pelos clarões da chama afumada.

Ayres Gil, um pouco afastado, com os cotovellos fincados no parapeito e a barba sumida entre as mãos, contempla aquelle expectaculo com a indolência philosophica de homem para quem é trivial tudo o que está vendo, e o mais que adivinha. Atraz do arcabuzeiro, mestre Marçal, deprimido, agachado, encolhido, pequenino, a ponto de ficar absolutamente eclipsado pelo vulto roliço do seu amigo, espera com forçada paciência, que este se resolva a dar-lhe attenção.

Ouvem-se ao longe, quando ha intervallo de silencio, uns eccos soturnos. São os trabalhadores adiantando as galerias. Aquellas linhas tortuosas, que avançam lentas, mas inflexíveis, contra o forte, são os preliminares terríveis da acção destruidora.

Mais de duzentos gastadores abrem caminho seguro a um exercito. A sciencia em auxilio da força dispõe com certeza implacável os elementos do resultado.

Não póde mestre Marçal perceber porque razão, disparando de vez em quando, troveja somente a artilheria do forte, quando é voz geral que os hollandezes vem bem providos de bombardas grossas, de pedreiros de bater, de quartãos para defeza dos alojamentos, fallando-se até em dois basiliscos antigos de bala de oitenta libras, que são os enlevos de António de Lima. Como porém os cercadores nâo respondem á provocação, aproveitando-se d'esta abstenção magnânima quer o mestre tirar-se de duvidas, e para isso aguarda occasião opportuna de interrogar o amigo.

Pela primeira vez também assiste Vieira às operações de um assedio, e por motivos oppostos faz reflexões análogas às de mestre Marçal. O que no fogueteiro é curiosidade de precaução, é no mancebo estranheza da natural impetuosidade.

O commandante dos voluntários não poude ter-se que não perguntasse ao capitão da bandeira da nobreza :

-- Dir-me-heis, senhor capitão, porque os hollandezes conservam mudos os seus canhões, emquanto os nossos lhes estão por vezes causando tamanho damno?

-- É damno de homens, que lhes não dá cuidado, -- respondeu AíFonso de Albuquerque. -- Sobram-lhes muitos. Estes mercadores de Hollanda são acautelados. Que lhes aproveitara atirar de longe e a descoberto?

-- Para que lhes serve então esse trem, de que hontem com tanta arrogância andaram fazendo alardo?

-- Para que? Esperae, e desenganar-vos-heis.

-- Esperar ! E que mais hemos de esperar agora?

-- O que certamente vereis. Na guerra, amigo, fazei como S. Thomé : vêr para crer.

-- Fio-vos que não se me dará de vêr.

-- Ninguém vol-o duvida.

-- Quizera porém instruir-me, já que por emquanto nos não dão muito que fazer.

-- Esperae também, e sobrar-vos-ha trabalho.

-- Isso, para o crer, não é preciso vel-o.

-- Em que vos desejaes pois instruir, senhor Vieira?

-- No muito que ainda ignoro por inexperiente.

-- Dir-vos-hei que me tenho andado por uma escola, onde ao menos se aprende depressa.

-- Não a sei eu melhor do que a do nosso capitão-mór. E haveis fama de ser digno discipulo de tal mestre.

-- Quereis provar-me, senhor Vieira, que tão estremado sois em cortezia como em feitos de guerra? Dizei o que desejaes aprender. Se a vossa instrucção depender de mim, não vos desgostarei por mingoa d'ella no que souber. E não m'o agradeçaes. Cumpro n'isto as ordens de meu senhor irmão, que muito particularmente vos recommendou aos meus cuidados.

-- As. s.a e a vós, senhor Albuquerque, beijo as mãos por tal mercê. E acceito. Para começar, peço que me ponhaes a limpo o motivo que tem tido os hollandezes para andarem todo o dia cavando a areia, enterrando-se pelo chão, lidando ora n'uma direcção, ora n'outra, em vez de virem direitos a nós, como eu esperava. Pois não é perderem tempo ? Para que trazem elles todo esse poder de gente e bombardas?

-- Prazem-vos as parábolas?

-- Conforme.

-- As parábolas explicativas, bem entendido?

-- Basta serem explicativas para me prazerem. Sempre ouvi dizer que o exemplo...

-- É o modo melhor de esclarecimento. Ora pois, tomae bem conta no que vos digo.

-- Isso não precisaes recommendar-m'o.

-- Heis já olhado com attenção para um formigueiro ?

-- Dizeis?

-- Pergunto se já tendes observado um formigueiro? Não faltam elles ahi.

-- Confesso, com todo o respeito que vos devo, que não atino... O que pôde ter um formigueiro com...

-- Com os hollandezes? Atinareis já. Dizei: tendes observado?

-- A fallar a verdade nunca puz n'isso maior attenção.

-- Fazeis mal, senhor Vieira, fazeis mal. Muito se aprende no estudo dos animaes.

-- Mesmo das formigas?

-- Principalmente das formigas. Sabereis pois...

-- Repararei agora.

-- Sabereis pois que as formigas trazem também suas guerras e contendas...

-- Já o tinha ouvido.

-- Exactamente como os homens. Um mal é a guerra, mas não mal privativo da espécie humana.

De si para si julgou Vieira excessivo o rigor critico do capitão da nobreza. Se geralmente era um mal a guerra, podia em certos casos ser um bem. Por exemplo : se o fizesse alcançar a mão da linda menina de Berenguer.

Affonso d'Albuquerque proseguiu:

-- Como vos ia dizendo, as formigas, que são animaes mui bellicosos, apezar de pequenos, trazem frequentemente discórdias, e chegam ás vezes a dar batalhas.

-- Batalhas até! Sabe-se a causa?

-- As causas. As mesmas também que armam os homens. Ura bando tem mais, outro menos; estreitezas de umas, cubiças de outras. Succede que um formigueiro esfaimado sabe pelos seus exploradores...

-- Têem exploradores as formigas?

-- E sobre modo diligentes e perspicazes. Sabe pelos exploradores que ha nas visinhanças um formigueiro munido de bons celleiros, e farto de provisões para mantimento da tribu que o habita. Estes celleiros... Já de certo os tereis visto quando se levanta um chão novo para abrir os motombos da mandioca.

-- Assim é.

-- Estes são os cubiçados... Parece-vos curioso?

-- Curioso! Curiosíssimo.

-- Sabeis o que fazem então as formigas esfaimadas, querendo utilisar para si os bastimentos das formigas que vivem na abundância?

-- Apoderam-se do formigueiro abastado.

-- Agora vereis de que maneira. Como estes insectos são de seu natural industriosos e sagazes, aproveitam a hora em que os inimigos repousam, e levantam um conducto de terra, de tal arte construído que por elle de momento para momento se lhes aproximam.

-- Sem perigo?

-- Com o menor perigo possível.

-- E as de dentro não se defendem?

-- Defendem. Fazem até sortidas, em que se peleja encarniçadamente de parte a parte, umas para resguardarem as riquezas do pecúlio, outras para se apossarem da presa disputada. Nas tayocas do matto é isto vulgar, e admira que, sendo tão caçador e tão costumado a correr e pousar por maninhos, não tenhaes dado ainda por taes brigas.

-- Por minha fé que d'aqui em diante nunca mais deixarei de olhar e observar.

Começava o mancebo a comprehender, e com effeito achava, não só bom sabor de curiosidade, mas grande cópia de instrucção na parábola, ou, antes, no capitulo de historia natural do capitão.

-- O conducto -- ponderou Vieira -- vem a servir para acautelar os insectos que avançam, não?

-- Justamente. Ora, como os que se defendem não podem pelejar sempre, os que atacam, sendo ordinariamente mais numerosos, nos intervallos adiantam o seu tubo, ou galeria, d'onde podem facilmente rechaçar os que pretendam estorvar-lhes o trabalho. Percebeis?

-- Vou percebendo.

-- Não era para um moço de agudo engenho, como sois, deixar de entender tão claras praticas. D'esta forma, vão pouco a pouco os sitiantes estreitando os sitiados, até que, chegando-lhes ás defesas, lh'as desmancham e arruinam, entrando-as com muito mais facilidade.

-- N'esse caso estamos nós como as formigas que defendem os celleiros?

-- Pouco mais ou menos.

-- E os hollandezes ir-nos-hão estreitando até nos poderem atacar a salvo?

-- A salvo não digo.

-- Isto é, com menos risco e mais certeza?

-- Isso sim. Com certeza inteira.

-- Occorre-me agora uma duvida. As formigas, que eu saiba, não teem armas de arremesso.

-- Não tem; reflectis bem. Que inferis d'ahi?

-- Figura-se-me que esta circumstancia diminue um pouco a força da parábola e ha-de alterar a conclusão d'ella.

-- Nem por isso.

-- Por que?

-- Ha uma pequena differença, mas o resultado é o mesmo.

-- O mesmo?

-- Ordinariamente. Tendes curiosidade de saber por que forma?

-- Pois não vos peço que vos digneis completar a minha inslrucção !

-- Eu vos digo a differença. Havendo nas batalhas de homens... entre nós e os hollandezes por exemplo...

-- Nâo o ha mais a propósito.

-- Havendo nos nossos combales essas armas que chegam longe, taes como a artilheria...

-- Justamente, a artilheria.

-- A differença é só que os hollandezes, em vez de alongarem o seu tubo ate á entrada do formigueiro... até á cortina do forte, quero dizer... param por ahi a distancia de meio tiro de canhão, e chegando a esse ponto, no nosso caso direi sempre, uma noite lhes basta para levantarem as suas baterias e plantarem os seus pedreiros e mais peças de bater.

-- De sorte que...

-- De sorte que, em pouco tempo, como estes tiros de perto são certeiros e destruidores, as muralhas que nos cobrem desabam em escombros, e convertem-se em rampa, ou talude, por onde elles podem marchar ao assalto, como quem sobe uma encosta. Nas praças de maior força, com obras regulares e fortificações exteriores, é o caso mais complicado. São necessárias circumvalações extensas, parallelas, caminhos cobertos, e praças d'armas. Preparam-se mantas, levantam-se tranqueiras, escavam-se minas, arredondam-se meias luas, aparelham-se bastiões e fortins. Uzam-se de parte a parte muitas invenções e engenhos. Dispoem-se e armam-se baterias de varia feição e traça ; já enterradas, já cruzadas; estas de enfiar, aquellas de revez; umas á escarpa, outras á barba. Tanto que se vão chegando e aproximando, abrem-se-lhes fossos, e correm-se-lhes parapeitos, conforme á sua qualidade. Fazem-se emfim trabalhos sólidos, e não bastam só gabionadas, como essas que estão empregando ahi os hollandezes, mais expeditas é verdade, mas pouco seguras. A final porém tudo vem a dar no mesmo. É uma proporção e um calculo. Dia mais, dia menos, tanto vale... Que vos parece a minha parábola?

-- Que é como as da escriptura. Sem embargo... estão-me ainda remordendo uns pequenos escrúpulos, que por seguro tenho a vossa bondade desculpará !

-- Dizei: para saber bem, é necessário saber tudo.

-- E com quem tão cabalmente sabe ensinar, gosto é aprender.

-- Dizei, dizei.

-- Não poderiam os hollandezes varejar-nos assim mesmo de longe... quando mais não fosse, para favorecer os seus trabalhadores incommodando-nos?

-- Dizeis bem, e em assedio mais formal não o dispensariam. Collocam-se para isso baterias na circumvallação ; mas sempre levam tempo, e é preciso haver no terreno elevações que favoreçam esta disposição. Estão apressados os homens, e vão só ao essencial. O ser a lingueta em que nos attacam um plaino, e toda ella areal, não dá muito para taes obras, nem o forte pede tantas precauções. O que elles querem é vêr as muralhas em baixo e os homens descobertos. Deixae-os chegar ao ponto desejado, e notareis como esses canhões, cujo silencio vos dá que pensar, fallam alto e claro.

-- Que fallem : responde-se-lhes.

-- Responde ; mas elles bradam por muitas boccas e podem muito bem calar-nos. Quem mais grita mais razão tem, não sabeis? Chama-se a isto abrir brecha. Para ahi se guardam os nossos hereges de Hollanda.

-- Dessa forma estaremos a descoberto em pouco tempo.

-- É possível.

-- Amanhã?

-- Amanhã ou depois. Não se póde dizer bem ; mas não tardará.

-- E para abrir brecha bastam...?

-- Horas, ás vezes. Segundo a força das muralhas e o numero e qualidade dos tiros.

-- Penso que não teremos então que esperar muito.

-- Pensae, pensae : é prudente.

-- Outra observação.

-- Ouvirei.

-- E porque não seguem os hollandezes uma linha recta ? Seria mais breve do que virem ás voltas e rodeios... se é que me não engana a distancia.

-- Não vos enganaes certamente. A razão é naturalissima: em linha recta, bastaria apontar-lhes um canhão bem á bocca da galeria para lhes varrer quanto lá estivesse... A isto se chama enfiar. Assim de lado... de revez dizemos nós... em vez de atirar aos homens, temos de atirar á trincheira, e a gente lá anda e communica por dentro com menor perigo.

-- Ah!

-- Nada ha tão trivial.

-- Quanto mais viver mais aprender, senhor capitão. E não se lograria de algum modo impedir esses malditos conductos?

-- Faz-se o que se póde, como vedes. Nem por isso deixam de continuar. São teimosos estes homens do Norte. De vez em quando lá se lhes desfaz um lanço de obra, e sempre atraza. É o mais que podemos conseguir... Agora por exemplo... Olhae!

XII

Em que mestre Marçal satisfaz as suas curiosidades, e Vieira continua a sua instrucção

António de Lima estimulava micer Arnau e ordenava as pontarias. Duas balas successivas, recochetando no isthmo e levantando nuvens de areia, tinham profundamente cavado a trincheira. A terceira derribou um bom pedaço da galeria, sepultando muitos dos obreiros. Estes effeitos apontava Affonso d'Albuquerque ao mancebo.

Ayres Gil observava-os também. Ao ver o reboliço que ia entre os hollandezes, voltou-se esfregando as mãos, e exclamou com ares de satisfação profunda :

-- Bom! Uma hora de trabalho mais, e um par de hollandezes menos !

Ouvira mestre Marçal que os antigos tinham pintado calva a occasião, e com uma só madeixa no toutiço : lançou-se avidamente á madeixa da occasião.

-- Senhor Ayres -- disse -- nâo me explicareis vós por que razão vos mostraes tão contente?

-- Porque ?

-- Não se me dava de saber.

-- Vinde cá.

-- Eu!

Mestre Marçal recuou aterrado.

-- Vinde, -- continuou Ayres, travando-lhe do braço, e approximando-o do parapeito, apesar das suas desesperadas resistências.

-- Jesus ! Santo nome de Jesus! -- soluçou a tremer o fogueteiro, passado só com a idéa de deitar a cabeça fora da muralha.

-- E se os hereges atiram?

Ayres Gil encolheu os hombros.

-- Olhae, mestre -- insistiu.

-- Para que?

-- Provavelmente para vêr. Não ha perigo, homem... se é que sois um homem, o que eu duvido.

Mestre Marçal, sem se indignar com os desdéns vilipendiosos do arcabuzeiro, estendeu cautelosamente o pescoço por cima do hombro de Ayres.

-- Que observaes? -- interrogou este.

-- Nada.

-- Nada! Repare bem.

-- Oh!... esperae... Vejo lá em baixo, lá ao longe, uns vultos... bastantes por signal...

-- Bons olhos tendes, mestre Estouro.

-- Assim como se fora mó de gente a rolar barris...

-- Cestões.

-- Credo ! -- bradou n'isto o fogueteiro mergulhando atraz do seu amigo.

Tinha batido outra bala na face da trincheira que os hollandezes procuravam consolidar. Material e gente padecera novo estrago. O coração sensível do mestre não era para taes espectáculos.

-- Credo ! Virgem Maria Santíssima ! -- repeliu elle persignando-se horrorisado.

-- É isso mesmo, -- tornou fleugmaticamente o arcabuzeiro.

-- Isso mesmo, o que ? -- interrogou mestre Marçal sem o entender.

-- Não n'os vedes a bracejar e a revolver-se como endomoninhados que são? Agrada-lhes pouco a festa, pelos modos... Isso desejáveis saber provavelmente.

-- Retiram? -- acudiu o crédulo mestre, acolhendo uma súbita esperança.

Ayres fitou-o attonito.

-- Retira! quem?

-- Os hereges.

-- Retiram! Pelo contrario, avançam.

-- Ai!

Mestre Marçal sentou-se desfallecido na banqueta.

-- Descançae -- proseguiu Ayres. -- Teremos um ou dois dias. Não arremete essa gente contra cortinas e bastiões, como mestre Marçal se acolhe às pipas... ou um láparo á toca. Hemos-de-lhes dar ainda que fazer.

Muito mais do que todos os epigraramas desagradou ao mestre aquella expressão collectiva.

Desmaiara-se de todo o honrado fogueteiro com a palavra «avançar», interpretando-a á letra. Socegou algum tanto sabendo que o risco maior não vinha immediato.

São assim os pusillanimes, se não é que em todos o bem próximo faz esquecer o mal remoto.

-- Asseguraes-me então que não ha perigo... por ora?

-- Não ha, não, mestre, -- retorquiu Ayres. E agradecei a Deus quando o houver.

-- Porque? -- perguntou mestre Marçal espantado, não vendo em tal successo nenhum motivo para acções de graças.

-- Porque! Porque estareis em companhia de gente honrada e de esforço... o que, entre nós seja dicto, mestre, nem por isso merecíeis. Todos hemos de morrer ; e a melhor morte para um homem é cair de cara para o inimigo, principalmente quando os inimigos são uns scismaticos e hereges, como esses de Hollanda. Assim acaba em serviço de Deus e da sua terra. Verdade é, mestre Estouro, que não sois homem senão na figura... e ainda essa!...

Mestre Marçal, como dito fica, não se offendia excessivamente com os sarcasmos do arcabuzeiro. Em compensação as suas máximas philosophicas eram-lhe soberanamente antipathicas.

-- Pague-vos Deus ! Quero antes viver só do que morrer acompanhado, -- resmungou o mestre, abaixando cautelosamente a voz, e dando as costas como enfadado.

Não tinha elle ido ali unicamente para se distrahir em colloquios. Sabia quanto lhe importava saber. Podia ainda dormir uma noite descançado. Não queria averiguar mais.

Continuava entretanto a conversação entre Vieira e Affonso d'Àlbuquerque.

-- Com effeito -- dizia o primeiro -- agora entendo para que são todas estas delongas e trabalhos. Quereis que vos diga uma coisa, senhor capitão?

-- Folgarei de ouvir.

-- Grande arte é a arte da guerra, não o negarei eu : confesso-vos porém que me ferve o sangue quando vejo com estes artificios zombar friamente do esforço maior e do maior coração ! Parapeitos ! e aproches ! e trincheiras ! Porque se não ha de a contenda decidir braço a braço e rosto a rosto ? Que bastiões e que machinas valem um peito valoroso e uma boa causa? Acobertar-se da morte quem pôde ir desafial-a de olhos fitos e cabeça levantada ! Ah! senhor Affonso d'Albuquerque, essas artes...

-- Não digaes mal d'ellas: se servem para o ataque, servem também para a defeza.

-- Não affirmaes que os hollandezes nos hão de entrar ?

-- É quasi certo... salvo somente um caso.

-- Que caso?

-- Caso Deus nos mande um esquadrão de anjos a pelejar por nós, como já tem succedido, ou ponha tal medo a esses hereges, que elles dêem a fugir sem mais tir-te nem guar-te. Seria na verdade providencia, e um christão nunca d'ella duvida. Direi todavia que me parece pouco provável.

-- Não me destes também a entender que se podia calcular dia a dia a resistência da guarnição mais valente ?

-- Dia por dia e hora por hora.

-- Isso é. Por tal modo espreita um inimigo sem piedade a agonia e as convulsões desesperadas de uma pobre cidade, ou fortaleza, lentamente suffocada entre os braços disso a que chamaes arte. É quasi como o verdugo a contar os suspiros da victima.

-- Nem tanto assim. A victima ás vezes decepa os braços ao verdugo. Ha combate e ha lucta. Hoje por vós, amanhã por nós... Como inexperiente e mancebo fallaes, senhor Vieira. O entendimento multiplica a força. Pois não é em tudo assim? Olhae para vós mesmo. Ousado e vigoroso sois. E só na força do braço e na justiça da causa vos confiaes? Não : exercitaes-vos nas armas e medis os golpes. Sentis uma coisa grande que de dentro vos incita e vos inspira. Isso faz os heroes e os capitães ; e isso é mais do que valor. Justiça, cada qual a julga ter, ou a pinta a seu modo...

-- Justiça, como deve ser, uma só.

-- Para Deus. Para os homens é como a fazem. Por isso ha guerras... e estas artes. A sciencia dos cabos é a alma dos exércitos. Tendes lambem outro exemplo em António de Lima. Haverá mais esforçado homem, e mais amante da sua terra?

-- Não ha, de certo.

-- Engeita elle comtudo os artifícios que podem resguardar os seus e offender os contrários? Expor vidas... ou a vida... quando se póde dispensar, é louca temeridade; é um crime contra a pátria, por ser inútil sacrifício, que depois vem a fazer falta na occasião opportuna... Não me interrompaes .. Sei já que o fizestes, e fizestes mal. Verduras são de mancebo, de que nos annos maduros vos heis-de arrepender. Admiram-vos: está satisfeito o orgulho. Descei porém ao coração : que vos diz a consciência?

Ficou profundamente pensativo o mancebo. As reflexões de homem luctavam com os impetos do sangue e as ardencias da mocidade.

Em quanto elle calava e reflectia inclinado, comtemplava-o Affonso d'Albuquerque affectuosamente, estudando-lhe na intelligente physionomia o effeito da advertência.

Passados instantes, Vieira alçou o rosto, e proseguiu :

-- A propósito.

-- O que?

-- Uma lembrança.

-- Uma lembrança vossa ! Dizei.

-- Pois que os hollandezes põem tanto empenho em adiantar os seus trabalhos, o nosso hade ser... deve ser estorvar-lh'os.

-- Já vos disse que sim; e, se não me engana, expliquei-vos...

-- Perdoae, senhor capitão. Bem sei que me não cabe dar conselhos onde estão pessoas de tanta auctoridade e experiência. Se digo o meu parecer... com licença vossa... é para melhor me instruir.

-- Podeis fallar.

-- Digo eu que, além da artilheria e dos outros artifícios, ha, supponho, alguns modos, não só de impedir o que se está fazendo, senão de desfazer o que está feito.

-- Dizeis bem: ha.

-- Uma boa sortida, por exemplo. Da vossa parábola creio ter percebido que as formigas sitiadas muitas vezes as faziam.

-- Muitas vezes. Um modo é, com effeito; talvez até o modo mais efficaz. D'isso porém, concordareis, nem vós nem eu somos juizes.

-- Assim é.

-- E não seria demasiado arrojo, com tão diminuta guarnição, ir affrontar todo esse poder?

-- Que nem todo está sobre as trincheiras. Elles não podem vigiar juntos, nem esperar sempre. Menos éramos nós aqui no primeiro ataque, e todavia...

-- E todavia fostes o primeiro que saistes, sem pensar no numero.

-- Oh então o inimigo ia roto.

-- Ainda assim, tanto vos adiantastes, que só fizestes esquecer a grandeza da imprudência com a grandeza maior do vosso animo.

-- Não dizia isto agora para...

-- Para repetir o que todos confessam? Bem sei. A vossa lembrança não é para desprezar.

-- Nem ha de ser desprezada! -- interrompeu António de Lima, que se approximara sem que o presentissem os dois entretidos na palestra.

XIV

A sortida

Acompanhava o governador um dos voluntários, que haveria uma boa hora o seguia como sombra.

Vieira, com o enleio de ter sido escutado por tal homem, balbuciou algumas desculpas.

-- Observando se aprende; perguntando se sabe -- disse António de Linia. -- Boa é a vossa lembrança, senhor Vieira: mas estava prevista e prevenida. Escutae.

Fitou o governador os olhos no rio. Ouvia-se daquella banda um sussurro prolongado, que não era nem o correr d'agua, nem o ramalhar das arvores, e tão ténue, tão ténue, que ninguém lhe dera maior attenção.

De repente cortou os ares um grito doloroso e penetrante: soava da margem opposta, e repetiu-se por tres vezes a espaços irregulares.

-- Ouvis? -- perguntou António de Lima aos dois.

-- É o pio do kamichi -- acudiu Vieira, sorrindo como familiar com todas as vozes da floresta. -- Nenhuma ave se ouve tão bem e tanto a miude pela calada da noite.

António de Lima sorriu também.

-- Respondei -- ordenou ao voluntário.

O voluntário reproduziu o grito, modulado tão exactamente, e com tal perfeição imitado, que assombrou o próprio Vieira, apesar da sua pratica n'estes estratagemas.

No mesmo ponto, o governador, voltando-se para o irmão do capitão mór, disse-lhe naquella voz resoluta e imperiosa, que lhe era costume em occasiões decisivas.

-- Senhor Affonso d'Albuquerque, tomae a companhia da vossa bandeira. Mais trinta homens vos esperam promptos na praça de armas. Tudo está disposto e apercebido. Saí em silencio, avançae prestes, e dae rijo sobre os hollandezes. De nada mais cuidareis. Golpeae, acossae, destrui, talae. Que fique inutil quanto estiver feito. Segundo o que for occorrendo, vos mandarei novas ordens. Amanhã será talvez um dia de gloria!

-- E eu, senhor governador?-- disse Vieira scinlillando-lhe os olhos.

-- O vosso logar é na bandeira do senhor Affonso de Albuquerque.

Insigne era o favor, quasi uma nobilitação. Vieira estremeceu de enthusiasmo e orgulho com a idéa de se approximar assim a D. Maria Cezar.

Tinham sido os fogareos successivamente apagados por ordem do governador. A mesma artilheria afrouxou, como se o cançasso houvera rendido as forças á guarnição, e esta quizera restaurar as forças descançando.

Minutos depois, cincoenta homens escolhidos, com Affonso de Albuquerque e Vieira á frente, galgavam calados o espaço tenebroso, investindo aos aproxes.

Em quanto os do forte marchavam com impeto contra as companhias dos gastadores hollandezes, troou, além do rio, um brado immenso e temeroso, que mal se tomara por humano.

-- Temos novidade grande -- communicou Vieira em voz baixa ao capitão da nobreza, apressando ambos o passo.

-- Parece que temos -- respondeu este do mesmo modo.

-- Conhecestes?

-- Conheci.

-- É o grito de guerra das taboyares, não?

-- É. E direi mais, é o Polyguarassu em pessoa.

-- O grande chefe das serras da Ibiapaba?

-- Eile mesmo.

-- Quem o havia de esperar nas margens do Biberibe !

-- E os missionários?

-- Dizeis bem: os missionários nol-os trouxeram. E não é soccorro para desprezar, sabeis?

-- Se sei. Em os hollandezes vendo aquellas figuras horrendas!...

-- A estranheza das figuras é o menos. E a agilidade com que salteam o inimigo! E a destreza com que meneam suas armas terriveis !

-- Lembraes-vos do que António de Lima nos disse? «Amanhã será talvez um dia de gloria !»

-- Lembro, e cuido que já o entendo. Anda aqui a mão do sr. capitão mór.

-- Estou que vos não enganaes. Vamos a ver. Calemos agora. Hemos de estar perto.

Um tiro de arcabuz interrompeu o dialogo. As avançadas hollandezas davam signal de ataque por este lado. Mais ao longe andavam já em rumor os seus arraiaes.

O troço de sortida caiu como um vendaval sobre os trabalhos dos sitiadores. Levavam todos os do forte uma cruz branca no peito para se distinguirem e mutuamente se não offenderem na obscuridade. N'um relance foram as primeiras obras entradas e destruídas.

Vieira saltou os aproxes, primeiro que ninguém, como se quizera demonstrar ao capitão da nobreza, não só como era digno de figurar na sua bandeira, senão como era capaz de confirmar na pratica as theorias que pouco antes desenvolvera.

Tinham sido os hollandezes tão de súbito colhidos, que nem tempo tiveram para fazer uso de dois sacres, assestados nas obras para repellir quaesquer agressões desta ordem.

-- Temos reforço de artilheria para o forte -- clamou Vieira vendo-os.

E com admirável accordo e desembaraço fez rapidamente transportar para o sopé das muralhas as duas pequenas peças, tomadas logo no principio da refrega.

Ajudava o feito o tumulto que ia entre os hollandezes. Não era este sem causa. O grito dos gentios taboyares chamara a attenção para o lado do rio. Seguiu-se logo o impetuoso ataque dos homens da sortida.

No mesmo ponto ouviu-se o baque de muitos corpos que se arremessavam á agua. Não sabiam os sitiadores por que ponto eram deveras ameaçados. As guardas das trincheiras, distrahidas, perplexas, receiosas, hesitando entre a frente e o flanco, onde mal haviam supposto risco, desordenaram-se facilitando a acção aos do forte.

Mathias de Albuquerque tinha imaginado e executava um rasgo de grande atrevimento. O pio, que se ouvira no forte, era, como já se terá entendido, signal previamente concertado entre o capitão mór e o governador.

Conhecia bem o primeiro a posição dos hollandezes. Fundamentando neste conhecimento o seu plano, reunira rapidamente as companhias da milicia, alguns poucos soldados veteranos, que lhe haviam ficado no Recife, e aggregando-lhes a tribu guerreira dos gentios taboyares, chamada em auxilio da capitania, lograra fazer um corpo de 700 homens, pouco mais ou menos. Com elles traçara assaltar de improviso os arraiaes de Vanderburgo, dispersar as suas forças, recobrar Olinda, e inutilisar assim todas as vantagens dos invasores.

Audaz em extremo era o projecto, e ao mesmo passo prudentemente combinado. Tão profundo fora o segredo das operações, que os hollandezes, ainda pouco práticos do paiz, não se temiam nem se acautelavam senão do forte. Atacados simultaneamente de frente, de flanco e pela retaguarda, de pouco lhes serviria o numero, no estreito logar em que seriam forçados a concentrar-se.

Uma circumstancia favorecia especialmente a empreza. O Biberibe, apesar do seu vulto, era em algumas épocas e em certos pontos vadeavel na baixa mar. Onde mais se espraiava, mais fácil transito offerecia aos conhecedores dos vaus, aproveitando bem a opportunidade. Isto ignoravam os hollandezes, que se julgavam guardados pelo rio, muito mais não havendo no Recife meios de transporte capazes de os inquietar. N'isto punha tambem o capitão mór a sua maior confiança.

Medindo tudo, ordenara elle a cada um o seu posto. Na noite antecedente alguns taboyares, com a subtileza de selvagens, haviam explorado os vaus. Estavam fixadas as horas para a marcha das diversas columnas, determinada a posição de todas, e advertida a respectiva obrigação. Quanto a humana prudência podia prever, fora previsto.

O resultado da tentativa dependia, como é obvio, da celeridade e vigor da execução, do perfeito accordo das combinações, da exactidão e pontualidade no desempenho.

A multiplicidade e simultaneidade dos ataques poria certamente em alvoroço o campo hollandez. Vindo o accommettimento principal da parte menos guarnecida e vigiada, maior seria necessariamente a turbação augmentada com as trevas, e mais fácil a derrota dando a impetuosidade e arrojo assignalada primazia sobre o numero, a regularidade e a disciplina.

Seria incontestavelmente um dia de gloria o dia immediato, e não era temeridade esperal-o.

Comprehendera o capitão-mór que nas suas circumstancias, com os elementos que tinha, e com tanta desegualdade de forças, esta era a guerra que podia iniciar com esperanças de êxito. Para operações regulares faltavam-lhe tropas amestradas. Em súbitas emprezas aproveitava tudo, a ignorância local do inimigo, o conhecimento que tinha do território, o valor pessoal da sua gente e as especiaes aptidões della. Servia-se ao mesmo tempo dos auxiliares gentios, quasi inúteis n'uma campanha táctica e formal, mas admiráveis para as emboscadas do matto, como convinha á natureza do paiz e á occasião.

Em toda a parte, e em todos os tempos, os generaes experimentados e prudentes procedem de egual modo na defensiva, contra um invasor novato, bem que mais numeroso. A superioridade d'este é muitas vezes neutralisada e destruida pela pratica do terreno, e immediato emprego de poderosos instrumentos de acção, ignotos ao inimigo. Para que taes instrumentos sejam efficazes cumpre utilisal-os, antes que esse inimigo os conheça e os estude, antes que os aniquille ou em seu serviço os organise, se é hábil.

Sabia o capitão mor bem a fundo estas maximas, e por isso se apressara em dispor emprehendimento tão decisivo, certo de ganhar com a presteza meia vicloria; não menos certo de que seria depois mais difficil, principalmente tendo por competidor um capitão como Vanderburgo, que também por sua parte não esperdiçava expedientes.

Tendo livre pelo Recife as communicações com o forte, Mathias de Albuquerque passara, como se viu, particulares avisos, e ordens minuciosas a António de Lima. Já também se sabe que homem era este para as cumprir, e para entender em quanto lhe fosse incumbido.

António de Lima preparou em segredo tudo o que á sua parte cabia : e com tal arte e precaução o fez, que, não só os hollandezes não presentiram o menor indicio, mas até os do forte de nada souberam senão no próprio momento.

Era o systema ordinário do governador. Por isso já ninguém se admirava, nem lhe fazia perguntas indiscretas.

Desde o anoitecer se não tirara elle do baluarte que dava para o rio, e por mais de uma vez mostrara signaes de impaciência como se lhe tardasse coisa esperada. Só fora elle interromper a conversação de Vieira e Affonso d'Albuquerque depois de verificar bem o que d'aquella banda se passava, circumstancias que todas denotavam a prosecução obstinada n'uma idéa fixa. Como porém não havia quem tivesse a confiança de lhe inquirir ou commentar as idéas, o caso não parecera singular, e se houve observações ficaram inéditas.

Cumpre agora dizer como estas impaciências do governador não tinham sido sem causa.

Estava ajustada a hora em que tudo havia de achar-se prestes para a sortida. Áquella hora havia de ouvir-se o combinado signal, de que também temos já conhecimento.

Essa hora passou, passou sobre ella outra, e o signal sem se sentir!

Se o governador estaria, ou não em cuidados!

Havia demora, e sabia a importância d'ella. De que procederia? Ter-se-hia transtornado o plano? Mudaria o capilão-mór de intenção?

Nada d'isto. Retardara a marcha um pequeno incidente, pequeno e insignificante, d'aquelles que são vulgares na vida, mas na guerra muita vez desastrosos.

Uma companhia de milicia, chegada de mais longe e menos conhecedora do terreno, por impericia do guia, ou por ser grande o escuro, perdera-se do trilho indicado. A poucos passos estava embrenhada no mato.

Dando o guia pelo engano, procurou orientar-se, dobrando o passo para restaurar o tempo perdido. Seguia-o a companhia impaciente.

Aconteceu porém o que sempre acontece, quando as instancias do tempo tiram o accordo e reflexão. Quanto mais os milicianos procuravam acertar a direcção perdida, mais se transviavam no denso labyrintho do arvoredo, onde era morosa e difficil a marcha por entre os liames dos cipós e a aspereza dos espinhaes bravos.

De repente viu-se a companhia por todos os 1ados cercada como de phantasmas, que sem rumor lhe surgiam debaixo dos pés ou de trás das balsas.

Tinha dado na columna dos taboyares, que atravessavam directamente o mato, arrastando-se como reptis, passando por onde ninguém mais passaria, cortando ao rio sem fazer bolir uma folha, sem despertar uma suspeita, com a precaução e astúcia de homens costumados a andar pelo meio dos inimigos sem delles serem presentidos.

Tinha o capilão mór certificado aos taboyares que lhes ficaria exclusivamente aquelle caminho, só a elles fácil. Vendo os gentios aquelle troço armado, imaginaram ser alguma partida nocturna de hollandezes saidos de Olinda, e rodearam-na ameaçadores. Os da companhia, desprevenidos, no primeiro impulso aprestaram as armas. Com a noite profunda e a difficuldade de se intenderem teria logar um deplorável confliclo, se não accorressem logo os padres da missão que avançavam ao combate na frente da tribu auxiliar, e se não interviesse o próprio chefe Potyguarassu, que era de todos o mais conhecido e pratico do idioma portuguez.

Explicou-se tudo de parte a parte, e as duas columnas seguiram para diante como poderam.

Este incidente porém levou tempo, e o Potyguarassu, a quem estava incumbido abrir caminho pelos vaus, pois que pessoalmente os havia explorado, chegou boas duas horas depois da aprazada.

Não parecia em verdade irremediável o atrazo. Tanto pois que os taboyares apontaram, o capitãomór ancioso não vacillou em dispor os ataques e fazer dar o signal. Tarde fora já para recuar, e cada minuto mais que se perdesse valia a província.

Acudiram com ardor as columnas aos pontos designados, na esperança de rematarem com um triumpho as operações momentaneamente interrompidas.

N'isto estavam quando o troço da sortida, levado á temeridade com a visinhança do soccorro, se metteu confiadamente pelos aproxes dos hollandezes.

Entreviam todos finalmente o projecto do capitão-mór, assim pela começada execução do plano, como pela agitação e prolongada incerteza do inimigo.

O enlhusiasmo, dobrando a fúria, saudava mais do que a victoria, applaudia a libertação e a desaffronta !

XV

A maré

Disse que se haviam sentido os baques de vários corpos no rio. Eram alguns moços do porto, nadadores excellentes, que, menos soffridos, e vendo já do outro lado travados com os hollandezes os homens de Affonso de Albuquerque, se tinham deitado á agua fiados na sua destreza, e atravessavam denodadamente para se reunirem aos do forte, sem esperarem a passagem das columnas. Distinguia-se á frente d'estes pela corpulência e audácia um negro hercúleo, por nome Henrique Dias, um dos futuros heroes das campanhas de Pernambuco. Henrique Dias com os seus, tomando de revez a linha dos aproxes, rematou o desbarato dos hollandezes nas trincheiras mais avançadas.

Entestavam as columnas resolutamente aos vaus.

O Potyguaiassu, com as suas pinturas e plumagens de guerra, remetteu é principal passagem.

Avançavam ao mesmo tempo pelos outros pontos as demais hostes com os taboyares por guias. Era em todos indisivel o ardor. Os gritos dos combatentes e os brados victoriosos, que soltavam do outro lado os do forte, electrisavam os ânimos, e dobravam a impaciência aos soldados do capitão mór.

Voava este de uma a outra companhia, estimulando a todos com a voz e a presença.

A poucos passos dava a agua pelos peitos aos mais adiantados. Levantaram intrepidamente as armas acima das cabeças, e proseguiram.

A força da corrente levou um ou outro menos prudente. Os camaradas continuavam todavia sem se desmandarem.

D'ahi a pouco faltou o pé. Ao esforço e constância oppunha-se um obstáculo terrível. Enchia a maré.

Com o tempo perdido tinha passado o momento opportuno. Nem vau nem accesso. Por toda aparte um fosso largo, immenso, impetuoso, inexorável.

Porfiavam os chefes desesperados. Cresciam as aguas impiedosas.

Foi rápida mas heróica esta luta silenciosa do homem e do elemento. Cederam os homens emfim : mas cederem ao impossível. Os da frente, recuando ante o pego revolto e profundo, imprimiram às companhias um movimento retrogrado, que foi o primeiro signal de desalento para os menos aguerridos e audazes.

Por differentes vezes e por diversos pontos tentou Mathias de Albuquerque forçar a passagem. As ondas, mais poderosas que os hollandezes, sopearam fatalmente o arremesso.

Não podia resolver-se o capitâo-mor a abandonar a empreza. Quizera, como Moysés, poder dividir as aguas. Não seria já um ataque súbito, e as vantagens do surprehendimento estavam frustradas ; contava ainda porém com a irritada energia dos seus e a fúria selvagem dos taboyares humilhados.

Mas a agua a crescer, a crescer !...

Este inlervallo salvou os hollandezes. Vanderburgo acudiu em pessoa, reconheceu a situação, e ordenando as suas forças, restituiu a todos a confiança. Formaram-se rapidamente as coronelias de reserva, e guarneceram o isthmo fazendo frente ao rio !

Só o troço da sortida ia avante, entranhando-se pelo dédalo das linhas de aproxe, impellindo, devastando, destruindo sem descanço. Vieira e Affonso de Albuquerque davam o exemplo, rivalisando em denodo e vigor. Prostrava cada golpe um inimigo. Os trabalhos próximos do forte, derrocados pelas mãos diligentes dos voluntários, serviam de valla aos cadáveres accumulados pelas armas da companhia da nobreza, que não dava quartel. Os soldados das guardas, e os gastadores desaccordados caíam como espigas ceifadas sob as largas espadas e os piques afiados dos soldados do Albuquerque. Os primeiros, recuando sobre os supportes, baralhavam-se com elles acrescentando o numero das victimas.

A própria mosquetaria lhes era inútil, porque tão travados andavam todos, que se não poderá fazer uso d'ella sem egual risco para uns e outros. Os poucos hollandezes que faziam frente ainda, mostravam cada vez maior frouxidão, olhando continuadamente para a outra margem, d'onde os ameaçavam novos e incógnitos perigos.

Vanderburgo em breve reconheceu a impossibilidade com que lutava Mathias de Albuquerque, e, mais socegado d'ali, tornou-se com desassombro para o ataque da frente, que lhe dava menos cuidado. Fazendo voltar o rosto aos fugitivos, reforçando-os, e envergonhando-os do pânico affrontoso, restabeleceu o combate.

Como era natural, aquella molle desproporcionada começou a oppôr um dique insuperável aos heróicos aggressores. Alguns tinham já caído. Por mais que os outros ferissem e carregassem, já não podiam avançar : levantava-se-lhes diante um muro de ferro.

Avivando-se a resistência e não apparecendo o soccorro, o corpo de sortida esmoreceu. Notou isto Vieira, e quiz observar o que detinha o impulso dos seus. Subindo a um morouço feito pelos escombros da trincheira alongou es olhos pelo isthmo. As filas dos hollandozes iam-se condensando em batalha cerrada e profunda. Avultava na rectaguarda d'estes uma palanca de estacaria e terra. Ali tinham os sitiadores abrigada a arlilheria grossa, destinada a prostrar as defezas do forte, duas colubrinas bastardas, das que eram usadas em Flandres, e alguns pedreiros. Estava também já disposto um petardo.

A pouca distancia rodavam três quartaos, que Vanderburgo fazia diligentemente approximar da margem para varejar o lado opposto, onde as companhias do capitão mór se apinhavam retrocedendo.

Comprehendeu o mancebo n'um relance o intuito do general hollandez, e occorreu-lhe a insensata heroicidade de se apoderar também d'aquellas peças.

-- A'vante! -- bradou, lançando-se abaixo do pedestal fumegante, e investindo novamente com mais furia do que nunca.

Aonde o seu braço alcançava abria-se uma larga brecha na turba compacta. Recuaram-lhe na frente os hollandezes, e começaram a executar um movimento que parecia de retirada.

-- Aos canhões, aos canhões ! -- continuou Vieira enthusiasmado com este êxito, atirando-se para diante como um leão.

Um braço possante -- e bem possante devia de ser para detel-o -- puxou-o vigorosamente para trás.

-- Quem se atreve... -- gritou o mancebo voltando-se attonito e enfiado de cólera.

-- Eu, -- tornou-lbe rapidamente Affonso de Albuquerque, sustendo-o com a mão esquerda, em quanto com a direita vibrava um bote furioso a um official frisão, que, vendo o acto, arremetia para elle com a espada feita.

Os hollandezes não recuavam, apartavam-se aos lados.

Vieira, entre respeitoso e irado, indicando as peças clamou para o capitão da nobreza, que mais o tratava por amigo do que por inferior:

-- Se chegamos ali... que presa!

-- Se d'aqui passaes, nenhum de nós volta ao forte -- retorquiu Affonso de Albuquerque apontando para a outra margem.

Distinguiam-se effectivamente, à claridade da lua que n'este intervallo se levantara, as longas columnas das milicias e dos gentios retirando lentamente para o mato.

Vira emfim o capitão mór a tentativa irremediavelmente baldada. Que faria elle em expor esta gente sem utilidade nem resultado ao fogo dos hollandezes apercebidos?

Aos da sua hoste que, segundo vimos, tinham posto pé na restinga dando e recebendo feridas temerosas, ficou inútil aquelle esforço parcial sem ordem e sem concerto. D'estes temerários o maior numero succumbiu. Lograram alguns romper até se unirem ao troço de sortida. O resto só poude achar salvação arrojando-se de novo ao rio. Foi d'estes o valente Henrique Dias, que só desistiu do combate quando se viu desamparado.

-- O que podíamos fazer, está feito: retiremos, -- acrescentou Affonso de Albuquerque.

-- Retirar, senhor capitão!-- tornou Vieira quasi indignado.

A qualquer outro não soffrera de certo Affonso de Albuquerque a observação, e menos o tom. A Vieira contentou-se com responder:

-- Somos necessários ainda. Ordeno: obedecei! Fazei como eu, e vereis se é vergonha retirar.

Foi o colloquio instantâneo, como o não pode ser a descripção.

Entretanto, os hollandezes, ao mando dos seus officiaes, effectuavam o movimento acima referido.

Affonso de Albuquerque, fallando, não perdia de vista aquella evolução. Reuniu rapidamente a sua pequena força, que, por ser pequena, mais prompta e facilmente manobrava.

-- Aos lados, amigos -- clamou -- e nem uma duvida !

Imitava exactamente o inimigo!

As duas columnas contrarias extremaram-se e abriram-se quasi simultaneamente. Atrás das filas divididas dos hollandezes appareceu em linha um troço considerável de arcabuzeiros.

Saiu d'esta muralha viva um turbilhão de fumo e fogo, e passou com o vendaval dos pelouros varrendo a lingueta.

A vivacidade e pericia do capitão salvaram metade da gente do forte, que certamente seria victima da inesperada descarga. Assim mesmo alguns foram alcançados pela tempestade de ferro e caíram gemendo.

-- Levantar os feridos, e marchar,-- bradou intrepidamente Affonso de Albuquerque.

Vieira reflectiu que effectivamenle a arte da guerra tinha suas utilidades.

O capitão da nobreza, voltando-se para Vieira acrescentou:

-- Agora vereis como se retira!

Unindo-se de novo, os hollandezes carregaram os do forte, na esperança de vingar os anteriores desastres e de colher prisioneiros. Affonso de Albuquerque porém, não era homem que se turbasse na occasião, ou a quem pozesse medo o numero. A aggressâo achou já, tomando-lhe o passo, a bandeira da nobreza com Affonso de Albuquerque e Vieira.

A retirada seguiu na melhor ordem pela forma seguinte.

Iam na frente alguns voluntários conduzindo os feridos. Após estes, marchava um pelotão de arcabuzes, que de espaço a espaço fazia rosto limpando o terreno por meio de descargas regulares, tanto mais mortíferas quanto era maior a turba dos perseguidores. Cobria a rectaguarda a companhia da nobreza, que impavidamente continha os que ousavam chegar perto, dando tempo a aprestaremse os arcabuzeiros. Se algum caía na refrega, faziam-lhe praça em roda os camaradas, accorriam os voluntários, e era como os outros transportado para a frente.

Todos estes movimentos se executavam com serenidade e sem precipitação, ao passo que os hollandezes mutuamente se atropellavam confundindo-se na sua própria multidão com a anciedade da vingança.

Tinha razão Affonso de Albuquerque. Esta retirada vagarosa, methodica, tranquilla, esta retirada d'um punhado de homens, cedendo o terreno palmo a palmo na presença de hostes consideráveis e adestradas, valia bem a mais brilhante victoria.

António de Lima na muralha vigiava e observava tudo.

Tanto que o troço da sortida chegou a distancia conveniente, a artilheria e mosquetaria do forte romperam n'uma trovoada horrorosa. Os artificios incumbidos a mestre Marçal também não foram poupados n'esla occasião. Choviam as carcossas e frechas de fogo sobre as fileiras dos hollandezes, e estoiravam entre estes por forma tal, que Vanderburgo em breve ordenou aos seus que se acolhessem ás linhas.

A gente da sortida volveu ao forte, pesarosa pelo mallogro da principal empreza, mas com a consciência de terem todos feito o seu dever.

O que lhes fora commettido estava executado, e além do que se presumira possível. Os trabalhos de assedio haviam ficado em grande parte esmanlellados. A artilheria do forte reforçara-se muito utilmenle com os dois sacres, tomados logo no começo, por Vieira. Nem uma arma, nem um só ferido tinham deixado nas mãos dos hollandezes. Apenas por tropheus alguns cadáveres, beijando a terra em signal do seu amor por ella!

Logo que poude, Affonso de Albuquerque, chamou Vieira de parte, e disse-lhe apertando-lhe a mão :

-- Sabeis combater; sabeis obedecer. Assim se aprende a mandar. Algum dia reconhecereis por vós quanto vale. Vistes de que serviria o valor sem a prudência? Seriamos agora outros tantos de menos na defensão d'este ultimo baluarte que detém o inimigo.

Vieira curvou a cabeça envergonhado.

-- Perdoae-me -- tornou depois, alçando o rosto ainda acceso em rubor. -- Bem reconheço agora as primazias do saber e nunca deixei de me inclinará vossa aucloridade...

-- Á da razão. Não sois homem a quem outra se imponha.

-- Á vossa: é o mesmo. Desculpae-me, vos digo. Ceguei-me. Se eu via tão perto uma grande gloria para esta província... para nós todos... para vosso nobre irmão sobre tudo, se é que bem entendi os seus projectos!...

-- Entendestes. Ahi vereis. Esses projectos seriam agora um maravilhoso triumpho, se tudo corresse a ponto, se todos houveram cumprido com egual acerto as suas ordens...

-- E se não foram os elementos.

-- Os elementos não obedecem. Que esperanças nos afogou a maré terrível d'esta noite!...

XVI

Victrix causa

Era Vanderburgo homem que não cedia facilmente. Continuaram os aproxes com vigor novo. As linhas destruídas foram diligentemente recomeçadas, e proseguiram com maior actividade. Estava já o hollandez acautelado do perigo, e observava com aturada vigilância o rio.

Trabalhavam os sitiadores n'um só ataque. Não permittia nem requeria mais a disposição particular do terreno e da fortificação. Se esta circumstancia concentrava a defensão, também fazia apressar as obras.

Em poucos dias a galeria avançou até cento e quarenta braças do forte. N'esta distancia, da noite para a madrugada, appareceram construídas duas baterias. Chegava o lance decisivo.

As baterias começaram a abrir brecha.

Horas depois estava a brecha praticável. Um talude de ruinas abria accesso ao inimigo. Foi immediatamente ordenado o assalto.

Era todavia mais fácil render as muralhas do que os valentes corações dos defensores. No alto da brecha estava António de Lima, estava Affonso de Albuquerque, estava o moço Vieira, estavam todos os outros que o exemplo doestes fazia invenciveis.

Quanto a sciencia da época em taes casos recommendava, quanto os recursos do Recife podiam subministrar, tudo fora empregado pelo governador para deter, impedir, e maltratar os assaltantes.

Lograram os aguerridos cossoletes hollandezes galgar o declive: no cimo acharam o passo tomado de estrepes e abrolhos. Os manteletes, improvisamente levantados debaixo do fogo, abrigavam já os arcabuzeiros do forte. As traves rodantes derribavam e laceravam tudo o que topavam ante si. As panellas e círculos de fogo, os barris fulminantes semeavam o destroço de mil modos. Acima de tudo, resistiam os peitos e os braços de uma guarnição, que nem tremia, nem recuava no mais imminente risco e no mais desproporcionado conflicto.

Os dois sacres, conquista de Vieira, serviram até mais não poder n'este lance. Troavam incessantes varrendo a brecha. Durou assim a peleja até ao fim da tarde.

No auge do conflicto sobreveio um incidente, que sublimou o horror da luta. Partiu uma bala a haste á bandeira do forte, que tremulava soberba entre as fúrias e sobre os destroços. Veio ao chão o estandarte, e logo um immenso clamor dos hollandezes saudou o suecesso como se já fora a victoria, e a gloriosa mutilação como se equivalesse á entrega.

Com fervor egual respondeu a guarnição empenhada em arvorar de novo a insígnia não rendida. Travou-se de lado a lado mais apertado o combate. Lidavam uns por chegar ao disputado tropheu. Forcejavam os outros por guardal-o e preserval-o. Topavam-se em cheio sobre os escombros inflammados as turbas crescentes dos assaltantes e os redusidos pelotões dos defensores, como a vaga que vem do mar marulha com a onda que reflue da costa, já rota em partes, mas duplicada a força com o embate.

Viu-se então um maravilhoso expectaculo. Tombara casualmente o estandarte sobre Vieira, vestindo-o das largas dobras á similhança de manto real. Traçou-o nos hombros o mancebo, e arremetteu como costumava ao mais acceso da batalha.

Estremeceram todos vendo-o envolto com os inimigos, e conjuntamente o precioso talisman.

António de Lima, tranquillo no meio da procella, bradou com o impulso d'uma fé generosa :

-- Socegae, filhos. A outra haste quebrou; não quebrará aquella.

Vieira, derribando e ferindo, fazia ondear a veneranda tella, tufada pelo vento. Ali carregou o exaltado esforço dos mais valorosos da guarnição. Como que o sancto palladio dobrava os brios e restaurava as forças.

Ao cair da noite, os hollandezes, precipitados da brecha, desampararam o ataque.

Ao romper a lua, fluctuava novamente a bandeira, alongando a sombra pelo talude de ruinas sobre os corpos dos inimigos, que lhe jaziam aos pés como holocausto derradeiro immolado ás suas triumphaes immunidades !

Não tentarei contar todas as scenas d'esta defensão heróica. Seriam precisos volumes.

Fora também prolixo repetir tantas provas de heroicidade. Os lances e episódios pasmosos melhor caberiam nas paginas de um poema. Feitos ha que a historia levanta como um padrão diante dos séculos: as gerações, que lhes chegam à base, alçam os olhos e emmudecem de admiração.

Três dias sustentou ainda António de Lima o forte. Todas as invenções, que se podiam oppôr, eatavam destruídas ; só aquelle invencível animo se conservava inteiro.

Três dias successivos, oitenta homens somente, combatendo peito a peito no alto d'uns cômoros de cinzas, diminuindo de hora para hora, supportaram o peso dos ataques e detiveram no repetido acommettimento quatro mil assaltantes. Cincoenta contra um! Cançava o numero, sem cançar o valor!

Boa e grande gente era a que dava taes exemplos de constância e denodo!

Parecia o forte uma cratera abrasada. Supprindo com a presença os bastiões, cercado sempre de fogo, persistia o indómito governador, como o génio da destruição presidindo ao incêndio das cidades malditas.

Calada já e desmontada a artilheria sobre as cortinas derrocadas, poderam os hollandezes circumdar completamente as muralhas, interceptando toda a communicação com o Recife.

Não havia pois a menor esperança de soccorro. Dois terços da guarnição estavam mortos. Em todo o recinto apenas uma parte dos armazéns se conservava de pé, milagre provavelmente devido ás orações angustiadas de mestre Marçal.

Tudo o mais uma pavorosa devastação.

Ao quarto dia apresentou-se parlamentario hollandez.

Recebeu-o António de Lima com todos os rigores da etiqueta, sem dispensar o minimo accessorio.

Praticou o parlamentario com o governador alguns instantes, e retirou-se immediatamente, conduzido como tinha entrado.

Apenas o official se afastou, foram chamados a conselho os principaes do forte, e o condestavel da artilheria em razão do cargo.

O conselho congregou-se na parte incólume dos armazéns.

Tanto que teve reunidos os que desejava, começou António de Lima com a sua costumada serenidade:

-- Senhores, aqui vos chamei agora, não já para vos partecipar o estado em que estamos...

-- Todos o vemos -- acudiu Affonso d'Albuquerque, o mais auctorisado depois do governador, assim pelo posto, como pelo seu parentesco próximo com o capitão-mór.

-- Isso é -- continuou António de Lima. -- Não foi, digo, para vos descrever o que tendes debaixo dos olhos que vos convoquei, amigos : é para cumprir o dever que nestes casos determina a ordenança, e para vos declarar o que por parte do seu general me communicou o parlamentario.

-- É bem de presumir o que será -- ponderou o capitão da companhia da nobreza. -- Propõem-nos a entrega á discrição.

Affonso d'Albuquerque sabia perfeitamente que, na situação em que estavam as coisas, a submissão do forte seria apenas delonga de pouco tempo.

-- Isso não... se m'o permittis dizel-o! -- atalhou Vieira n'um impeto generoso. -- Acabem-nos: vale mais.

António de Lima deitou os olhos em roda com seu tanto de orgulho.

-- Enganaes-vos todos nas conjecturas. Offerecem-nos capitulação.

-- E as condições?

-- Sair pela brecha com armas e insignias, e a liberdade de dispormos de nossas pessoas.

-- Podemos saber o que repondestes? -- perguntou o capitão da nobreza.

-- O que devia: que ia consultar-vos, e depois daria a resposta.

-- E qual é o vosso parecer?

-- Não devia dal-o eu primeiro; mas, n'estes extremos, dou... em duas palavras. A minha bandeira nunca se rendeu; não começarei agora.

Micer Arnau, ouvindo isto, enfiou. D'ahi a um instante desappareceu sem darem por elle, o que não era difficil attenta a somenos importância da sua pessoa e a preocupação geral.

Vieira hesitava entre a vergonha de render-se e aquelle secreto amor que tanto o chamava e prendia á vida. Como lhe não custaria a deixar o mundo na sua edade e com as suas esperanças?

Calou portanto, deixando aos mais experientes a decisão.

-- Senhores -- disse Affonso d'Albuquerque -- pois que aos projectos e desenhos do capitão mór, que todos são para bem desta terra, importa o demorarmos aqui os hollandezes, quanto mais tempo o fizermos tanto melhor cumpriremos o nosso dever e serviremos a pátria.

Ficaram alguns em silencio. O maior numero bradou :

-- Sepultemo-nos até ao ultimo debaixo destas ruinas !

Parecêra incrivel e insensato a quem não lesse no coração daquelles homens o pensamento que faz os Curcios.

E não era isto pompear um fácil enthusiasmo em roncarias vãs. Era resolução firme e heróica. Todos tinham provado como seriam capazes de a desempenhar á letra.

-- Ou abra-se caminho por entre o inimigo -- ousou dizer Vieira, emittindo a única opinião que podia conciliar todos os seus sentimentos... se não fôra impossível.

Quem ha de porém apresentar impossíveis a essa loucura sublime que se chama paixão? E ás vezes dá-lhe razão o êxito.

Como já se terá imaginado, mestre Marçal, sumido e esquecido ali, onde não podia explicar muito bem o phenomeno da sua existência, assistia incógnito ao conselho. Escusado é dizer que nem uma palavra lhe havia escapado, visto o interesse que tinha na solução.

Peço vénia para interromper n'este passo tão solemnes colioquios. Ficaria incompleto o quadro se o não pintasse com a variedade dos seus incidentes e a diversa feição dos seus personagens.

Ouvindo da bocca de António de Lima as propostas dos hollandezes, admirou o mestre a magnanimidade destes. Sendo pouco sensível á honra de sair a brecha com armas e insígnias, a máxima utilidade que via na capitulação era a clausula de o deixarem, a elle Marçal, com a pelle intacta. O illustre opifice jurava a si mesmo occultar cuidadosamente os seus méritos aos hollandezes, receiando não se lembrasse algum delles de lhe agradecer, por qualquer maneira, os mimos para que, bem a seu pesar, concorrera.

Acolhera mestre Marçal cedo de mais estas loucas esperanças. O parecer exposto pelo governador, e apoiado pela maioria, como se diria hoje, fêl-o dar a todos os diabos aquella gente insensata, que se lembrava de tudo, menos da agonia em que o deixava, commettendo a flagrante injustiça de o não consultar.

XVÍI

De como micer Arnau cortou o nó ás difficuldades

Em quanto as opiniões se apuravam, por modo que deixava antever claramente o resultado, passava-se uma scena imprevista nos terraplenos desmantellados.

Micer Arnau era um soldado velho e aguerrido. Micer Arnau procurava ganhar conscienciosamente o seu soldo. Mas para micer Arnau a palavra pátria nâo tinha significação, e estas coisas não lhe tocavam tão de perto como aos outros. As propostas dos hollandezes pareceram-lhe muito superiores ao que razoavelmente se podia esperar em taes apuros, e lá de si para si ficou reputando Vanderburgo um rematado sandeu. Tinha feito em consciência quanto devia fazer, entendia elle; por consequência não se julgava obrigado a mais.

Conhecendo António de Lima por experiência, adivinhou a sequencia do conselho, e não menos o que se lhe seguiria. Reputava-se individualnaente interessado no caso como o honrado mestre, mas com mais resolução do que este. Assentou portanto que lhe devia ser permittido exprimir o seu voto.

Guardou unicamente comsigo o modo de exprimil-o. Parecia-lhe pouco uma declaração verbal: queria empregar mais efficaz e concludente oratória.

O modo engenhoso porque micer Arnau entendeu manifestar aquelle voto foi o seguinte.

Estavam suspensas as hostilidades. Micer Arnau, deixando em meio o congresso, subiu sem dizer palavra, foi-se direito ao bastião, e começou a desatar a adrissa da bandeira.

Em quanto os cabos deliberavam, o condestavel, sem cuidar de mais formalidades, acceitava por sua conta a offerta dos seus camaradas do norte. Era esta, no seu conceito, a mais expedita maneirado cortar as objecções e fazer prevalecer a sua opinião.

O acto de micer Arnau causou extranheza grande á guarnição. Viu-o n'aquella diligencia Ayres Gil, e indicou-o a uns voluntários que estavam ali. Correram todos a elle com a sentinella.

-- Que é isso que estaes fazendo? -- perguntou Ayres.

-- Offerecem capitulação os hollandezes e dão-nos as honras da guerra -- acudiu laconicamenle o alemão, suppondo prudente não acrescentar o seu juizo particular acerca do êxito provável da conferencia.

Pois que á vista de todos o condestavel fora admittido ao conselho, e vinha d'elle, a evasiva foi acceita como explicação e interpretada como cumprimento de uma ordem superior.

Nada d'isto se conciliava muito com o rigor das praxes: mas, em similhantes apuros, as praxes perdem consideravelmente a força, e a situação do forte não era tal que se olhasse já a miudezas. Demais quem havia de crer ali que se não aceitariam as condições de honra e vida salva. Tão natural era, que naturalissima pareceu a apparente incumbência de micer Arnau.

Continuou este pois sem mais opposição.

Ayres Gil só se admirou por julgar conhecer o governador, conhecimento em virtude do qual já tinha feito o seu propósito.

Desceu magestosamente a bandeira ao correr da haste. Verdade, verdade, não viu isto sem abalo a gente do forte. Se tanto havia feito por aquelle honrado brazão!

O arcabuzeiro principalmente dava-se a perros; mas, por fim de contas, reduzia-se tudo a um incidente nada extranho no seu modo de vida. Não era já a primeira vez que lhe succedia: em Flandres fora coisa vulgar.

Vendo arriada a bandeira, e julgando ser o signal de estar acceita a capitulação, os hollandezes não perderam um instante. Accorreram em continente duas companhias de cossolletes, e coroaram a brecha, formando diante da guarnição contristada.

Foi tudo isto um momento, tão próximos estavam todos.

Desfizera-se n'este intervallo o conselho, e cada um dos cabos voltava ao seu posto na perfeita disposição de vender cara a vida, que definitivamente sacrificava.

António de Lima, assomando com Vieira e Aífonso de Albuquerque ao terrapleno, ficou attonito de não ver a bandeira.

A bandeira jazia aos pés de micer Arnau.

Rugiram os três um grito unisono. Vieira, arremessando-se com o impeto costumado, arrancou a tella das mãos ao condestavel, que a segurava ainda por uma das extremidades, e bradou-lhe:

-- Não lhe toqueis, que a infamaes!

Os hollandezes, como dito fica, estavam a poucos passos. O governador comprehendeu o que se passara.

Tirou da espada, mudo, livido, pavoroso, e com terrivei tranquillidade endireitou para o alemão. Aquelle seria provavelmente o ultimo dia do entremettido condestavel, se a lamina do governador não encontrara a de Aífonso de Albuquerque.

-- Este homem não é da nossa terra! -- ponderou singelamente o capitão da nobreza.

Reflectiu António de Lima que, estando a brecha coroada pelo inimigo, o esforço mais desesperado só daria victimas, sem possibilidade de prolongar a resistência.

Olhou também para os restos da guarnição e entrou-lhe n'alma a piedade.

Embainhou a espada murmurando:

-- Assim o quer Deus!

Tinha o coramandante dos hollandezes recebido de Vanderburgo poderes para a capitulação. Vinha com elle, na qualidade de interprete, um judeu de Olinda, que, havendo commerciado em Lisboa e Amsterdam, fallava egualmente os dois idiomas.

Não foram longas as formalidades. Sabiam todos como aquelle facto era irremediavelmente consummado, e o forte de S. Jorge não se reputava praça de guerra de tal ordem, que a sua entrega se regulasse pelas clausulas de um tractado.

Reduziu-se tudo a perguntar o governador ao commandante hollandez se o seu general mantinha as condições offerecidas. Respondeu o commandante que sim. Seria indecente recusarem-nas depois de as terem proposto.

Escreveu-se á pressa a estipulação e ficou rematado o pacto.

Menos era António de Lima para despachar estas coisas do que para aviar expedientes de guerra.

Entendia elle que a palavra de um homem valia a melhor assignatura.

Tinham também por sua parle os hollandezes ganho tal respeito ao forte e ao seu governador, que tudo facilitavam para ver desamparado o posto.

Conhecia além d'isso Vanderburgo que esta generosidade -- pouco custosa, attento o limitado numero da guarnição e o mais que adiante se observará -- horas que lhe abreviasse a entrega já lhe proporcionaria bastante, pois que Mathias de Albuquerque ia engrossando cada vez mais consideravelmente as suas forças.

O mesmo suspeitara também o capitão da nobreza, desconfiando de taes larguezas em tanto apuro, e por isso dera o seu voto como se viu, esperando servir com o próprio sacrifício os projectos de seu irmão.

Como o governador dissera: Deus havia disposto o contrario.

XVIII

Fé púnica

Era por formoso dia, explendido e calmoso. As forças sitiantes formavam em batalha á raiz do forte prolongando-se pelo isthmo.

Pela volta das quatro horas, António de Lima dispoz em boa ordem os vinte e tantos homens validos que ainda tinha em estado de marchar, e saiu com elles pela brecha, guiando-os, sereno e tranquillo, como n'um dia de victoria.

Lia-se no rosto do soldado o pesar inseparável de tal situação ; mas, ao mesmo tempo a ufania natural a quem tanto havia feito.

Rufava o tambor na frente da pequena companhia. Brilhavam ao sol os piques, os espontões, as espadas, mosquetes, e arcabuzes. Ia arvorada a bandeira da nobreza.

Via-se é verdade no bastião, triste e erma, a haste viuva do glorioso pendão ; mas em seu logar nenhum outro ainda.

Debalde o inimigo procurou aquelle tropheu tão ambicionado. Vieira fizera delle um cinto. Unindo-a ao coração, tornara aquella relíquia em arma invencivel contra o despeito de rendido.

Com admiração contemplaram as longas e profundas filas dos hollandezes os poucos homens, que sobre destroços, por três dias consecutivos, haviam detido as suas experimentadas coronelias.

Entre verdadeiros homens de guerra o ódio de inimigos cessa com a lucta, e fica só a homenagem ao valor infeliz.

Ayres Gil, aprumando o arcabuz, acertando o passo com marcial desplante e maior garbo do que nunca, vibrava olhares furibundos a um e outro lado, como quem dizia aos hollandezes:

-- Vae aqui um homem costumado a ver-vos as barbas sem temor nem vergonha !

O honrado arcabuzeiro acompanhava este solilóquio mental de um diluvio de pragas resmungadas entre dentes.

Na retaguarda de todos apparecia mestre Marçal, o cómico intermédio deste drama heróico.

Mestre Marçal vinha amável, risonho, prasenleiro, umas paschoas. Cortejava á direita, cortejava á esquerda, com tal satisfação, que lhe teria ella valido girandolas de pontapés do seu amigo Ayres, se este o podesse ver.

Não podia o mestre acreditar ainda na boa fortuna de sair são e salvo, depois do que ouvira a António de Lima. Pensava com toda a humildade que Deus fizera expressamente um milagre por sua causa.

Poucos passos adiante do áspero talude, Vanderburgo esperava cortezmente o governador.

Tanto que a diminuta guarnição chegou ao centro das columnas hollandezas, o mestre-de-campo deu-lhe ordem de fazer alto, e o general com o interprete dirigiu-se a António de Lima.

-- Agora, senhores, -- disse, ou antes fez-lhe dizer -- deporeis as vossas armas !

António de Lima obrigou o interprete a repetir duas vezes a intimação insólita.

-- Depôr as armas!-- respondeu elle. -- Pois não estipulámos sair com armas e insignias?

-- Sair a brecha, -- tornou civilmente o hollandez -- sair a brecha, sim; os nossos arraiaes, não.

António de Lima viu que havia perfidia no modo de cumprir a capitulação. Deitou um olhar de leão aos seus soldados, immoveis a poucos passos; mediu depois a turba immensa, que o rodeava curiosamente.

Esteve elle tentado a dar voz de arremetter, e vingar ali o odioso ardil com um protesto de sangue !

Reflectiu porém que, para satisfação do seu orgulho, não tinha direito de sacrificar sem utilidade tantos corações generosos.

A capitulação, feita improvisamente em consequência de um accidente inesperado, dava aos hollandezes occasião de fazerem jogo de palavras, em vez de cumprirem a palavra.

Podia-se ter como remota revelação e prenuncio de certas finuras, muito apreciadas por alguns politicos dos nossos dias.

Não era o governador homem que, em casos d'estes, descesse a discussões. Vendo a impossibilidade absoluta de abrir caminho à força, vendo a loucura de immolar os seus, que era talvez o que os hollandezes queriam, encolheu os hombros em signal do seu profundo desprezo por taes subtilezas, entregou a espada ao general inimigo, e ordenou á guarnição que depozesse as armas.

Os soldados, de António de Lima, pasmados da ordem e do gesto do governador, fitaram n'elle os olhos assombrados.

António de Lima, como quem tem a consciência de cumprir um dever, custoso sim, mas dever, repetiu o commando em tom claro e resoluto.

Singular pareceu a todos este desenlace, mais ainda depois do promettido. Tal era entretanto a auctoridade do governador, e tão aceito e radicado o costume de lhe obedecerem, que as hesitações acabaram n'um momento.

Affonso de Albuquerque, entendendo-o, foi o primeiro que lhe seguiu o exemplo. Vieira, lembrado das advertências do capitão, imitou-o vencendo a repugnância.

N'este lance mais de uma lagrima deslisou silenciosa e envergonhada por aquelles rostos tostados, caindo sobre as armas, ao entregarem-n'as as mãos que tão bem se haviam d'ellas servido.

Soltando imprecações furiosas, os voluntários, arremessavam os mosquetes pelo areal, onde não podiam espedaçal-os. Ayres tal geito deu que, ao pousar em terra o arcabuz, foi para um lado o cano e a coronha para outro. O alferes da bandeira da nobreza arrojou o espontão ao rio, de modo que um hollandez, fronteiro a elle, se não abaixasse tão rapidamente a cabeça, ficava ahi varado.

-- Perros vis ! -- murmurou o arcabuzeiro retorcendo os bigodes.

-- Falta uma pequena formalidade, -- continuou com a fleugma do seu paiz o general hollandez a António de Lima, que mostrava pressa de se esquivear a estas inesperadas humilhações.

-- Uma formalidade! Que formalidade? -- tornou o governador.

-- Quasi nada, -- retorquiu Vanderburgo pela bocca do officioso interprete. -- É dar juramento de não pegardes mais em armas contra nós n'esta guerra .

-- Dizeis?

Repetiu o judeu a nova intimação de Vanderburgo, retirando prudentemente um ou dois passos, tam vivo relâmpago viu fuzilar nos olhos de António de Lima.

-- Cuidei que tratava com um fidalgo e leal cabo de guerra, -- atalhou o governador sorrindo com supremo desdém.

-- Que é o que elle diz? -- perguntou Affonso de Albuquerque a António de Lima.

-- Quer algum de vós prestar juramento de não pegar mais em armas em defensão da sua terra ?

Um grito de indignação rebentou unanime nas fileiras dos rendidos. Muitos delles levaram machinalmente a mão ao lado desarmado.

Vieira adiantou-se e bradou :

-- Porque não nos fizeram tal proposta antes de nos tirarem as armas?

António de Lima sorriu : já tinha pensado o mesmo.

Por descargo de consciência tentou ainda uma ponderação -- a derradeira.

-- Tinham promettido deixar-nos livres de nossas pessoas!

Traduziu o interprete litteralmente à replica a Vanderburgo :

-- Mas não livres as vossas armas, -- tornou este com perfeita paz de espirito.

Ali se via a razão porque o general fora tão prompto e concessivo nas clausulas : premeditava já estes trocadilhos.

Era effectivamente mais fácil concluir o negocio por astúcias e ardilezas, do que em assalto contra homens, que haviam de infallivelmente succumbir, mas cercados de victimas. Já no século XVII havia quem exordiasse a politica ladina do século XIX.

Sabia o hollandez de quantos lhe fora sepulchro e mortalha aquelle monte de pedras arrebentadas chamado forte de S. Jorge, e ainda pelos modos se temia do que podia produzir a desesperação.

Assim era coisa aviada e summaria.

António de Lima, como vimos, timbrava pouco em apuros de dicção e ainda menos em agudezas desta ordem. Tornou a encolher os hombros.

Vanderburgo proseguiu :

-- Se não prestaes o juramento, sereis considerados prisioneiros de guerra.

-- Considerae -- respondeu friamente o governador.

-- Ficareis sujeitos a todas as consequências da vossa obstinação.

António de Lima voltou as costas ao interprete, e, com a sua usual serenidade, disse para Affonso de Albuquerque:

-- É um hollandez traidor!

Proferia elle isto no tom desdenhoso em que diria : «é um cavallo esparavonado.»

-- Não admira !-- acrescentou philosophicamenle o capilão da nobreza, completando a idéa de seu chefe.

-- Eu sempre disse que estes hereges não tinham alma ! -- gritou Ayres do seu logar.

Podia António de Lima, seguindo o exemplo de Vanderburgo, jurar e não cumprir. É de crer que não faltassem casuistas para o absolver e até para o louvar, allegando a compressão e força maior. Similhante lembrança nem sequer lhe passou pela cabeça.

Ha homens assim. O peior é que não n'os entendem !

-- Acabemos, e de vez-- continuou Vanderburgo. -- Recusaes?

-- Vieira -- acudiu António de Lima -- dizei a esse homem que está perdendo tempo.

-- Se deitássemos o interprete ao rio com a resposta? -- Propoz a serio o ardente mancebo.

-- Era baptisal-o, e não o merece, o Barrabás, -- tornou Affonso de Albuquerque, n'estas occasiões propenso a facécias.

-- Como quizerdes,-- concluiu Vanderburgo vendo que nada obtinha. -- Só vos advirto uma coisa: os cárceres de Olinda são estreitos, e pois que os Estados não podem agora esperdiçar mantimentos. . . considerae bem !

Era horrivel a ameaça, indigna d'um cabo de guerra, indigna de uma nação policiada!

António de Lima poz-se a assobiar um refrão de cantiga, manifestação que, em homem tão grave, era indicio da máxima ironia.

A discussão tornava-se evidentemente inútil.

Sob a apparente placidez, Yanderburgo estava uma fúria.

Por sua determinação foram divididos em pequenos pelotões, e separados uns dos outros, os desgraçados remanescentes da guarnição, tão ignominiosamente tratada contra toda a fé.

N'esta ordem enviou o maior numero para as prisões de Olinda, como annunciara.

Quanto a António de Lima e Affonso d'Albuquerque, tomou-os para maior cautela sob sua guarda especial.

Viram os dois partir n'este estado os seus infelizes companheiros d'armas ; e angustiados, e martyrisados de tal vista, ficaram esperando, guardados por boa escolta, que Vanderburgo tomasse posse das ruínas que tinham sido o forte, e houvesse por bem decidir a seu respeito.

Em tal extremidade só mestre Marçal folgava, feliz como todos os egoístas.

Mestre Marçal, francamente jubiloso no meio da desesperação dos seus camaradas, havia com isto para logo captado a benevolência dos vencedores. Examinaram-n'o, e o resultado do exame foi um mediocre apreço e estima pelas suas aptidões bellicas.

Não podendo os hollandezes, como declarara Vanderburgo, gastar profusamente viveres que lhes escasseavam ; e por outro lado reputando o mestre pouco perigoso, humilhação de que este se não mostrou agastado ; feito o calculo da utilidade da sua reclusão e dos inconvenientes da sua liberdade, resolveram privilegial-o com o beneficio exclusivo da capitulação, mandando-o tratar da sua vida com uma indifferença cheia de sarcasmos.

Mestre Marçal perdoou christãmente a injuria; e Da sinceridade da sua alma julgou-se predestinado da Providencia !

XIX

Em que Ayres Gil medita

Caminhavam os prisioneiros a dois e dois, como se disse. Ia cada pelotão vigiado por quatro piqueiros, levando na frente e rectaguarda um troço de mosquetes. Seguiam todos assim pelo estreito pontal de areia que levava á cidade.

Além do Biberibe, parallela á restinga, corre a orla vicejante da chamada várzea, que então parecia aos pobres captivos terra de promissão, tão inaccessivel quanto desejada.

A várzea, ou veiga, do Biberibe era neste tempo uma extensa lesiria, em parte coberta de matto bravo em parte de capoeírões, ou talhos de floresta virgem, em parte cortada de engenhos e sítios, como n'aquella provincia ainda hoje denominam as chácaras, nas quaes os moços do forte deixavam muitos affectos e muitas saudades.

Estendia a vasta e uberosa campina o manto de eterna verdura até á beira do rio, sobre o qual se debruçava roçando as aguas com franja longa e sombria de chorões e cachos floridos.

Preocupados iam todos com tal vista, e mais que todos Ayres Gil. Nem era admiração pela paisagem, nem indole sentimental. O duro veterano, se pensava, não pensava certamente em taes futilidades.

Que seria? O que o faria cogitar escismar tanto?

O acaso, ou talvez a sua boa diligencia, havia collocado o arcabuzeiro ao lado de Vieira.

Tinham ambos mutua confiança. Marchando, encontravam-se-lhes a miúdo os olhos e logo se fitavam unanimes na veiga fronteira.

Um incidente cortou importunamente este dialogo mudo.

A poucos passos das linhas de assedio, o commandante da escolta, vendo-se longe do grosso das forças que tinham ficado no acampamento, julgou prudente multiplicar as cautelas. N'este intuito fez alto, e deu algumas ordens em voz baixa a um dos seus subordinados. Partiu este em continente com tres piqueiros, e voltou, minutos depois, vergando todos ao pezo de um farto volume de cordas.

Era visivel a intenção do precatado hollandez.

Não se contentava com leval-os desarmados, queria-os amarrados. Sobresaltava-o tanto ou quanto a visinhança da várzea, e a proximidade do rio.

Provocou esta operação altos murmúrios, violentas queixas, sentidos clamores e pragas terríveis ; mas o duplo renque de mosqueies a um e outro lado, Olinda na frente, e Vanderburgo na retaguarda, forçavam á sujeição os mais insoffridos.

Deixou Ayres atar solidamente as mãos atraz das costas, pouco mais ou menos como um jaguar, colhido no laço, deixaria vestir um espartilho.

Só Vieira foi exempto desta humilhação. Consideraram provavelmente os seus poucos annos, e talvez a deferência que lhe mostravam os seus camaradas, particularidade que indicava ser pessoa de maior porte.

Era também natural entender o hollandez que um homem só nada ousaria, vendo impossibilitados os seus camaradas.

Concluídos os prudentes apercebimentos, poz-se a escolta novamente em marcha a passo lento.

D'ali para cima estreitava o rio. Ayres Gil parecia cada vez mais meditativo.

Notou Vieira esta meditação aturada. Vieira tinha aprendido a conhecer sufficientemente o arcabuzeiro, e sabia que nunca meditava debalde.

Circumstancias ha em que a meditação é verdadeiramente contagiosa. O mancebo começou a reflectir também.

Nenhum delles porém era homem que perdesse o tempo da acção em inúteis devaneios. Resultou desta dupla cogitação encararem-se ambos, como se mutuamente se houvessem já comprehendido.

Observara Ayres nos olhos de Vieira um raio de prazer tão inadmissivel em similhante conjunctura, que se pozera a scismar mais profundamente do que nunca.

Vieira pela sua parte julgara observar no arcabuzeiro um signal, um indicio, quasi imperceptivel, de malicioso e resoluto assentimento.

Entretanto, o commandante da escolta, confiando nas precauções, havia afrouxado os rigores da vigilância. Os seus soldados, exhaustos e encalmados, seguiam-lhe pouco a pouco o exemplo.

O interprete caminhava distante. Se os prisioneiros matassem o tempo com dois dedos de conversa, quem os poderia ouvir, ou perceber?

Ia o arcabuzeiro assobiando uma solfa extravagante, como se o espirito absorto se lhe desvairasse em distracção machinal. Já sabe o leitor que este era em Ayres, não só claro symptoma de preocupação extrema, mas uzual annuncio de uma idéa luminosa.

Reconhecia Vieira no seu consócio de infortúnio certa dose de philosophia pratica, mas não lhe acreditava tanta que justificasse desassombro similhante, nem lh'a julgava tal que o tornasse capaz de medir com este desprendimento situação tão pouco lisonjeira.

Inferia portanto, com razão, que no espirito do arcabuzeiro se passava o que quer que fosse em muito extremo interessante.

Quanto mais lhe estudava a physionomia e a attitude, mais se confirmava em taes duvidas. Resolveu-se portanto a esclarecel-as, e a tirar a limpo as suas supposições, verificando primeiro se o judeu podia ouvil-o.

-- Hein, Ayres? -- disse, em voz que era pouco mais que um sopro, acompanhando a palavra com expressivo e rápido movimento de olhos. -- Formoso rio é o Biberibe. Mais formoso hoje do que nunca. Não vos parece?

-- Se parece! -- tornou o arcabuzeiro no mesmo tom e modo. -- Só me não parecera formoso, se tivera a largura do nosso Tejo lá defronte de Lisboa, ou uma corrente como a do Douro em cheia de inverno. O que n'este mais me captiva é o commedimento e a modéstia das aguas... Agua, quanto menos melhor.

-- Não é d'esses rios ambiciosos, que levam tudo adiante de si, e estendem os braços a perder de vista, dizeis bem.

-- Por um d'esses taes não dava eu um ceitil.

-- E por este?

-- Por este, sim. Mal sabeis como lhe quero.

-- Um homem costumado a passar as ribeiras da índia...

-- Que são como os rios da Europa, e os rios como os mares.

-- Um homem trilhado em terras d'alagoas...

-- Em duas braçadas está de outro lado.

-- E depois, com ser um rio meão e agora tão pacifico, sempre é um rio...

-- Ou, quando menos, um fosso... que nem todos atravessam.

-- Isso é.

-- Praz-vos também, senhor Vieira?

-- A mais nâo poder.

Parou aqui o dialogo.

Vieira tinha resolvido as suas duvidas. Estavam entendidos os dois. Havia entre elles pacto secreto, cumplicidade tacita.

Como se lhe occorrera subida reflexão, lançou o mancebo significativamente os olhos aos braços de Ayres fortemente ligados. A reflexão comprehendida n'este olhar pintou-lhe no semblante uma sensação de extrema piedade, e um como doloroso aperto de coração. Reparou Ayres n'aquella expressão angustiada, e sorriu.

Vieira, que não cessava de observar o seu companheiro, attentando melhor, notou-lhe desusado movimento. Parecia que uma legião de insectos, o que não seria para admirar em tal clima, se lhe tinha apoderado do busto, tal era a vivacidade com que apertava ao corpo a parte superior dos braços como se em phrenetica fricção quizera livrar-se de um prurido tormentoso.

Estes accessos, com serem frequentes, não eram todavia tão violentos que podessem dar na vista aos hollandezes.

Se Vieira tivesse comsigo qualquer instrumento cortante, conservando as mãos livres, ser-lhe-hia fácil soltar rapidamente Ayres: depois executariam juntos o plano que a ambos occorrera. Mas os hollandezes, como é de suppôr, tinham tido o cuidado de não deixar ao mancebo nem sombra d'arma.

Esta difficuldade, em que não linha logo pensado, entristecia-o profundamente. Custava-lhe abandonar o arcabuzeiro, sem contar que o auxilio de homem como este singularmente lhe secundaria os designios.

Ayres Gil havia tambem, e ainda antes de Vieira, medido aquelle obstáculo ; mas a sua inventiva imaginação não se rendia a quaesquer estorvos. Em quanto Vieira lhe deplorava a sorte, afigurando-selhe irremediável, concertava elle comsigo um expediente tão simples como engenhoso.

A agitação, em que Vieira reparara sem a poder explicar, era disposição preliminar.

Tinha o cinturão de couro, que os arcabuzeiros cingiam, um gancho de ferro solidamente fixado ao lado direito. Desse gancho traziam suspensa a corda, o sacco dos pelouros, e outros municiamentos. Os municiamentos haviam desapparecido, mas o cinturão, não sendo considerado arma, havia ficado com seu dono.

As arestas puidas deste accessorio, gastas pelo atricto continuo, haviam-se tornado com o tempo como o gume de uma faca ordinária.

Ali estava já um instrumento aproveitável.

O gancho ficava porém distante da corda, que prendia as mãos nas costas ao arcabuzeiro.

Nova impossibilidade!

Era todavia Ayres estratégico experimentado. Servira-lhe a meditação para calcular todas as eventualidades, aproveitar todas as circumstancias, e prover a todos os lances.

Andava-lhe o cinturão conchegado, mas lasso, de modo que podia girar facilmente. Como soldado velho, o arcabuzeiro presava mais a liberdade dos movimentos do que os primores do trajar.

O geito que dava aos braços, única acção possível no estado em que se achava, imprimia ao cinto de couro um progressivo movimento de rotação, que lhe approximava o gancho das mãos, e por consequência da corda.

Esta a base das suas operações.

XX

Consequências da meditação de Ayres Gil

Nada é grande, nada é pequeno no mundo. Tudo é relativo, e tudo tira da occasião o seu grau de valor !

O destino de um homem -- de dois homens talvez, e Deus sabe de quantos outros, e de quantas mais coisas attinentes a elles! -- achava-se n'esta suspensiva conjunctura exclusivamente subordinado a um objecto insignificante, a uma circumstancia das mais somenos, a uma acção trivial, n'outro caso ridícula.

À força de paciência, estava Ayres a ponto de lograr a collocação ardentemente desejada. Mas era o trajecto curto, e o arcabuzeiro sentia crescer-lhe a anciedade ao passo que se adiantavam na restinga, porque o tempo lhe escasseava.

Limitavam-se todas as probabilidades de exito ao lanço de caminho, que orlava o rio, onde este era mais estreito, e mais densas as mattas fronteiras. Sabia-o Vieira, e fitava o companheiro com inquietação cada vez maior, medindo o espaço como quem vê a cada passada fugir-lhe a opportunidade e a esperança.

Ayres suava em bagas. Um observador attento ler-lhe-hia no rosto a fadiga immensa, que provém de movimentos contrafeitos, e da tensão violenta do espirito.

-- Se fosse possível ganhar minutos ! -- murmurou por fim.

-- Talvez seja -- acudiu Vieira cautelosamente.

-- Qual! Se estes desalmados destes herejes nem um credo nos deixam !

-- Dizeis que vos bastariam minutos, Ayres?

-- Bastavam -- respondeu o arcabuzeiro continuando os esforços.

Vieira não replicou.

A poucos passos queixou-se da fadiga; d'ahi a um momento nem se podia arrastar; mais adiante caiu redondo no areal pedindo confissão.

O commandante da escolta accorreu com o judeu interprete para averiguar o que havia.

A voz sumida e exânime de Vieira era de moribundo. Só o fuzilar dos olhos desmentia um pouco esta apparencia de catastrophe.

O pedido do mancebo pareceu ao official hollandez tão disparatado e fora de todo o propósito, que relanceou em torno de si os olhos inquietos e inquiridores.

O rio estava deserto, as mattas silenciosas, os prisioneiros amarrados, a escolta armada e prestes. Que havia de receiar?

O hollandez, moço ainda, envergonhou-se do que pensara, e julgou pueril este excesso de desconfiança.

A suspeitosa investigação achou Ayres com ar tão penalisado, tão consternada immobilidade e uma cara tâo contricta, que o official volveu para Vieira toda a atlenção.

Vieira parecia em pontos de dar a alma a Deus, tal se tornara o seu desfallecimento e assim eram doloridos os seus queixumes!

Tinha o hollandez um natural humano, e sinceramente se compadecia do enfermo; mas sacerdote não era coisa que se achasse à mão.

Outros soccorros só na cidade. Julgando, na sua qualidade de protestante, que estes seriam preferiveis á confissão, voltou-se para o sargento, e disse-lhe em tom breve e peremptório:

-- Vede lá se pôde andar. Se de todo não poder, fazei-o conduzir. E a caminho promptamente.

Dada esta ordem, afastou-se para vigiar a frente da columna que seguia em marcha, encarregando ao mesmo sargento assim o cuidado de executar o proscripto, como o de vigiar a rectaguarda.

Communicou o judeu a Vieira a ordem referida, e perguntou-lhe se, fazendo diligencia, poderia aturar até á cidade.

Vieira soltou um gemido que dava ares de ser o ultimo da sua vida.

Ordenou o sargento a dois mosqueteiros que pegasse cada um em seu braço ao mancebo, e por força ou por vontade o conduzissem. Percebeu Vieira a intenção pelo movimento que se operou nos soldados, e fitou anciosamente os olhos em Ayres.

Ayres correspondeu-lhe com um leve movimento de cabeça, que se podia muito bem tomar por affirmativo.

Sentia a corda por um fio. O gume do gancho mordera já profundamente o nó que lhe arrochava os pulsos, tão profundamente que de envolta com o linho rasgava a epiderme e golpeava os dedos ao arcabuzeiro. Este porém era indifferenle a similhantes arranhaduras, e nem por isso deixava de continuar com maior impeto.

Cumpre agora explicar a posição relativa dos nossos personagens. Vieira estava á esquerda do arcabuzeiro, na orla da restinga, á beira do rio. Á sua direita, na mesma linha, Ayres manobrando para insensivelmente se lhe approximar. Junto de Ayres o interprete judeu, que o commandante hollandez forçara a ficar ali para se entender com o supposto moribundo. Mais acima, para a banda de Olinda, o sargento. A poucos passos d'este os dois soldados, que tinham largado os mosquetes a fim de obedecerem á ordem recebida. Áquem e álem uma secção da escolta em filas irregulares.

Conversavam os hollandezes distrahidos e negligentes, como quem via próximo o descanço depois de muitos dias de pesadissimo serviço.

Levantou-se o agonisante a custo e gemendo. Como que mal podia comsigo. Cobrando porém subitamente as forças, de inopinado e simultaneo movimento dos braços derribou os dois hollandezes que lhe interceptavam a communicação, e com pulo de jaguar arremessou-se ao rio, bradando em ar de provocação e desafio à escolta inteira:

-- S. Jorge pelos Brazis!

No mesmo ponto uma voz lastimosa clamou:

-- Deus de Isaac e de Abraham, valei-me!

Ayres, vendo aberto o caminho, tinha rebentado em possante esforço os derradeiros fios da corda, quasi de todo gasta.

Feito isto deitara logo a mão ao interprete.

Correram os hollandezes ; mas o robusto arcabuzeiro, convertendo o judeu em broquel para oppôr ás armas apontadas, recuou rapidamente até à borda do restinga.

Ahi, sem largar o infeliz israelita, gritou-lhe:

-- Dá graças a Deus, que morres baptisado !

E atirou-se á agua como Vieira !

Ayres mergulhava com as suas armas, como os heroes de Homero. N'estes apertos era única arma de Ayres o judeu tornado escudo. O judeu portanto mergulhou tambem.

As filas dos hollandezes guarneceram instantaneamente a margem do pontal.

Decorreram segundos. Aguardavam os mosqueteiros de Vanderburgo que os dois fugitivos surgissem, como um bando de caçadores espreita avidamente a preza.

Appareceram com effeito á flor d'agua as cabeças de Vieira e do arcabuzeiro, já próximos um do outro, a coisa de vinte braças de dislancia. Vinham á superfície para respirar.

-- Fogo! -- bradou immediatamente o commandante da escolla desesperado.

Uma descarga regular acompanhou a bem dizer a voz.

Mas já os dois haviam mergulhado de novo, cortando a corrente.

Recochetaram os pelouros ao lume d'agua, saltando muito além dos prófugos.

-- Qual de vós outros sabe nadar? -- perguntou o hollandez aos seus soldados.

Sairam á frente quatro mosqueteiros de Flessinga, que tinham mareado nas frotas.

O coramandante continuou:

-- Um mez de soldo, se os trazeis aqui vivos ou mortos. Um anno de cárcere, se voltaes sem elles.

Percebera que de pouco lhe serviria fazer fogo sobre homens, que se esquivavam com tamanha facilidade e tam admirável presença de espirito, sem contar que as armas de fogo naquella época não permittiam descargas tão certeiras nem tão rápidas como as de hoje.

Entretanto os que ficaram em terra carregaram logo os mosquetes para estarem promptos sempre, ou a atirar sobre os fugitivos quando apparecessem, ou a varejar a margem opposta, se estes conseguissem abordal-a.

Tremenda era pois a situação para os dois!

Traçaram os quatro hollandezes os mosquetes nos hombros, e atiraram-se á agua, mostrando desde logo que em vigor e pericia nada eram inferiores aos perseguidos.

Vinha ao de cima, meio morto, o desgraçado interprete, quando o primeiro dos antigos maritimos de Flessinga se deitou ao rio.

Com o instincto de conservação, que nunca abandona o homem, o hebreu na ancia de naufrago afferrou-se àquelle inesperado soccorro.

Paralysava este peso inerte os movimentos do nadador, e ambos corriam perigo de se afundarem.

Vendo o soldado que os seus camaradas lhe tomavam a dianteira, murmurou uma praga horrenda, e procurou no cinto a adaga para se livrar do estorvo incommodo.

-- Trazei-o a terra! -- bradou o official condoido percebendo-lhe o movimento.

O soldado obedeceu, posto que não muito por sua vontade.

Voltando a si, o interprele desatou n'uma torrente de acções de graças a todos os prophetas.

O soldado arremessou-se de novo, bracejando com tal fúria e êxito que bem justificavam as suas esperanças de primazia.

Tudo isto se passara n'um relance.

XXI

Em que Vieira e Ayres Gil se illustram por novos feitos

Começou então outro género de perseguição, perseguição tam medonha, tam formidável, tam dramática, tam cheia de perplexidades e terrores, que á beira do areal todos os olhos estavam fitos, todas as respirações suspensas, e todos os peitos anhelanles.

Tinham os hollandezes levado comsigo os mosquetes, porque bem podiam não alcançar os fugitivos no rio, e logo que aportassem á outra margem lhes seriam preciosas estas armas. O peso d'ellas demorava-os porém um tanto. Em compensação, Ayres e Vieira, sendo obrigados a mergulhar com frequência, demoravam-se também.

O hollandez que estivera em risco de ser victima do judeu, apesar de ter perdido não pouco avanço, visivelmente se avantajava.

Era um d'aquelles destemidos mareantes dos Estados, que então principiavam a rivalisar com os ousados navegadores tam esmeradamente creados pelo infante D. Henrique. Podia-se dizer que nascera no oceano. Só passara ao exercito de terra, porque, tendo-se casado por amores, ao revez de mestre Estouro, julgara mais sedentária aquella vida.

O destino e a companhia das índias haviam decidido outra coisa.

Achando-se no seu elemento, resurgiam-lhe com vigor novo os costumes e instinctos de marinheiro.

Estimulava a todos a recompensa promettida, o temor do castigo, principalmente a emulação. Os camaradas assistiam reunidos á temerosa e improvisa luta. Timbrava cada qual em mostrar a sua superioridade, assim sobre os que haviam ficado em terra, como sobre os que entravam na porfia que d'esta arte fixava a attenção geral.

Podia considerar-se um repto, como os da epopea antiga, com as hostes dos guerreiros por testemunhas, com as ondas por campo de pugna.

Os nossos heroes sabe-se já que homens eram. Tinham atrás de si o opprobrio e o captiveiro; adiante a liberdade e a esperança.

Os outros prisioneiros, bem que mais estreitamenle vigiados depois do inesperado lance dos dois, tiveram tentações de applaudir o rasgo heróico, e muitas mais de o seguir.

Faltavam-lhes as invenções e a pratica do veterano das índias e Flandres; faltavam-lhes as prendas e a energia do moço caçador ; e os hollandezes estavam prevenidos.

Era Vieira o mais adiantado. Ayres Gil seguia-o de perto. Empregando ambos a mesma táctica, obliquavam a cada mergulho em differentes direcções, já para illudirem a mira dos mosquetes, já para desorientarem os nadadores hollandezes.

Estes desvios, com serem indispensáveis e salutares, atrazavam, como se disse, a arribada à margem salvadora.

O marinheiro hollandez, particularmente mencionado, acercava-se a olhos visto de Ayres, que lhe ficava mais á mão, e, animado pelos gritos dos camaradas no pontal, redobrava o esforço para se apoderar da presa fiando-se em si.

Os outros três acossavam não menos empenhadamente Vieira, como a pessoa mais qualificada.

Estavam os fugitivos a pequena distancia da beira opposta. Todavia ambos pareciam irremediavelmente perdidos.

Ayres sentia já a respiração violenta do seu adversário. Voltando o rosto, viu-o alongando o braço para colhel-o.

Como se terá já conhecido dos vários lances d'esta historia, as resoluções do arcabuzeiro são, em taes extremidades, tam rápidas como bem concertadas. Mergulha de repente em quanto o hollandez involunlariamenle avança no impulso que leva, com maravilhosa presteza surge atraz delle, e impelle-o para a margem com impeto irresistível. A inesperada e atrevida manobra turba o hollandez, preado quando julgava prear. Tenta mergulhar também ; Ayres sustem-n'o pelo cinto, não o deixa resfolegar, e leva-o de arrancada até a beira que ali se inclina em fácil acclive.

Tomaram ambos pé simultaneamente com agua pelos peitos.

O hollandez levava, além do mosquete traçado, a adaga nua no cinto. Davam-lhe as armas vantagem incontestável, e em terreno firme decisiva.

Assim pelo menos se devia crer ; mas com Ayres não havia que fiar.

Tanto que abordaram, o arcabuzeiro deitou as mãos ao mosquete do hollandez e deu dois passos para o lado. Depois, puxando o mosquete para si com o vigor que já se lhe conhece, derribou o inimigo, e arrastou-o galgando a ladeira.

O hollandez, atordoado e meio estrangulado pela bandoleira de corda, aferrou-se convulsamente ao solo fazendo firmeza para resistir.

Quando ambos chegavam ao alto da rampa, o mosquete fugiu das mãos a Ayres despedido na carreira.

O hollandez, respirando emfim, quiz levanlar-se em continente, apoiando a mão esquerda no chão, e mettendo a direita á adaga.

O arcabuzeiro não lhe deu tempo. Mal o antagonista se arqueava para erguer-se, caiu sobre elle, enlaçou-o pelo meio do corpo tomando-lhe os braços e alçou-o ao ar voltando-o para os tiros dos seus camaradas, pouco mais ou menos como o famoso Milon de Crotona suspendia na arena os athletas rivaes, ou como Hercules venceu a luta contra Antheo.

Dera-se Ayres perfeitamente com o expediente do escudo humano: repetia-o sem se affligir do plagiato.

Via tudo o commandanle da escolta, e espumava de ira. Os mosqueteiros hollandezes não ousavam fazer fogo, temendo sacrificar o camarada juntamente com o fugitivo.

O broquel de Ayres era por tanto efficaz; mas doesta vez muito menos passivo do que o fora o judeu.

Forcejava o hollandez com desesperada fúria por se desempecer do arcabuzeiro, ou tolhel-o; mas os músculos d'este eram como temperados de ferro. Apesar de todos os esforços do adversário, Ayres ia lentamente recuando e medindo o caminho sem vacillar.

D'ahi a pouco, triumphalmente abraçado ao seu perseguidor, tornado involuntária defesa e aprisionado tropheu, sumiu-se no matto espesso, cujo conhiecido abrigo não cessara de procurar com os olhos.

Ao tempo em que se passava esta scena, tinha logar, a pequena distancia, outra não menos interessante.

Havia também Vieira traçado o seu plano. Expressamente escolhera para abordar o ponto que parecia mais inaccessivel. Era uma quebrada profunda. Levanta va-se ali a margem alia e aprumada. Em vez do suave esconso que mais abaixo fazia, o terreno alcantilado, comido das correntes refluidas, figurava áspera muralha no corte perpendicular.

Caía n'aquelle sitio, graciosamente debruçada na agua como para lhe beber a frescura, a extremidade flexível de um cipó verde, que a poucos passos engrinaldava uma balsa de grossos mangues, e, coleando pela terra, descia á ribeira. Era uma espécie de sarmentosa, de rija fibra, e tam longa, tam longa, que enleiando fortemente os troncos, vinha quasi beijar o rio.

Vieira conhecia bem a gigantesca planta, e contava-a por auxiliar.

Cortou direito a esta paragem. Os que o viram julgaram-n'o tresvariado.

Tem a caça humana a sua attracção inebriante. Os tres hollandezes perseguiam-n'o ardentes no alcance. Vinham, como os Curiacios, reciprocamente distanciados, segundo a diversa medida de suas forças.

Chegando ao termo desejado, Vieira lançou mão ao cipó, pendente como um braço valedor, e respirou largamente para recolher as forças. Julgou-o extenuado o hollandez mais próximo, e avançou com ardor maior. Deixou-o Vieira approximar, como se o não sentira ; e, largando a ponto o cipó, voltou-se para elle subitamente, nadando ao seu encontro.

O hollandez pensava em atacar, mas nem julgava possivel ser atacado. Slupefacto e colhido de improviso, sem curar de si, sem bem saber o que fazia, quiz cingir nos braços o mancebo, que vinha, porque assim digamos, lançar-se n'elles.

Mas já a mão rápida e experta de Vieira lhe arrancara a adaga do cinto, e lh'a embebera na garganta por cima da gorgeira. Quasi do mesmo golpe, o temerário moço cortou-lhe velozmente a bandoleira do mosquete, e por ella suspendeu a arma antes que esta se afundasse.

O hollandez gargarejou um gemido, açoitou a agua na convulsão de agonia, e submergiu-se.

Os outros dois, sem poderem ainda avaliar completamente o que succedêra, puxavam quanto podiam ; Vieira segurou nos dentes a bandoleira com o mosquete appenso, e mettendo no cinto a adaga conquistada, entestou de novo para a margem.

Chegando ali, colheu o cipó, alou-o a si até o estirar, e subiu à força de braços, como por um cabo o poderá fazer o mais consummado maritimo.

Em quanto subia, uma saraivada de peloiros veio estrellar-se-lhe aos lados nos seixos da riba, com a rara felicidade de só um lhe roçar o hombro.

O movimento oscillatorio d'esla ascenção gloriosa contribuira provavelmente para salval-o.

Vieira, pendente ainda sobre o rio, attingia quasi a orla superior quando os hollandezes restantes nadavam litteralmente no sangue do seu companheiro, que tingia a superfície das aguas.

Rugindo de fúria, e vendo a disposição do terreno, os perseguidores separaram-se, e foram tomar pé, um abaixo outro acima do ponto a que o mancebo se içara.

Na margem fronteira, o commandanle da escolta blasphemou um desatino. Em torno d'elle, os prisioneiros saudaram a audácia feliz dos fugitivos, sorrindo com o plácido sorriso que teem os heroes e os martyres.

Já no cimo da empinada riba, Vieira, em vez de se deitar por terra e acoitar-se entre os carçaes, como pedia a prudência, ergueu-se em pé, e floreando no ar o mosqueie como um tropheu, levantou o conhecido e já immortal grilo, desafio aos inimigos apinhados, consolação aos amigos captivos:

-- S. Jorge pelos Brazis !

-- Fogo, fogo ! -- bradou com impeto frenético o official hollandez ros seus mosqueteiros, que tinham activamente carregado de novo.

Á acclamação heróica respondeu segunda descarga !

Quando a fumarada se dissipou, o mancebo, que os hollandezes julgavam crivado, entranhava-se como Ayres pelo mato, de mosquete ao hombro, no seu passo ordinário.

XXII

O fim da luta

Muito haviam feito os nossos dois amigos pela sua salvação. Não pouco porém lhes faltava ainda.

Dos quatro perseguidores, um só ficara absolutamente impossibilitado de prejudicar-lhes. Havia pois ainda três completamente armados.

O que Ayres convertera de offensor em defensor, se bem que momentaneamente paralysado, não parecia homem de ficar em ócio dês que tivesse os braços livres e tocasse o chão com os pés.

Em verdade não podia áquelle o mosquete servir já de muito como arma de fogo; mas podia prestar-lhe grande serviço como clava ou massa de guerra, e a adaga, que não largara, funccionaria provavelmente à custa do arcabuzeiro se este lhe desse largas.

Ayres desarmado não havia de ficar eternamente abraçado ao hollandez. Era de dar brado a carga; mas o veterano, que em certas occasiões sabia ser superior ás tentações da gloria , meditava seriamente no modo de se alliviar do peso com o menor inconveniente seu.

Os dois últimos hollandezes haviam manobrado na intenção visivel de cortar o passo a Vieira. Além d'isso, Vanderburgo, ouvido o tiroteio, quereria provavelmente saber o occorrido, e sabendo-o, poderia acaso enviar novos nadadores.

Cumpria portanto aviar.

Vieira conhecia admiravelmente os trilhos do mato, e podia promptamente evitar os riscos mettendo-se pela floresta.

Mas o camarada? A situação em que se achava Ayres, sem armas, carregado com um hollandez, na perspectiva de encontrar outro, e talvez dois, era para dar cuidado.

Ainda que o arcabuzeiro possuisse na carreira a velocidade de Atlanta, ou as artes da princeza Crimhilda, não poderia brilhar pela prenda. Em vez de pomos de oiro, ou punhados de pedrarias, para espalhar na liça, tinha nos braços um marinheiro robusto, que perneava soffrivelmente, sacudindo o seu antagonista, pouco mais ou menos como um quadrumano sacudiria um ramo de coqueiro. Corria por tanto graves contingências.

Calculou tudo isto o mancebo. Vira elle a retirada brilhante do arcabuzeiro, e a direcção que levava ; observara tambem o movimento dos dois hollandezes e facilmente lhes percebera o intuito.

Isto bastou para o orientar e decidir.

Endireitou para o lado onde presumia encontrar o arcabuzeiro, que não podia andar muito afastado.

A altura e espessura do mato não o deixavam descobrir longe. Parou para interrogar os sons. Eslava tudo em silencio. Este silencio inquietou-o.

De repente uma praga formidável, cuja intonação lhe era familiar, soou-lhe a pouca distancia, atlrahindo-o e estimulando-lhe o ardor.

Deixámos Ayres com a sua presa, que o fatigava consideravelmente. Explorava elle a um e outro lado com os olhos o terreno, tanto quanto lh'opermittiam os meneios furibundos do hollandez e a corpulência d'elle. Esperava que a sua boa fortuna lhe proporcionasse alguma ribanceira, caverna ou charco, onde o estatelasse e estoirasse. Com este cuidado ia desattento aos pequenos obstáculos do piso.

O arcabuzeiro, sem o saber, imitava o philosopho que, investigando os astros, não viu o poço.

Não um poço, mas uma raiz de cacto silvestre causou o fracasso do arcabuzeiro, que, além de comparável ao philosopho, podéra também ser comparado aos dois heroes de Troya e Grécia -- Eneas por ajoujado com o seu Anchises de contrabando -- Achilles por colhido no calcanhar.

Ayres, tropeçando, perdeu o equilíbrio como o fizera perder ao hollandez. O hollandez com o estremecimento da queda conseguiu voltar-se, e lograria soltar-se de todo, se o arcabuzeiro, na ancia do perigo, não o apertara de novo a si com fúria sobrenatural.

Por uma inversão, frequente na vida, o volumoso marinheiro dos Estados, face a face com o inimigo, ficou por cima deste. Ayres achou-se desastrosamente estendido em leito, de que bem podia dizer como o imperador Guatimozin : «que não era de rosas. »

Inútil será mencionar como o hollandez sentiu grande allivio e interior satisfação com este reviramento de fortuna, cuja primeira consequência era não esperdiçar o nosso Ayres nem um escrópulo das sete ou oito arrobas que podia pesar o maritimo de Flessinga, engordado a batata, circumstancia de que naquelle momento dava graças a Luthero e a Calvino.

A posição de Ayres, além de excessivamente incommoda, tornava-se cada vez mais grave. Caindo, tivera o arcabuzeiro, como se viu, o accordo de não deixar livre o inimigo, concentrando todas as suas forças em apertal-o mais e mais contra si, sem o que estava irremediavelmente perdido.

Seguiu-se nova luta, luta horrenda e temerosa.

O hollandez, achando ponto de apoio, entalou sob os joelhos os joelhos de Ayres, para evitar que este, arqueando-se, o lançasse de lado ; e, tomando elle uma curvatura potente, fincando a cabeça na cabeça do antagonista como lhe cravava os joelhos nos joelhos, fazia esforços obstinados para romper a cadêa dos braços tremendos, que paralysavam completamente o movimento aos seus.

Era difficil resistir á força combinada desta espécie de alavanca humana. Só uma prodigiosa tensão dos músculos, impossivel de continuar por muito tempo, fazia com que Ayres não tivesse já succumbido.

Mettia medo olhar para aquelles dois homens, em que á natural robustez se juntava o impeto das paixões e a angustia da morte emminente. Horrorisava observal-os assim, a fronte contra a fronte, os olhos fitos nos olhos, inflammadas as pupillas, os lábios arregaçados, cada tendão incrustado no corpo do contrario !

Se não fora a postura, crêra-se abraço fraterno. Era um abraço mortal.

D'aquelle esforço potente, hercúleo, supremo, resultava uma immobilidade terrível de ver.

Neutralisavam-se reciprocamente as forças, por que a vantagem da posição cabia ao hollandez ; mas era fácil prever o desenlace.

Conhecia-o Ayres, e por isso desatara a imprecação, que servira a Vieira como a estrella aos reis magos.

Meio suffocado pelo peso do hollandez, e não podendo já resistir ao impulso tenaz do adversario, dava o arcabuzeiro a todos os diabos a execução infeliz de plano tão bem traçado e começado, quando, ramalhando o mtlto, appareceu abrindo passagem o moço commandanle dos voluntários.

Mas ao mesmo tempo, da banda da margem, accorria o segundo hollandez, attrahido tambem pelo som da praga furiosa de Ayres.

Ayres continuava pois nos mesmos riscos. A intervenção de Vieira seria decisiva, se não fora a apparição inopportuna do outro hollandez.

Proseguia portanto o combate em condições idênticas: havia só mais dois combatentes.

Ouvindo a voz conhecida de Vieira, julgou-se o arcabuzeiro salvo, e, fortalecido com esta esperança, querendo acaso decidir por si a victoria, tal empuchão deu, que esteve a ponto de arremessar effectivamente de lado o contendor, o que talvez lhe offerecesse probabilidades de triumpho.

Foi porém momentânea esta melhoria. A presença do segundo hollandez, produzindo no animo do competidor de Ayres o mesmo effeito que n'este fizera a de Vieira, em breve restabeleceu o equilíbrio.

Quanto ao mancebo, o mesmo foi dar com os olhos n'aquelle novo inimigo, que arremetter para elle com o denodo costumado.

Dependia tudo da rapidez e êxito do segundo combate: este resolveria o primeiro.

Comprehendeu-o Vieira. Sentiam-n'o egualmenle os dois athletas, que a poucos passos empenhavam todas as suas forças em mortífero enlace.

O hollandez opposto a Vieira mediu prudentemente o espaço, e, achando-se mais perto dos dois lutadores, pensou que teria tempo de esmagar a cabeça ao arcabuzeiro antes de se achar ao alcance do moço voluntário. Ganhava assim um auxiliar contra este.

Dito e feito. Corre para os dois, grita ao camarada que afaste a cabeça, levanta o mosquete ás mãos ambas pelo cano, e Ayres, sem poder largar o inimigo, sem poder guardar-se, vê sobre o rosto a coronha calçada de ferro, julgando inevitável a ultima hora.

Desafogou em segunda praga, mais enérgica de que a outra.

Como que as pragas de Ayres possuiam certa virtude preservativa.

A pesada arma, descendo, encontrou já o mosquete de Vieira, que, mais veloz e não menos vigoroso que o hollandez, estava com este.

Foi terrivel o embate. As coronhas voaram em pedaços, como as lanças dos justadores antigos topando-se em cheio na arena.

Recuaram os dois por movimento unanime, e, fitando-se, melteram simultaneamente mão ás adagas.

Os dois hollandezes animavam-se com palavras furiosas. A vergonha e o desar de tão prolongada luta contra fugitivos inermes haviam tornado n'aquelles homens os primeiros estímulos em paroxismo de raiva.

Ayres, entretanto, extenuado do longo esforço, cedia pouco a pouco ao impulso do seu inimigo, que ia cada vez ganhando maior curvatura, e por consequência mais poder.

Eram dois duellos horrorosos, um ao pé do outro, um ao lado do outro -- duas agonias mutuamente dependentes.

Percebeu o arcabuzeiro que dentro em minutos, em segundos talvez, estaria a sua vida nas mãos do hollandez, e lançou os olhos a Vieira.

Vieira não perdia o tempo: o mesmo foi arremessar o mosquete partido, que voltar logo de adaga feita sobre o hollandez adverso.

Teve este apenas tempo de aparar com o braço esquerdo : o ferro furioso atravessou-lh'o de lado a lado. No mesmo instante Vieira recuou de um salto : sentira tambem nas carnes o frio contacto da lamina do hollandez.

O sangue corria de ambos até ao chão. O hollandez estava livido. Vieira, que nunca perdia a serenidade, sorria como costumava, um sorriso nervoso e medonho.

Aquelle combate de arma branca, o braço ao alcance do braço, o peito sob o gume de ferro, tão próximos e chegados, a sentir cada qual os anhelitos furibundos do inimigo, não era menos temeroso do que o abraço convulsivo dos outros dois.

Julgáreis ver os lutadores e dimacharios dos sangrentos circos romanos, disputando a taça de oiro e os applausos bárbaros do povo rei!

Vieira e o segundo hollandez separaram-se de novo, fuzilando raios dos olhos injectados. Separavam-se para se assaltarem mais terrivelmente ainda!

Desta vez, cada um delles calculava o golpe e a astúcia para tornar decisivo o encontro.

Nunca fora tam temerosa a situação. Concentravam-se as faculdades dos contendores, multiplicando-se por todos os graus da sua anciedade.

N'isto conseguiu o primeiro hollandez desaffogar-se dos braços de Ayres Gil, desligando as mãos que lentamente haviam cedido á dilatação successiva e irresistivel.

Soltou aquelle um grito de triumpbo; Ayres nenhuma imprecação já. Calculava em silencio os horrores e consequências da sorte que o esperava.

D'ali por diante, tanto como a sua vida, a vida de Vieira, estava á mercê d'este inimigo, que se levantava armado e vingativo.

Tanto que se viu solto, o hollandez firmou-se na mão direita; e, curvo ainda como estava, com o arcabuzeiro subjugado debaixo do seu peso, levou a esquerda á adaga que tinha no cinto para acabar sem mais demora o adversário.

Deitou-o a perder esta precipitação. Ayres, percebendo-lhe a imprudência, acudiu rapidamente. Com uma das mãos fixou a mão do hollandez contra o punho de ferro da adaga, esmagandolh'a na compressão, e impedindo-o de fazer uso da arma.

Ao mesmo tempo, retrahia com a outra o braço em que o hollandez sustinha o corpo. Perdido aquelle apoio, recaía este, e ficava em peior posição do que antes.

Para melhor se comprehender o lance, cumpre não esquecer que o arcabuzeiro, deitado de costas, tinha livres os braços ambos, ao passo que o hollandez, sujeitando-lhe meio corpo com os joelhos, precisava espalmar na terra uma das mãos, já para sair da posição horisontal que lhe inutilisava as armas, já para conservar a vantagem que depois de tantas diligencias obtivera.

Tudo estava em saber se o hollandez conseguiria tirar do cinto a adaga.

O esforço, que este era obrigado a empregar para conservar o braço direito na posição referida, afrouxava o impulso necessário á mão da adaga. Ayres, pelo contrario, concentrava neste ponto todas as suas forças, porque, se o hollandez cedendo á dôr, largasse a arma, ficar-lhe-hia esta nas mãos, e na situação em que se achava era de certo a salvação.

Gemeu o hollandez com o novo género de tortura. Aljofarava-lhe um suor frio a extremidade dos cabellos hirtos. Uma nuvem sanguinea lhe toldava os olhos. Revelava nas contracções do rosto a dupla expressão do ódio e do martyrio.

E Ayres a apertar, a apertar, a triturar com a mão rija e callosa os dedos do inimigo contra os copos da adaga !

A sede da vingança immediata cegara o hollandez. Se elle se erguera promptamenle, achar-se-hia armado e fora do terrivel alcance do arcabuzeiro antes que este podesse ser senhor de si.

-- Animo, Ayres! bradou Vieira sem perder de vista o adversário.

N'este ponto o hollandez contraposto ao mancebo, julgando este distraído, caiu sobre elle.

Vieira contava com o ataque, e esperava-o. Furtando-lhe agilmente o corpo, o hollandez só feriu o vácuo. No comenos a adaga do mancebo desappareceu até ás guardas no lado desarmado do infeliz, que foi ao chão sem um suspiro, salpicando o companheiro tomado de horror.

-- S. Jorge pelos Brazis! gritou Vieira triumphanle correndo para Ayres.

-- Victoria ! bradou este, mostrando a adaga arrancada ao hollandez, que finalmente cedera caindo de lado, meio desmaiado de dôr e com gestos supplicando a vida !

Pedia a vida o hollandez, porque na pátria outra deixara pendente da sua!

-- Sangue inútil não, Ayres! -- clamou o mancebo intercedendo. Este homem é prisioneiro.

-- Prisioneiro dizeis? -- replicou Ayres apontando para a extremidade da clareira onde se passava o combate. -- É cedo. Olhae por vós.

Indicava elle o terceiro hollandez, que aportara acima do ponto em que Vieira subira, e que, se os leitores bem se lembram, conservava o mosquete.

Tivera este ultimo a precaução de enxugar cuidadosamente a arma, de carregal-a, ferir lume, e accender o morrão de corda prudentemente resguardado.

Estava o novo inimigo a pouco mais de vinte passos, e mirava n'aquella direcção, hesitando só por ver a situação do camarada. Tinha procurado Vieira por entre o matto, presentira o rumor da luta e chegara a tempo de intervir ainda.

Nova complicação n'esta peleja interminável.

Ayres não tivéra ainda tempo de se melhorar de todo. O seu antagonista reanimou-se com o incidente, conseguio n'este intervallo pôr-se em pé de um salto, e empunhar o mosquete que tinha ainda traçado no hombro.

Ayres ergueu-se logo também.

A posição dos nossos dois amigos, depois de tantas alternativas e vicissitudes, podia considerar-se de todo desesperada no próprio momento do triumpho.

Os dois hollandezes deram-lhes a entender que se rendessem.

Ayres coçou a orelha e apertou a adaga nas mãos.

Vieira tornou a sorrir d'aquelle sorriso pallido e agoureiro, que nas occasiões de risco supremo, como este, o fazia tão terrivel.

Um pelo menos seria victima do mosqueteiro distante, que o fuzilaria a salvo. O que ficasse teria contra si dois homens superiormente armados.

Parecia inevitável.

Não era porém menos evidente, que nem um nem outro se mostrava disposto a ceder ao convite.

Tinham ambos passado por taes aperturas, que ainda n'esta os não abandonava a confiança. Conheceram os hollandezes a resolução dos dois, e concluiram que lhes cumpria não vacillar mais.

O adversário de Ayres avançou para esle; o outro mosqueteiro fixou a pontaria sobre Vieira.

Passava-se tudo isto sob um céo claro e limpido. Como que a natureza, magnificamente impassivel, sorria indifferente ás lutas pequenas dos homens.

Era porém o dia das peripécias súbitas.

No momento em que o hollandez, encostando o mosquete a um tronco, aproximava o morrão, ouviuse um silvo ténue e agudo no meio do silencio mortal desta scena, e em vez de despedir o tiro o mosqueteiro cambaleou e caiu para trás.

Conhecia Vieira aquelle género de silvos e de novo bradou :

-- -S. Jorge pelos Brazis, Ayres!

No mesmo ponto sahiu do matto o Polyguarassu, o chefe taboyar que já se entreviu n'esta narrativa.

A frecha do gentio pregara no hombro do hollandez o braço levantado em acto de chegar fogo.

O Polyguarassu, sobrevindo tanto a tempo, fora auxilio decisivo.

O hollandez ferido e o seu camarada prisioneiro, sob a guarda de Ayres Gil e Vieira, serviram de tropheus á victoria, e de attestados ao milagroso livramento.

XXIIÍ

O incendio

A armada hollandeza, esperando que as tropas desimpedidas lhe facilitassem o accesso da barra, vigiava estreitamente a costa.

No porto ancoravam trinta navios portuguezes carregados das mercadorias, que não tinham podido, nem podiam, ser removidas em tão pouco tempo, quando tão diversa e urgente occupação era dada aos braços resolutos.

Estes despojos opimos iam ser presa do vencedor, pagar-lhe os esforços, avivar-lhe a cobiça, e contribuir para estabelecer longamente o seu dominio.

Pertenciam em grande parte os carregamentos dos navios aos opulentos fazendeiros, que se haviam congregado em torno do capitão mór, pessoas geralmente da nobreza, e todos homens principaes da capitania. Muitos d'aquelles valores, e não dos somenos, eram propriedade particular de Mathias d'Albuquerque e de seus irmãos, que tinham bens na Bahia, em Pernambuco, e Parahiba.

Mathias d'Albuquerque, rendido o forte de S. Jorge, mandou evacuar o Recife, que já não tinha defesa. Apenas deixou na chamada praça alguns arcabuzeiros, camaradas de Ayres, veteranos das companhias de soldo. Eram seus conhecidos antigos: podia contar com elles para tudo.

Estavam aquelies homens costumados a nem raciocinar ordens recebidas. Cumpria que assim fosse para o que Mathias d'Albuquerque d'elles queria.

Ficavam-lhes em guarda tentações capazes de fazer vacillar as mais solidas virtudes.

O Capitão-mór andou pessoalmente pelos armazéns e pelos navios dispondo fachinas empapadas em alcatrão, resina, e outras matérias facilmente inflammaveis que não faltavam ali, distribuindo os artifícios de fogo que lhe tinham sobrado na praça, tecendo emfim á volta de tudo uma rede de estopins artisticamente accommodada e ordenada. Esta rede cingia os navios desde as cavernas até aos topes, e abraçava os edifícios desde o piso até aos tectos.

Em nenhuma das disposições preliminares da guerra mostrara ainda tanto desvelo o previdente chefe.

Terminava elle estes preparativos quando se lhe apresentaram Vieira e Ayres.

Contou o moço era breves palavras as derradeiras aventuras e redempção de ambos.

O capitão-mór, que os não esperava, para mostrar quanto folgara em vel-os, e em ouvir o narrador, disse para este :

-- Fallaremos depois, e muito hemos de fallar. Agora quero dar-vos os agradecimentos e as boas vindas.

-- Agradecimentos!

-- Agradecimentos; e não podereis recusal-os, Vieira. A ponto nos chegaes. Precisava justamente de um homem como vós, e não tinha certeza de encontral-o. Requeiro-vos novo serviço.

-- Mandae.

-- E a Ayres também. Deus foi certamente.... foi Deus que vos salvou e vos envia.

-- Oh ! senhor meu !

-- Digo o que sinto. Vinde commigo.

Levando-os na sua companhia a fazer a ultima inspecção dos armazéns e navios, foi-lhes explicando o engenhoso systema de rastilhos que havia estendido e predisposto.

-- Que vos parece? -- continuou para o moço Vieira, voltando ao Recife.

-- Parece-me que algumas horas bastariam para...

-- Parece-vos bem.

Depois, inclinando-se-lhe ao ouvido, deu-lhe uma ordem breve, que o mancebo recebeu sem o menor signal de espanto nem o mais leve indicio de recusa.

-- Tudo? -- perguntou apenas, como para bem comprehender.

-- Tudo -- affirmou o capitão-mór em tom absoluto.

-- Será cumprido.

Despediu-se Mathias d'Albuquerque recommendando particularmente a Ayres que obedecesse a Vieira. N'este ponto o arcabuzeiro não precisava já de estimulos.

O forte de S. Francisco da Barra fora investido do lado de terra, logo que o de S. Jorge se rendera. A resistência aqui, vimol-o desde o principio, era impossivel.

Ao cair do dia em que Mathias d'Albuquerque saiu definitivamente do Recife, o commandante d'aquella fortaleza, prevenido por um signal do capitão-mór, pediu capitulação.

N'essa noite lúgubre silencio pesava sobre a praça e o porto. Mal se entreviam no convez dos navios, ou em frente das tercenas, os vultos immoveis dos arcabuzeiros de soldo, firme cada qual no seu posto.

Vieira, segundo o seu costume, rondou toda a noite para conservar alerta as sentinellas: Ayres imitou-o.

Ao quarto d'alva estavam ambos no Recife esperando o que quer que fosse. Vieira não tirava os olhos do lado da Barra: o arcabuzeiro assoprava a miude a corda de um mosquete que tinha ao pé, avivando-lhe cuidadosamente o lume.

-- Que vos parece o modo de agradecer que tem o nosso capitão-mór, sr. Vieira? -- perguntou Ayres ao mancebo.

-- O melhor, e o mais honroso. Que maior premio que tal confiança?

-- Não digo que não, mas não dá tempo sequer a um homem se refazer. Ainda bem não está acabada uma, logo outra.

-- Nada está acabado, Ayres, em quanto o estrangeiro pisa a terra da pátria. Aqui tal encargo é o mais subido premio, e dal-o é patentear quanto foi merecido. Digo-vos que sabe agradecer como ninguém, o nosso capitão-mór.

-- Pois sim, mas sempre vos observarei, salvo o respeito, que depois da lida de hontem não me soubera mal descançar.

-- Não é descanço, isto? Tempo sobrará quando não tivermos o inimigo em casa. Demais, não é de perigo o feito que nos ora incumbe o sr. capitão mór.

-- De perigo não, mas de enfado. Perderem-se tantas coisas! Que dor de coração!

-- E na mão dos hoUandezes não ficavam ellas mais perdidas?

-- Tanta pipa de vinho generoso, sem alma christã poder aproveilar-se...

-- Doe-vos com effeito isso?

-- E penso que não é sem razão.

-- Então porque vos não aproveitastes, dizei?

-- Eu!

-- Vós sim, Ayres.

-- Ayres Gil tocar... n'um cangirão que fosse! Depois de saber as ordens! Com a lingua de fora que estivesse ! Na verdade, um homem aqui no meio de tudo isto, é como se estivera a arder em sede ao pé de um rio. Tem-me lembrado... lembrou-me, não n'o escondo... mas Ayres, em sendo caso de serviço, tem mão em si, e nem por todo o oiro de Minas... Se as sedes apertarem, o Biberibe está perto.

-- Ahi vereis como vos reconhece essas prendas de soldado quem tanto n'ellas se fia.

-- É o mesmo. Não se me abranda com isso a pena do estrago. Quer-me parecer que em quanto nós, no forte, detinhamos os hollandezes, bem podiam aqui ter despejado os armazéns e os navios, que tudo viria a servir a seu tempo.

-- Tirou-se o que se poude, o essencial. Mais não podia ser. Com que braços? Os homens da cidade andam quasi todos fugidos. Dos moços do porto poucos ficaram, e esses eram precisos para acudir a misteres de maior instancia, como logo vereis nos reaes. Perde-se muita riqueza. Que tem ? É para se não perder outra maior, a nossa terra.

-- Se esse é o vosso parecer...

-- E o vosso lambem, Ayres.

-- Eu, a bem dizer, nem já sei qual é a minha terra. Tenho visto tantas!

-- Sabeis. É onde está a nossa bandeira.

-- Oh ! isso é!

-- É pois tambem o vosso parecer e o vosso sentir, que não menos vos conheço.

-- A respeito de bandeira, olhae, sr. Vieira... Se me não engana este lusco fusco do amanhecer, não é a de Hollanda, a que lá em baixo içam no forte da Barra?

-- Dizeis bem, é.

-- Já?

-- Com isso deviamos contar.

-- Embora : sempre custa !

-- E em breve não tardará a frota. É occasião, Ayres.

-- Cheguem, cheguem-se embora. Pois que ainda não vem bem clareado o dia, alumiemos-lhe o caminho.

Dizendo, o arcabuzeiro assentou negligentemente o mosquete no parapeito da estacada, e chegou fogo.

A detonação foi longamente repetida pelos eccos.

No mesmo instante, por entre a nebrina de manhã, brilhou subitamente a bordo de cada navio extensa rede de fogo. Das tercenas alevantou-se uma fumarada espessa. Alguns negros, forçando a voga aos bateis, foram percorrendo as embarcações fundeadas, e recolhendo os arcabuzeiros, dispersos n'ellas, que em breve se reuniram a Vieira e Ayres, tomando todos juntos o caminho da ilha.

Além da ribeira dos Afogados, que se podia considerar um braço do Capibaribe, estendia-se a planície. N'essa planície, entre o Recife e Olinda, a distancia quasi egual de ambos os pontos, elevava-se um montículo, d'onde era fácil descobrir o porto.

Em torno d'aquelle centro principiavam com grande diligencia a levantar-se em semi-circulo algumas fortificações e trincheiras. Este recinto, base da defeza futura, era já conhecido pelo nome de Reaes do Bom Jesus, e por elle tinha de ficar immortal.

Ali congregava o capitão-mor as forças da capitania, e exercitava a população válida e armada.

Rompia o sol. Realçava na eminência um ajuntamento de homens silenciosos e attentos.

Era o capitão-mór com os principaes cabos da milícia, isto é, os mais abastados e poderosos colonos, como se disse.

Observava-se d'aquelle alto uma variada scena, ao mesmo passo curiosa e terrível.

Dissipára-se o nevoeiro. Avístavam-se aportando á ilha de Santo António os bateis onde vinham os destemidos incendiários. Divisavam-se no mar alto as naus e galeões dos hollandezes dando á vela para demandar a barra.

Mais perto, o Recife e o porto pareciam um vasto brazeiro. A intensidade do incêndio era tal que o ar abrazava.

Serpeando por entre os rolos de fumo avermelhado, as enormes línguas de fogo arremessavam-se como que a lamber o firmamento. Sentia-se quasi a crepitação das chammas, e de tempos em tempos a brisa do mar trazia aos capitães da milicia o acre perfume das próprias riquezas, queimadas em immenso holocausto ao génio da pátria.

Debalde as lanchas hollandezas, vergando os remos na arrancada, tentaram atalhar o fogo e salvar uma parte ao menos do appetecido espolio. Era temerário, era impossível permanecer no círculo traçado pelo clarão das chammas. Ardiam os navios até á linha de fluctuação. Amiudavam-se no Recife as explosões das vasilhas de espíritos, que ainda ali tinham ficado com tanto dissabor de Ayres.

As naus nem podiam prestar soccorro, nem approximar-se aos pontos incendiados. Estorvava-as o perigo de tomarem fogo também. Acrescia o não poderem chegar navios de maior porte ao Pontal e Varadouro onde ancoravam as embarcações mercantes.

De um lado, os hollandezes assistiam desesperados á ruína das suas esperanças, e começavam a presentir as consequências de uma guerra caracterisada por taes rasgos de ousadia, constância e abnegação.

De outro lado, os proprietários d'estas riquezas perdidas contemplavam a sua destruição entre consternados e orgulhosos.

Expressamente convocara o capitão-mór os cabos para lhes mostrar o terrível espectáculo.

Queria de um golpe aguerril-os contra a má ventura, affeiçoal-os ao sacrifício pela mesma grandeza d'elle, exaltar-lhes os espíritos para lhes attenuar a magoa, e imprimir n'um só lance o desprendimento do soldado a uma população de commerciantes.

Effectivamente, passada a primeira sensação de torpor e assombro, não pensaram todos senão em encarecer as vantagens doesta grande oblação. Calculavam os resultados que teria contra os hollandezes a resolução de Mathias d'Albuquerque, admiravam a tranquilla altitude d'este no momento em que, perdendo mais do que nenhum, entregava ás chammas o melhor do seu património e do património dos seus. Ninguém queria mostrar-se-lhe inferior no animo.

Isso tem o irremediável, que muitas vezes o acceitam conformes os próprios que nem ousariam sequer imaginal-o !

Prevaleceu emfim o enthusiasmo na secreta luta. Elevando d'este modo as almas, excitando a um tempo o amor pátrio e a aversão aos invasores, causa de tal perda, o hábil capitão-mór fizera das suas milícias cohortes de heroes.

Precisava d'elles!

Após o silencio longo, rompeu os ares uma acclamação estrepitosa e sincera á terra natal e ao chefe resoluto.

Mathias d'Albuquerque, vendo o incêndio na sua força, e reconhecendo a impossibilidade de poderem já os hollandezes aproveitar a mais ténue parcella d'aquella enormidade de thesouros, voltou-se para os cabos de maior nome, e sem de longe alludir ao facto consummado, exclamou com a voz e auctoridade d'uma decisão magnânima :

-- Sr. Cavalcante, sr. Berenguer, sr. Lacerda, vós todos quantos aqui sois, i-vos cada qual a vossos quartéis ; apressae-lhes dia e noite as obras ; exercitae sem folga as vossas companhias. D'ora avante é aqui o meu posto. O porto está perdido; mas os reaes do Bom Jesus estam assentes. A guerra da independência começa!

Estava com effeito começada !

XXIV

Epilogo

No mesmo dia, pela tarde, aos pés de D. Maria Cezar, a gentil donzella de Berenguer, castamente abrazada de paixão e orgulho, recebia Vieira n'um sorriso a recompensa dos seus sacrifícios, e ouvia n'uma pudibunda confissão de amor, promessa de inquebrantável constância, o penhor da felicidade futura.

Ayres Gil não tornou a topar micer Arnoldo, o que deixou nas suas mãos o sceptro bachico das Américas.

Mestre Marçal, depois de muitas vicissitudes e aventuras, cujo fio algum dia se retomará, encontrou na Bahia a amável consorte, que expressamente viera do reino em sua procura, -- encontro inopinado que lhe fez pena de não ter ficado prisioneiro dos hollandezes.

António de Lima, enviado a Hollanda, foi encerrado no castello de Meronblik, na West-Friza. Ali jazeu 10 annos esquecido o heroe do forte de S. Jorge !

Em 1641, estando já occupado o throno de Portugal por monarcha portuguez, Malhias d'Albuquerque lembrou-o na corte a Tristão de Mendonça, embaixador na Haya. Tristão de Mendonça, tanto que se assentaram as tréguas entre a casa de Bragança e a de Nassau, pediu com instancia a restituição do prisioneiro.

Procuraram-no então: acharam um cadáver!

Feliz o auctor d'estas paginas, se ellas poderem concorrer, instantes que seja, para resgatar tanto esquecimento e ingratidão!

FIM

Appendix A

Note:

O becco da Amargura existia realmente ao tempo em que a acção se passa. No mesmo caso estão todas as outras designações que pertencem ao estudo physionomico de Lisboa no século XVII. Todas as indicações topographicas são authenticas, e podem veriíicar-se nas monographias, noticias, relações e documentos respectivos. Evitam-se as citações para cortar prolixidades. A idéa do auctor neste esboço foi justamente esconder sob os ornatos da narrativa, e dissimular com o atractivo de uma ficção, mais ou menos aprazível, a aridez das investigações archeologicas. Tentou arregaçar o veu, que tem já a espessura de dois séculos, sobre um perfil da velha capital, com as suas feições originaes, dando uma idéa da vida que então a animava.

Note:

Beauchamps, na sua chamada História do Brasil, antes de relatar o ataque dos fortes, diz que Mathias d'Albuquerque se afastara do Recife, circumstancia que, juntamente com outras omissões graves, parece dar a entender que os abandonara. Era aothenlicos documentos se pôde averiguar quanto é errada e inadmissível similhante opinião. Effectivamente não podia attribuir-se tamanha negligencia a homem dos quilates de Mathias d'Albuquerque, O vencedor da batalha de Montijo, uma das mais disputadas e decisivas das guerras da acclamação, não malbaratava nem esperdiçava recursos. A historia é accorde em nos apresentar aquelle general como um intrépido militar, tão prudente como hábil. Não é só porém a ratione que o erro se demonstra. As particularidades em que entra o padre Calado na sua monographia, e o voto auctorisado de Brito Freire, escriptor de peso em taes matérias por ser da profissão, desmentem positivamente o historiador francez, que parece ter citado a Nova Luzitania sem ter perfeito conhecimento de tal obra, como visivelmente lhe aconteceu com algumas outras, de que faz ostentosa resenha.

Note:

Não se tracta aqui de manta cobertura e tecido ; mas das mantas em que falla Ruy de Pina, Duarte Nunes de Leão, Diogo do Couto, e outros ; isto é, uns fortes anteparos moveis, destinados a cubrir os bombardeiros no acto de carregar as peças.

Note:

Os leitores, que tiveram occasião de ver anteriormente a muito veridica e lamentável historia de Marçal Estouro, victima da dictadura conjugal e das leis dos Philippes, reconhecerão provavelmente aqui o misero mestre, cujas complicadas aventuras prometti continuar.

Note:

Tenho ainda aqui de remeter o leitor para a antecedente chronica, onde se deu larga informação da senhora Medéa Brandoa, digna consorte do fogueteiro.

Note:

Conservou a historia o nome de alguns d'estes valentes. Mereciam todos padrão immortal. Esta pagina modesta apenas os levantará do esquecimento um dia. Embora. Sempre será pagar a divida da pátria. E pois que tantos, e por tantos modos, se empenham em apoucar a honrada herança portugueza, leve-se ao menos a bem que uma voz se levante para glorificação do que foi, para estimulo do que póde ser.

Contavam-se entre os mortos o alferes António Borges e Francisco Guedes Pinto ; entre os feridos Pedro Gorrêa da Silva, e o sargento Luiz Fernandes.

Honra a estes heroes, não menos heroes que os Duarte Pacheco, os António de Faria, os Reynoso, e tantos mais !


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TextGrid Repository (2022). Portuguese Novel Corpus (ELTeC-por). Infaustas Aventuras de Mestre Marçal Estouro: Edição para o ELTeC. Infaustas Aventuras de Mestre Marçal Estouro: Edição para o ELTeC. European Literary Text Collection (ELTeC). ELTeC conversion. https://hdl.handle.net/21.T11991/0000-001B-D8FA-6