PROVIDENCIA
POR
AUGUSTO SARMENTO
COIMBRA
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE
1863
INTRODUCÇÃO
Cara nos ha custado a liberdade que actualmente desfructâmos: cada passo avançado em seu proseguimento é assignalado por um rasto de sangue.
Passando em revista os sete séculos da nossa existencia politica, vemos a ideia innata de liberdade, atraves das modificações que lhe imprimiam as tendencias de cada epocha, progredir e conquistar successivamente o solo para a nação; a cidade para o municipio; o baraço e cutelo dos senhores feudaes para a alçada da coroa; o posso, quero e mando do monarcha para a representação nacional; -- e a cada nova phase nova hecatombe a ungil-a e sanctifical-a.
Lutando e lutando continuamente, sem treguas nem descanso, nossos maiores desbravaram a terra, arrotearam o solo, e n'elle inocularam o germen da independencia da familia portugueza. Teve um berço de gloria o primeiro dia do genesis patriotico; e com egual explendor deveria o astro de Ourique levantar-se ainda sobre os sanguinolentos campos de Aljubarrota, Villa-Viçosa e Bussaco. Mas a nossa autonomia era apenas o alicerce do grande edificio, restava ainda muito para se fazer... fez-se! Fez-se, não como se quizera, mas como se pôde. Foi um rude lidar aquelle! Mais de vinte gerações succumbiram exhaustas de fadiga, nunca de esperança.
A semente rebentava e radicava-se no chão, espadanava-se em vergonteas, toucava-se de folhagem, desatava-se em flores, coroava-se de perfumes, conglobava-se em fructos raras vezes amadurecidos, porque joio damninho lhes roubava o calor do sol e o succo da terra. Vieram consecutivamente, algumas vezes ao mesmo tempo, a espada do invasor, a prepotencia dos nobres, a ambição theocratica, o sceptro do despota, o luxo do oriente, as chammas inquisitoriaes, a intolerancia jesuitica, e destruiram-lhe as primicias, antes que o suor do ceifeiro transformasse em dons o que sorria em esperanças.
Dois reis e um grande ministro associaram-se á obra do povo, não sei se por convicção, se por necessidade. Quer-me parecer que, se lhes formos a esmiuçar as intenções, o merito de seu procedimento baixará muitos quilates, como ouro de ruim liga.
D. João I, cerceando o predominio d'uma nobreza abastardada pelos favores de Castella, convocando côrtes, e ouvindo seus povos em todos os negocios importantes na paz ou na guerra, reconhece o princípio da soberania popular e torna solidaria a nação no uso da auctoridade de que o investíra.
D. João II, ao travar um duello de morte com o feudalismo, tanto secular como ecclesiastico, posto a curia romana pesar muito na balança de sua politica em favor das immunidades clericaes, acaricia e bafeja os peões que lhe offerecem um elemento poderoso para rebater a sanha de seus figadaes inimigos.
Depois é o grande avanço: o marquez de Pombal imprimiu em todos os actos de sua administração o cunho do genio de que era dotado. Á custa do descredito do sangue-azul elevou a burguezia; proscreveu a companhia de Jesus; nobilitou e fomentou as sciencias, o commercio e a industria; traçou finalmente as bases da futura reforma democratica. Liberal talhado na eschola do absolutismo foi heresiarcha e não apostolo da liberdade, mas ainda assim poucos enumerarão tantos e tão relevantes serviços em pró d'ella.
Abre-se-nos agora novo cyclo no folhear dos fastos liberaes.
O brado da revolução franceza, atravessando os Pyrineus, veio reproduzir-se em milhares de echos na peninsula hispanica. Portugal não podia ser extranho á commoção que fez vacillar todas as monarchias da Europa. As vagas aspirações de liberdade, este sentimento gemeo da existencia, fixam-se, determinam-se e começam a tender a um fim que não deve esperar-se como acto espontaneo da munificencia real, mas pedir-se, e se necessario for conquistar-se, como direito de que injustamente o povo andava desapossado.
Por singular predestinação da Providencia o verdadeiro apostolado do evangelho democratico estava reservado ás hostes d'aquelle que o havia immolado aos appetites liberticidas de sua insaciavel ambição. Data na verdade das invasões do primeiro Napoleão o decisivo impulso dado ás associações secretas, vasto cadinho em que se hão fundido e elaborado todas as grandes revoluções politicas e sociaes, que têm pesado sobre os destinos da humanidade como o dedo de Jehovah, terriveis e beneficas ao mesmo tempo. Aquelle trabalhar incessante, aquella vontade estribada em mil vontades, aquella acção contínua, sempre coherente e harmonica, simelha immensa cratera, onde se amontoam em fusão elementos heterogeneos, que se modificam para se combinarem, unirem e reforçarem, até que um dia prorompem subitamente, e em ondas de fogo amortalham campinas, submergem cidades e transformam em sua impetuosa corrente a superficie do globo. Assim nas lavas de uma revolução quasi sempre se arrasta um govêrno, uma coroa, uma dynastia que se lhe opponham como diques: mas, se triumphou uma ideia civilisadora, se se avançou um estadio no caminho do progresso, que importa? Ao bem do homem não deve contrapor-se o mal do individuo; seria um attentado aos direitos da humanidade, um desafio á vontade do Eterno!
O primeiro estremecimento ostensivo do liberalismo entre nós reconhece-se em 1817: mais patriotico que politico era comtudo o estandarte que deveria desfraldar. Submetteu-o o jugo de uma oppressão odiosa; e o sangue de Gomes Freire de Andrade correu inulto, mas não deslembrado.
O cutelo do algoz decepa a cabeça, nao o pensamento; elimina a existencia, nao a ideia. O sangue dos martyres é fecundo como o orvalho do ceu. Beresford e seus apaniguados, enforcando o que alcunharam de traidor, esbofetearam Portugal com ambas as mãos. Ora, de todas as anrontas, a que fere uma nacionalidade, é a mais sentida, porque é indelevel,remoçando- se com cada geração que se succede. Clamando eternamente vingança pelas cem tubas da tradicção e da historia, faz lembrar aquellas apparições das lendas da edade média que vinham inquietar o somno dos que foram seus perseguidores. Eis porque o supplício do valente general accendeu brios nos mais apathicos e indifferentes, e a víctima do muito que quiz á patria achou em cada peito um culto para seu nome, em cada rosto lagrimas para seus infortunios, em toda a nação herdeiros do seu sentir.
Demonstrou-o a revolução de 1820.
Fomentada ao calor dos mesmos anhelos, originada em parte das mesmas causas que motivaram o projectado levantamento de Gomes Freire, coube em sorte a ésta revolta mais feliz resultado.
O Porto, que dera nome a todo o reino, completou-lhe o baptismo, reivindicando-lhe a liberdade: berço da civilisação e progresso do nosso paiz, foi-lhe tambem salva-guarda e baluarte. Incansavel nessa nobre missão vel-o-emos ainda por várias vezes alçar o pendão liberal, sustental-o á custa de improbos sacrificios, agonisar em um longo cêrco para resuscitar mais progressista e civilisador; e em nossos dias chamar a seu gremio todos os que trabalham, e dizer-lhes: -- «abracemo-nos 'num dia de descanso entre a embriaguez do triumpho: ésta victoria não custa lagrimas; a coroa dos vencedores não gotteja sangue.»
Se a victoria não custou lagrimas, arranca-as hoje a sua recordação. No festim popular ha vasio o logar de um conviva: era o que aos filhos do povo estancou muitas lagrimas, o que lhes assistia no leito da dor e os confortava nas attribulaçoes. Porisso em horas de regosijo o queriam a seu lado.
Pobre rei! os homens deram-te um diadema de ouro e pedrarias, Deus converteu-o em coroa de espinhos. Caracter sem mancha, coração sem fel, sceptro sem jugo, que crime expiaste 'neste mundo?
Herdando as principaes virtudes de seus antepassados, D. Pedro V excedeu-os a todos. Bondoso como D. Sancho II, civilisador como D. Diniz, justiceiro como D. Pedro I, desventurado como D. Duarte, amado e desejado como D. Sebastião, foi rei como elle so. 'Nelle soldou-se o elo mysterioso da alliança entre o prestigio do throno que se alue e a consciencia dos povos que desperta. Na sua vida ha um exemplo, na sua morte uma lição.
Exemplo e lição possam ambos ser proficuos a governantes e governados!
Nem todos os nomes, que a historia archiva, se insculpem no sanctuario do coração dos povos. Alexandre e Cesar não são Numa e Tito: o amor não é so admiração e respeito. Mesmo nos tempos fabulosos, em que a guerra, alem de constante necessidade, era o mais nobre mister, o proprio Hercules não pôde ser equiparado a Osiris e Mercurio.
O prestigio dos guerreiros, sejam embora Carlos XII ou Bonaparte, assenta sobre o fumo de seus canhões: -- ergue-se em Narwa e Marengo, cae em Pultawa e Waterloo. Aurora de fogo, crepusculo de sangue. Quando seus pelouros cessam de vomitar o exterminio e a morte, o colosso baqueia e com elle a nação que arruinou, privando o solo de braços, a familia de esteio, sobrecarregando o povo com impostos, o thesouro com encargos, esbanjando finalmente a fazenda e a vida, o patrimonio dos homens e o patrimonio de Deus.
A guerra é uma brutalidade inutil que nada prova, nada construe e nada solidifica, logo que não tente realisar uma ideia moral, justa e civilisadora. Conquistar por ambição, é edificar sôbre o ar. O que a espada eleva, abate-o a espada. É a lucta dos Titans contra Jupiter: elles a assentarem montanha sôbre montanha para escalar o ceu, e o fogo do ceu a derribal-as uma apos outra.
Que é do imperio da Macedonia e da Persia e do de tantos mil outros conquistadores que romperam o equilibrio do mundo com seu podêr?
E para não mendigar por extranhos o que de casa nos sobeja, que resta dos feitos gloriosos d'essa pleïade de heroes que abrilhantaram os dias abençoados da dynastia de Aviz? Alguns nomes pomposos, alguns capitulos de mais nas chronicas epilogados por esta fatal apostilla -- Alcacer-Quibir! -- Não é porque tomámos Ceuta e defendemos Diu que o mundo se lembre ainda de nós; é porque ensinámos á Europa o caminho da India, porque assoalhámos a seus olhos, accendidos de pasmo e cubiça, as riquezas occultas nas florestas virgens de Sancta Cruz; não é porque derramámos sangue, mas sim porque proporcionámos aos povos os commodos da riqueza. Afóra esses dois grandes commettimentos, Portugal hoje so poderia ser conhecido 'nalgum mercado inglez pela excellencia de seus vinhos e laranjas, ou ruindade de seu tabaco, graças ao monopolio.
O conquistador é tempestade que assola, meteoro que passa. O raio fuzila, corre, cae, fere, desapparece -- eis seu destino. Nasce na desordem, leva ante si o terror, deixa na passagem a desolação, na quéda o exterminio. O reinado dos Pedros V não faz tanto ruido, mas esclarece mais, e sôbre tudo esclarece sem consumir. O arminho que se purpureia de sangue é o mais lugubre de todos os sudarios, mas o sceptro, que desce como mão paternal a consolar todas as miserias, a amparar todos os desvalidos, é uma benção do ceu!
Assim como da liberdade foi Gomes Freire o primeiro martyr, Fernandes Thomaz o patriarcha, o duque de Bragança o soldado, D. Pedro V o filho benemerito, foram Carlota Joaquina e o patriarcha D. Carlos seus primeiros e mais encarniçados inimigos. Recusando jurar as bases da nova constituição, practicaram o primeiro acto d'uma formal rebellião. Mas os patriotas de 20 eram de rija têmpera portugueza, dos de antes quebrar que torcer, como diz Sa de Miranda; e se a coroa se pôde blasonar de impune, a mitra pagou por ambas, pois o primeiro dignitario da egreja lusitana obteve em premio de sua rabugenta obstinação a clausura 'numa cella do Bussaco. Parte d'aqui a luta mal ferida entre o liberalismo e a egreja, luta que ainda em nossos dias ameaça recomeçar. Disse egreja, enganei-me. A egreja não tem culpa dos abusos de seus ministros, que a queriam transformar em instrumento de odios e perseguições, e ennodoavam a alva de sacerdote no lupanar das paixões terrenas.
Adiante.
As côrtes de 20 na generalidade mais republicanas que constitucionaes, mais metaphysicas ainda que republicanas, ostentaram talvez demasiado luxo de sciencia e menos tacto politico, muita theoria e menos acção governativa. Esqueceram que os povos que representavam queriam um parlamento e não uma academia; e em vez de lhes estudar e procurar remediar urgentes necessidades, contentaram-se de ser eloquentes á custa dos publicistas da moda. Nas côrtes não fallava o deputado da nação; era Mably, era Filangieri, era o selvagem Rousseau. Titulos de honra e estima souberam-nos os legisladores de 20 adquirir, e seus erros póde dizer-se que exclusivamente provieram da falta de experiencia com que se viam a braços 'neste primeiro ensaio constitucional; mas porque pararam no caminho encetado? porque foram imprudentes em suas discussões? porque não cortaram pela raiz grande parte dos males que nos affligiam? porque não procuraram sustar a crise commercial e financeira por que estavamos passando? Em politica, especialmente em materia de reformas, desde que não se avança, retrograda-se. Se o cauterio não vae a tempo, a ferida aggrava-se mais e mais.
As côrtes, que vieram depois, pelo descredito, não sei se merecido, que acarretaram sôbre si, exacerbaram os animos dos sectarios do absolutismo, ja de sobejo exaltados pelo favor que então lhes dispensavam a maior parte, se não todos os gabinetes europeus. Accrescentando a quéda da constituição hespanhola, espesinhada pela divisão do duque de Angoulême, eis em resumo as principaes causas que originaram a célebre reacção de Villa Franca.
Innumeros foram seus adherentes: uns de nimia boa fe, outros por conveniencia particular olhavam como unica salvação possivel a restauração do antigo regimen.
No emtanto era tão visivel a urgencia de promptas reformas, que para consolidar o novo govêrno, algumas se prometteram.
Promessas de pretendente, é claro.
'Neste estado de cousas, ou antes 'neste pelago alterado continuou a mão debil e timorata de D. João VI a reger o leme da nau governamental em pleno gôso de seus inauferiveis direitos. Todos presentiam que se encaminhava para um abysmo, mas ninguem ousava sustel-a; cruzaram-se todos os braços, e esperou-se que tempos mais propicios afastassem de nós o perigo imminente.
Entretanto o velho rei ia descendo os degraus do tumulo, ralado de desgôstos com que o amargurava sua propria familia a quem parece que a Providencia encarregára o papel de castigar desapiedadamente a prematura ambição do filho de D. Maria I. Elle, que não soubera pôr côbro ás dissensões domesticas, mal podia prever a tempestade que se agglomerava sôbre sua cabeça, e consumia o resto da vida, deliciando-se ao rythmo do monotono canto de seus bons religiosos de Mafra. Ora se os negocios publicos fôssem psalmear de frades, bem estava o paiz!
A natureza tinha commettido um indesculpavel equivoco.
Repleto de tabaco e canto-chão expirou D. João VI, deixando o paiz involvido 'numa questão politica aggravada por uma questão dynastica.
Este monarcha tinha dois filhos, ambos ausentes do reino nessa epocha -- o primogenito, imperador do Brazil, no Rio de Janeiro; o segundo, fautor da abrilada, desterrado em Vienna d'Austria. O testamento do rei limitava-se á nomeação da regencia que empunharia as redeas do govêrno até á chegada do successor da coroa.
Apesar de D. Pedro d'Alcantara ter arrancado da coroa portugueza a mais preciosa de suas joias, bem ou mal, entendeu-se ser o imperador do Brazil o successor designado no testamento do rei: a regencia assim o proclamou, a nação prestou-lhe homenagem e os gabinetes estrangeiros como tal o reconheceram.
Todas as difficuldades, todas as dúvidas sobre seus direitos ao throno começaram com a notícia de sua abdicação a favor de D. Maria II e da outhorga da Carta Constitucional. Não entraremos agora na avaliação dos direitos que os dois partidos reconheciam em seus chefes; jurisconsultos e politicos que os discutam. Mais detida do que quizeramos nos tem ido a penna em objectos extranhos a nosso intento.
A Carta de 26 foi pois o alarma lançado nos arraiaes absolutistas: seus principaes caudilhos levantaram o grito de rebellião, escolhendo especialmente as provincias para theatro de suas façanhas. Repetidas vezes a sorte das armas lhes foi desfavoravel, e, apesar do apoio que encontravam no gabinete hispanhol e da coadjuvação do exército que este havia mandado para as fronteiras, talvez não fôssem avante seus intentos, se a imprudencia, ou outra qualquer razão que a luz da historia ainda não esclareceu satisfatoriamente, não lhes entregasse, por assim dizer, manietado o partido liberal.
O imperador do Brazil, querendo conciliar os dois partidos belligerantes e firmar sua dynastia, destinára para espôso de D. Maria II seu irmão delle, o infante D. Miguel, bem conhecido no paiz por seu caracter revolucionario e espirito absolutista, que, levando-o a insurgir-se contra seu rei e pae, lhe motivaram a expatriação. Em Vienna tinha D. Miguel jurado a Carta e contrahido solemnes esponsaes com sua sobrinha; e não obstante protestos de adhesão a uma e protecção a outra, cada um dos partidos de per si 'nelle depositava ou esperanças ou receios.
Tal era o estado de cousas, quando pelo correio do Brazil chegou a notícia de se haver dado ordem a D. Miguel para voltar ao reino e assumir a regencia durante a menoridade da rainha. Se D. Pedro quizesse de proposito comprometter a causa liberal, não encontraria meio mais adequado.
É certo que, começando pelo govêrno, tudo conspirava para derribar a sombra de constituição, através da qual a hypocrisia e a ambição organisavam seus proselytos, e preparavam nova, porém mais perduravel, reacção absolutista. Ser liberal tinha feito cahir das mãos de Saldanha a pasta de ministro: ser liberal era dar azo a perseguirem-no.
Um dos primeiros cuidados do infante, mal chegou ao reino, foi a dissolução das côrtes; dissolução que, logo que pôde, effeituou sem promessa de nova convocação, como em taes casos o determina a Carta Constitucional. Não era acontecimento que viesse inesperado. Desde seu desembarque D. Miguel claros deixára perceber seus sentimentos.
Não tardou o passo decisivo: pelo decreto de 3 de maio de 1828 convocaram-se os tres estados do reino, ou côrtes primitivas, para decidir sôbre pontos importantes do direito portuguez -- tal era o nome official dado aos projectos ambiciosos do infante. A convocação, porém, era apenas uma simples formalidade; pela intendencia geral de polícia se tinha recommendado que a nomeação não recahisse em alguns dos que podessem contrariar as intenções do filho de Carlota Joaquina.
Desde ahi começou em grande escala a perseguição contra os liberaes: uma fita, um lenço, o gesto mais indifferente bastavam para denunciar um malhado ou pedreiro livre, epitheto sempre oneroso ao que o recebia, pois mais tarde ou mais cedo lhe vinha a grangear quotidianos vexames. La estava a escoria dos ministros de um Deus todo misericordia e amor, la estava da cadeira da verdade o hypocrita, o simoniaco, o devasso a atiçar o facho da discordia doméstica, a prégar o exterminio e o fratricidio, e a prometter aos algozes o reconhecimento temporal do monarcha da terra, e as graças espirituaes do monarcha do ceu. Foi d'est'arte que se conseguiu a carnificina de setenta desgraçados prisioneiros constitucionaes que, ao passarem por Villa Viçosa em direitura a Elvas, foram barbaramente assassinados pela plebe, sublevada pelos frades d'aquella terra.
Não levou por diante seus intentos o infante D. Miguel sem que a nação protestasse energicamente contra esse ominoso attentado. No mesmo dia, Aveiro e Porto se revoltaram contra o usurpador e a usurpação; seis dias depois devia em Coimbra, desfraldando-se o mesmo pendão, repetir-se o mesmo brado patriotico.
Estamos na aurora d'esse dia, prenúncio de más novas, no introito d'essa revolta.
E disse de más novas, porque uma revolta é sempre fatal, por justa e sancta que seja: na sociedade, como no individuo, combater o mal da doença pelo mal do remedio traz comsigo gravissimas consequencias.
A peior não é o sangue que jorra do choque de dois odios, como o raio do choque de duas nuvens, prenhes de fluidos contrarios: é a immoralidade d'uma guerra fratricida; é a libertinagem, o roubo, o incendio e o assassinato arvorados em legalidade, a titulo de represalias; é o descredito e baixa instantanea dos fundos publicos, a estagnação das fontes de receita privada; é a familia na viuvez, na orphandade e na miseria; é talvez, mais que tudo, o despotismo das turbas, e em seu ephemero reinado os absurdos excessos das maiorias.
Qualquer que seja o tempo e logar em que as massas populares se levantem compactas e se desvaneça o prestigio do podêr exauctorado, a historia archiva desde logo tristes recordações em páginas ás vezes mais salpicadas de lama que de sangue.
No cataclysmo social não ha arca de salvação para o justo.
Ha quasi vinte seculos Jerusalem pedia a morte do cordeiro sem macula a trôco da salvação de um criminoso. Mais tarde Roma, depois de em vergonhosa almoeda adjudicar a purpura dos cesares ao concussionario da vespera, presenciava um dia com júbilo o triumpho de Vitellio, revestindo-o novamente do podêr de que era indigno, e no dia seguinte batia palmas, vendo arrojar ao Tibre seus ensanguentados restos. A França republicana cobre-se de oppobrio, amargurando a existencia de uma creança, cujo crime era appellidarem-no Capeto, ao passo que fazia a apotheose do sanguinario Marat. Quantos exemplos poderiamos adduzir da historia contemporanea, se não receiassemos ir avivar feridas que ja devem estar estanques!
No levantamento das massas são as fezes que primeiro irrumpem, porque toda a ebulição se coroa de espuma: porém na effervescencia popular a espuma demole porque é inveja, desvaira porque é fanatismo, fulmina porque é barbaridade.
Eis a tripode funesta sôbre que se firma qualquer revolução.
Não se pense eomtudo que rejeito o princípio de insurreição: deploro o facto. Antes de condemnar as demasias do populacho, condemno os abusos de jurisdicção que as motivam. A revolução é o protesto que o povo lavra contra esses abusos, e algumas vezes o freio que os doma. Fóra d'estes casos não ha revolução, e somente alvoroto, motim, rebellião se quizerem. Deu-nos Deus dois fins, consoantes a nossa dupla existencia -- um individual, outro social. Os laços do sangue, do interesse, da mesma crença e idioma, a fraqueza humana emfim, prendem o homem á familia, ao municipio e por ultimo á nação: a escolha dos meios conducentes á sua conservação isola-o por assim dizer no meio da sociedade e torna o individuo senhor e responsavel de suas acções. Congregado em nação necessita o homem d'um espaço no globo, que a natureza tenha por si mesma limitado, de maneira que se tornem visiveis as raias onde principiam e acabam duas nacionalidades: olhado como individuo, sua actividade so póde ter os limites que a razão e a consciencia lhe traçar, e quanto bastem para que sua liberdade se não torne em licença. Os philosophos materialisam ésta ideia e dizem que o homem obra livremente dentro da esphera de sua actividade. Qualquer aggressão que ultrapasse, quer as fronteiras da nação, quer a extrema d'essa esphera aonde se exercita a liberdade individual, sendo a completa negação dos mais sagrados direitos do homem, é egualmente repellivel. Que eu saiba, ainda ninguem poz em dúvida a uma nação o direito de se insurgir contra as aggressões do invasor, que lhe não respeitou as fronteiras; porque não ha de ser egualmente reconhecido o direito d'um povo, que é a reunião de individuos, de repellir o jugo de quem lhe pretenda cercear a liberdade?
Agora duas palavras sôbre o livro.
Em setembro passado achava-me eu 'numa estreita nesga de terra, entalhada nas abas das serranias do Bussaco. A pretexto de banhos ahi descansava o espirito de um fatigante lidar de onze mezes. A inacção, como aquella vida m'a dava, era para mim o tedio de cada dia, a insomnia de cada noite, a apathia de todos os instantes. Por entretenimento, resolvi escrever o que hoje arremésso aos mares da publicidade. Pede-me comtudo a consciencia declare que ja por duas vezes, em epochas differentes, havia tentado o mesmo assumpto, mas com a mesma infelicidade abortiva que retém e reterá ao canto da gaveta grande parte dos filhos de minha imaginação.
Livros aonde fôsse avivar reminiscencias no estudo da epocha que descrevia, um apenas tinha á mão; de resto alguns apontamentos, quasi sempre incompletos, parte da correspondencia de alguns membros de minha familia, durante os seis annos de emigração a que os forçou o papel activo que tomaram nos acontecimentos de 28, e por ultimo o traslado da devassa aberta contra elles em agosto do mesmo anno, eis as principaes fontes onde bebi parte dos esclarecimentos de que necessitava.
Classificar isto 'num certo e determinado genero de litteratura, á fe que o não sei eu, nem tão pouco me dá grande cuidado. Chamem-lhe o que quizerem; para mim sera simplesmente a expressão do sentir dos meus vinte e cinco annos.
Temos visto todas as questões que tocam de mais perto os interesses da humanidade emmaranharem-se em peripecias, agitarem-se em dialogos mais ou menos naturaes, incarnarem finalmente nos moldes do romance, e serem apreciadas por leitores que dormiriam a somno solto sôbre a primeira página d'um tractado ácêrca da especialidade. Eu que queria ser lido, ataviei com garridices romanticas isto, que não é mais que uma ideia moral presa accidentalmente a uma ideia politica.
Se não estivesse convencido de que não ha lima capaz de garnear até á elegancia o que dos moldes primitivos sahiu grosseiro e disforme, refundiria quasi todo senão todo o meu trabalho, se a paciencia, o que é mais natural, me não fallecesse ao primeiro esfriamento do enthusiasmo durante o regelar de ingrata vigilia. Fallo com toda a franqueza. A minha vaidade de auctor findou com o ultimo traço 'neste primeiro ensaio... romantico?
Não obstante, afoutei-me a publical-o. Julgo que quem quer que tenha uma ideia, não de todo inutil, é obrigado a communical-a ao maior número que possa.
Mal ornada, incompleta, em embrião que seja, que importa? Da chrysalida sae a borboleta, de pequeno grão a planta. Abrolhos, mel, perfumes, flor ou fructo, dar o que se póde, eis o dever.
Não é so nas aras da divindade que toda a offerenda é egualmente acceita e abençoada.
Eis porque este livro sae a lume.
I
PATRIOTISMO DE UMA REGATEIRA
Era o dia 22 de maio de 1828.
Desde o amanhecer grupos, sempre crescendo em volume e agitação, rodeavam as esquinas das principaes ruas da cidade, onde durante a noite haviam sido affixadas enthusiasticas proclamações, incitando o povo a revoltar-se contra a regencia e proxima usurpação miguelina. Não se julgue comtudo ser a sympathia de ideias o mobil de toda essa gente; pelo contrário todos ou quasi todos professavam ideias absolutistas, se ideias tinham.
Os liberaes eram em Coimbra, assim como em todo o reino, uma pequena minoria. O clero, julgando salvar a egreja e suas immunidades, a nobreza, tentando conservar seus foros e privilegios, a arraya-miuda, seduzida por uns e outros, eram por D. Miguel; a classe média, e nem toda, via-se unicamente no campo liberal, reforçado 'nesta terra pela academia na sua quasi totalidade.
A palavra revolução so por si tem alguma cousa de magnetica que attrae ainda os mais incredulos: como novidade arrasta curiosos; e, pela perspectiva de rapinas e extorsões, agita o lodaçal que fermenta nos ultimos degraus da escala social, e faz pullular a escoria que exulta á custa das calamidades públicas, assim como o abutre no meio da carnificina. As violencias e infamias que se practicam durante uma revolução não as lanceis á conta dos revolucionarios, mas á d'essa gente que, não tendo partido algum, os deslustra a todos, porque a sua divisa é o estomago.
Incredulos, curiosos e especuladores formavam pois na generalidade esses grupos, onde, se dissermos a verdade, ja se ia tomando certo calor pelo feliz exito da causa constitucional. Não era o sublime da ideia que os seduzira, porque a árvore sagrada da liberdade so medra na alma rehabilitada pela consciencia, ou na razão arada pelo estudo: não era a alliciação nem o exemplo, porque nos impulsos do coração não collaboravam reagentes que lhe fôssem extranhos, era um movimento todo íntimo, como o que nos leva, mau grado nosso, atrás de toda a novidade, de toda a incerteza, de todo o mysterio.
Ha momentos em que chegâmos a duvidar do poder da intelligencia; é quando queremos explicar factos, que não têm nem podem ter explicação. Voluvel é a folha sôlta do tronco, inconstante a vaga, passageira a nuvem; pois menos estavel ainda que a folha, a vaga e a nuvem é o coração do homem. Um momento antes cada um dos individuos que formavam aquelles grupos, outros tantos embryoes revolucionarios, cada um d'esses individuos, repito, se jactaria de strenuo campeão do absolutismo; juntos sentiam desprestigiar-se-lhe a antiga crença, e vacillavam, como o viandante perdido na encruzilhada de dois caminhos oppostos.
Era isto o que a sr.ª Escholastica Plangana não podia levar á paciencia. Rezam meus apontamentos sobre os personagens d'aquella epocha de não sei que aura de pessoa bem-fallante, que gosava por esse tempo a sr.ª Plangana entre suas collegas no mercado do peixe.
Se as sr.ª Planganas, que em nossos dias provocam a gulosina do transeunte com a exhibição das saborosas fructas do termo, são as actuaes representantes da patriotica peixeira (como a identidade do appellido me leva a crer), poderão attestar a meus futuros criticos a escrupulosa imparcialidade com que vou escrevendo a biographia da heroica progenitora da familia planganiana.
Escholastica tinha o seu tanto de virago. 'Nella nada havia redondo, chato ou bicudo, conforme os caprichos da natureza, que por muito pronunciado não destacasse ao primeiro relancear de olhos: so o nariz á sua parte sombreava metade da face, quando a outra metade estava alumiada. A fronte, que fôra a unica prejudicada na divisão das partes componentes de seu rosto, era trahida por um pequeno traço calvo entre duas hirsutas grenhas -- a superior, escapando-se d'entre as dobras de um lenço vermelho amarrado á cabeça; a inferior, formando uma especie de docel arruivado suspenso sôbre dois olhos rasgados á flor do rosto, como os do tigre marinho. A respeito da bôcca não sería arrojada hyperbole dizer que principiava onde todas costumam acabar, e nao sendo a sr.ª Escholastica tão cautelosa em a ter constantemente fechada, amedrontaria os mais destemidos. Não se leve a mal essa casquilha precaução que nos poupava o nojento espectaculo da falta de treze dos seus mais brancos dentes. Serem os mais brancos, é conjectura minha, pois não posso imaginar que toda a dentadura d'esta mulher fôsse côr de cobre com laivos de azinhavre. Accrescentem-se uns bigodes de veterano arqueados sôbre uns beiços entre grossos e delgados, com os quaes competia no rubicundo o resto da cara, e abro mão da descripção por terminada. Inda não, que me esquecia notar as enormes arrecadas de ouro de lei, de que a sua proprietaria se mostrava mui desvanecida, por ser o unico luxo que sua avareza lhe permittia; e a pequena caixa de folha, em que guardava o rapé, provado manancial de verbosidade em apuros de eloquencia.
Orçava a sr.ª Escholastica pelos seus cincoenta e tantos annos, mas a robustez de sua construcção oppunha camada sôbre camada de adiposas carnes a cada golpe do tempo. Augmentava pois a circumferencia da regateira cousa de uma pollegada cada anno com inqualificavel espanto de suas vizinhas e amigas, que, ao saudarem-na; pareciam ajustadas a repetirem-lhe a uma voz:
-- Ih! Jesus! a sr.ª Escholastica de cada vez está mais gorda!
Na ausencia porém é que era o vel-as a contas com o volume excessivo das banhas da tia Plangana.
-- Mas que fará aquella alminha de Christo para engordar d'aquella fórma? perguntava a mais curiosa da companhia.
-- Eu t'arrenego, parece mesmo um mostrengo desazado! accrescentava a mais maldizente.
-- Poderá não ser assim! atalhava a mais experta, boa vida, boa carne e bom vinho!...
E, soltos d'uma vez os diques aos diz tu, direi eu do soalheiro, la se seguia uma enxurrada de alvitres, cada qual mais aleivoso. Pela verdade dos que ficam apontados me não responsabiliso eu. Attestam pessoas de boa nota que a peixeira trabalhava como um mouro, visto que o vulgo a ninguem dá licença para ser mais incansavel; comia ás tres refeições diarias como um carmelita em quaresma e execrava o sumo da uva como um derviche. Pede comtudo o rigor historico que não occulte o uso de certo copito de aguardente, bebido ao levantar com o louvavel intuito de afugentar os vapores soporiferos da madrugada.
'Nesse dia, logo que a sr.ª Escholastica punha pe no mercado, foi informada, como verdadeira patriota, do movimento revolucionario. Qual foi seu pasmo ao inteirar-se do relatorio verbal das colarejas, é impossivel de descrever. Os fumos do copito da aguardente subiram-lhe ao cerebro transformados no demonio da íra. A peixeira suava, gesticulava, vociferava, como se na realidade estivesse possessa.
A maior parte das regateiras formaram um círculo em volta de sua companheira e gritavam ao mesmo tempo, electrisadas pela palavra rectificada da tia Plangana. Era um côro estrepitoso de vozes roufenhas e esganiçadas, que iria ao proprio inferno irritar os nervos da mais apathica polícia, se a polícia coimbran não fôsse precisamente a unica cousa que Deus se esqueceu de tirar do cahos.
Dois passeantes, ouvindo aquella vozeria ao encontrarem-se no princípio da Praça, perguntaram a origem de tamanho alarido.
-- Não é nada provavelmente, respondeu com indifferença o caixeiro da loja proxima. Algumas regateiras que jogam a tamancada...
-- É natural, respondeu um dos passeantes.
E dicto isto, cada um seguiu seu destino, como se as regateiras não fôssem creaturas do mesmo barro d'elles, e o tamanco, á falta d'outra, uma arma perigosa. Felizmente para ellas, o caixeiro havia-se enganado.
Pois que tudo 'neste mundo deve acabar, a cholera da sr.ª Plangana não sera a excepção. A cholera é como impetuosa torrente; se encontra obstaculos, estorce-se, ruge, cresce até superal-os; se nada se lhe oppõe, á falta de concentrar-se, espraia-se e perde sua violencia. Está-me saltando aos bicos da penna uma sentenciosa reflexão, a que, se me dessem licença, chamaria proverbio. Falta-lhe a vulgaridade e a côr imponente dos seculos, mas nem por isso é menos digno de ser acolhido. La vae: «mulher que braveja, tigre que abranda.» O caso é deixar passar a borrasca. Corre? Deixal-a correr! Ruge? Deixal-a rugir! Ameaça? Deixal-a ameaçar, que mal nenhum nos ha de vir, com o auxílio da misericordia divina.
Por mais robusto que fôsse o pulmão da sr.ª Escholastica, chegar-lhe-ia um momento em que se lembrasse da fragilidade do barro primitivo. A questão era de tempo. Chegou... a regateira quiz extrahir um grito mais forte do peito arquejante e veio expirar-lhe entre as sêccas guelas um inarticulado ronco, á similhança do que sae do realejo, quando pára a manivella. A bôcca ficou-lhe entreaberta, os labios em suspensão, o pescoço estendido, os olhos esgazeados e fixos e toda a sua pessoa como que á espreita da palavra que naufragára nas escabrosidades da glotte. A oradora limpou o suor que em bicas se destilava da testa, escarrou, tossiu, tomou tabaco, mas nada de concluir o mais explendido periodo de seu discurso. Lançou um olhar lastimoso ao redor de si e viu-se quasi que completamente desamparada. A maioria de suas ouvintes havia-se evaporado. Todas reconheceram que a principal obrigação de uma regateira é não fazer esperar os freguezes. Escholastica viu-as todas occupadas no tráfego quotidiano, taes como o foram na vespera e como o seriam ao outro dia. A corda sensivel de seus interesses gemeu profunda elegia: -- seu logar estava deserto, uma unica fregueza a esperava, porque comprava a credito. Mas a Plangana não era mulher que succumbisse ao primeiro revez; correu á tenda, contando com sua popularidade para attrahir compradores.
Alguns annos depois confessou ella, fallando d'esse dia, ter tido pouca venda, mas grande lucro. A razão calou-a, mas o olho práctico de uma collega deu com ella e denunciou-a á posteridade.
Escholastica, querendo recuperar o perdido, aproveitava a occasião, em que menos a podiam perceber, para furtar ao pêso um pouco mais que de costume, soltando ao mesmo tempo os diques á catadupa de sua loquacidade natural. É em saber aproveitar as occasiões que se conhecem os grandes homens... e as grandes mulheres. Está-me a parecer que aquellas tretas de palavrear o caso, sempre que a mão necessitava de alguma ligeireza, tinha-as ella apropriado a seu mister na eschola de algum saltimbanco, ou prestidigitador, como hoje se diz 'neste século de reformas... nominaes.
-- Olhe, sr.ª Joaquina, dizia a regateira a uma frezgueza, para ca não péga a labia de virem com o seu rei de saias. A mulher é para a sua casa e para a sua roca. Vão la para o senhor meu homem fallar em govêrno de mulheres. Elle é que entende bem d'isso. Vae logo pancadaria que faz crear bicho, por dá ca aquella palha. Olhe, sr.ª Joaquina, inda hontem aquelle maldicto por um triz que me não ia arrebentando, e então porque?... eu sei... nem me lembra ja... la por alguma das suas!...
Se o sr. Ignacio Pires, que tinha a felicidade de possuir este modêlo conjugal, entrasse na questão, poderia, contradictando o remate do discurso de sua consorte, adduzir como provas certas nodoas de côres mais ou menos vivas, que se espalhavam por todo o corpo com grave escandalo dos amigos e offensa dos direitos maritaes. Contestando a coarctada, exhibiria a sr.ª Escholastica o casco ensanguentado d'onde algumas repas haviam sido arrancadas menos cautelosamente; de maneira que o juiz imparcial ver-se-ia perplexo em dar razão ao cão para tiral-a ao gato.
-- Eu sempre quero ver, continuava a sr.ª Plangana, sempre quero ver se 'nesta terra ja não ha quem faça calar o bico a essa canalha de jacobinos!
-- De que? sr.ª Escholastica, perguntava a fregueza, espantada pelo bombastico da phrase.
-- Do jacobinos, sr.ª Joaquina. É assim que lhe chama o nosso prior. Pois então que são elles senão uns grandicissimos jacobinos? E olhe que isto ainda é alguma cousa peior que pedreiro-livre.
-- Que me diz, sr.ª Escholastica?
-- É isto mesmo. Bem mostram que sao hereges!
-- Hereges! Sancto nome de Deus!
-- Agora ja vm.ce vê se tenho razão, em me não fiar em seus palanfrorios...
-- Olhe, sr. a Escholastica, eu ca d'essas cousas não entendo; mas quando ouvia la por casa assim um zumzum a respeito... la d'isso... não sei-que -- dizia eu com os meus botões, pois tanta gente boa ha de se enganar? Nada!...
-- E olhe que dizia muito bem. A gente, quando se quer ir pelo bom caminho, leva-se sempre pelo que lhe dizem as pessoas de bem.
-- É o que tambem me parece. Mas valha-me Nossa Senhora das Dores, que ja me esquecia ahi de umas cousas que tenho de arranjar antes do almôço. Em chegando a casa não hão de faltar os ralhos pela demora. Avie-me depressa, sr.ª Escholastica, que quem está a servir nem tempo tem de encommendar sua alma a Deus.
A regateira pesou e entregou, com o mais affavel de seus sorrisos, o peixe que a sr.ª Joaquina lhe pedíra. O sorriso era provavelmente o contrapêso da onça, que faltava em cada arratel. E 'nisto dava ainda a sr.ª Plangana uma prova de seu acrysolado patriotismo, porque se vendesse para casa de malhado sería onça e meia em cada oito.
As duas amigas despediram-se; e em quanto uma tractava de angariar novo freguez, a outra, á falta de tempo para encommendar a alma a Deus, ia em amorosa palestra enviando o corpo ao diabo, na pessoa de um caixeiro da vizinhança.
Quiz certo capricho do acaso que uma das proclamações revolucionarias fôsse affixada na esquina fronteira ao estrado da nossa heroina. 'Naquelle dia, ao fallar-se em proclamação, subentendia-se logo um grupo em volta. Ou porque fingisse ignoral-o, ou porque realmente em tal não reparasse, é certo que a sr.ª Plangana não invectivára até então esse público desacato á sua pessoa e bem conhecidos sentimentos. Logo porém que a concorrencia lhe foi escasseando sem dar esperanças de augmento, começou a volver os olhos amiudadas vezes para aquelle sítio, e sempre a retiral-os de cada vez mais descontente e resmungando não sei que patrioticos improperios.
A bilis foi indo em escala ascendente, até que chegou o momento da explosão. Levantou-se de um pulo sôbre o estrado, arregaçou as mangas, estendeu o braço direito, fechou o punho, e, mais vermelha que o lenço que lhe amarrava a cabeça, prorompeu 'nesta exclamação:
-- Sempre isto é patifaria de mais!
-- Que tem, sr.ª Escholastica? perguntou-lhe a regateira mais proxima, vejo-a assim a modos que agoniada!
-- Vossê, nem que lhe pozessem uma albarda em cima e a esporeassem a bom esporear, parece-me que não sentia ferver-lhe o sangue la por dentro! Que hei de ter? Diga se isso é cousa que se pergunte? Repare bem e veja, se isto não é de dar a gente com a cabeça por paus e pedras... veja!
A Sr.ª Jesuina olhou na direcção que lhe apontava o punho da peixeira e não lobrigou mais do que meia duzia de homens, aearretadores e vadios que de ordinario são certos na Praça áquellas horas, encostados á primeira esquina desoccupada. D'aqui concluiu a sr.ª Jesuina que a mulher tinha o espirito ruim e sujo no corpo.
-- Lobos me comam, resmungou entre dentes, se aquillo não foi mau olhado que lhe deitaram!...
A Plangana, mais e mais encholerisada, deixou o seu logar e encaminhou-se á tenda da vizinha.
-- Então já viu?
-- Que quer vossê que eu veja?
-- Ora a pergunta não está ma! Eu queria que em toda a parte se soubesse que as regateiras de Coimbra são mulheres que não consentem que se lhe façam patifarias diante dos olhos; sabe sr.ª Jesuina?! Mas ja que todas deixam ir as cousas ao Deus dará, eu, eu Escholastica Plangana quero mostrar a todas que ainda ha uma capaz de defender o rei e a sancta religião. Espere, que vae ver o bom e o bonito!
E dirigiu-se para o grupo dos acarretadores. A sr.ª Jesuina meneou a cabeça fazendo um tregeito meio dó, meio desprêzo, e disse com seus botões:
-- Para que lhe havia de dar a mania!
Escholastica, á custa de muito pisar e acotovelar, chegou a occupar o centro do grupo. A nossa heroina quiz primeiro inteirar-se de quanto se dizia, para se encher de razão antes de fulminar com o gladio de sua eloquencia a canalha revolucionaria.
-- Olha, Manuel, disse a regateira ao ultimo que fallou, seu antigo freguez e ainda primo não sei em que grau ja remoto, por mais que digas não passas de um pedaço d'asno. Se vossês querem ajustar contas com o sr. corregedor, eu é que não estou para isso.
Um do grupo, mais atrevido, voltou-se para a sr.ª Escholastica e replicou-lhe em ar de mofa:
-- Então que quer vossê dizer na sua?
-- Eu não estou para lhe dar satisfações. Ainda em cima era o que faltava. Vossê é mal agradecido. Pois queria livral-os de algum apuro que possam vir a ter, e ainda se me faz fino! Va-se calando, porque, apesar de ser mulher, quando me chega a mostarda ao nariz, não sou boa de dar á carda!
-- A mim é que pouco se me dá de suas basotias!
-- Cala-te, Bernardo, soprou-lhe aos ouvidos o primo da regateira, a Plangana tem razão. O caso póde ser serio: não te mettas 'nisso, deixa brincar quem gosta.
-- Sempre estás um grande maricas! ninguem póde dar cousa alguma por ti!
-- Tu dizes-me isso aqui, mas 'noutra parte não tinhas alma de m'o repetir.
-- Isso é onde tu quizeres: ca o filho de meu pae ainda não se desdisse vez nenhuma!
-- Havemos de ver isso!...
-- Prompto.
-- Calem-se la? seus estafermos; em vez de dar á lingua, era melhor que fizessem alguma cousa.
-- Ora o diabo da velha! Estafermo será ella, retrucou Bernardo.
-- Parece-me que temos conversa! Façam-me azedar!...
Plangana chegou-se á esquina, e sem mais tir-te nem guar-te, pegando por uma ponta arrancou a proclamação, feita em duas. Orgulhosa de seu heroismo alçou-a acima da cabeça, como tropheu de victoria, e exclamou com ar sinistro e carrancudo:
-- Agora venham-na ler aqui, se quizerem!...
-- Tanta ameaça!... não sei para quê...
-- Ó Bernardo, estás mortinho por apanhar, pois olha que...
-- Ah! ah! ah! tinha que ver. Então a bruxa dos quintos não me quer metter medo!
-- Sabes que depois me chamaste estafermo, e agora bruxa?! Espera, que ja te arranjo.
Palavras não eram dietas, ja o pescoço de Bernardo se estreitava entre as mãos ossudas da peixeira. Bernardo debatia-se com todas as fôrças do desespêro; mas não havia desprender-se d'aquelles dedos de ferro, que o apertavam como num tôrno. Debalde, logo que pilhava occasião, despedia um chuveiro de murros e pontapés sôbre a regateira; ésta so parecia havel-os sentido, porque se desforrava com usura.
Manuel e mais dois dos circumstantes tentaram metter-se de permeio entre os dois adversarios; porém mal avançavam um passo, tinham logo de fugir ao alcance dos tamancos da Plangana.
Bernardo lutava com grande desvantagem para que podesse resistir por muito tempo. As pernas vergavam-lhe, e mal podiam suster seu corpo alquebrado: uma nuvem de fogo passou ante seus olhos, e a respiração, ja difficil, cessou-lhe de todo. Extenuado de alentos, rendido de cansaço, na hora suprema de sua perdição, pôde ainda reunir todas as fôrças, e de um pulo se arremessou contra a regateira, que sentindo perder o equilibrio, largou mão da prêsa; era porém tal o impulso que Bernardo dera a seu corpo que, faltando-lhe o apoio, cahiu por terra apos a peixeira.
Facil foi então aos espectadores o separal-os, apesar dos esforços inauditos que ambos faziam para voltarem a combate. Mau grado seu, fôrça maior os obrigou a renunciarem ao intento, protestando cada um da sua parte pela primeira occasião.
Um novo incidente veio, como que de proposito, obstar a que de novo se reunissem. De ha muito que soavam do lado da Calçada, por entre desconcertado alarido, ininterrompidos gritos que attrahiam grande concorrencia de todo o bairro baixo. Na Praça, 'nesse instante, quasi que, por assim dizer, so havia os poucos actores da scena que acabámos de descrever.
A vozeria, que parecia ter acalmado poucos momentos antes, redobrou com toda a intensidade, e a multidão que começou a correr por todos os pontos, que da Calçada desemboccam para a Praça, separando os dois campeões, collocou entre elles uma barreira invencivel -- a de milhares de pessoas que fugiam, e na fuga embaraçavam-se e atropellavam-se umas ás outras.
-- Fujam, que mataram o Abrunhosa! gritavam alguns.
-- Fujam, fujam! repetia a multidão espavorida.
E cada um se clausurava em suas casas, fugindo sem quasi saber de que ou por que. É o que sempre succede 'nestas occasiões, em que o susto não dá cabeça para pensar, mas pernas para correr.
Escholastica é que tomou diverso rumo. Seu genio temerario, e sôbre temerario pertinaz, levava-a a procurar difficuldades, e uma vez achadas, a não desistir d'ellas antes de as ter vencido. Era admiravel vel-a, caminhando em sentido contrário, arrostar com a torrente dos fugitivos; depois apparecer aqui, alem, mais distante, quer defendendo um posto, quer atacando outro; em seguida avançar um, dois, tres passos, ora offerecendo o peito, ora o hombro para, em ambos por seu turno, quebrar o impeto d'aquellas ondas movediças; depois, finalmente, sumir-se entre a multidão, tornar a apparecer, adiantar-se, retrogradar, mas sempre lutando quando avançava, sempre resistindo quando cedia.
Era um esfôrço assombroso, um labutar sôbrehumano aquelle! Quantas tentativas mallogradas, quantas angústias no coração, quanto suor no rosto para firmar um passo! Assim trabalha o naufrago para alcançar um palmo de terra na orla do abysmo.
Mas a regateira não descoroçoou até que viu o triumpho coroar tanto afan. A custo conseguiu ganhar o angulo um pouco saliente de uma esquina, e, cingindo-se com uma das paredes que o formava, pôde mais facilmente esquivar-se ás eternas ondulações da voragem, em que até alli se debatêra com minguada vantagem.
D'esta fórma chegou até á Calçada. Ahi nenhuns obstaculos mais. A rua estava deserta, as lojas fechadas, e se olhos curiosos espreitavam o que alli se passava, occultavam-nos as gelosias.
A regateira avançou mais alguns passos até ao ponto em que a Calçada se vê em toda a sua extensão.
D'ahi, 'num recanto, do lado da Misericordia, lobrigou ella um pequeno ajuntamento de estudantes. Correu la, e eis o que de mais perto lhe mostraram seus olhos.
Estendido sôbre as lageas do passeio, Abrunhosa jazia pallido, immovel e quasi que completamente banhado no sangue que borbulhava de profunda ferida no peito. Junto d'elle, um estudante parecia interrogar nas pulsações do coração os poucos instantes de vida que restavam ao moribundo. Mais atrás, a fechar ésta lugubre scena, destacavam os vultos de onze ou doze estudantes.
A regateira, logo que se approximou, desabafou, consternada, 'numa torrente de improperios. Seus olhos humedeceram-se pela primeira vez, e o soluçar contínuo dentro em pouco embargou-lhe a voz. Não tinha ella outro conhecimento de Abrunhosa que não fôsse o ouvir cada dia contar uma nova proeza sua, o que não obstava a que sentisse por elle uma enthusiastica dedicação. Ver pois derribado o seu heroe, o seu idolo, era um golpe que a envelhecia de dez annos.
O estudante, que estava mais proximo de Abrunhosa, vendo a sinceridade da sua dor, disse-lhe:
-- Tem pena d'esse homem?
-- Se tenho! Se todos lhe quizessem tanto mal como eu, não estava elle assim.
-- Pois bem! leve-o para sua casa, e salve-o se ainda é tempo.
Plangana ajoelhou-se ao pe do ferido e procurou cingir-lhe a cintura com seus braços musculosos. Um gemido, repassado de angústia, entreabriu os labios do moribundo, ao ceder ao movimento que a regateira lhe imprimiu. Dois estudantes avançaram para a ajudar. Escholastica fez-lhes um signal de recusa.
-- Eu posso bem com o pêso, disse ella, levantando-se com elle, seguro pelo meio do corpo.
Dicto isto, a regateira tomou, conforme pôde, o caminho de sua casa.
II
MORTO O SAPO, MORRE A PEÇONHA
Era Abrunhosa, ha trinta e quatro annos, um dos nomes mais populares em Coimbra.
Triste popularidade a que não tem por alicerce alguma cousa de mais solido que o medo; esvae-se em odio e perseguição, mal bate a hora da adversidade!
Ainda hoje, quasi a todos os instantes, nos vêm á lembrança funestos resultados do systema de terror, que predominou durante esse calamitoso periodo de nossas dissensões intestinas. A forca, o degredo, o calabouço e o cacete foram os precursores e o mais firme esteio da usurpação miguelina. De todos estes flagellos era o ultimo o mais expedito, e portanto o mais prodigalisado: para os restantes ainda ao menos havia a hypocrisia da legalidade.
Creava-se uma alçada especial, nomeavam-se juizes malleaveis, davam-se-lhes poderes discricionarios, lavrava-se de antemão a sentença condemnatoria, mas quando mais não fôsse tinha cada um o desafôgo de saber por que padecia.
Houvesse um confessor para exhortar o condemnado, e podia o verdugo cumprir seu dever. Assim pelos crimes de Joaquim Vellez, então emigrado, a alçada de Lisboa sentenciou e fez executar Ignacio Perestrello Marinho. Debalde este impugnou as honras do apocrypho; não sobrava tempo para cuidar 'nessas miudezas.
Não obstante, pois, outras carinhosas demonstrações, era a cacetada o mimo predilecto do paternal govêrno do conde de Basto.
Um dia -- a hora e o logar pouco importava -- sentia qualquer pôrem-lhe os ossos 'num feixe; cousa muito natural: era a justiça do rei que se desaggravava! Uma vez que o cacete que o zurzia fôsse pintado de azul e vermelho, não tinha razão de queixa, havia sido contemplado com todas as honras da etiqueta miguelina. Perguntar qual seu crime sería uma pueril curiosidade; sabiam-no os que lhe davam a correcção, e era o bastante para que tomasse emenda. Os proprios absolutistas moderados disputaram aos constitucionaes o privilegio de lhes malharem nas costas como em pelle de tambor. Era um meio, como outro qualquer, de accender brios meio arrefecidos!
Em façanhas d'esta ordem adquiríra Abrunhosa tão grande celebridade que chegou a obter suprema preponderancia entre seus confrades. Uma das primeiras gentilezas e de que não perdia occasião de se jactar, era que, sendo estudante, denunciára um de seus lentes, quando, depois da reacção de Viila Franca, se abriram devassas contra os que se haviam mostrado affeiçoados ao ephemero sonho liberal de 1820.
Membro do triumvirato dos caceteiros em chefe, contava por collegas Jose Maria d'Aça, meirinho da Universidade, e um tal Custodio que por sôbrenome não perca; porém, como, alem de sua nomeada, era o mais graduado, pois, se bem me lembra, formara-se em canones, tinha a seu cargo o commando de uma companhia de estudantes miguelistas, filiados na mesma corporação.
Pouco mais ou menos ás horas em que a sr.ª Plangana fazia sua profissão de fe diante da fregueza, que namoriscava o caixeiro do vizinho, como atrás fica dicto, entrava Abrunhosa 'numa loja da Calçada, cujo dono passava pelo mais frenetico e estupido partidario do sr. D. Miguel absoluto. Abrunhosa, como de costume, sentou-se no banco dos frequentadores da casa, proximo ao balcão, sôbre que apoiou o cotovello do braço a que encostára a cabeça.
-- Bons dias, sr. Manuel Antunes, disse, sentando-se, ao dono da loja. Este debruçou-se no mostrador e depois de saudar o visitante, batendo-lhe familiarmente no hombro com a mão direita, perguntou-lhe, assumindo ares de importancia:
-- Então grandes novidades, hein?
-- Penso que nada sera, querendo Deus.
-- Isso é tambem ca a minha opinião. Mas o sr. bem sabe que, como la diz o dictado «fia-te na Virgem e não corras...
-- Saberás os pontapes que apanhas»: não é isto?
-- Bem estou eu com quem me entende!
-- Deixe-os, proseguiu Abrunhosa, dando um murro no mostrador, como em refôrço do que dizia, deixe-os!... ao saldarem-se as contas, ver-se-á quem paga.
-- Bem dicto, sr. Abrunhosa.
Abrunhosa sorriu de satisfeito, vendo a sinceridade dos applausos do negociante á sua eloquencia figurada. O amor proprio escorado na admiração do lojista elevou-o a tal altura que o fumo da palha, queimada em honra sua, lhe cheirou a incenso. Antunes, vendo sorrir o seu amigo, não lhe quiz ficar atrás, para que se não pensasse que deixava escapar pela malha o sal do chiste, dicto em sua presença, e desfranzindo a encarquilhada bôcca soltou descomposta gargalhada.
O caixeiro do sr. Antunes, que na eschola da dependencia aprendêra a pensar com a cabeça do patrão, levado pelo espirito imitativo não resistiu ao acommettimento de atoleimado frouxo de riso, e tanto se apossou do papel, que o lojista convenceu-se de que o dueto, á sua custa, ia tomando proporções de solo. Com um tregeito de enfado de que usava sempre para com seus subalternos, o lojista voltou-se para o caixeiro:
-- Está bom, acabou-se a festa. Parece que so tem prestimo para rir! Va la para dentro arrumar a fazenda que chegou, e se for ca preciso, eu o chamarei.
Antonio sahiu, resmoneando não sei quantos milheiros de pragas em desfôrço de sua curiosidade mallograda: Antunes, retomando a anterior posição, ageitou aos labios o habitual sorriso.
-- Não se póde mostrar os dentes a esta canalha, safa!
-- Deixe rir o rapaz, redarguiu-lhe Abrunhosa com certo tom, meio desdem, meio compaixão.
-- E depois quem o havia de aturar? Com esta gente, é pão 'numa mão e pau na outra.
'Neste momento assomou entre os umbraes da porta um estudante, competentemente decorado com o laço vermelho, e olhando para todos os lados, como se procurasse alguem, deu com os olhos em Abrunhosa.
-- Ora bem apparecido, exclamou o recem-chegado, accedendo ao convite que com um gesto lhe fizera o bacharel para se assentar ao pe d'elle. Ha mais de uma hora que o ando a procurar por toda a parte.
-- Pois eu aqui estava, na fórma do costume.
-- Que quer? so agora me lembrou.
-- Então que temos de novo?
-- Eu lh'o conto. Desde hontem á noite estão aqui as milicias da Figueira, pagas por alguns negociantes d'esta terra, para ajudarem a revolução que hoje mesmo ha de rebentar.
-- Ai! que patifes aquelles, atalhou o sr. Antunes, benzendo-se com toda a devoção de um amigo do throno e do altar. Corja de pedreiros livres! Valha-nos Nossa Senhora da Piedade! Se fôsse para alguma obra meritoria, olhem que fechavam as bolsas; mas, como é para levar a cabo seus damnados intentos, todos estão promptos!...
-- O que me admira, disse por fim Abrunhosa, é o sr. Leite engulir ainda d'essas patacoadas...
-- Chame-lhe o que quizer; sei positivamente que é verdade.
-- Viu-os porventura?
-- Eu, não.
-- -E o sr.? continuou elle, voltando-se para o lojista.
-- Eu, tambem não.
-- Pois nem eu. Creiam-me os senhores, se elles estivessem ca, 'nalguma parte haviam de apparecer. Em quanto a mim, isso não é mais que uma balela, espalhada de proposito para ver se nos amedrontam.
-- Mas, a ser assim, replicou o estudante, para que se havia de fechar a Universidade, e mandarem-nos recolher a nossas casas dentro de vinte e quatro horas?
-- Que está a dizer?
-- Acabo agora mesmo de ler o edital do vice-reitor.
Oh! ahi vem quem me não deixará ficar mentiroso, continuou Leite, indicando um magote de estudantes que entravam na loja, e que, conforme vinham chegando, tomavam logar ou nos bancos, ou no mostrador; outros finalmente encostando-se ás paredes e umbreiras da porta.
-- Não faltava mais nada! atalhou o sr. Antunes, fulo de indignação. Leve o diabo tanta mania de fazer leis. Valha-me Nosso Pae das Misericordias, parece-me até que blasphemei! Pois isto não é de a gente ir pelos ares? La não ser eu affeiçoado a essa canalha de pedreiros-livres, isso todo o mundo o sabe, porque não tenho papas na lingua; mas tambem ha certas cousas que não posso levar á paciencia. Mandar a cada um para suas casas, isso é muito bom de se dizer, mas deviam lembrar-se de que a gente precisa de comer todos os dias. Quem me ha de agora comprar a minha fazenda? Não está ma a asneira. Eu ca, se fôsse da governança, fazia isto: «ai! vossês não querem estar quietos? levem para baixo até mais não.» E, se ainda depois de um bom ensino, ateimassem a não quererem tomar juizo, mandava-os balouçar entre o ceu e a terra. A forca não se inventou para outra cousa. Mas nada, pague o innocente pelo peccador: isto é justiça de mouros... eu sei ca!...
Abrunhosa tinha ficado pensativo durante o longo discorrer do lojista. Os estudantes esperavam anciosos o fim d'aquella meditação, como se por seus labios estivesse para fallar o oraculo de Delphos.
Um d'elles que se conservára de fóra da porta, disse 'neste momento, voltando-se para o interior da loja:
-- Olá, querem ver o Lucena?
-- O Lucena vem ahi? perguntou Abrunhosa, pondo-se a pe de um pulo, como se experimentasse a acção de uma pilha electrica.
-- Ao fundo da rua, e caminha para este sítio.
-- Emfim, cahiste-me nas unhas! Amigos, proseguiu Abrunhosa, dirigindo-se a seus apaniguados, o ceu protege-nos. Ha tres mezes em procura d'este homem sem nunca lhe podêr mostrar a minha boa vontade, e hoje é elle o proprio que vem entregar-se em nossas mãos! Aproveitemos a occasião: quem sabe se teremos outra? Ouçam. Cinco ou seis cortem pelo arco de S. Thiago, e, logo que Lucena passar em frente da rua do Cego, sigam-no a fechar-lhe a rectaguarda. Aviem-se, que não ha tempo a perder.
Um pequeno grupo escolhido por Leite, que se collocou á frente d'elle, destacou-se d'entre os circumstantes e avançou pelo local indicado.
-- Agora nós á nossa tarefa, continuou Abrunhosa, fallando aos restantes. Vêm todos preparados?
Os estudantes, por unica resposta, afastaram as capas, e cada qual deixou ver uma arma mais ou menos portatil.
-- Bom! concluiu o canonista, podêmos sahir-lhe ao encontro.
A loja despejou-se dentro de poucos minutos. Antunes, mal se viu so, chamou pelo caixeiro e pela cosinheira para fecharem as portas. Era tal a azafama em se aferrolhar, que o lojista, esquecendo as prerogativas de patrão, andava numa roda viva, ajudando a criada no acarretar das trancas que o caixeiro ia introduzindo nos encaixes das umbreiras. A pressa do sr. Antunes causou um terror panico entre seus timoratos collegas, que tractaram de imital-o, o mais breve e estrondosamente que poderam.
O grupo de Abrunhosa, assim que sahiu para a rua, dividiu-se em duas alas, que occuparam os passeios lateraes da Calçada. O centro da rua estava desimpedido; mas ai! de quem ousasse transpol-o, mau grado de Abrunhosa. A um gesto seu havia alli perto de quarenta homens promptos a disputal-o.
Olhemos agora os movimentos do grupo contrário.
Era tambem este composto de estudantes; mas o laço constitucional, que todos elles traziam, abríra um abysmo insuperavel entre aquellas duas fracções da academia. Bem contados os recem-chegados não sommariam quinze. Á sua frente estava Lucena, que era um dos mais exaltados liberaes d'aquella epocha. Avançavam elles em direcção á Sophia, bem longe de suspeitarem sequer a tempestade que se conjurava contra elles. Mas o repetido estrondo das portas que se fechavam, e a posição visivelmente hostil que tomavam os sequazes de Abrunhosa, manifestou-lhes o plano que se tramava contra elles. O nosso grupo estacou de subito, indeciso entre recuar ou expor-se a uma derrota inevitavel.
Os de Abrunhosa, percebendo a irresolução dos contrarios, esperavam que a divisão de Leite lhes cortasse a retirada para cahirem sôbre os constitucionaes, sem probabilidade de salvação.
No emtanto, no grupo de Lucena agitava-se ainda a questão de vida e de morte. É de advertir que entre os dois chefes havia um rancor pessoal superior a odios partidarios. Sabia-se que, desde algum tempo, Abrunhosa esperára seu adversario nos logares por elle frequentados; assim como os amigos do segundo se recordavam de ouvir-lhe dizer, por várias vezes, que, no dia em que ambos se encontrassem frente a frente, um d'elles não ficaria vivo. A razão d'esta inimizade é que a ninguem fôra confiada; de parte a parte, os intimos aventavam suspeitas, em que de ordinario se involvia o nome de uma mulher. Não queiramos nós sobrecarregar a consciencia com juizos temerarios, e esperemos que o tempo nos dê a chave do enigma.
Lucena, ao conhecer as intenções hostis do bacharel caceteiro, disse para seus amigos:
-- Estamos perdidos! Se ao menos o sacrificio não fôsse inutil alem de inglorio, estou certo que nenhum de vós recusaria offerecer todo o sangue de suas veias.
-- Todo, responderam os estudantes a uma voz.
-- Assim, 'nestas circumstancias, um so meio nos resta: é retirar sem perda de tempo.
-- E tu? perguntou um do grupo.
-- Fico.
-- Então ficamos todos.
-- Ide-vos. Um momento de delonga póde ser tarde de mais.
-- Ja dissemos que ficavamos.
-- É uma loucura...
-- De que nos dás o exemplo, atalhou um outro.
-- Estamos em casos muito differentes. Entre mim e Abrunhosa ha uma infamia impune e uma affronta não vingada. Como homem obriga-me a honra a não ceder diante de um inimigo; como soldados e defensores da mesma causa, a razão e a lei da guerra mandam poupar vossa coragem para quando ella possa aproveitar á causa por que militaes. Assim, que farias tu, Villanova?
-- Ficava, e não pediria a meus amigos o sacrificio de sua honra.
-- Julgaste-me injustamente. E tu, Botelho?
-- Digo que morrer hoje ou ámanhan é a mesma cousa, porisso não retiro.
-- Não valem hesitações, accrescentou um outro estudante. Eeparem, estamos cercados. E o estudante apontava para os companheiros do Leite, que vinham a cortar-lhe a retirada.
-- Ap menos a consciencia não tem de que me arguir, quiz salvar-vos. Agora não esperemos que nos venham procurar, vamos nós a elles.
E d'esta vez mais compacto avançou o grupo de Lucena. Logo que chegou á extremidade das fileiras em que se tinha dividido o de Abrunhosa, parou. Lucena adiantou-se um pouco.
-- Queremos passar, disse elle a seus contrarios. Tenham a bondade de se retirarem para um lado, pois não estamos costumados a sermos recebidos entre alas.
Todos se calaram e permaneceram no logar que occupavam. No entanto Abrunhosa repetia aos seus:
-- Deixem-me fallar alguns instantes com Lucena; esperem pelo primeiro signal para cahirem sôbre elles.
Depois caminhou vagarosamente até se collocar frente a frente com o chefe do bando contrário.
-- Folgo de o encontrar, disse elle com um sorriso ironico, ha tanto tempo que o procurava!... E não queria que o recebesse com todas as honras devidas a uma pessoa que muito respeito? Não me julgue tão pouco delicado!...
-- Sr. Abrunhosa!
-- E depois bem sabe que entre amigos...
-- Nem mais uma palavra, sr. Abrunhosa. Seus gracejos 'nesta hora tornam-m'o ainda mais desprezivel. Na verdade estranharia seu procedimento, se ja o não tivesse visto descer ás maiores baixezas. Que mais se póde esperar de um calumniador, de um denunciante, de um caceteiro?
-- É a guerra que quer? apostrophou Abrunhosa, tremendo de raiva.
-- Guerra, nunca a esperei do senhor, porque, para haver guerra entre nós, era necessario que o senhor soubesse ao menos que existia a palavra lealdade. Agora emboscadas, armadilhas e traições, conto com tudo.
-- Vou mostrar-lhe que está enganado. É um combate franco e leal que venho propor.
-- Talvez se arrependa. Acho que não é essa a sua especialidade!
-- Chegou a sua vez de zombar? Note o que ainda ha pouco disse.
-- Não posso satisfazer-lhe o gôsto, porque entre nós não ha parallelo possivel.
-- O senhor acaba de me dirigir nova affronta. Quero mostrar-lhe que eu so... so, entende? sou bastante para me desaggravar.
E dizendo isto arrancava do peito de Lucena o laço azul e branco.
-- Eis a provocação, disse elle, calcando a divisa aos pes.
-- E a resposta, redarguiu seu contendor, levantando o braço.
O estalido de uma bofetada soou entre os gritos e imprecações de um e outro bando.
As faces de Abrunhosa purpurearam-se, como se todo o sangue lhe tivesse affluido á cabeça, e um tremor nervoso lhe percorreu o corpo. Como o tigre que se prepara para acommetter a prêza, recuou; e 'neste ensejo desembainhou o estoque da bengala. Assim armado cresceu ameaçador contra o adversario. Os estudantes de um e de outro partido prepararam-se para tornar geral a contenda. Um dos constitucionaes, vendo o perigo imminente de Lucena, apontou ao peito de Abrunhosa o ferro de um florete. Este, cego pela raiva, avançou com tal impeto que dois terços da arma se lhe esconderam no peito. A dor arrancou-lhe um agudissimo grito, e veio cahir como massa inerte junto de Lucena. Tudo isto passou rapido como um sonho; e um sonho se julgaria, se Abrunhosa não jazesse alli, involto no proprio sangue. Tão velozmente se haviam succedido as peripecias d'esta luctuosa scena, que os proprios actores d'ella presenciavam o desfecho sem terem desempenhado seus papeis.
Uma voz de terror se ergueu entre os amigos do ferido. O desânimo tornou-se geral entre elles; e cada um so pensou de comprar a sua segurança a trôco de uma prompta fuga.
Os constitucionaes ficaram senhores do campo, e sos 'nelle dentro de pouco tempo.
Botelho, vendo que Abrunhosa ainda dava signaes de vida, preparava-se para lh'a tirar de todo. Apanhou o estoque que o ferido deixára cahir das mãos e apontou-lh'o certeiro ao coração. O golpe não partiu, porque um braço de ferro segurou a mão, prestes a descarregal-o.
-- Botelho, dizia Lucena ao estudante, queres manchar o primeiro instante da liberdade com um assassinato? Inimigo vencido não é inimigo, é um desgraçado que pede soccorro.
-- Teras de arrepender-te de tanta clemencia.
-- De uma acção boa nunca póde provir arrependimento. Ainda que mais não seja, fica tranquilla a consciencia.
Botelho deixou cahir o ferro. Lucena pediu a Villanova que, como medico, visse o que se tinha a esperar do ferido.
O que se seguiu ja o leitor o sabe. Era Villanova o estudante que a regateira víra cuidando de Abrunhosa, e Lucena o que lh'o recommendára.
III
OLHO DE FRADE, OLHO DE LYNCE
Dava uma hora da tarde.
Estamos 'numa das salas da casa mais opulenta de Coimbra 'naquella epocha, propriedade de um morgado beirão que, seduzido pela doçura do clima, transportára os penates do solar de seus avoengos para a antiga residencia de um dos parentes de sua defuncta mulher. Este, que era sabedor da predilecção de Francisco Alvarenga de Menezes Castro Castel-Branco, deixára-lh'a em testamento com o encargo annual de cem missas por sua alma.
Ja se ve que o nosso morgado era fidalgo dos quatro costados, a começar pelo nome. Não sei se tão illustre prosapia exige total abstinencia de quanto se diga instrucção; mas é certo que Francisco Alvarenga nada mais sabía, alem da sua genealogia e da de seus cavallos. Do seu então predilecto, Pachá, oriundo defina raça arabe, dizia de cór os nomes dos avós até ao sexto, que succumbíra aos apertos da esquinencia, occasionada por um passeio nocturno a Odivellas. É de notar que seu dono, avô do morgado Alvarenga e valido apochrypho de D. João V, era o confidente e companheiro de seus reaes desvarios. Isto não o conta a historia, mas contava-o o morgado, que era quasi o mesmo. Tão estimado foi na côrte o cavallo de Duarte Alvarenga, que no dizer de seu neto, -- neto do dono e não do cavallo -- o proprio rei sentiu grande consternação com a morte de Trinca-leguas; e para confortar seu dono em tamanha perda, agraciou-o com o beneficio de não sei que choruda commenda.
Não façamos porém como o morgado, que, em fallando de cavallos, vinha, sempre com tal arrazoado que era um nunca ver-lhe fim.
Alvarenga rastejava pelos cincoenta annos, ainda que á primeira vista se lhe fizessem dez de menos. Alto e de robusta construcção, parecia pouco disposto a acariciar as esperanças dos successores do vínculo. Typo do fidalgo provinciano, que se torna sociavel, obsequiador e cortez era elle; mas o polido de suas maneiras, por muito estudado, não attrahia, afastava, não inspirava sympathias, acanhava e constrangia. Notava-se a cada instante o compasso da etiqueta a marcar suas palavras, seus minimos gestos, quanto bastava para se lhes conhecer a falta de naturalidade. Ora a naturalidade tem o segredo de animar e abrilhantar tudo em que entra, é o grande attractivo das pessoas sympathicas; mas não ha querer educal-a, porque degenera; não ha imital-a, porque nos atraiçoa; não ha contrafazel-a, porque nos contrafaz; e, o que mais é, perde-se ao corrigir-lhe as expansões ás vezes menos dulçorosas.
Rosto oval, olhar fixo e penetrante, nariz aquilino, beiços delgados a franzirem-se aos cantos da bôcca eram indicios de um genio forte, teimoso e vingativo; porém o que mais revelava o intoleravel orgulho de sua raça eram as duas rugas perpendiculares da fronte, superiores ao ponto de juncção das sobrancelhas que, á menor contrariedade, avultavam consideravelmente. Figurino escrupuloso das modas de seu tempo, escanhoava-se com todo o esmero, tendo por incivil o homem que não se expunha quotidianamente ao sanguinolento sacrificio da barbeação.
Alvarenga passeava ao comprido da sala em companhia de um franciscano, particular amigo da casa. Alem do frade e do morgado encerrava o mesmo aposento duas outras pessoas não menos dignas de attenção. A mais joven d'ellas era uma gentil menina, que apenas contava dezoito primaveras. Não sendo propriamente uma belleza, tinha comtudo um não sei que de insinuante em seu rosto, que enleiava a ponto de captivar o mais esquivo a feminis encantos.
Sentia-se um bem-estar indizivel ao pe d'ella. E nenhuma de suas feições se podia dizer regular, sería até uma blasphemia esthetica; porém, olhadas em seu inimitavel conjuncto, á luz d'aquelles olhos negros como a noite, fulgentes como as estrellas, faziam esquecer as irregularidades de cada uma para so se admirar o gracioso do todo. Se alguma vez a natureza quiz zombar da arte, dando-lhe um modêlo impossivel de reproduzir, fel-o decerto quando creou a filha unica de Francisco Alvarenga. Na tela poder-se-iam copiar, uma por uma, todas as linhas de seu rosto, e o retrato ficava incompleto. Aquella vida, aquella expressão, aqueile transparecer contínuo do íntimo cogitar d'alma, aquelles mil nadas impalpaveis que se evaporariam como o perfume da flor, aquillo tudo que era ella, quem lh'o conseguiria imitar? Imagine cada um em sua mente quanto de irresistivel póde ter uma mulher, e terá causado a inveja e o desespero do pincel, retratando Maria da Assumpção.
Resta-nos avultar outra figura no quadro que esboçamos. D. Effigenia Urbina era em tudo o inverso de seu irmão mais velho, Francisco Alvarenga. Sêcca e myrrhada como uma mumia, ossuda como um esqueleto, parecia que a morte tinha de antemão estampado em suas faces o cunho da aridez do tumulo. Se alguma cousa 'nella denunciava ainda uma apparencia de vida eram unicamente um mover-se automatico de quando em quando, e a respiração sempre alta e difficil como a do que é víctima de um pesadelo. Seu rosto encarquilhado perfilhára a côr entre branca-suja e amarella dos pergaminhos de sua fidalguia. Os olhos, a muito custo, poderiam fixar por instantes qualquer objecto, pois, á fôrça de so os despegar do chão para os erguer ao ceu, tinham suas pupillas contraindo o hábito de estarem constantemente meio occultas, ora 'numa, ora 'noutra de ambas as palpebras. Dizia-se que ésta mulher fôra bella em sua mocidade, mas nem um vestigio sequer restava de sua deslembrada belleza. As vigilias, as flagellaçoes e os jejuns tinham passado como a esponja sôbre as rosadas côres de sua juventude. É que o fanatismo, que por ahi a torto e a direito se quer confundir com a religião, não é senão o suicidio do corpo apos o suicidio da alma.
Religião o fanatismo! -- que pernicioso absurdo! Adorar a Deus, aniquilando sua obra, so a ma fe conluiada com a estupidez poderiam engendrar similhante blasphemia. O fanatismo é o campo safaro e maninho onde so de longe em longe, brotam urzes e abrolhos: a religião é o jardim onde rescendem flores, cujo perfume é a emanação da divindade. Houve um homem, Simeão Estylita, que, inutil para si e para os outros, subiu sobre uma columna e ahi viveu, não sei quantos annos -- variam as lendas -- comendo 'num so dia dos sete da semana, e para mais acceito se tornar ao ceu, repousando sôbre uma perna, quando as duas começavam a fraquejar: isto é fanatismo. Houve um outro, Vicente de Paulo, que, percorrendo durante a noite as ruas infestadas de malfeitores, recolhia e gazalhava nas dobras do seu manto as creanças abandonadas, soccorria os pobres, consolava os infermos, evangelisando finalmente a caridade com a palavra e com o exemplo: isto é religião. O fanatismo é Torquemada e Loyola; quer dizer, a intolerancia e barbaridade por um lado, a astucia e a ambição por outro. A religião é S. Paulo, o arrependimento até á renúncia do fausto e da grandeza; é o arcebispo D. Bartholomeu o amor do proximo levado até á abnegação. A religião tem algumas vezes dado martyres, o fanatismo tem quasi sempre produzido algozes.
D. Effigenia era assim. Nas aras da divindade foi depor um coração ainda todo eivado das impurezas de uma paixão mundana. Amou o creador por não poder amar a creatura, como se não fizesse mais do que mudar de amante. O ascetismo não satisfaz ás velleidades de uma alma terrenal. Ás vezes, com os olhos fitos no crucifixo, seu pensamento errava no ambiente das paixões, lembravam-lhe delícias de um amor pelo qual tudo sacrificára, e seu corpo estremecia de voluptuosidade, como joven romana ao sentir desapertar-lhe o cinto a mão do recente espôso. Contricta ia beijar os pes da imagem, mas ésta imagem sorria, estendia-lhe os braços, collava aos seus os labios ardentes de desejos... e era elle, seu amante que a afagava, que a attrahia a si, que lhe dizia em segredo, com a voz entrecortada pelo anhelito da volupia: «vem, minha amada.»
D. Effigenia quiz por uma vez fugir aos desvarios de sua imaginação. Corrigiu a ardencia do corpo com o pungir dos cilicios: pelas vigilias e mortificações extenuou o espirito para lhe refrear os impetos. Foi grande a luta, e o triumpho so o obteve á custa de si mesma. Foi-lhe necessário abafar no gêlo da indifferença a voz do coração, que, como bussola nas procellas da vida, se muitas vezes erra influenciado por más inclinações, é ao mesmo tempo o guia unico que nos pode levar a salvamento.
D. Effigenia rezava em suas camaldulas, reclinada no canape; Assumpção, sentada ao bastidor, dava a última demão a um pequeno quadro bordado a seda; Alvarenga e o frade, como ja fica dicto, passeavam em toda a extensão da sala. O bastidor de Assumpção estava collocado junto de um d'esses primitivos pianos de prolongada cauda, entre as duas portas lateraes de communicação interna, a que correspondiam do lado contrário duas janellas rasgadas, entre as quaes estava um elegantissimo trumó, segundo a moda d'aquelle tempo. As duas partes d'este movel eram de subido preço. A mesa, sôbre que assentava uma pedra de finissimo marmore branco, firmava-se em delgados pes torneados em espiral. O espelho de puro vidro de Bohemia, brilhava em dourada moldura, que rematava por um pequeno grupo de pastores, de calções, casaca e cabelleiras á D. Jose, enfadonha reminiscencia do mau gôsto arcadico.
O frade narrara os acontecimentos a que acabámos de assistir. Todas as vezes porém que pronunciava o nome de Lucena, dando-lhe uma entonação particular, seja acaso, seja firme proposito, seus olhos fitavam com tal ou qual persistencia a filha do morgado, que, sentindo-se assim espionada em suas mais íntimas cogitações, toda vergonhosa e confusa, fingia so ter presa ao bordado sua attenção.
Logo que o frade terminou a narrativa, Alvarenga, que o escutára silencioso, parou por alguns instantes, e cruzando os braços exclamou:
-- Veja, fr. Marcos, que descredito para mim, se tivesse continuado a acolher em minha casa o chefe d'essa corja que so pensa em fazer disturbios!
-- Tem sobeja razão, sr. morgado. Lucena por si não é mau rapaz... mas...
-- Qual mas, nem meio mas. Ora, fr. Marcos, tem ás vezes cousas! Acha talvez muito louvavel o procedimento d'elle para comigo, que lhe franqueei as portas de minha casa, levado por seus modos de cavalheiro? Canalha! gabar-se de que minha filha o attendia. Faltava-me ver mais ésta! Para um homem de nada ja é levar bem alto suas pretenções.
-- Mas o sr. morgado, que sabe afilha que tem, devia estar tranquillo a esse respeito. Não é assim, menina Assumpção?
-- De certo, retorquiu a interrogada córando, porque o coração la estava baixinho a protestar contra a affirmativa.
-- Sabe de que me arrependo? é de não ter dado a esse biltre uma lição que lhe não esquecesse tão depressa. Para villão, villão e meio. Escusava elle de ir tomar despiques com Abrunhosa.
-- Mas isso era inevitavel, logo que o destino os collocasse frente a frente.
-- Valha-me Deus, fr. Marcos, que ás vezes parece que não quer entender as cousas. Então aquillo foi o destino? Foi muito de caso pensado e rixa velha. La por que artes elle soube que Abrunhosa me tinha avisado do que elle andava espalhando, isso é que eu não sei. É certo que no dia em que eu o despedi de minha casa, mal lhe acabava de dizer: -- «espero que o senhor dispensará meus criados do incómmodo de o pôrem no meio da rua»; o homem voltou-se como um tigre assanhado contra o pobre Abrunhosa e sem mais tir-te nem guar-te desanda-lhe com não sei que insulto, que até me pejo de o repetir. Do limiar da porta lembra-me ouvir-lhe: «nós nos encontraremos.» Ora ja ve o meu amigo por que beira chove em casa de Abrunhosa. O caso foi muito pensado, e a occasião muito e muito escolhida. O outro é que foi um tolo de grande marca em não lhe dar a valer, logo que pôde. Com gente d'esta ordem não ha consideração de qualidade alguma.
'Neste momento entrou na sala um criado. Ao passar junto do bastidor, em que bordava a filha do morgado, deixou cahir um pequeno papel em fórma de bilhete; mas não tão cautelosamente que o frade não visse ainda a mão da donzella que o recolhia precipitada.
-- Está la fóra o sr. Manuel Antunes, que procura v. s.ª
-- Manda-o entrar para aqui.
O criado sahiu. Marcos e Alvarenga continuaram seu passeio. Como 'neste instante tinham as costas voltadas para Assumpção, julgou ésta ser favoravel o ensejo de se inteirar do conteudo do bilhete. Por desnecessaria precaução olhou para o lado em que estava sua tia. D. Effigenia, rezava e não via mais do que suas contas. O frade, que não despegava os olhos do espelho fronteiro, observava ésta muda scena, sorrindo no interior. Assumpção, que nem sequer suspeitava de que lado estava o verdadeiro perigo, desdobrou o papel e passou-o rapidamente pelos olhos. Quando ia para o esconder no seio, frade voltou-se repentinamente. Enleiada procurou o bolso do vestido para 'nelle esconder o traiçoeiro papel, mas a verdade é que na confusão em que estava tomou duas dobras da saia pelo bolso. O bilhete ficou occulto entre ellas, mas, logo que ao menor movimento se afastassem, cahiria no chão. O frade aproximou-se do bastidor, e em futil conversação procurava opportunidade de surprehender o bilhete.
'Nestas circumstancias fez a sua entrada na sala o sr. Manuel Antunes. Não parecia o mesmo que vimos, na sua loja, practicando com Abrunhosa. Vinha todo empertigado em seu fato domingueiro, ainda que o figurino se lhe tivesse retardado cousa de quarenta annos. Casaca de côr dubia sobrepondo a um colete, que descia até á parte inferior da barriga, uns calções de briche a estalar nas tibiaes encospas do seu proprietario, bota de canhão que rematava no joelho por uma pequena borla de retroz preto, eis o vestuario d'aquella grotesca personalidade.
-- Com licença, disse Antunes, apparecendo no limiar da porta da entrada. Sr. morgado, minhas sr.as Oh! tambem por ca v. r.ma!
-- Então de que se admira?
-- Eu? ora essa! disse isso como quem diria: veja-o Deus, ja que mais ninguem o ve.
-- Sente-se, sr. Antunes.
-- Muito obrigado; ja que me dá licença...
-- Não faça cerimonia. Agora poderemos saber a que devemos o gôsto da sua visita?
-- É um negocio que diz respeito a v. s.ª o que aqui me traz; mas, se o sr. morgado permitte, é em particular que eu desejava...
-- Nós retirâmo-nos, sr. Antunes, disse Assumpção levantando-se e dirigindo-se a sua tia.
Com este movimento, o bilhete escorregou por entre as pregas do vestido e veio cahir aos pes do bastidor, sem que Assumpção désse signal do acontecido. Marcos, como se quizesse examinar de mais perto o bordado , curvou-se e levantou-o do chão.
-- Vamos, minha tia, disse a menina, ajudando a velha a levantar-se.
-- Dá-me o teu braço, filha.
Assumpção amparou D. Effigenia, e ambas se retiraram depois de cortejar Antunes. O frade ia tambem para sahir.
-- Fique, fr. Marcos, disse o morgado. Para si não ha segredos. Póde fallar, sr. Antunes.
-- Sr. morgado, eu não quero que v. s.ª pense que é a desconfiança que me obriga a dar este passo...
-- Longe de mim tal pensamento. Póde ficar descansado.
-- É que como ha viver e morrer, e com os tempos embarulhados como parece que vão, eu desejava assim uma especie de segurança a respeito d'aquelle credito...
-- Basta-lhe um titulo assignado por mim?
-- Pois não! isso é mais que sufficiente.
-- Não tenho dúvida. Ámanhan, se por ca apparecer, está prompto.
-- Mas é que v. s.ª... valha-me Deus... creio que me não expressei bem.
-- Então que é o que mais quer vm.ce?
-- Não sou eu, sr. morgado, são os tempos. Em todos os nossos negocios nunca tive de que me queixar, louvado Deus.
-- Eu é que o não percebo.
-- V. s.ª deve saber que a falta de segurança em que estamos exige que cada um olhe pelas suas cousas. De um momento para o outro podem chegar as tropas do Porto, e cada um tem de mudar, sabe Deus para onde! Ora ja vê v. s.ª que o que peço é com toda a brevidade.
-- Entendi agora; mas felizmente creio que não estamos ainda 'nesses apuros.
-- Não estamos! Para fallar a v. s.ª com toda a franqueza, eu quando entrei 'nesta casa, ja assim a modos que o coração me dizia que não encontrava o sr. morgado. Mas que lhe havia de fazer, se so agora é que me desimpediram a porta?
-- Então onde queria vm.ce que eu estivesse?
-- Onde a éstas horas estão todas as pessoas de representação da cidade.
-- Está vm.ce apostado a fallar-me por enigmas!
-- É que v. s.ª decerto não sabe...
-- Nada ainda me têm dicto!
-- Pois ha cousa de uma hora, pouco mais ou menos, estava Abrunhosa na Calçada, por signal que era na minha loja...
-- Ja sei isso. Mas que ha de commum entre mim e Abrunhosa?
-- Nada, por certo; mas entre v. s.ª e todos os bons realistas ha alguma cousa. É que a desordem que houve ésta manhan significa que vamos ter aqui, dentro em pouco, um pronunciamento no sentido da revolta do Porto.
-- Isso póde la ser! E a tropa que ahi está não ha de oppor-se?
-- Bem digo eu que v. s.ª nada sabe! A tropa importa-se la com cousa alguma? Parece que estão todos comprados, e o proprio commandante de caçadores 11, que teve medo de que o não respeitassem, julgou mais acertado fugir, para não ser obrigado a dar vivas á revolução, em companhia de seus subalternos.
-- Assim o movimento vae por diante?
-- Pois quem ha de estorval-o? A cidade dentro em pouco fica deserta; especialmente aquelles que têm prestado alguns serviços ao govêrno de S. M. tractam, fugindo a toda a pressa, de se precaverem contra o que der e vier. Ésta mesma tarde ja se esperam grandes barulhos por ahi.
-- Ouviu, fr. Marcos, o que está dizendo o sr. Antunes? perguntou o morgado, voltando-se para o frade, que, desde que as damas se retiraram, se encostára ao parapeito da janella para ler, sem ser visto, o bilhete de Assumpção.
-- Perfeitamente, respondeu elle, encaminhando-se para junto dos dois interlocutores.
-- E 'nestas circumstancias que me aconselha que faça?
-- O que dieta a prudencia; retirar-se sem perda de tempo.
-- Mas sem estar preparado!... e minha filha? uma menina não póde assim arranjar-se de um momento para o outro.
-- Não se tracta de uma viagem, tracta-se de fugir, e para fugir sempre se está preparado.
-- Mas eu não posso expor Assumpção...
-- A menina tem sua tia, e uma e outra tem-me aqui a mim.
-- Está bom! e se a casa for atacada, atalhou Antunes, pensa v. r. ma que esses herejes hão de respeitar um ministro do altar?
-- Oh! meu Deus! exclamou o morgado na mais viva commoção. E eu pensando ter ja tudo remediado!
-- Não me deixaram acabar. Tem-me a mim, disse eu, e um convento a que se recolham durante a ausencia do sr. morgado.
-- Então v. s.ª sempre se resolve a partir? perguntou Antunes.
-- Esteja descansado que não me esqueço do seu negocio. Somente desejava pedir-lhe um novo favor. Ésta inesperada sahida encontra-me de todo desprevenido. Póde obsequiar-me com um novo emprestimo?
-- De quanto?
-- Eu sei... tres, quatro mil cruzados, o que puder.
-- 'Nesta occasião... bem ve v. s.ª...
-- Eu gósto de decidir todas as questões d'uma vez. Sei o que vm.ce quer dizer. A minha casa, sabe-o perfeitamente, póde bem ainda com ésta nova hypotheca. O juro que lhe offereço é o dôbro do que me entregar e pago no fim do anno. Serve-lhe o contracto, sr. Antunes?
-- A vontade de ser prestavel av. s.ª obriga-me a que... Emfim eu verei se algumas economiasitas que tenho de parte, chegam... e então...
-- Sei reconhecer-lhe o muito que lhe devo. Mas, para mais me obsequiar, va, não perca um instante e traga-me a quantia de que possa dispor. Assim que chegar far-lhe-ei entrega das obrigações.
O negociante sahiu depois de uma reverente cortezia. Alvarenga voltou-se para o frade, logo que Antunes desappareceu no patamar da escada.
-- Dispense-me por alguns instantes. Vou dar as minhas ordens para a partida, e ja volto.
Fr. Marcos, ficando so, sentou-se e puxou vagarosamente pelo papel que subtrahíra a Assumpção, e começou segunda leitura. Havia alli apenas algumas palavras escriptas a lapis, que rezavam assim:
Minha Assumpção
«Amo-te e vou deixar-te; e deixar-te quem sabe até quando! Hoje, quando bater meia noite, estarei debaixo das janellas do teu quarto.
«É o adeus da despedida.»
L
-- Laconico, mas expressivo, murmurou o frade ao acabar a leitura. Como estes romanescos amores eram dignos de melhor sorte!
Dicto isto com aquella ironia, que, passando por sua bôcca, redobrava de agudeza, fr. Marcos ia para rasgar em mil pedaços o bilhete, quando um pensamento repentino lhe atravessou a mente. Os olhos faiscaram-lhe com um sinistro fulgor, e seus labios entreabriram-se para deixarem escapar um diabolico sorrir.
-- Que imprudencia! continuou, occultando o papel no interior do hábito, não ia eu privar-me de uma arma utilissima?
IV
LANCES IMPREVISTOS
Em parte do local que actualmente occupa o Hotel Mondego via-se, ha trinta e quatro annos, modesta casa de pasto, denominada -- Estalagem da Diabinha.
O nome não era official, nem se pendurava de garrida taboleta sôbre a porta, porque a concorrencia ainda não tinha creado a necessidade do baptismo para estabelecimentos d'esta, ordem; mas o público, que gosta de chamar as cousas pelo seu nome, teimava em os agraciar com o appellido dos proprietarios.
Não sei se de boamente a Diabinha tinha acceitado a alcunha; não obstante é sabido que ninguem d'outra fórma a conhecia, e foi unicamente sob esse epitheto que póde significar muita cousa, que chegou até á posteridade.
A hospedaria, tal como está, é de modernissima data. A antiga casa de pasto abrangia simplesmente a parte voltada para o largo das Ameias, pois sua dona, mais cuidadosa em sugar-lhe os proventos que em engrandecer o predio, dizia que aquillo assim bastava para ir vivendo. Quando se fizeram sentir as exigencias da moderna civilisação, a Diabinha, abdicou o podêr e retirou-se como Diocleciano para a sua quinta, antes de transigir com a luz do gaz e os papeis pintados.
A entrada, a do noroeste no actual estabelecimento, era como ainda hoje se ve, afora um ou outro arrebique do luxo.
Seriam perto de nove horas da noite. No tôpo da primeira escada um lampeão pendurado por defumada corda dava uma luz trémula e mortiça, que se confundia nas trevas em chegando aos primeiros degraus, que talvez cuidasse alumiar.
A escada até ao primeiro andar divide-se em dois lanços, sobrepostos em ziguezague, no cimo dos quaes damos de frente com uma janella que alegra o patamar, e de cada lado com uma porta que abre para o interior.
Entremos na da direita.
Vae animado o festim. Prazer em todos os rostos, riso em todos os labios, illusões da juventude em todas as almas, vinho em todos os copos, que mais é necessario para, durante algumas horas, equiparar o mundo ao eden, a vida á felicidade? Poderiam ser, e eram, mais ruidosas, mais explendidas as historicas orgias dos Lucullos e dos Borgias, mas nem porisso os convivas teriam no estomago mais appetite, no coração mais enthusiasmo. Bastava la faltar a vida descuidosa dos vinte annos e a tranquillidade de consciencia, para faltar tudo.
Rodeavam a mesa innumeros convivas. Entre elles viam-se todos os que acompanhavam Lucena no recontro com Abrunhosa. Aquelle occupava o logar de honra, então á cabeceira da mesa, separado dos restantes commensaes por nove logares desoccupados. A quem fôssem destinados, ignoravam-no todos. Era um mysterio, sôbre que se aventaram as mais extravagantes conjecturas. Se todos concordavam em ser uma surpreza que Lucena lhes preparava, discrepavam logo que se discutia de que especie fôsse.
Subiu de ponto a curiosidade, quando, chegada a hora da ceia, veio uma criada da casa collocar sôbre a mesa as fumegantes victualhas o mais symetricamente que sabía -- que não era muito -- e os mysteriosos convivas sem apparecerem. Lucena, como se não désse por sua falta, ia transplantando da terrina para os pratos as recendentes colheradas da chanfana, que por si so firmou a reputação culinaria da tia Diabinha.
Um dos estudantes não se pôde conter que não perguntasse a Lucena:
-- Então não esperâmos pelos outros?
-- Se elles podessem, respondeu este com ar significativo, ja ca estavam. Embora! venham quando vierem, serão sempre bem vindos!
-- Guarda bem o teu segredo, accrescentou um outro, mas para quem o não saiba. Eu, meu rico, ja t'o apanhei!...
-- Sim? disse Lucena, meneando a cabeça em signal de dúvida. Dou-te licença para o divulgar.
-- Ve la o que dizes!...
-- Á tua vontade, Henrique.
-- Então manda entrar as nove mulheres, que hão de vir ceiar comnosco. Ves que adivinhei?...
-- Adivinhaste... pede o premio!
-- Peço que uma d'ellas, a que eu escolher, venha sentar-se ao pe de mim.
-- Ah! ah! ah! atalhou Botelho, rindo-se. Sempre és uma grande creança! Eu é que dei no vinte e mais estou calado!
-- Vamos a ver.
-- Ó Lucena, olha que não sou como o Henrique. Se fallo, a tua surpreza vae-se pela agua abaixo.
-- É o mesmo. Folgo até com isso, continuou Lucena, sorrindo-se.
-- Jose Estevão partiu para Aveiro para predispor a revolta de caçadores 10. Não é assim?
-- Não ha dúvida.
-- A revolta fez-se ha seis dias. Hoje chegaram as milicias de Aveiro; provavelmente veio com ellas em companhia de oito amigos; tem-se conservado occulto para nos apparecer de improviso, e, quando nós menos o esperarmos... sentem-se passos na escada... e... ouçam!... eil-o ahi vem.
Effectivamente alguem subia os degraus do segundo lanço. Os estudantes correram á porta, anciosos por abraçarem seu collega; abriram-na... soltaram uma gargalhada, e voltaram a tomar seus logares em tôrno da mesa. Botelho, que fôra o primeiro a levantar-se e o que erguêra a aldrava da porta, estava confuso e enleiado no meio da hilaridade geral. Os passos continuaram a ouvir-se, afastando-se cada vez mais. Eram uns pobres almocreves da Beira, que subiam para as aguas-furtadas.
-- Não te envergonhes, Botelho, disse-lhe por fim Lucena, que ficára sentado no seu logar: lançaste a barra alem de Henrique, mas ainda assim não bateu no alvo.
-- Ora para que nos havemos de estar a moer? opinou um outro. Seja o que for, comamos e bebamos, e deixemos para postres o decifrar o enigma dos nove talheres.
-- Apoiado, repetiram em côro os restantes commensaes.
-- Afoguemos a curiosidade num copo de vinho, tornou o do alvitre. La vae um brinde: -- ao enigma dos nove talheres.
Todos applaudiram a lembrança, e do melhor modo, que poderam, corresponderam ao convite do estudante.
Mas o remedio não foi de todo efficaz. É facto que a anciedade ia diminuindo na razão directa do vacuo das garrafas; comtudo, de quando em quando, agitava-se por alguns momentos a questão do eterno problema que alli estava, d'entre aquellas cadeiras desoccupadas, a irritar a molecula de curiosidade que a cada individuo coube na partilha da herança de Eva. Os que presumiam de circumspectos, sabendo que Lucena não era homem que deixasse tresmalhar um segredo na armadilha de curiosos, aguardavam com impaciencia a revelação do mysterio. Mas o que era impossivel, era que ao menor ruido de passos na escada, ao menor susurro de vozes, que lhes ferisse os ouvidos, se não volvessem todos os olhos para a porta da entrada.
Quando a festa chegou ao maior auge de animação, Lucena que so por instantes abandonava seu ar triste e pensativo para responder com um sorriso á curiosidade de seus amigos, ergueu-se empunhando um copo, que ao reflexo das luzes brilhava como topazios:
-- Amigos, disse elle, aos martyres da liberdade Despedaçando as algemas que nos roxearam os pulsos, nosso primeiro dever é prestar homenagem á memoria dos que, arrostando com um jugo insoffrivel, nos ensinaram a ser livres. Spartacus brinde Prometheu!
Os estudantes levantaram-se, alçaram os copos, fazendo-os retinir uns contra os outros, e repetiram com indescriptivel enthusiasmo o brinde de Lucena. Este, logo que serenou a confusão que tinha occasionado, continuou:
-- É tempo de satisfazer vossa curiosidade. Estes logares que ahi vêdes, e o mancebo apontava para os que lhe ficavam ao redor, são de nove irmãos nossos, que não duvidaram sacrificar seu futuro, sua vida, a tranquillidade e o bem-estar de suas familias para nos salvarem a todos. São tambem martyres da liberdade; martyres a quem devemos uma especial veneração! A sorte foi-lhes adversa, e elles expiam, ja nos degraus do cadafalso, um crime que, a não serem vencidos, talvez fôsse uma virtude. Se no que vae do enthusiasmo á abnegação e d'esta á temeridade ha logar para um crime, esse crime é o seu. Sim; o crime de se compadecerem de nossos males, de serem bons irmãos, de serem liberaes como nós e sobretudo mais infelizes do que nós. Ainda que assim não fôsse, os que não sentem chorar-lhes a alma ao aspecto da desgraça; os que se julgam de um barro privilegiado para se olharem superiores a todas as fraquezas; os que, sendo so rigorosos, se crêem justiceiros como Christo; esses é melhor que se retirem. A indifferença e o egoismo são contagiosos. Mas os que sabem ser gratos; os que são capazes de avaliar um grande sacrificio; 'numa palavra, os que são dotados de uma alma compassiva, esses acompanhar-me-ão nos brindes que vou propor. É o primeiro passo para a rehabilitação de alguns mais ennodoados pela calúmnia que pela justiça. A Bento Adjuto Soares Couceiro.
-- A Bento Adjuto Soares Couceiro, repetiram os convivas em côro.
-- A Delfim Antonio de Miranda e Mattos.
-- A Domingos Joaquim dos Reis.
-- A Urbano de Figueiredo.
-- A Francisco do Amor Ferreira Rocha.
-- A Antonio Correia Megre.
-- A Domingos Barata Delgado.
-- A Carlos Lidoro de Sousa Pinto Bandeira.
-- A Manuel Innocencio de Araujo Mansilha.
E cada um dos nomes que Lucena ia proferindo era repetido por dezenas de bôccas entre uma explosão de vivas.
Lucena aproveitou o momento de enthusiasmo para realisar o pensamento que de ha muito o dominava -- o de ir salvar os desgraçados prisioneiros do Limoeiro a trôco de sua propria existencia. Expoz seu plano perante um auditorio electrisado pela magia de sua voz, advogou a causa de seus protegidos, communicou a todos uma faisca dos nobres sentimentos que lhe referviam na alma, por tal arte que todos estavam como que suspensos de seus labios, e dominados pela sua vontade.
-- Agora, concluiu Lucena, resta so contribuir cada um com a parte que lhe está reservada 'nesta grande obra. Dae-me o superfluo de vossas bolsas; pequenas mealhas que sejam. Urge desde ja o pagamento d'esta nossa dívida de gratidão.
E o mancebo, abrindo o gorro á maneira de sacco, ia d'um para outro dos convivas, recebendo o que cada um lhe dava, que era o que tinha. Cobre ou ouro, ia sempre com a dadiva a boa vontade, que se lhe não augmenta o valor, augmenta a obrigação no peito do que a recebe.
Chegada a vez de Henrique, Lucena deteve-se, vendo que o estudante se dava pressa em procurar nos bolsos que lhe offertasse. Henrique era o mais rico e o mais perdulario da companhia; e aquelle remecher prolongado nas aberturas da batina denunciou, logo depois das primeiras tentativas infructuosas, um estado de penuria lastimavel. Lucena não quiz tel-o por mais tempo em torturas, e proseguiu seu caminho. Henrique volveu-lhe um olhar de incomparavel tristeza, ao passo que amalgamava entre os dedos uma bolsa completamente exhaurida.
Havia um não sei que de comica sinceridade na maneira por que o estudante manifestou seu sentimento, que os que olhavam para elle 'naquelle instante desataram ás gargalhadas.
-- Vem ca; vem, que ja encontrei, clamou o estudante com indizivel alegria e tomando uma faca de sôbre a mesa.
Seus companheiros, julgando-o em completa embriaguez, rodearam-no para obstar a que practicasse qualquer acto de loucura. Mas a esse tempo ja Henrique tinha aberto a batina e cortado o cordão de seda que prendia uma medalha que trazia ao peito. Era a medalha cravejada em volta de finos diamantes e, abrindo-se, mostrava um retrato pintado sôbre marfim. O estudante começou por desencravar, uma por uma, todas as pedras de subido valor, que foi lançando no gorro de Lucena.
-- Perdoas-me, perguntou elle a Lucena, apontando para a moldura do retrato, se eu conservar isto?
-- Ja déste de mais, amigo.
-- Ó minha mãe, continuou o mancebo como se fallasse comsigo mesmo, era a unica lembrança tua que possuia.
-- Henrique, volveu-lhe Lucena, a liberdade exige ás vezes dolorosos sacrificios. É caprichosa amante que no coração de seus eleitos quer dominar á custa de todas as affeiçoes. Inda bem que logo na primeira prova te mostraste digno d'ella!
-- Se soubesses a quantas tentações hei resistido?! Ao menos, attento o fim por que me desfiz do ultimo penhor de sua affeição, não ultragei a memoria d'aquella sancta!...
-- És uma alma generosa, Henrique.
E os dois mancebos estreitaram-se 'num abraço que ligou seus corações, dignos um do outro, pelos laços de uma indissoluvel sympathia. Quando se apartaram, lagrimas, em que parecia fundirem-se suas almas, marejavam-lhes nos olhos. Lucena continuou percorrendo toda a roda dos circumstantes, até que, findada sua lida, voltou ao logar no alto da mesa.
-- Amigos, disse com a voz entrecortada pela commoção, talvez nunca mais todos nos tornemos a reunir sob o mesmo tecto! Porém, qualquer que seja a sorte que no porvir nos aguarda, não olvidemos este dia, que debaixo de tantos pontos de vista se tornou digno de memoria. Prosegui na carreira que encetastes, ide combater no campo da gloria pela sancta causa da liberdade, offerecei vosso sangue no altar da patria, que eu, martyr obscuro, irei affrontar o tigre da tyrannia no mais tenebroso de seu antro. No emtanto, victorioso ou vencido, meu hynmo de victoria, meu grito de agonia, o ultimo som que atravessar meus labios, quando ja o dedo da morte os tenha meio cerrados, serão sempre estas magicas palavras: «viva a liberdade!»
-- Viva! repetiram os estudantes por largo tempo.
Pouco depois a ceia tinha acabado. Lucena pretextando os preparativos da jornada retirara-se em companhia de Villanova. Os estudantes tinham todos querido acompanhal-o; mas elle recusou obstinadamente esse testimunho de sympathia, tirante a ovação. Desde que Lucena fallára em sahir, cessou, como por encanto, o ruido que remava 'naquella casa e que é a parte mais interessante de todas as reuniões academicas. Comprehendiam as difficuldades do passo em que o mancebo se arriscava. Um por um, abraçaram seu generoso collega, renovando-lhe protestos de amizade e eterna gratidão. Lucena, commovido por tantas provas de estima, tentou ainda mostrar seu reconhecimento, mas os labios recusaram-se-lhe a articular um unico som.
Em sua singeleza e simplicidade ésta muda scena, trahida pela simples expressão das physionomias, cessava de ser pathetica para ser sublime.
V
MYSTERIOS DA NOITE
Em todas as cidades, cuja fundação se perde na noite dos tempos, por mais que o camartello da civilisação trabalhe, ha de sempre um arco romano, um templo gothico, uma rua mourisca -- e quando digo mourisca, entendo estreita, sombria e tortuosa -- ha de sempre um vestigio qualquer atraiçoar o segredo da origem, occultado no alinhamento das novas construcções. Póde a casquilha transformar-se, adonairando-se como velha pretenciosa nas galas da modernice, mas la ficam as rugas sob o postiço da côr e as cans sob as pastas do cosmetico. Assim ha em Londres a City, em París Notre-Dame, em Lisboa a Alfama, e no Porto o Codeçal.
De Coimbra não fallemos. Fez como os representantes de uma nobreza educada em não sei que fidalgas parvoíces, deitou-se a preguiçar quando o sol do progresso ja assomava no oriente. Como tinha ás portas os brasões a fallarem de passadas heroicidades, aninhou-se na mortalha de sua gloria para não comparecer na grande festa da civilisação. O caso é que pegou devéras no somno, e dormiu talvez mais do que se pensava. Deixaram-na dormir. O presente repudia os que se contentam com a recordação do passado.
Uma vez, porém, a capital politica lembrou-se de communicar com a capital monetaria á maneira de boas vizinhas, que estalam por bisbilhotarem as novidades do dia, e, como Coimbra obstruia o meio do caminho bateu-lhe á porta a mala-posta, o telegrapho electrico, e ja se fallava 'num ferreo-carril como despertador mais efficaz. Acho que nem o somno do justo resistiria a tamanho alvoroto! Coimbra acordou em sobresalto, deitou a cabeça á janella, e, como urgia obedecer, la foi resmungando abrir as portas aos emissarios progressistas. Mas todos que a viam no tardio desalinho desatavam a rir da velha preguiçosa.
Tantas chufas e remoques enojaram-lhe a vaidade, e tractou de se mostrar guapa e feiticeira. Que faz ella? Ainda estremunhada com o somno, agarra de um pincel e vae-se a acafelar a cantaria de seus venerandos monumentos -- passe, é um barbarismo de mais! Com o pretexto de endireitar uma rua contrae um emprestimo, e deixada quasi tão torta como estava, com a differença de mais larga -- passe ainda, é uma falsidade de mais! Depois começa a construir casas que parecem esguichos, casas que parecem pombaes, casas que parecem ferros de engomar, e quantos disparates architectonicos lhe vêm á imaginação -- passe, mas custa, é ja muito mau gôsto! Finalmente para quotidiana edificação dos transeuntes, dá-nos um simulacro dos autos de fe, chamuscando ao ar livre das ruas as víctimas de sua voracidade; atulha os largos de eternas pedranceiras e caliças, os beccos de immundicies e... basta, que isto até dá nauseas.
Quando algum estrangeiro te visitar, mostra-lhe o azul de teu ceu, o limpido de teu rio, o matiz de tuas varzeas, a tua lapa dos Esteios, o teu penedo da Saudade, o teu alto da Esperança, tudo, tudo quanto tens de bello e seductor nos arredores, mas o Jardim Botanico, a antiga Sé, o sanctuario de Sancta Cruz, tudo quanto tens de magnifico e admiravel no interior, se queres mostrar-lh'o, mostra-lh'o... por um oculo. Atravessar o inferno custa, ainda que seja para chegar ao paraiso, quanto mais não sendo o Alighieri de alguma Beatriz de nova data.
Estou ja vendo em campo os officiosos paladinos da reputação coimbran a taxarem-me de filho desnaturado e a assacarem-me não sei que mais outros que taes aleives de egual jaez. Soffrerei paciente a injustiça de meus conterraneos por amor da terra, a quem elles não sabem querer mais do que eu. Não sou o primeiro bem intencionado a quem apedrejam mãos temerarias. As creanças maldizem o mestre-eschola, os doentes o vesicatorio; e um ensina e o outro cura. Mal por mal, antes a franqueza do amigo que a adulação do lisongeiro.
La vae uma historieta, que vem a pêllo.
Em creança tinha a mania das illuminaçoes. Associei-me a um criado pouco mais velho do que eu, que me ensinou um meio singular de abrilhantar os meus festejos. Se machinavamos illuminação monstro, desciamos ao jardim e iamo-nos aos alegretes circumdados de buxo, e tanto os abanavamos, que seus naturaes habitantes eram obrigados a sahir. Caracol mais graúdo que apparecesse ia logo para o cesto, que Joaquim Agostinho não se esquecia de trazer. Assim que viamos número sufficiente de molluscos, voltavamos para casa, todos anchos da caçada, que punhamos de salmoeira. Os animaes achavam o gracejo um pouco pesado; encolhiam-se dentro das conchas e começavam a desfazer-se em nojenta baba esverdinhada. O que agora me não lembra -- nem me acho disposto a verificar a experiencia -- é se os nossos gasteropodes abandonavam a casca, pela simples acção do sal, ou se ainda recorriamos a mais algum expediente. É certo que, horas depois, as conchas vasias de seus pacificos inquilinos coroavam-se de luzes tão bem, como se não fôssem creadas para outra cousa.
Reparem, meus bons patricios, na moralidade do conto; e ja que lhes applico o melhor do meu sal, vinguem-se como os caracoes... sahindo-se das cascas!
Coimbra, pelas favoraveis condições que encerra, poderia representar um papel mui distincto na regeneração do paiz. É para isso que inda a não vemos preparar-se. Quererá porventura continuar a ser o que tem sido? Assusta-me a resposta. Nem o amor proprio, nem o interesse, 'numa palavra estímulo algum será capaz de quebrar o encanto que a prende a esse desanimador entorpecimento?
No coração de Portugal, parece que deveria ser ahi onde batesse mais vida, e se elaborasse toda a seiva que, distribuindo-se pelas arterias que ja sulcam o paiz em differentes direcções, fôsse animar os portos nacionaes, concorrer aos mercados extrangeiros, e reverter em ouro e honras para todo o reino.
Aqui se regista a ideia. Ruminem sôbre o caso os dinheirosos ca da terra, se entenderem que vale a pena.
Pelo que ainda hoje vemos, pode imaginar-se o que era Coimbra em 1828. Eu não sei quantos esdruxulos ha na algaravia de Hippocrates, além de atrophico e mephytico, que possam significar pestilencia, estiolamento e mau cheiro; quizera-os reunir todos aqui para adjectivar a encruzilhada de ruas em que vamos entrar em seguimento de dois vultos que param a cada passo, examinando não so o caminho que devem tomar, mas o exterior das casas que a seus olhos se apresentam
É nesse labyrintho de viellas tortuosas e immundas que as regateiras habitam na sua quasi totalidade. Os dois vultos desconhecidos, depois de terem errado por grande parte d'ellas, atravessaram o Romal em direitura da rua das Azeiteiras, a que, se fôssemos a attender ás advertencias do olfato, mais propriamente chamariamos das Sardinheiras.
Durante o caminho, embebiam-se ás vezes em íntima práctica, e tão íntima, que o silencio da noite era apenas quebrado pelo monotono ruido de seus passos. De vez em quando, atraves de uma janella, d'onde se escapava fugitivo raio de luz, transparecia uma sombra refractaria ao somno, attrahida pelo rumor que se elevava do pavimento. Depois o som das passadas perdia-se ao longe; abria-se cautelosamente o postigo, adiantava-se uma cabeça, e, como o dobrar de uma esquina se interpunha entre o curioso e os nocturnos passeantes, a janella cerrava-se, e tudo cahia no habitual silencio.
Subindo na direcção da Praça, quasi ao meio da rua, encontra-se a travessa das Canivetas, pequena alfuja, em que á vontade não passam duas pessoas a par. Chegados a esse ponto, os nossos caminhantes pararam quasi ao mesmo tempo.
-- É alli. La está a lanterna, disse um d'elles, apontando para a escura viella que lhes ficava á esquerda.
E cada um por seu turno se entranhou na sinuosidade do bêco, dirigindo-se para arruinado casebre, o qual, segundo devota usança d'aquella era, tinha entalhado na parede o retabulo da Virgem, alumiado por uma lampada suspensa de tosco varão de ferro. A lampada oscillava a sabor do vento, projectando a intermittente claridade, incapaz de fazer distinguir os objectos que lhe ficavam ao redor. Junto da porta, os dois vultos estacaram indecisos, se porventura sería aquella a casa que procuravam. Uma voz rouquenha e esganiçada ouviu-se então das janellas do terceiro andar.
-- Ola! que é isso la por baixo?
-- Ó sr.ª Escholastica, faz favor de uma palavra.
-- Eu ca de noite não dou palestra sem saber a quem.
-- Falle baixo, que amotina a vizinhança.
-- E que amotine?! Vamos la: aqui estou... digam o que me querem.
-- Não é d'aqui que lh'o podêmos dizer.
-- Ande, sr.ª Escholastica, faça favor de abrir a porta, atalhou o outro desconhecido.
-- Tó, rola! Vossês pensam que como miolo de enxergão. É andar ao largo, quando não grito -- aqui d'elrei.
-- Pense bem no que faz. Quem perde 'nisso não somos nós...
-- Então se for eu, continuou a regateira, isso é o mesmo... fica por minha conta.
-- Não é tão pouco vm.ce, mas sim alguem que tem em casa.
A Plangana reflectiu. Lançou um olhar investigador por toda a rua e apenas viu os dois vultos que tinha á porta.
-- Esperem ahi, disse-lhe ella por fim.
Pegou na candeia e foi buscar o cutelo com que talhava o pescado, e, escondendo-o entre o avental e as roupinhas, desceu a ingreme escada. Tendo chegado ao patamar, veio-lhe á mente a lembrança de que aquillo poderia ser uma embuscada, e que os outros malfeitores estariam escondidos no angulo da rua. E que fôsse? a nossa heroina achou-se com forças de repellir os aggressores e entrincheirar-se atrás da porta, antes que sobreviessem os companheiros. No ultimo degrau novo rebate de medo; de maneira que Escholastica, que era dada ao vezo dos agouros, começou a desconfiar da tramoia, e julgou razoavel precaver-se com as armas da prudencia. A porta tinha um pequeno postigo; ageitou o ôlho a uma das fendas, e depois os labios. Os vultos acercaram-se e manteve-se entre os tres acalorada controversia. Por fim a regateira cedeu, e os vultos entraram para dentro de casa.
Se algum dos raros passeantes d'essa noite parasse alguns momentos depois em frente da habitação da tia Escholastica e, attrahido pela claridade que se escoava das fisgas da porta, espreitasse por uma d'ellas o que ia no interior, eis o que veria: -- a dona da casa, segurando a candeia na direita, apertava com a esquerda a mão de um estudante, a quem dizia:
-- Isto é que é ser homem de bem! O ceu lhe recompense a boa acção que faz. Eu ca não sirvo de nada, mas para a vida e para a morte, sempre me ha de encontrar.
Alguns passos mais distantes e ja subindo para o primeiro andar, veria o mesmo curioso o marido da regateira e um outro estudante, agarrando cada um a extremidade de uma escada de mão de que Ignacio Pires costumava fazer uso em seu officio de carpinteiro.
-- Anda d'ahi, disse Ignacio a sua mulher, vendo que não se dispunha tão depressa a cessar a manifestação de seu reconhecimento, anda d'ahi que inda nos não resta pouco que fazer.
A Plangana tomou a dianteira para alumiar o caminho, e todos a seguiram na escuridão do corredor, que dividia o centro da casa.
Teria passado uma hora quando a porta rangeu de novo sôbre os quicios, dando passagem a quatro pessoas. Tres d'ellas seguravam pesado fardo sôbre o comprido. Adiante marchava a outra como em exploração. Ao voltar sôbre a rua das Azeiteiras o que ia na frente esperou por seus companheiros com quem se deteve a fallar por alguns instantes: depois do que tomaram oppostas direcções. Os tres, continuando a carregar com o fardo, encaminharam-se para o lado da ponte; o outro cortou rua acima no sentido do bairro alto.
Sigamos este.
Dava-lhe meia noite ao parar junto de uma casa de nobre apparencia. O estylo pesado e imponente da architectura datava sua construcção do reinado do monarcha magnanimo ou pelo menos de D. Jose. Tres ordens de janellas sobrepostas compunham a fachada, sendo as do centro rasgadas e exteriormente unidas em toda a correnteza por uma so grade de ferro. Nas extremidades elevavam-se, superiores ao plano geral do edificio, dois estreitos pavilhões coroados de pequeno mirante. Sobrepujava a porta principal uma pedra de armas, em que o escudo partido em pala mostrava no primeiro quartel as seis arruelas dos Castros, no segundo o leão rompente dos Castel-Brancos. O vulto rodou por largo tempo em volta da habitação de Francisco Alvarenga. Os olhos não os despegava da janella do pavilhão que olhava ao nascente. Mas aquella casa tinha a mudez do tumulo; nem sequer um indicio atraiçoava o que la por dentro ia. Foi colar o ouvido á fechadura, e tudo era silencio desanimador la dentro, como á superficie. Que sería?...
O primeiro gemer de novo dia escapou-se das ventanilhas da torre proxima. O vulto, que era Lucena, pareceu escutal-o com assombro. «Quem espera, desespera» diz o adagio. E se for o aniquilamento da fe que vemos ao cabo da esperança? se for a morte para o corpo, a dúvida para a alma? Não trememos a cada grão de areia que cae da ampulheta do destino? Não quereriamos suspender a voluvel roda dos acontecimentos, embora se nos esmagassem as mãos contra os eixos? Isso é proprio de animos fracos, responder-nos-ão. Onde estão os animos fortes, quando o amor os domina? Em Hercules aos pes de Ornphale? em Samsão no refaço de Dalila? em Antonio nos braços de Cleopatra? Mostrar fortaleza, quando nos confessâmos fracos, é laborar em irrisorio absurdo! Para que abdica a razão no sentimento, se não é para sermos timidos e supersticiosos á vontade?
Era o que se dava em Lucena. Houve um rei que dava seu reino por um cavallo: Lucena dal-o-ia por uma luz 'naquella janella. Milhares de conjecturas, cada qual mais dolorosa, se agglomeravam em seu espirito. O ser trahido foi o que nunca lhe lembrou. Cria no amor de Assumpção, como na vida uma so vez se crê no amor de uma mulher. Mostrassern-lhe 'naquella hora provas irrefragaveis da falsidade de sua amante, desprezal-as-ia: negaria tudo para não confessar o perjurio nos labios de um anjo. Voltou de novo a escutar á porta -- o mesmo silencio; volveu os olhos para o aposento de sua amada -- a mesma escuridão; sondou o abysmo de seu coração -- as mesmas angústias, a mesma incerteza!
Era um passo difficil aquelle, e de que Lucena não atinava como sahir. Escalar o muro, descer ao jardim, penetrar no interior d'essa mysteriosa morada, correr ao quarto de Assumpção, desfazer todos os obstaculos para vel-a uni instante, apertal-a contra o seio, imprimir-lhe nos labios o adeus da despedida -- foi o unico pensamento que cruzou como relampago nas trevas de seu espirito. Mas como pol-o em execução?
O muro tinha a altura de dois homens, e em toda a superficie não apresentava resistencia em que firmar pe. Nem reintrancia nem saliencia. Por este lado era impracticavel o assalto. Um outro meio se offerecia; esse não de todo inexequivel, mas incerto e até arriscado. Havia alli uma árvore que, debruçando-se alem do muro, quedava a menor altura do pavimento, mas não tanto que um simples levantar do braço lhe tocasse na rama. Lucena correu a ella e com grande trabalho conseguiu alcançar os esgalhos mais baixos. Foi tudo um, puxal-os a si e aventurar-se a trepar á maneira dos maritimos pelas enxarcias. Mas a subida era difficil: a cada passo o emmaranhado da ramagem lhe obstruia o caminho. 'Num dos momentos de descanso a que de contínuo o obrigava a necessidade de tentear a passagem, o ramo em que se firmava estalou-lhe sob os pes, e veio cahir ao chão como derribado pela mão do rachador. Lucena ficou suspenso pelos dois braços e fazia esforços inauditos para cingir o tronco antes que o ramo em que se balouçava vergasse com o pêso de seu corpo.
Uma voz, entoando coplas de seguidilhas populares, resoou ao longe. Eterno contraste! A cada surdo ralar de uma agonia, respondem os echos do mundo com uma expansão de contentamento!
A voz tornava-se de instante para instante mais distincta, e não tardou que por entre os requebros da toada se ouvisse o ruido de passos precipitados. Finalmente dois vultos appareceram na emboccadura da rua. Lucena julgou-se perdido. Redobrou de esforços para attingir o cimo do muro; mas estes movimentos menos cautelosos cavaram sua ruina. O ramo, fraco para tamanho pêso, esgalhou, e d'esta vez Lucena resvalou com elle em terra. Ouviu-se um baque, e logo apos um gemido abafado.
Os vultos, que 'neste instante caminhavam quasi em frente da árvore, pararam ao som da quéda.
-- Cala-te ahi, disse um d'elles para o outro que ainda não tinha cessado de cantar. Não ouviste?
-- Ouvi, ouvi; e é porisso mesmo que tinha mais vontade de cantar. Diz la o outro «quem canta, seus males espanta». E o medo parece -me que é o peior de todos...
-- Escuta. Quem está ahi? perguntou o outro, inquirindo escrupulosamente com a vista o sombrio recanto em que jazia Lucena.
-- Não sería melhor deixar la estar quem está?
-- Quem está ahi? repetiu o mesmo, passados alguns instantes de silencio. Ninguem respondeu. Ouviu-se o estalido de uma arma de fogo que se engatilhava. Um dos recem-chegados avançou para o sítio d'onde partíra o gemido que lhe chamára a attenção; o outro ficou immovel como se os pes lhe estivessem pregados ao pavimento. Dados alguns passos na penumbra, que formava a copa da árvore, seus pes tropeçaram 'num corpo inerte. Curvou-se, apalpou e reconheceu pelas formas um homem, pelo trajo um estudante. Arrastou-o para o centro da rua, e á frouxa claridade das estrellas viu Lucena.
-- Lucena! Lucena! gritava o desconhecido, apertando nas suas as mãos geladas do estudante.
-- Que sera isto, meu Deus? continuou, presa da mais viva anciedade. Lucena, sou eu!...
O outro vulto que, logo que julgou não correr risco algum, se tinha chegado a seu companheiro, perguntou-lhe:
-- Quer que o ajude 'nalguma cousa?
-- Primeiro que tudo arranja-me agua fria. Ouviste, Jose?
-- Ouvi, sim sr. Mas a éstas horas aonde a hei de ir buscar?
-- A casa de teu amo por exemplo. Avia-te, poltrão.
Jose correu a casa de Alvarenga. Com uma pequena chave, que tirou da algibeira, abriu a porta transversal, e embrenhou-se no interior. Dentro de poucos instantes voltou com uma escudella cheia de agua, com que o estudante começou a banhar as fontes e o rosto do que estava sem sentidos. Este, ao choque da frialdade da agua, começou a dar alguns signaes de vida.
VI
CAPITULO ENTRE PARENTHESIS
Vacillava entre a razão e a consciencia ao abrir este capítulo. A consciencia exigia-me o cumprimento de um dever: imposto por mim mesmo: a razão aconselhava-me evitar pelo menos uma temeridade.
Antepuz a obrigação á consideração.
Ha um anno parte do que se vae ler sería apenas o manifesto de um artigo de meu credo social: hoje não passará talvez de imperfeita reproducção. Inda bem que não inutil. Ha pyrrhonicos e myopes, que necessitam de se aquecerem todos os dias aos raios do sol para não negarem a claridade.
O auctor, que de seus predecessores muito estima um e muito admira outro, não tem pejo de confessar que se aterra com a lembrança do parallelo. No emtanto vae descer á estacada a par d'elles. Não responderá pelos botes de seu pulso imbelle, mas crê na justiça de sua causa. Vencido, poderá sel-o; convencido, nunca. A convicção sobeja-lhe onde lhe fallece o talento.
Sodoma, a devassa, ardia nas chammas do fogo celeste. O anjo do Senhor ordenou a Loth fugisse da terra maldicta sem volver os olhos para trás. O passado, quando Deus o condemna, é como Sodoma: olhal-o, é contravir um preceito divino.
Estão 'neste caso os conventos. Deus 'num momento de justa cholera fulminou-os pelas mãos dos homens. Deixar passar a justiça do Omnipotente!
Assim devia de ser. O convento existiu em quanto foi o sanctuario da religião: cahiu, logo que se tornou o receptaculo de todos os vicios. O manancial perenne de virtudes tinha-se exhaurido; não havia razão para se não estancarem os raros olheiros, que so serviam de alimentar o lodaçal que conspurcava o alveo, onde outr'ora de involta com ramaes de perolas rolavam palhetas de ouro puro.
A questão das ordens religiosas póde ser encarada sob multiplice aspecto. Um so lado do prisma lhes é favoravel -- a liberdade de associação. Mas irá tão longe o princípio, que subsista á custa da sociedade? Não, mil vezes não. Em these deve a liberdade, qualquer que ella seja, vigorar em toda a sua plenitude; em hypothese aferimol-a pelas públicas conveniencias, e restringimol-a segundo ellas nol-o exigem. Debaixo d'este ponto de vista, somos utilitarios como Bentham.
Resta saber se o convento é um facto subversivo da sociedade.
A moral, a civiiisação e a economia politica condemnam as ordens religiosas, que em sua incalculavel fecundidade são como a rachitis, atacam a medulla e inquinam a seiva de uma nação. Pela ociosidade, desmoralisam-na; pela falta de braços, tolhem seu desinvolvimento; pelo celibato, despovoam-na; pela accumulação e estagnação de capitães, empobrecem-na.
A historia não lhes é mais favoravel. Verdade é que no princípio mostra o convento um logar de sanctidade. Eil-o dique á barbaridade do seculo, freio ás demasias dos poderosos, asylo a perseguidos. D'alli parte o impulso e a luz para a restauração das letras; d'alli a palavra inspirada que vae conquistar mais almas para a immortalidade do que a espada vassallos para a coroa. Depois é o reverso da medalha. A ambição de riquezas e poderio entrou no convento. Extorquiram-se á hora da morte valiosos legados, especulou-se com a superstição, prégou-se a intolerancia e o fanatismo, e por fim inventaram-se os autos de fe para conter os voos do pensamento em busca da verdade. O frade tornou-se aulico do rei e carrasco do povo. O periodo mais calamitoso da nossa historia é esse mesmo em que seus conselhos preponderaram no ânimo do monarcha. Devemos-lhes o lugubre reinado de D. João III, e a perda da nossa nacionalidade, morta com a flor da cavallaria nos torridos areaes de Africa. Devemos-lhes o govêrno reaccionario de D. Maria I, que se esforçou por obliterar as reformas do grande marquez. O convento, que medrára á sombra do absolutismo, inverteu a letra do evangelho, e guerreou a liberdade: não braço a braço, leal e francamente, mas nas trevas e no mysterio, com o veneno, com o incendio, com a máscara da hypocrisia, no pulpito, no confessionario, onde quer que sua elevada missão lhe dava entrada.
Isto que prova? que os conventos são incompativeis com a civilisação do seculo. Desde que se lhe oppozeram, não tinham razão de ser. Deus ja não os protegia, porque o tinham abandonado; o povo renegava-os, porque o tinham trahido. Alluiram-se, porque não havia consideração alguma que os sustivesse na quéda. Nem reformas ou restricçoes possiveis: o unico partido era o que se tomou -- a extincção total. Para grandes males, grandes remedios.
O convento foi util no seu tempo, ninguem o contesta. Agora era uma instituição caduca e anachronica, e, o que mais é, tendente a embargar o passo ao progredir da civilisação moderna.
E ha ainda hoje quem volva olhos saudosos para o passado, e sonhe a reintegração do convento. Sera pelo convento em si? Não. É porque estão convencidos, assim como nós, de que no primeiro psalmear de frades se entoariam as exequias da liberdade.
Não é o seu pacto com a tyrannia o unico obstaculo á readmissão das ordens religiosas, em boa consciencia o dizemos. Mostrámol-as ja inuteis e perniciosas.
Agora duas palavras sôbre a introducção em Portugal do instituto de S. Francisco de Assis, instituto que tanto medrou em honras e consideração, quanto mais tarde veio no descredito público a baixar, sempre em escala descendente até nossos dias.
Contam as chronicas da ordem que vindo a Coimbra S. Francisco visitar a rainha D. Urraca, mulher de D. Sancho II, levantára em Bragança o primeiro convento de franciscanos em 1214; e que, depois de ter regressado a Italia, e ouvido o capítulo da ordem, enviára fr. Zacharias e fr. Gualter, que edificaram o segundo em Alem quer, onde residia a infanta D. Sancha, e pouco tempo depois em 1217 o de S. Francisco da cidade em Lisboa.
É porém certo que os primeiros franciscanos, por mandado de D. Urraca, foram recolhidos 'numa antiga ermida da invocação de Sancto Antão, situada ao nascente e perto de Coimbra; á qual em 1216 se retirou o popular thaumaturgo Sancto Antonio de Lisboa para professar a austera regra seraphica. Foi ahi que depois os religiosos da provincia da Soledade levantaram seu convento sob a denominação de Sancto Antonio dos Olivaes.
Tamanhos foram os creditos que alcançou ésta ordem logo desde seu comêço, que em breve de todas as partes surgiram conventos em que se ella abraçou. Poucos annos depois ja Coimbra contava o de Sancta Clara, começado em 1286, e o de S. Francisco d'entre pontes, sagrado em 1362, ambos hoje submergidos pelas alluviões do Mondego, mudando-se os religiosos para os que se lhes edificaram no seculo XVII no local aonde actualmente se vêem. Ao tempo da extincção dos conventos existiam em Coimbra nove casas conventuaes, que seguiam o humilde instituto de S. Francisco.
Comtudo, apesar de tantos creditos, contra a expressa determinação do instituidor, e logo depois da morte d'elle, a ordem foi reformada, e a familia seraphica dividiu-se em menores observantes e capuchos, ou menores reformados.
Entre estes contavam-se os da provincia da Conceição, que residiam em Sancto Antonio da Estrella, convento edificado nas casas que foram do conde de Portalegre e depois do marquez de Gouveia, situadas junto ás portas de Belcouce, onde em tempo de D. João III se leu o direito canonico, o civil e a medicina durante a reitoria de D. Garcia de Almeida, que ahi habitava.
E 'neste convento que vamos entrar.
VII
O FIO DE ARIADNA
No plano do corredor, que remata no grande salão contiguo ao terrapleno do torreão da Estrella, havia uma janella aberta ao resfolegar da aragem que principiava a erguer-se apos a calmaria offegante de um ardentissimo dia de julho.
Sentado junto da janella, um filho d'essa morada de austera penitencia quedava com os olhos fitos nas collinas do occidente, que enrubescidas pelos ultimos raios do sol phantasiavam coroar-se com as lavaredas de ateado incendio.
Toda a natureza parecia ter acordado para festejar as mysteriosas nupcias em que o ceu e a terra se fundem 'num prolongado beijo de amor.
No espaço ondulavam as inimitaveis estrophes do hynmo da creação para o qual o murmurio das aguas, o ramalhar das selvas, o susurro das folhas collaboram, ajustando-se em acordos de arrebatadora harmonia.
As flores, oseillando na haste aos afagos das auras, perfumavam o ambiente com mil diversas fragrancias, que subiam aos ceus como incenso d'aquelle magestoso templo, que por limites tem os do universo, por candelabros myriades de estrellas.
D'onde quer que se abrigasse um ser animado, d'ahi sahia um canto, em que iam de involta brandos accentos de não sei que toar saudoso, desde o estridulo adejar da cigarra, escondida em rasteira moita, até aos sentidos requebros com que a philomela, do seio das florestas, convida o espôso ao aereo thalamo.
Era 'naquella hora de ineffaveis gozos em que as sombras se carregam em trevas e a luz se esvae em phosphorescencia, e em que o espirito librado nas azas do sentimento parece 'num imaginario antegôsto devassar as delícias do ceu, atraves do diaphano sendal, interposto aos olhos do corpo.
Mas a alma d'aquelle homem errava longe da estancia das apraziveis chimeras, que essa hora inspira. Seu profundo scismar encobria alguma cousa de doloroso, cujo fel reçumava nas encovadas faces, quer entre esgares de desespêro, quer entre abatimentos de tristeza.
Ás vezes entreabriam-lhe os labios palavras sem apparente nexo, mas que correspondiam certamente a uma ordem de ideias que se formulavam em seu espirito.
O frade no remanso da cella via sua imaginação pairar entre dois abysmos, ambos medonhos e egualmente insondaveis -- o passado e o futuro.
Para que melhor se possa avaliar essa penosa situação, erga-se uma dobra do veu que esconde a mysteriosa vida d'aquelle homem.
Trinta e oito annos antes sahia da habitação do capitão mor de uma pequena aldeia da Beira um explendido cortejo ao som dos festivos repiques da egreja parochial. Quanto de mais fidalgo e luzido tinha a terra e suas proximidades havia-se reunido em casa do capitão mor e acompanhava-o pouco depois no caminho da egreja.
Celebrava-se o baptisado do seu quarto filho.
O capitão mor era geralmente bemquisto, porque, por sua prudencia, conseguíra extinguir velhos odios, que a intriga e a inveja fazem nascer entre as familias de uma terra pequena. Porisso todos se apressavam em felicital-o pela nova benção com que a Deus aprouvera alegrar os dias da velhice do honrado fidalgo.
Era padrinho o mais nobre e mais rico morgado d'aquelles sitios, Manuel Alvarenga de Menezes Castro Castel-Branco; madrinha, segundo um devoto uso da familia, Nossa Senhora da Piedade. Tocava pela madrinha, levando a sua coroa, uma tia materna do infante.
O morgado Alvarenga, para mostrar com quanta consideração queria honrar a festa do capitão mor, levava em sua companhia um afilhado, cujo pae ninguem conhecia, muito embora o nome da mãe andasse de bôcca em bôcca.
Era o de uma antiga criada grave do morgado, a sr.ª Thomasia Maria, de quem diziam os da terra vivia em peccado mortal por causa dos desgôstos com que abríra a sepultura á mulher do morgado, logo ao fim do primeiro anno de casados.
Não sei se por insinuações da mãe, se por meias palavras da criadagem, o menino Francisco, que teria então os seus nove annos, adquiríra o mau costume de chamar pae ao morgado.
Quando terceira pessoa assistia a éstas expansões de amor filial, Alvarenga parecia engulir em sêcco a pillula da paternidade com que o afilhado lhe atirava á ma cara. Mas como então se usava fazer á fidalguia as concessões que hoje se fazem ao dinheiro, os circumstantes riam da pirraça do Francisquinho, mas tractavam de se mostrar bem distrahidos, fingindo não terem percebido as ingenuas indiscrições do menino. Uns tossiam, outros voltavam a cara para o lado; e com isto lucrava a moral e livravam o morgado de apuros.
Nem outra cousa permittiam os bons costumes de nossos avós. Quando não havia remedio senão alargar as ensanchas da moral, não se acceitava o facto reprehensivel, simulava-se desconhecel-o.
Quando chegou a vez de dar nome ao recem-christão, é que foi o bom e o bonito. Os compadres tão polidos e cortezes quizeram ser, que se tornaram enfadonhos como dois grandes teimosos que eram. Cada qual estava na sua, e não havia fôrças humanas que acabassem com a birra. O morgado queria que o nome da criança fôsse da escolha do pae; o capitão mor, pela sua parte, batia fe que em tal materia era o padrinho, e ninguem mais, o competente.
O vigario, que soffria de ininterrompida debilidade de estomago, tinha o vezo de encarar todas as questões á luz da gastronomia, de maneira que em tantas delongas e cerimonias so viu uma falta de attenção para com a arte culinaria. Na pituitaria ja lhe tresandava o esturro de certo pato com arroz, que em vida commettêra o attentado de saltar da quinta do capitão mor para depennar as folhas da couve tronchuda do passal da parochia, que, como terreno abençoado que era, as produzia capazes de fazerem crescer a agua na bôcca ao mais desalmado anti-roedor de hortaliças da freguezia.
O reverendo propoz um alvitre: abrir-se a folhinha, e sujeitar-se a questão ao sancto do dia.
Era S. Marcos; e porisso ficou chamando-se Marcos o filho do capitão mor. O pae, que ja o tinha destinado ao culto divino, tomou como feliz auspicio ter cahido em sorte ao filho patrono de tal ordem.
O resto do dia foi passado entre festas e folias, em que nada mais houve de notavel alem da cabal vingança que o padre tomou do pato sacrilego; vingança que ia tomando as proporções de um verdadeiro raio do Vaticano? pois? alem de recahir sôbre cada uma das partes do offensor das couves ecclesiasticas, ameaçava continuar em sua progenie até á setima geração. Na embriaguez da carnificina o padre até um peru recheado e uns inoffensivos pombos com ervilhas chegou a confundir com a raça delinquente.
A noite não foi somenos do dia. O barbeiro veio com a sua guitarra e cantou ao som d'ella umas coplas em honra da familia do capitão mor, em que tudo, musica e poesia, era cousa da sua lavra. As quadras, que alludem ao menino, aqui vão, em deferencia ao heroe da festa:
As graças e os amores
Lhe teceram para a frente
A coroa, que de mil flores
Lhe deu Jove de presente.
Honrado como seu pae,
Seja dicto sem favor,
Ficarão bem nossos filhos
Com um tal capitão mor.
Com tantos applausos foram recebidas as cantigas do mestre barbeiro, que, uma vez aventurado no campo do improviso, ia correndo pelos beiços de toda a companhia com o mel de seus versos. Todos ficaram contentes, e se alguem alli tivesse ouvido fallar em Pindaro, não teria dúvida em affirmar que o cantor grego não levava a melhor ao mestre. So o boticario -- creio que foi o boticario -- protestou contra a ignorancia dos circumstantes, jurando que não se lembrava bem em que passagem, mas estava certo de ter lido aquillo mesmo nos Lusiadas. Pelo menos as graças, os amores e o Jove, isso é que elle apostava com quem quizesse que o ia mostrar impresso 'num alfarrabio que tinha em casa. É de crer que na insistencia do libellista entrasse uma pontinha de despeito por o barbeiro, quando substituia o medico, usar mais da lanceta do que de receitas para a botica.
Um anno depois retribuia o morgado festa por festa ao capitão mor. A sr.ª Thomasia Maria tinha-se lembrado, embora um pouco tarde, de editorar em dois volumes, e ainda sob a responsabilidade de seu amo, as fraquezas de sua alma apaixonada.
E assim teve o Francisquinho quem lhe disputasse os carinhos semipaternaes do morgado.
Foi o capitão mor o padrinho da menina, a quem junto á pia baptismal se deu o nome de Effigenia. Se a cerimonia fôra a repetição da que houvera um anno antes, os incidentes tambem pouco variaram. A mesma etiqueta entre os compadres, o mesmo expediente do calendario, o mesmo appetite do padre, e até a mesma guitarra do mestre. As coplas é que não eram as mesmas, assim como tambem o não foi a ovação ao recitante. Talvez porque a reunião carecia de mulheres, e a poesia como o fogo sagrado, apaga-se, ausente a vestal que o alimenta.
E vão la adormecer-se á sombra da gloria no regaço da opinião pública!
Aquella guitarra, que tão bem se casava ao cantar do barbeiro, teve 'nessa noite de se sujeitar a repetir musicas de minuetes para que o menino Francisco divertisse a companhia.
Os annos correram, e o morgado, que ja ia envelhecendo, pensou em cuidar seriamente do futuro de seus afilhados e na continuação do vínculo. Para isso partiu para Lisboa com o fim de obter licença régia para a perfilhação dos filhos da sua criada.
O morgado Alvarenga, sonhando um futuro brilhante para seu successor, levara-o comsigo para a capital com vistas de lhe assentar praça como cadete 'num regimento de cavallaria, visto ser o unico modo de vida para que o Francisquinho mostrava uma decidida vocação. Aos cuidados da mãe entregou Effigenia, mas era certo que ésta fazia mais assistencia em casa do capitão mor do que na propria, attrahida pelas caricias da familia do honrado velho e sobretudo pela companhia de Marcos nos folguedos proprios de sua edade.
Sobreveio por este tempo a primeira invasão franceza. A estrella do novo Attila, que pesou sôbre os destinos dos povos como o flagello de Deus, caminhava para o seu occaso, mas estava escripto que inda a nossa pobre terra sería assolada pelas hostes d'esse homem, a quem todo o mundo, aferido pela sua ambição, parecia pequeno. Portugal estava ameaçado como a Polonia de ser retalhado e devorado pelos que vinham em seu territorio disputar rivalidades a que era extranho.
Como é bem sabido, D. João VI, mal viu toldar-se a atmosphera politica, fez-se de vela para o Brazil, abandonando aos inimigos o paiz, que outr'ora seus antepassados ensinaram a tornar-se respeitado e temido até nos proprios revezes.
Acompanhou-o 'nessa covarde e impolitica retirada grande parte da nobreza, que arrastava pela côrte a libré do servilismo. O povo ficou so em campo a pugnar pela liberdade que era de todos, e pelos foros e regalias que eram d'esses, que nem sequer ousavam defendel-as!
Alvarenga seguiu a torrente dos emigrados. Ja com os pes na embarcação, apenas se lembrou de sua filha para a entregar á vigilancia do capitão mor, que desde então a olhou quasi como filha. Quasi, porque era ainda mais estremecida.
Marcos e Effigenia eram como se fôssem irmãos, mas d'esses poucos que o sabem ser. Irmãos por tudo e em tudo, nos gostos, no genio, nos folguedos e nos fugitivos pesares da primeira quadra da vida.
Se a familia do capitão tivesse um pouco mais de experiencia do coração humano, não lhe sería difficil prever aonde iria parar a íntima alliança das duas creanças. Hoje, qualquer rapaz de eschola o iria prophetisar, e nem porisso julgaria ter mettido uma lança em Africa. Mas então!... Fôssem la dizer ao capitão que os dois creançolas, como lhes chamava, ja principiavam a soletrar no prologo de um violento amor, e veriam com que estrondosa gargalhada o bom do velho acolhêra a prophecia.
Não se infira d'aqui que nos tempos antigos eram mais sinceros os homens, e mais puros os costumes. Protesto contra a illação. Deixemos a velhos caturras a consolação de so julgarem bom o seu tempo. Não tenhamos nós saudades do que foi, porque nada perdemos em vir mais tarde. Eu não creio o seculo actual mais desmoralisado; menos ignorante ou menos hypocrita, isso sim. Existiram sempre a maldade, o vício e a corrupção, como hoje existem, como hão de existir em quanto o homem não for anjo. Os costumes não se têm depravado, e se alguma differença ha, é para melhor. Mas d'antes fechavam-se os olhos obstinados para se não ver o mal, e 'nisto é que consistia a virtude. Cobriam-se de rosas as miserias da realidade, involvia-se o putrido esqueleto em luzentes ouropeis, e depois negava-se-lhes a podridão. O proceder de hoje é menos agradavel, porém mais leal. Notam-se as veredas que vão dar ao precipicio, evite-as quem não quizer cahir 'nelle. O que succumbe póde allegar tudo, menos ignorancia.
Continuava pois o bom do velho
«'Naquelle engano d'alma ledo e cego
Que a fortuna não deixa durar muito»
como diz o nosso epico em circumstancias muito outras.
So um capitão mor é que poderia ter tanto afêrro ás suas opiniões, que tarde ou cedo não visse que se enganava redondamente.
Crescendo Marcos e Effigenia, ia crescendo com a
edade a sympathia que os ligava. Desejavam-se, queriam-se, mas não sabiam que nome tinha aquelle affecto que sentiam. Amor de irmãos, era o que o capitão lhe dava; mas sería so isso? Um acaso veio esclarecel-os sôbre esse ponto.
Marcos completára dezoito annos. Depois do jantar, seu pae chamou-o á parte, e, assumindo um ar grave e solemne, disse-lhe:
-- Meu filho, estás um homem, e é preciso tomar modo de vida. Teu irmão mais velho está casado, e em breve sera pae. Quando eu te faltar, não deves ir roubar-lhe o pão de seus filhos. Teus dois outros irmãos ja entraram para o convento. Elles bem sabiam que era o melhor estado que poderiam tomar. Para essa vida te destinei desde que nasceste, e porisso creio que ja deves estar preparado. Como bom pae, que me prézo de ser, não pretendo contrariar a tua vontade. Dou-te um mez para escolheres em que ordem queres tomar hábito.
-- Ja escolhi, meu pae.
-- Ve la. É melhor pensar bem em quanto é tempo. Isso custa menos do que arrependermo-nos depois.
-- Não me arrependerei nunca.
-- Está bom: qual preferes?
-- Nenhuma. Não quero ser frade.
-- Marcos, tenho pôder para te obrigar, não quero; prefiro convencer-te. Mas desde ja te previno que não tens outro remédio.
-- O pae póde fazer o que quizer, porque é meu pae, mas eu...
-- Mas tu, que?...
-- Nada. Posso sacrificar-me e... morrer!
-- Creança! Ja viste morrer alguem, porque foi para um convento?
E o velho começou a demonstrar a excellencia da vida monastica, como a poderia encarar um bom pae de familia, isto é, ter almôço, jantar e ceia sem se incommodar em saber d'onde lhe vinha; vestir e calçar sem trabalhar: ser bemquisto e respeitado por soletrar um quasi nada de latim e comer doce em casa das beatas. Depois adduziu outros argumentos não menos convincentes. Os haveres da casa mal chegavam para os deixar a todos 'numa honrada independencia, e ainda que chegassem, nunca seriam de mais para sustentar os brios da familia e o lustre do nome dos seus avós. Era pois necessario que todos os irmãos se defraudassem em favor de um, do mesmo que pelo simples acaso do nascimento lhes havia extorquido parte do patrimonio que consistia em vinculos.
Raciocinava-se assim 'naquelle tempo. Contanto que o primogenito de uma casa nobre nadasse na opulencia, pouco importava que os outros filhos definhassem na penuria. Mas o capitão mor, que timbrava de bom pae, preferia atulhar os claustros com a prole immolada ás exigências da sua nobreza.
Marcos escutára todo o longo discorrer de seu pae sem entender uma palavra. O que entendeu, porque alguma cousa, que lhe confrangia o peito em doloroso latejar, lh'o repetia no íntimo da alma, é que era muito desgraçado, e que não podia, sem tremer pelo futuro, interpor entre elle e a companheira de sua infancia os austeros votos de levita.
O capitão, traduzindo o silencio de seu filho por signal certo de acquiescencia, continuou:
-- Inda bem que tomaste juizo! Anda, vae dar parte a tua mãe de que não has de contrariar os desejos de nós ambos.
-- E Effigenia, meu pae? perguntou o mancebo, como se do que lhe iam responder pendesse toda a sua resolução. Effigenia tambem sera freira?
-- Bem sabes que não mando nella. Seu pae morreu logo que chegou ao Brazil, é verdade, mas la tem o irmão a quem deve obedecer. No emtanto creio que em tal não pensa.
-- 'Nesse caso, meu pae, eu não quero ser frade.
-- Que é ca não quero?! Ha de querer, porque o mando eu. E, visto que não é ao bem, sera ao mal. Vou ja escrever a seu tio que conte no seu convento com um noviço de mais.
Pela insistencia com que Marcos continuou a fallar de Effigenia pôde o capitão conhecer quão superficialmente andára na avaliação do sentimento que dominava aquelles dois corações, que, sem elles mesmo o saberem, ardiam nas chammas de um entranhavel amor. Entendeu dever lançar mão de um expediente de capitão mor. A Effigenia mandou-a para casa de sua mãe, ao filho fechou-o 'num quarto.
Não é na solidão que se curam os males do coração. Pelo contrário, aggravam-se. O amor é como a polvora: soltem-no, que se desfaz em fumo; comprimam-no, têm explosão.
Marcos, para obter a liberdade, fingiu estar resolvido a seguir a vida que seu pae lhe destinára; Effigenia, pela sua parte, protestava não ter em mais apreço Marcos do que seu irmão Francisco. Mas isto tudo não obstava a que a paixão crescesse com os obstaculos e na proporção dos sacrificios.
Todas as noites Marcos descia pela janella do seu quarto, e ia passar ao pe da amiga de sua alma duas ou tres horas, que lhe iam velozes como o pensamento, 'naquelles doces colloquios, 'naquelles mil nadas, que são para os amantes a suprema expressão da felicidade.
Tinham decorrido alguns mezes quando o capitão chamou seu filho, e lhe mandou que se preparasse para partir á primeira ordem. Seu tio, que occupava cadeira abbacial no capítulo da ordem de Cister, devia chegar 'nesse mesmo dia com o fim de o levar em sua companhia para lhe dar o hábito na ordem. Um raio que lhe cahisse aos pés não o abalaria tanto como ésta notícia inesperada! Seu pae julgou cumprir sagrado dever, aconselhando-lhe perseverança na louvavel resolução que havia tomado; o filho julgou cumprir o seu, não o escutando. No que elle pensava era em como esconjurar a tempestade que estava imminente.
Chegou o abbade ainda a horas de jantar, e de caminho não quiz desmentir a reputação da assalvajada glotonice da sua communidade. O prior da terra, que andava ainda na desforra contra os patos do capitão, abateu a grimpa em frente da gula feita homem. É o mais que se póde dizer para quem não sabe o que é um estomago educado com a tremenda: mas a phrase não reproduz toda a immensidade da ideia.
Veio a ceia, que foi o brilhante epilogo da epopeia gastronomica d'aquelle dia. Os heroes de Homero, sentando-se em volta de um boi inteiro, confrontados com o frade pareceriam damas de certa eschola vaporosa, que palitam os dentes depois de comerem uma ginja de calda.
No fim da refeição, quando ja se dispunha a ir para o quarto que lhe fôra destinado, o abbade recommendou que lhe tivessem prompto o almôço logo pela manhan, porque os negocios da communidade não permittiam que se demorasse por mais tempo.
-- Kapaz, vae-te deitar, que temos de partir cedo, accrescentou elle, dirigindo-se para o sobrinho. Deus lhes dê a todos boas noites. É verdade, mana, não se esqueça de ter prompto o almôço.
Cada um foi para o seu quarto, seguindo o exemplo do illustre filho de S. Bernardo.
Ao romper do sol ja o bom do abbade estava a pe a gritar pelo almoço e pelo sobrinho. O almôço appareceu, mas de Marcos é que ninguem sabía.
O seu quarto estava deserto; no leito nem vestigios sequer de la se ter deitado alguem. A janella aberta, de que pendia uma corda, mostrava por onde se evadíra o filho desobediente. Na estrebaria a falta da possante mula do abbade, que era a mais andadeira da manada, trahia o intento de ser longa a direcção do fugitivo.
O abbade almoçou so, e nem porisso sobrou muito. Com o que elle menos se resignou foi com a falta da valente cavalgadura; mas não teve outro remedio senão acceitar a egua que o capitão lhe dava em troca. Como negocios urgentes reclamavam sua presença no convento, partiu o abbade, deixando a desolada familia prêsa da mais viva inquietação.
-- Eis ahi em que dão as bondades de meu irmão! repetia elle, comsigo mesmo, bifurcando-se na albarda da perola das bestas do capitão mor. Eis ahi o que lucrou. Elle está sem o filho e eu sem o sobrinho e sem a mula! Tornem-me a metter 'noutra alhada, e verão se péga a labia!...
VIII
OS DOIS GUMES DO DILEMMA
A fuga de Marcos tornou-se dentro de pouco tempo notoria por todo o povoado. Cada qual, querendo obsequiar o pae, tractava de esquadrinhar a paragem do fugitivo; e tomavam-se as providencias necessarias para que o filho prodigo voltasse aos lares paternos, antes que maior desgraça ferisse a malfadada familia no que de mais caro tinha.
O desventurado velho definhava de dia para dia. A medicina confessava-se impotente contra aquelle mal occulto, que ia minando uma existencia, ja de si tão cortada, de desgôstos. A solicitude do medico e os desvelos dos parentes so obtinham procrastinar seu proximo e inevitavel termo.
Uma noite estavam todos em volta do leito do infermo, quando se sentiu bater á porta apressadamente. O velho, sempre attento ao menor ruido que vinha da rua, estremeceu com tal violencia, que o leito parecia que estalava por todas as juncturas, deixando escapar um aspero rangido. Todos julgaram ser chegada a hora do passamento, annunciada ja pelas convulsões da derradeira agonia.
O capitão, porém, firmando-se nos tremulos braços, sentara-se, ou, para melhor dizer, encostára a parte superior do corpo á cabeceira do leito. Seus olhos, ainda ha pouco fixos e embaciados, brilhavam com subito fulgor, e as cadavericas faces retingiram-se-lhe de uma quasi côr de rosa, emprestada talvez pela última gotta de sangue descoagulado.
-- É elle! murmurava o infermo com a voz entrecortada pelo alvoroço. Diz-me o coração que me não engano. Alguma cousa havia ca dentro a prophetisar-m'o! Não ouviram? Eu senti sua voz... chamava por mim... Aqui estou, Marcos... meu filho!... Ah! que ja te não vejo!
E o pobre velho, fraco para tamanha emoção, deixou pender a fronte sôbre o peito; seus braços cessaram de o apoiar, e o corpo cahiu hirto e immovel como se o espirito o tivesse abandonado 'neste ultimo esforço.
O infermo tornou a abrir os olhos apos alguns instantes.
-- Marcos! continuou elle com grande difficuldade, e parando para articular cada palavra. Ainda aqui não está! Não o vejo... não. Porque m'o não trazem aqui... ao pe de mim? Perdoei-lhe... que ha de fazer um pae senão perdoar... Mas porque m'o escondem? E meu filho... tragam-me meu filho!
Era extremamente difficil a posição de todos os que rodeavam o leito do capitão. Uma palavra so podia cortar o derradeiro fio de sua attribulada existencia. Mas quem havia de querer enganal-o com uma esperança, que era, que não podia deixar de ser uma mentíra, e mentíra insustentavel dentro de alguns momentos? Não se tinha ja tantas vezes enganado o coração do desditoso pae? Porque havia d'esta vez acertar com a verdade?
Mas a impaciencia dos nocturnos visitantes é que não parecia disposta a consentir se prolongasse por mais tempo a incerteza que tinha a todos suspensos e indecisos.
Novo estrondo retumbou por toda a casa. Continuavam a bater á porta, e d'esta vez os golpes eram mais precipitados e com maior fracasso.
Alguem desceu para a abrir. Ouviu-se um susurro de vozes na rua e logo apos um grito agudissimo nos ultimos degraus da escada. A casa estava invadida.
O velho pôde ainda reunir fôrças para se tornar a recostar na cabeceira do leito. Seus olhos estavam fitos na porta da entrada. O fecho ergueu-se. Marcos, confuso, enleiado e ao mesmo tempo sobresaltado pelo espectaculo, que feriu seus olhos 'num primeiro relance, appareceu entre os dois batentes da porta. O rosto de envergonhado ja o não despegava do chão.
Houve alguns instantes de silencio, em que se sentiu o bater do coração no peito de todos os que assistiam a esta scena, cujo desfecho ainda era imprevisto. Até a respiração parecia ter sido suffocada pela anciedade.
-- Marcos, onde estás tu? disse por fim o infermo.
O mancebo correu para o leito, ajoelhou junto d'elle e apertou contra o seio a mão que seu pae lhe estendia, ora osculando-a, ora regando-a com o pranto do arrependimento.
-- Filho, filho, que me ias matando, eis-te finalmente! continuou o velho a rir e a chorar de alegria. Onde está tua mãe, aquella martyr e sancta, que tanto me tem alliviado do pêso da minha cruz? Chamem-na tambem para aqui. Julgam ser eu so que soffria?
Um ruido de passos tornou a ouvir-se na escada, e á porta appareceram dois milicianos, trazendo a pobre mãe, que desmaiára quando, tendo descido para ir ver quem batia tão rudemente ás horas mortas da noite, reconhecêra seu filho rodeado por uma escolta de soldados, como se fôra um criminoso. Foi então que, perdendo os sentidos, arrancou do peito aquelle agudo grito, que partíra da escada.
Ia de mal para peior a situação dos circumstantes. Ainda sob a pressão de um sobresalto, vinha um de novo acommettel-os. O infermo, cuja vista não podia distinguir os objectos, perguntava que era aquelle ruido e pedia que lhe chamassem sua mulher. Dever-se-ia poupar-lhe a nova fatal? E 'neste caso como explicar a ausencia de sua espôsa?
Parecia que o recinto d'aquelle quarto se convertêra 'numa roda de Saneta Catharina, onde, para qualquer lado que se voltassem, havia logo a ponta de uma navalha a dilacerar-lhes as entranhas. Por fortuna o capitão mor não insistiu. Havia um unico ponto fixo em volta do qual giravam todas as suas ideias; tudo que não fôsse lembrar-se que tinha alli, ao pe de si, o filho que lhe cavára a sepultura, e que não obstante isso e talvez por isso mesmo estremecia de cada vez mais; tudo que directamente não dissesse respeito a Marcos era para elle um simples incidente.
Á fôrça de cuidados a pobre senhora recuperou os sentidos e foi para entre o marido e o filho receber o seu quinhão na fortuna, ella que tamanho o recebêra na adversidade.
-- Sr. capitão mor, disse um dos soldados, adiantando-se alguns passos para o leito do infermo.
-- Quem me chama?
-- Sou eu, um dos soldados que acompanharam o menino, e que vinha pedir as suas ordens.
-- Soldados! Que quer dizer isto, Marcos?
-- Perdoe-me meu pae. Eu vou contar-lhe tudo...
E o mancebo começou por narrar a sua historia durante a ausencia da casa de seu pae. Quando a abandonou, a tenção que levava era ir sentar praça. Dirigiu-se a Viseu e foi apresentar-se á auctoridade militar. Mas como ésta soubesse sua filiação, o commandante, que era íntimo amigo do capitão mor, exigiu-lhe auctorisação paterna por escripto, e, como Marcos a não tivesse, aproveitou o ensejo da marcha de uma escolta para aquelles sitios para o mandar com ella.
-- Muito bem, continuou o velho logo que seu filho cessou de fallar. Levem esses bons camaradas para a cozinha, que hão de vir cansados, e dêem-lhe o que precisarem.
Os soldados sahiram, acompanhados por uma velha criada que lhes alumiava.
O velho voltou-se para Marcos.
-- Não esperava isto de ti, meu filho. Julguei sempre que o arrependimento te faria voltar á casa de teu pae, e não a fôrça! Isso não quero eu. Acaba a tua obra, eu pouco tempo ja te posso estorvar... vae, vae com esses que te trouxeram...
E o infermo cahiu de novo sem dar acôrdo de si.
Um mez levou entre a vida e a morte. Tantos abalos, vindos de chofre, tinham arrastado o velho aos primeiros degraus do tumulo. Nem o delirio nem a febre o abandonaram durante aquelle periodo de longo soffrimento. Mas Deus queria ainda reservar aquelle coração, tão retalhado de dores, para um novo golpe. O medico principiou a dar algumas esperanças.
Todos redobraram de cuidados; e as melhoras foram progredindo. O velho ja começava a levantar-se do leito para se sentar 'numa poltrona, que era arrastada para um ou outro lado da casa segundo os caprichos do doente.
Marcos tudo sacrificára a seu pae menos o amor de Effigenia. Desde que a sua assiduidade junto ao leito do infermo se tornou menos necessaria, o nosso joven enamorado recomeçou com as nocturnas digressões a casa d'aquella que nunca lhe sahia da lembrança.
Uma noite, conforme o costume, tinha Marcos escalado o muro do quintal do morgado Alvarenga, e fora-se encontrar com Effigenia, que ja o esperava no caramanchão de florídas trepadeiras, que havia alli no jardim, logo ao sahir de casa.
Estava uma noite linda, como o são as noites da nossa terra, quando a lua brilha no ceu entre o cortejo de estrellas; que, para quem ja de si é formosa, um quasi nada de compostura basta para enlevar os olhos e a alma logo apos, que, coitada, não sabe resistir quando jazem rendidos os primeiros.
-- Vieste hoje tão tarde! disse Effigenia, correndo ao encontro de Marcos.
-- So agora pude sahir. Meu pae esteve mais inquieto no princípio da noite, de maneira que tarde se accommodaram em casa.
-- Julguei que ja não vinhas...
-- Não vir eu, quando te sabía a minha espera!
-- Talvez te tivesses esquecido.
-- Oh! que ainda não sabes como te amo! Nem um momento sequer, nem um momento so, a tua imagem deixa de illuminar a minha alma.
-- A mãe diz que os homens são tão maus!...
-- E tu chegaste a desconfiar de mim?
-- -Não, porque te amo.
-- Effigenia, repete-me outra e outra, mil vezes, essas magicas palavras, que, de tão desgraçado que sou, têm o condão de me fazerem crer na felicidade.
-- Não digo... não as mereces!
-- -Ma! es muito ma!...
-- E tu, que ja me não queres, que seras tu?
-- Eu... não te querer?!...
-- Pelo menos ainda hoje m'o não disseste.
-- Tontinha! Não sabes que tenho ciumes do proprio ar que te vae segredar aos ouvidos as palavras que so de minha alma devem transbordar no teu coração? Mas ja que assim o queres, serão meus labios, mas so elles, que t'as digam.
E o mancebo achegou tanto o rosto da fronte de Effigenia, que seus labios lhe roçaram ao de leve como o zephiro nas petalas da flor durante as calmosas noites de estio.
A donzella, toda incendida em pejo, furtou o corpo aos braços que a estreitavam contra o seio de seu amante. Houve um famoso poeta que cantou o primeiro beijo de amor. Para revelar as delícias d'esse antegosto do paraiso, era mister possuir um grande talento e um grande coração como Byron. Que hei de eu dizer, que ao menos dê um pallido reflexo da realidade? Que meu silencio faça com que cada um, engolfando-se em saudosas recordações, avalie a embriaguez com que as almas dos nossos dois amantes se tinham fundido 'numa so, 'neste enlace todo espiritual, todo amor e todo carinho.
O gorgeio das aves ja annunciava o proximo raiar da alvorada. Era tempo de Marcos voltar para casa.
Então repararam no estranho rumor que se elevava de todos os lados da povoação. A aldeia estava sendo saqueada por uma fôrça do exército francez; que, depois da tomada de Almeida, se estendêra pelas terras limitrophes para reconhecer... a fazenda portugueza. Tinham chegado pouco antes, marchando em silencio, como convictos do papel que desempenhavam. O primeiro, que viu sua casa aggredida, lançou o alarma pela aldeia.
Na mente de todos era ainda viva a lembrança dos excessos practicados pelos francezes sob o commando de Junot e Soult para se não temer a approximação dos soldados de Massena. Porisso imagine cada um o terror, que se apossou dos pacificos aldeões que fugiam, soltando afflictivos clamores.
Effigenia, toda chorosa, lançou- se nos braços de Marcos, pedindo que não a abandonasse e ao mesmo tempo se não expozesse a ser maltractado pela soldadesca. Marcos esqueceu-se de que um dever sagrado o chamava junto de seu pae, e, guiado por sua amante, penetrou em casa de Alvarenga, onde permaneceu até á noite seguinte.
Ninguem sabe aonde pode levar a primeira falta. É um precipicio que de vergonha em vergonha, de infamia em infamia vae dar ao crime. Ai! do que á beira do abysmo sente fugir-lhe a terra sob os pes! Quem poderá mostrar-lhe a medonha profundidade, para que evite as veredas que a elle conduzem? Quem sustel-o no despenhadeiro? A experiencia vem com a edade, o remorso com o crime. A maior parte so depois da quéda sabem a que funestas consequências arrasta a logica dos factos.
Os umbraes d'aquella casa tinham de ser para elle os umbraes do inferno de toda a sua vida. Marcos ia tornar-se um homem invilecido a seus proprios olhos. O anjo da innocencia de Effigenia velára o rosto em suas candidas azas e abandonara-a para sempre.
Os francezes haviam-se retirado pouco depois do meio dia, deixando como recordação da sua passagem as capoeiras completamente desprovidas, e levando o que de mais precioso continham algumas casas. Apesar da retirada dos inimigos, Marcos não podia sahir do seu esconderijo, sem que a reputação de Effigenia ficasse á mercê dos maldizentes. Teve de esperar que se cerrassem as trevas para abandonar o tecto hospitaleiro, que acabava de polluir com o mais nefando de todos os abusos.
Ralado de remorsos caminhava Marcos para a habitação de seu pae. Logo que se viu longe de Effigenia a consciencia se levantou contra a vilania que practicára.
Na vida de Marcos as horas de alegria tinham-se evaporado em delícias, e por fezes depositaram em sua alma o pezar e o arrependimento.
Ao atravessar o limiar da morada do honrado velho um presentimento doloroso veio aggravar-lhe sua penosa situação. A ausencia de seu filho, o susto e a indignação de ver a casa assaltada pelos inimigos do seu paiz não seriam golpes bastantes para fazerem estalar o tenue fio a que estava suspensa aquella vida tão trabalhada de desgôstos?
O mancebo parou no limiar, indeciso se entraria. Uma nova ordem de ideias passou ante seu espirito. Como explicar a sua desapparição da casa paterna? A que attribuir a ausencia de todo um dia? Occultal-a era impossivel. Explical-a, como? Que pretexto, que fim, 'numa palavra, que desculpa adduzir? Se a verdade era impossivel, a mentíra era insustentavel.
Um gemido de agonia soou em seus ouvidos. Partia do quarto de seu pae. Aquelle accento doloroso era para elle uma exprobração. Todas as dores que se resumiam 'nesse arranco d'alma, pareciam-lhe outras tantas feridas abertas por elle no coração do agonisante.
Marcos subiu a escada, como subiria a um pelourinho infamante; porém a consciencia arrastava-o para junto de sua víctima.
O capitão mor agonisava. No estado melindroso da sua convalescença o mínimo desgôsto era bastante para abrir-lhe a sepultura. A desapparição do filho e o saque de sua casa eram golpes demasiado fortes para que não succumbisse a elles.
Quando o mancebo entrou, o capitão mor pronunciava seu nome.
-- Marcos! dizia o moribundo, onde está meu filho?
-- Aqui, meu pae.
-- Ouve. Chega-te perto de mim, que ja me custa fallar. Manda sahir todos.
A familia retirou-se, assim que Marcos lhe transmittiu a ordem do infermo.
-- Marcos, continuou o capitão desde que serviu a sos com seu filho, Deus, quando commettemos uma grave falta, faz nossos filhos os instrumentos da sua justiça para que, vindo a punição da mão dos seres que adorâmos, se nos torne mais penosa. Eu tenho-te feito infeliz, mas tu tens sido implacavel para comigo. Não sabías que me matavas, não era assim?
-- Meu pae! balbuciou Marcos.
-- A vida foge-me. Oh! como eu quizera retardar a hora fatal para retardar tambem a vergonhosa revelação que hei mister fazer-te. Ouve-me. Ai! meu Deus, falta-me a coragem. Ves, Marcos? as faces tingem-se-me de vergonha!...
-- Que terrivel delirio!...
-- Não é delirio, é a verdade. Effigenia não deve ser para ti mais que uma irman!...
E o capitão mor narrou então a seu filho a falta que tinha attribulado o ultimo quartel da sua vida. A criada de Alvarenga, que tanto fizera soffrer sua ama por lhe roubar o affecto de seu marido, não tardou em atraiçoal-o sempre que se offerecia occasião. O capitão, que, por ser um dos intimos de Alvarenga, deveria, logo que não podesse atalhal-as, respeitar as fraquezas de seu amigo, foi um dos que mais depressa cedeu aos attractivos de Thomasia. Effigenia era o fructo de seus clandestinos amores.
O morgado morrêra ignorando a traição do amigo, mas era o filho d'este amigo, quem punia agora sua perfidia. Julgou elle com a pedra do tumulo de Alvarenga sellar o segredo da sua vergonha; mas o amor de Marcos obrigava-o, por suas mãos, a arrastar no lodo da ignominia suas cans respeitadas. Deve ser grande a vergonha do pae que se exauctora perante seu filho!
Marcos parecia-lhe tudo um sonho. Aquelle ancião venerando, diante de quem tremia de respeito e admiração, poderia descer tanto do logar a que seu respeito o elevára? Aquelle coração leal poderia atraiçoar um amigo? Aquelle modêlo de amor conjugal poderia atraiçoar sua espôsa? Aquelle pae extremoso poderia consentir que outrem lhe usurpasse o amor de sua filha?
-- Marcos, não desprezes teu pae. Deus que pese as suas iniquidades e o seu castigo; não aggraves tu o peso de suas attribulações. O teu amor foi a maldição de Deus sôbre minha cabeça. Isaac, resigna-te ao sacrificio que teu pae te ordena. Foge a essa paixão incestuosa.
-- Oh! meu pae, meu pae! Agora so resta a expiação.
-- Ah!
E o velho deixou escapar de seu coração um grito penetrante como sua dor. A familia, que estava na sala proxima, correu ao som d'elle. O capitão jazia na eternidade. Marcos, desfallecido, cahíra junto ao cadaver de seu pae.
'Nesse mesmo dia Marcos desappareceu de casa. Um mez depois tomava o hábito de noviço, e, passado um anno, professava a austera regra de S. Francisco.
Quando se recolhia á cella depois da profissão, o porteiro apresentou-lhe uma carta, que vinha da sua terra.
Era de Effigenia.
A menina pedia-lhe que lavasse a deshonra que lhe arremessára ás faces. Ia ser mãe, e pedia um pae para sua filha.
Mal sabía ella que o amor que invocava era um incesto desde seu comêço, e desde poucos instantes um sacrilegio.
IX
O HÁBITO NÃO FAZ O MONGE
Não é leal conselheiro o desespêro. Andaria avisado quem se abstivesse de abraçar resoluções que não sabe se a reflexão sanccionará. Pelo menos fugir das que tragam um effeito mais que momentaneo. Obrar de 01outro modo é tomar aos hombros o rochedo de Sysipho, e vergar toda a vida sob o pêso das irrevogaveis consequencias de um acto, practicado sem consciencia nem vontade. Fructo não amadurecido tem sempre seus amargos, e ás vezes causa damno.
Marcos não nascêra para a vida sedentaria do claustro. Os impetos do coração não os pôde reprimir logo que o tempo sanou as feridas com que a dor o entorpecêra. Cataleptico do espirito, o frade renascia para o mundo, quando ja, amortalhado em grosseira estamenha, jazia soterrado na solidão de uma cella. Era uma nova fórma do supplício de Tantalo. Devorava-o a sêde dos prazeres; a taça; por onde se libavam, circulava de conviva para conviva no festim da vida, mas nenhuma voz o chamava, nenhum braço lh'a estendia; e se, apesar d'isso, ia para a approximar dos labios, uma voz lhe gritava «não bebas». Brado inutil... a taça estava exhausta para elle!
Marcos de monge so tinha o hábito e o nome. Com a humildade cenobitica é que se não podia conformar. Ambicionava as primeiras dignidades da ordem, como degrau para a purpura dos principes da egreja. Foi assim que chegou até a abençoar a hora em que se vestíra de burel, e cingíra a cinta com uma corda de esparto. Nenhuma vida 'naquelle tempo conduzia mais depressa ao fastigio das honras e do podêr. Inda não se tinha inventado o que hoje se diz popularidade de campanario; era um achaque que estava reservado para a nossa epocha de chocho systema representativo.
A revolução de 1820 veio dar algum vulto ao que até alli não eram mais que dourados sonhos de ambição.
Os patriotas de 20 tomaram a peito a vinda do monarcha para o reino. Com D. João VI voltaram quasi todos os fidalgos que abrilhantavam sua côrte e grande número dos que se tinham retirado para o estrangeiro por occasião das invasões francezas. Era d'este número Francisco Alvarenga.
A morte havia dizimado sua familia. Casára, pouco tempo depois de chegar ao Brazil, com uma senhora portugueza, oriunda de poderosa familia, e mal havia passado um anno quando sua mulher lhe expirou nos braços, dando á luz uma menina, unico penhor de seus affectos. Seu pae, o velho morgado, esse nem chegára a abraçar a neta. Andava Alvarenga pensando em regressar á patria, quando teve notícia da vinda da côrte para Lisboa. Aproveitou o ensejo.
Chegado á capital, ralavam-no saudades da terra da sua infancia, que abandonára havia ja vinte e tres annos. Partiu para a Beira. Quando ia a atravessar os umbraes do solar de seus maiores, sahiu-lhe ao encontro uma velha, que lhe chamava irmão. O morgado tinha diante dos olhos Effigenia, mas tão outra da que deixára, tão differente da que julgára encontrar, que não podia acreditar no testimunho de seus sentidos. Não era possivel que o tempo so fizesse tantos estragos.
Sabemos nós a causa da prematura velhice de Effigenia. Nunca no mundo falta alguma foi tão severamente expiada. Quando chegou a hora em que ja não pôde occultar o fructo de seu crime, a donzella pensava morrer de vergonha. Marcos tinha desapparecido, e so elle poderia purifical-a da mácula com que ia apparecer aos olhos do mundo. Soube então que seu amante se preparava para entrar no convento. Adivinhou que uma grande desgraça deveria motivar aquella precipitada resolução, mas longe estava de pensar quão enorme era. Escreveu-lhe, contou-lhe sua posição, e pedia a rehabilitação da culpa a que a arrastára.
Marcos quiz poupar a sua víctima o golpe mais doloroso. Occultando a fatal revelação de seu pae, respondeu que um podêr superior á sua vontade havia erguido entre elles insuperavel barreira: e que, não podendo ligar sua vida á d'aquella a quem pertencia pelo muito com que a amára, votára ao Eterno todos os seus pensamentos em expiação de seus erros.
Chegou a resposta, quando ja Effigenia conhecia toda a verdade. Contara-lh'a sua mãe, logo que a filha lhe declarou o nome do auctor de sua desgraça. A malfadada menina julgou enlouquecer. Ja não era a vergonha que lhe afogueava as faces, era o remorso que lhe torturava o coração. Como Deus é omnipotente e immenso até na sua justiça!
Thomasia mandou expor sua neta a caridade pública. A testemunha perpétua da deshonra e do crime, em que tantos eram cumplices, não podia viver junto dos que constantemente accusava aos olhos dos homens, que aos de Deus la estavam suas consciencias que lhes não davam treguas.
De dia para dia Effigenia ia perdendo o rosado das faces, o mimoso da cutis, e por seu turno todos os encantos e attractivos que a natureza lhe prodigalisára nas primeiras quadras da vida. Como árvore, cujas folhas o outomno empallidece e arranca, até deixar lascados ramos onde havia copa virente, e um tronco sêcco e nu onde amenisava os olhos o embrechado de trepadeiras florídas; assim Effigenia definhára até chegar ao estado em que a encontrámos, quando pela primeira vez a vimos em casa de Francisco Alvarenga.
Thomasia falleceu pouco tempo depois da desgraça de sua filha.
Estava so Effigenia, e sentiu nascer-lhe o desejo de trazer para casa o fructo de seu malfadado amor. Algumas pesquizas fez, mas todas sem resultado. Não havia um simples vestigio por onde podesse vir no conhecimento do caminho que levára a engeitada. Era um segredo que a criada do velho morgado levára para o tumulo.
Effigenia, vendo baldados seus esforços, concentrou-se toda na expiação de seu crime. Ja tivemos occasião de contar a historia d'esse periodo de sua vida e de notar até que grau de insensibilidade a levára o fanatismo.
Francisco Alvarenga bem depressa se aborreceu da aldeia, e voltou para a capital. Ahi, partidario do absolutismo requintado, inscreveu-se na cabala que tinha por chefes Carlota Joaquina e o infante D. Miguel. Ganhou a medalha que se cunhou para premiar o bom desempenho dos que representaram na farça de Villa Franca, e, egualmente alistado na que originou a expatriação do infante, retirou-se para Coimbra, receoso de aggravar sua nosicão por novas intricas. Foi 'nesta terra que depois fixou sua residência em companhia de sua irman e filha.
Alvarenga, que ignorava o que se passára durante o tempo que estivera ausente, acolheu Marcos como velho amigo da casa. Sabia o muito em que seu pae tinha a familia do capitão mor, e elle proprio se confessava devedor do muito zêlo com que administrára seus bens até á sua vinda da America.
Com palavras mellifluas o frade se foi insinuando no coração de Alvarenga. Dentro em potico tinha adquirido tal influencia em seu espirito, que o morgado nada fazia sem consulta e auctorisação de fr. Marcos.
O frade concebêra um projecto que, se o conseguisse, por si so sería um dos mais poderosos auxiliares para conquistar o podêr e dignidades, que ambicionava.
O irmão mais velho de Marcos tinha um filho quasi da mesma edade que Assumpção. Andava elle então em Coimbra, cursando as aulas de Direito. O frade levava a casa de Alvarenga amiudadas vezes o sobrinho, que ja ia apreciando sobremaneira a conversação da filha do morgado.
Ainda que sua familia fôsse de condição muito inferior á do morgado, ja em sangue, ja em haveres, Marcos contava obter permissão d'este para um enlace entre as duas familias. Então, unido pelo parentesco a uma das casas mais poderosas da provincia, coadjuvado em suas pretenções pelo morgado, que deveria continuar a ser o instrumento do infante usurpador, o episcopado e o proprio chapeu cardinalicio seriam para elle facil conquista. O principal consistia em prender a vontade da morgada á do sobrinho d'elle, e jungir ambos os dois ao carro da sua ambição. Isso não o lançava fr. Marcos na conta dos impossiveis, nem mesmo dos estorvos. Seu sobrinho era seu sobrinho; a morgada era mulher. Querer e insistir, eis o caso. Em seu modo de pensar as mulheres tinham coração para o mesmo que as torres têm ventoinhas, isto é, para que se saiba de que lado lhes sopra. Não se lembrava o bom do frade que uns travessos dezoito annos são ás vezes capazes de dar xeque-mate ao mais lido na arte de amar. O coração quasi sempre é uma cidadella que, se não se rende ao primeiro assalto, tambem não cede mui facilmente a longo cêrco.
A prova é que toda a dedicação do sobrinho e todos os planos do tio goraram em frente da tenaz resistencia de Assumpção. O frade começou por desconfiar que andava por alli mais que simples capricho feminil. De ordinario a mulher nunca afasta o thuribulo com que lhe incensam a vaidade, embora lhe não seja agradavel o perfume, senão quando nas aras d'esta divindade, toda mundana, ha quem deponha oblata de maior estimação. Onde ha um Cain de quem se engeitam as offrendas, ha um Abel com quem a complacencia não tem limites.
Este pensamento fez com que o frade andasse, como se costuma dizer, de pedra no sapato com todos os que frequentavam a casa de Alvarenga. O amor não timbra de prudente, e um quasi nada o denuncía. Fr. Marcos não tardou em notar a preferencia com que Assumpção acolhia Lucena. O homem circunispecto, quando encontra algum obstaculo no meio do caminho, não se expõe a cahir, saltando-lhe por cima; remove-o. Foi o que fez o frade. Abrunhosa serviu-lhe de alavanca.
Fr. Marcos um dia -- quasi a chorar, o hypocrita! -- chamou de parte o bacharel, e, como amigo íntimo da casa, começou lastimando a cegueira de Alvarenga, que a todos julgava dignos da franqueza com que lhes abria suas portas. Proseguia o frade no mesmo tom de lamuria, e de vez em quando, para mostrar que o tempo ja não permittia que houvesse gente de boa fe, adduzia, como exemplo, o procedimento de alguem que, sendo alli tão bem recebido, andava por fóra, jactando-se da distincção com que a morgada o attendia; e quem sabe se ja chegava com suas calúmnias a ultrapassar as raias do decoro?
Abrunhosa, que pela sua parte não desejava maleitas a Assumpção, declarou logo ser do seu dever prevenir o morgado do acontecido. Insistia elle com o frade para que lhe dissesse o nome do calumniador, e este fingia recusar-se a isso porque, continuava com apparente humildade, a sua posição não se compadecia com o papel de accusador, nem com o implicar-se em objectos extranhos á sua missão, toda de paz e concordia.
Depois de ambiguos circumloquios, como que sem reparar; deixou escapar o nome de Lucena.
Foi o que Abrunhosa quiz ouvir. Correu a denuncial-o ao morgado; mas, por mais depressa que fôsse, ja Assumpção, avisada pelo franciscano, sabía que Abrunhosa, talvez despeitado por nada obter d'ella, andava urdindo intrigas para desvirtuar Lucena no conceito de seu pae, e obrigal-o a nunca mais o receber. Os instrumentos do mal quebram-se, logo que são inuteis, antes que se tornem prejudiciaes. A mesma natureza o ensina. As abelhas, depois de morderem, morrem.
Correu ás mil maravilhas o plano delineado por fr. Marcos. Lucena foi expulso pelo morgado, ao passo que Abrunhosa distanciava cada vez mais suas visitas em virtude do modo glacial por que era acolhido pela filha.
Apesar de so no campo, não melhorou a situação do sobrinho de fr. Marcos. Por pouco que se lembrasse do seu passado, deveria saber que os amantes não conhecem embaraços, que sejam mais fortes que a sua vontade.
Andava-lhes o frade no encalço, farejando a maneira por que se correspondiam; quando o acaso o serviu mais satisfatoriamente do que imaginára. Ja vimos como podéra obter que um bilhete de Lucena lhe cahisse nas mãos.
Marcos, abusando do segredo que surprehendêra, ja com ameaças, ja com severas admoestações, conseguiu que o criado lhe revelasse tudo quanto dizia respeito aos dois amantes.
Horas depois seguia o morgado caminho de Lisboa, e Assumpção com sua tia recolhiam-se ao convento de Cellas, aonde era religiosa uma sua parenta. Com ser um pouco distante da cidade, parecêra ao fidalgo o melhor abrigo que poderia escolher para sua familia. O frade, que acompanhára as senhoras até á sua nova residencia, logo que viu as grades do convento fecharem-se sôbre ellas, voltou a casa de Alvarenga, cuja administração lhe fôra confiada por toda a ausencia de seu dono.
Durante o caminho tínha o frade pensado no partido que deveria tomar depois das revelações do criado. Estava decidido a remover por uma vez todos os estorvos com que o amor de Lucena embaraçava seus intentos.
O desapparecimento de Assumpção não o satisfazia cabalmente. Lucena, mais cedo ou mais tarde, viria a saber onde parava a filha do morgado, por não ser Coimbra terra em que os segredos tenham longa duração. Poderia até ser ella a primeira que denunciasse seu esconderijo aos olhos do mancebo. 'Neste caso nem com o auxílio de Jose tinha a contar, porque outras pessoas deverjam ser encarregadas de alhanar a communicação entre os dois amantes, não tendo o criado possibilidade de entrar no convento. O unico expediente; agora que a sorte o favorecia, era segurar Lucena, impedindo-lhe qualquer tentativa.
O frade chamou Jose, mal entrou em casa.
-- Viste ainda ha pouco, lhe disse Marcos, que te podia perder. O que então podia, posso ainda agora, e emquanto conservar este bilhete que entregaste á menina. Deves conhecer o que te esperava. Mas socega, não te desejo fazer mal. O que quero de ti é uma cega obediencia. Ouve.
E o criado achegou-se para ao pe do frade. Este murmurou-lhe algumas palavras em tom mais baixo; depois do que o criado partiu em direcção da casa de Lucena. Repicava ás ave-marias.
Seriam quatro horas da tarde quando, reunidas no largo de Samsão as milicias da Figueira e Aveiro á fôrça armada de Coimbra, e entre innumero concurso de povo, se elevou o grito em pro da causa liberal, sem maior violencia que a prisão de um certo capitão miliciano, a quem um estudante arrancára do peito a divisa miguelista, e que pretendia fugir, arrastando seus subalternos.
Findo o pronunciamento, Lucena, em vez de ir para sua casa, aonde o esperava Jose, foi juntar-se a seus amigos na Estalagem da Diabinha.
Jose esperou meia hora a pe quêdo á porta de Lucena. Cansado ja, sentou-se 'num dos degraus da escada, e tornou a esperar outra meia hora. Ninguem apparecia. Aborreceu-se, bocejou, impacientou-se; mas como não havia remedio senão obedecer ás ordens do franciscano, teve de conformar-se com o destino. Ageitando-se mais a seu commodo, estendeu as pernas, cruzou os braços, encostou a cabeça á parede, cerrou as palpebras, e pouco tempo depois entregava-se de corpo e alma ao deus do somno, que é amparo dos infelizes.
Doidejava-lhe a phantasia em não sei que ridente sonho, quando violento empuxão o fez acordar em sobresalto. Gôsto perfeito não o ha 'neste mundo. Não houve alma compadecida que o livrasse de pesadelos, em quanto se remexêra inquieto, estranhando a dureza do leito: mas vinham perturbar-lhe o somno agora, que as tábuas lhe pareciam alcatifa de terciopello, e a parede fofa cabeceira de pennas.
Jose levantou-se meio dormido, meio acordado, e, esfregando os olhos, viu diante de si um estudante. Era Villanova, companheiro de Lucena, que, recolhendo-se a casa, encontrára aquelle vulto estirado na escada. O estudante batera-lhe com o pe, e, vendo que era um homem adormecido, abanara-o rudemente para saber o motivo que o obrigava a dormir pelas casas alheias.
Jose disse-lhe que procurava Lucena para lhe dar um recado, de que era urgente que 'nessa mesma noite ficasse sabedor. Perguntou-lhe Villanova quem o mandava, e este, hesitando, pronunciou o nome de Assumpção. Villanova era o mais íntimo dos amigos de Lucena, e talvez o unico que estava verdadeiramente ao facto dos seus amores com a filha de Alvarenga. Jose sabia-o, e porisso repetiu a lição que lhe ensinára Marcos.
Tinha o morgado uma quinta a pequena distancia de Coimbra numa povoação quasi á beira da estrada de Lisboa. Chama-se aquelle logar Casal da Rosa. Como o morgado fôra obrigado a sahir repentinamente da cidade, tinha ido pernoitar a este logar para ahi arranjar os preparativos para a viagem, que havia de continuar no dia seguinte. Levando em sua companhia Assumpção, não tivera ésta tempo de responder ao bilhete de Lucena, mas pedia-lhe pelo amor que lhe jurára de lhe ir fallar essa mesma noite á quinta do Casal da Rosa, aonde ella o esperava. Comtanto que fôsse antes da madrugada, iria sempre a tempo.
Tal era o plano que o frade imaginára para attrahir Lucena.
Assim que Jose partíra para ir procurar o amante de Assumpção, mandára Marcos por um outro criado do morgado prevenir os que viviam na quinta de que estivessem preparados para repellir um roubo, que estava destinado irem fazer-lhes durante a noite. Logo que vissem approximar-se alguem do muro, era largarem-lhe uma descarga cerrada para afugentar os ladroes. O frade contava com a maior ou menor certeza de uma bala, para assim se ver de todo ou pelo menos por algum tempo livre do homem que, por si so, sustinha immoveis as rodas do carro da sua fortuna.
Villanova, ouvido o recado, e sabendo quanto seu amigo sentiria faltar á entrevista pedida, decidiu fazer todas as diligencias para que Lucena fôsse avisado. Como lhe prophetisava o coração aonde a essas horas o encontraria, mandou o criado para casa, dizendo-lhe que era provavel que no caminho o encontrasse. Jose obedeceu; e Villanova, com tenções de acompanhar Lucena até ao Casal da Rosa, foi-o seguindo.
Jose ia adiante cantarolando; Villanova alguns passos atrás, silencioso e todo embebido em triste presentimento, que lhe annunciava proxima desgraça.
Ao ruido que sentiram quando Lucena cahíra da árvore do jardim de Alvarenga, Jose machinalmente recuou até junto de Villanova. Quando a consciencia não está tranquilla, e nos accusa de ter practicado uma acção ma, a menor cousa nos amedronta, porque parece que tudo se conspira para nos castigar. Jose tremia como varas verdes, ao passo que seu companheiro caminhava, como até alli, forte da sua consciencia.
Por pouca attenção que o leitor tenha dado á nossa narrativa, inda se deverá lembrar do estado em que acharam Lucena. O estudante não podia dar um passo, tendo o corpo entorpecido pela quéda que acabava de dar.
Ha males que vêm por bens. D'esta vez Lucena tinha escapado das ciladas do frade.
X
NOVO PLANO DE ATAQUE
Foi demorada a cura de Lucena.
Villanova estava constantemente ao lado do infermo. Jose ia alli tambem algumas vezes, fingindo interessar-se pelas melhoras do estudante, mas na realidade para espiar, por ordem de Marcos, o que se passava na casa dos dois amigos.
Offerecia-se para prestar um ou outro serviço, e assim tinha occasião de observar quanto alli se fazia e dizia. Desde que Lucena cahíra de cama, era a todo o momento visitado por seus amigos, que ahi discutiam todas as novidades do dia, desde a inercia do govêrno provisorio do Porto até a marcha das tropas do usurpador. Não era a doença de Lucena de ordem tal que o não deixasse tomar parte nas discussões, ao mesmo tempo que se lastimava de não podêr seguir seus amigos na defeza da liberdade, pois de todos os estudantes, que vimos em casa da Diabinha, era elle o unico que não tinha assentado praça.
Não lhe dera o companheiro parte da imaginária entrevista que se lhe mandára pedir em nome de Assumpção, e prohibíra a Jose fallar-lhe em similhante assumpto. Sabía o desgôsto que seu amigo sentiria por não ter ido ao Casal da Rosa. E era o silencio de Assumpção o que mais o inquietava. Diziam-lhe que fôra para Lisboa, mas tinham decorrido dias e dias depois da sua partida sem que tivessem chegado notícias que ella lhe enviasse. Isto era inexplicavel. Villanova mostrava-lhe a pouca confiança que podia haver nos meios de communicação, estando seus inimigos senhores da estrada que os estafetas percorriam.
Apesar das boas razões adduzidas por Villanova, a anciedade e inquietação de Lucena não soffria allívio de especie alguma. Confortava-o somente a ideia de que em breve iria em Lisboa encontrar Assumpção, pois, não obstante conselhos e esforços de amigos, jamais havia desistido de seu primeiro intento.
Chegou a hora em que o doente se sentiu com fôrças de metter hombros á ingloriosa empreza a que se votára. O dia da partida estava marcado, e ninguem lhe fallasse em prorogal-o. Era o de 14 de junho.
A maior parte dos amigos de Lucena queriam sujeitar-se ao mesmo perigo, acompanhando-o, antes que deixarem-no ir expor-se a tantos riscos completamente so e indefeso. Mas o estudante recusava 'neste ponto qualquer offerta de coadjuvação, alem da que lhe pedíra, quando pela primeira vez lhe participou a resolução que tomára.
Dizia Lucena que nas guerras, em que a arma é a astucia, vale mais um do que muitos. A cabeça pensa e o braço executa. A acção deve ser simples e unica á maneira da sua traça, rapida e incisiva como o pensamento. O mechanismo menos complicado é o que mais resiste; o segredo de um so o que melhor se guarda. Alem d'isso, alistados todos como estavam, era-lhes indecoroso, se não impossivel, abandonarem o campo, sendo provavel um proximo recontro com o exército inimigo, que sob o commando do general Povoas estacionava em Leiria.
Chegado pois o dia designado, o estudante despediu-se de seus amigos e seguiu caminho de Lisboa ás mesmas horas em que pelo lado opposto da cidade entravam os delegados da junta provisoria do Porto, que vinham funccionar em companhia do commandante das tropas liberaes, o brigadeiro Saraiva.
Não foi pequeno o espanto com que fr. Marcos recebeu a notícia da inesperada partida de Lucena. Ainda que não atinasse com a causa de tal resolução, pensava com justo motivo que muito ponderosa devia de ser para que o obrigasse a dar passo tão arriscado.
Fôsse porém qual fôsse, era por certo este o mais favoravel ensejo para se desfazer d'elle. Razão de sobra tinha o govêrno da capital para o metter 'numa cadeia. O ponto era havel-o ás mãos. Fr. Marcos exultava de contente so com ésta lembrança.
-- Ajudemos o intendente de polícia, disse o frade comsigo mesmo. Esta gente é tão pouco zelosa do serviço de S. M., que se um pobre particular lhes não ensinar o caminho, correm risco de nunca atinarem com elle.
E o frade pegou da penna e escreveu uma carta, em que se assignava um amigo do throno e do altar, e que deveria ser entregue na intendencia da polícia. 'Nella exaggerava a parte activa que o estudante tomára na revolta de 22 de maio, e descrevia com as mais vivas côres seu caracter atrevido e revolucionario, pintando-o finalmente um dos inimigos mais perigosos do absolutismo pela preponderancia que exercia nas associações demagogicas. Affirmava que a sua ida a Lisboa tinha por fim combinar com os jacobinos da capital o meio de effectuarem as mais tenebrosas conspirações contra o sr. D. Miguel, e ao mesmo tempo delatar aos revoltosos de Coimbra todos os passos que dava o legítimo govêrno.
Com menos razões de queixa, muitos depois foram á forca. O frade não era homem que se contentasse com palliativos, quando podia empregar remedios energicos.
Acompanhava ésta carta uma outra para Alvarenga, em que, especulando arteiramente com o resentimento que este nutria contra o estudante, lhe pedia que não deixasse escapar a occasião de prestar um relevante serviço á legítima causa, auxiliando as investigações da auctoridade pelo conhecimento pessoal que tinha do criminoso, e corroborando com seu testimunho todos os capitulos da denúncia.
Em boa hora chegou a Lisboa a carta do frade. A polícia poz-se em movimento, e, auxiliada pelo morgado, não tardou muito que não désse com o rasto do revolucionario. Seguir-lhe o encalço e prendel-o em flagrante delicto de rebellião foi tudo um.
Parece que fr. Marcos adivinhava o muito que Alvarenga devia concorrer para a captura do estudante. Na verdade, Lucena, convencido de que o morgado levára comsigo sua filha, esqueceu os dictames da prudencia, para so dar ouvidos aos impetos do coração. Era o morgado a unica pessoa que alli o conhecia, e porisso a que mais devêra evitar. Não obstante aventurou-se a passar amiudadas vezes em frente da morada de Alvarenga; e um dia, este ao sahir surprehendeu-o interrogando o criado a respeito das pessoas que habitavam aquella casa. O morgado fingiu não o conhecer, e passou adiante.
O caminho que seguiu foi o da morada do intendente.
Fr. Marcos via emfim coroados os seus desejos. Faltava-lhe so vencer a reluctancia de Assumpção, que, segundo seu modo de entender, era uma simples questão de tempo.
No emtanto pensou em ir desde logo predispondo as cousas para que o ânimo da morgada fôsse insensivelmente inclinando-se a favor de seu sobrinho. Este sentimento, que se insinua no coração passo a passo, é o que mais irresistivel se torna. Quando se conhece sua influencia é ja tarde para sofreal-o.
Fr. Marcos, que tinha a grande sciencia do tornar, quem primeiro deparasse, o instrumento que deveria executar seus planos, não tardou em encontrar homem valioso em tal conjunctura.
Proximos á sua decadencia atulhavam-se os conventos de seres broncos e alvares, que para pouco mais serviam que de degrau a quem quizesse explorar sua ignorancia. Estupidos e ambiciosos, eis a maioria, a immensa maioria que inçava os claustros, e os convertia, de logares de piedade e devoção, que eram, em escholas de fanatismo, de intolerancia, de todos os erros 'numa palavra. Surprehendem, pelo descostume, os rarissimos ingenhos que poderam elevar-se superiores á geral degradação, e dourar os ultimos paroxismos das ordens religiosas, similhante aos lumes que bruxuleiam na podridão dos pantanos, acima dos quaes se elevam.
Entre os boçaes da comm unidade tinha a palma fr. Verissimo do Immaculado Coração de Jesus Maria Jose. Foi d'este homem que fr. Marcos lançou mão para o servir em seus novos intentos. De ha muito que o franciscano soubera exercer sôbre seu confrade uma indestructivel influencia, e tramar sob sua responsabilidade todas as intrigas, em que lhe era proveitoso occultar a mão que dirigia o fio d’ellas.
Fr. Verissimo tinha para com o ex-amante de Effigenia a dedicação do rafeiro, menos a intelligencia. Obedecer cegamente ao menor aceno de fr. Marcos era para elle um titulo de orgulho.
Todas as tardes fr. Verissimo seguia o caminho de Cellas. Chegado á grade principal do convento appareciam-lhe D. Effigenia e a sobrinha, algumas vezes acompanhadas de uma ou outra religiosa, attrahida pelo desejo de ouvir as novidades de que o reverendo era um almanach encadernado em pelle humana. Mas o que nunca esquecia era o taboleiro das tigelinhas d'aquelle delicioso manjar-branco, de que tanta honra e proveito auferem as bemaventuradas filhas do mosteiro de Cellas.
O frade fazia as devidas honras a tão innocente lambarice, fallando ao mesmo tempo de tudo o que sabía. Assim noticiou a prisão de Lucena, o grave risco que corria de ser enforcado, e outras que taes novas em que fr. Marcos o ia industriando.
Se por um lado não poupava Lucena, pelo outro não tinha o frade palavras com que elogiasse o sobrinho do seu amigo. Era um modêlo em tudo e por tudo.
Assumpção enojava-se muito com a conversa de fr. Verissimo, mas não queria deixar de o escutar, que era elle a unica pessoa a quem ouvia fallar de Lucena, de Lucena a quem, apesar de todos os esforços e todas as theorias de fr. Marcos, continuava a amar com os mesmos extremos e com a mesma violencia.
XI
ESBOÇOS E PERFIS HISTORICOS
Tinha-nos a historia de fr. Marcos prêsa de tal fórma a attenção, que para lhe seguir o fio nos esquecemos de tudo. Até do tempo.
Tres mezes não passam debalde. Na tela politica succedem-se os acontecimentos, como as vistas nos quadros dissolventes. Quem não attender á quasi imperceptivel passagem de uma côr por todos os seus cambiantes, ao fluctuar de adelgaçada nuvem atraves da qual a visão muda de aspecto, áquelle transformar-se contínuo, embora lento e vagaroso; 'numa palavra, quem por um instante afastar d'alli os olhos, ao volvel-os denovo, admirar-se-á da rapida transição. É o que nos succede. Essa revolução, que vimos rebentar impetuosa, energica e espontanea, foi insensivelmente declinando e cahiu esmagada por seu proprio pêso; cahiu sem ser vencida!
Em volta de nós tudo está mudado.
Detamo-nos por alguns momentos a investigar como se ha operado similhante mudança.
Retalhavam a familia portugueza tres partidos distinctos. O primeiro professava o absolutismo requintado. O segundo representava as theorias demagogicas da revolução de 1820. No terceiro confundiam-se os que, pelas suas ideias moderadas, divergiam das dos sectarios da monarchia absoluta e dos da representativa.
Era o primeiro o mais numeroso e o melhor organisado. Seus sequazes ensuberbeciam-se de ter por chefes a mulher de D. João VI e seu filho D. Miguel. Subindo ao poder, e fazendo recahir suas injustas perseguições sobre todos os que se não alistavam nas fileiras do ultramontanismo, este partido obrigou os restantes a reunirem-se 'num so, ainda que militando sob suas primitivas bandeiras.
Liberaes de 20, constitucionaes de 26 e absolutistas menos exaltados, que talvez poderamos chamar de 23, deram-se as mãos para protestar contra a usurpação do infante.
Ja no mez de março de 1828 se tinha delineado uma revolta em que se devia pedir a D. Miguel a ratificação do juramento de Vienna d'Austria e a convocação
de camaras, segundo a fórma prescripta na Carta Constitucional. Gorou o intento pela irresolução do conde de Villa-Flor (depois duque da Terceira), a quem se pedíra o valioso concurso de se collocar á testa da revolução. A recusa do conde fez desconcertar todos os planos; e, perdida aquella conjunctura, perdeu-se tambem a esperança de que a capital ousasse segunda vez oppor-se ás machinaçoes dos absolutistas exaltados.
Logo que desde a regencia de D. Isabel Maria se tinham ido insensivelmente predispondo as cousas para a queda do systema constitucional, alguns liberaes de Aveiro, organisando um pequeno partido, pensaram em obstar á marcha sempre rapida com que retrogradavamos para o despotismo, attrahindo a esse partido
a oficialidade de varios corpos.
Todos elles, algum tempo depois, reunidos ao batalhão de caçadores n.° 10, que ahi se achava de guarnição, declararam o infante privado da regencia pelo seu perfido procedimento e premeditada usurpação, no mesmo dia em que no Porto o regimento de infanteria n.° 6, sublevado no campo de Sancto Ovidio, erguia um brado a favor da causa constitucional, repetido em breve por toda a guarnição d'aquella praça á excepção de uma pequena minoria.
Lavrou por todo o reino com incrivel rapidez a notícia d'este successo. Pouco depois adheriam á revolução Penafiel, Braga e Coimbra: reforçava-se o exército liberal com as guarnições de Traz-os-Montes, Santarem e Thomar: tremulava sôbre as muralhas da aguerrida Almeida o estandarte azul e branco; e o proprio Algarve, tão arredado do foco revolucionario, ameaçava geral conflagração. Finalmente, deixando por si so as cifras prestar um testimunho irrecusavel, dentro de dez dias, afora voluntarios e milicianos, declaravam-se pela causa constitucional 16 regimentos de infanteria, 8 batalhões de caçadores, 5 esquadrões de cavallaria e 1 regimento de artilheiros.
Sob tão favoraveis auspicios organisou-se a junta provisoria do Porto, que devia superintender em todos os negocios, quer relativos á vida civil quer á guerra. Compunham-na tres militares, dois desembargadores e dois negociantes, afora quatro secretarios que, com voto deliberativo, foram nomeados para occorrerem ao expediente das differentes secretarías a seu cargo.
Deu-se com ésta junta o que se dá em todos as pessoas moraes quando a desunião lavra entre ellas. Muito numerosa para que sua administração caminhasse sempre no mesmo sentido, formada de homens pertencentes ás differentes côres politicas, que se haviam ligado sem se confundirem, a junta, como diz um escriptor consciencioso d'aquelle tempo, «teve contra si, como corpo collectivo, toda a falta de energia, de segredo, rapidez e firmeza de acção de que, em tão melindrosas circumstancias, convinha revestir todas as suas medidas.»
Eram na junta em maior número os partidarios das ideias moderadas. Seguindo cegamente o seu systemade moderação oppunham-se com todas as fôrças ás medidas que os progressistas apresentavam, tendentes a consolidar a causa da revolução. Emquanto estes pensavam sustentar-se á custa dos proprios esforços, appellando para a sorte das armas, queriam aquelles esperar o soccorro dos gabinetes extrangeiros contra os quaes temeriam indispor-se por qualquer acto que lhes cahisse em desagrado.
Nunca se viu a prudencia aproximar-se tanto da loucura! Prima co-irman do medo já todos a sabiam.
Esperar auxílio contra o absolutismo, estando no gabinete inglez o ministério Wellington-Aberdeen, vacillando em França Carlos x entre o despotismo de Villèle e o de Polignac, tendo á porta a Hispanha, e a Austria e o resto do norte da Europa por contrarios! Provocaria o riso, se não désse lástima!
No emtanto o govêrno de Lisboa preparava-se com toda a energia para abafar o grito revolucionario. Não poupou esforços de qualidade alguma. No dia 26 de maio mandou avançar sôbre Leiria uma força commandada pelo marechal Povoas, fôrça a que se deu o nome de divisão da vanguarda.
Contrastava a actividade do govêrno de Lisboa com a negligencia e inacção do govêrno do Porto. Em quanto aquelle organisava batalhões de voluntarios, formava companhias de caceteiros, perseguia, prendia e demittia pessoas suspeitas, removia das praças mais expostas ao ataque dos liberaes as guarnições que lhe não mereciam confiança, preparava a flotilha para o bloqueio da barra do Porto, levantava um emprestimo de dois mil contos e extorquia os nominaes dons voluntarios, -- este embriagava-se com a frivola esperança da intervenção extrangeira; e, para maior certeza de que Saraiva não tentaria arriscar-se a uni passo decisivo, mandava para Coimbra uma delegação da junta provisoria, que, parece, tinha por principal empenho obstar a qualquer operação de campanha.
O partido constitucional, que ignorava pela maior parte as causas de tão lamentavel desleixo, attribuia-o á fraqueza e inaptidão do chefe militar. E os que assim pensavam, eram os que melhor conceito faziam d'elle. Para muitos, estava vendido ao inimigo.
No exército recrudescia de hora para hora o descontentamento. Saraiva não lhe inspirava estima, nem confiança. Os soldados so levam a bem que os commande quem tenham visto combater a seu lado. Jogador que saiba do officio não acceita sociedade com parceiro, cuja destreza ignore. O soldado é o mais astuto de todos os jogadores, porque aventura num azar da fortuna o mais precioso de todos os bens -- a vida.
Nenhuma acção de renome circumdava o general com a aureola de glória que fascina os homens. As massas não são iconoclastas: querem, pelo contrário, um idolo, aos pes do qual se prostrem, seja muito embora o bezerro de ouro, ou a burra de Balaão. Sem prestigio não ha capitão, nem heroe possivel.
O grande mal de Saraiva era não ter entrado nas boas graças do exército, conquistadas pelo baptismo de fogo e sangue da guerra peninsular, como Saldanha
ou Villa-Flor. Mas o general, servindo no Brazil desde largo tempo, não era conhecido nem devidamente avaliado pelas tropas da Europa.
Na falta de outro militar mais antigo e de patente superior, forçoso foi conceder-lhe o commando em chefe. Talvez seus subalternos dentro de pouco, se lhe vissem mais actividade, e correr, confiado no triumpho, a assaltar Lisboa, melhor o recebessem. Mas sua forçada indolencia acabou por desconceitual-o no espirito de todos. A falta de fôrça no governante é a desmoralisação dos governados, e o primeiro passo para a ruina de ambos.
O general proclamava aos soldados do exército contrário, pedindo-lhes que cessassem de servir de degrau ás ambições do infante, a quem chamava rebelde por se ter insurgido contra o legítimo govêrno e contra a constituição cuja letra jurára manter; e deixava a guarnição de Almeida cercada por numerosas guerrilhas miguelistas, sem se lembrar de destacar uma fôrça para lhe favorecer a evasão. Leiria e Peniche tambem se mostravam affeiçoadas á causa constitucional, mas as delongas de Saraiva deram tempo ao govêrno de Lisboa para mandar recolher os regimentos que ahi estacionavam, e substituil-os por outros em que depositava plena confiança.
No emtanto a notícia da chegada de grandes reforços ao campo de Povoas, e a certeza de que o inimigo avançava sôbre Pombal, obrigaram a junta provisoria a renunciar ao seu systema de apathica expectativa, e o general fez operar um reconhecimento sôbre a Redinha. Foi marcha de caranguejo. Mal se tinha avançado até este ponto; houve dentro de pouco tempo ordem de o abandonar, e o exército liberal, retrogradando, recolheu á sua primitiva posição, sem que ao menos o animasse a surpreza feita sôbre a Ega, onde cahiram em seu pôder perto de cem inimigos.
Caminhava a passos largos o exército inimigo pela estrada de Coimbra. Em breve bater-lhe-ia ás portas.
Decidiu-se Saraiva a mandar operar um novo reconhecimento. Chegada a Condeixa a fôrça constitucional, viu-se atacada pelas fôrças inimigas, superiores em número, e avantajadas em posição. Recuando as tropas liberaes, tomaram as alturas da Cruz dos Morouços, a pequena distancia de Coimbra, onde dentro de pouco foram de novo atacadas pelos inimigos.
Na cidade, logo que se começou a ouvir o troar da artilheria, conhecendo-se em que graves apuros se veria a pequena fôrça constitucional para sustentar uma posição qualquer, correram ás armas de motu-proprio todos os que estavam em circurnstancias de prestar algum serviço, e aguardaram as ordens do commandante.
Mas Saraiva dava-se pouca pressa. Fazia as honras á mesa dos frades de Sancta Cruz, e não havia arrancal-o ás delícias do refeitorio.
O exército, ja formado para a marcha, mal sustava a impaciencia. Os artilheiros academicos postados no rocio de Sancta Clara, esperavam em vão ordem de avançar. Os voluntarios de Coimbra, reunidos no largo de Samsão, gritavam ás portas do convento, reclamando a presença do general. Mas o general não apparecia.
Os voluntarios e os academicos, tendo em menos conta a severa disciplina e cega obediencia militar, obrigaram e talvez ameaçaram Saraiva, que não pôde deixar de collocar-se á sua frente, e marchar para o campo do combate.
É este talvez o unico facto que poderia ennodoar o nome do general, se actos de valor e dedicação á liberdade, practicados durante o cêrco do Porto, o não tornassem superior aos tiros da calúmnia.
Succedia isto no dia 24 de Junho.
Os inimigos foram vigorosamente repellidos de todos os pontos de que pretenderam assenhorear-se. De ambos os lados pelejava-se com denodo e coragem, porque todos eram portuguezes. Mas a fortuna, 'nesse dia, favoreceu o exército da junta, que ficou senhor do campo depois de um porfiado lutar pelo espaço de dez horas.
De pouco serviu esta pequena vantagem. No dia seguinte os exercitos continuavam frente a frente, mas não se disparou um unico tiro. Tendo-se espalhado quea cavallaria miguelista atravessára o Mondego no vau de Pereira, a delegação da junta mandou tocar a prompta retirada, que se effeituou em tão completa desordem, que, alem de piquetes e munições, la ficou em podêr dos inimigos um regimento de milicias.
Ja a delegação da junta corria a bom correr pela estrada do Porto; Saraiva e o quartel general seguiam-lhe o encalço. Na sua fugida, ajunta não quiz saber dos que sacrificára e deixava assim entregues á mercê de seus perseguidores. Chegados aquelles a Villa-Nova de Gaia, ainda o restante do exército defendia nas proximidades do Vouga a passagem do Marnel, onde os commandantes dos corpos, vergonhosos de tão desairosa retirada, se rehabilitavam a seus proprios olhos, sustentando uma das mais feridas pelejas que tiveram logar em todo o decurso de nossas lutas domésticas. Forçoso lhes foi comtudo seguir o caminho do seu general, e abandonar as posições que tão valorosamente haviam defendido.
No meio de tantos contratempos alegrava-se a junta do Porto com a chegada de Palmella e Saldanha, julgando o primeiro portador das novas da imaginária intervenção extrangeira.
Graves suspeitas pesam sobre Palmella. O odio dos partidos conspurca muitas vezes caracteres illibados, so porque os não sabe comprehender. O tempo, que é a luz da historia, talvez nos aclare 'neste ponto: se Palmella, vindo ao Porto, so tinha em mira obstar, a todo o transe, a que a revolução marchasse no sentido progressista, seguindo as pisadas da de 20, como alguns factos dão logar a que se conjecture.
A maioria da junta, que via ‘nelle o representante de suas ideias, deu-lhe o cominando em chefe do exército, para o não entregar nas mãos de Saldanha. O novo general, «a quem, diz Soriano, como militar nunca as circumstancias tinham confiado o commando de uma so escolta» foi, contra sua vontade, investido da suprema auctoridade militar, quando o exército mais necessitava de um commandante activo, valente e célebre ja nos fastos da guerra. Não tinha a junta desculpa de o não ter á mão, que la estava Saldanha. Mas esse era temido pela influencia que tinha no exército, e, mais que tudo, porque então manifestava ideias progressistas.
No emtanto a inacção tinha perdido a causa constitucional. A junta conheceu a triste realidade de sua posição, e decidiu dissolver-se e retirar-se do reino, em quanto o exército passaria a operar na provinda do Minho, d'onde, não o favorecendo a fortuna, poderia facilmente retirar-se para Hispanha. 'Nestas circumstancias é que se entregou o cominando a Saldanha, que com grande repugnancia o acceitou; e todos os membros da junta se prepararam para seguir viagem para Inglaterra a bórdo do vapor Belfast.
Saldanha, convocando todos os commandantes de brigada e dos corpos para um conselho militar, annunciou-lhes a resolução da junta e a immediata retirada do exército para o reino vizinho.
Os bravos militares, que estavam presentes, convencidos, como Saldanha lhes afiançava, de que tinham de depor as armas sem tentarem um derradeiro esfôrço, recusaram a uma voz acquiescer a esse acto de covardia, e, a pedido do mesmo Saldanha, declararam por escripto sua recusa.
O novo commandante em chefe, senhor d'este documento, perante seus collegas no triumvirato, a quem a junta concedêra plenos poderes no momento da sua abdicação, deu-se por desligado do commando, em virtude da desobediencia de seus subalternos, e la foi no dia 3 de julho a bordo do Belfast, que para eterna vergonha de tantos nomes illustres abicára ás praias portuguezas.
Abandonado pelos seus mais illustres capitães, desanimado por successivos revezes, ameaçado de uma inevitavel derrota, resolveu-se o exército a seguir o caminho de Hispanha, onde penetrou no dia 6 d'esse mesmo mez de julho.
Assim se extinguiu o ultimo raio de esperança que ainda animava os liberaes da peninsula. A inercia, a rivalidade de partidos e talvez outras causas que considerações pessoaes ainda ensombram, fizeram com que a junta provisoria sacrificasse tantos milhares de individuos ás perseguições do absolutismo, e deixasse rasgar a Carta de que se arvorára defensora.
A ella, so a ella, se devem imputar todos os males, que atormentaram este malfadado paiz, durante os seis annos que decorreram até que o astro da liberdade se erguesse radiante no ceu de Portugal! A ella que, das redeas que empunhára para dirigir o movimento liberal, se serviu para sofreal-o e tolhel-o completamente! A ella, responsavel perante os homens pela sua perfidia, e perante Deus pelas calamidades, que attrahiu sobre a cabeça d’aquelles que n’ella acreditaram!
Que a opinião pública a esmague sob todo o pêso da sua responsabilidade!
'Num jornal, publicado em Londres, o Paquete de Portugal, n.° 44, de 22 de junho de 1830, ve-se a seguinte estatistica:
Emigrados nos diversos paizes da Europa e do Brazil...................................... 10:000
Presos em diversos carceres, e deportados em diversas terras do reino.............................. 14:000
Processados por opiniões politicas, mais de........ 20:000
Familias, cujas propriedades em todo ou em parte estão sequestradas................................ 50:000
Desterrados que partiram para Africa nas charruas Orestes, Trovoada e S. João Magnanimo...................... 382
A lista não está completa. Faltam aqui as víctimas das alçadas civis e dos conselhos militares: os martyres da forca e dos fuzilamentos. Falta a lista dos assassinados e maltractados pelo cacete. Falta finalmente a relação dos perseguidos durante os ultimos annos da dominação miguelina, e o computo de todo o sangue derramado nos Açores, no Porto, em Almoster, na Asseiceira e onde quer que o sangue portuguez tingiu mãos portuguezas.
Esse anno fica marcando uma epocha fatal, não so para a historia da liberdade, mas até para a da humanidade. Nefasto em si, e mais nefasto ainda pelas funestas consequencias que arrastou apos si!
A aurora de 1834 raiava em 1828. Ajunta fez como Josue, mandou parar o sol. Não para que nos continuasse a alumiar, mas para que as trevas não acabassem de se desfazer: não para o combate e triumpho, mas para a perseguição e martyrio.
A humanidade que lhes agradeça!
XII
ENTRE SCYLLA E CARYBDES
Continuava fr. Marcos sentado ao pe da janella.
Aos olhos do espirito desenrolavam-se-lhe era movediço quadro todas as scenas que esboçámos nos antecedentes capitulos.
A princípio a visão transparecia 'num fundo limpido e sereno, como o ceu em noites de luar. Depois carregava-se o colorido: a luz era substituida por sombras, e dentro em pouco as proprias sombras transformavam-se em trevas. Alli avultavam as saudosas reminiscencias de sua meninice; entre luz e risos desenhavam-se a imagem graciosa de Effigenia e a figura insinuante e melancholica do capitão mor, que sentava nos joelhos as duas creanças, arfando de cansaço, cansaço de folguedos, não de lida. O bom velho ora os beijava na fronte, ora os estreitava contra o coração, a sorrir de suas innocentes perguntas, de seu cogitar de creanças, como sorri um pae a seus filhos, desvelo, orgulho e delícias de sua vida. Aqui Marcos abandonava a casa paterna; e o quadro começava a mudarde aspecto. Lagrimas ja reçumavam por entre os risos, e as flores inclinavam a emmurchecida corolla sôbre a haste crivada de espinhos. Alem Effigenia, chorando de vergonha e remorso; o moribundo, descerrando os labios meio gelados pela morte para deixar escapar a revelação fatal, que era o segredo da perdição de ambos. Depois um sepulchro se abria, um sepulchro fundo e tenebroso, a que a sua dor o fez descer vivo. Quando sentiu pulsar-lhe o coração ‘naquella estancia de terror e mudez, era tarde; a lage sepulchral tinha cabido sôbre elle, e uma voz retumbou la do fundo de sua morada, repetindo as desanimadoras palavras que Dante soletrou ás portas do inferno:
Lasciate ogni speranza, voi, che entrate.
A visão continuava, mas urna transformação se operou em sua essencia.
O futuro, sahindo d'entre o nada, d'entre o incerto, d'entre o ignorado, passava ante seus olhos. Fr. Marcos via-se e tinha medo de si: medo e horror. Eram scenas de um novo Apocalypse as que se pintavam em sua imaginação. Via-se superior aos potentados da terra que se curvavam a seus pes; as turbas corriam na sua passagem e ajoelhavam-se reverentes. Era um dia de festa: musicas retiniam nos ares, flores tapetavam o caminho, nuvens de incenso, myriadas de luzes circumvolavam em tôrno d’elle. Depois de repente do meio da multidão, que se apinhava alli, sahiu um espectro, caminhando a passos vagarosos até se collocar em frente d'elle. Uma corda lhe pendia do pescoço, e apos seus passos ficava um rasto de sangue.
-- Eu sou Lucena, lhe disse o espectro. Ve onde me levou tua ambição -- á forca. Delator, sê maldicto!
Depois era uma donzella, vestida de alvas roupagens, com a fronte engrinaldada de flores de laranjeira e um branco veu a descer-lhe até aos pes. Mas suas faces eram mais desmaiadas que as flores que lhe ornavam a frente, e a donzella entrava para o tumulo pela porta do noivado.
-- Eu sou Assumpção, lhe disse a donzella, quizeste meu ouro, e levaste-me a vida. Ambicioso, sê maldicto!
Depois era uma outra figura de mulher; o frade fitava ‘nella os olhos espantados, e não a conhecia. Andrajos mal lhe cobriam o corpo, myrrhado pela fome e pelo soffrimento. A crapula tinha deixado em seu rosto vestigios, que a forçada abstinencia não pôde apagar. Entreabria seus labios o sorrir cynico da prostituição, d'essa prostituição abjecta, torpe e asquerosa, que nem a luz do dia intimida, nem as trevas da noite encobrem, nem a vergonha pública evita.
-- Eu sou tua filha, lhe disse a nova appariçâo. Abandonaste-me, tive fome e vendi-me. Hoje que as rugas de uma prematura velhice apagaram minha belleza, estendo a mão ao obolo da caridade e morro de miseria. Pae desnaturado, sê maldicto!
Depois era Effigenia, arrastando no lodo da infamia a coroa da sua virgindade; depois o esqueleto do capitão mor, coberto ainda pelos vermes do sepulchro; emfim todas as víctimas immoladas por elle, que vinham lançar-lhe em rosto seus crimes, e amaldiçoarem-no e apontarem-no com o dedo ás turbas, que recuavam horrorisadas.
E Marcos escondeu o rosto nas dobras de suas roçagantes vestes; recamadas de ouro e pedrarias, para fugir áquella vergonha; mas os finos diamantes convertiam-se em espinhos que lhe rasgavam as faces, e os lavores do ouro em lavaredas de fogo, que se lheentranhavam pelas rôtas carnes. Levantou o rosto e forcejou por cerrar os olhos a esse pavoroso espectaculo, e as pupillas dilatavam-se-lhe para fóra das orbitas, á medida que as palpebras descahiam sôbre ellas.
Então as appariçoes soltaram uma gargalhada satanica, e começaram em tôrno d'elle uma dança infernal, repetindo em coro: «devasso, hypocrita, assassino, sê maldicto!»
Tumultuavam todas éstas ideias, confusas, vagas, mas dolorosas na mente de fr. Marcos, quando leve toque denunciou a presença de alguem á porta da cella.
O frade limpou o suor frio que lhe manava da fronte, e, esforçando-se por dar á sua voz um tom natural, disse:
-- Entrae.
-- A benção de nosso seraphico patriarcha S. Francisco seja comvosco, meu irmão, murmurou o recem-chegado.
-- Amen.
O novo personagem, que era fr. Verissimo, acercou-se da janella, e continuou apos alguns instantes:
-- Tomaveis o fresco da tarde, não é verdade?
-- Exactamente. Sentae-vos, porém, que temos que conversar.
-- E eu que me esquecia ja. Trago-vos uma grande novidade.
-- De Cellas?
-- De Cellas. A menina Assumpção deseja fallar-vos ámanhan a horas em que a tia esteja no confessionario.
-- Disse-vol-o ella?
-- Pois quem havia de ser?
-- E como vol-o disse?
-- Como?... não entendo isso.
-- Quero dizer, se quando vos dava esse recado para mim, estava triste, alegre, pensativa; emfim, que sentimento vos pareceu que 'nesse instante a dominava.
-- Ah! 'nisso é que não reparei. Estava como costuma, isso é que é verdade. Emquanto a mim aquillo é peccado mofento que a anda a trabalhar la no interior, e, como todos sabem, vossa muita sanctidade...
-- Não digaes isso a um pobre peecador como eu, atalhou fr. Marcos com falsos ares de modestia.
-- Peccador, vós, irmão! Ah! que se todos fôssem assim... Mas olha que é célebre! Ando ca a embirrar com isto de ha muito. Porque é que D. Effigenia, sendo tão virtuosa, vos não toma para confessor?
E o frade continuava com suas indiscretas perguntas; e ás vezes enleiando, pela simplicidade d'ellas, a astucia de fr. Marcos, que lhe escondeu escrupulosamente todos os mysterios de sua vida, pois fr. Verissimo, alem de não saber calcular o que podia dizer e o que devia calar, possuia a mais loquaz lingua da communidade.
Davam oito horas da manhan, quando no dia seguinte fr. Marcos entrava o pateo de Cellas.
Fr. Marcos em todo o caminho ia scismando, e tentando decifrar d'entre milhares de hypotheses, que lhe acudiam ao espirito, qual o motivo por que Assumpção o mandára chamar a horas em que sua tia não estaria ao pe d'ella, quando, por uma especie de antipathia instinctiva, evitára até alli todas as occasiões em que podia achar-se a sos com elle. De conjectura em conjectura não atinava com razão que mais solida parecesse.
Entrou na primeira grade desoccupada, e pediu que lhe chamassem Assumpção. Não se fez esperar a donzella.
Nunca o frade a víra tão fascinadora. Seus cabellos, ‘num certo desalinho, que não é desmazêlo nem incuria, cabiam em ondas de esmeril para mais realçar suas avelludadas faces, desbotadas pelo soffrimento. A melancholia, amortecendo o lume de seus olhos, dava a seu rosto um não sei que de transparencia, que, ao primeiro olhar, nos revelava sua alma angelica, retida, mas não envilecida pelo involucro que a prendia á terra do seu destêrro.
Fr. Marcos era homem, e sentia no peito bater-lhe o coração. La dentro uma voz se erguêra para accusal-o de quanto fizera e fazia sorrrer á infeliz víctima, que o olhava sem odio, sem desprezo, arrastando a cruz que lhe puzera aos hombros. A visão do dia antecedente passou outra vez rapida ante seus olhos. Não ha homem, por mais perverso que seja, que não tenha um momento em que não hesite na estrada do crime. O pungir do remorso la o sentia no qmago da consciencia. Assumpção tinha ganho sua causa antes de fallar.
-- Mandei-vos chamar, lhe disse por fim a donzella, porque me via aqui so, triste e afflicta. Vós, que sois bom e virtuoso, compadecer-vos-eis de mim, que tanto hei soffrido sem me queixar.
-- Pedi a Deus o auxílio que pedis á ereatura, minha filha: so elle póde derramar o balsamo salutar sôbre as feridas de um coração attribulado.
-- Deus não escuta as minhas súpplicas. Hei regado de lagrimas os pes de sua sacrosancta imagem, e ainda do ceu não desceu allívio para meus males!
-- Quem pode medir a justiça do Senhor? Creatura incredula, porque affrontaes sua divina vontade? Sabeis vós medir a immensidade de vossos aggravos contra elle, para que tambem possaes medir a sua expiação? Esperae, e tende fe, que a clemencia do Omnipotente jamais abandona os que a ella se soccorrem nas procellosas tempestades da vida.
-- Bem me dizia o coração, que so vós poderieis confortar-me nos duros transes da minha dor. O espirito malevolo ja se apossava de mim, que sentia gelar-se-me a fe dentro d'alma. Ministro do Senhor, tende dó de mim, que sou muito desgraçada!
-- Abri-me os segredos de vossa alma, filha, que eu rogarei ao Todo Poderoso por vossa intercessão.
-- Que allívio posso eu ja encontrar no mundo, onde tudo se conspira contra mim? Fr. Marcos, obtende de meu pae a permissão de entrar para toda a minha vida 'num convento, 'naquelle em que mais austera for a regra, em que o leito seja dura tábua, a cabeceira fria pedra, e o alimento quotidiano agua e raizes de ervas cruas. É-me necessario refrear a carne para domar o espirito, é-me necessaria uma vida de penitencia para dar alentos a minha alma retalhada por tantas dores.
-- No mundo tambem se póde viver vida agradavel ao Senhor; e o mundo ainda não morreu para vós.
-- O mundo! que me póde dar o mundo agora? Uma fingida compaixão: essa rejeito-lh'a eu.
• Vossa dor ainda me é desconhecida; antes de approvar similhante resolução, talvez encontre remedio mais efficaz e menos violento.
-- Não sabeis o que é amar, porisso fallaes assim. Esse eterno desassocêgo, que se nos apossa da alma, esse contínuo anciar, esse anhelar incessante, essa voluptuosidade na dor, essa inquietação na felicidade, não os experimentaes vós, e não podeis comprehender-me. Era assim que eu amava. Como o sol e a luz, a rosa e o perfume, o bosque e a sombra, nossas almas tinham uma íntima alliança. Sois feliz em ignorar o que seja o amor. O amor esclarece-nos a vida, mas consome-a: coroa-nos de luz, mas o fogo que a alimenta devora-nos o coração. Viver do ente que se ama e para elle, é a suprema bemaventurança 'neste mundo. Avaliae o que sentiria, quando ouvi a fr. Verissimo a sorte fatal que aguarda Lucena. Ha tres dias que, ao esmorecer das estrellas, ainda vélo ajoelhada aos pes do Redemptor, offerecendo-lhe minha vida em resgate de outra, que á minha existencia é mais necessaria do que ésta que possuo. Eu não posso sobreviver a Lucena. Morto elle, meu espirito, em busca de seu espirito, voará para o ceu, refúgio dos desgraçados. Fazei que o pouco, que tenho a viver sôbre a terra, o consagre a Deus. É o que vos peço, o unico bem que ambiciono, o unico allívio que me podeis dar. Escrevei a meu pae, advogae a minha causa, e, se a voz de uma pobre mulher, pelo muito que tem soffrido, póde ser ouvida no ceu, o Eterno vos recompensará com bençãos o que eu so posso agradecer com lagrimas de gratidão.
-- Pedis um impossivel. Vós, filha unica e herdeira de uma grande casa, idolatrada por vosso pae, estimada por todos que vos cercam, como podeis pensar em tal? Conheço vosso pae, e posso afiançar-vos que nunca vos dará seu consentimento.
-- Não falleis assim, que me mataes...
-- Fallo como devo fallar-vos, com a linguagem do sacerdote e do amigo. Nunca deis ouvidos ao que vos dieta a desesperação, que breve podereis arrepender-vos do que tiverdes feito. O tempo tudo gasta. Suppondo mesmo que Lucena se não possa salvar, quem vos dirá que vosso amor será eterno? O edificio, minado o alicerce, dá em terra; a hera, derribado o tronco a que se abraça, procura outro sustentaculo. Os mortos esquecem-se depressa, porque se ama pelo prazer que se recebe, e não pelo que se dá. E que podêmos nós receber do que jaz frio e insensivel como a lage que o cobre? -- o esquecimento. Vistes ja alguem viver de uma recordação? O corpo repelle a sombra, a morte é a negação da vida: como quereis harmonisar o que é essencialmente contradictorio? Supponhamos que Lucena consegue libertar-se: não vos arrependereis toda a vida de um passo imprudente, que vos prenderá a uma eterna collisão entre o amor e o dever?
-- Não era assim que fallava fr. Verissimo. Lucena, dizia elle, está irremissivelmente perdido.
-- Ha condemnados que têm escapado á morte até nos proprios degraus da forca; e Lucena nem condemnado ainda está.
-- Não serão vossas palavras mais que uma innocente mentíra, inventada para me tranquillisar?
-- É a verdade.
-- E se elle morrer?
-- Esperae e tende fe. Deus póde muito!
'Neste momento entrou D. Effigenia, e a práctica foi interrompida para se fallar de cousas futeis; e que de forma alguma nos interessam.
A conversação prolongou-se ainda por algum tempo, e mais duraria, se a sineta do mosteiro não chamasse religiosas e seculares ás devotas obrigações do côro.
De volta de Cellas, vinha o franciscano maravilhado de si mesmo. Que poderoso influxo o levara a alimentar esperanças que elle tanto quizera ver desarreigadas do coração da amante de Lucena? Que fatalidade fôra essa a que o tornára confidente, quasi cumplice, d'esses amores, sendo até alli constante fito seu o estorval-os? Porque, em vez de trabalhar para a realisação de seus intentos, tinha, não so perdido favoravel ensejo, mas reforçado os embaraços que se lhe oppunham?
É que nada mais forte que a mulher, quando se abroquela com a sua fraqueza. Saiba ella cumprir a elevada missão para que foi destinada, que o número dos maus diminuirá; ia para avançar a mais -- os incredulos ja têm que acoimar de hyperbole. A um sorriso seu, o mais perdido nas trevas do crime sente illuminar-se-lhe a alma e, ao calor d’essa luz providencial, florecerem e fructificarem os germes do bem, que cada um traz do seio da divindade.
Mal cuida a mulher que se desprestigia, que se suicida, quando, apeando-se do pedestal, que tem por base o recato e a modestia, vem ao meio das praças disputar ás turbas uma ephemera celebridade, que tanto doura como pollue! Do homem deve ser companheira e não competidora, socia e não emula. Não são pouco sublimes seus deveres; assim queira ella elevar-se á alteza d'elles. A que não sabe pela brandura conquistar todas as vontades, a si o deve. E na sombra que a violeta exhala seus perfumes e adquire virtudes medicinaes; é no bulicio das salas, que a rosa fenece, crestada ao calor da festa!
Este homem egoista, mau e ambicioso, que ria de todas as dores, não pôde escarnecer da que lhe revelára Assumpção: inda mais, respeitou-a. É que presentia, que palpava no tom em que ella lhe fallava a verdade de suas faltas. É que, chorando e supplicando, a donzella chegára a commover aquelle coração endurecido, forte contra a astucia, contra ameaças, contra tudo menos contra a innocencia!
Depois que fr. Marcos deixou de experimentar a suave influencia do olhar de Assumpção, arrependeu-se de quanto lhe houvera dieta. Era prolongar seu martyrio inutilmente. Elle, que perdêra Lucena, não tinha na mão salval-o. E que pudesse!... entre os dois amantes erguia-se ainda um obstaculo insuperavel -- a vontade de Alvarenga.
Assim reflectindo, o frade chegou ao seu convento. No portão, que abria para um pateo rodeado de alegretes, encontrou fr. Verissimo.
-- Ia procurar-vos, irmão, disse este ultimo. Trago-vos aqui uma carta de Lisboa.
-- Dae-m'a, respondeu fr. Marcos com um alvoroço inexplicavel.
O frade percorreu-a rapidamente com os olhos, e, a cada periodo que lia, annuveava-se-lhe o rosto.
Fr. Verissimo olhava espantado para elle.
'Nessa carta Alvarenga dava-lhe parte de um optimo negocio que arranjára em Lisboa. Encontrára um primo seu em não sei que grau, rico de bens da fortuna e dos males da gotta, com um vínculo de sessenta contos e uma cara de sessenta annos. Tinham os dois primos resolvido estreitar ou, para melhor dizer, ratificar a alliança de suas familias, e Assumpção era o laço que deveria prendel-os. Era um negocio concluido (atinára Alvarenga com o nome de taes casamentos) e aquella carta unicamente tinha por fim, que o frade prevenisse Assumpção dos designios formados a respeito d'ella, e aconselhal-a a conformar-se com a vontade de seus parentes.
-- Faltava-me so isto agora! exclamou fr. Marcos. Depois, encrespando o sobrolho, e, sorrindo com seu diabolico sorriso, continuou: entre a filha e o pae estou eu, que valho mais do que ambos. Veremos quem ha de vencer!
XIII
OS PRESOS DO LiMOEIRO
'Numa terça feira, 17 de junho de 1828, seriam onze horas da manhan, entrava na sala principal do Limoeiro um official de justiça acompanhado pelo guarda da cadeia.
Vinha o primeiro revestido das insignias do seu officio de escrivão do juizo da correição do crime, como pedia a solemnidade do acto que ahi o levava; o segundo trazia um grande mólho de chaves em que parecia escolher algumas.
-- Mande vir os reus, disse o escrivão ao carcereiro.
Este chamou um de seus subalternos, e, entregando-lhe as chaves que tinha apartado, transmittiu-lhe a ordem recebida.
Dentro em breve postavam-se ás portas da sala duas sentinellas, e appareciam, ainda no meio de alguns soldados, nove mancebos carregados de algemas, que, chegados ao centro da sala, formaram um semicirculo em volta do escrivão. Feitas as perguntas do estylo, a que os accusados responderam com imperturbavel tranquillidade, o escrivão puxou da algibeira interior da casaca um volumoso masso de papeis, em que foi folheando até quasi chegar ao fim.
Durante estes pormenores, a physionomia dos condemnados estava impassivel, como se fôssem extranhos a qualquer artigo da accusação. É que d'antemão sabiam qual a sorte que os aguardava, e por mais dura e inflexivel que cahisse sôbre elles a espada dos julgadores, não havia encontral-os desprevenidos.
Depois da leitura dos capitulos relativos á criminalidade de cada um dos accusados, o escrivão, descansando alguns instantes para tomar folego, continuou:
-- «Portanto, achando-se plenissimamente provado, que os nove reus acima designados foram os que perpetraram tão horriveis e insolitos crimes, que muito se aggravam pelas suas circumstancias, julgam porisso incursos nas penas que lhes impõem a Ord. liv. 5, tit. 35, § 4, e tit. 61, § 1, e Alv. de 29 de outubro de 1763, e, em sua conformidade, condemnam os dictos reus Manuel Innocencio Mansilha, Domingos Joaquim dos Reis, Francisco do Amor Ferreira Rocha, Urbano de Figueiredo, Carlos Lidoro de Sousa Pinto Bandeira, Domingos Barata Delgado, Antonio Correia Megre, Delfim Antonio de Miranda e Mattos, e Bento Adjuto Soares Couceiro, a que, com baraço e pregão, sejam conduzidos pelas ruas públicas d'esta capital ao logar da forca, onde morrerão morte natural para sempre, pela mesma ordem com que vão nomeados no final d'esta sentença; sendo depois decepadas as cabeças e mãos aos reus Antonio Correia Megre, Delfim Antonio de Miranda e Mattos, e Bento Adjuto Soares Couceiro, que se prova terem tomado parte mais activa e cruel na aggressão, assassinios e ferimentos, serão collocadas nos angulos da mesma forca, onde se conservarão expostas até que o tempo de todo as consuma; outrosim condemnam todos os reus na plena indemnisação do roubo que fizeram, mais em dois contos de réis para a viuva e herdeiros do dr. Matheus de Sousa Coutinho, outra egual quantia para a viuva e herdeiros do dr. Jeronymo Joaquim de Figueiredo, que serão pagos rateadamente por todos os mesmos reus, e na falta de bens d’alguns pelos d'aquelles que os tiverem, em seiscentos mil réis pela mesma forma pagos para as despesas da Relação, e a todos nas custas dos autos.»
-- Tendes alguma cousa a dizer de vossa justiça, perguntou o escrivão, finda a leitura da sentença, que possa ser attendida nos embargos?
-- Nada, responderam os sentenceados com a serenidade que tinham guardado em todo este acto.
-- Então que a justiça de Deus seja para vós mais benigna que a dos homens.
O escrivão retirou-se, e os sentenciados foram conduzidos para o oratorio, recolhendo-se cada um dos reus a um cubiculo, onde, por todo o tempo que alli se conservaram, arderam sempre duas velas ao lado de um crucifixo, erguido sôbre pequeno altar. Alli esperaram os criminosos que chegassem seus confessores.
Vejamos agora qual o crime que mereceu tão dura expiação.
A 18 de março d'esse mesmo anno, das sete para as oito da manhan, foi assaltada no sítio do Cartaxinho, uma legua distante de Condeixa, a deputação, que, por parte da universidade e cathedral de Coimbra, ia felicitar D. Miguel pelo seu regresso ao reino.
Por parte da universidade compunham a mencionada deputação Matheus de Sousa Coutinho, lente de Canones, Jeronymo Joaquim de Figueiredo, de Medicina, Antonio Jose das Neves e Mello, de Philosophia; por parte da cathedral, o deão Antonio de Brito e o conego Pedro Falcão Cotta e Menezes; alem de outras pessoas de sua familia, que alguns deputados levavam comsigo.
Subitamente acommettidas as caleças por treze individuos mascarados com lenços e armados de espingardas, foram os caleceiros obrigados a parar e mandados apear todos os passageiros, e depois conduzidos para um logar afastado da estrada real e á sua esquerda. Ahi, deixando os caleceiros, arreeiros e criados manietados com laços de corda, e vigiados por Megre, embrenharam-se os assaltantes com os deputados e seus parentes em paragem mais escusa, onde os constrangeram a deitarem-se por terra. Diz-se que, perguntando um dos acommettentes se os deveriam amarrar, Soares Couceiro respondêra: «segurem-nos a punhal e tiro.»
Os dois primeiros deputados da universidade cahiram logo mortos, com o craneo traspassado de balas. O deão e o conego tiveram algumas feridas graves, o sobrinho do dr. Matheus foi simplesmente contuso, e a um do conego Pedro Falcão apenas coube em sorte a queimadura de um tiro de polvora sêcca.
Avisados os povos circumvizinhos, por uma mulher da Venda-nova, que, da eminencia onde apascentava gado, presenceára o delicto, correram em perseguição dos criminosos, dos quaes chegaram a prender nove, que escoltaram até ás cadeias de Coimbra, d'onde em breve foram removidos para a do Limoeiro.
Os absolutistas pintaram com tão feias côres o crime, que os proprios liberaes olhavam com horror para os criminosos.
No emtanto, estudadas bem as causas que o motivaram, talvez se possa, justifical-o não, mas de alguma fórma desculpal-o.
A universidade, desde o vice-reitor Pinheiro até ao verdeal Damião, seguia a politica de D. Miguel com toda a cegueira do fanatismo politico. Os poucos lentes constitucionaes, que ‘nella havia, eram olhados com sobranceria por seus collegas, desattendidos por inferiores, e mal vistos por seus discipulos, quando não commungavam as mesmas ideias. Os estudantes, que professavam as doutrinas liberaes, estavam no mesmo caso. Alli a politica era tudo; desculpavam-se as culpas de uns, e menosprezava-se a justiça de outros, conforme gostavam mais do vermelho ou do azul.
Quando o marquez de Chaves se revoltou em Tras-os-Montes, levantando o grito de rebellião, e arvorando o estandarte do absolutismo, correram a alistar-se quinhentos ou seiscentos academicos, que, batalhando nas fileiras liberaes, conseguiram firmar a regencia e a Carta. Recolhidos a Coimbra, negou-se-lhes abonar as faltas, que deram em quanto defendiam o govêrno constituido, ao passo que se abonavam as de uns outros cincoenta estudantes, que se tinham incorporado aos insurgentes.
Este proceder inquisitorial indispoz com justa causa todos os liberaes contra a alma mater de que rezam uns diplomas, que se entregam aos filhos benemeritos d'ella. A paixão fallou em alguns jornaes, que se publicavam na cidade, e entre elles o Amigo do Povo, o Publicola e Minerva, onde se não poupavam os lentes achacados do furor do absolutismo.
Entre estes era geralmente odiado Matheus de Sousa Coutinho, não so por haver denunciado por constitucionaes muitos dos seus discipulos e collegas, por occasião das devassas abertas pelo ministerio Pamplona, mas tambem a opinião pública o indigitava como assassino e envenenador, e fôra «judicialmente accusado de crimes vergonhosos» como em seus Annaes aflfirma Jose Liberato.
Logo que foi notoria a decisão da universidade, de mandar uma deputação sua felicitar o infante, e supplicar-lhe que assumisse o govêrno absoluto d'estes reinos, espalhou-se pela cidade e entre a academia o boato de que o fim principal da deputação era fazer chegar ás mãos dos governantes uma lista dos lentes e escholares notados por seus principios liberaes, e pedir, alem das penas a que civil, ou criminalmente, estivessem sujeitos, a sua exclusão do gremio universitario. Este boato, adquirindo de cada vez mais consistencia, foi dentro de pouco tempo reputado uma verdade inconcussa. Occurrencias que sobrevieram lhe deram solido fundamento. Imagine-se como seriam recebidos os nomes dos deputados, figurando entre elles os de individuos que, de adversarios politicos, se haviam tornado inimigos pessoaes dos constitucionaes!
As associações demagogicas reuniram-se, e 'nestas foi tomado imprudente alvitre, mais imprudentemente ainda posto em práctica. Treze, escolhidos pela sorte, foram mandados atacar os membros da deputação e extorquirem-lhes a lista, que acompanhava a denúncia. Contra o parecer dos julgadores e a opinião de fr. Claudio da Conceição, auctor de uma Memoria sôbre o assumpto, póde asseverar-se que não fôra intento seu arrancar a vida a todos os passageiros, mas simplesmente aos que por sua intolerancia e maldade tinham incorrido no desagrado dos academicos: taes eram Matheus de Sousa Coutinho e Jeronyrno de Figueiredo. Na verdade, se fôra tenção sua a que a sentença condemnatoria lhes imputa, nada obstaria a que, antes de serem presos, a tivessem executado. Isto mesmo se deduz, attendendo ao modo por que foram practicados os ferimentos; porque, em quanto Coutinho e Figueiredo tinham o craneo fracturado por balas, os restantes eram offendidos em sitios de menor ou quasi nenhum risco, como as espadoas e nadegas e, segundo a mesma sentença, suas feridas feitas ou por instrumento ponteagudo triangular, ou por grãos de chumbo.
Uma e outra vez repito, não justifico o proceder dos estudantes, porque um assassinio não se justifica; mas, attendendo ao systema traiçoeiro, com que então os dois campos politicos se gladiavam, á exaltação dos animos, e ao perigo que aos estudantes poderia resultar, se a denúncia chegasse a Lisboa, desculpo de alguma forma o acontecimento de 18 de março. E o que me tem obrigado a insistir sobre tão lastimosa occurrencia é o ver os aleives e calúmnias, que lhes assacaram seus inimigos, inda hoje influirem na penna de alguns escriptores liberaes e não lhes deixarem olhar a questão á luz por que deve ser olhada.
Lembremo-nos que o mais velho dos criminosos tinha vinte e quatro annos; que a sorte, pondo-lhes um punhal na mão, os mandou ser assassinos; que a falta de obediencia ao mandato era o estigma da covardia estampado em suas faces, a exclusão da associação, e talvez mesmo a sua sentença de morte; lembremo-nos das imprudencias e irreflexão de nossos primeiros annos, e se tornarão a nossos olhos mais dignos de lástima que de horror esses nove desgraçados, que viram, entre seus sonhos de gloria e aspirações de liberdade, levantar-se a ignominiosa tripode em que a justiça humana fere duas vezes suas víctimas, uma na vida, outra na honra!
XIV
TRABALHOS EM VÃO
Chegou Lucena a Lisboa na vespera do julgamento dos estudantes.
O dia da sua chegada foi todo perdido em investigações nas cercanias do Limoeiro, e em traçar novos planos para ahi se introduzir, porque a experiencia lhe mostrou quanto eram insufficientes os que em Coimbra concebêra.
Os presos estavam incommunicaveis; e o carcereiro era de uma incorruptibilidade superior a toda a tentativa de subôrno.
Entre os prisioneiros havia um, especialmente, a quem Lucena quizera salvar a trôco de todos os sacrificios -- seu amigo, seu condiscipulo e seu companheiro durante a carreira litteraria de ambos: era Mansilha.
Mas o dia ja estava proximo de seu fim, sem que lhe tivesse occorrido lembrança alguma que o satisfizesse.
Lucena tinha a superstição dos amantes: pareceu-lhe que, vendo Assumpção, ou que pelo menos tendo notícias d'ella, sería mais feliz em todas as suas tentativas. A primeira pessoa, a quem perguntou a morada de Alvarenga, soube indicar -lh'a. Era o morgado assás conhecido em Lisboa pela aura que o bafejava da côrte.
Passou um sem número, de vezes em frente da casa em que julgava habitar a sua amada. O coração, que adivinha, assim nós soubessemos ler em seus presentimentos, o coração parecia querer leval-o para longe d'aquelles logares de perdição, mas seus pes tomavam raizes no pavimento da rua. Houve momentos em que de tudo se esquecia, parecendo-lhe que sua jornada a Lisboa so tivera por fim seguir o rasto do anjo dos seus sonhos. Homem algum, por menos que tenha de homem, deixa de contar instantes na vida em que a voz do egoismo não faça em seu peito emmudecer todos os outros sentimentos.
Uma vez, em que passava perto da porta principal da habitação de Alvarenga, viu um criado, que pela libre conheceu pertencer-lhe. Dirigiu-se a elle e perguntou-lhe se o fidalgo coimbrão trouxera em sua companhia toda a familia; e, enleiado pela resposta negativa do criado, ficou alli mais tempo do que a prudencia o aconselhára, procurando atinar com o fio do labyrintho, atraves do qual Assumpção se perdia para elle; e tão absorto estava em seu profundo cogitar, que nem víra o morgado passar-lhe ao lado, olhal-o como se quizesse persuadir-se a si mesmo de que não se enganava, e tomar o caminho da casa do intendente.
Voltou Lucena á hospedaria em que pousára, perdidas quasi completamente todas as esperanças. Os nomes de seus amigos e de Assumpção barulhavam-se na phantasia, que lh'os mostrava como perdidos para sempre.
Seu quarto era proximo á sala da mesa. Chegadas as horas da ceia, o estudante deu-se por incommodado, e continuou a passear no quarto a passos precipitados. Mas entre o rumor de vozes, que se elevava da sala proxima, algumas palavras soltas lhe chamaram a attenção. Lucena achegou-se á porta, e todo elle se tornou ouvidos.
Grande número dos commensaes da hospedaria sentavam-se em volta da mesa, sôbre que se servia a succolenta e confortativa ceia de outras eras, e não essa extenuante beberagem a que, por mal de nossos peccados, a moda nos condemnou com grave risco de nos tornar estupidos e preguiçosos como um mandarim. Tinha chegado o momento em que, aplacado o appetite com a primeira refrega, o trabalho da deglutição se interrompe por instantes para dar margem a uma conversação animada e quasi sempre folgasan, na qual o espirito se refocilla, e o estomago encontra alentos para armazenar novas materias de chylificação.
Fallava-se alli muito do objecto que, como hoje se diria em phrase parlamentar, se tinha tornado a ordem do dia. E na verdade, prevendo seu tragico desenlace, fora rarissimo, em qualquer conversação, não vir á baila a arriscada tentativa dos estudantes de Coimbra. A respeito d'elles se aventavam anecdotas e episodios biographicos, que, se alguma cousa provavam, era a fôrça de imaginação do narrador, que deixava a perder de vista Salvador Rosa e Schiller em suas scenas de salteadores.
Alli então usava, ou abusava, da palavra um proprietario do Ribatejo, gordo e rechonchudo como o melhor bezerro das suas manadas, e que, pela importancia que se arrogava, parecia ser alguma cousa la na terra, assim como quem diz juiz da vintena, ou alferes de ordenanças.
-- A mim pouco se me dá d'essa corja de patifes, vociferava o bojudo ribatejano: tudo quanto lhe façam ainda é pouco para o que merecem. De quem tenho pena, é dos pães. Eu, por mim o digo, se o meu rapaz, que la anda para doutor padre, se mettesse 'numa salsada d'estas, eu sei la!... so para o não ver ahi ‘numa forca, tinha alma de me atirar aos paus do meu malhado, que é o peior animal dos meus sitios, pois ja conta sete mortes, e ainda se não dá por satisfeito.
-- É verdade, sr. Bento Lopes, atalhou de um canto da mesa novo interlocutor. O que lhes irá aos pobres pães la por dentro a éstas horas! Olhem aquelle nosso vizinho alli defronte. E até uma dor do coração o vel-o!
-- Qual vizinho?
-- Quem ha de ser? o capitão mor de Cintra.
-- Bem sei. Ouvi dizer que o homem tem mechido e remechido tudo para salvar o filho.
-- Faz la ideia! É filho unico, e então não via outra cousa. Desde que lh'o prenderam, veio ahi para Lisboa, e não ha arrancal-o de casa dos juizes e da da infanta. É que a infanta é sua comadre, e se ella não salvar o afilhado, então não sei quem o ha de salvar.
Foram éstas palavras, que attrahiram a attenção de Lucena. Um novo raio de esperança desceu-lhe até ao coração. Lembrou-se então do muito valimento do capitão mor de Cintra, e que por elle poderia obter permissão de fallar com os prisioneiros, e de combinar com elles o melhor modo de se evadirem.
Com impaciencia esperou que fôsse dia. Longas se succedem as horas para quem, ao cabo d'ellas, ve a tranquillidade, e o estudante media-as pela sua impaciencia.
Finalmente appareceu a aurora apos uma noite de sonhos, ora a prophetisarem venturas, ora a agourarem desgraças. Lucena acordava de instante a instante, até que suas janellas reflectiram a luz ainda incerta da alvorada. Mas d’ahi a serem horas de ir procurar o capitão mor ainda mediava uma eternidade.
Lucena escutava com febricitante alvoroço o augmento progressivo do rumor, que precede o despertar de uma grande povoação. A custo se conteve a esperar que chamassem para o almôço; mas, findo este, voou a casa do capitão mor de Cintra.
Bateu, perguntou por elle, e responderam-lhe que não estava em casa. Quando descia a escada, deu de cara com um velho, que caminhava em sentido contrário. Em sua physionomia viu o estudante os estragos de uma grande dor. O coração não careceu de mais indicios para adivinhar o nome d'esse homem. Devia de ser o pae de Domingos dos Reis.
-- O sr. capitão mor de Cintra? perguntou o mancebo.
-- Sou eu, senhor.
-- Desejava fallar-lhe acerca de negocios em que se tracta da vida ou da morte de alguem.
-- Tenha o incommodo de subir.
O velho adiantou-se, e, abrindo uma porta que estava ao cimo da escada, fez entrar Lucena em uma sala, onde ambos se acharam a sos. Maximo dos Reis convidou Lucena a sentar-se, e elle mesmo se sentou, occultando o rosto com ambas as mãos.
Houve uma longa pausa. Por fim o capitão mor levantou a cabeça, mas ainda a tempo que duas grossas lagrimas rolavam em suas empallidecidas faces.
-- Perdoe-me o desafôgo, disse o ancião. Tinha necessidade d'isto! Poderá agora dizer-me qual o fim da sua visita?
-- Sou estudante de Coimbra, respondeu Lucena, amigo, condiscipulo e companheiro de casa de alguns d'esses que...
-- Ja sei; talvez companheiro tambem em seus... em seus desvarios. Veja aonde levam tão perniciosas doutrinas. Oh! que, se o coração me adivinhára, não mandaria eu meu filho a Coimbra, para com as instigações e exemplos de collegas esquecer os preceitos de moral e honestidade, que eu e sua mãe lhe ensinámos.
-- Tenho-o deixado fallar, sr. capitão mor, porque vejo que é ainda um desafôgo, que nem ao menos lhe deixa ver que está practicando uma injustiça. Quem lhe disse que haja aconselhado ou instigado seu filho, ou qualquer dos outros a que?...
E, como Lucena parecesse titubear ao concluir seu pensamento, procurando termos que menos ferissem o melindre do ancião, este proseguiu:
-- Diga, diga, a que assassinassem e roubassem. Ja estou acostumado a esta vergonha!
-- Se, sendo pae, os julga assim, como quer que os outros os julguem? O homem que, para se defender, attenta contra a vida de outro homem, sera um assassino?
-- E tambem para defender a vida se forçam bahus?
-- E a denúncia? e onde é que estava a lista das víctimas que se iam offerecer para com suas lagrimas, e talvez seu sangue, amassar os alicerces em que se firmaria o throno de um usurpador?
-- Nem mais uma palavra, que tal não posso ouvir. Nem posso, nem devo.
-- Um instante de attençao é o que lhe peço. Sou liberal e fallei como liberal. Seguimos ideias diversas, e ‘neste ponto não nos poderemos entender. Mas no que devemos fallar, porque nos interessa a ambos, é em salvar esses desgraçados. Póde estar certo que eu, reprovando o procedimento d'elles, não tenho pejo comtudo de lhes chamar amigos. Imprudentes, rebeldes, tudo o que quizerem podem ser, menos reus de um crime vergonhoso. Isso não!
-- Mas todos os accusam...
-- O tempo lhes fara justiça. Venho de Coimbra expor-me a todos os perigos, affrontar a prisão e a forca para os salvar, e bem ve que é necessario que os julgue dignos do sacrificio. Oppuz-me com todas as fôrças a que se impedisse por aquella fórma a ida da deputação a Lisboa, mas fui vencido pelo voto das maiorias. No emtanto julgo do meu dever auxilial-os no apêrto a que os levou o fatal acontecimento que deplorâmos. Se a guerra civil tem chamado a attençao dos que lhes prometteram soccorro no caso de infelicidade, eu, que nada lhes prometti, venho satisfazer essa dívida e resgatar a palavra empenhada. Depois de tentar todos os recursos, vejo que so com o seu valimento poderia levar a cabo ésta arriscada empreza. Desejava alcançar permissão do intendente para entrar no Limoeiro.
-- Nunca! Não exacerbe mais o rigor da minha cruz! Não me tente a fazer o que não devo, porque não devo contribuir para uma nova imprudencia. Que iria la fazer dentro d'essa casa infernal? Sabe que, entrando ahi, correria risco de não sahir? Decerto tem um pae que o ama, uma mãe que o idolátra: não queira que attribulem a minha ja tão maguada existencia com o peso da maldição de ambos, fazendo a sua desgraça, como eu ‘nesta hora maldigo todos os que concorreram para a perdição de meu filho.
-- E assim deixa escapar a occasião de o salvar?
-- Quem lh’o disse? Ainda hoje, ainda hoje, antes de se assignar essa sentença fatal, que os condemna a uma morte infamante, eu me rojei aos pes de todos os julgadores, regando com minhas lagrimas o chão que pisavam, beijando suas mãos, que podiam dar-me a vida ou a morte, implorando o perdão de meu filho, promettendo-lhes em ouro o pêso de seu corpo, se m'o restituissem vivo; e elles foram inexoraveis! Lagrimas, súpplicas, offertas, tudo em vão!
-- E desanimou porque os juizes cumpriam as ordens de seu amo? Não sabe que ainda ha recursos de que se devem lançar mão? Obtenha-me o que pedi, e verá se não sou mais feliz.
-- Não me falle assim, que me escasseiam fôrças para resistir a outro desengano! Se nova esperança entrasse dentro de meu seio, o golpe que d'ahi a arrancasse, arrancar-me-ia tambem a vida. E, se eu morrer, quem ha de amparar aquella pobre mãe, que la em Cintra pede a Deus a vida de seu filho?
-- E que dentro de pouco sabera que, dependendo tudo de uma palavra de seu marido, -- seu marido, o pae de seu filho, recusou proferil-a!
Lucena bem sabía que estava dizendo uma sem-razão: ninguem, melhor do que elle, reconhecêra de quantos extremos era capaz para salvar o filho aquelle nobre coração de pae. Todas as diligencias, offertas e sacrificios, que Maximo dos Reis fizera, não os ignorava elle. Mas, fallando assim, o mancebo tinha em vista coagir o capitão mor a empregar meios que repugnavam com seus principios.
O capitão mor, que não passava de um honrado velho, tinha um insuperavel afêrro ás ideias que bebêra com o leite. Em seu modo de pensar, o rei era um delegado do podêr divino; o minimo desacato para com o throno um sacrilegio. Fôra mister ser seu filho e amal-o cegamente para se atrever a pedir por um reu convicto do horrivel crime de lesa-magestade. Mas o que não sería facil conseguir d' elle é que, por meios menos licitos, ousasse frustrar a acção da lei. Tudo quanto não fôsse recorrer á clemencia régia e implorar a compaixão dos julgadores, nem se compadecia com os seus principios de lealdade, nem com o respeito que tinha ás instituições monarchicas. O proprio podêr de que estava investido e seu muito valimento na côrte não lhe consentiam outros recursos.
Mas Lucena estava alli como o demonio da tentação a deslumbral-o com tão seductoras promessas, a fallar-lhe tanto ao coração, a estreital-o cada vez mais no círculo em que se debatiam os deveres de homem e o amor de pae, que o ancião queria não ouvir suas palavras, mas sentia-as calarem-lhe la no íntimo, e, como se fôssem de fogo, contorcerem-lhe as entranhas.
E o capitão mor lutava e lutava muito para rejeitar a proposta de Lucena; e, embora os labios continuassem a recusar as offertas do estudante, o coração, alem de não tomar parte na recusa, reprovava-a.
-- Quem vos disse, continuou Maximo, que dependia tudo de mim? Oh! que se isso assim fôsse!...
-- Pois não depende?
-- Agora so d'Aquelle, respondeu o ancião apontando para os ceus. Hoje mesmo, depois de lida a sentença, entrarão para o oratorio, d'onde so devem sahir d'aqui a tres dias para o... cadafalso.
-- Ainda assim elles hão de interpor embargos, e ganhar tempo, que é o que nos falta.
-- Nada os póde salvar, afianço-lhe eu. Os embargos, sei como elles se decidem; duas pennadas em dois dias, e ao fim d'elles estão rejeitados.
-- Não importa. Alcance-me a licença. Diga que sou um confessor da sua devoção, a quem quer confiar os ultimos instantes de seu filho. O que me basta é entrar la dentro, e concertar um plano de evasão, que pelo resto me responsabiliso eu.
-- Eu nunca menti. Agradeço-lhe a intenção, mas dispenso o sacrificio. Fuja, antes que se descubra a sua estada aqui. O mais que posso fazer é jamais revelar a alguem o que entre nós se ha passado.
-- Não me retirarei, em quanto não tiver tentado quanto é humanamente possivel, visto que os amigos de agora valem mais do que os paes.
-- Calumnie-me; faça o que entender, eu fiz o que devia.
-- Assim recusa?
-- Recuso, disse o velho, fazendo um esfôrço sôbre si mesmo para se não desmentir.
-- Está bom. Que fique comsigo a lembrança de que não quiz salvar Domingos.
E Lucena avançou um passo, como para se retirar. O velho rogou-lhe que se não fôsse; e Lucena, vendo o capitão mor vacillar ja nos ultimos reductos entre a honra e o amor, apertava-o de cada vez mais, ferindo-lhe a corda sensivel, até que chegou a vencer a irresolução de Maximo.
O capitão mor sahiu a sollicitar a licença, conforme Lucena lh'a pedíra. Este, a instancias do honrado velho, alli esperou que voltasse.
Passadas duas horas entrou o capitão mor. Na alegria, que illuminava seu rosto, pôde Lucena obter a certeza de que estavam cumpridos seus desejos.
XV
Com o nome de Manuel do Livramento, da congregação do Sanctissimo Redemptor, obtivera Lucena, por intervenção do capitão mor, a permissão de ir exhortar os nove sentenciados.
Possuidor d'esta licença, e disfarçado no vestuario d'aquella congregação, correu o estudante ás portas do Limoeiro.
O carcereiro examinou a licença, e, devolvendo-lh'a, disse:
-- E impossivel. Os presos estão no oratorio com os seus confessores, e eu não posso interromper de forma alguma a sua confissão.
-- Sera impossivel, muito embora, replicou o supposto frade, mas eu tenho aqui uma ordem, e posso e quero usar d’ella. Os parentes de alguns dos criminosos alcançaram-m'a para que os exhortasse nos ultimos instantes: é um encargo a que me nao devo eximir.
-- Nao é minha a culpa, se me nego a satisfazer ao empenho de v. r.ma Agora nem o infante poderia obrigar-me a servir-vos. Tenho ordens mui terminantes. No emtanto volte ámanhan v. r.ma por hora em que os presos communguem, e 'nesse intervallo ser-lhe-á possivel fallar com elles.
-- Mas bem ve que é muito curto o espaço, para que satisfaça cabalmente á missão de que me incumbiram. Não poderei hoje ainda vel-os?
-- Hoje é impossivel.
-- Voltarei ámanhan. A que horas?
-- Por toda a manhan.
Lucena sahiu da prisão, descoroçoado por um lado, mas por outro animado pelas promessas do carcereiro. Tomou o caminho da casa do capitão mor para lhe dar parte do succedido, e mudar seus vestidos pelo trajo com que devia voltar á hospedaria.
Um homem o tinha seguido sem o perder de vista, e parára á sua espera á porta de Maximo dos Reis. Não tardou Lucena em voltar, e mal tinha dado dois passos na rua, quando o desconhecido lhe tomou a dianteira.
-- Procuro o sr. Alvaro de Lucena, lhe disse este.
-- Não o posso informar ácêrca de um individuo que não conheço, respondeu o estudante, simulando tranquillidade, que estava bem longe de sentir.
-- É inutil o disfarce, proseguiu o desconhecido. Faz favor de me acompanhar.
E, a um aceno d'elle, viu-se Lucena cercado de esbirros.
-- Não tenho que o acompanhar. Não quero ir.
-- Obrigal-o-emos então. Na cadeia tera o senhor opportunidade para mostrar se nos enganámos ou não. Segurem-no, continuou elle, voltando-se para os que o rodeavam.
Lucena quiz ainda resistir, mas a desvantagem era muito grande para não ceder dentro de pouco. Sete ou oito homens cahiram sôbre elle, e obrigaram-no a voltar pelo caminho da cadeia.
Foi recolhido Lucena a uma das mais tenebrosas prisões do Limoeiro. Pintar o desespêro em que o estudante se viu ao sentir correr os ferrolhos, que o privavam da liberdade, é quasi impossivel.
O dia e a noite confundiam-se nas trevas do seu carcere, e na mudez, que alli reinava, o bater das pulsações era o unico som que feria seus ouvidos.
Pelo número de vezes que a porta se abrira para dar passagem ao guarda que lhe vinha trazer o parco alimento, que lhe consentiam, Lucena julgou terem decorrido duas noites, desde que se achava no segredo.
Era portanto aquelle o dia em que deviam ser executados os nove estudantes de Coimbra. Ésta Lembrança não lhe desoccupava o espirito, avultando-lhe de contínuo aos olhos d’alma todos os incidentes, cada qual mais barbaro, do supplício de seus amigos.
Um desacostumado ruido de passos, um sussurro de vozes até alli não ouvido, tudo o levava a crer que se não enganára em suas conjecturas. Os curiosos d’estes sanguinolentos espectaculos ja aguardavam a hora da execução com a mesma impaciencia, com a mesma curiosidade com que algum tempo depois deveriam apinhar-se ao redor do cadafalso erguido para elle.
A porta do carcere abriu-se, e um dos guardas, o mesmo que lhe costumava trazer a refeição quotidiana, intimou o prêso para que o seguisse.
-- Vae assistir ao baptismo um dos sentenciados, lhe disse elle.
-- Ao baptismo? perguntou Lucena admirado.
-- E verdade que o senhor nada póde saber, proseguiu o mesmo. Então, emquanto se prepara para nos acompanhar, vou pol-o ao facto de tudo. Fr. Claudio da Conceição, que é um homem virtuoso e temente a Deus, quando soube que os estudantes de Coimbra estavam sentenciados a pena última, trouxe nove registos da imagem da Senhora da Conceição da Rocha, um para cada um dos condenmados. Foi ésta imagem a que appareceu, faz agora seis annos, nas margens da ribeira de Jamor, e que presentemente está collocada na basilica de Sancta Maria. Muitos devotos têm a Senhora da Rocha, porque, desde o seu apparecimento, não cessou de fazer milagres aos que lh’os pedem com fe e devoção. Fr. Claudio bem sabía que, por mais herejes que os presos fôssem, se elles nos ultimos momentos pedissem a intercessão da Senhora da Rocha, ella os havia de soccorrer. E o caso foi que aquella bemaventurada imagem fez um novo milagre.
Lucena olhava espantado para o guarda, sem que no meio de todo aquelle aranzel podesse vir no conhecimento do motivo por que um de seus amigos havia de ser baptisado. Se elle não tivesse a certeza de estai acordado, parecer-lhe-ia tudo aquillo um sonho.
-- Mas o baptismo? atalhou elle. Não é d’isso que me queria fallar?
-- Ja la vamos. Continue a vestir-se, que eu lhe irei contando tudo. Hontem, pelo fim da tarde, ja os presos tinham concluido as confissões, commungado, pedido perdão uns aos outros, dizendo-se o eterno adeus, quando veio o escrivão do crime participar-lhe que tinham sido rejeitados os embargos. Então um dos presos, chamado Mansilha, pediu que lhe trouxessem fr. Claudio, e, retirando-se com elle ao seu cubiculo, ahi lhe declarou que elle, por haver nascido em Inglaterra, não tinha sido baptisado, e professava as erradas doutrinas d'aquelles herejes. E era o caso que, tendo-se distribuido por todos os sentenciados a milagrosa imagem, collocando os registos aos pes do crucifixo, que havia em todos os cubiculos, o tal Mansilha, por milagre da mesma Senhora da Rocha, fôra tocado pela divina graça e pediu o baptismo.
Lucena comprehendeu então quanto ao princípio lhe parecêra um disparatado enigma. A Egreja manda que, para aquelles que pedem o baptismo, haja uma longa catechese, a fim de que na celebração do sacramento ja o catechumeno esteja convencido das excellencias da religião em cujo gremio vae ser recebido. Mansilha, abjurando suas suppostas crenças de protestante, queria sem dúvida ganhar tempo, esperançado em que a causa da junta triumphasse e olhasse para seu crime com olhos benevolos.
-- Mas, atalhou Lucena, se elle pediu hontem o baptismo, como póde ja hoje estar prompto para o receber?
-- É que fr. Claudio passou toda a noite com elle a explicar-lhe a verdade da religião christan, e ja o deu como sufficientemente habilitado para lhe ser administrada a agua baptismal.
-- Mas esse não é o preceito da Egreja...
-- Isso é que não sei, nem me importa. Fr. Claudio decerto não consentiria cousa que fôsse contrária á religião. Mas vamos, proseguiu elle, vendo ja Lucena preparado, de mais tenho dado á taramela. Deixe amarrar-lhe os pulsos, que é a ordem que me deram, e vamos, que ja é tempo.
Por um requinte de maldade tinha o carcereiro ordenado que o estudante fôsse assistir áquelle acto, que era o prologo da execução de seus amigos. Lucena entrou na sala do oratorio com o coração comprimido pela mais viva dor, como tão forte não a sentiria talvez se, em vez de simples expectador, fôsse actor em tão infausta scena.
Postados em duas fileiras ao pe do altar estavam todos os sentenciados, afora Mansilha. Seu vestuario era o com que deveriam marchar para o supplício. Comprida alva lhes descia até aos pes completamente nus, e a corda, que lhes daria a morte, rodeava-lhes ja o pescoço. Divididos em duas alas, quatro de cada lado, seguravam com a mão direita uma tocha, projectando trémula claridade. Por trás d'elles estavam os confessores, inclinando-se a cada instante para lhes murmurarem aos ouvidos palavras de paz e confôrto, extrahidas das páginas mais sublimes da uncção, que offerece a leitura das sagradas letras.
Mansilha vinha pallido e abatido, como quem passara vigilia de angústias; e, para que firmasse um passo, necessitava de ser amparado pelos dois frades que o acompanhavam.
Celebrou o baptismo o mestre de cerimonias da cathedral, Mariano Antonio Jose de Macedo.
Como padrinho, levou-o á pia baptismal o prior da freguezia de S. Martinho, Joaquim Jose Pereira Leite, acompanhado de Jose Francisco, mordomo da botica da Misericordia, que trazia um ramo de flores de Nossa Senhora da Piedade, escolhida para madrinha do neophyto.
A occasião e o logar augmentaram ainda á cerimonia religiosa a grave ruagestade, que é inherente a todos os actos do culto catholico. A sisudez, o recato e a compuncção, que se observaram durante a solemnidade, traziam á lembrança os mysterios dos primitivos christãos, celebrados entre o horror das catacumbas e no intervallo em que a vingança do romano descansava á espera que as alimarias do circo se esfaimassem para novo repasto do sangue dos martyres.
Ás nove horas estava tudo concluido. Mansilha veio então prostrar-se nos degraus do altar, e permaneceu orando por algum tempo. Passados instantes um guarda bateu-lhe ao de leve no hombro, e, como o estudante voltasse o rosto, disse-lhe:
-- Ja tinha tempo de ter pedido perdão a Deus. Agora está quasi a dar a hora.
Mansilha ergueu-se a este funebre convite, e, depois de ter abraçado seus companheiros um por um, murmurou com uma voz que se esforçava para não sahir trémula:
-- Estou prompto.
Começaram depois os guardas a amarrar as mãos aos nove sentenciados. Quando chegou a vez de Mansilha, e que o mesmo guarda, que tinha ido interromper suas orações aos pes do altar, apresentando-lhe uma corda, se dispunha a cumprir seu penoso dever, uma voz, retumbando la de um canto da sala, fez suspender por alguns instantes o desfecho d'esta lugubre scena.
-- Mansilha! gritava Lucena, debatendo-se entre os guardas que o seguravam.
Todos os estudantes se voltaram admirados para o sítio d'onde soára voz tão sua conhecida.
-- Tu tambem! exclamaram alguns.
Mansilha por um esfôrço de vontade pôde, não sei se correr, se voar aos braços do seu amigo, e murmurou-lhe aos ouvidos:
-- Tudo baldado, tudo.
Quando os guardas os apartaram, tinha Mansilha perdido os sentidos, que tão violento fôra o choque 'nelles recebido no momento em que reconhecêra Lucena, que as forças que encontrou para acercar-se de seu amigo so as devia recobrar em frente do patibulo.
Lucena foi retirado d'alli immediatamente, e arrastado para a masmorra, d onde melhor lhe fôra não ter sahido do que assistir a similhante espectaculo, se o coração tinha alli de lhe ficar retalhado pelos mais acerbos golpes.
Mansilha, apesar de voltar a si, não podia suster-se em pe sem que o amparassem, e foi 'neste estado de quebrantamento que proseguiram na tarefa interrompida, porque a hora do supplício estava marcada, e não havia mudal-a.
Meia hora depois das dez abriam-se as portas do Limoeiro para dar passagem aos sentenciados e seu apparatoso cortejo. As ruas do trânsito estavam guarnecidas de tropa, e a artilheria, postada nos logares em que melhor podesse manobrar, ameaçava descarregar-se sôbre as massas do povo, que se apinhavam em volta dos guardas, á minima tentativa feita para livrar os condemnados.
Á frente do cortejo ia Mansilha ‘numa cadeira de braços, levada por gallegos, atraz os outros sentenciados acompanhados dos confessores.
Mansilha, ao chegar aos degraus da forca, levantou-se corajosamente e subiu a escada fatal. O carrasco deu-lhe o laço corredio em volta do pescoço, e, vinte minutos depois do meio dia, sua alma estava na eternidade.
Ás quatro horas da tarde restavam para lembrança da sanguinolenta scena, que alli se passára, tres cabeças pregadas na forca, onde permaneceram até que o tempo e as aves de rapina as consumiram. Eram, como mandava a sentença, as de Megre, Mattos e Couceiro.
A justiça dos homens estava desaggravada: a sociedade póde assassinar impunemente.
Não tardou a triste nova a chegar aos ouvidos de Lucena. O mesmo guarda, que lhe dera circumstanciada notícia ácêrca do baptismo de Mansilha, egualmente lh'a deu do supplício d'elle e do de seus companheiros.
Entendia o homem la de si para si dever pagar d'esta forma a cedencia que o estudante lhe fizera do jantar e da ceia.
Diz o bom senso do povo 'numa d'aquellas suas maximas, que tanta agudeza de observação revelam: «em casa de ladrão não lembres baraço.» Assim cada palavra do guarda calava no espirito do mancebo, depositando ahi o germe de uma dor de que a solidão havia de formar um martyrio. E que a solidão é chrysol, onde tudo se depura, pedra de toque em que tudo se aquilata, lente que tudo augmenta, o bem e o mal. Lucena ja o experimentava.
Desde que, no recinto do seu carcere, tudo cahiu no habitual silencio, Lucena começou a relembrar, uma por uma, todas as palavras que ainda ha pouco acabára de ouvir, e a sentir tumultuar na imaginação as infaustas peripecias por que, em menos de um mez, passára sua existencia. Ha occasiões na vida do homem em que cada grão de areia, que descae da ampulheta do destino, nos esmaga com a lembrança de um novo infortunio. O mundo aponta exemplos em que o intervallo de uma noite bastou para encanecer uma fronte, e não sabe, não póde dizer, quaes as tormentas que la no interior se debateram antes que á superficie viessem deixar vestigios de sua luta.
Lucena, arfando de cansaço, agitava-se na enxêrga, procurando em vão encontrar no somno allívio para seu alterado espirito.
Seus olhos recusavam cerrar-se, ou mesmo cerrados viam ainda as cabeças desfiguradas de seus amigos agitarem-se nos postes a que estavam prêsas, olharem-no com os olhos embaciados pela morte, entreabrirem os labios congelados, e deixarem escapar um som inarticulado, monotono e triste como o silvar do vento por entre os cyprestes das campas. E as cabeças continuavam a agitar-se, e a cada movimento uma chuva de sangue, que jorrava do pescoço mutilado, cahia sôbre Lucena.
Depois entre aquellas cabeças apparecia uma nova, e era a sua, tambem decepada, tambem sanguenta.
E o mancebo queria convencer-se de que sonhava, e não podia.
E a multidão que se apinhava alli, em volta do funebre triangulo, ria e batia palmas, vendo seu corpo contorcer-se nas convulsões da agonia.
De repente Lucena ergueu-se de um salto sôbre a enxerga, deu alguns passos, procurando a parede e parou. Levou a mão á fronte com gesto significativo, por que muitos querem concentrar toda a attenção ‘num ponto determinado... e pensou... em que? Na maneira mais facil por que podia sahir d'aquelle inferno a que estava amarrada sua existencia.
Lucena via-se so no mundo, desligado de familia, que não conhecêra, pois desde o berço se víra entregue aos suppostos desvelos de um tutor; apparentemente esquecido pela mulher que amára, e pela qual afouto encarára todos os perigos so com a esperança de alcançar possuil-a ao cabo d’elles. Inutil para si e para todos, a vida era para elle pesado fardo de que almejava alliviar-se. Antecipar um ou dois mezes a acção da justiça, não era um bem relativo, que lhe arrancava dos labios o calix do infortunio, onde ja provava o travo das fezes?
Lucena sorrira á ideia do suicidio; mas, antes de levantar as mãos contra si mesmo, queria de alguma fórma justificar similhante acto, que os recursos extremos, porisso mesmo que são extremos, necessitam das absolvições da consciencia. A ideia de que o suicidio é o ultimo refúgio do covarde ou do louco, a incerteza do que o esperaria alem do tumulo, e mais que tudo o instincto da conservação, tudo o obrigava a pesar com madureza as consequencias de um attentado contra a sua vida.
Foi longa e disputada a luta que se travou em seu espirito. Venceu o genio do mal. O estudante, como allucinado, procurou na muralha do seu carcere o angulo mais saliente, o que melhor o podesse auxiliar em seu tenebroso intento. Mas quando, desvairado pelo soffrer, ia para despedaçar o craneo contra a muralha, um círculo de fogo subiu-lhe á cabeça, faiscas de lume brilharam-lhe ante os olhos, seu corpo entorpecido vacillou e cahiu em todo o pêso sôbre o pavimento.
No dia seguinte o guarda ficou extremamente maravilhado, quando viu o prisioneiro estendido no chão e todo banhado de sangue. Correu a dar parte ao carcereiro, e este ao médico da cadeia; e dentro de pouco entravam todos os tres na prisão de Lucena.
O médico fez o seu diagnostico, e achou que o infermo fôra acommettido de uma congestão cerebral. Por morto não o dava elle, mas com poucas esperanças de vida. Lucena, quando cahíra fulminado por uma vertigem, dera com a cabeça na aresta de uma aguda pedra, de que resultára profunda ferida, que tomára caracter ameaçador. O copioso derramamento de sangue que d'ella promanára, se por um lado tinha salvado o doente dos ameaços da congestão, fôra por outro lado em tão larga escala, que o deixára 'numa prostração, vizinha da morte.
Foi primeiro cuidado do médico mandal-o transportar a uma sala que satisfizesse ás condições de improvisada infermaria, e em que mais facil se tornasse o prestar-lhe os soccorros de que tanto necessitava.
XVI
DEVAGAR SE VAE AO LONGE
Abriu-se a porta da casa, arvorada em infermaria do Limoeiro, e um vulto de mulher assomou entre os batentes.
Era uma linda menina de dezoito annos. Cousa singular! Porque essa ingenua candidez, que em seu rosto se revelava, era desmentida pela descompostura de suas maneiras, e um ar de nobre distincção transparecia no meio das simples roupas que a vestiam?
Outra singularidade! Por que capricho da natureza, apesar de tantos pontos de dessimilhança, era esta mulher o fiel transumpto de Assumpção? Que laço de sangue poderia unir a fidalga á filha do povo, para tanto se parecerem?
Filha do povo e quem sabe? talvez da vergonha e do crime. Os nomes de seus pães não os sabía ella; nem os conhecêra, nem alguem lhe fallára 'nelles. Creara-se abandonada ao destino, que deu azas á pomba e garras ao abutre, que diz á innocencia «foge» e ao vício «persegue».
Tinha uma vaga lembrança de ter vivido, ‘numa aldeia, em casa de uma mulher que lhe batia muito em quanto acariciava outras creanças, que ella julgára seus irmãos. Não eram, não podiam ser, que, conhecendo a inferioridade d'ella pela maneira por que sua mãe a tractava, a não acceitavam em seus brinquedos, e a desprezavam, e a torturavam com aquella barbara insistencia que têm as creanças, quando se não vêem reprimidas em seus maus instinctos.
Lembrava-se ainda de que uma tarde, estando seus irmãos em roda da lareira em que faziam um magusto, ella, tremendo de frio, de que mal a resguardavam os andrajos com que cobria a nudez do corpo, acercara-se da fogueira para aquecer seus membros regelados.
-- Vae-te d'aqui, lhe disse uma d'essas creanças.
-- Deixa-me aquecer... tenho tanto frio!
-- Toma, lhe respondeu o mais velho de seus irmãos, atirando-lhe á cara com uma acha incendiada. Isto é para te não metteres onde te não chamam.
Ignez retirou-se para um canto da cozinha, chorando, mas sem que dissesse uma palavra. As outras creanças riram-se e applaudiram a lembrança do irmão, não poupando motejos á sua víctima. Ignez ja não chorava de frio, era de raiva, de sêde de vingança. Sua consciencia dizia-lhe que practicavam para com ella uma injustiça , e, na impotencia de se desaggravar, mordia os beiços até escorrerem sangue.
Apagára-se a fogueira, e os que a rodeavam retiravam d'entre as brazas as castanhas com que em breve contavam regalar-se. Ignez morria de fome, e iam-se-lhe os olhos a cubiçar aquelles saborosos fructos, que eram para seus irmãos uma gulodice, emquanto para ella seriam talvez a primeira refeição do dia.
'Naquelle infantil peito o orgulho queria suffocar os gritos da fome, e a fome vencer o imperio do orgulho. Ignez sabía que nada lhe dariam, embora o pedisse; suas lagrimas a seus irmãos so inspiravam risos, seus pedidos recusas, seus gostos contrariedades.
Uma das creanças caminhou então para o recanto em que Ignez se aninhára.
-- Aqui tens o teu quinhão, disse ella, apresentando á malfadada menina o prato em que tinham guardado as cascas.
Ignez olhou para seu irmão, como a víctima olha para o algoz, e, escondendo o rosto entre as mãos, desatou a chorar.
-- Avia-te, que isto arrefece, continuou o carrasco de dez annos, entornando sôbre a cabeça de Ignez o conteúdo do prato que tinha na mão.
Uma gargalhada geral victoriou a lembrança. Ignez em sua exasperação esqueceu o systema de prudencia com que até alli procurava apiedar seus irmãos. Ergueu-se de um salto furiosa, e deitou a seus pes o aggressor. Depois, caminhando para o logar em que se achavam os outros irmãos, disse-lhes:
-- Não me quizeram dar um quinhão, agora não preciso de lh’o pedir, e estendeu as mãos para o prato que alli estava, d'onde as retirou cheias do fructo com que principiou a saciar a fome, indifferente a quanto se passava ao redor d'ella.
Aos gritos e lamentações das creanças appareceu a mãe, e, ouvindo suas queixas, voltou-se contra Ignez, que arrastou pelos cabellos até á casa immediata. Debalde a pobre víctima se defendia, mostrando a sem-razão por que era maltractada por seus irmãos; sua defeza valia-lhe mais duro castigo.
-- Eu não sou sua mãe, lhe dizia aquella mulher com entranhas de monstro, vossê é uma engeitada. Todo o mal que lhe façam, não é bastante para se esquecer do bem que aqui lhe têm feito. Va para sua mãe, se quer ser mais bem tractada, e de caminho peça-lhe que me pague a sua criação, ja que os senhores da roda se esquecem d'isso. É atrevida a tal menina! Bater em meu filho!... Quem lhe deu a vossê licença para tanto?
E assim continuou a mulher ralhando e batendo, até que deixou Ignez como morta. Dois dias depois Ignez desappareceu da casa de sua ama e da aldeia, onde ninguem mais a viu. Tinha então sete annos.
Ignez nem se lembrava de como tinha vivido depois que fugíra dos maus tractamentos, que recebêra na companhia da mulher que a criára. Vagamundeando, prestando os serviços que se compadeciam com sua tenra edade nas casas em que era acolhida por compaixão, esmolando ás vezes o pão da caridade, quando outros recursos lhe faltavam, Ignez fôra levada a Lisboa por seu destino aventureiro, e na edade em que no rosto das virgens se abrem as rosas do pudor, ella ja as trazia desfolhadas para sempre.
Do lodaçal do vício a arrancára um dos guardas do Limoeiro para onde a levára para viver em sua companhia. Mas no centro da atmosphera mephytica em que vivêra, cercada d'esse ambiente de exhalações deleterias em que empallidecem e murcham todas as flores da alma, Ignez conservára sempre a virgindade do coração, onde guardava intacto o sentir fino e delicado da mulher immaculada, os mysteriosos arroubamentos e os inexplicaveis desejos da que ainda não encontrou no mundo o ser que lhe pinta a phantasia, quando scisma ao descahir da tarde, encostando a mão ao rosto, bafejado como a flor pelas auras do crepusculo, ou quando no leito, meia acordada meia adormecida, se delicía em sonhos que lhe embriagam os sentidos, a alma e o pensamento.
Ignez, fechando a porta com precaução, avançára alguns passos. Seus olhares dirigiram-se para a enxêrga em que, prostrado pela doença, jazia um dos presos.
Ignez, julgando-o dormente, continuou a caminhar nos bicos dos pes até se acercar do leito.
-- Dorme, murmurou ella, depois de se ter por alguns instantes demorado a contemplar o doente. Inda bem que sua respiração me parece hoje mais soeegada. Se elle não morresse!...
Agitou-se o corpo do infermo em ligeiro estremeção. Ignez debruçou-se sobre a cabeceira e parecia surprehender com anciedade e coordenar em seu espirito algumas palavras sem nexo e quasi inintelligiveis que o doente proferia.
-- Sempre aquelles maus sonhos que lhe não deixam um momento de repouso, murmurava ella comsigo mesma. E como soffre... como tem soffrido ha trinta... ha mais de trinta dias, que velo quasi sempre a seu lado! Quem me havia de dizer que... que estimaria ainda assim alguem!
-- Assumpção, exclamou o doente agitando-se de novo na enxerga, Assumpção... sempre... tu sempre... amo-te... minha Assumpção...
No intervallo d'estas palavras balbuciava outras, muitas ás vezes incomprehensiveis, quasi inarticuladas, palavras que irritavam a curiosidade de Ignez sem que as que o infermo continuava a balbuciar em seu delirio fôssem bastantes para lh'a acalmar.
Depois Lucena tornou a recuperar um somno placido, e o sonho que o agitára ou cessára de o atormentar, ou se transformara em risonho quadro, pois seu rosto brilhava agora illuminado por um raio de felicidade.
Ignez parecia suspensa dos labios de Lucena. Escutara com avida curiosidade cada uma de suas palavras, mas, na confusão d'ellas, mal podia atinar com o segredo de que se queria a todo o custo assenhorear. Havia 'nelle alguma cousa de doloroso que a maguava, mas o que não o sabía ella. Talvez esse nome de mulher, que tão frequente descerrava os labios do infermo.
-- Passou, continuou ella apos alguns momentos de silencio. Mas não será isto em mim uma loucura? Que me importa este homem? E é dedicação, e é amor, e é isto o que elles me pedem? Não. Amor? mas para que fallei eu era amor?... Amar eu... eu! E para que? E quem me ha de querer? É verdade que ninguem sabe... nem me acreditariam os que ouvissem a historia do meu infortunio. Mas que influencia exerce em mim este homem! Vi-o lutando entre a vida e a morte... tive dó d'elle... muito dó, porque era desgraçado, e... e eu bem sei quanto custa ser desgraçado.
Ouviram-se passos no corredor, e Ignez correu a abrir a porta. Era o médico que vinha fazer a sua visita diaria.
-- O nosso doente? perguntou elle a Ignez ao entrar.
-- Está agora dormindo.
Ignez conservou-se de fóra da porta em quanto o médico se acercava do leito do infermo.
Na volta, disse-lhe este:
-- Ora descanse, e tire essa alminha de penas, que o seu protegido está salvo.
-- Salvo! Ja não ha perigo algum?
-- Vera dentro de alguns dias. Prometto-lhe uma convalescença rapida, especialmente continuando a ser tractado por tão linda infermeira.
Ignez sentiu desejos de abraçar o médico pela notícia que lhe dava. Exultando de alegria foi acompanhal-o até quasi á sahida da cadeia. Era a primeira vez que, para com elle, usára de tanta cortezia.
Quando tornou para junto de Lucena, tinha elle outra vez cahido em somnolehcia. Ignez contemplava-o, ou antes devorava-o com seus olhos cheios de seducção e magia.
-- Salvo, dizia ella, salvo! -- e quasi sem pensar em tal achegou tanto seus labios dos do infermo, que ao ligeiro contacto seu corpo estremeceu todo. Mas é que eu amo-o, proseguiu ella, amo-o! Pois que sera isto senão amor? Ai! pobre amor, que encantos poderás tu offerecer? Não os tenho eu malbaratado todos no venal prazer de um instante?
E a pobre Ignez via so com ésta lembrança entenebrecer-se-lhe a existencia que a phantasia lhe andava illuminando com os aureos reflexos da felicidade.
Nunca até alli tão detidamente reflectíra Ignez no aviltamento de sua triste condição. Se por vezes uma palavra brutal, um gesto menos attencioso lhe mostrára quão baixo havia descido na dignidade de mulher, para logo abafára no ruido das orgias o brado da consciencia. É que sua vida era vida de alegria e não de lagrimas; e ai! da que na ruidosa confusão do bordel não sabe afivelar ao rosto a mascara de um mentido sorriso, quando por todos os poros lhe exsuda fel o coração! Arreie-se-a víctima de rosas para o sacrificio, rasgue-lhe embora os seios d'alma o dardo do soffrimento.
E Ignez deixara-se arrastar pela corrente de seus destinos, indifferente a quanto a rodeava, indifferente a si mesma. Que lhes importava aos que vinham em seus braços desenfastiar-se dos ocios de uma vida libertina, que lhes importava a singeleza de seus affectos e os elevados sentimentos, que, á falta de cultura, se haviam refugiado no mais recondito da innocente víctima dos caprichos sociaes? Innocente, e por que não direi innocente?
Repete-se ahi todos os annos, em muitas romarias, diante de milhares e milhares de expectadores maravilhados, repete-se, cada vez mais crido, o milagre de um homem atravessar pelas lavaredas de um forno sem que o fogo lhe toque sequer a epiderme: e porque não acreditaremos, noutra ordem de factos, a repetição do mesmo milagre? Será o vício mais intenso que as chammas, será a alma mais susceptivel de ser influenciada pelas circumstancias externas do que o involtorio carnal que a encerra? A mulher que, por uma causa qualquer extranha á sua vontade, desceu ao lodaçal e ahi deixou cahir a sua coroa de virgindade, embora a lama do tremedal não lhe salpique para cima da fimbria do seu vestido; ha de ser estigmatisada com o mesmo epitheto infamante que se dá á que ahi se revolve, não coagida, mas por gôsto, e polluindo o corpo e a alma?
A espada da lei, antes de se descarregar despiedada sôbre a cabeça do criminoso, inquire com todo o rigor do escrupulo as causas determinativas, que actuaram no espirito do que vae julgar. Porque havemos de ser com o infortunio menos indulgentes do que com o crime?
E Ignez, como outras muitas, era mais digna de lástima que de desprêzo. So e abandonada no mundo, chegou á beira do abysmo, e resvallou por elle, sem saber que la ao fundo havia um outro e outros mil, cada qual mais lutulento e tenebroso.
Quando abriu os olhos e teve consciencia de si, era tarde: tarde para voltar pela porta da virtude, cedo para sahir pela da infima degradação. Alli não ha rehabilitação possivel, nem victória provavel. É deixar-se ir á tona d'agua 'naquelle lago pestilento, e feliz da que primeiro abica, ainda no explendor da juventude, na maca de um hospital, aonde morre sem ter esgottado as últimas fezes do calix das agonias!
Foi com o seu primeiro amor que Ignez sentíra completa mudança operar-se dentro de si; e assim como aos primeiros raios do sol da primavera desabrocham mil flores, que o gear de inverno tolhêra em seu desinvolvimento, assim ao fogo d'aquelle amor virgem refloriram e fructificaram os germes das mil virtudes, que Deus deposita no seio da mulher, e aonde, embora atrophiados pelo halito de um mundo motejador e egoista, tarde ou nunca se extinguem.
Lucena tinha acordado; e seus olhos, antes de se fixarem em outro objecto, encontraram-se com os de Ignez, cruzando um olhar d'aquelles em que parece escapar-se a alma.
Era a primeira vez que a pobre mulher se víra assim olhada. 'Naquelle momento esqueceu toda a negrura da sua vida, e pareceu-lhe que um mundo, um mundo melhor, o mundo dos sonhos, se desvendava a seus olhos.
-- Assumpção, disse a custo o infermo, aonde estou eu?
Ignez sentiu uma dor tão aguda no coração, que empallideceu de subito, como se o gêlo da morte lhe houvesse entrado la. Aquelle olhar de amor, que surprehendeu nos olhos de Lucena, a meiguice d'aquella voz, não era para ella. Havia uma outra mulher, superior decerto por todos os dotes que embellezam uma mulher, feliz, mil vezes mais feliz sem dúvida, que era adorada, estremecida, e constantemente invocada nos delirios, nos sonhos e nas fallas do homem, que ella amava como so uma vez se ama na vida.
-- Assumpção, repetiu o infermo, porque me não respondes? O meu espirito erra na confusão das trevas... nada me lembra senão de te ver aqui, aqui ao meu lado, e eu a soffrer muito... muito e tu a chorar. D'isto é que me lembro. Mas como me trouxeram para aqui? que é esta casa? que era esse tinir de grilhões, que ás vezes sentia? porque era essa nuvem de sangue sempre diante da minha vista? Que quer dizer tudo isto, Assumpção?
Ignez não respondia. Levou a mão ao rosto para occultar as lagrimas, que lhe borbulhavam dos olhos. Lagrimas de ciume, lagrimas de desconfôrto, lagrimas de saudade, motivadas pela lembrança d'essas noites de vigilia passadas á cabeceira do infermo. Mil vezes mais venturosa então, que ainda não sabía quanto doe a indifferença do ente que se idolátra, indifferença aggravada ainda pelo pungir incessante do ciume.
Lucena, vendo-a chorar, attrahiu-a a seus braços, prodigalisando-lhe mil caricias.
-- Assumpção, lhe disse o mancebo, porque choras tu?
Ignez sentiu estremecer seu corpo todo sob a pressão dos braços de Lucena; mas aquelle nome, cada vez mais aborrecido, era o aspide cuja mordedura lhe envenenava o gôzo da passageira dita que encontrára nos carinhos do estudante. A pobre mulher soffria tanto, que quiz com um desengano vingar-se d’aquelle que, innocentemente, a torturava; e, desligando-se da amorosa prisão que a retinha, deixou escapar éstas palavras:
-- Eu não sou quem julga. Chamo-me Ignez...
-- Ignez! repetiu o infermo, examinando detidamente a sua infermeira. E verdade!... mas ésta similhança... não sera tudo isto ainda um sonho? Sim, ésta voz não é a de Assumpção; mas eu vi-a, vi-a muitas vezes a chorar quando o sangue me estuava nas veias, e a febre me desvairava a cabeça. Diga-me, senhora, onde está ella? onde estou eu mesmo? que é todo este enigma, que não sei como resolver?
Então Ignez lhe declarou o logar em que estava, e como fôra encontrado no carcere, quando no dia seguinte ao da execução dos nove estudantes o guarda lhe ia levar o almôço.
-- Havia uma lacuna nas minhas lembranças, que não sabía preencher. Agora lembro-me de tudo. Mas diga-me, Ignez, não havia aqui uma mulher ao pe de mim, velando em todas as minhas noites de angústia, ahi mesmo aonde agora está, mas reclinada sôbre a minha cabeceira, que regava com suas lagrimas?
-- Havia, havia.
-- E essa mulher aonde está? Porque se esconde agora?
-- 'Nesta casa, alem de mim, outra mulher... não sei que entre.
-- Ignez era então que...?!
-- Era eu.
-- Ah! quanto lhe devo, Ignez. Sim, continuou Lucena, como que fallando comsigo mesmo, o que julgava era impossivel: Assumpção não podia ser; mas ésta similhança!...
Depois, voltando-se para Ignez, proseguiu:
-- Não sei se era melhor deixar-me ahi morrer ao desamparo! De que me- vale viver mais ou menos um dia, se a minha morte está decretada? Sou injusto para comsigo. Não eram estes, decerto, os agradecimentos que esperava, depois do muito que fez por mim; mas sou tão desgraçado, que talvez me fôra melhor morrer no dia em que entrei ‘nesta casa.
Foi-se Lucena restabelecendo, e as visitas de Ignez, ainda que menos longas, não cessavam comtudo. Ignez sentia-se de cada vez mais enamorada do estudante; mas, á falta de lhe corresponderem com egual affecto, seu amor tocára as raias da abnegação. Durante as suas visitas ao prisioneiro sacrificava-se a fallar-lhe de sua rival por ser aquelle nome o condão magico que lhe dissipava as tristezas nas horas de desconfôrto.
Mas é que Lucena para ella era merecedor de muito mais. Desde que lhe contára o que se lembrava da sua vida, a infamia a que descêra, desde que depositára no seio d'elle o segredo de suas lagrimas e de sua vergonha, Lucena parecia esmerar-se em tractal-a com mais affabilidade. Todos esses titulos de desprêzo para os outros homens, foram para elle titulos de compaixão.
Um dia Ignez veio mais tarde que de costume. Seus olhos afogueados de muito chorar, um certo ar de preoccupação, que se notava em seu rosto, mil symptomas que, ao primeiro volver d'olhos, atraiçoavam secreto pezar; tudo annunciava que Ignez soffria e soffria muito.
Instava Lucena para que lhe revelasse a causa da sua afflicçâo, e ella so respondia com lagrimas e soluços.
-- Diga, Ignez, não me oeeulte nada. Ja me condenmaram? É isso que me não quer dizer? perguntou por fim o estudante, depois de se ter perdido em conjecturas, a que Ignez respondêra sempre com um gesto negativo.
-- Ainda não, felizmente ainda não. Mas é que ámanhan é mudado para a sua antiga prisão.
-- E so por isso?... Que me importa a mim a sala livre mais do que o segredo? Prêso por prêso, é-me indifferente um ou outro logar.
-- Mas é que eu não posso la descer abaixo. Assim nunca mais nos tornariamos a encontrar.
-- Se o destino assim o quer, que remedio senão resignarmo-nos?
-- E antes da resignação, se tentasse primeiro vencer o destino?
-- Como?
-- Sahindo do Limoeiro.
-- Ignez!...
-- Quer evadir-se?
-- A minha cabeça não vale a pena de ser disputada ao carrasco. Nada me prende ao mundo. Quem se interessa ja por mim?
-- Ninguem, decerto, ninguem, disse Ignez lançando-lhe um olhar de exprobração.
-- Perdoe-me, fui injusto. Mas a minha evasão não a tornaria mais desgraçada? Não carregaria sôbre si o odio de meus inimigos?
-- Não fallemos de mim. Quem lhe diz que a mulher... a mulher que o ama se esqueceu de si? Não póde ella egualmente crer-se abandonada e trahida? Não póde haver uma fôrça invencivel, um podêr superior, que a obrigue ao silencio? Quem julga pelas apparencias, erra quasi sempre. Que queria que fizesse uma pobre mulher? Diz-me o coração que se um dia uma mulher jurar amal-o, amal-o-á toda a vida.
-- Ignez, para que me diz isso? Não sabe que para mim é melhor convencer-me do perjurio que da fidelidade de Assumpção? Aos vinte e dois annos não se deixa a vida sem pezar, senão quando a desventura nol-a torna odiosa.
-- Mentir para o salvar, poderia obrigar-me a isso; mentir para o perder, não. Sabera se o engano...
-- Como?
-- Hoje mesmo ha de sahir d'aqui. Ora escute.
Ignez foi á porta ver se andava alguem pelos corredores, que a podesse ouvir. Voltando, depois de se certificar que estavam sos, e acercando-se do prisioneiro, expoz-lhe o plano que tinha imaginado, desde que alli entrára.
A esperança da liberdade illuminava a fronte de Lucena. Enlevado pelo tom de convicção com que Ignez lhe fallava, o mancebo cria-se ja livre d'aquella horrivel estancia e procurando Assumpção onde quer que seu mau fado a tivesse escondido aos olhos d'elle.
Emquanto não veio a noite, e com ella Ignez com os aprestos para a fugida, não cessára o prisioneiro de pintar em sua phantasia os mais extravagantes successos. Umas vezes parecia-lhe que tudo fôra descoberto; outras que Ignez não fizera mais do que escarnecer da sua credulidade; outras finalmente, respirando ja o ar da liberdade, via-se reconhecido e reconduzido ao carcere de que se evadíra.
Chegou finalmente a hora em que Ignez deveria vir libertal-o. Appareceu ella, trazendo 'numa das mãos um vestuario, que pertencia ao guarda em companhia de quem estava, e na outra uma pequena lanterna de furta-fogo.
-- Vista isso depressa, disse ella ao prisioneiro. No emtanto vou dar uma volta pelos corredores, e não tardo.
Lucena, ‘num abrir e fechar de olhos, como se costuma dizer, envergou o fato que Ignez lhe trouxera.
Quando ésta voltou de novo ja o encontrou preparado.
-- Silencio! Deixe passar a ronda.
Effectivamente alguns passos compassados começaram a echoar nas abobadas do corredor, contiguo á prisão de Lucena.
A porta foi cerrada com toda a precaução, e os dois fugitivos recuaram, pe ante pe, até ao centro da sala, com os olhos fixos na direcção do corredor, e uma das mãos a tapar a bôcca, d’onde sahia o anhelito de uma respiração entrecortada e alterada pelo desassocêgo.
-- Estamos perdidos! murmurou Lucena aos ouvidos de Ignez.
-- Cale-se pelo amor de Deus!
Os passos foram de cada vez tornando-se mais distinctos, e ja principiavam a ouvir-se algumas palavras destacadas, que os soldados trocavam entre si: e, á proporção que o rumor se avizinhava, ia tambem crescendo a inquietação e fallecendo a esperança no ânimo dos que o escutavam.
Chegados em frente da sala, que servíra de infermaria a Lucena, pararam, e um dos guardas espreitou pela fechadura. Ignez tinha escondido a lanterna que levára, e assim nada pôde ver que se tornasse suspeito.
-- Não é preciso demorarmo-nos a entrar, disse o guarda, tornando-se para os seus companheiros. O prêso resona por dois.
E a ronda proseguiu em seu caminho.
Respiraram livres aquelles dois corações, opprimidos até alli pela anciedade.
-- Vamos, disse Ignez, depois de ter dado tempo a que a ronda se afastasse. Siga-me, e cautela com o ruido de seus passos.
XVII
DIPLOMACIA FRANCISCANA
-- Então, fr. Marcos, que é o que diz minha filha?
-- Que ha de dizer, sr. morgado? Nada que seja uma formal recusa. A menina diz que não tem vontade de casar... e depois a sua pouca edade, a lembrança de abandonar sua familia, e sôbre tudo os sessenta annos do primo, são outros tantos pretextos a que se apoia para não acceder aos desejos de seu pae. Mas, não lhe dê isso cuidado a v. s.ª, tenho visto muitas dizerem o mesmo, e virem depois a ser excellentes mães de familia. Dê o sr. morgado tempo ao tempo, que pelo bom exito me responsabiliso eu.
-- Sim, mas eu é que não estou para prolongar indeterminadamente este negocio. Meu primo agrada-me sob todos os respeitos, e não quero, por um capricho de Assumpção, deixar escapar todas as vantagens que este casamento me offerece. Até aqui ainda arranjei desculpas com que corar a opposição de minha filha, mas que lhe hei de hoje em diante dizer? Não ve como o homem parece apressado, e aperta comigo todos os dias para que desempenhe a minha palavra.
Este dialogo passava-se na mesma sala, aonde alguns mezes antes passeavam os mesmos interlocutores, no dia em que rebentou a revolução de maio, e d’onde, 'nessa mesma tarde, o fidalgo, aconselhado pelo franciscano, sahia para em Lisboa se esquivar ao odio dos revoltados, em quanto sua familia se retirava para o convento de Cellas.
O frade continuou, cravando os olhos no chão com falsos ares de modestia:
-- Sr. morgado, bem sei que não sou pessoa por cabeça de quem se deva regular, mas eu no seu caso fazia, por intenção da menina, o que o dictado em taes conjuncturas nos manda fazer por intenção propria! «Antes que cases, olha o que fazes»; diz-se la pelos nossos sitios, e isto de palavras de velhos é cousa que nunca devemos perder de vista. Mulheres, todas são as mesmas, têm sempre as suas nicas, seus caprichos como hoje dizem, porque emfim tudo tem senão, e o que, sendo apenas pretendente, começa por lhes declarar guerra de morte... aos caprichos, bem entendido, receio muito que mais tarde acabe por guerrear tambem a mulher.
-- Ora, que está ahi a dizer; fr. Marcos? Conheço bem o primo Menezes, tão bem como os dedos da minha mão, e sei que elle sera incapaz de tractar mal sua mulher. 'Nisto bem ve que tem toda a razão. Um proprietario não póde estar por muito tempo ausente de sua casa; e elle, não contando o tempo desde que deixou as suas herdades do Alemtejo para ir a Lisboa felicitar o nosso rei, o senhor D. Miguel, ja aqui está comigo em Coimbra ha tres... quatro... cinco semanas exactamente, ha trinta e cinco dias, que se completam hoje. Bem ve que nós, no seu caso, tambem fariamos o mesmo, se não peior.
-- Mas se elle, mudadas as settas em grelhas, os louros em myrthos, et caetera, queria, como Cesar, chegar, ver e vencer, porque não esperou que se tivessem aplainado todas as difficuldades, para então vir receber as honras do facil triumpho, que se~lhe tinha preparado?
-- Havia de ser fresco, especialmente sendo v. r.ma o encarregado d'isso. E olhe que isto não o digo eu para desfazer nos seus merecimentos, que sempre que tenho recorrido ao meu amigo, não me tem negado seu valioso auxilio, menos em materias da especialidade de que se tracta, que foi a primeira vez que lh'o implorei e a última!
-- Sim, como v. s.ª não tem outra filha...
-- Ainda de mais a mais. Ja ve que hei de cumprir com o que disse. C’os diabos! ora veja se isto é de quem sabe lidar com mulheres!... Eserevo-lhe a dar parte do negocio que tinha apalavrado mais meu primo, peço-lhe que faça com que Assumpção se preste da melhor vontade ao casamento, e vae fr. Marcos o que faz? Matar-me o bicho do ouvido com cartas, e a dizer-me: «Assumpção chora, Assumpção grita, Assumpção isto, Assumpção aquillo», e nada de novo! e eu e o primo em Lisboa á espera que a menina se resolvesse a querer aquillo, que estava mortinha por alcançar. Isto é que é a verdade. Todas ellas têm a mesma labia. Não o querem, não o querem; mas, em se offerecendo occasião, atiram-se ao tal sacramento como gato a bofes. Algumas tenho eu visto no altar a chorarem por um olho, mas a rirem-se pelo outro. Bem se ve, fr. Marcos, que nunca estudou os costumes d'esta raça, que é uma degeneração da humanidade.
-- Nem similhante estudo se conforma com o meu estado.
-- Tem razão. Cansado ja de cartas, disse então para meu primo: «homem, venha d'ahi até Coimbra, faça meia duzia de zagatés á rapariga, que é assim que ellas se embeiçam; eu ca pela minha parte digo-lhe cousa de duas palavras terminantes, e temos o arranjo concluido.» O primo approvou a ideia, e aqui estamos nós... assim como quem não quer a cousa.
-- Mas acho que tambem d'esta vez os seus estudos sôbre essa raça, que é uma degeneração da humanidade, não lhe têm sido, muito proveitosos!...
-- Sim, confesso, a rapariga anda-me assim com ares de Magdalena, e eu não gostava tambem de a constranger, sem ver que ella não ia muito fóra do eito; mas suas nicas têm-se demorado mais do que eu pensava, e a paciencia ja se me esgottou. O primo quer voltar para as suas herdades, e eu mesmo tenho necessidade de tornar quanto antes para a côrte; porque emfim um homem da minha linhagem tem obrigação de estar aonde está o rei. Logo, o casamento ha de se arranjar o mais breve possivel. Eu ámanhan dou um baile em honra de meu primo, e, quer Assumpção consinta, quer não, apresento-o ja aos meus amigos como meu futuro genro. Veremos se ella quer que seu pae fique envergonhado por não desempenhar a sua palavra. Eu vou la para dentro, e ca lhe mando Assumpção para que a resolva a tomar juizo.
-- Mas bem ve v. s.ª como eu sou infeliz 'nestes negocios; ainda ha pouco prometteu não me tornar a occupar 'nelles, e como quer ja fazer o contrário do que disse? 'Nestas cousas a voz de um pae é mais auctorisada que outra qualquer.
-- Sabe uma cousa, fr. Marcos, é que me parece que anda de ma vontade em tudo isto. Eu desconfio que está resentido por eu o não ter consultado, antes de resolver o casamento. Mas que quer? appareceu-me este negocio tanto a geito, que eu não podia deixar escapar a occasião.
-- Oh! sr. morgado, por quem é... tal suspeita poderia ter quem não soubesse quanto é profundo o meu reconhecimento por tudo que me tem feito. Eu não poderia querer como obrigação o que para mim é uma honra que v. s.ª me concede. Se alguma vez meus conselhos lhe têm sido uteis, isso é quanto quero, mais não. O que depois disse, é o que sentia; v. s.ª é quem melhor póde concluir o que principiou.
-- Sim, é verdade, eu tambem conheço isso. Mas a rapariga fica-me para ahi a choramigar, e eu então não sei... põe-se-me a tremer o queixo, e não digo palavra. Olhe, eu ca lh'a mando; avenha-se la com ella.
Alvarenga, se bem o disse, melhor o fez. Deixou o frade na sala, e mandou por um criado chamar Assumpção para ir ter com o franciscano.
O frade, agitado pela inabalavel resolução do morgado, e mais que tudo pela brevidade com que queria que se concluisse o casamento, que dava um golpe mortal em todas as suas machinaçoes, passeava de um para outro lado, quando Assumpção entrou na sala.
Assim como ha flores que necessitam que a chuva do ceu desça sôbre ellas, para que mais formosas se ostentem, ha bellezas que o soffrimento atila e a que as lagrimas dão realce. Assumpção era uma d'essas. O occulto padecer, que 'nella em tudo se revelava, augmentava-lhe os naturaes attractivos, a ponto de a tornar seductora e irresistivel como a virgem dos sonhos.
O frade foi ao encontro d'ella, e, receoso de que fôsse ouvido por quem parasse ás portas o que entre ambos ia ser dicto, encaminhou-se para o vão de uma janella, que era o ponto mais afastado d'ellas.
-- Encarregaram-me de uma penosa missão, disse elle? sentando-se, depois de offerecer a Assumpção uma cadeira perto da sua. No emtanto nas minhas palavras não veja mais que o desejo de seu pae, nem julgue que ‘neste ponto seja do mesmo parecer. Tracta-se do seu casamento.
-- Julgava que era uma cousa que ja estivesse tractada.
-- Ainda não, a repugnancia que a menina mostra...
-- Repugnancia! ... está enganado, fr. Marcos. Agora mesmo acabo de dizer a meu primo o contrário.
-- Como? exclamou o frade, levantando-se estupefacto.
-- Jesus! que admiração é essa? Sente-se, fr. Marcos, se quer que continuemos a conversar.
-- Mas a sua pouca edade, o desejo de não abandonar sua familia, os sessenta annos do futuro, todos esses obstaculos que via na realisação d'este casamento, como acabou tudo isso?
-- V. r.ma não sabe que o amor vence tudo?
-- Amor! amor a um homem velho, immundo, gottoso e rabujento!... Pensa que acredito isso?
-- Que pintura fez tão feia do meu futuro marido! Creia que, se fôsse outrem que tal me dissesse, tolher-lhe-ia a liberdade de m'o repetir. Mas a v. r.ma devo relevar-lhe tudo, porque bem sei que a muita amizade, que me tem, faz com que so me julgue digna da mão de um principe. Não é assim?...
-- Fallemos com franqueza, sr.ª D. Assumpção.
-- Sr.ª D. Assumpção, ora diga la outra vez sr.ª D. Assumpção. Esse dom, dicto por si, tem tanta graça... inda que não seja senão o da novidade. Sabe que, se fôsse vaidosa, julgaria...
-- O que?
-- Ora, não digo. É uma brincadeira minha.
-- Diga, peço-lhe que diga. Ainda mais, se m'o não diz, calar-me-ei com o que estava pensando agora mesmo a seu respeito.
-- Assim é uma troca de segredos? Va la; mas desde ja o previno de que não faça caso do que disser... é uma brincadeira...
• Vamos, eu estou á espera.
-- Dizia eu que, se fôsse vaidosa, pela acrimonia com que falla de meu primo, e mais que tudo pelos signaes de descontentamento e despeito que tem deixado perceber desde que lhe confessei que de boamente acceitava as homenagens do meu pretendente, por tudo isto concluiria que... se fôsse possivel... v. r.ma tinha ciumes do meu noivo. Ve, que é uma tolice?...
-- Não, encontro-lhe chiste, e digo, como os italianos «si no è vero, è bien trovato.» Agora falta-me desempenhar a minha palavra. Pensava eu que a menina não ama seu primo. Não porque lhe quadrem perfeitamente os epithetos, que ainda ha pouco lhe prodigalisei, e que tanto offenderam a sua susceptibilidade, porque a mulher disputa quasi sempre ao demonio o gozo de tudo o que é mau, mas por uma outra razão, cuja infallibilidade ja tive occasião de experimentar, e, de mais a mais, comsigo mesmo. O amor é um hospede importuno, mas que a gente agazalha o melhor que póde no interior de sua casa. As festas, que lhe offerecemos por dever de hospitalidade, são todas em familia, porque a verdadeira familia é cada um por si e para si; e fazemos todo o possivel para que o alvoroço do júbilo não denuncie a extranhos a presença do hospede mysterioso. Não o trazemos ás janellas para que os vizinhos o vejam, nem o levâmos aos passeios para que o público o admire. Damos-lhe o logar de preferencia, mas o mais recondito. Quando a gente confessa sua presença, é quando ja todo o mundo o sabe, porque o amor, apesar de todas as precauções, faz gala em se denunciar. Mas quanto nos custa a primeira revelação, ainda que feita á pessoa com quem privemos, quantas hesitações antes que se nos escape dos labios o segredo que o pudor das faces e o abaixar dos olhos ja têm denunciado! Lembra-se quando em Cellas me confessou o amor que tinha a Lucena? Não foi da mesma sorte por que me acaba de declarar o que diz sentir por seu primo. O amor, embora mude de objecto, não muda na essencia: é sempre o mesmo em tudo. Então, cada vez que repetia o nome tão seu predilecto, havia alguma cousa, na maneira por que o pronunciava, que levava a crer que o ia buscar ao fundo da alma antes de o trazer aos labios, emquanto que agora falla em seu primo com tanto despêgo, como eu fallaria... eu sei la!... em meu bisavô, que nunca vi. Ora, seja franca, menina, confesse que seu velho primo não é assim figura de inspirar paixões... a não ser ás solteironas do seu tempo...
-- Têm-se visto cousas que mais custam a acreditar. Desde que uma mulher de ma nota se torna amavel, não é muito que um velho tambem o seja!
-- E eu que não tinha attingido! ... Então é por despeito que se casa? É para satisfazer a um impulso momentaneo do orgulho, que vae ligar sua existencia a uma mumia ambulante, e immolar todas as esperanças dos seus dezoito annos aos pes de um velho, incapaz de a comprehender, incapaz de a amar, incapaz de fazer esquecer a sua edade por sua dedicação? Medite no lindo futuro que a espera! Eu não digo que não tracte quanto antes de afogar nos laços de um auspicioso hymeneu o sentimento que ainda, apesar de tudo, consagre a Lucena; mas entre as pessoas que frequentam sua casa, póde talvez escolher quem, ao menos pela proporção da edade, lhe assegure consorcio mais venturoso.
-- Quem?
-- Não sou eu que lh'o devo apontar. A menina deverá saber melhor do que eu quaes são os que lhe têm dado mais provas de estima e...
-- Todos me são egualmente indiferentes, e assim prefiro o primo Menezes, que é mais do gôsto de meu pae, e a quem ja dei a minha palavra.
-- É irrevogavel a sua resolução?
-- Irrevogavel.
-- Apesar de tudo?
-- Apesar de tudo.
Fr. Marcos ficou por algum tempo silencioso, as sobrancelhas franzidas pela contrariedade, e um olhar refalsado a refulgir-lhe entre as palpebras, como sinistro reflexo das ideias, talvez mais sinistras, que tumultuavam em sua mente. Fr. Marcos não era homem que desistisse de um projecto porque a fortuna o tivesse abandonado nas primeiras tentativas. Das provas, onde qualquer outro se confessaria vencido, sahíra elle como d’antes, conservando ainda a esperança de fazer acceitar por Assumpção a mão de seu sobrinho.
Assumpção, afectando indiferença, olhava para o risonho panorama, que se descortinava da janella em que apoiára o braço. É que ella soffria e soffria muito, ferida ao mesmo tempo no seu amor e no seu orgulho de mulher. Tel-a trahido perdoaria ella a Lucena, mas trahil-a por uma mulher que o mundo repudiava, isso é que nunca lhe perdoaria. É raro o amor que não tenha ruim liga de vaidade.
-- Quem me manda a mim ser tão precipitado em dar novidades? pensava comsigo mesmo fr. Marcos. Se não fôsse eu, ignorariam aqui todos por certo ainda a fuga de Lucena com a tal rapariga da cadeia; e é exactamente por saber isso, que Assumpção torna agora mais difficultosa a execução de meus planos. Querendo alhear Lucena do coração da morgada, encaixei la o primo! Mas é que decididamente meu sobrinho é um grande bruto, para não saber fazer-se amar durante o interregno que houve entre a quéda de Lucena e a elevação do primo!... E agora... como ha de ser isto agora? Ah! Experimentemos. Vamos fazer a apologia do tal heroe do Limoeiro para sondar os animos.
Depois, interrompendo a morgada em suas cogitações, começou, reatando o fio da conversação interrompida:
-- «Apesar de tudo»: disse ha pouco. Ora vejamos; e se Lucena ainda a amasse; se elle, ‘nesta hora em que estamos fallando, aqui apparecesse, desculpando-se de um desvario em que o coração nem sequer talvez tomasse parte; não lhe perdoaria, não se arrependeria até de ter dado a seu primo a liberdade de a olhar como sua promettida?
-- Lucena amar-me!... Se assim fôsse preferiria elle subir os degraus da forca a dar-me a rival que me deu! No primeiro caso devia ter a certeza, que, anciando pela hora em que Deus me levasse a unir-me com elle, choraria toda a vida a sua memoria, emquanto agora nem ao menos a consolação das lagrimas posso ter.
-- Vejo que ainda o não esqueveu!...
-- Ah! fr. Marcos, deixe-me confessar-lhe isto, que é o que me indigna contra mim mesma. Ainda o amo!... ainda o estremeço tanto como nos dias em que me cria amada e querida por elle! ... Tenho vergonha da minha fraqueza... mas esta é a verdade. Ah! que se eu podesse arrancar o coração do peito e calcal-o aos pes... este coração que me é traidor, este coração que me é desleal e indigno de mim, eu ja o tinha feito!... E para que consinto eu em receber a mão de meu primo? É para que nos deveres de espôsa possa escudar o meu orgulho contra os impulsos da amante!... Agora, que sabe todo o meu segredo, não fallemos mais ‘nisto, que me magôa ainda muito.
-- Pelo contrário, é mister ainda que nos detenhamos neste assumpto. Lembra-se que a minha prudencia fez com que não tivesse ja dado um passo de que estaria agora arrependida, não se lembra?... Foi quando nas grades de Cellas me declarou a sua vontade de professar ‘numa ordem religiosa. O que lhe aconselhei eu então? que reflectisse antes de dar ouvidos á voz da desesperação. E o que ainda hoje lhe digo. Quem sabe se a mulher com que Lucena se evadiu do Limoeiro é sua amasia, ou simplesmente uma companheira na evasão, ou ainda um instrumento, que lhe serviu de facilitar a fuga?
-- Ja se esqueceu do que ha dias me disse, quando me noticiou a fugida de Lucena? Não se recorda que foi, seduzindo essa rapariga e promettendo-lhe, como me disse, a mão de espôso, que fez com que ella se promptificasse a abrir-lhe as portas da cadeia?
-- Seduzir, ora não é tanto assim!... Ninguem se dá ao trabalho de fazer o que ja está feito! E depois eu então estava mal informado... obtive agora esclarecimentos, vindos de fonte limpa. Bem sabe o barulho que faz o mundo por cousas que não valem duas cascas de alho. Por dá ca aquella palha arma-se ahi uma tal embrulhada de mentíras, que a gente não sabe como atinar com a verdade. Quem conta um conto, sempre lhe acrescenta um ponto; cada qual pinta a cousa a seu modo... e depois, do incidente mais prosaico d’este mundo, arranja-se uma novella, digna da penna do nosso immortal Theodoro de Almeida. Eu ja desconfiava de que 'nessas historietas, que se contavam a respeito da evasão de Lucena, andavam muitos ornatos de phantasia. Hoje sei a verdade, e a verdade é um facto simples e natural, que não vejo ‘nelle cousa alguma que lhe possa despertar ciumes.
-- Está certo do que diz?
-- Tão certo como de estarmos agora aqui.
-- Então elle não ama essa mulher? perguntou Assumpção com tal vivacidade, que so com ésta pergunta se atraiçoava o muito amor que ainda tinha por Lucena.
-- Amar... ora quem acredita isso? La porque Prevost ideou ‘num livro immoral, que por ahi se le, uma patetice d'essas, não se segue que na vida positiva vejamos monstruosidade similhante! Estou bem certo que se agora aqui apparecesse Lucena, dedicado como d’antes, logo poria de parte essa absurda supposição, e não teria dúvida alguma em ligar seu destino ao d'elle.
-- Mas a palavra que ja dei a meu primo?
-- Vamos a saber: e pertencia-lhe porventura seu coração quando o offereceu ao sr. Menezes?
-- Nao fallemos d'isso? fr. Marcos. Por quem é tenha dó de mim!
-- Ve que foi imprudente!?
-- Mas que remedio agora senão resignar-me ao sacrificio que me impuz.
-- Triumphei! disse comsigo mesmo fr. Marcos. E seus olhos se illuminaram com um sinistro fulgor.
A conversação foi interrompida pela chegada do morgado. Acabava seu primo de lhe communicar a formal promessa de Assumpção , e Alvarenga vinha todo radioso de contentamento abraçar sua filha e louval-a pela resolução que tomára.
-- Ora inda bem que deste um alegrão a teu pae, disse elle ao entrar na sala. Se visses com que alvoroço teu primo me foi dar a notícia de que por fim te tinhas resolvido a acceitar a sua mão!... Has de ser muito feliz com elle... digo-te eu, e olha que um pae nunca se engana para o bem de seus filhos. Deixa-o la acabar um curativo, que está fazendo á perna de que padece, e verás como vem ahi estrugir-te os ouvidos com finezas, como as não é capaz de dizer o mais pintado peralvilho. E isto agora entre nós, para se não perder a surpreza, olha que ja me fallou 'num aderêço de brilhantes, que; segundo o homem diz, faria honra ao enxoval de uma rainha.
Na tarde do mesmo dia em que se passára a scena que acabámos de descrever, fr. Marcos passeava na sua cella, dictando algumas palavras, que um mancebo, sentado á unica mesa, que 'nella havia, ia transplantando para o papel. De quando em quando, fr. Marcos, interrompendo seu passeio, vinha debruçar-se sôbre as costas da cadeira em que se sentava o escrevente, observando com minuciosa attenção a escriptura, e comparando-a com a letra de um bilhete para que o mancebo lançava frequentes vezes os olhos, como se lhe servisse de traslado.
-- Está prompto, meu tio, disse por fim o mancebo levantando-se e indo entregar ao frade o papel em que acabára de escrever uma inicial em fórma de assignatura.
-- Bom, respondeu fr. Marcos, acercando-se da janella para com mais luz examinar o escripto. Da-me ca o bilhete que te serviu de modêlo.
Luiz, que assim se chamava o sobrinho de fr. Marcos, foi buscar acima da mesa o bilhete pedido. Era o que alguns mezes antes Lucena escrevêra a Assumpção, e fôra subtraindo pela astucia do frade.
-- Estes «xx» é que não estão la muito similhantes... os d'elle são mais tombados... mas de resto... está bom; está bom!... Ella decerto não estará com tantas miudezas; e, á primeira vista, todos iam jurar que ambas as lettras sahiram da mesma mão. Ora toma-me cautela com a tua habilidade, meu rapaz, não abuses d'ella; bem sabes que ha umas certas habilidades, que as Ordenações punem com mão cortada.
-- Quem mais me tem feito cultivar a arte, meu tio?
-- Sim, sim, bem sei isso; mas, quando trabalhas por minha conta, nunca te metto em obras que te possam acarretar desgôstos.
-- É as vezes...
-- Mudemos de conversa, e fallemos em cousa que mais nos interessa. Lembra-te que agora tens a morgada na tua mão: ve la se continúas a ser tão asno como até aqui, e não sabes tirar partido do acaso que t'a deixa á tua disposição. Ouve bem isto. Ámanhan ha o tal baile em casa de Alvarenga, tu não vaes la; entras ás onze horas pela porta do quintal, que Jose ha de deixar aberta, depois vaes para o caramanchão da direita, que é o logar que no bilhete marcas, depois ella vem procurar-te d'ahi a meia hora; e, de duas uma, ou te conhece logo, ou não; em todo o caso vae-lhe cortando a retirada, postando-te diante da porta. Jose, assim que a vir entrar para la, arranja logo um alvoroço, que faz attrahir os convidados ao logar em que vossês estão, e temos nem mais nem menos que um escandalo público. O morgado ha de pedir-te por favor que rehabilites a honra de sua filha, a filha que rehabilites a honra do pae, e temos conseguido o fim que desejamos. Que te parece?
-- Vejo so um inconveniente. Assumpção concederá entrevistas a um amante, nas vesperas de se casar?
-- Se tu lh’a pedisses em teu nome, grandissimo bruto, decerto que assim sería, porque não soubeste nunca como as mulheres se levam; mas, pedindo-lh'a em nome de Lucena, que hoje ama como nunca, porque redobraram os obstaculos, a dúvida é propria de quem não sabe o que uma mulher é capaz de fazer, desvairada pela paixão.
Bateram 'neste instante á porta da cella. Luiz foi abrir, e ao limiar appareceu o criado de Alvarenga, vendido aos interesses de fr. Marcos.
-- Toma la, has de entregar hoje este papel a tua ama, disse o frade, entregando-lhe o bilhete que seu sobrinho escrevêra. Mas, ouviste? affirma-lhe que foi Lucena quem t'o entregou.
O criado sahiu, depois de ter promettido cumprir fielmente as ordens recebidas.
-- E tu, disse fr. Marcos, voltando-se para Luiz, ve o que fazes, lembra-te que é o ultimo recurso. Quanto maior o escandalo, mais urgente o desaggravo.
XVIII
FAZ BEM, NÃO OLHES A QUEM
Qual sería a taes deshoras a causa do alvoroto em que andava a pacífica terra de Cindasunda?
Deveria de ser grande e extraordinaria, para obrigar os bons coimbrões a sahirem de suas casas ás horas em que costumam metter-se na cama.
Ao longe soavam vozes descompostas, gritos e cantares; e o povo corria para la, guiado pela algazarra e pela claridade dos archotes, e um estranho espectaculo se apresentava a seus olhos.
Antes de proseguirmos, duas palavras de explicação.
Depois da infructuosa revolta de 22 de maio, alguns individuos, apontados em Coimbra por constitucionaes, em vez de engrossarem as fileiras dos emigrados, haviam-se retirado para as cercanias da cidade, onde permaneciam escondidos, á espera que o horisonte politico serenasse -- ja porque à sua consciencia não os accusasse de terem tomado grande parte na revolta, para serem perseguidos depois do primeiro desabafo dos miguelistas, ja por outra qualquer razão, que nem vale a pena esmiuçar.
Não tardou porém a ser descoberto o seu esconderijo; e, attrahidos a uma cilada, foram barbaramente assassinados, e seus despojos conduzidos em triumpho pelas ruas da cidade, onde suas familias talvez, a essas mesmas horas, dormissem tranquillas, embaladas pela esperança van de que um asylo ignorado punha a salvo de todas as perseguições a cabeça dos expatriados.
Entraram os assassinos pela calada da noite; mas, desejando dar provas públicas do seu patriotismo, começaram a attrahir a si a infima relé, que, cantarolando e vociferando, attrahiu por seu turno os menos curiosos ou mais indolentes.
As coplas com que despertavam os echos da cidade eram as d'essa célebre, marselheza miguelina, conhecida pelo nome de rei-chegou. E relevem-me o dar-lhe tal nome; porque, ainda que mui differentes sejam as convicções, que esses dois cantos populares exaltam, têm elles a analogia de terem sido os hymnos ao som dos quaes as massas do populacho practicaram os maiores excessos, que a historia dos tempos modernos archiva. Excessos tão injustificaveis para derribar um throno, como para consolidar uma usurpação!
Eis ahi algumas estrophes da epopeia patriotica d’aquelle tempo: é obra de caridade darmos agazalhado a varios trechos de um lyrismo, que ameaça perder-se de memoria.
A causa poderia ser boa; os cantores d'ella tornaram-na detestavel.
D. Miguel chegou á barra;
Sua mãe lhe deu a mão:
«Vem ca, filho da minh'alma,
Não queiras constituição!»
Fóra malhados, fóra malhados,
Fóra patifes, desavergonhados.
Ai, la, ri, la, ri, lo, le, la,
Passarinho pica o trigo.
Se não fôsse D. Miguel,
Portugal 'stava perdido.
Rei chegou, rei chegou,
Em Belem desembarcou,
Aos malhados não fallou,
Realistas abraçou.
Eram as trovas repetidas por alguns centenares de vozes.
Á frente do cortejo marchavam os gaiatos da terra, assobiando e agitando cannas verdes, á maneira de caloiros nas antigas troças academicas, que nunca poderiam ter pretenções a serem parodiadas em tão funebre estylo.
Logo apos caminhavam os assassinos, contentes e satisfeitos de sua obra, não so vangloriando-se da façanha, mas alguns até disputando as honras do assassinato. Cada qual d’estes ultimos jurava ser a bala da sua espingarda a que deixára sem vida as víctimas, que arrastavam no seu carro de triumpho.
Triste triumpho!... triste gloria!...
Depois, fechando o prestito, vinha um carro todo enramalhetado de louros, como o carro de noivos em casamentos de aldeia. Em tôrno d'elle é que se apinhava mais compacta a multidão, é que se agitavam mais archotes, é que as imprecações se erguiam com mais estridor. Todos os olhos se cravavam ahi, como ponto principal d'essa apparatosa scena. Ahi jaziam lividos e ainda escorrendo sangue os cadaveres dos infelizes, reus de uma aspiração, martyres de uma ideia.
A luz dos archotes, projectando-se sôbre os ensanguentados restos, augmentava ainda o horror que toda a alma bem formada deveria de experimentar ao approximar-se d'aquelle carro fatal. O que então fôra uma excepção, sería hoje talvez o sentimento da maioria; porque, façamos justiça aos nossos tempos, creio que este espectaculo não obteria os applausos nem aqueceria o enthusiasmo, que então grangeou, mormente, ‘numa cidade que se préza de civilisada. E que os homens ainda hoje podem ser, e infelizmente ainda são, dominados por paixões ruins; mas o instincto da barbaridade vae-se desentranhando do seio das massas populares. O facho da civilisação, guiado pela liberdade, tem ido descendo pouco a pouco até ao antro em que se revolviam na estupidez, na ignorancia e na barbaria as últimas classes da sociedade.
Tinha-se internado o cortejo pelas ruas da cidade.
Na ponte, onde fôra grande a affiuencia, estavam ainda alguns grupos, mas raros e cada vez mais diminuidos. Uns dispersavam-se para seguirem o carro da morte por todas as ruas do trânsito, outros para se recolherem a suas casas, ou finalmente para avisarem um ou outro amigo do succedido.
Proximo ao sítio em que a ponte se abre 'num largo círculo, que depois se espraia em dois pequenos cães, frequentados de preferencia pelos habitantes da margem esquerda do Mondego, achavam-se a essas horas duas pessoas, que, se tinham sido das primeiras a correr ao grito de alarma, que pozera em alvoroto a cidade, tambem, pelos modos que levavam, pareciam querer ser as últimas a abandonarem o posto a que a curiosidade as arrastára.
Acerquemo-nos d'ellas, que são conhecidos velhos, e, ainda que com uma não tenhamos particular privança, desculpar-se-nos-á a falta de apresentação.
-- Ora, Escholastica, dizia o sr. Ignacio Pires, mestre carpinteiro do convento de Sancta Cruz, parece-me que tu ainda vens a soffrer desgôsto grande por causa de andares sempre a badalar em cousas que não nos importam. Deixa correr quem corre; a fadiga não a has de tu sentir.
-- Eu sempre vi que não eras homem para mim! Quem te não fez conego, errou-te a pancada. Nada te dá cuidado, nada te importa, tanto se te dá que va como que venha... tudo para ti é o mesmo! Em comendo, bebendo e dormindo, estás satisfeito. Pois tu não queres que diga que é uma pouca vergonha matarem meu compadre, que nunca fez mal a ninguem, e que, ainda em cima de ser muito bom homem, não se esquecia, nem á mão de Deus Padre, do dia do meu casamento para me mandar a casa, todos os annos, uma vez um capote de panno fino, outras vezes uma saia de baetão rapado! eu sei la!... parece-me que adivinhava o que precisava mais. Se não fôsse elle tinha ahi de andar meia nua, meia esfarrapada, porque tu tens alma de chicharo, que não és capaz de me dar nem isto.
E a regateira, sobrepondo o pollegar da esquerda sobre o indicador da direita, marcava metade da sua unha, que, aqui entre parenthesis, valia bem uma das nossas com sabugo e tudo.
-- Não tinha mais que fazer!... para que queres tu o que ganhas? Muito favor te faço eu em não dar ar ás louras, que tens escondidas. Guarda-as para teus parentes quando morreres, que te hão de dar bom pago.
'Neste momento começou-se a ouvir o ruido da andadura de dois cavallos. Pela direcção e approximação gradual do som, parecia que, tendo descido a volta das calçadas, os nocturnos viajantes, depois de passarem em frente do convento de S. Francisco, adiantavam-se na ponte, como querendo pernoitar dentro da cidade.
Não se enganaram os dois esposos em suas conjecturas, porque em breve distinguiram cavallos e cavalleiros, marchando a par e como que sopeando o impeto dos animaes, que queriam lançar-se á desfilada, atemorisados talvez pelo zunido que o vento fazia por entre os renques de alamos e chorões, que orlam ésta parte da ponte, que, segundo a tradicção, corre ao lado do primitivo convento de S. Francisco, chamado tambem d’entre pontes.
Passavam os cavalleiros ja mui proximos da regateira e seu marido, quando um dos cavallos, espantado pela sombra de uma árvore, que 'nesse dia se abatêra sobre as guardas da ponte, começou a recuar para o lado em que estava a tia Escholastica, que se viu seriamente ameaçada pelos galões que despedia o animal.
-- Tome la cuidado com quem está, gritou elle ao cavalleiro.
-- Retire-se para o largo, que não sei se poderei suster o cavallo, respondeu este.
-- Ó Ignacio, disse a regateira, puxando pela gola da jaqueta de seu marido, tu não te lembras d'esta voz?
-- Ora! conheço ca flamengos á meia noite!...
-- É que eu havia de jurar... Tome cautela! Irra! nem avisando-o de que está aqui gente!...
Ésta violenta apostrophe arrancara-lh'a um ou dois saltos com que o cavallo encurtára a distancia a que estava da regateira.
-- Que quer que lhe faça? Fuja, o caminho está desimpedido.
-- Ó sôr Lucena, continuou a regateira em tom mais baixo, tracta melhor os amigos.
-- Tu sempre vens a dar em doida! murmurou o carpinteiro aos ouvidos de sua mulher. Pois o homem, que está a éstas horas, sabe Deus aonde, havia de... ai! ai! ai! valha-te Deus.
-- Tão certo tivesse eu este mundo e o outro, como é elle! conheço-lhe perfeitamente a voz.
Durante ésta curta práctica, cochichada entre os dois esposos, o cavalleiro, estremecendo ao ouvir pronunciar aquelle nome, conseguíra refrear o cavallo, e parecia indeciso se havia de continuar seu caminho, ou tentar reconhecer a pessoa que o havia pronunciado.
-- Não tenha susto, sr. Lucena, eu ca sou de segredo, atalhou Escholastica, como que adivinhando o pensamento do desconhecido.
-- Quem é vossê? proseguiu elle por unica resposta.
A regateira, antes de se dar a conhecer, volveu olhar escrutador por toda a extensão da ponte, que sua vista abrangia. Estava completamente desamparada, tendo-se retirado, um a um, todos os magotes, que se haviam formado depois da passagem do cortejo que descrevemos. Para unica recordação d'aquelle sinistro acontecimento ainda soavam ao longe, mas distinctas, as palavras da seguinte estrophe do rei-chegou:
D. Miguel é pequenino,
Pequenino e bem feito;
Prometteu aos realistas
Uma medalha p’r’o peito.
Fóra malhados, fóra malhados,
Fóra patifes, desavergonhados.
-- Ah! sr. Lucena, isso é de homem de bem... esquecer-se assim dos amigos!... Então ja se não lembra da Escholastica Plangana, hein?
-- Ó tia Escholastica! exclamou Lucena com certo ar prazenteiro; e, voltando-se para o individuo que o acompanhava, continuou: ésta é aquella boa mulher de quem tantas vezes lhe fallei.
-- Sim, sim, deixemo-nos de contos da carochinha, atalhou a regateira. Diga-me la o senhor, antes que eu mal pergunte, que diacho tem que fazer ‘nesta terra para vir metter-se como a doninha na bocca do sapo? Pelos modos o senhor não sabe como isto vae por aqui embarulhado?
E a tia Plangana, approximando-se do estudante, começou por lhe contar os perigos em que andavam todos os que na cidade eram tidos por constitucionaes: não esquecendo o facto ainda recente da morte de seu compadre e da dos companheiros.
-- Então correrei grande risco, se me demorar por algum tempo em Coimbra?
Como expressamente para lhe responder, o vento trouxe-lhe 'nesse instante aos ouvidos, la do interior da cidade, as imprecações do estribilho:
Fóra malhados, fóra malhados,
Fóra patifes, desavergonhados.
-- Ouve? disse Escholastica, apontando para o sítio d'onde se elevava tamanha gritaria, é a sorte que espera a quantos encontrarem do seu partido.
Lucena trocou algumas palavras com o seu companheiro. Este fez um gesto negativo, e respondeu por fim:
-- É o mesmo... sei tambem affrontar todos os perigos.
-- Adeus, tia Escholastica, continuou o estudante, depois de estar alguns instantes silencioso, como indeciso na resolução que tomaria. Faça de conta que não me viu, e a ninguem, a ninguem diga que fallou comigo.
-- Alto la! então assim se despede dos amigos?... 'nisso é que eu não consinto. Faça o que quizer, volte para trás ou continue para diante... la ‘nisso é que me não metto, cada um sabe as linhas com que se cose; mas deixar-nos assim sem dizer agua-vae, tó rôla! Ja se não lembra do que lhe prometti, hein? Não senhor, se for para a cidade, ha de ir para minha casa, que não encontra sítio onde mais valha.
-- Diabos te levem! resmungou-lhe aos ouvidos Ignacio Pires. Tu queres por fôrça perder-nos?
-- Cala-te, que não sabes o que dizes, replicou-lhe de egual modo a regateira.
-- Como eu não hei de responder pelo que fizeres? continuou o mestre carpinteiro.
-- Muito boas noites, temos conversado, respondeu-lhe aquella.
E depois, voltando-se para o estudante, que durante este áparte conjugal estivera consultando seu companheiro, sobre se deveriam ou não acceitar os offerecimentos da tia Plangana, disse, lançando mão das redeas do cavallo de Lucena:
-- Então o dicto, dicto. Olhe que ja la vão uns poucos de mezes, mas inda me lembram bem as palavras que lhe disse: «eu ca não sirvo de nada; mas, para a vida e para a morte, sempre me ha de encontrar.» Não foi isto assim?
-- Não ha dúvida, tia Escholastica.
-- Então é não fazer aquellas. O senhor e mais o seu amigo vêm para minha casa. Não é assim?
-- Se ‘nisso não lhe causasse incómmodo... Bem sei que na cidade não encontraria logar em que podesse estar mais afouto...
-- Bom! gósto de o ouvir fallar assim. Agora ha simplesmente um transtorno. Em minha casa não se podem recolher os cavallos; isso dava logo que pensar á vizinhança, em que nada ha que confiar. Os senhores, se querem, desmontem-se ja, que o meu Ignacio vae levar os cavallos para a cavalhariça de um seu amigo, onde estejam sempre promptos para o que der e vier.
-- Tem razão, tia Plangana, vamos seguir o seu conselho.
E os dois viajantes apearam-se. Escholastica tinha chegado no emtanto ao pe de seu marido, e, mostrando-lhe junto aos olhos o punho fechado, dissera-lhe em tom de ameaço, e de forma que so os dois podessem ouvir:
-- Ves, leva-te o diabo, se andas de ma vontade!
Depois, mais alto, accrescentou:
-- Anda, péga nas redeas dos cavallos, e pede ao Manuel da Felicia que t'os recolha. Ouves? diz-lhe que foi o teu padrinho que veio á cidade e mais o filho, e que, não encontrando logar para recolher os animaes, tu lhe prometteste de arranjar onde se abrigassem. Despacha-te, e ve se ficas la toda a noite de palestra.
Ignacio não pôde deixar de acquiescer á vontade de sua mulher, vontade que se lhe manifestara por um preambulo, que lhe fizera arripiar as carnes. Pegou nas redeas dos cavallos, ao tempo em que os cavalleiros ja tinham descido, e, resmungando entre dentes um protesto contra o acto, a que era coagido, tomou o caminho da cidade.
-- Deixemos adiantar-se o Ignacio, e vamos nós depois, para não dar na vista, tornou Escholastica a seus hóspedes.
Effectivamehte so quando o tropel dos cavallos deixou de se ouvir é que os dois viajantes, acompanhados pela regateira, proseguiram seu caminho.
Ao chegarem ao fim da ponte, cortaram pelas ruas menos concorridas, como quem não tinha vontade de ser visto, nem conhecido. Mas, ao passarem em frente do largo da Sota, deram de cara com dois vultos, que estavam conversando em voz baixa. Um dos desconhecidos, vendo os nossos caminhantes, apertou a mão ao seu interlocutor, como para que o não interrompesse, e começou a examinar detidamente cada uma das pessoas que passavam por diante d'elle.
Lucena, que ia fallando com a regateira, calou-se logo que viu aquelles dois vultos estranhos; e, rebuçando-se mais no capote que o encobria, passou ávante em seguimento de Eschoiastica e do outro cavalleiro.
-- Venha d'ahi, se quer, disse o desconhecido para o seu companheiro, seguindo a passos lentos o grupo da regateira. Parece-me que temos hoje caça real. Apesar da obscuridade da noite, apesar de mal lhe ter ouvido a voz, ia jurar que vae alli... É elle com certeza... ah! que chegou a hora de ajustarmos contas!
-- Elle... quem?
-- Lucena.
-- Isso póde la ser!
-- Um inimigo nunca se engana em seus presentimentos. Vamos a ver em que isto pára.
E, medindo seus passos pelos dos que iam na frente, começaram a seguil-o, mas a distancia, que não podesse despertar suspeitas.
Não escapava isto á regateira e seus companheiros, mas não sabiam decidir, se era effeito de um simples acaso ou firme proposito.
Ao voltar de uma esquina, Lucena fingiu ter perdido alguma cousa, para que, tendo pretexto de olhar para tras sem motivar desconfiança, melhor podesse observar os movimentos dos que o seguiam. Estes pararam, vendo parar os da frente.
-- Não ha dúvida, disse Lucena, somos espionados.
-- E que se ha de agora fazer? perguntou o cavalleiro, que viera em companhia do estudante.
Ainda que visivelmente se esforçava por mostrar tranquillidade, sua voz denotava pouca firmeza, e todo seu corpo tremia como varas verdes. Era a primeira vez que fallava de maneira que fôsse ouvido por outra pessoa alem de Lucena, mas em circumstancias de tanto momento, que a regateira nem percebeu que suas fallas tinham um timbre mellifluo e argentino, mais natural em damas que em cavalleiros.
-- Se mostrâmos medo, estamos perdidos, continuou Escholastica a meia voz. Sigamos o nosso caminho: em minha casa não entram elles... depois veremos o que sera.
E assim, animados pela regateira, proseguiram, cortando em direitura á travessa das Canivetas, onde morava a peixeira, como o leitor deve de estar lembrado.
Os dois desconhecidos tambem pela sua parte pozeram-se a caminho, e tanta unidade houve no movimento que uns e outros fizeram, que se diria, os primeiros os corpos, os segundos as sombras, que os acompanhavam.
A insistencia dos dois desconhecidos não deixava de causar graves inquietações no pequeno grupo da regateira. A distancia entre os fugitivos e os perseguidores era sempre a mesma; mas, se aquelles tentavam augmental-a, para logo estes apertavam o passo, como não querendo perder-lhe a pista. A cada recanto ou angulo, que formasse a rua, quer Escholastica, quer Lucena, quer emfim seu companheiro, voltavam o rosto para ver se tinham escapado á vigilancia dos espiões; mas os dois vultos continuavam a destacarem-se na escuridade da rua, seguindo-lhes o encalço, parando quando elles paravam, marchando quando avançavam.
Os primeiros ja não ousavam trocar entre si quaesquer palavras com medo que fôssem ouvidas, ou pelo menos augmentassem as suspeitas dos que reputavam seus inimigos.
Foi assim que chegaram até á porta da habitação da Plangana. Escholastica fez entrar primeiro seus hóspedes em casa, seguindo-os depois. Logo porém que se viu em porto de salvamento começou por aferrolhar a porta pela parte de dentro com quantos barrotes seu marido costumava guardar no corredor, e de que a necessidade lhe ensinava a fazer uma tranca. É que a necessidade é mestra da indústria.
Apenas teria Plangana tempo de chegar ao primeiro andar, quando sentiu bater á sua porta.
-- Mau! Querem ver que ainda hoje temos dança? disse a regateira, acabando de accender a candeia, que suspendeu no prego, cravado ‘numa das fendas da parede. Deixem-se ficar aqui, tornou ella, voltando-se para seus hóspedes: eu vou ver em que isto pára.
E, acercando-se da janella, abriu um pequeno postigo por onde passou a cabeça. Mal tinha porém trocado algumas palavras com o individuo que batia á porta, a regateira, depois de fechar a janella, veio ter com Lucena e disse-lhe:
-- Não ha perigo, é pessoa do meu conhecimento. Não sei o que me quererá a éstas horas; mas, se ouvirem que eu subo a escada com alguem, recolham-se áquella alcova, e nem palavra, diga-se o que se disser. Entendem?... ora vejam se fazem alguma aquella, que me metta em trabalhos!...
E, dicto isto, Escholastica desceu a abrir a porta.
-- Ora seja bem apparecido! disse ella ao nocturno visitante, fazendo-o entrar para dentro do limiar. Suba, que esta casa está sempre prompta para receber os amigos.
-- Obrigado, tia Plangana: são so duas palavras que lhe quero, e aqui mesmo lh'as posso dizer.
-- Á sua vontade.
-- Ora diga-me; tia Plangana, não tem alguem em sua casa?
-- E que tenha!... não sou senhora do que é meu?
-- Com tanto que não chegue ao ponto de fazer de sua casa valhacouto de gente fugida á forca. Entende-me agora? Olhe que bem os vi e bem os conheci, quando passaram ao pe de mim, e preferi ser eu o que lhe viesse dar este aviso, antes que isto se Tornasse notorio e podesse ser incommodada pela justiça. É em attenção a si, que não subo la acima para o levar arrastado pelas orelhas até á cadeia; mas fique descansada, que não o perco de vista.
-- Ora diga-me ca, sr. Abrunhosa, está seguro do que diz?
-- Falla serio ou está brincando?
-- Não brinco: prouvera a Deus que assim fôsse! Lembra-se o senhor quando o trouxe para minha casa mais morto do que vivo? Pois não encontrei nos seus inimigos tanta vontade de o perderem como o senhor tem agora de os perder. Olhe, eu podia jurar e bater fe em como estava enganado, e não levava a melhor comigo; mas não quero, porque me parece que é pessoa capaz. É verdade, o sr. Lucena está em minha casa.
-- Obrigado pela novidade.
-- Mas o que o senhor não sabe, é que lhe é devedor de uma grande dívida, e que chegou o tempo de lh’a satisfazer. Quando estava ahi, abandonado de todos, sinto uma noite como esta baterem-me á porta: eram dois homens, que não conhecia... dois homens de bem, que vinham salval-o. O sr. Abrunhosa bem sabe as contas que tinha em aberto com os malhados!... Estava seguro em minha casa, era verdade, mas de um momento para o outro podia correr grande risco. E sabe quem eram esses homens que vinham para o livrar? Eram dois inimigos seus; eram os mesmos que impediram que na Calçada, em vez de ser morto pelos revoltados, ficasse so ferido. E nao contentes de o terem feito escapar da morte, queriam ficar seguros de que nao teria de se ver de novo em camisa de onze varas. Foi o sr. Lucena que lhe arranjou a casa de um amigo seu ahi dos arredores, onde o senhor esteve até pôder appareeer; foi elle que preparou uma escada de mão do officio do meu Ignacio para o senhor ir deitado ‘nella em fórma de maca: foi elle que pediu ao outro estudante que parece, andava para médico, que acompanhasse o senhor, ja que elle nao podia. Ora assim é que fazem os homens de bem. Veja o senhor se quer que so os inimigos do nosso rei sejam generosos.
-- Mas porque so agora me diz isso?
-- Porque o sr. Lucena é tão cavalheiro, que me exigiu segredo, e não queria que o senhor jamais tivesse o desgôsto de saber que devia talvez a vida a um homem que aborrecia.
-- Está bom: eu não quero ser menos generoso do que elle. Diga-lhe que o tive uma vez entre as mãos e que o deixei escapar... que se acautele de cahir segunda vez em meu podêr, porque acima de tudo está o dever de cidadão. Pela minha parte, póde ficar descansada, tia Escholastica.
-- Adeus, sr. Abrunhosa.
E a regateira fechou a porta.
Mal Abrunhosa dera dois passos na rua, deslocava-se da esquina, que volta para a rua das Azeiteiras, a sombra de um individuo que vinha ao encontro do bacharel. Era o que o tinha acompanhado sempre que seguíra os passos da regateira e seus companheiros; ou, se mais esclarecimentos desejam, não era outro senão Luiz, o sobrinho de fr. Marcos.
-- Então? perguntou, logo que chegou ao pe de Abrunhosa.
-- Não me enganei.
-- E depois?
-- Depois, o que?
-- Havemos de o deixar escapar?
-- Aqui entre nós. Ha uma razão que me obriga a fechar os olhos a este respeito. O melhor é fingirmos que não sabemos nada.
-- Mas eu é que não tenho razão alguma, que me obrigue a calar; pelo contrário...
-- Faça o que entender... Eu não lhe digo que não... o que peço é que nem falle em meu nome, nem conte comigo hoje.
-- Estranho o seu modo de fallar!...
-- Mais tarde, quando lhe disser tudo, saberá o motivo que me obriga a fazer o que faço. Adeus.
-- Então, deixa-me so, depois de me metter 'nisto?
-- Ja que não quer seguir o meu conselho, avenha-se como poder.
XIX
ULTIMA PROVAÇÃO
Lucena, pouco depois da regateira voltar de fallar com Abrunhosa, manifestou desejos de sahir. Escholastica, ainda que tranquillisada pelo que lhe promettêra o bacharel, via comtudo o perigo a que seu hóspede se expunha, dando passo tao imprudente; mas nem suas admoestações nem os rogos do companheiro de jornada ganharam dissuadil-o d'isso, sequer ao menos acabaram com elle a que se deixasse acompanhar por qualquer das duas pessoas que alli estavam.
A Plangana, que se mostrára mais empenhada na disputa, viu-se obrigada a ceder, mas não sem primeiro ir da janella observar se na rua ainda havia alguem, que merecesse desconfiança.
Socegada tambem por este lado e sob promessa de se demorar o menos possivel, consentiu em descer a abrir a porta ao estudante.
Não ficou pouco surprehendida ella, quando tornando a entrar na pequena casa em que havia deixado o companheiro de Lucena, o viu completamente transfigurado. Tendo atirado o chapeu que até então conservára na cabeça e o capote que encobria seu corpo até quasi aos pes, a regateira olhava-o com olhos espantados, vendo as longas madeixas pretas que se lhe desfaziam em ondas sôbre as espadoas e um formoso rosto, imberbe como o de uma mulher, gracioso e affavel como o de um anjo. A regateira ora esfregava os olhos com as costas da mão, ora os esbugalhava de pasmo, quasi inclinada a ver 'naquella subita mudança um prodigio diabolico. Pois d'outra fórma era la possivel, pensava ella, que o simples espaço de alguns minutos fôsse bastante para lhe apresentar mulher quem tinha deixado homem?
Fariamos um triste conceito do leitor, se um momento sequer nos passasse pela tela da imaginação a ideia de que ficaria tão maravilhado como a tia Planglana, assistindo á metamorphose do companheiro de Lucena. 'Nelle decerto, desde que lh'o apresentámos, não tera visto senão Ignez, a sympatica infermeira do Limoeiro.
-- Admira-se de me ver assim? perguntou Ignez, sorrindo da maneira por que Escholastica a mirava.
-- Poderá!... ter a gente diante dos olhos uma pessoa, que a final de contas não sabe se é homem, se é mulher...
-- Pois ja vae saber tudo; ao menos pela minha franqueza, dar-lhe-ei uma prova de gratidão por tudo que acaba de fazer por nós. Não julgue que o seu tecto abriga so uma pessoa, que ficaria perdida se fôsse reconhecida. Esconde dois criminosos. Eu sou talvez, aos olhos da justiça, mais culpada que Lucena, porque sem mim nao chegaria elle a evadir-se do Limoeiro.
E então começou por lhe contar de que modo conhecêra Lucena, como se interessára por elle, a maneira por que se tinham evadido, e por fim todos os perigos com que haviam lutado durante o caminho, e os obstaculos que venceram até que chegaram a receber a hospitalidade d'aquelle amigo de Lucena, onde por ordem d'elle estivera acolhido Abrunhosa até á occasião da fatal retirada da Cruz dos Morouços.
Ahi se tinham demorado tres dias, mas ao cabo d'elles Lucena declarou que não podia permanecer alli por mais tempo sem vir a Coimbra. Foram inuteis todas as tentativas, que o amigo fez para o demover de similhante intento. Lucena contava fallar com o criado do morgado, em quem depositava toda a confiança; e apenas, por intermedio d'elle, soubesse qual o destino de Assumpção, embora não lograsse vel-a, voltaria para a casa onde estava refugiado, tendo primeiro obtido a certeza de que o creado se prestaria a continuar a ser o mensageiro fiel dos dois amantes.
Mal sabía Lucena que Jose, com quem tanto contava, devotado aos interesses de seus inimigos, seria o mais ruinoso instrumento da sua perdição!
O amigo, vendo que eram inuteis todos os esforços que fazia, mandou preparar dois dos seus melhores cavallos para os transportar á cidade, porque a muitas instancias o estudante havia consentido em que Ignez o acompanhasse. Quando Lucena, mais por ella que por si mesmo, ja começava a arrepender-se da imprudencia que commettêra, e a ver as dificuldades do que a princípio lhe parecia cousa de pouca monta, foi então que Escholastica lhes apparecêra, e ofrerecendo-lhes sua casa os tinha livrado de um dos maiores apertos em que se tinham visto desde a fugida da cadeia, por quanto iam entrar 'numa terra em que Lucena era muito conhecido, onde a cada passo se veria cercado de inimigos e outros tantos perseguidores, e sem que tivesse um refugio qualquer onde encontrasse agasalho e a certeza de não ser trahido.
Em quanto Ignez, por outras palavras, continua a relatar á peixeira os principaes successos de sua vida, voltemos nós ao sobrinho de fr. Marcos e ao que se passou depois que Abrunhosa, cumprindo sua promessa, se recusara a auxilial-o contra Lucena.
Luiz não queria perder a occasião de se desfazer do amante de Assumpção, porque sua presença, mais que nunca, era um obstáculo insuperavel aos seus planos, ou, para melhor dizer, aos de seu tio; mas o meio mais efficaz, de que deveria lançar mão, não o sabía elle escolher entre muitos. Ir denuncial-o á justiça, sería o mais infallivel, se elle podésse ter a certeza de que Lucena não abandonaria a casa da regateira antes de lhe ser posto cêrco. Passar alli a noite, observando quem entrasse ou sahisse d'aquella habitação, tinha dois gravissimos inconvenientes, -- faltar á entrevista que seu tio lhe havia proporcionado, e em virtude da qual Assumpção se veria obrigada a acceitar sua mão, sob pena de ficar difiamada em público; ou ter de se ver cara a cara com Lucena, mais forte e mais destemido do que elle.
Luiz estava seriamente embaraçado: so o ingenho de fr. Marcos poderia livral-o dos apuros em que se via. Mas áquellas horas, era impossivel recorrer a tal expediente.
Vendo-se so, achou que o melhor era abandonar sua temeraria empreza. E depois, que lhe importava a elle Lucena? Comtanto que Assumpção lhe viesse fallar ao jardim, comtanto que houvesse o escandalo premeditado, Lucena, porque era um homem de honra, abandonaria facilmente ao vencedor sua conquista. Assim pensando, Luiz sahiu da travessa das Canivetas.
Um instante mais que se demorasse, tería visto Lucena sahir da casa em que estava escondido, voltar-se para todos os lados como receoso de que alguem o visse, e tomar rapidamente o caminho que alguns mezes antes seguíra, quando se separára dos tres companheiros que iam pôr Abrunhosa a salvo do furor dos revoltosos.
Luiz dera alguns passos sem saber que caminho escolheria, porque ainda era cedo para se dirigir ao local em que se deveria encontrar com Assumpção. Errou ao acaso por aquellas ruas, e, ao chegar ao mesmo sítio em que pouco antes estivera fallando com Abrunhosa e d'onde ambos seguiram a regateira até sua casa, ouviu elle os sons de uma viola e logo apos uma voz, entoando seguidilhas, então mui vulgares, cantadas talvez, quem sabe? á porta de alguma beldade de cozinha, que ao som da serenata abanava a fogueira em que fervia a ceia de seus amos. Luiz julgou não lhe ser extranha a voz do trovador nocturno. Levado pela curiosidade, acercou-se do sítio d'onde partiam os sons da enamorada cantilena, e reconheceu não se haver enganado em suas suspeitas. Effectivamente era Jose, o criado do morgado Alvarenga, o bardo da serenata.
Uma subita ideia atravessou o espirito de Luiz. Tinha sido a covardia que o obrigára a desistir do seu primeiro intuito de perder Lucena; mas, desde que o acaso lhe deparava um instrumento ou um cumplice, pareceu-lhe que o destino não era favoravel ao amante preferido da morgada. Luiz lançou-se nos braços da sorte e contou com o triumpho.
-- Jose! chamou elle 'numa das pausas em que o tangedor da viola temperava as cordas do seu instrumento.
Jose ou não ouviu, ou fez que não ouvia.
-- Jose! repetiu mais alto Luiz, não ves que te chamam?
-- Sr. Luiz...
-- Chega-te ca, patife.
Jose inclinou-se submisso, obedecendo ao mandado do sobrinho de fr. Marcos.
-- Haverá aqui alguem que nos ouça? perguntou o mancebo volvendo os olhos em redor de si.
-- Não, senhor: póde fallar á vontade.
-- Que fazias tu aqui, meu tratante?
-- Eu, senhor...
-- Isso é que é ter vontade de cumprir o que se promette... Ora suppõe que eu ja estava em casa de teu amo, e tudo preparado... e tu sem appareceres, hein?... Porque ao senhor Jose lhe deu na mania andar á tuna, la se ia tudo pela agua abaixo! Se meu tio soubesse isto, estavas arranjado...
-- Ó sr. Luiz, perdoe-me, ao menos ésta vez so. Eu julguei que por ser muito cedo, ainda la não era preciso em casa, e assim fui aproveitando a occasião em que meu amo me dá liberdade... mas se soubesse que me enganava... não era o filho de meu pae que arredava pe. Á cautela tinha deixado aberta a porta do jardim.
-- Está bom, está bom. Vamos a saber... trazes alguma arma comtigo?
-- Ó sr. Luiz, pois eu posso la deixar a minha tainha? E Jose tirava do bolso da jaqueta uma enorme faca de ponta, cujas molas, ao abril-a, deixaram escapar um estalido similhante ao de pistola quando se engatilha.
-- Vem comigo; tracta-se de ganhar algumas moedas, de fazeres uma acção de bom patriota, e de meu tio não saber que, em vez de zelares seus interesses, andas dando descantes abellezas de calcanhar rachado.
E ambos tomaram o caminho da casa da Plangana. Luiz ia na frente, Jose seguia-o a alguns passos atrás, correndo para o alcançar.
Chegados em frente da habitação da regateira, Luiz parou e esperou que o criado do morgado se acercasse d'elle.
Se o leitor está lembrado de quando a primeira vez fallámos na casa da tia Escholastica, recordar-se-á por certo de que dissemos que se pendurava da frontaria uma pequena lanterna que alumiava um retabulo entalhado na parede entre as duas janellas do primeiro andar.
Era do lado opposto, e em sítio onde ja não chegavam os raios que projectava a lampada, que os dois cumplices tinham parado.
-- Ves aquella casa? perguntava Luiz a seu companheiro, designando com o indicador da direita a morada da regateira.
-- Perfeitamente, respondeu este.
-- Ha de provavelmente sahir d'alli um homem embuçado 'num capote que lhe chega até aos pes... Espera, não ouviste?
Um leve ruido tinha soado 'numa das janellas do terceiro andar da casa de que fallavam. Era Ignez que, tendo sentido passos na rua, e julgando ser Lucena que voltava, entreabríra o postigo; mas, desconfiada pelas precauções que via tomar áquelles dois vultos, tornara-o a cerrar, deixando comtudo uma pequena fenda onde applicava ora os olhos ora os ouvidos, quer espreitando aquelles homens que lhe pareciam suspeitos, quer escutando as suas palavras, que o silencio e a estreiteza da rua lhe deixavam perceber.
Á apostrophe de Luiz, Jose levantou os olhos para o sítio d'onde partiu o ruido, mas vendo tudo quieto e tranquillo á superficie, julgou ter sido engano, e assim o disse ao seu companheiro.
-- Mas eu estou bem certo de ter ouvido alguma cousa, proseguiu este.
-- Havia de ser talvez o vento que agitou as dobradiças da rotula.
-- Póde ser; mas falla mais baixo. Como te ia dizendo, proseguiu Luiz, talvez sáia d'aquella casa um homem embuçado 'num capote que lhe chega até aos pes e com um longo chapeu desabado a encubrir-lhe a cara... esse homem deve morrer; em primeiro logar porque me não convem que viva, e depois porque é um malhado escapado á forca. Ja ves que os teus interesses vão de accôrdo com os meus e com os da nação.
-- Póde estar socegado, tudo se ha de arranjar.
-- Mas póde ser que o homem não saia; então temos de recorrer a um outro meio. Como sabes, eu não posso estar comtigo toda a noite; mas tu ficas de vigia, e se elle não sahir antes da manhan; tambem não sahirá depois, porque não ha de querer ser visto; então vaes dar parte á auctoridade de que está aqui um revolucionario escondido, e deixa o caso por conta d'ella.
-- Mas o senhor bem sabe que seu tio me mandou andar pelo jardim de meu amo por volta da meia noite para quando visse a sr.ª D. Assumpção...
-- Sim, sim, bem sei isso. Ja arranjei um plano, cujo resultado ha de ser o mesmo que o de meu tio, com a differença de que posso prescindir de ti.
-- Mas seu tio póde...
-- Está descansado, por isso respondo eu.
E como nada mais tinham que dizer, calaram-se. Luiz continuou a ficar no mesmo sítio, á espera que fôssem horas para a sua entrevista, Jose á espreita da sua víctima. No emtanto Ignez tinha descoberto o plano tenebroso que urdiam aquelles dois malvados. Ainda que muitas das palavras, que entre si haviam trocado, lhe tivessem escapado, parece que o coração lh'as advinhára, pelo menos o sentido.
Escholastica, que nada suspeitava, chamara-a differentes vezes para junto d'ella, anciosa por satisfazer cabalmente sua curiosidade; mas Ignez sempre encontrára pretextos para se não retirar do parapeito da janella; umas vezes dizia que lhe parecia sentir ao longe os passos de Lucena, outras que era alguem que se acercava da porta da casa, finalmente repetia que a anciedade em que estava pela demora do estudante não lhe permittia estar mais á sua vontade do que alli.
-- E é verdade, dizia a regateira, vão-se la fiar em palavras de homens!... olhem ao tempo que elle la anda por fóra. É outro que tal como o senhor meu Ignacio, e mais eu bem lh'o recommendei... está palrando com os amigos, e ca está em casa a mulher para lhe pôr a ceia na mesa logo que venha. Tambem antes assim... é um tal dragão, que ninguem póde estar ao pe d'elle. Deixem estar, deixem estar, que, quando vier, ha de saber de que herva é o alho. É verdade, menina, não sería melhor ir-lhe eu arranjar a ceia para quando o sr. Lucena chegar? Hão-de ja sentir sua fome, hein?
-- Como quizer.
-- Então vou-me a isso. Se quer ficar, fique; mas se não tem que fazer e quizer vir comigo até á cozinha...
-- Obrigada, sr.ª Escholastica, mas eu preferia continuar a estar aonde estou.
-- Olhe, a menina esteja como em sua casa. Se se enfastiar de estar so, suba até la cima; é so uma escada; e cortando á mão esquerda dá logo com a cozinha. Até logo.
E a regateira subiu ao último andar da sua casa, porque, segundo o costume de Coimbra, por menos abastada que seja uma pessoa, a não se contentar com as lojas, tem de habitar uma casa da altura de uma torre, com mais andares do que telhas; verdade seja que cada um não passa de dois cubiculos, quando o architecto se não dá por satisfeito com um so.
Ignez, vendo-se sosinha, começou a reflectir seriamente em todos os perigos a que estava exposto Lucena.
Havia alli uma conspiração tramada contra elle.
Era bem dolorosa a lembrança de que, depois de tantos esforços, todos ficariam baldados, e que Lucena tinha do succumbir ao golpe do sicario ou á denúncia do delator; que ambos nas trevas da noite e nas do crime, mais aterradoras ainda, alli urdiam rede de tão fina malha, que não havia escapar-se-lhe.
Era mister portanto que a protectora do Limoeiro continuasse a ser, 'nesta nova crise, o anjo tutelar de Lucena.
Urgia o tempo; de momento para momento poderia não valer ja de cousa alguma a boa vontade de Ignez.
Em seu rosto liam-se todas as commoções que lhe agitavam o espirito. Toda a sua dedicação, toda essa gigantesca luca que travára braço a braço com um fado inimigo, e em que até alli ficára vencedora, tudo seria infructifero, se derradeiro acto de heroismo, um ultimo sacrificio, não viesse rematar a obra encetada. O amor e a compaixão tambem ás vezes levam á abnegação e contam martyres.
Ignez, antes de se aventurar 'numa estrema resolução, foi ajoelhar-se aos pes de um pequeno oratorio, onde a devota regateira venerava a imagem da Virgem, e que assentava sobre a commoda, unica alfaia inutil que tinha na sala em que introduzíra seus hóspedes.
Que iria pedir a peccadora á immaculada mãe do Christo? A prece, quando acode aos labios com verdadeira fe, foge despercebida da terra para ser escutada no ceu. Fôsse qual fôsse sua súpplica, é certo que depois de alguns instantes de oração, Ignez levantou-se, serena e resignada na adversidade, como os christãos d'outr'ora, caminhando para o supplício e que entreviam, atraves das palmas do martyrio, a aureola da gloria. Teria tambem Ignez entrevisto o esquecimento de suas culpas, e a boa acção que practicára glorificada por aquelle que dissera a Magdalena «muito te será perdoado, porque muito tens amado»? Quem sabe?... o tumulo não falla, e á intelligencia humana não é dado devassar os segredos da Divindade.
Ignez, ao levantar-se, encaminhou-se para a cadeira onde tinha deposto o disfarce de que usára durante a viagem. Cobriu seu corpo com o longo capote, escondeu suas madeixas na copa do chapeu desabado, e, pe ante pe, caminhou até ao logar em que principiava a escada por onde a regateira havia subido para ir para a cozinha. Chegando ahi, parou por algum tempo a escutar, se ouvia la em cima os passos graves e compassados da regateira; e como lhe parecesse que ésta andava toda entregue ao seu trafego culinario, e nâo suspeitava suas intenções, continuou a marchar com toda a precaução, descendo a escada que dava para a rua.
Ignez tinha ja diante de si a porta que a separava dos inimigos de Lucena. Apresentava-se-lhe agora diante dos olhos um obstaculo com que não tinha contado. A porta estava trancada por tal fórma, que so a regateira poderia abril-a assim ás escuras. No emtanto Ignez não se julgou vencida: ás apalpadellas, deu com o primeiro barrote, e começou a puxal-o a si com uma força superior á sua edade e construcção: mas ésta especie de tranca posta de través entre as duas paredes não cedia a esfôrço algum. Ignez viu que todo seu trabalho seria baldado, se a Plangana a não coadjuvasse. Mas quereria ella fazel-o? Ignez pareceu indecisa ao dirigir a si mesma ésta pergunta; e, sem saber que deveria resolver, ficára alli immovel e como que reflectindo no meio mais efficaz que a podesse livrar da posição em que estava.
Mas a sua imaginação representou-se-lhe de repente o perigo imminente que ameaçava a vida de Lucena. Pareceu-lhe que ia ser tardio todo o soccorro que não fôsse instantaneo. A seus ouvidos soava ja o ruido dos passos do estudante, entrando na estreita rua em que tinha encontrado um asylo. Ignez viu relampejar o olhar sinistro que trocaram os dois malvados que o esperavam, viu-os avançar occultando-se com as trevas como o lobo esfaimado que persegue sua víctima; depois um terrivel clarão passou ante seus olhos, e a denotação de uma arma de fogo soou-lhe aos ouvidos, fazendo estremecer seu peito, como o som que se repercute de echo em echo faz estremecer a abobada que os cérca. Ignez tapou os olhos com as mãos para não ver mais, mas a sua mente afigurava-se-lhe ver Lucena contorcer-se nas vascas da agonia e espadanar com o sangue que golfava de suas feridas o rosto de seus assassinos.
Tudo aquillo não era mais que uma visão, filha de sua imaginação excitada por continuos sobresaltos; mas Ignez julgava-a realidade.
'Num supremo esforço encontrou fôrças com que pôde vencer todos os obstaculos, que até alli não podéra vencer. A porta estava aberta e Ignez avançou um passo na rua, procurando com a vista no pavimento o logar em que jazeria seu companheiro de infortunios.
Mal que ella appareceu no limiar, o sobrinho de fr. Marcos murmurou algumas palavras ao ouvido de seu cumplice. Este fez um gesto affirmativo e de um pulo acercou-se de Ignez, e cravou-lhe em cheio no peito a folha de sua navalha, antes que a sua víctima tivesse tempo de fazer o menor movimento.
Como a papoula cegada pela fouce do ceifeiro, Ignez oscillou e inclinando a fronte desbotada pelo sopro da morte, cahiu sem SLentidos, cahiu com todo o peso do corpo sôbre as pedras que calçavam a rua. Em seus labios veio expirar um gemido plangente e mal distincto como o gemido da corda que estala na harpa abandonada.
Com o movimento que fez na quéda, as pregas do capote, em que involvia o rosto, cahiram com o braço que as segurava, e o chapeu, desprendendo-se-lhe da cabeça, deixou escapar as ondas de seus cabellos, que se lhe espalharam pelos hombros, soltos da prisão que as retinha.
A luz da lampada, que ardia em frente da Virgem, batia em chapa na fronte de Ignez. Jose, abaixando-se para retirar a navalha da ferida de sua víctima, deu com os olhos 'nella, e, illudido pela similhança que tinha com sua ama, exclamou estupefacto:
-- A sr.ª D. Assumpção!
-- Assumpção! repetiu a seu turno Luiz, que se tinha achegado para o seu cumplice, logo que víra derribado o que suppunha ser aquelle de quem á fôrça se queria tornar rival.
-- Estou perdido! continuou Jose, angustiado.
-- E eu vingado!... murmurou o outro. É verdade que antes queria estar casado, accrescentava elle mentalmente. Errámos o golpe, disse elle, voltando para Jose, por isso não pagarei o teu trabalho, tem paciencia: o mais que posso fazer, é ver se embrulho a justiça para que te não succeda alguma de que não gostes.
E dicto isto, tomou o caminho de sua casa, como se nada houvesse succedido.
Jose ora olhava para o cadaver que tinha alli a seus pes, ora para aquelle homem que ia caminhando com toda a placidez, sendo elle o verdadeiro auctor d'esse crime, cujos remorsos, aggravados pelo medo da perseguição que o morgado promoveria contra o assassino de sua filha, não davam treguas á consciencia do infiel criado de Alvarenga.
Jose via-se perdido para toda a sua vida.
A lembrança de se vingar de quem o arrastára á beira do precipicio em que resvalára, foi a primeira ideia que passou em seu espirito, logo apos a da sua perdição.
Levantou-se, porque tinha cahido de joelhos ao lado de sua supposta ama, sem que tivesse a coragem de retirar a navalha que lhe cravára no peito; cerrou os punhos em ar de ameaça, e correu na direcção que levava o sobrinho de fr. Marcos.
XX
INFERNO E PARAISO
Lucena, sahindo de casa da regateira, tinha machinalmente dirigido seus passos para o sítio em que habitava Alvarenga.
Chegado que foi ao largo que se alongava em frente da habitação do morgado, retiniu em seus ouvidos a musica festiva do baile. Torrentes de luz jorravam atraves das janellas, abertas ao halito perfumado da noite, e por entre a finissima tela dos cortinados, que as adornavam, via passar e repassar as sombras movediças dos pares, que se entregavam ao vertiginoso prazer das caprichosas danças d'aquelle tempo.
Que festa sería aquella? Que significaria? perguntava a si mesmo Lucena, sem que atinasse com resposta que o satisfizesse.
No tempo em que frequentava a casa do morgado, a muitos saraus tinha assistido, mas em nenhum d'elles respirava o alvoroço e a magnificencia, que parecia presidir a este.
A todos os instantes novos convidados se agrupavam no perystilo, attrahidos pela esperança de alguns momentos de alegria, proporcionada a seus diversos gostos, representada para uns no jôgo e suas commoções phreneticas, para outros no vinho e opiparos manjares com que o morgado brindava seus amigos, para o maior número na embriaguez mais doce e mais voluptuosa das luzes, dos perfumes, da dança, do sorrir de uns lindos labios, do arfar do peito, do palpitar do coração, de tudo isso que faz de um baile um sonho, uma vertigem, uma saudade.
Que tentações tinha Lucena de subir ás salas, onde tudo era luz e harmonia, e onde, introduzindo-se por entre a turba, que se agglomerava ás portas, decerto encontraria Assumpção, sem a qual a vida não lhe offerecia encantos!
Mas aquelle mesmo logar em que estava, não era para elle ja demasiadamente arriscado, podendo, de um momento para o outro, ser reconhecido por qualquer dos convidados de Alvarenga? Para que commetter uma imprudencia, de que nada lhe podia provir senão peorar sua posição, ja de si tão precaria?
Antes porém de se resolver a abandonar aquelle logar, queria obter a certeza de que 'nessa noite não poderia fallar a Jose, que elle pensava ainda sería o fiel medianeiro entre elle e Assumpção. Com a esperança de que talvez o encontrasse mais tarde, Lucena rodeou a casa do morgado, procurando local opportuno para aguardar a hora, que mais favoravel se lhe antolhava. Tomou pelo sítio em que o jardim de Alvarenga vestia parte de um lado da rua.
Lucena seguia encostado ao longo do muro no fundo do qual se abria uma pequena porta. Ao passar por ella, Lucena pareceu-lhe ver uma pequena abertura entre a porta e o batente, como se estivesse simplesmente cerrada. Examinar se se enganára, e transpol-a, quasi sem o pensar, foi tudo um.
Quando Lucena deu pelo que fizera, tinha ja avançado alguns passos no jardim, cujo silencio contrastava com o ruido que ia nas salas.
Mas Lucena é que não tinha fôrças para retrogradar. Queria até convencer-se de que não practicava uma imprudencia, que d'alli não lhe proviria risco algum, e que era uma cousa mui natural aproveitar-se de um ensejo preparado pelo acaso, divindade em cujas aras os amantes abdicam a razão, e ás vezes mais ainda!...
Superior a todas as considerações da cabeça eram os impulsos do coração; mas, antes de transigir com elles, o mancebo queria illudir-se a si e á sua consciencia. Facilmente corre tudo á medida de nossos desejos, quando de nós mesmos tudo depende; Lucena continuou a embrenhar-se no jardim de Alvarenga. Assumpção era o iman que o attrahia, embora Jose fôsse o pretexto. Vel-a passar ante uma janella, ouvir-lhe o som de sua voz, sentir o ranger de seu vestido, um nada para outro homem, sería para elle a suprema felicidade.
E Lucena continuava a caminhar, e caminhando foi dar ao caramanchão todo formado de trepadeiras em flor, que exhalavam suavissimo perfume.
Lucena recordou-se de ter vindo alli algumas vezes, em tempos mais felizes, gozar o magnifico espectaculo do pôr do sol, acompanhado de Assumpção e do morgado, antes que a intriga lhe fechasse para sempre as portas do seu eden.
Entrou alli, entregue ás saudosas recordações, que esse logar lhe havia suggerido. Sentou-se no mesmo banco em que tantas vezes se sentára ao pe de Assumpção, e ante seus olhos viu de novo passar todo esse tempo em que o amor para elle so continha sorrisos e delícias.
Mas que angelical apparição foi essa que surgiu no meio de seus sonhos? Lucena tinha em frente de si a realidade, e sua primeira ideia foi duvidar d~ella, porque não cria na sua boa estrella. Triste d’aquelle que duvida, porque é mister que o desengano retalhe o coração, fibra a fibra, para que ahi medrem os germes da descrença e da dúvida!
Assumpção tinha vindo ao supposto convite de seu amante. Trajando as custosas vestes com que apparecêra no baile, seu rosto desmentia a gala ficticia do vestuario, e, por debaixo de tantas flores e pedrarias, palpavam-se, por assim dizer, os espinhos que lhe lanceavam os seios d'alma.
-- Lucena! murmurou a donzella ao transpor a entrada do caramanchão.
Ao accento d'este voz, cheia de não sei que indizivel magia, o mancebo sentiu estremecer o coração dentro do peito, não d’esse estremecer agoureiro de más novas, mas d'aquella suave commoção, que a alegria e a surpreza nos causam.
-- Assumpção! balbuciou elle quasi ao mesmo tempo.
E correu para a donzella, que estreitou contra o peito com phrenetico abraço.
-- Assumpção! tu... tu aqui!? proseguiu elle, arfando de júbilo.
-- Vim tarde?
-- Tu?
-- Ja me não esperavas?
-- Eu esperar-te... aqui!
-- Aqui, sim. Era este o sítio que marcava o teu bilhete...
-- O meu bilhete!... que bilhete?
-- O que me entregou Jose, da tua parte.
-- Não comprehendo. Aqui ha um equivoco...
-- Ou uma traição.
-- Quem póde saber da minha chegada?
-- O que me escreveu, imitando-te a letra e comprando Jose.
-- Desconfias de alguem?
-- Não; mas tu decerto deves ter inimigos... e...
-- Espera. Quando recebeste esse bilhete?
-- Ésta manhan.
-- Então não póde ser. Desconfiava de dois homens, que me seguiram desde que entrei na cidade... mas elles não podiam adivinhar, porque so ha pouco mais de uma hora acabo de chegar.
-- Querem-te perder!... Que fatalidade te trouxe a este logar?
-- O desejo de te ver... e o acaso.
-- Lucena, não sei que triste presentimento me adivinha o coração!...
-- Que mal me póde succeder, estando eu ao pe de ti? Não era este o meu mais vehemente desejo?
-- Sempre, sempre o foi?
-- Que pergunta!...
-- É que agora me lembra tudo. Tu ja me não amas. Essa mulher, com que te evadiste do Limoeiro, pôde fazer-te esquecer de mim! Tens razão; eu so te podia dar o que uma mulher de honra póde dar ao homem que ama... um amor puro e sem mácula, seus risos e suas lagrimas.
-- Assumpção!
-- Ao receber teu supposto bilhete, esqueci tudo, tudo: tal foi o prazer que senti! É que te amava muito, e quando se ama assim, uma so prova de amor apaga mil de infidelidade!...
-- E tu julgaste-me sem me ouvir?
-- As provas eram tão claras...
-- As apparencias enganam, e enganaste-te tambem com ellas. Nunca te esqueci, posso jurar-t'o. Entre mim e essa mulher jamais se trocou uma palavra de amor.
-- Juras-m'o?
-- Se reflectisses um instante que fôsse, não duvidarias. Póde um homem expor-se a tantos perigos, como eu me expuz por tua causa, se não amasse com toda a violencia da paixão com que te amo?
-- Desgraçada de mim!
-- Desgraçada, porque te amo?
-- Não, desgraçada porque duvidei de ti. Um abysmo nos separa; foge, Lucena, deixa-me, que sou indigna do teu amor!
-- Explica-te. O que dizes é um mysterio incomprehensivel para a minha razão.
-- E eu, crendo-me generosa, tinha-te ja perdoado, porque o amor beija as mãos que o ferem... mas sou eu que necessito do teu perdão, eu que te atraiçoei...
-- Tu? Não posso crer.
-- Sentes aquella musica, aquelle ruido de festa, que se eleva alli... da casa de meu pae? Sabes o que tudo aquillo significa?
-- Assumpção! por piedade falla... a incerteza mata-me.
-- Perdão para mim, que dentro de oito dias talvez ja.... não te possa olhar sem crime!
-- Oh! Ja o devia suspeitar... o coração da mulher é sempre o mesmo! Adeus, Assumpção!
E o mancebo ia dar um passo para sahir. Assumpção, cahindo-lhe aos pes, embargou-lhe a passagem.
-- Vaes-te, disse ella, sem um olhar para mim, sem uma palavra de perdão! Tem compaixão de uma infeliz; não me condemnes. Era porque muito te amava que o ciume me obrigou a dar esse passo fatal, que nos separa para sempre.
-- Levanta-te, Assumpção, disse o mancebo, erguendo-a em seus braços e sentando-a 'num banco ao pe d'elle. Com tua debil mão esmagaste todo o meu futuro... toda a minha vida! O ceu te perdoe o mal que me fizeste...
E os soluços embargavam-lhe a voz, e uma lagrima, uma lagrima de fogo, rolou de suas palpebras.
Assumpção tambem chorava, mas lagrimas de arrependimento, que dão allívio, e não lagrimas de desespero, que resequem como o sôpro do infortunio de que são filhas. Assumpção, conhecendo quão profundo era o soffrimento de Lucena, cingiu-lhe o pescoço com seus braços e deixou pender a fronte sôbre a fronte do mancebo.
-- Sou muito criminosa, sou indigna de ti, murmurou ella. Mas ninguem póde amar jamais como eu, e é em nome d'este amor que peço te esqueças de mim.
Eu não valho a pena de que te continues a arriscar por minha causa... deixa-me e esquece-me...
-- Deixar-te ja!... Não posso!... ja estou cansado de lutar com o destino, que tao adverso me tem sido; esses que juraram a minha perdição, que venham buscar-me, que lhes não disputarei minha vida, com tanto que m'a arranquem a teu lado.
-- Vae-te depressa, vae-te antes que te vejam, e leva comtigo a certeza de que, a não ser tua, de mais ninguem serei.... essa promessa, que me liga a outro, vou rompel-a!
-- Não... não posso deixar-te...
-- Lucena, pelo amor que me consagras, por quanto possa haver de sagrado entre nós, pelos mutuos penhores que trocámos, pela minha honra, que aos olhos do mundo pode ficar maculada, se te não retiras, por mim... por ti... por nós ambos... vae-te, foge e occulta-te dos inimigos, que te perseguem. Eu ca ficarei pedindo ao ceu que te proteja, anciando pelo momento em que mais propicio se nos mostre. Guarda, como lembrança de quanto te prometto, ésta flor, que 'nesta hora solemne te offereço, e pensa em mim todas as vezes que a vires, como eu pensarei em ti a todos os instantes.
E Assumpção, desprendendo uma flor da grinalda, que lhe circumdava os cabellos, a entregou ao seu amante.
-- Assumpção, continuou Lucena apos alguns instantes de silencio, se me amas assim, porque me não segues? Porque não vens, como o anjo do Senhor, guiar-me no caminho da terra da promissão? Sei que não posso offerecer-te senão uma vida cheia de trabalhos e angústias, mas ao menos viveremos juntos. Vem; hoje mesmo deixaremos ésta terra para nos irmos abrigar na casa de um amigo, que morrerá antes de me atraiçoar; de la seguiremos o caminho da Hispanha, onde ao menos poderemos estar ao abrigo de toda a perseguição, e sem vermos todos os dias ante os olhos o espectro da morte. Em Ignez encontrarás uma amiga dedicada, assim como eu a encontrei... pobre mulher! É um coração de pomba, como tu és um coração de anjo! Vem, se queres que acredite em tuas palavras, e que te julgue digna dos sacrificios que tenho feito por ti!...
-- Não me peças tal... não tenho fôrca para te resistir... e o que me pedes sería a vergonha de toda a minha vida.
-- Vergonha! e porque? Não acreditas na minha lealdade?
-- Mas é um sacrificio immenso o que me pedes!
-- Assumpção! repetiam 'nesse momento os echos do jardim.
-- É a voz de meu pae, continuou a donzella, trémula de susto. Por Deus! foge, vae-te, que te não vejam.
-- Escolhe: vem comigo, ou fico.
-- Lucena, tem dó de mim. Não queiras que tenha de me envergonhar diante de meu pae.
---Então vae ao seu encontro... e deixa-me aqui sosinho.
-- E tu?
-- Eu não arredarei um passo. A minha vida não merece a pena de ser disputada.
-- Assumpção! gritou mais de perto a voz de Alvarenga.
Ao fundo do jardim ja se via o morgado, sahindo de sua casa, rodeado de creados com luzes.
-- Estamos perdidos, disse Assumpção.
-- Ainda uma vez, escolhe. Ves que ja se approximam em tua procura.
-- Por Deus, foge, Lucena, foge; não me queiras perder!
-- Vem comigo então... vem...
-- Não!
-- Ainda ha tempo de nos escaparmos!
-- Lucena, por piedade, foge... deixa-me so...
-- Aventurar-me a todos os perigos para te ver, e apenas passado um instante deixar-te... quem sabe se para sempre?... não posso...
-- Assumpção! tornou a repetir mais perto a voz do morgado.
-- Ves, ves? Vão-nos surprehender...
-- Não importa; vem comigo. A porta travessa do jardim está aberta, vem...
-- Oh!
E a donzella estreitava em seus braços Lucena, como supplicando que a não sacrificasse.
Lucena tomou-lhe da mão e embrenhou-se por uma rua orlada de roseiras e jasmins, ao fundo da qual estava a porta por que entrára. Assumpção não offerecia resistencia.
O morgado, tendo dado pela falta de sua filha, falta que ja era notada no baile, corrêra ao quarto d'esta para saber o motivo que a obrigava a não tomar parte 'num festejo, que era so d'ella.
Nem no quarto nem em todas as casas a que foi procural-a, a encontrou; foi então que descêra ao jardim.
So depois de esquadrinhado tudo, dentro e fóra de casa, é que se convenceu de que Assumpção abandonára a casa paterna.
Voltou para a sala do baile e annunciou a seus convidados uma grave indisposição de sua filha. Ao outro dia mandava cobrir de crepe a pedra de seu brazão, e partia para o solar de seus passados, dizendo a todos, que o vinham procurar que sua filha morrêra quasi repentinamente.
XXI
CONSEQUENCIAS DE UM CRIME
Ao passo que em casa de Alvarenga tinha logar a scena, que acabámos de descrever, outra de mui distincto genero se passava entre os personagens que vimos figurar na embuscada da travessa das Canivetas.
Luiz, deixando seu cumplice ao pe do supposto cadaver de Assumpção, tomára o caminho de sua casa, ao cimo da Couraça de Lisboa.
Por pouco que se esteja ao facto da terminologia da antiga arte de fortificar, logo este nome de couraça indicará uma ingreme ladeira reforçada de parapeitos. Effectivamente a rua de que fallâmos é uma especie de muralha, que cinge a cidade pelo lado do sul, ou, que tanto vale dizer, pelo que olha a estrada de Lisboa.
Coimbra, como todas as povoações guerreiras dos antigos tempos, assente sôbre elevada montanha, domina do alto do seu amphitheatro esse vasto estendal de esmeraldas, que orla as margens do rio, que, se exceptuarmos a foz, alli attinge sua maior largura.
Sempre que a rua se vae avizinhando do castello, mais se empina a ladeira e com ella a altura que medeia entre o parapeito, que a resguarda, e a base do monte em volta do qual a mesma rua se prolonga. Ésta altura chega a tomar as proporções de um despenhadeiro, não talhado a pique, mas disfarçado pelo resvalar do terreno entre a Couraça e a Alegria, rua que serpeja nas abas do monte, em quanto que a primeira o contorneia superiormente.
Para que melhor se possa fazer uma ideia do que dizemos, lancemos mão de uma imagem que, por assim nos exprimirmos, materialise o nosso pensamento. Pintae em vossa phantasia uma longa tesoura, que á proporção que se abre vae augmentando a distancia entre seus dois gumes; assim, tendo estas duas ruas um ponto de juncção em frente da hospedaria do extincto convento da Estrella, vão proporcionalmente afastando-se uma da outra, seguindo oppostas direcções: uma, a inferior, humilde e modesta, baixa ao valle da Arregaça e liga a cidade com as povoações ruraes que abastecem seu mercado; outra, a superior, cidadan e fidalga, arremette suberba contra as asperezas do monte, e vae expirar ás portas do castello, de que hoje so resta o nome nos letreiros municipaes ás esquinas das ruas, que a rodeiam, e gloriosa recordação nos fastos da antiga historia portugueza.
Antes, porém, que éstas ruas se cheguem a perder de vista, ha um sítio onde quem se approximar do parapeito da Couraça ve a grande altura que ha entre ambas.
Medeia entre ellas a encosta do monte, hoje de facil subida pela recurvada azinhaga, que ahi se fez, formada de degraus em grande parte. Antigamente porém era um verdadeiro precipicio, não tendo obstaculo que impedisse a quéda de um objecto qualquer, que por ella resvalasse; precipicio tanto mais temivel, quanto mais profundas eram as excavaçoes que se faziam na falda do monte para explorar a rica pedreira, que alli havia.
Hoje as novas edificações, que 'nesse logar se ergueram, não consentem que se faça uma ideia exacta do que era esse despenhadeiro ao tempo em que se passa a nossa historia, e o que continuou a ser em tempos menos afastados ainda.
Era em frente d'esse logar que habitava Luiz.
Tomando, como dissemos, o caminho de sua casa, desde algum tempo sentia elle seguirem-lhe as pisadas de mui perto; como, porém, sua morada estivesse proxima, apertou o passo, contando de, em breve, ficar a salvo de qualquer tentativa menos agradavel, que lhe preparava o que com tanta insistencia lhe marchava no encalço.
Nem tudo corre á medida dos nossos desejos. O individuo que o seguia, alcançou tomar-lhe a dianteira; e, collocando-se em frente da porta, embargou-lhe a passagem com um simples levantar de mão.
Luiz, como a grande maioria dos malvados, era pouco resoluto, logo que não visse ao pe de si quem o apoiasse; e tal foi o sobresalto, que lhe fez experimentar o movimento visivelmente aggressivo d'aquelle homem, que, não so o não reconheceu, mas até, querendo pedir-lhe, com a maior cortezia possivel, que lhe desimpedisse a passagem, tentou, mas não pôde articular uma palavra, que intelligivel fôsse. O medo, se a uns solta a lingua, a grande número prende-a.
O leitor, que decerto não está no caso do sobrinho de fr. Marcos, terá ja reconhecido 'neste mysterioso personagem o criado de Alvarenga.
-- Sr. Luiz! disse este, depois de ter medido seu contendor com um olhar em que ao mesmo tempo transluzia o odio e a provocação.
-- Então, isso é modo de gente, grandissimo bruto? atalhou Luiz, cobrando ânimo ao ouvir fallar seu adversario. Se não te ouço a voz tão depressa, ainda ias esta noite fazer uma visita ao diabo.
Luiz, que se sentíra desfallecer de susto, logo que reconhecêra Jose havia recuperado a presença de espirito necessaria para se exprimir d'aquella fórma, muito embora a posição e os modos d'este denunciassem intenções pouco benevolas. Mas a submissão, que sempre 'nelle encontrára, e o jugo a que fr. Marcos o havia curvado, faziam que o mancebo temesse tanto as passageiras hostilidades de Jose, como os viandantes temem os fugitivos aguaceiros do estio.
Alem d'isso Luiz ignorava que o criado de Alvarenga tivesse queixa alguma que o indispozesse contra elle; e convenceu-se de que a falta de respeito, que 'nelle agora via, era talvez devida ao estado de em- briaguez em que Jose estava. Luiz nem ao menos se lembrava de que, momentos antes, o havia encontrado em seu perfeito juizo! É que facilmente se acredita o que se deseja.
Mas Jose não se sentiu intimidado pelo tom de superioridade com que lhe fallára o sobrinho de fr. Marcos; pelo contrário de cada vez parecia mais disposto a quebrar o jugo com que elle o fazia mover a seu bel-prazer.
-- Sr. Luiz, continuou elle, faz favor de me acompanhar, que lhe quero dar duas palavras.
-- Então imaginas que estou disposto a andar a passear comtigo á meia noite para ter o gôsto de te ouvir? Vae para casa e dorme, que o somno sobre o vinho é ouro sôbre azul.
-- Sr. Luiz, talvez seja melhor para si não me fallar d'essa maneira... é um aviso!...
-- Tu ameaças-me, patife?
-- Tome cautela com a lingua, ja lhe disse, retorquiu Jose, tremendo de indignação. Estou disposto a mandar ao diabo o senhor e mais seu tio, e saiba que ja não lhe consinto d'esses atrevimentos. Fique-me entendendo isto por uma vez!...
-- Deixa-me passar, senão grito por soccorro, atalhou Luiz, tentando afastar com o braço a barreira, que lhe oppunha o corpo de seu cumplice.
-- Se grita, esgano-o como a um cão. Olhe que eu ja não sou o Jose, que era ainda ha pouco! Mal por mal, antes me valêra ter sahido de casa do sr. morgado do que ter-me sujeitado a servir-lhes de instrumento de quantos crimes têm ideado o senhor e seu tio, que tão bom é um como o outro. Fiasse-me eu em suas promessas, estava servido!... que é o que me têm feito? Até hoje ainda não passaram de palavras: ao menos antes assim do que practicarem comigo as acções ruins que têm practicado para com os outros!...
-- Jose! exclamou Luiz, bramindo de raiva por se ver insultado por um homem, que desprezava, como vil instrumento de suas perfidias. Lembra-te que a prudencia tem limites!...
-- Era isso mesmo que eu queria dizer, sem saber como, accrescentou o criado com um sorriso glacial. Isso mesmo. Assim, quero acabar da uma vez com tudo isto, que nos prende. Antes de os conhecer aos senhores ambos, tinha vicios, é verdade, mas não tinha crimes. Algumas vezes me servi de meios de que hoje me arrependo para sustentar esses vicios, mas ao menos por isso ninguem me mandaria dependurar de uma forca. Foi a minha ma cabeça, que me levou a dar azos a que seu tio fizesse de mim um manequim, e que me mettesse em quantas teias urdia na cella do seu convento. Ora, emquanto se tractava de recados fingidos e de outras imposturas similhantes, bem iamos nós: são cousas que pouco custam e que não dão trabalhos; mas o sr. Luiz não contente com isso, proseguiu Jose com gestos de cada vez mais ameaçadores, não contente com isso, que ainda lhe parecia pouco, fez de mim um assassino... perdeu-me para todos os dias da vida!...
-- E eu obriguei-te a isso? Não te propuz um contracto, que tu acceitaste? atalhou Luiz.
-- Não, senhor, porque me enganou como um villão, que é. Eu, quando me promptifiquei para o seguir, bem longe estava de saber o que agora sei. Que me disse? que era uma espera a um malhado de que se tractava; isso é cousa que nenhum bom christão deve recusar de fazer. Não ha muitos dias, que ainda um prégador do convento de seu tio disse que isso era uma obra meritoria do gôsto e da vontade de Deus. Por dar uma facada 'num malhado não me vinha mal nenhum e podia vir muito bem; mas a sr.ª D. Assumpção não é um malhado...
-- E tu sabes se eu tambem não fui víctima de um engano?
-- O senhor enganar-se, coitadinho! Azoine-me os ouvidos a ver se o acredito!
E, depois de alguns momentos de silencio, continuou:
-- Era para isto que o vinha procurar... diga-me que quer que eu agora faça? Em se sabendo que eu matei a sr.ª D. Assumpção, onda me hei de esconder, que o sr. morgado me não descubra?
-- Para que te affliges com isso? Eu e meu tio faremos com que nada mau te succeda. Vae para casa, tudo se ha de arranjar.
-- Palavras, sempre palavras... ja me não engoda com isso!...
-- Bem sei que te devo algum dinheiro, como te prometti, porque emfim tu não tens culpa do que aconteteceu; alugaste o teu braço, e não queres, com razão, saber a quem fez mal...
-- Dinheiro! gritou Jose enfurecido, dinheiro a mim por matar a minha ama... a minha ama, a quem eu queria como ao lume dos meus olhos! Se até por ella era capaz de caminhar por cima de brazas! tão amigo era eu d'ella!... Podéra!... se ella era um anjo para nós, se andava sempre a desculpar-nos para que seu pae nos não ralhasse...
-- Mas, não obstante essa grande amizade, sempre lhe ias dando desgostos, colligando-te comnosco para perder Lucena...
-- E quem tinha a culpa? Pois é de tudo isso que agora me quero vingar. Prêso por mil, prêso por mil e quinhentos. A mim condemnar-me-ão, mas não pensem que me hei de calar... os juizes hão de saber tudo, e eu subirei á forca em muito boa companhia...
-- Pensas que te acreditarão? onde tens as provas, que dêem fe ás tuas palavras? O melhor é receber o dinheiro, que meu tio te der, e fugir.
-- Tem razão. Não me lembrava, que um miseravel como eu não póde fallar verdade, quando accusa uma pessoa de bem como o senhor. Uma pessoa de bem!... ah! ah! ah!
E Jose soltou uma gargalhada contrafeita, que fez gelar nas veias o sangue do sobrinho de fr. Marcos.
Luiz tremia como se sentisse calefrios. Jose olhava-o com ar sobranceiro, e parecia regosijar-se de ver estremecer de medo o que outr'ora o fizera joguete de seus caprichos.
Mas, ao passo que encarava 'nelle, sua physionomia tomava uma expressão de cada vez mais sinistra. Seus olhos rolavam nas orbitas injectadas de sangue; seus labios tornavam-se lividos, ao mesmo tempo que se contrahiam; e a respiração, de instante para instante mais alterada, deixava escapar um surdo ronquido ao passar pelo nariz, cujas azas estavam prodigiosamente dilatadas.
Jose ia-se approximando, como o tigre que se prepara para o salto, e collocou-se frente a frente com o seu adversario.
-- Não me lembrava isso; fez bem em me avisar... não importa!... não pense que me escapa, continuou elle, crescendo ameaçador para Luiz.
-- Que queres fazer? perguntou este aterrado.
-- Matal-o, respondeu Jose sem hesitar.
E, agarrando-o pelo meio do corpo, approximou-se do parapeito, que se erguia sobre o ahysrno. Luiz, 'naquelle instante supremo, reuniu todas as fôrças, e desde então começou uma luta horrível, braço a braço, sem treguas, sem piedade. No momento em que um d'elles sentisse fadiga, estava perdido; logo que fizesse um movimento menos cauteloso, rolaria no abysmo.
Luiz, a quem a desesperação deu fôrças e coragem, pôde, no primeiro impeto, obter uma excessiva vantagem sobre seu inimigo, e ja seu pe se levantava para lhe calcar o peito, quando este, mais robusto e com a superioridade do sangue frio, que conservára, se ergueu rapido, apertou-o em seus braços, levantou-o ao ar e despediu-o de si com violento arremesso.
Luiz, em seu desespêro, tinha-se agarrado ao pescoço do criado. Seu corpo, pendendo para o abysmo, arrastou com elle o de Jose, que, não encontrando no parapeito, pela sua pequenez, um ponto de apoio, rolou tambem pelo precipicio. Ambos elles não pareciam formar mais que um so corpo, que, de evolução em evolução, se despenhava rapido, até que um surdo baque annunciou a sua quéda no fundo da pedreira, escavada a immensa profundidade.
XXII
O HOMEM PÕE E DEUS DISPÕE
-- Ja se foi o médico?
-- Acaba de sahir.
-- E depois?
-- Morre... disse que morreria! Da-lhe, quando muito, quatro horas de vida... pobre creatura!
-- Oh! meu Deus! meu Deus!...
-- Chore, minha senhora, chore, que bem lh'o deve. É uma sancta, que vae direitinha ao ceu!
-- Poderei ao menos vel-a?
-- Então, porque não ha de podêr? O sr. Lucena tambem la está, desde que o médico sahiu. Se quer vel-a, é, aproveitar a occasião. O meu Ignacio, que anda a procurar confessor, talvez se não demore.
-- Vamos.
E Assumpção, guiada pela regateira, entrou no quarto em que Ignez jazia no seu leito de morte.
Os raios do sol nascente, risonhos e festivos como o primeiro sorrir do ceu á terra, escoando-se atraves do postigo semi-aberto, vinham derramar luz, mas não alegria, 'nesta casa em que tantas dores profundas se quebravam como vagas encapelladas no mais impassivel dos escolhos -- o passamento.
Ignez parecia ser, de quantos alli se achavam, a que menos soffria. Recostando sôbre o travesseiro a fronte desbotada pelo halito da morte, deixava escapar de seus labios um sorriso triste, mas não doloroso. Assim como a criança, antes de se adormecer no somno de uma noite, se despede com frequentes olhares do brinquedo favorito do dia, assim Ignez com não sei que olhar de saudade se despedia dos seres que amava, antes de se adormecer no somno de uma eternidade.
O leito da morte é de rosas ou de espinhos, conforme o prepara a virtude ou o crime.
Á cabeceira de Ignez, Lucena, taciturno, parecia pedir forças á resignação para resistir ao golpe com que o provava a adversidade. Não porque elle amasse Ignez com os extremos de amante, mas porque a estremecia, porque a idolatrava como se póde querer e idolatrar uma irman muito amada. O laço que o prendia ao seu anjo tutelar era todo despido de affeiçoes terrenas, e por isso mesmo mais estreito.
Ao ruido da porta, Ignez voltou-se e perguntou-lhe quem entrava. Lucena disse-lhe o nome de sua amante. A moribunda agitou-se convulsivamente sôbre o leito e deixou escapar do fundo d’alma um grito penetrante como a sua dor. Era o último vislumbre do ciume, o ultimo gottejar de uma ferida, que as lagrimas de um outro anjo iam sanar.
Assumpção parou no limiar e relanceou por toda a casa um olhar, que veio cahir fixo e penetrante sôbre Ignez. Apesar de todos os protestos de Lucena, a morgada ainda conservava suspeitas ácêrca das relações de seu amante com aquella mulher, e sentiu, ao vel-a pela primeira vez, um como presentimento doloroso de que se não enganava. Mas era tão grande o serviço que ésta acabava de prestar a ambos, que em Assumpção pôde mais a gratidão que o ciume.
-- Soffre, minha amiga? disse ella, acercando-se do leito e apertando entre as suas as mãos ja frias de Ignez.
-- Sua amiga... chama-me sua amiga? E a primeira vez que se me dá este nome!... Oh! como Deus é misericordioso em guardar para a última hora tantas consolações, a quem durante a vida so conheceu angústias e pezares!
-- Não lh'o dizia eu, minha senhora? volveu a regateira, dirigindo-se a Assumpção. É um coração de pomba... ninguem a pode ver que não a estime. Desde hontem parece-me que vivo 'num outro mundo... que 'nesse em que vivia até então era difficil, eu sei? talvez impossivel encontrar tres corações como os que reuni aqui em minha casa. E isto até consola a gente e parece que nos faz melhores. Eu sou uma pobre mulher, bem conheço isso; mas a minha vontade era fazel-os a todos felizes... pois vel-os assim e não lhes podêr valer, não é uma dor d'alma?
E a regateira, debulhada em lagrimas, teve de se interromper a si mesma, porque o contínuo soluçar lhe embargava a voz.
Aproveitemos a interrupção para darmos ao leitor uma explicação, que talvez ja tenha exigido.
Como ainda se não deve ter esquecido, Escholastica, subindo á cozinha, deixára Ignez so no quarto da alcova, por quanto sua nova amiga lhe mostrára pouca vontade de a seguir. Foi longa a demora da regateira, que tinha de cuidar em todos os preparativos da ceia. Logo porém que lhe foi possivel desenvencilhar-se da tarefa, desceu para vir ter com Ignez, levada pela curiosidade de averiguar certos pontos da historia íntima, que ésta lhe contára, e talvez mais que tudo pela necessidade de dar á lingua sempre que podesse.
Causou-lhe porém certa admiração não encontrar Ignez no quarto em que a tinha deixado; mas, lembrada de que, talvez rendida pelo cansaço da jornada, tivesse ido repousar na alcova proxima, respeitou por algum tempo o socêgo da mulher a quem dera hospitalidade, e assentou-se alli á espera que Ignez désse signaes de estar acordada.
Como o tempo traz comsigo a reflexão, e a reflexão purifica e amadurece os fructos da imaginação, Escholastica principiou a pensar la de si para si que não tinha muitos visos de realidade a hypothese com que explicára a ausencia de Ignez. Se ella dormisse na alcova contigua, a menos que não respirasse, era impossivel que não a sentisse. A regateira prezava-se de ter bom ouvido; mas, por mais que o applicasse para o lado da alcova, o resultado era sempre o mesmo -- um silencio inquietador. Ás vezes, tendo em nossa mão os meios de verificar qualquer cousa, pensâmos e tornâmos a pensar antes de nos acudir ao pensamento a ideia de nos servirmos d'elles. É o que succedia á regateira. Acabou por onde devêra ter principiado; quero dizer, levantou-se, descerrou a remendada cortina de chita, que servia de porta ou reposteiro á alcova, e deitou a cabeça para o interior, onde jazia um leito vasio.
Voltava estupefacta, quando á porta do quarto se desenhou a consternada figura de Ignacio Pires. Outro motivo de pasmo para a regateira. Como é que seu marido lhe apparecia alli, tendo ella pela sua propria mão fechado a porta da rua?
Ignacio não lh’o soube explicar; o que affirmava era que a porta estava aberta, que perto d'ella estava um homem estendido no chão, e que parecia morto.
Escholastica não quiz ouvir mais, e desceu a quatro e quatro os degraus da escada. Reconhecer Ignez, levantal-a do chão, subir a escada, levando nos braços aquelle corpo morto, e deposital-o sôbre um leito, foram tudo acções, que se succederam tão rapidas como o pensamento.
No emtanto a Plangana, no meio de tanta lida, sempre tinha tempo de ralhar com seu marido, e de lhe fazer carregar com as culpas de quanto havia succedido. Sem razão ou com ella, dizia a regateira na sua, que, se não fôsse a demora d'elle, não teria Ignez occasião de descer á rua sem que ninguem a presentisse. Talvez não fôsse muito fóra do eito.
Depois de alguns ralhos e palavras menos carinhosas, ou para melhor dizer, misturando tudo isso, Escholastica ordenou a seu marido que tractasse de ir procurar-lhe um médico, trouxesse-o fôsse d'onde fôsse, emquanto ella, pondo em práctica todas as mézinhas conhecidas, veria se era possivel fazer recuperar os sentidos a Ignez.
Ignacio obedeceu conforme seu costume, apesar do genio violento e indocil, que lhe attribuia sua mulher. Ignez, depois de ter feito por algum tempo que a regateira desesperasse da virtude do receituario doméstico, abriu os olhos, descerrou os labios, e como que sentiu nova vida inocular-se-lhe dentro d'alma. Era comtudo uma vida ficticia e apparente, porque o golpe do assassino lhe offendêra os orgãos de mais importancia na economia.
Escholastica ainda se deixou ir atrás de esperanças, que a sentença fatal do médico veio desfazer como bolhas de espuma, como o crepitar da lampada sem oleo. Foi durante este intervallo, em que a regateira se viu a sos com ella, que Ignez, a muitas instancias, lhe confessou que fôra a esperança de salvar Lucena que a fizera ir expor-se á morte.
Não tinha ella desejos de morrer, porque ninguem os tem aos dezoito annos; mas a vida sem o homem que amava, muito embora elle sempre o ignorasse, muito embora fôsse um amor sem esperança, como a agonia do phtisico, não a podia ella conceber, e era-lhe um fardo pesadissimo.
Quasi nas costas do médico, que vinha em soccorro de Ignez, subia Lucena a escada da regateira em companhia da filha de Alvarenga.
Lucena, confiado em tantas provas de dedicação, que recebêra da parte de Escholastica, não duvidára conduzir Assumpção para casa d'esta, em quanto se lhe não apresentava ensejo para sahir da cidade. Alem d'isso contava o estudante com que Ignacio, que tão facilmente encontrára albergue para os cavallos em que elle e Ignez tinham vindo, podesse da mesma fórma procurar-lhe um de mais para sua nova companheira de jornada.
Ouvindo-se o rumor de seus passos, foi Ignacio á escada, por ordem da regateira, para verquem subia. Reconhecendo Lucena, em poucas palavras lhe relatou o que succedêra durante a ausencia d'elle. Quizera o mancebo correr immediatamente ao logar em que Ignez agonisava, mas a presença do médico obrigou-o a conter os impulsos do coração. Foi o cauteloso Ignacio quem lhe advertiu que seria uma temeridade injustificavel expor-se aos olhares de um extranho, e que ja alguma cousa poderia suspeitar, apesar das verosimeis conjecturas com que a regateira pretendia explicar o ferimento de Ignez.
Lucena, assim que viu retirar-se o facultativo, dirigiu-se ao quarto que este acabava de abandonar. Ahi ouviu da bocca da regateira o novo acto de heroismo, que Ignez practicára para lhe salvar a vida, não obstante ter ésta, amiudadas vezes, dado signaes de vivo descontentamento por ver que assim eram atraiçoados seus segredos. Mas á regateira não lhe dava isso muito cuidado: orgulhosa de ter adivinhado a grande alma de Ignez, queria que todos a admirassem e ficassem subjugados perante a superioridade moral da mulher, a quem primeiro que todos admirára.
O estudante que, pela sua parte, não tinha pouco para dizer á regateira, não hesitou em declarar-lhe os motivos que o obrigaram a trazer comsigo Assumpção, ainda que sem previo consentimento da dona da casa.
Logo que Escholastica soube a qualidade da pessoa que seu tecto abrigava, deu-se pressa a ir fazer-lhe as honras da hospitalidade, não sem primeiro ter dado ordem a seu marido para que fôsse procurar um confessor para Ignez, unica prescripção, que fizera o médico.
Não se conteve a Plangana que, depois de trocados os primeiros cumprimentos, não contasse á morgada o que ja tinha dicto a Lucena; que se não satisfazia ella emquanto não repetisse a todos o nobre procedimento de Ignez. Foi depois d'esta confidencia que teve logar entre ambas o dialogo por que abrimos o capítulo.
-- Eu quizera, continuou Ignez, fallando com difficuldade, quizera morrer, vendo junto de mim todas as pessoas que estimo... mas é impossivel... sei que é impossivel. As ciladas e as traições rodeiam-nos. Deixem-me so... e fujam, fujam para bem longe d'esta terra... o ardil de que me servi póde ser descoberto, e recomeçará uma perseguição mais terrivel. A tia Escholastica velará meus derradeiros instantes... e me cerrará os olhos, quando tiver cessado de existir... é quanto basta! Mas fuja, sr. Lucena, fuja, que ainda resoa a, meus ouvidos o plano tenebroso, que elles concertavam.
-- Socegue, minha amiga, respondia-lhe Assumpção. Quem se lembrará de nos vir procurar 'neste logar?
-- Quem? elles, elles, que juraram a perdição de todos nós... Ésta ideia é que amargura a minha morte... Por Deus lh'o peço... fujam... fujam em quanto é tempo...
-- Ignez, não julgue que, por maior que seja o perigo que me ameaça, me possa fazer esquecer de um dever. Tambem se expoz quando me salvou do Limoeiro, tambem se expoz quando me acompanhava na fugida, e agora mesmo acaba de sacrificar-se por minha causa. Serei eu um ingrato para que me esqueça de tudo isto, e logo volte costas na primeira prova com que á fortuna aprouve experimentar-me? Não me peça tal, que não lh'o posso fazer. Ainda que assim não fôsse, era um impossivel. Rompeu o dia, e as ruas ja começam a ser frequentadas. Havia maior perigo em sahir agora do que em continuar a permanecer aqui.
-- E podem ficar muito á sua vontade, atalhou a regateira; olhem que tenho em casa um esconderijo com que se não dá sem eu querer. Ja, quando foi dos francezes, recolhi la muito ouro, muita riqueza, que voltou depois para seus donos, apesar d'aquelles endemoninhados me terem revolvido tudo. Se eu não soubesse isto, não os convidava para minha casa... podéra! para ver-lhes fazer alguma desfeita sem lhes podêr valer!...
Abriu-se 'neste momento a porta, e Ignacio annunciou a chegada de um confessor. A regateira apontou a Lucena e Assumpção uma outra de serventia interna pela qual se retiraram.
O vulto venerando do sacerdote destacou-se entre os umbraes da porta por que entrára Ignacio, que se afastou respeitosamente para dar passagem ao ministro do Senhor.
Era fr. Marcos.
O franciscano levantara-se apenas sol nado, porque o somno recusára toda a noite visitar suas palpebras. É que, nas horas destinadas ao descanso do corpo, sua alma experimentára todas as commoções, que agitam o jogador, que arrisca o presente e o futuro 'num lance do azar. Ignorando o resultado do plano que traçára, ora animado por lisongeira esperança, ora assustado por crueis presagios, a noite passara-se-lhe em contínua vigilia. Ancioso por saber o que devia esperar, se a ruina, se o triumpho de sua ambição, corrêra a casa de seu sobrinho, logo que sentiu desaferrolhar a porta do convento.
Mas, não tendo encontrado Luiz, o frade explicava a ausencia de seu sobrinho do modo mais favoravel para ambos. Se tudo não tivesse corrido á medida de seus desejos, era pouco provavel que Luiz não se recolhesse a casa, logo que víra frustradas suas esperanças. Era o mais natural.
Foi na volta do frade de casa de Luiz, que Ignacio o encontrou, e lhe pediu soccorro espiritual para um moribundo. Gozava fr. Marcos de uma certa aura de sanctidade; e o marido de Plangana dava parabens á sua fortuna por ter feito acquisição de tal ordem, quando nem tempo tinha de pensar em escolher um ou outro.
Fr. Marcos accedeu de boa mente ao pedido de Ignacio, e acompanhou-o.
Entrado que foi no quarto de Ignez, Escholastica e seu marido retiraram-se para que o frade désse princípio á sua tarefa, sublime e penosa ao mesmo tempo.
O olhar do confessor cahiu obliquo sôbre o leito em que jazia a moribunda.
A surpreza e o pasmo pintou-se no rosto do frade. Mais na penitente fitava os olhos, mais em suas feições se desenhava em maior escala a expressão d'estes dois sentimentos.
Parecia que o franciscano acordára de um sonho, e ainda estava incerto se o que via não era mais do que a continuação do mesmo sonho.
Ignez mal sabia o que significava o silencio do seu confessor, e julgando que elle aguardava o convite para principiar a confissão, pediu-lhe que se approximasse.
Fr. Marcos acercou-se do leito, cravou de novo os olhos na penitente e recuou dois passos de admirado. Illudido pela similhança que Ignez tinha com a filha de Alvarenga, exclamou:
-- Aqui, sr.ª D. Assumpção?
Ignez, costumada a este engano da parte de quem conhecia a morgada, não estranhou a surpreza do frade. Desfez o engano, confessando quem na realidade era.
Acabada a confissão, fr. Marcos permanecia calado, e nem uma palavra de confôrto tinha para aquella, que ja via ante si a eternidade. Ao pasmo succedêra em sua physionomia a expressão do odio.
E que elle tinha diante dos olhos a mulher que ludibriára uma vez suas esperanças; e seu coração, eivado de fel e rancor, nao sabía o que era perdoar. Fôra essa mulher, que ahi se estorcia no leito da morte, a que salvára Lucena, quando elle havia jurado a sua perdição. Bastara-lhe haver feito causa commum com um homem, que aborrecia, para tambem a involver no mesmo odio e na mesma sêde de vingança.
A ideia de exarcebar a atribulação dos ultimos instantes de Ignez fel-o exultar de um infernal contentamento.
Violentando os preceitos de uma religião toda paz e amor, invocando o nome de um Deus todo misericordia e perdão, abusando da auctoridade de que o sagrado mister de sacerdote o investíra, o frade affirmava que para ella não havia remissão possivel, e de antemão lhe pintava com as mais negras côres o tormento das eternas chammas, a que estava votada.
Debalde Ignez implorava a piedade d'aquelle homem: o indigno levita so tinha nos labios imprecações e ameaças, affrontas e improperios.
-- Pelo Deus que expirou, perdoando aos que lhe deram a morte, absolva-me, padre!
-- Nunca. Na minha mão não está o podêr de remittir culpas tamanhas.
-- Não consinta que morra impenitente... Não ve que ja poucos momentos terei de vida?
-- Vejo so o meu dever. Morra como viveu -- no peccado. Pensa que não ha mais que passar vida folgada, torpe e dissoluta?
-- Deus bem sabe o que soffri, quando tive consciencia de mim mesma. Acceitei esse modo repugnante de vida, porque não podia ser outra cousa; porque todos me repudiavam, pois a minha vergonha escondia-se em andrajos, e o vício que se respeita adorna-se de velludos e pedrarias; porque me vi so e sem amparo no mundo, e tive de escolher entre a fome e a abjecção. Se a contricção attenua a culpa, eu não sou culpada... nao o devo ser!
-- E foi tambem a necessidade que a levou a arvorar-se em libertadora de criminosos?
-- Não era uma acção meritoria, que practicava?
-- Uma acção meritoria!... Diga um crime, um peccado. Crime, porque subtrahia á acção da justiça um criminoso; peccado, porque fazia escapar á sua justa punição um hereje.
-- Padre, padre, eu morro... tenha dó de mim...
-- Deus é bom e misericordioso! Por grande que seja a culpa, a Divina Providencia encontra sempre um meio para a fazer expiar. Quer ser absolvida?
-- Quero, porque tenho fe na bemaventurança...
-- É mister então dizer onde pára esse homem, para que, com a sua impunidade, não insulte a justiça da terra, nem affronte a cholera celeste.
-- E é esse o unico recurso?
-- O unico.
-- NSo preciso de mais nada. Póde sahir.
E Ignez estendeu o braço, apontando para a porta.
Com este movimento reluziu em seus dedos a pedra de um annel, que sempre trazia comsigo. O frade cravou 'nelle a vista e parecia devoral-o com seus olhares. Acercando-se mais do leito, continuou-o a examinar com tanta insistencia, que chamou a attenção de Ignez.
O olhar fixo do confessor em breve revelou a penitente qual o objecto que tão grande attenção merecia ao frade.
-- Parece que conhece este annel? perguntou ella.
-- Se o tivesse um instante na minha mão, responderia com mais segurança, retorquiu este.
-- Aqui o tem.
E Ignez passou-lhe ás mãos o annel. O frade voltou-o nos dedos, e 'nelle viu gravada a data -- 1809 e as iniciaes E. e M. unidas em cifra.
-- D'onde houve este annel? perguntou Marcos com anciedade.
-- Conhece-lhe a dona?
-- Conheço.
-- Leve-lh'o; e diga-lhe que sua filha na hora da morte lhe perdoa o abandõno em que a deixou, e todo o mal a que deu origem.
-- Sua filha! exclamou o frade, deixando cahir a fronte sôbre o seio.
Fr. Marcos reconhecêra o annel, que, um anno antes de nascer Ignez, dera a D. Effigenia em penhor de sua malfadada paixão.
Agora estava explicada a similhança que havia entre sua filha e Assumpção: gottas do mesmo sangue lhes giravam nas veias a ambas.
O amor de pae foi superior a todas as considerações, e fez por algum tempo calar a voz dos maus instinctos, que dominavam o coração d'aquelle homem.
O franciscano, depois de ter hesitado entre a vergonha e o remorso, approximou-se do leito; e, ajoelhando aos pes d'elle, disse com a voz entrecortada pelos soluços:
-- E para teu pae inda havera perdão, filha?
-- Meu pae!... vós? perguntou Ignez admirada.
-- Causo-te horror, não é verdade? Minha filha, sou o mais miseravel dos homens, mas tambem o mais desgraçado.
-- Vós?
-- Eu. Não me negues a tua compaixão; esquece-te do passado, agora que para nós vae começar uma nova vida.
-- Levantae-vos, meu pae. Que tudo seja esquecido.
Fr. Marcos levantou-se, e correu a apertar Ignez em seus braços. Com que exaltação, com que delirio lhe prodigalisava mil e mil caricias, é impossivel descrever. Um raio de celeste alegria parecia haver baixado do ceu para lhe illuminar a fronte.
Bemdicta a religião que sanctificou o arrependimento, e fez do perdão o seu preceito supremo! É este a sua excellencia, a coroa, o cunho da sua divindade!
-- Minha filha! dizia de vez em quando fr. Marcos, cobrindo-a de afagos. Minha filha! inda has de ser muito feliz, continuou elle, illudido pela serenidade, que via estampada no rosto de Ignez.
-- Ja é tarde! respondeu ésta, cahindo sem sentidos, porque o embate de tantas commoçoes lhe havia esgottado as últimas fôrcas.
Vendo desfallecer Ignez, o frade amparou-a em seus braços; e duas lagrimas, em que se lhe fundíra o sangue do coração, rolaram sôbre suas faces lividas como as de um cadaver.
-- Minha filha!... exclamava o frade, apertando Ignez contra o seio e beijando seus labios desbotados como se lhe quizesse communicar o fogo que o devorava la por dentro. Minha filha... minha filha! Morta... morta agora, que renascia para mim! Não, não quero que morra... não quero, não ha de morrer! Um médico... quem me vae chamar um médico... mas ja! Venha um, que me salve minha filha!... Hei de ser eu mesmo: quem irá mais depressa do que eu?...
E fr. Marcos, allucinado pela dor, correu á porta, transpol-a e desceu á rua com tal rapidez, que ninguem acreditaria.
Depois de ter avançado alguns passos, quasi desorientado no caminho, topou de frente com fr. Verissimo.
Este, attribuindo a diversa causa a inquietação que se pintava no rosto do confrade, tomou-lhe do braço e balbuciou-lhe as triviaes expressões de confôrto, que de ordinario servem de provar ainda mais a paciencia de quem as escuta.
-- Aprouve ao ceu descarregar-vos um grande golpe, irmão. Resignae-vos, que cada um 'neste mundo tem o seu quinhão de infortunio.
-- Ja sabeis?... não sou muito desgraçado?
-- Muito... mas armae-vos de coragem, e não vos deixeis vencer pelo demonio, porque Deus so quiz provar a vossa fe, fazendo succumbir quem pelo, sangue vos era tão proximo.
-- E que morte tão desastrosa!...
-- É verdade... seu corpo estava todo desfigurado. Ao pe d'elle tambem se encontraram restos de um outro cadaver, mas tão mutilado, que nem pôde ser reconhecido...
-- Que estaes a dizer, irmão?
-- A verdade.
-- Seu estado não é como dizeis...
-- Enganaes-vos... ainda agora venho de la!
-- E eu tambem.
-- Então haveis de negar que vosso sobrinho...
-- Meu sobrinho... que dizeis de meu sobrinho?
-- Então não foi Luiz que appareceu ésta manhan morto ao fundo de um despenhadeiro?
-- Tambem elle... elle?... Oh! meu Deus! como é omnipotente vossa justiça! O ceu tornou-se inexoravel para comigo, irmão; mas eu tambem sou um grande criminoso...
-- Vós, criminoso? A dor faz-vos desvairar.
-- Tudo que eu amava... tudo perdido! Ambos arrastados ao vício e ao crime por minha causa, ambos mortos no mesmo dia por meu castigo. Irmão fr. Verissimo, fugi de ao pe de mim, que a maldição do ceu cahiu sôbre minha cabeça.
E fr. Marcos, desligando-se do braço que o retinha, deitou a correr pela rua adiante. Fr. Verissimo, vendo escapar-se-lhe o seu amigo, resmungou comsigo mesmo:
-- Coitado! está doido!
Momentos depois, Lucena, Assumpção e a regateira rodeavam o leito de Ignez.
Estava proximo o instante do passamento. O anjo do exterminio ja roçava com suas negras azas a fronte de sua víctima.
Reinava 'naquelle recinto a mudez que acompanha todos os duros transes da vida, e em que todos os penosos sentimentos, que agitam a alma, se consubstanciam em lagrimas e soluços, que d'ella partem.
Ignez abriu os olhos e fez signal para que a ajudassem a encostar-se á cabeceira do leito. Todas as pessoas que alli estavam deram-se pressa em satisfazer-lhe esse desejo.
-- Ha mortes que valem mais que a vida, dizia ella pouco depois, mas com tão sumida voz, que mal se lhe ouvia. Eu nunca julguei que morreria assim... cercada de pessoas a quem a minha morte désse pena... Para nós, filhas e companheiras da vergonha, ha so o leito do hospital e a indifferença, paga como desvelo, de infermeiros mercenarios. Que fiz eu para que o ceu se mostre tão benigno para comigo 'nesta última hora? Ai... lembrae-vos algumas vezes da pobre Ignez e...
O estertor embargou-lhe a voz; seu corpo agitou-se 'num derradeiro estremeção. Dos labios dos circumstantes sahiu unisono um grito de dor, e seus joelhos se curvaram em terra em presença do terrivel mysterio da morte.
Quando fr. Marcos entrou, em companhia de um médico, tudo estava consummado.
A alma de Ignez voára ao ceu.
'Nessa mesma noite um pequeno cortejo funebre sahia de casa da regateira. Afora o sacerdote, constava somente de tres pessoas.
Apenas o coveiro lançou sobre a sepultura de Ignez a última pa de terra, as tres pessoas, que completavam o sequito, vieram ajoelhar-se sôbre a campa recem-fechada, e ahi permaneceram por alguns instantes, resando pelo eterno descanso d’aquella que alli se escondêra para sempre.
Finda a oração levantaram-se os tres companheiros e pozeram-se a caminho, embrenhando-se no labyrintho d’essas pequenas ruas, estreitas e tortuosas, que vão dar á ponte.
Os nossos caminhantes, apesar do escuro da noite, continuaram pela ponte fóra, até que ao fim d'ella deram de frente com um homem, segurando pelas redeas dois fogosos cavallos, que mal se deixavam suster de impaciencia.
Dois dos que tinham assistido ao entêrro montaram, cada qual em seu cavallo, depois de terem trocado saudosas palavras de despedida com as pessoas que ficavam.
A separação foi triste de parte a parte.
Os que ficavam eram Plangana e seu marido: os que partiam eram Lucena e Assumpção, que iam procurar na terra do exilio a segurança e a tranquillidade, que a patria lhes negava.
O itinerario era por Hispanha para Plymouth, onde affluia a torrente dos emigrados.
EPILOGO
Abriu-se a porta do pequeno aposento em que a baroneza de Soutelim costumava receber os intimos da casa, e entraram o conselheiro Mendanha e o dr. João de Villanova.
Argos de um posthumo ciume, estes dois conhecimentos legara-os á baroneza seu defuncto marido em desconto de uns dose mil cruzados de renda, que se víra obrigado a deixar-lhe, quando, pela mais agradavel de todas as surprezas, se retirou d'esta para melhor vida.
Effectivamente o barão era uma especie de Prometheu da immortalidade. Mais feliz porém. O segredo havia-o roubado aos deuses, mas o castigo foi menos duro. O barão, em vez de abutre, padecia da gotta, da asthma, dos olhos e dos ouvidos -- so não padecia dos dentes, porque os não tinha -- mas cousa de se despedir d'este mundo, era do que se lhe não via geitos. A não ser uma indigestão, que pilhou na consoada de um dia de jejum, ainda hoje a baroneza saborearia as delícias de um matrimonio... venturoso, segundo o horoscopo do mundo.
Murmuravam os que se presumiam de bem informados que o conselheiro e o médico suspiravam por serem os protogonistas dos capitulos ineditos do romance conjugal da baroneza.
Não davam novidade, que ella ja não tivesse aventado; mas, desgostosa pelo estylo triste e melancholico da parte, que lhe servia de prologo, queria mudar a scena e variar os typos de maneira que tornasse mais amena a continuação. Por fatalidade estes dois pretendentes tinham a edade do barão; d'onde concluiu a viuva que haviam de ter a gotta e a rabuje de seu primeiro marido.
O non bis in idem ha de ser sempre a suprema lei do bom gosto. O preceito não o sabía a baroneza, nem o latim em que anda enunciado, mas adivinhara-o por uma d'essas intuições sobrenaturaes, que são o condão das naturezas privilegiadas.
Ja que tudo negámos á mulher, a sciencia e a práctica do mundo, concedamos-lhe ao menos esse dom de adivinhar, sob pena de não a darmos por incapaz de viver entre gente.
Quinze dias depois de ter fallecido o barão, quando ja a baroneza ia dando treguas ás inconsolaveis atribulações de sua viuvez, os dois zeladores da fidelidade conjugal começaram a pensar que o trabalho mais aperfeiçoado é o que cada um faz por sua conta. Com o intuito de velarem a honra do barão, os seus dois amigos aspiravam em silencio á mão da gentil viuva.
Dizem os entendidos que o amor silencioso é o mais vulcanico de todos os amores. Tem parentesco íntimo com a melhor cerveja, que, se se destapa, irrompe impetuosa; se se deixa arrolhada, ameaça espedaçar botija e tudo.
Todavia os dois pretendentes preferiram trazer aquelle demonio negro dentro do corpo, a lançarem-se de joelhos aos pés da baroneza e pedir que os exorcismasse emquanto se não tivessem desfeito um do outro, antes que conquistasse os vinte e cinco annos da viuva e seus dose mil cruzados de renda, e ainda por cima se risse das genuflexões do marido.
Eis ahi a razão por que os velhos não são felizes em amor. Revestem-se da sua seriedade, elevam-se ás exigencias de sua posição social, e temem o ridiculo, como se não fôsse o ridiculo o que as mulheres mais desculpam, quando é por amor d’ellas! Omphale per-doa a Hercules fiar na roca; Europa não leva a mal que Jupiter se desfigure em touro.
Prepararam-se pois os dois velhos para uma guerra de morte, e principiaram a degladiar-se com a mais viperina de todas as armas -- a lingua. Se um vinha de manhan, o outro vinha á noite, so para terem o gôsto de desfazer um no outro.
Trabalho superfluo. A baroneza ria-se com ambos os maldizentes, mas ninguem sabe se era mais á custa do ausente se do que tinha ao pe.
Foi no mais acirrado do combate, que Eduardo do Amaral começou a frequentar a casa da viuva. Era 'nesse tempo Amaral a seducção da grande roda lisbonense. Borboleta das salas, todas as flores almejavam por attrahil-a, mas eram flores de ouro as que so conseguiam ser attendidas. 'Num de seus caprichosos vôos deparou com a baroneza e rendeu-se.
Pobre doutor! pobre conselheiro!
O perigo imminente fez reunir os dois inimigos. Fracos, cada um de per si, para arcar com o predominio do mancebo, deram-se as mãos os dois velhos, ficando salvo o direito de recomeçarem o combate apos a quéda do inimigo commum. E 'nisto mostraram que eram bons diplomatas; d'onde se poderia inferir que o nossa terra não é tão desprovida de homens de estado, como geralmente se pensa, pois não me consta que qualquer d'elles figurasse no parlamento ou no conselho de ministros.
Desde o seu armisticio os dois rivaes entravam sempre junctos em casa da baroneza, dispostos a guerrearem a todo o transe a candidatura do novo pretendente.
O conselheiro, que era membro de algumas academias nacionaes e extrangeiras, tentava esmagar a influencia de seus rivaes, tornando o salão da baroneza theatro de sua erudição, declamando com ar de pedagogo um curso de philosophia a respeito do incidente mais trivial do mundo, que cahisse em tom de conversa. O medico fitava ao mesmo alvo com o auxílio de Galleno e Hippocrates, inquirindo minuciosamente o estado de saude da baroneza, e fazendo esforços inauditos para debellar a renitente enxaqueca de que ella se queixava sempre que suas visitas se prolongavam.
Á chegada dos dois colligados estava a baroneza sentada ao piano, percorrendo o teclado num d'esses devaneios que nao tem nome nem explicação. A baroneza sentira-se triste e fôra procurar distracção nas harmonias do seu instrumento favorito. Mas por acaso ou por disposição da alma so lhe acudiam á lembrança os trechos mais melancholicos do seu reportorio. 'Nesse instante achava-se ella como que esmaecida, escutando não sei que phantastico improviso a que a bella aria do pae de Alfredo, no segundo acto da Traviata, servia de thema.
Vendo entrar seus dois pretendentes, a baroneza como que receando que a expressão da musica trahisse o segredo de seu coração, principiou a tocar a aria tal como a escrevêra o grande compositor.
Os dois velhos tomaram assento ao pé do piano, cada um de seu lado.
Apos os vulgares cumprimentos do estylo a baroneza, dirigindo-se a Mendanha, perguntou-lhe:
-- Gosta da Traviata, conselheiro?
-- Eu?... abominavel musica. Musica de phtysica, e basta. Aborrece-me ver a arte descer á vilania de se equiparar a obra de alfaiate. Hoje um auctor, quando mira a ephemero triumpho, tem de ir primeiro consultar os figurinos de París para por elles talhar a sua concepção. Qual é o resultado? a monotonia e o cansaço. Eu ja não frequento theatros, nem leio livros de litteratura. Causam-me sempre o mesmo -- repugnancia e nojo. Desde que Alexandre Dumas junior se lembrou de nos remetter ‘numa brochura de franco a sua Dama das Camelias como a expressão do bom gôsto parisiense, nos theatros e nos livros ja nos não apparece senão encomios á prostituição, mas á prostituição descarada e que faz gala de o ser, e por fim a apotheose da phtysica... Sancto Deus! que extravagante gôsto este! Amor platonico a uma mulher que vive em guerra declarada com o platonismo, e ainda em cima a escarrar sangue e a tossir... a tossir sem dó nem compaixão dos nossos ouvidos!... Que pindarico disparate! Vamos ao theatro lyrico? Temos a Traviata. Vamos aos de declamação? Repetem-nos pela milesima vez As mulheres de marmore e, para variar, o Amor virgem ‘numa peccadora. Entrâmos finalmente ‘num gabinete de leitura? A primeira cousa que nos dão, ou é Fernanda, ou Manon Lescaut, ou a Dama das Camelias. Bonita litteratura!... bonitos espectaculos!... É porisso que opto pelos classicos. Alli ao menos a gente adquiria o gôsto do bom, do nobre e do bello.
E o conselheiro ja se apromptava para larga dissertação em que havia de pôr em parallelo as razoes que disparam uns sôbre os outros os classicos e os romanticos, estes guelfos e gibelinos da arte.
Mas a mão que levava o rapé ao nariz, como introito do discurso, ficou paralysada e toda a figura do conselheiro tomou uma attitude aggressiva, fazendo um movimento que se reflectiu instantaneamente nos membros do doutor, como se um fio electrico os communicasse.
Entrava na sala um novo personagem; e escusado sera dizer que era Eduardo do Amaral.
Trajava o mancebo irreprehensivel casaca preta sôbre calça e colete da mesma côr. Em seu vestuario alvejavam so a gravata e as luvas, mas com que alvura!... a neve teria inveja d'ella.
Os dois enteados de Venus receberam o nosso visitante com um modo glacial, o que fez com que a baroneza redobrasse a affabilidade do acolhimento ordinario. Eduardo pagou indifferença com indifferença, galanteio com galanteio, e de tal arte que os dois velhos não poderam deixar de confessar que ninguem seria mais desdenhoso no desprêzo, mais lhano na galanteria.
Amaral, vendo seus dois rivaes ladeando a baroneza, puxou uma cadeira e foi sentar-se em frente d'ella, do outro lado do piano. Mendanha e Villanova morderam os beiços de despeito. A baroneza sorriu de satisfação.
-- Vinha ja buscar-me, sr. Eduardo? perguntou ella, dirigindo-se ao mancebo.
-- Não, sr.ª baroneza; pelo contrário. Vinha para ter a honra de passar a noite com v. ex.ª
-- Então o baile?
-- Agora mesmo acabo de encontrar um dos meus amigos, que me afiançou que não tinha logar.
-- Que noite aborrecida que vae passar, depois de ter esperado uma toda de delicias!
-- Ao pe de v. ex.ª, sr.ª baroneza, uma eternidade sería um sonho de poetas, o antegosto do paraiso...
-- Lisongeiro!
-- Incredula!
-- Onde era o baile, que, tão felizmente para nós, não se levou a effeito? atalhou o conselheiro, ancioso por terminar aquelle tiroteio de palavras, que davam logar a que os olhares dissessem mais do que ellas.
-- Em casa do commendador Lucena, respondeu a baroneza, contrariada pela interrupção. Como o sr. Amaral era um dos convidados, tinha-lhe pedido que me obsequiasse com a sua companhia até la.
-- Eu tambem o fui... proseguiu Villanova, olhando a baroneza de um modo que queria dizer -- e porisso devia ser eu o que a acompanhasse.
A baroneza comprehendeu o olhar e retrocou:
-- 'Nesse caso poderia tambem vir comnosco. A minha sege póde levar muito á vontade tres pessoas.
-- Mas por que motivo não houve baile?
-- Succederia alguma desgraça em casa do commendador? perguntou Villanova.
-- É uma historia célebre, respondeu Amaral. Fugiu-lhe a filha para casar com um sargento de lanceiros, e morreu-lhe o sogro... tudo no mesmo dia. O que é melhor, é que nunca lhe ouvi fallar no tal sogro; mas parece que se não davam muito bem, o que não obsta a que a sua morte lhe traga alguns dias de nojo.
-- Vivia na capital o sogro? atalhou o conselheiro.
-- Ora que pergunta! disse Villanova. Muitas vezes encontrei v. ex.ª em casa d’elle. Era o visconde de Alvarenga.
-- O visconde!... eis uma novidade para mim. Fui muito seu amigo; mas nunca nem em filha, nem em genro me fallou. Tambem não me admira d’isso: era um excentrico de marca. Uma das suas: organisou-se na India ingleza tuna sociedade zoologica, que me deu a honra de me convidar para seu socio honorario; o homem soube d'isto, e quiz tambem alcançar um diploma; fez-me propol-o, sob promessa de apresentar uma memoria dentro de seis mezes: que memoria havia de escrever o maldicto! ... uma serie interminavel de sandices sôbre o mormo dos cavallos anti-diluvianos! Emfim foi admittido, porque se as academias não receberem em seu gremio homens de ouro e pergaminhos, quem hão de receber?... a sciencia precisa de nobilitar-se.
-- Era um homem feliz aquelle visconde! Nada lhe faltava!... murmurou Eduardo com ar de inveja.
-- Não diga isso, sr. Amaral, atalhou o médico.
-- Porque?
-- O visconde morreu de desgostos. Isto é uma historia de que estou bem informado.
-- Conte-nol-a, doutor, redarguiu a Baroneza. Tenho curiosidade de saber como um homem rico, estimado e acolhido por todos, póde ser desgraçado.
-- Sua mãe, sr.ª baroneza, se ainda fôsse viva, podel-a-ia contar melhor do que eu.
-- Conhecia minha mãe, doutor? perguntou a baroneza despeitada.
-- Perfeitamente, minha senhora.
Abra-se aqui um parenthesis.
Quem era ésta baroneza, que parecia não gostar que lhe esmiuçassem a genealogia?
Era nem mais nem menos que a representante das familias Pires e Plangana, reunidas pelo mais sagrado de todos os vinculos nas pessoas da regateira e do carpinteiro, nossos antigos conhecidos.
Quando, depois da restauração da Carta, Lucena voltou ao reino, encontrou Escholastica chorando a morte de seu marido e festejando o nascimento de uma filha, que víra a luz tres mezes depois de seu pae morrer.
Lucena recolheu a mãe e a filha em sua casa. Escholastica porém era que se não dava com aquella vida sedentaria. Foram inuteis todos os esforços que fizeram Lucena e sua mulher para lhe tirar a mania de tornar á saudosa tenda de peixe fresco. Voltou para Coimbra e deixou sua filha em casa de seus amigos, que a educaram como se fôsse sua filha.
Foi de casa de Lucena que a baroneza casou com um antigo agiota e mais alguma cousa, que o governo transformou em barão logo que chegou da America.
Escholastica ja nao pôde assistir ás vodas de sua filha, mas ficou toda ufana, quando no leito da morte lhe noticiaram o casamento.
Fiquemos por aqui para ouvir o médico, que principia a fallar.
-- Quando era estudante, conheci perfeitamente o visconde, que por signal era tido pelo mais façanhudo miguelista do seu tempo. Tinha então uma filha, unico fructo de seu primeiro matrimonio, que Lucena, um dos meus intimos de Coimbra, requestava contra a vontade do pae. A morgada, negando-se a casar com um primo, que Alvarenga lhe escolhêra, fugiu com Lucena, e la me appareceram na emigração ja casados ambos. O visconde, que então inda o não era, nunca pôde levar a bem aquella quebra do sangue azul na alliança de sua filha, e declarou que nem na hora da morte lhe perdoaria. Com o intuito de lhe estorvar a successão ao morgado casou segunda vez com uma sobrinha de um tal fr. Marcos, que era o seu braço direito. Dizem-me até que foi elle o que lhe metteu em cabeça tal casamento.
-- É curiosa a historia, disse a baroneza; mas até aqui não vemos cousa que faça morrer alguem de desgôsto.
-- Ja la vamos. O frade arrastou ao altar nupcial sua sobrinha, como o algoz arrasta a víctima ao sacrificio. Pouco tempo viveram em harmonia estes recem-casados, que, pela desproporção de edades, mais pareciam pae e filha, do que marido e mulher. Todos os filhos, que provinham de similhante união, apos um ou dois mezes de existencia, morriam de definhamento. Eis o primeiro desgôsto de Alvarenga. O visconde fez votos a todos os sanctos para que ao menos lhe deixasse um filho, que lhe succedesse no vínculo e no lustre de seu nome. O ceu pareceu escutar as súpplicas do desventurado pae.
-- Até o ceu não quer ficar mal com os ricos! atalhou Eduardo.
-- Ouça, sr. Amaral. Não faz ideia do contentamento que teve Alvarenga, quando lhe nasceu um novo filho e passou a edade fatal sem ter a sorte de seus irmãos. Passado porém algum tempo chegaram ás mãos do visconde provas irrefragaveis de que sua esposa o tinha atraiçoado...
-- Era natural! tornou Eduardo.
-- E de que o futuro representante da familia Alvarenga era filho...
-- De algum antigo apaixonado da viscondessa?
-- Não, senhor. Havia dúvidas se era do sacristão, se do boticario da terra. Qualquer d'elles porém valia ainda muito menos que o morgado. Foi então que o visconde veio para Lisboa, para ahi esconder a deshonra de seu nome. Não era so o procedimento de sua mulher que o maguava, era a lembrança de que tinha ido despojar sua filha em favor de um extranho. Ninguem faz uma ideia exacta do que elle padecia. Ha um mez foi-me consultar sôbre seus padecimentos, e eu conheci-lhe uma causa moral, que não estava no podêr da medicina remover. Foi ésta a minha resposta.
-- É na realidade interessante a sua historia, doutor, proseguiu Amaral. Excitou-me a curiosidade de lhe perguntar pelos restantes personagens, que figuram 'nella.
-- A viscondessa vive na sua casa, no fundo da provincia da Beira, chorando na soledade de sua triplice viuvez, porque o sacristão e o boticario foram procurar sua vida 'noutras terras. O frade veio a acabar miseravelmente numa povoação, que pastoreava. Uma noite, que se recolhia ao paçal da parochia, dispararam-lhe dois tiros, que lhe fracturaram o craneo. Foi víctima de uma emboscada, que algum dos seus parochianos tinham feito a um ladrão que os flagellava. Como o vigario era geralmente detestado, ninguem teve de se queixar do engano, e não houve testemunhas que depozessem contra os assassinos. Dizem que fr. Marcos aspirára ás supremas dignidades da egreja; mas a queda do absolutismo e o mau proceder de sua sobrinha fizeram com que perdesse o apoio da politica e do morgado.
-- Mas a este parece não ter feito muito mal a mudança do govêrno, acrescentou Amaral. Disse que era um exaltado miguelista, e foi o govêrno constitucional que o nomeou visconde.
-- Serviços eleitoraes! Alvarenga tinha influencia na terra, e eis como tudo se explica.
-- Guardem os theologos o inferno e o paraiso para a outra vida, disse o conselheiro; na minha opinião existem 'nesta mesma. Os factos comprovam o que disse. Vemos ás vezes a fatalidade perseguir uma familia, e não sabemos que é a expiação do crime em que foi gerada! Assim como ha molestias hereditarias, ha desgraças que se transmittem de paes a filhos, que são successivamente os algozes e as víctimas uns dos outros. E quantas e quantas vezes aquelle de que invejamos a sorte, é mais miseravel do que nós, ao passo que os que julgâmos desgraçados são felizes quanto se póde ser no mundo? O que é certo é que nenhuma acção ma fica impune antes da morte do criminoso, nem a boa sem premio. O castigo ou a recompensa podem-se fazer esperar, mas sempre vêm. Não confiemos nas apparencias para avaliarmos a dita ou a desventura de qualquer homem.
-- Não o julgava fatalista, conselheiro!
-- Não sou fatalista, sr.ª baroneza; é outra cousa; creio na PROVIDENCIA.
Appendix A
Veja -- Memoria do que aconteceu na cadeia do Limoeiro de Lisboa com os nove estudantes de Coimbra, que no dia vinte de junho de 1828 padeceram o supplício, em que um d'elles, Manuel Innocencio Araujo Mansilha, foi baptisado, composta por fr. Claudio da Conceição, etc. Coimbra, 1828.
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