O Barão de Lavos
Abel Botelho
CAPÍTULO I
Naquela noite de Março, desabrida e húmida, uma grande animação fervilhava alacremente ao fundo da Rua do Salitre. Era em 1867. Frente a frente, as Variedades e o Circo Price alinhavam os seus bicos de gás festeiros, a que as vergastadas do noroeste impunham um tremelilhar inquieto. Quinta-feira -- noite de cabriolas com sobrescrito à fina sociedade. Enchente certa no Circo. De cada lado do portal da entrada, um semicírculo compacto de gente se agitava, tendo por centro cada um seu postigo de bilheteiro, e ambos por igual colados, premidos sofregamente contra a parede verdoenga do barracão, e arredondando pela rua fora, numa irregularidade gritada e confusa, a toda a largura do macadame. Tudo queria bilhete. Havia chapéus tombados, ombros que penetravam à cunha, braços arpoando vigorosamente os alizares castanhos dos postigos, mãos retirando triunfantes, muito erguidas, com um papelinho azul ao vento.
A cada minuto a agitação crescia. Pregoavam água fresca, pastelinhos, tâmaras. de um primeiro andar, com tabuinhas verdes, logo abaixo do Circo, meninas de batas brancas suplicavam: -- Psiu! Não sobes, ó catitinha? -- aos janotas que passavam. Rodopiava no ar, a cada estocada de vento, um cheiro pelintra a iscas e a refogado. A iluminação profusa dos dois teatros doirava, remoçava, erguia as caliças octogenárias das Variedades, acendia espelhamentos fulvos no basalto húmido da calçada, e fazia entrever na penumbra, pela rua acima, o renque tortuoso dos prédios que subiam. De vez em quando, uma carruagem passava; e no seu rápido passar entre os dois teatros, uma dupla fita de fogo lhe corria na fluidez do polimento.
Um homem vagueava ali, contudo, que não parecia dar-se grande pressa em entrar. Ia e vinha, parava, escoldrinhava a multidão, passava automaticamente de grupo a grupo, nesta ansiedade tortuosa de quem procura com aferro alguém. No olhar, dilatado e teimoso, de uma secura inflamada e vítrea, fulgurava ardente a obstinação de um desejo; ao passo que na boca a brasa do charuto, num labirinto febril de pequeninos movimentos bruscos, denotava que os lábios e as maxilas eram sacudidos nervosamente por uma forte preocupação animal.
Devia de ser rapaz quem ele procurava; porque os olhos deste homem alto e seco poisavam de preferência nas faces imberbes, levemente penujosas, dos adolescentes. Fitava-os um instante, com uma fixidez gulosa e sombria, e desandava logo para outro lado. Percebia-se mesmo, ao cabo de alguns minutos de observação, que ele não procurava determinadamente alguém. Ao contrário, parecia comparar, confrontar, escolher. Se havia garotos por junto dos quais passava rápido, após um olhar furtivo, havia também outros a cuja descoberta lhe arrepanhava as faces a mais pungente sensualidade. E então, com estes, não havia meio que não empregasse para lhes ferir a atenção.
Roçava-os de leve com o braço; tocava-lhes a coxa com a bengala, como distraído; postava-se-lhes ao lado, fitando-os com o olhar seco e vítreo, persistente; soprava-lhes na nuca uma baforada de fumo, ao passar. Todo este jogo, -- é de saber --, feito sempre sonsamente, com cautelas de hipócrita, com astúcias felinas, todo sabiamente intervalado com olhares perscrutadores em torno... não fosse por aí aparecer e surpreendê-lo alguém conhecido.
E, de cada vez que o jovem interpelado se afastava, aborrecido ou indiferente, o noctívago caçador de efebos lá seguia em cata de outro, cortando os grupos, atravessando a rua, numa incoerência de vertigem, não se sabia bem se tiranizado por um vício secreto, se esmagado por uma feroz melancolia.
Um bom velho de ar marcial, vermelhinho e gordo, bigode e pera negros, bateu-lhe no ombro:
-- Bravo, barão!... Rente às quintas-feiras... É como eu.
-- Ó coronel! -- balbuciou o barão, levemente perturbado, cumprimentando, -- isso é que é zelo... pelo culto das belas.
-- Ai! Ai!... Com elas é que eu me quero. Já agora hei de morrer assim... A esposa, boa?
-- Boa, obrigado... Não quis vir.
-- Já tem bilhete? São horas.
-- Eu não entro por ora. Logo nos vemos, lá dentro.
Um impulso da onda que entrava separou-os.
O barão deu de frente então com um rapazito que vendia pastéis. Teria quinze anos. Pele morena, olho aveludado, tipo insinuante de marnoto, camisola de xadrez azul e preto, calça branca muito justa, à frente uma grande cesta vestida de oleado, em cujo interior destacavam de uma alvura de toalha várias gulodices. Como viu o barão encará-lo com insistência, o rapaz naturalmente aproximou-se:
-- Quer pastelinhos, freguês?
E oferecia-lhe o cesto, donde vinha um cheiro morno a canela e a manteiga.
O barão porém respondeu-lhe: -- Não, filho... não quero pastéis! -- com um acento, uma expressão tão nuamente lúbrica, que o rapaz retrucou, num tom de desprezo sacudido, dando-lhe as costas:
-- Olha que gajo!... Você comigo engana-se!
O barão circunvagou rápido em torno com a vista, a ver se alguém teria ouvido, e rodou viscoso, manso, para longe, infiltrando-se, anulando-se na massa anónima daquela multidão turbulenta.
Aproximara-se do teatro das Variedades, onde retinia o sinal de começar o espetáculo. Tinha entrado quase tudo; os retardatários premiam-se ao fundo do corredor estreito que dava para a superior. À porta, dois contratadores apenas, um polícia, e, sentada no último degrau sobre a rua, uma velhota, de tabuleiro à frente, coalhado de quanto há de mais pelintramente indigesto em matéria de doçaria, com uma vela protegida por um cartucho de papel cor-de- rosa.
Dali o barão, um pouco à vontade, mais fora do alcance de encontros inoportunos, continuava a perscrutar com um exclusivismo ardente as imediações do Circo fronteiro. Ao descortinar na sombra dos extremos da rua qualquer escorço vago de adolescente que viesse a crescer, aproximando-se, o seu olhar piscante de míope contraía-se numa crispação suprema de expetativa angustiada, e seguia-lhe vorazmente os movimentos, até poder analisá-lo, adivinhá-lo bem na conformação, no tipo, na plástica, no modo de vida provável, nas predileções sensuais do temperamento, quando o rapaz entrava na zona duramente iluminada pelo renque de bicos de gás tremebrilhando sobre o portal do Circo.
No melhor de um destes alheamentos fervidos de pederasta, o barão estremeceu. Mão amiga lhe pesara no ombro, enquanto uma voz familiar lhe perguntava em ar de adorável reprimenda:
-- Que faz você por aqui a esta hora?
Era o seu leal e velho amigo, Henrique Paradela, que, com a mulher pelo braço, descia tranquilamente à Baixa.
O barão ia-se traindo. A súbita aparição daquele par bondoso, honesto, simples, caindo de repente, com toda a galharda e lúcida expansão de uma vida exemplarmente calma no torvelinhante mistério da alucinação do seu vício, envergonhou-o, aclarou-lhe a razão, deu-lhe a medida do próprio aviltamento, e, como um raio de luz faiscando nas estalactites de uma caverna, acordou-lhe na consciência um repelão de remorso. Corou, atabalhoou, agitou-se, e após uns segundos de arreliante embaraço, mal conseguiu balbuciar:
-- Estou à espera de uns rapazes... Combinámos vir ao Circo hoje... Mas demoram-se.
-- Não sei como ainda há quem ature esta maçada, -- comentou Henrique, apontando com a bengala o portal do Circo.
E o barão, um nadinha humilhado:
-- À falta de outra coisa... -- E depois, para a esposa de Henrique: -- Como está vosselência, minha senhora?
-- Eu bem. E a Elvira?
Quase ao mesmo tempo, Henrique perguntava:
-- Há cá hoje algum trabalho novo?
-- Não, -- disse o barão; -- isto foi por não termos para onde ir.
-- E então vens esperar os teus amigos para este lado?
-- Sim, bem vês; aqui, longe do apertão, vejo melhor quando eles chegam.
-- Pois nós vamos à Baixa. A Leonor anda há dias para fazer umas compras... Aproveitamos hoje, que me apanhou mais desembaraçado.
-- Imagine, barão, -- acudiu, num abandono íntimo, D. Leonor, -- os pequenos estão sem ter que calçar; eu também preciso umas miudezas; e depois de amanhã casa-se aquela minha criada, a Joaquina, que me pediu para ser madrinha do casamento, e eu tenho de lhe dar alguma coisa.
-- Muito louvável, minha senhora, muito louvável... -- apoiou o barão, já outra vez empolgado pelas degenerescências do sangue, e fixando com avidez um efebo que vira despontar das bandas do Passeio.
O amigo convidou, todo afável:
-- Vem daí connosco!
-- Ó menino, não posso, bem vês. Combinámos... Desculpem-me... E daí, talvez tenham chuva. A noite não está boa.
-- Toma-se um trem. Isto de hoje não pode passar.
-- Adeus, -- rematou D. Leonor, estendendo a mão ao barão. -- Muitas recomendações à Elvira. E depois de amanhã não faltem!
-- Por modo nenhum! -- corroborou Henrique, apertando também a mão ao amigo. -- Adeus... Olha que o espetáculo já começou.
Efetivamente, nas imediações do Circo rareava o público e o pejamento da rua desaparecera. Na frontaria farrapenta e mesquinha daquele barracão verdenegro, os dois óculos de venda dos bilhetes, agora a descoberto, fulguravam como olhos de ciclopes, quentes e vermelhos. O noroeste frígido recalcava as lufadas de ar quente, no portal escancarado. Vinham perder-se dilatadamente na aspereza húmida da noite as últimas sonoridades metálicas de um galope cediço. Um estalo de chicote vibrava branco, de vez em quando.
O barão, atraído pela sensualidade do espetáculo, foi comprar bilhete.
Enquanto o bilheteiro lhe fazia o troco, o bom do velho Price, sentado ao fundo do cubículo, gordachudo e flácido na grande luz do recinto, os dedos entrecruzados beatificamente sob o ventre, dormitava.
Lá dentro a função, a despeito do cartaz berrante, seguia com a monotonia do costume. Depois de uma voltigeuse banal furando arcos de papel de seda, um intermédio cómico pelo primeiro clown, prodígios de equilíbrio de uma criança sobre um arame, cães sábios, barras fixas, um salafrário num cavalo em pelo. O barão, por um fenómeno aliás frequente na dinâmica dos sentidos, arrefeceu, acalmou; e numa intercadência de bom senso, filha de uma reação salutar do organismo, sentiu que se aborrecia muito sofrivelmente. Pôs-se então a olhar pela centésima vez os escudetes das colunas que sustentavam a cúpula central, e a contar as tiras de paninho, alternadamente azuis e brancas, irradiantes do fecho do teto, em cuja curvatura, sete anos antes, quando fora da inauguração, tão engomada e tão lisa, um ou outro rasgão indiscreto começava a pôr escarninhamente a certidão de idade.
O último trabalho porém da primeira parte reacendeu os instintos pederastas do barão. -- Família de acrobatas. Cinco: um hércules monolítico e façanhudo, um rapazola magro, de ossatura agressiva; uma mulheraça toda expluente de adipos; uma criancita franzina, sem sexo, amedrontada, frouxa; e um efebo extraordinariamente elegante. -- Fatos cerces de malha cor de carne, modelando escrupulosamente as formas, dando uma impressão do nu quase flagrante, realçada nos mais leves detalhes anatómicos por bem calculados efeitos de luz Drummond.
Faziam trabalhos académicos; reproduziam as composições célebres da estatuária clássica. A rápida sucessão dos grupos, arquitetados a meio da arena, sobre um velho tapete, na crua incidência da luz do magnésio, tinha uma viva arrogância de animalidade, sugeria as demências quentes do sensualismo pagão. A um tempo viril e doce, impetuosa e lânguida, efeminada e rude, aquela mobilidade atormentada, vertiginosa, artística, ensopava os nervos numa alta voluptuosidade, seduzia como uma hetera e dominava como um herói. O barão, todo nos olhos, seguia avidamente a pantomima. Hipnotizava- o principalmente o belo efebo, com o seu rosto de um talhe impecável, o seu colo alvo e redondo, os seus grandes olhos de veludo negro, o seu corpo sólido mas enxuto, de carnes escorrentes, todo em curvas levissimamente cheias, todo num contorno de músculos suavíssimo, numa linha plástica sedutora, todo quebrando-se em não sei quê de feminilmente ondulado e grácil, que a ginástica afinara e consolidara, irrepreensivelmente.
O barão sorvia-lhe, um a um, os movimentos, e em cada atitude, em cada pirueta nova lhe descobria um estímulo, uma sedução mais. O desejo mordia- lhe os nervos. A fascinação tornou-se completa, doida, quase dolorosa.
Sócrates não ficou mais inteiramente subjugado, ao seu primeiro encontro com Alcibiades.
No intervalo, o barão saiu excitadíssimo. Latejavam-lhe as fontes; via vermelho; na imaginação dançava-lhe a figura do jovem acrobata com uma insistência de alucinação, com uma nitidez material e implacável.
Cá fora recomeçara o alarido. Chovia. Abriam-se guarda-chuvas, e ouviam- se, disparadas contra o céu carrancudo, pragas de arrelia. Numa mercearia ao lado, a gente da geral comia pão com queijo e decilitrava. Os garotos insinuavam-se pelos grupos, gritando: -- Senhas mais baratas... Quem vende a senha? -- O barão tomou para o meio da rua, instintivamente. Sentia-se mal; tirou o chapéu; queria que lhe fustigasse o cérebro o ar fresco da noite. Nisto, chega-se-lhe um garoto:
-- Vai-se embora, freguês? Quer vender a senha?
O barão olhou-o, distraído, mas ficou logo fascinado, com o olhar preso ao do rapaz. Se ele era a viva estampa do efebo que acabava de ver trabalhar! -- Os mesmos olhos, a mesma estatura, o mesmo colo, a mesma elasticidade grácil, o mesmo ritmo adorável de movimentos. -- Disse-lhe, repondo o chapéu, com os lábios a silvarem desejo:
-- Dou-te a senha e dou-te dez tostões; mas hás de vir comigo.
-- Aonde!?...
-- Aqui ao largo do Passeio... Quero-te dizer uma coisa.
-- Como passaste?... comentou agre o garoto. E afastou-se a correr: -- Quem vende a senha, quem vende?
O barão não tugiu; porém, daí a minutos, estava novamente de volta com o rapaz:
-- Então, queres ou não queres?... A senha e dez tostões.
E o rapaz, enfadado:
-- O senhor deixe-me... já lhe disse.
O barão não insistiu; mas teve ocasião de reparar que, no franzir colérico dos olhos do garoto, uma nuvem se lhe esbatera sobre as faces, longamente.
Era a sombra dos grandes cílios, fartos e sedosos. Tanto bastou para que, passados pouco minutos, ele estivesse de novo ao lado do rapaz:
-- Olha lá, pela última vez!... Dou-te quinze tostões!... Chega aqui ao Passeio. Se não vens, arrependes-te... Quinze tostões!
O rapaz encarou-o muito, entre compassivo e espantado; pareceu refletir; e por fim resmoneou:
-- Então, ande lá adiante.
Daí a pouco, o barão, encostado ao muro do Passeio, na quina oriental, frente à Rua das Pretas, tratava com o rapaz das senhas um diálogo animado e estranho. Propunha-lhe o que quer que fosse, -- coisa pouco do agrado do jovem; porque, à torrente de palavras do interlocutor, ele apenas opunha de onde a onde um meneio negativo de cabeça, ou mastigava baixo: -- Está doido!... Eu não, senhor! -- Chovia ainda. Quando a água apertava, logo o barão, muito solícito: -- Chega-te para aqui. -- E ficavam os dois resguardados pelo mesmo guarda- chuva. E a arenga continuava, suplicativa, doce, muito persuadente, armada toda numa retórica inflamada, corrosiva, ignóbil. Tratava-se por certo de algum projeto infame de sedução. A certas frases, que o barão lhe coava mais baixo no ouvido, o rapaz tinha com o braço um gesto de repugnância, o rosto vincava-se-lhe de desgosto, e afastava-se.
Mas a eloquência do barão era inesgotável; acendia-lhe efeitos, argumentos novos, a veemência do desejo. Um Demóstenes do vício. Gradualmente, a inconsciência tímida do gaiato foi sofrendo o império da vontade dura e firme do aliciador. O rapaz agora escutava manso, com uma atenção resignada, passivamente; enquanto o sedutor falava, falava sempre, com os olhos afogados em volúpia, os pés irrequietos e o longo bigode cofiado tremulamente pelos dedos emaciados.
A arenga prolongou-se por mais de uma hora, interminavelmente. Já terminara a função no Circo. Rodavam os primeiros trens, e a multidão vinha escoando do Salitre para o largo, apressada, muda, apagada na monotonia dos abafos. Crescia um grande ruído de pés espatinando a lama. Raro, algum grupo de rapazes, lestos, corpinho bem feito, fumando, soltava na quietação pardacenta da névoa o trilo de uma risada.
Então o barão, dando uma pequenina moeda de ouro ao rapaz, intimou: -- Não faltes! -- apertando-lhe com força o pulso. E separaram-se: o pederasta leve, orgulhoso, radiante, com a esperança a luzir-lhe nas feições; o efebo cabisbaixo, vergando a um problema, pensativo, contando as pedras da calçada, grave, meditando.
CAPÍTULO II Quando entrou em casa, na saleta habitual dos serões, o barão proferiu, no tom frio e breve de quem se desobriga de um dever banal: -- Boa noite, Vivi; -- enquanto deixava cair maquinalmente um beijo nos crespos eriçados sobre a testa pequenina da baronesa, que lia com interesse Madame Bovary. Depois, logo a seguir, afundou-se pesadamente na macieza de um fauteuil.
-- Boa noite... Então que tal? -- retorquiu a baronesa, erguendo indolente os olhos do livro e sorrindo para o marido com uma indiferença amável.
-- Uma sensaboria... Não volto lá tão cedo. Bem fizeste tu em preferir àquela palhaçada tão vista o conchego da tua casinha e a companhia leal dos teus livros.
-- Ah! e então que livro, este!.... -- exclamou a baronesa num profundo acento admirativo, retomando com delícia a leitura interrompida.
-- Gostas?
-- Nunca li nada que me tocasse tanto! -- E enovelou-se toda na cabeceira da chaise-longue, uma das pernas dobrada, colhida graciosamente sob o tronco, num gesto friorento de avezita; as mãos sobre o regaço, preguiçosas, deixando os dedos jogar distraidamente com os anéis; as pupilas traçando num vaivém rápido o paralelismo das linhas que iam devorando no livro, poisado sobre uma mesinha baixa de charão.
-- Sabes tu quem eu vi?... -- disse o barão, querendo armar conversa. -- Os Paradelas.
Porém a baronesa, cortando logo:
-- Sim, sim, mas deixa-me ler.
O gás estava apagado. Apenas iluminava a saleta um alto candeeiro de bomba, de bronze esmaltado, estilo bizantino, com o globo fosco vestido por um para-luz tenuíssimo de papel-japão. Estava sobre a mesinha, junto ao livro, vertendo em torno um cone muito restrito de luz. O maior do aposento, -- águarelas, chinesices, faianças ornando as paredes; fotografias, revistas ilustradas, álbuns, quinquilharias galantes abarbando os consolos, as estantes polidas a negro, o contador embrechado; móveis esparsos numa desordem estudada, o piano, flores, porcelanas caras, -- mergulhava tudo discretamente na penumbra, tinha os contornos adormecidos num claro-escuro de pacificação e castidade. Só àquele cantinho morno e preferido, entre o biombo e a parede, na incidência próxima do candeeiro, realçavam, numa claridade repousada e honesta de interior de Gerard Dou ou de Van Eyck, um trecho da alcatifa, curvo e afilado como um crescente, o espelhamento opalino de um velho prato suspenso da parede, um ou outro avoejo exótico de laca e oiro no verniz da mesinha acharoada, e a viva mancha adorável da cabecita pequena e redonda da baronesa.
Era um desses tipos de mulher delicados, miudinhos, frágeis, picantes à força de subtilização e de nervos, que apetece à gente ao mesmo tempo contrariar e amar servilmente, acariciar e destruir. Uma figurinha de Saxe, luminosa e frívola. Os olhos, grandes, entre o cinzento e o verde, um tudo- nada metálicos, tinham uma translucidez enxuta, saudável, forte, que raro, num trémulo conchegar de pálpebras, humedecia um espasmo breve de volúpia; o nariz, impercetível, fino, erguia-se na base em arrebite, num leve jeito provocante, entre malicioso e altivo; na testa, desanuviada, lisa, pequenina, não havia notícia da passagem de um pensamento grave, de um minuto reflexivo, de uma justa noção do Dever; e pela curva da face, de uma alvura crassa de leite, subia de cada lado, do mento às fontes, a sinuosidade azul de uma veia tenuíssima.
Um conjunto fascinante de juventude e graça, de petulância e mimo.
O barão, fatigado, arreliado, quente, o coração palpitando forte, e o cérebro e as mãos a arder, saboreava um alívio e uma doçura imensa na tranquilidade muda do recinto. Mal apaziguado ainda das tumultuárias emoções da noite, o remanso dormente da sua casinha embalava-lhe a carne estimulada numa acalmação voluptuosa e emoliente de banho a 33 graus. Mas não era bastante; se os sentidos se lhe normalizavam, a alma continuava estrebuchando numa exaltação dolorida. O silêncio exasperava-o. Queria um derivativo psíquico, uma mutuação qualquer de ideias, o bálsamo de um comércio espiritual, sincero, íntimo, todo afabilidade e abandono.
Por isso aventurou para a baronesa, numa súplica impertinente:
-- Então, não me dizes nada?... Deixa agora o livro.
Ao que ela, contrariada, sem desfitar da leitura:
-- Ora, muito obrigada. Não andaste por lá sem mim, entretido até agora?... Pois deixa-me ler.
E a boca vincava-se-lhe aos cantos, muito acre, e as veiazitas da face coravam-se-lhe de roxo, ligeiramente engrossadas.
Portanto, o silêncio pesou novamente, esmagador, absoluto, na quietação implacável da saleta. Ao seu cantinho predileto, enovelada sobre a chaise- longue, a baronesa não despegava de ler. Guardava-a do ar da porta próxima que, do lado da cabeceira, dava para o quarto de toilette, um alto biombo de preço, com os seus cinco panos, de cetim preto, sobriamente bordados de aves pernaltas, gramíneas capilares e florinhas ténues, em matizes de um realce maravilhoso, em desenhos da mais solta e delicada fantasia. Do lado da cauda, a chaise-longue entestava com uma parede toda lisa, no sentido do comprimento da casa, tendo um grande espelho doirado ao centro; distribuídos em volta, na mais harmoniosa das desordens, quadros, suspensões, bugigangas, velhas porcelanas; encostadas, duas estantes com livros; e, em ângulo contra o extremo oposto, um piano de cauda sobre um estrado. Era uma parede interior.
Seguia-se-lhe outra mais pequena, adornada também de quadros e com uma porta fronteira à do quarto de toilette, dando para o gabinete de trabalho do barão. Esta porta era flanqueada por duas grandes colunas torcidas de pau- preto, farfalhudas de parras, de cachos, de anjos em regueifas, com dois vasos de Perusia ao alto, desgastados, sem brilho, granulosos, de um estilo puríssimo e de uma lendária antiguidade; e às duas porções laterais da parede dois magníficos consolos encostavam, abarbados de coisinhas preciosas, -- pagodes de marfim filigranado, retratos queridos em molduras de pelúcia, miniaturas de esmalte, bronzes, conchas, lacas, cinzeiros de malachite.
Depois, paralela à parede lisa interior, havia a exterior correspondente, com duas amplas sacadas dando sobre o jardim. No intervalo destas, ressaltava um contador índia embrechado, de pernas oblíquas, lineares, singelíssimas, todo atropelado na severa amarelidão da sua teca por correrias de monstrosinhos de ébano, rasteiros, ventrudos, rabiosos, a cauda em ponta de dardo, a língua a sair num jato da goela a escâncaras, o olho de marfim, branco e redondo. Para cima, vestia a parede um espelho esguio, de moldura de ébano, biselado.
Aos dois cantos, para lá das sacadas, a folhagem glabra e tenra de dois philodendrons naturais espadanava em leques luxuriantes de grossos vasos de faiança do Rato, postos sobre velhos tamboretes persas, de cedro e madrepérola. Nos reposteiros, feitos de bourrette espessa cor de madeira e oiro, sinuosava também um desenho persa complicado. Sobre os vãos das sacadas, a temperar a luz externa, desciam muito sobrepostas, orlando a bourrette interior, cortinas finíssimas de tule creme com aplicações a branco.
Junto da porta do toilette, um pouco à frente, um cavalete vieux chéne sustinha, meio afofada nas pregas de uma colcha secular da Índia, uma tela, assinada Lupi, com um retrato em busto da baronesa. E por baixo do grande espelho doirado espreguiçava-se um largo sofá de pelúcia de linho azul- escuro, esquadrado em volta por uma tira de seda cor de oiro velho, e tendo a um lado, erguida nas mãos sobre a espalda cilíndrica, uma figura minúscula de mandarim, escarolada e risonha, posta graciosamente a espreitar.
Meia dúzia de móveis mais, arrastando ao acaso na alcatifa, cujo tom sanguíneo dava um destaque vivo de petulância à cor tranquila do recinto. No papel cinzento-adamascado das paredes alisavam-se lampejos de aço, esbatidamente. Do teto branco de estuque um lustre pendia, de bronze.
Saboreava-se a quintessência do conforto e do agasalho naquele ninho mimado de elegância. E todavia o barão estava mal, sentia frio. Era tão flagrante, tão profunda a discordância entre a brutalidade animal dos seus instintos e a doce quietação, o familiar abandono, a feminina graça de tudo quanto o rodeava, que, agora, dissipada a primeira grata impressão da entrada, aquela pacificação hostilizava-o, arreliava-o, dava-lhe toda branca, em cheio, nas turbulências sinistras da sua alma doente, e fazia-o sofrer.
Ergueu-se de repente e começou a passear. Então a baronesa, breve: -- Tens aí os jornais para ler.
O barão, maquinalmente, veio sentar-se de novo, junto da luz, no mesmo fauteuil, e procurou ler a Gazeta de Portugal, em que colaborava.
E assim, na mudez discreta da noite, na voluptuosa penumbra da saleta, aqueles dois esposos, na aparência tão próximos, ambos novos, ambos amantados na carícia do mesmo ambiente perfumado e morno, obstinavam-se longe, muito longe um do outro; ele galopando o destrambelhamento do seu vício; ela deliciando a imaginação e envenenando os sentidos na tragédia dissolvente de Madame Bovary.
Era lógico. Derivava naturalmente da índole, da educação, das condições de ligação dos dois esta situação mortificante.
O barão garfava por enxertia duplamente bastarda em duas das mais antigas e ilustres famílias de Portugal. Assinava -- D. Sebastião Pires de Castro e Noronha. O dom trazia-lhe origem dos Castros, carugento apelido castelhano, evo de oito séculos, que passara ao nosso país, ainda mero feudo leonense, por ocasião do casamento de D. Fernando, filho do rei de Portugal e Galiza, D. Garcia, com D. Maria Álvares, senhora da vila de Castro Xeris, e descendente de Laim Calvo, o afamado jurisconsulto. É de saber que este glorioso talo genealógico dos Castros, refolhou, em Espanha, nos condes de Lemos; e, entre nós, nos condes de Basto, de Mesquitela, de Monsanto e de Resende (primeiros almirantes-mores do reino), e nos senhores do Cadaval.
Deu ainda tão preclara cepa da nossa horta heráldica esse lendário grelo da isenção e da honra, que foi o grande D. João de Castro. Mas a casa de Monsanto não era vergôntea legítima: apurou-se isto da larga contenda batida por D. Álvaro Pires de Castro, senhor das Alcáçovas, contra seu tio, também D. Álvaro Pires de Castro, senhor de Arraiolos. Contestava aquele a este o uso das armas direitas dos Castros, por ser uma degenerescência bastarda no bracejamento fidalgo da família. E o caso é que, desde então, tanto os condes de Arraiolos, como os Castros de Fornelos e os de Melgaço, ambos seus descendentes, deixaram de usar o escudo primeiro da casa, -- treze arruelas de azul em campo de oiro, -- passando a ter por divisa apenas seis arruelas, e em campo de prata.
Escarolavam nesse tempo do segredo tépido das alcovas para a bisbilhotice oficial dos símbolos brasonados as diferenciações no estalão moral das grandes famílias solarengas. Era o que podia haver de mais meticulosamente fútil e de mais superfluamente ingénuo. Mas era claro, ao menos. Sabia a gente com quem tratava. Não se tinha inventado ainda a carta de conselho para galardoar alcoviteiros e nobilitar ladrões.
Em tempos de D. João III, 1541, preparava-se em Lisboa, com destino à Índia, uma esquadrilha de cinco navios que devia comandar Martim Afonso de Sousa, o herói de quem a tradição refere que recebera de Gonçalo de Córdova a espada, de que nunca mais abriu mão. Fora ele nomeado sucessor de Estevão da Gama no governo dos nossos domínios asiáticos, e preparava- se-lhe um luzidíssimo cortejo de homens de algo. Queria-se honrar dignamente o benemérito guerreiro, cujo nome já então doiravam sobramente altos feitos cometidos no Brasil, no mar das Índias, na ilha de Repelim, em Ceilão, na costa do Malabar. Um dos Castros de Monsanto, então na corte, homem de terras e de dinheiro, foi insinuado ao rei como devendo embarcar.
O sombrio e fanático monarca não o via de feição. Surpreendera-o uma vez, à missa, rindo. Pouco depois, como tivessem chegado a Portugal os quatro primeiros padres da Companhia de Jesus, o desastrado Castro permitiu-se pôr em dúvida, na frente do rei e da nobreza, a austeridade e a pureza de intenções dos padres jesuítas. O soberano agastou-se. Para mais, três desses jesuítas, -- e um deles era S. Francisco Xavier, -- embarcavam já com rota ao Oriente na esquadrilha de Martim Afonso, para missionar. -- Que fosse o Castro! Era quase certo que ao cabo dessa longa viagem na salutar companhia de tão santos varões, ele estaria convertido. -- E o rei achou bom, indeclinável que o zombeteiro áulico saísse de Lisboa; não inquinasse ele de heresia a católica subserviência da corte da sua majestade fidelíssima. Grande obra de piedade -- fazê-lo embarcar. -- Que fosse!
Mas o pobre fidalgo era mole, doente, linfático, poltrão. Tinha um pavor invencível ao mar. Andava, ainda por cima, perdidamente enamorado por D.
Branca de Noronha, servilheta, e, -- dizia-se, -- filha bastarda da casa dos Noronhas, -- outra nobre família antiquíssima, prendendo nos reinos de Leão e de Castela, muito fundo, as raízes da sua estirpe. Correspondia-lhe por igual a formosa menina, -- temperamento manso, resignado, sonhador, todo feito de passividade e modéstia, reclamando a calentura constante de uma forte proteção, afetuosa e discreta, que a envolvesse numa calmaria tépida de estufa, para viver. Uma noite, ausentes os Noronhas em sarau do Paço, propôs-lhe o amante fugir. Aceitou. E, dias depois, a cara de ordinário torva de D. João III caliginava-se, furibunda, ao saber que o cortesão em desfavor, desprezando o mandado de embarque, se fora alcandorar, com uma nobre virgem raptada, na penhascosa e abrupta solidão do seu castelo de Monsanto.
Pensou em fazê-lo render-se, mandando-o cercar. Difícil. Tinha o Castro leais, valentes e numerosos servidores. Monsanto, -- espessa coroa mural de um alto mamelão lascado a pino, -- era de natureza inexpugnável. E depois, o rei na ocasião preocupava-se demasiado com a Reforma, contra a qual prorrompera, de colaboração com Carlos V, numa guerra implacável, e com a deflagração sinistra dos autos-de-fé. Depressa esqueceu o rebelde, em cujos braços morria, após dois breves anos de um fervoroso idílio, a sua dedicada e doce amante.
Desta romanesca mancebia porejou um filho, que vinha a ser o sexto avô do nosso barão de Lavos.
O atavismo fez explodir neste com rábida energia todos os vícios constitucionais que bacilavam no sangue da sua raça, exagerados numa confluência de seis gerações, de envolta com instintos doidos de pederasta, inoculados e progressivamente agravados na sociedade portuguesa pelo modalismo etnológico da sua formação. A inversão sexual do amor, o culto dos efebos, a preferência dada sobre a mulher aos belos adolescentes, veio- nos com a colonização grega e romana. Nos Gregos a pederastia era uma paixão comum e de nenhuma forma desprezível. Cantavam-na e celebravam- na publicamente. A obscena invenção de Ganimedes, príncipe troiano de uma beleza maravilhosa, arrebatado e transportado ao Olimpo pela águia de Júpiter para substituir Hebe, a hetera divina, no serviço particular dos deuses, dá o documento frisante de quanto era honrado o efebismo na antiga Grécia. Este vício era mesmo trivial em todo o Oriente. Na mitologia indiana há um episódio análogo ao rapto daquele favorito de Júpiter. Refere o Vaschkala, um dos upanischads do Rig Veda, que Indra em pessoa empolgou, com um gesto fulminante de ave de presa, o jovem Medhatithi, transportando-o depois às mais afastadas e mais sagradas culminâncias através dos mundos e dos céus.
Os Romanos imitaram, e excederam por conseguinte, os povos mais velhos do Oriente no gosto da pederastia. Ao tempo de Augusto, o amor de homem para homem era a mais banal das paixões. Muitas vezes, na risonha península da Etrúria e do Lácio, o véu da amizade encobria infamíssimas torpezas; pensava-se que a reciprocidade no gozo sensual era o melhor laço para o coração de dois amigos (+). Julgava-se a amizade dependente de um apetite lascivo, conjugada com a ligação carnal. Os grandes modelos de dedicação fraterna que nos oferece a História, -- Castor e Pólux, Pirítoo e Teseu, Pilades e Orestes, Alexandre e Efestion, Harmódio e Aristogíton, os dois filhos de Adiátorix, os nossos dois Ximenes, Antínoo e Adriano, Pátroclo e Aquiles, -- não passam os mais deles de espécimes aberrativos de mútuas complacências libidinosas.
De Roma é claro que a paixão dentro do mesmo sexo alastrou para as colónias. A contaminação era fatal. Sofreu-lhe os efeitos a Península Hispânica, mormente no sul e no oeste, aonde mais demorada e mais poderosa foi a influência etológica dos Romanos. Depois vieram os Bárbaros do Norte inocular sangue novo no derrancamento crapuloso do império. A transfusão foi crudelíssima. Operaram, destruindo. Mas por trás da arrogância bestial da sua arremetida vinha apontando a generosa unção de um mundo novo. Aquela treva aparente mascarava uma alvorada. Eles traziam da penumbra druídica das suas florestas os elementos sociais que faltavam ao Ocidente gasto e decrépito: a liberdade pessoal, a sinceridade da crença, a disciplina, o valor, a ordem, a consagração da virtude, o respeito da família, o amor pela mulher. A regeneração foi prodigiosa. Dos escombros da assolação ergueu-se, -- pura, sadia, idealista, ingénua, -- a sociedade medieval.
Contudo, nesta reparação salutar dos povos latinos o gérmen mórbido resistira, latente. Mais tarde, a civilização árabe pô-lo a claro; depois, o abuso do monaquismo e das expedições náuticas longínquas favoreceram-lhe o desenvolvimento, agora piorado do apeganho ruim da cronicidade.
Compreende-se como centenas de homens válidos, desviados da labuta habitual da vida e mantidos em contacto reciproco permanente; com a imaginação e a carne falando alto, excitadamente, na eterna ociosidade da clausura ou na estreita e forçada permanência a bordo; sistematicamente afastados do comércio de qualquer ordem com a mulher, tinham de por força procurar iludir artificialmente, em ascoentas aproximações de uns com os outros, as iniludíveis exigências dos seus instintos sexuais. Daí a desvirtuação dos sexos; a obliteração das funções genésicas; o amor saciado grotescamente, incompletamente; a luxúria olhada como um fim, como uma regalia sensorial da carne, em vez de ser cultivada na compenetração do seu trabalho sagrado, como um simples meio de provocar a gestação.
Na última integração da sua fisionomia social os conventos não foram mais do que isto, -- uma criminosa burla ao dinamismo prolífico da natureza, uma cravagem de centeio mística, um veto espiritual à maternidade. Eram casas toleradas de prostituição, defendidas pelo lema hipócrita do voto. O mundo antigo era mais franco. Na Grécia os efeminados varriam galhardamente com as suas caudas de púrpura as lajes das praças públicas, sob a luz magnânima do Sol; no mundo latino os tonsurados, do primeiro cardeal ao derradeiro fâmulo, erguiam furtivamente o burel ou a seda na sombra cúmplice dos claustros, e entregavam-se baixando os olhos contritos perante as imagens de Deus.
Com a diuturnidade da causa, o mal prosperou, azedou, enraizou-se, alargou sobre a geração de hoje um império feroz e dissolvente.
No barão de Lavos confluíam poderosamente as qualidades todas do pederasta. Quando tinha dez anos, entrou para o colégio de Campolide. O seu pai, velho cortesão cheio de tédio e de dívidas, viúvo, refarto de alçapremar traições num sorriso, de farricocar o ódio em graciosas mesuras, de espremer a bolsa em proveito de parentes e caloteiros, resolvera sair de Lisboa, descansar, fugir aos prazeres, à intriga, ao mundo que conhecia de sobra. Foi- se para Lavos, onde possuía excelentes propriedades em salinas, campos e florestas, a refazer a fortuna e a endireitar a espinha. O filho, entregue à douta proteção dos jesuítas, no seu ponto de vista, ficava bem. Por ocasião das férias, acolhia-o com alvoroço, retinha-o com amor, dava-se a estudar-lhe interessadamente os progressos na educação. O rapaz era inteligente, amigo do estudo, -- mesmo talentoso, -- arriscavam-lhe confidencialmente, em breves períodos lardeados de reticências, os astutos precetores. -- E dava-lhes cuidado, -- acrescentavam receosos, -- regurgitava de seiva, precisava ser dominado de princípio, aliás corria o risco de se perder.
Mais de uma vez, por noite alta, os prefeitos tinham surpreendido o menino fora da cama, abancado à mesa, a face colada a uma luz asfixiante de petróleo, fumosa e lívida, todo numa febre de improviso, a cara camarinhada, o olhar ardente, a mão trotando no papel, a fazer versos profanos. -- Tinham-no castigado, -- estivesse descansado.
A verdade é que D. Sebastião saíra uma organização privilegiada de artista.
A uma retina infalível no apanhar o lado belo das coisas juntava uma larga capacidade imaginativa, uma acuidade dilacerante do sentimento plástico e um poder veemente de expressão. Com o penujar da adolescência veio-lhe o impulso de verter nos companheiros as demasias da sua alma generosa e ávida. Amou alguns dos colegiais que lhe orçavam pela idade. Foi excessivo.
Destas cenazinhas adoravelmente ridículas, que são triviais nos colégios, -- trocas de solilóquios inflamados, cartas, exorações, amuos, rancores, ciúmes, pugilatos, ensaios precipitados de cópula no palmo quadrado das latrinas, -- de tudo teve o futuro barão num grau exagerado e quente, a que a sua compleição débil e requintada vestia o máximo colorido. Quando o seu desejo se concentrava, inconfessado, tímido, ardente na pessoa de um colega a quem por qualquer circunstância ele não podia ou não resolvia declarar-se, então o desgraçado sofria insónias horrorosas, durante horas e horas intermináveis, de costas na cama, a narina aflante, a pálpebra leve, os olhos arregalados para o teto na escuridão cava da noite, os dentes rangendo rápido e o corpo todo vibrante no arrepio de uma crise nervosa fatal, obsessiva.
Quase sempre uma evacuação seminal, provocada por ele próprio, ou, as mais das vezes involuntária, e determinada sem prazer, por uma irritação quase dolorosa, punha termo, no quebramento cortado de sobressaltos da madrugada, a este estado cru de excitação. Depois, pelo dia adiante, era o mau humor, a mudez, as olheiras lustradas de roxo, um pouco de dispneia, o refúgio no isolamento, a repugnância ao estudo, o adormecer nas aulas.
Uma vez, um colegial, que ele amava imenso, disse-lhe por fim que sim, que estava pronto a corresponder-lhe, mas por forma que ninguém soubesse, e então -- que fosse de noite ter com ele à cela. Combinado. O Sebastião deitou-se e esperou, todo a tremer, sem poder conciliar o sono, que o seu relógio marcasse as duas da manhã. Então levantou-se, abriu a porta da cela, aventurou um olhar de lince a todo o comprimento do longo corredor deserto, e saiu, cosido à parede, sorrateiro, os pés tartameleando perros no tijolo... Quando, passada uma hora, regressava ao quarto, pilhou-o a lanterna do prefeito de ronda. Foi castigado rudemente. Nem por isso deixou de continuar.
Aos dezasseis anos, saía do colégio para a vida exterior com as propensões viciosas pioradas. Alto, esgalgado, seco, -- ardia-lhe na cintilação febril dos grandes olhos negros o furor perpétuo, mordente, insaciável do Desconhecido; e a cada um destes incêndios ferozes da pupila correspondia instintivamente um abrir das mãos descarnadas e um trémulo agitar dos dedos, nervoso, inflamado, adunco, uma como ânsia de apalpar a Vida.
Conformação feminina: -- cabeça pequena, ombros estreitos e descaídos, bacia ampla, rins muito elásticos, pés metendo para dentro. O rosto, de um alvo rosado lanugento e macio, tinha uma expressão menineira e ingénua, um ar tocante de fragilidade e doçura. Mas não inspirava simpatia; traía-lhe a inconsistência do carácter a linha apagada, miúda das feições. O olhar era de ordinário baixo; não cruzava com firmeza; e sempre que sentia um outro olhar a interrogá-lo fito, as pálpebras desciam logo, a garantir-lhe a inviolabilidade do abismo.
Quis estudar mais. Continuou em Lisboa, cursando a Politécnica. No intervalo das aulas, ia pelas bibliotecas ou amarfanhava-se em casa, lendo tudo quanto podia apanhar. À medida que se lhe desdobrava o espírito, definia-se, afirmava-se-lhe a característica, roboravam-se-lhe as predileções plásticas, a qualidade sensorial dominante. No modalismo da natureza interessava-o principalmente o sensível, o tangível, a face pagã, material das coisas. Por isso, a despeito do seu fundo etiológico de pederasta, cultivava com frequência as mulheres. Mesmo entre uma mulher bonita e um efebo atraente, não hesitava:
preferia geralmente a mulher. Procurava sempre e acima de tudo a linha, a forma, a beleza emocional aparente, quer fosse num seio virgem, quer num músculo bem fibrinado, quer num cristal perfeito, quer numa florinha delicada, num trecho vivo de paisagem, num encastelamento de nuvens fugidio.
Quando contou vinte anos, rogou ao pai que lhe permitisse fazer uma viagem ao estrangeiro. Concedido. E o rapaz partiu, trépido de entusiasmo.
De Madrid seguiu a Paris; depois visitou a Itália. Nesse afortunado passeio pelas civilizações irmãs da nossa, tudo quanto respeitava à Arte constituiu a melhor porção do seu estudo. O maior do tempo gastou-o no interior dos velhos monumentos, nos museus, nas coleções particulares, nos bazares exóticos, nas lojas de bric-à-brac. E aí, na religiosa paz desses salões consagrados, que horas de sublimado gozo, de contemplação inefável!
Estátuas e quadros que figurassem a nu belos corpos de adolescentes, estonteavam-no. Trouxe-o doente da mais cega paixão, dias seguidos, o célebre Antínoo descoberto em Roma no século XVI, no bairro Esquilino, que ocupa hoje no belvedere do Vaticano um gabinete especial, e é das melhores obras da antiguidade que o tempo nos poupou. Maior que o natural, deslumbrante na lisa alvura do mármore, ele inclina a cabeça levemente e dealba no sorriso uma expressão graciosa e fina, que faz um contraste adorável com a vigorosa envergadura do arcaboiço. Misto inexprimível de morbideza e força, de energia e doçura, esta figura preciosíssima realizava para Sebastião em êxtase uma tão perfeita harmonia de conjunto, que ele ficou-a tomando sempre por modelo das boas proporções da figura humana.
Mas muitas outras estátuas do belo favorito de Adriano impressionaram fortemente o futuro barão de Lavos. Mesmo no Vaticano, mais duas ainda:
uma figurando-o de deus egípcio, o olhar hirto e parado, a curva do lótus no sobrolho, o cabelo todo em anéis colados às fontes, paralelos; outra singelamente coroada de gramas e nas mãos as insígnias agrárias de Vertumno, fresca e robusta. Uma outra em Roma, no Capitólio, trazida da antiga villa de Adriano em Tivoli, representando o formoso escravo, que as águas do Nilo sepultaram, com o rosto repassado de melancolia, os olhos grandes e magistralmente desenhados, a cabeça também inclinada ligeiramente, e em torno da boca e da face esvoaçando uma perfeição de contorno ideal. No Louvre, uma com os atributos de Hércules, da mais altiva elegância; outra com os olhos de pedras finas e sobre as espáduas um manto de bronze, largamente panejado; e uma terceira, sedutora, com o largo chapéu, redondo e baixo, de Mercúrio, meia túnica deixando descoberto um braço soberbamente modelado, a perna cingida por botinas de coiro, a coxa inteiramente nua, opulenta e suave.
Várias figurações de Ganimedes tocaram-no igualmente, a saber: a encantadora estátua em mármore de Carrara, do Vaticano, achada em Óstia em 1800; o famoso Rapto de Ganimedes, de Rubens, no museu real de Madrid; o fresco de Carrache, em Roma; em Florença, a tela de Gabbiani. O mesmo com o célebre Aquiles, em mármore, do museu do Louvre, soberbo estudo do nu pertencente à época chamada do estilo sublime, e que passa por cópia de um trabalho de Alcamenes, o discípulo predileto de Fídias. O mesmo com os Narcisos, os Batilos, os Hermes, os Adónis, os Evangelistas, as Madalenas, as Fornarinas, -- com os motivos mais humanamente plásticos de todas as religiões e de todos os tempos.
De tudo isto comprou quanta reprodução lhe apareceu. Voltou com o gosto educado, apurado, sábio, e com a sede dos largos prazeres ignorados a chamejar-lhe cada vez mais mordente nos grandes olhos negros. A estupidez pacata do nosso meio exacerbava-o, estimulava-lhe a fantasia. O que a contingência externa lhe não dava, D.
Sebastião arrancava-o encarniçadamente a um trabalho desfibrinante de evocação interior. Criava, sonhava, concebia caprichos inverosímeis, que ora conseguia realizar a muito custo, ora se limitava a saborear, mercê de um longo dispêndio imaginativo, na solidão da sua alcova.
Em 1860 morreu-lhe o pai. Ele era filho único e único representante daquele ramo da família. Tomou conta da casa, -- uns quatro contos de renda, se tanto, -- e continuou desperdiçando loucamente a juventude em aventuras galantes, em pândegas, em devassidões imprevistas. Para mais, um desvio fisiológico, -- uma diátese úrica que lhe espessava e abastardava o sangue, -- dava-lhe uma facilidade simpática de adaptação a todas as vis aberrações da carne.
Um dia começou com ele a saciedade, o tédio. Acalmou, viu claro.
Conheceu que, a continuar assim, ia entranhar-se, dissolver-se irremissivelmente na treva das ínfimas degradações, como um caminhante que deixa a estrada rútila de sol, lisa e direita, para entrar num emaranhamento negro de floresta. Teve medo. Lembrou-lhe então casar... Sorriu à ideia. Seria uma emoção nova; seria principalmente, com a sua imposição de deveres sacrossantos, um freio, uma norma séria e digna de viver. O casamento pois fascinou-o, como variante e como corretivo.
Ora, entre as famílias das suas relações, frequentava particularmente o barão a casa do Sr. Inácio Miguéis, antigo negociante de panos, vivendo anchamente do passivo de uma falência fraudulenta. Ele, a mulher e duas filhas casadoiras. Destas a mais velha, Elvira, não deixava de agradar ao barão.
Irrequieta, nervosa, branca, pequenina, ressumava de todo o seu ser miudinho e frágil uma complexidade picante de mistério. Era o Desconhecido; era um problema vivo, -- e delicioso problema! -- a decifrar. Fez-lhe o barão a corte.
A rapariga no fundo não passava de uma burguesita imensamente leviana e sofrivelmente ignorante, extremosa mas fútil, não tendo da moral a compreensão mais estrita, e cultivando assiduamente por igual na janela do seu quarto os namoros e os amores-perfeitos. O natural era excelente, liso na intenção, apontando ao bem, simples, claro. Formada numa educação menos absurda que a lisboeta, podia ter dado uma mulher exemplar. Nem sensual, nem desequilibrada. Alma grande e inteligência estreita. O que queria era que a amassem, era ter que amar; porém na acanhada circuição do seu espírito este desejo não violava os limites postos ao amor legítimo pela religião e a lei.
Assim, ela não namorava por vício, mas por cálculo, na ânsia de realizar perante Deus e os homens a sua inclinação natural. E no namorado não via nunca o macho, não apetecia o homem; delineava, futurava o marido. Casar era o seu sonho doirado; casar com um fidalgo, -- a sua primeira aspiração de burguesa.
-- Se este barão me quisesse!... Isso sim! Lembrava-se lá!... -- Bem lhe tinha ela já feito a diligência. -- Mas qual!
Por isso também, quando percebeu que o barão a requestava, ia estalando de alegria, coitadita. Foi naquela casa uma alegria doida... Breve, casaram, em S. Cristóvão, perto do palacete do barão.
Julgaram-se felizes nos primeiros tempos; mas, a pouco trecho, o encanto da novidade tinha quebrado, a etiologia moral do barão seguia fatal na sua escala deprimente. Veio-lhe a fome irresistível dos hábitos antigos. Recaiu neles, agora com todas as precauções tortuosas que o novo estado exigia. A mulher, à força de a ver sempre, ia-a esquecendo. O problema esperava a solução, -- que lhe importava a ele! -- Assim, o afastamento, a indiferença, o desgosto iam cavando entre os dois, cada vez mais largo e mais fundo... Não tinham filhos: -- uma orquite dupla anulara no barão, quando solteiro, a faculdade de procriar. E agora, ao cabo apenas de três anos de vida em comum, ele, sentado ali junto da sua pequenina e apetitosa esposa, tinha frio, torcia-se, olhava confrangidamente, num misto de humilhação e de respeito, aquela cabecita luminosa e redonda, enquanto lhe dançava na imaginação o efebo que deixara há pouco no Passeio.
Deu uma hora no gabinete ao lado.
Ele então, erguendo-se:
-- Vou-me deitar.
E a baronesa, toda de alma na leitura:
-- Vai indo, que eu já vou.
O barão saiu pela porta do toilette, num bocejo arrastado, enquanto ela, depois de uma leve expiração de alívio, continuava interessadamente a ler.
CAPÍTULO III
No dia seguinte, ao almoço, um constrangimento acre molestava os dois esposos, instintivamente. O que quer que era de vagamente arreliador pairava.
Uma turbação rebarbativa de desgosto, de mal-estar, de disputa suspensa ensombrava aquela atmosfera conjugal, na aparência tão calma. Cada um dos dois tinha o pensamento posto num desejo antípoda do seu comensal; e daí cada um sentir que a tormenta se encastelava rápida e que, inevitavelmente, uma faísca de ódio havia de chispar ao encontro desses dois antagonismos.
Ambos, contudo, se empenhavam, mais por um sentimento de decoro doméstico, do que por uma razão egoísta de prudência, em retardar quanto possível a deflagração iminente.
A baronesa, com o corpinho roliço e fresco regamboleando num roupão de caxemira cor de grão, enfeitado a renda creme, e a grossa trança castanha presa, em torso negligente, à nuca por um grande prego de níquel, transversal, ora olhava as unhas, ora dava pequeninas ordens ao criado de mesa, ora derivava o olhar num passeio alheado pela sala, toda no cuidado de evitar os olhos do barão. Este, para evitar os olhos da baronesa, achara recurso mais cómodo: ia lendo o Diário de Notícias, posto ao alto contra o centro de mesa -- quatro grifos rompantes de prata suportando uma túlipa de baccarat, muito elançada, em facetas de cujo bordo biselado em ponta se debruçavam, num parapeito fofo de violetas, as primeiras rosas da estação, colhidas no jardim.
O barão estava de fraque, vestido para sair. Mais de uma vez tentara travar conversa, sempre sem resultado. Primeiro, leves perguntas banais.
-- Mandaste ao encadernador?
-- Mandei -- respondeu ela, distraída.
-- O correio não traria nada hoje?
-- Pergunta ao João.
Daí a pouco:
-- Sempre os Paradelas ontem...
Nada!
Após novo intervalo:
-- Não estou hoje nada bem... Tive palpitações toda a noite. E este meu estômago...
A baronesa limitou-se a sublinhar com um risinho incrédulo. Por fim, quando tomava o café, o barão assentou no jornal a ponta da faca, mantida entre o dedo maior e o indicador da mão direita, e exclamou muito familiar, a querer entrar com sol no diálogo:
-- É boa esta!... Sempre impagável de tolice este jornal. Queres ouvir?... -- E leu alto, com um bom sorriso conciliador, mas sem fitar a esposa: -- Diz hoje o luminária das Cartas do Estrangeiro que visitou em França o Panthéon, «edifício destinado a Santa Genoveva, patrona de Paris»!... e mais abaixo, falando do nosso ministro ali: «é um dos mais esclarecidos e honrados representantes que temos no estrangeiro, e cuja espécie fora bem útil reproduzir para honra do País...» E boa, não é? -- comentou, rindo.
Porém, malévola, a baronesa:
-- Que sensaboria!
-- Achas?
-- Decerto -- confirmou ela num revirar de olhos azedo. -- Nem sei para que te incomodas a ler-me isso... -- E logo, na previsão do que ia passar-se, para o criado: -- Vá almoçar.
-- Cuidei que te interessasse... -- aventurou o marido.
-- Supões-me mais idiota do que sou.
-- O filha, não é isso! -- afagou o barão com a mais afetuosa bonomia. -- Que te interessasse como episódio cómico, simplesmente, como assunto para um bocado de troça, para brincar, para rir.
-- Bem! não faltava mais nada. Agora chamas-me criança! -- explodiu ela com vivacidade, enquanto arrastava para longe, num sacão de arremesso, a chávena de cujo chá bebia os últimos goles.
Desta vez o barão, posto em prova, afastou da mesa o tronco, alto e direito, e cravou na mulher um severo olhar de reprimenda. Mas ela, de cotovelo fincado sobre a toalha, franzir desdenhoso nos lábios, a mão cocegando a ponta da barba num jeitinho impertinente e raivoso, pôs-se a fitar com altiva insolência uma das rosetas do teto e a fustigar o parquet num bater de pé provocante. Uma trepidação elástica e felina corria-lhe o colo, os seios e a face rija e redonda, em cujas vénulas engrossadas se via a fremer e a subir um sangue roxo, irritado.
De repente, abate sobre o marido as pupilas, crispantes de desafio:
-- Preciso sair hoje... Não me acompanhas?
-- Logo vi!... ou eu não tivesse que fazer!... -- respondeu com ímpeto o barão.
-- Que marido tão condescendente, tão amável que eu tenho, Santo Deus!... Nem de encomenda! -- E depois de uma pausa, numa irritação crescente: -- Para que me foi tirar a casa dos meus pais?... Se me não amava, para que me privou do carinho dos meus? Para que me foi arrancar ao coração da minha gente, a minha verdadeira e única família, que nunca me contrariaram... sempre prontos a adivinhar-me as vontades, sempre felizes por me fazerem a vida cor-de-rosa?... Casou por conveniência, bem sei... para me tiranizar absurdamente! -- E com lágrimas na voz: -- O senhor não procurou em mim uma doce e digna companheira, mas uma estúpida e dócil governanta! Não me quis para lhe alegrar a existência e entreter a alma, mas para lhe determinar o jantar e pregar os botões das ceroulas... Bonita vida!
-- Elvira, não me impacientes! Não me estragues o almoço... Precisas de sair?... Manda recado a tua mãe ou a tua irmã.
-- Não são minhas criadas!
-- Nem eu!
E ergueu-se pálido, fulo, assentou com força o guardanapo sobre a mesa, foi tomar o sobretudo e o chapéu ao cabide do corredor, e saiu.
Hílares do baralho da contenda, os canários do lindo viveiro dourado tinham rompido numa chilreada escarninha.
A baronesa, depois de imobilizada uns segundos num espasmo de cólera impotente, ergueu-se também de repente e foi sepultar-se na chaise-longue do seu cantinho predileto, humilhada, fria na epiderme, a chorar, a tremer. No primeiro momento nem deu bem conta dos sentimentos que a poleavam. A pobre criatura sentia só -- com que violência! -- que a saída grosseira e brusca do barão lhe caíra na alma com todo o peso de uma afronta, provocando uma dor vagamente cava, indefinível, como o bater de uma lápide fechando um túmulo.
Ele desfeiteara-a, insultara-a, atirara-a à margem como uma ponta de charuto -- eis o que era evidente, o que era essencial, o que a dilacerava... porque motivo?... Não lhe importava, não o sabia; nem, mesmo que o quisesse, conseguiria talvez tentar sabê-lo. De ordinário incapaz de passear muito tempo a atenção sobre um mesmo assunto, a baronesa comprazia-se em acendrar até ao último exagero as consequências de uma emoção.
Sobrava-lhe em coração o que lhe faltava em inteligência. Vinha-lhe de sentir muito e pensar pouco o seu adorável feitio de leviandade. Assim, toca a malucar: -- O marido repelira-a, desprezara-a... que lhe importava o mais?...
-- E a torturada e voluntariosa burguesita contorcia-se na vergonha da afronta evidente. Aquela alvura leitosa de cútis, que a extrema regularidade da sua vida tingia habitualmente de cor-de-rosa, vincara-se, empanara-se, contraíra-se no engelhamento lívido de um pergaminho velho. As lágrimas gemiam gota a gota, como de um filtro, de cada aproximação das longas pestanas, que palhetazinhas de ouro incrustavam, microscópicas. E as mãos enrodilhavam e retesavam nervosamente o pequenino lenço de esguião e rendas, preso por uma das pontas entre os dentes raivosos.
Desprezada, humilhada! -- ela, cuja suprema ambição, cujo mais almo prazer, cujo mais fervoroso anseio era amar, adorar, dedicar-se, para ser por igual amada, adorada e servida num exclusivismo sagrado e ardente de mutuação perfeita... -- Que alma ingénua! Como esta certeza fulminante vergastava cruel o seu modo feminino de sentir as coisas!
Esquecia-lhe mesmo entrar em linha de conta, na liquidação do ultraje, com o ativo não pequeno das suas provocações. Não considerava que o barão, conciliador, paciente, afável, se empenhara bastante em conjurar a borrasca, pelo seu caprichozinho azedo armada, e resolvida em próprio prejuízo. -- Insultada, humilhada! -- não queria saber de mais.
Na sua frente, sobre a mesma mesinha baixa de charão, ficara aberto, da véspera, o romance lido com tanto ardor. A baronesa deu de acaso com os olhos nele; e então, confusamente, numa teimosia obscura de confronto, por um destes desvios absurdos, mas triviais, nos espíritos pouco reflexivos, começou a achar analogias entre a sua ridícula cena com o marido e aquele episódio sangrante de adultério... Aí havia por força uma tragédia latente. Iam no prólogo. Vinha encastelando-se a borrasca. Impossível harmonizarem-se... jogavam falso. -- E um tirano. Não me compreende...
-- Se ele já me não ama!? -- pensou a meia voz, aterrada, num rodilhão de ciúme, enquanto os olhos se lhe secavam, muito abertos, a boca se lhe descerrava num pânico, e as mãos lhe caíam sobre o regaço, com o lenço esfrangalhado entre os dedos finos.
Mas foi o sonho de um instante... Breve, uma confiança grande no marido, uma confiança ainda maior na própria juventude, acordaram-lhe um rebate de honra íntimo, chamaram-na à realidade. Clareou então um bom sorriso altivo no marfim do rosto macerado, e aos olhos, vivos como um chilreio de aves, afluíram de novo as lágrimas, agora pulverizadas, cristalinas, doces como um aguaceiro peneirado de sol, na Primavera.
Entrou neste momento a curiosa da Doroleia -- de saia de alpaca preta com folho na barra, véstia de briche, cabeçãozinho de renda, cuia enorme de retrós assentando nas costas, e toda impante de curiosidade velhaca no olho pequenino e redondo, na boca rasgada de orelha a orelha, no queixo em arpéu, no nariz esborrachado -- a perguntar:
-- A senhora baronesa chamou?
-- Eu não, mulher -- respondeu a baronesa, contrariada e enxugando a furto os olhos, secamente. -- Até me pôs medo!
-- Queira desculpar, pareceu-me... -- arriscou, toda untuosa, a matreira, baixando o olhar e correndo os dedos da mão direita pela orla do avental, num afago de disfarce, enquanto debruçava o raio visual das pálpebras, a apreender, a saborear o escândalo.
E como ela se fosse ficando:
-- Vossemecê quer alguma coisa? -- interrogou, passados minutos, a baronesa, agora nadando nesta voluptuosa lassidão que nos deixa o abalo de um perigo que passou.
-- A senhora baronesa desculpará... mas... sim, a senhora bem sabe que eu que sou sua amiga e que não me sei calar. E vai por isso não me sofre o interior vê-la assim tristinha, e não lhe dizer cá o que eu entendo...
-- Sim, sim, obrigada... Eu não estou triste... Nem alegre... Aborrecida!... Vocês querem ver sempre a gente de carinha na água. -- E pegou no livro, como para ler.
A Doroteia porém não se deu por despedida. Continuando a escrutinar felinamente a baronesa, passou com a língua os lábios gretados e prosseguiu:
-- Com um dia tão bonito... a senhora veja... Tudo por aí na paródia, a passear, a divertir-se, e a minha rica senhora aqui a ralar-se! -- E, numa torpe bajulice: -- Bem digo eu que não é como as mais!
-- Lá vem vossemecê com a tolice do costume. Cale-se!
-- O senhora, isto não é ser má-língua, é a pura da verdade... Tenho servido em Lisboa, antes desta, seis casas... tudo gente casada... que isto é, uns deles desconfio que não, porque nunca saíam de braço dado... Seis casas... Pois juro-lhe que em todas elas, quando os maridos saíam para a rua, cuida que as senhoras que se punham assim, metidas a um canto?... Tó rola!... Iam mas era para a janela, fazer frente a outros.
-- Não diga isso, mulher! -- reprimindo, súbito indignada, a baronesa, a cuja lisura de ânimo repugnava a calúnia. E quis ler; mas a maligna observação da criada interpôs-se... Na sua cabecita oca infiltrara rápido, como em areia, a babugem da alcoviteira. -- Havia pois mulheres que... Ora! -- E a inteireza da sua alma entrou em luta com a inconsistência do seu espírito. Bem fitavam os olhos a página; bem queria a vontade acorrentar o pensamento, que remoinhava, remoinhava' em crepitações de bandeirola ao vento da fantasia.
A Doroteia, observando sempre a ama, tomou um leque de penas de cima de um móvel e exclamou:
-- Que ventarola tão bonita!
-- Bonita -- respondeu Elvira, muito breve, sem desfitar o livro, a afugentar.
-- Minha senhora, deram-lha?
-- Deram.
Parenteseou-se um silêncio. Fora, no largo, um malandro pregoava cautelas; da raiz do monte do Castelo vinha, amortecido na distância, um arranco de bigorna batida; longe a longe, uma carruagem passava. Passados minutos, soaram horas no escritório do barão. E logo a baronesa, que não conseguia ler e a quem o silêncio molestava:
-- Olhe lá: que horas deram?
-- Para não mentir à senhora -- respondeu a criada salivando os beiços -- direi que não botei sentido... Que eu, a bem dizer, não me entendo com os relógios de Lisboa. Têm dois ponteiros, não sei para quê... Lá na minha terra, o relógio da torre da igreja tem só um ponteiro, de lado a lado, e a gente governa-se com ele, e regula muito bem... Agora isto de dois é uma confusão...
-- São precisos, já lhe tenho explicado: um marca as horas, e o outro os minutos.
-- Não me entra cá... Endróminas... -- E voltando à carga: -- Mas que dia tão lindo!
Agora a baronesa, ainda ao seu pesar alheada da leitura, encarou numa pontinha de cólera a causa do seu desassossego e ordenou:
-- Não tem que fazer lá dentro?... Não preciso de vossemecê aqui.
Um despeito rancoroso fuzilou nos olhos da megera, que resmoneou, humedecendo as ravinas dos lábios: -- És como as mais!... -- E saiu de olho de través e cabeça baixa, com a ponta da cuia, retesada do muito cabelo, erguida em curva sobre o ócciput, a modo de uma grande figa.
Apenas ela desapareceu, a cabecita redondinha e leve da baronesa largou a remoinhar com fúria. Ergueu um olhar interrogativo para o espaço -- que dia formosíssimo!... Aquela hora o sol não entrava já no aposento, mas metalizava em lampejos de bronze as folhas negras da grande magnólia que do jardim subia, encostada a uma das sacadas, toda viçosa e nítida num azul claro e manso de lago adormecido. A baronesa, fascinada, atirou com o livro, aproximou-se da janela e olhou... A frente da casa, que deste lado virava ao sul, ficava o jardim, camarinhado de um verde tenro e diáfano, e depois, para lá do muro, estendia-se o Largo do Caldas, com o basalto ainda envernizado da névoa matutina, as trapeiras dos altos prédios espumantes de sol, e à direita, aberta no flanco onde um vidro de lampião centelhava, a Rua da Madalena, descendo ao rio em declive rápido, num alinhamento arquitetural pombalino. O ar estava lavado, clemente, doce, bondoso e húmido como um sorriso. Na lisa fluidez do céu, onde raro vogavam os últimos algodoamentos da chuva da noite, sentia-se correr, luminoso e breve como um bater de asas brancas, o arranque da Natureza que acordava. A mesma luz suavemente dourada, a mesma petulância de seiva, a mesma comunhão de vida acariciava os aspetos cambiantes da rua: a blusa de um cocheiro que fumava a um portal, a canastra de uma peixeira que, de rins quebrados e braços erguidos, falava para um 3.° andar, a chapa do boné de um carteiro, o tejadilho de um trem, os letreiros de uma carroça, a barba de um mendigo.
Um rejuvenescimento brincava na aragem. Via-se o beijo da Primavera no brilho estimulado das coisas. -- Oh! Fazia bem quem se chegava à janela em dias como este... A vida era deliciosa... Embriagava como as plantas dos trópicos... A questão estava em saber colher-lhe a flor a tempo!
-- E a baronesita, perturbada, alucinada um tantinho, vencida de um delíquio mole, com um desmaio de volúpia a molhar-lhe as pálpebras amortecidas, fantasiou que via também, subindo e crescendo para ela na sombra da rua, um belo Rodolfo de jaquetão de veludo preto, bota de vitela té ao joelho e calção de malha branca, montado num soberbo cavalo negro e trazendo outro pela mão, em que ela ia montar, igualmente negro, com um selim de pele de gamo, e na testeira graciosamente postos dois topes cor-de- rosa.
Entretanto, o barão tinha entrado no Grémio e sentara-se a ler jornais; mas, no grau de excitação em que se achava, nem conseguia prender-lhe o espírito o canalhismo picante da literatura francesa de bulevar, tão sua predileta.
Percorria num ar vago as colunas, sem lhes apreender o sentido, perro no atrito de uma apatia mental pesada, imbecilizante. O jornal tremia-lhe na mão sem firmeza, e as pernas cruzavam-se, descruzavam-se, erguiam-se em ângulo muito agudo, com a rótula à altura do estômago, alongavam-se direitas num arrastamento do calcâneo ao longo do tapete, a dar o síndroma de uma impaciência fatal, irreprimível. Consultou o relógio: -- uma hora. Tinha marcado o encontro para as duas... -- Ainda uma hora, que inferno!...
Saiu; e vagaroso, negligente, a iludir o tempo, olhando o céu, parando às montras, tomou Chiado acima, Rua Larga de S. Roque, e à Travessa da Queimada. Depois, ao cruzar com a Rua da Atalaia, deu dois passos nesta e subiu, à esquerda, pela Travessa dos Inglesinhos, até à Rua da Rosa, pela qual enfiou a ângulo reto, sobre a direita, entrando, por fim, sorrateiro, quase a meio da rua, numa casinha pequena, de três janelas de frente, branca, dois andares e platibanda. Prédio banal e anónimo, porém denotando a benfeitoria de uma restauração recente, na balaustrada, nos caixilhos grandes das vidraças, nas padieiras levemente ogivadas, nas varandas de ferro fundido; e pavoneando-se portanto num legítimo orgulho de destaque, entre a pelintra sucessão de casebres daquela rua estrangulada e imunda.
Na loja acomodava-se um cafarnaum poeirento de bric-à-brac mesquinho; o primeiro andar, com as tabuinhas verdes sanefando em toldo para fora de duas das sacadas, e umas toalhitas brancas, postas na outra a enxugar, tinha a impudência clássica do bordel tolerado e regulamentado na lei; o segundo andar, todo corrido de uma varanda, andava por conta do barão.
Tinha à frente dois aposentos. Uma saleta esguia, nua de mobília: e uma pequena sala, com duas portas sobre a sacada, de stores brancos descidos; esteira; um toucador-cómoda de espelho, com bacia e jarro, escovas, pentes, sabonetes; canapé e cadeiras italianas; divã de base de mogno e repes verde; uma mesinha de pé-de-galo; na escaiola cinzenta da parede duas «anatomias», a óleo, de adolescentes, colhidas em baixo no bric-à-brac, sobre uma mísula floreteada um frasco com água fénica; e -- detalhe curioso --, a um canto, contra a luz, um estrado de pinho com um bastidor cinzento ao alto. Abria-se nesta sala um arremedo de alcova, que mais parecia um armário, escaiolada a cor-de-rosa e mal comportando uma cama larga de mogno, à francesa, irrepreensivelmente feita, convidativa, luzente. Um corredor conduzia à sala de jantar, do outro lado, sem um único móvel, toda alagartada em paisagens de um grotesco inverosímil, e com duas janelas dominando um trecho do Bairro de Jesus e apanhando ainda ao longe a curva elegante do zimbório da Estrela, sobre um anfiteatro loução de casaria. A par ficava a cozinha, com a chaminé virgem de fumo, e com porta para uma outra alcova, onde havia uma tina, um lavatório de ferro, um bidé e uma esponja num prego.
Um ar bafiento e frio ensopava todo este interior mercenário, em cujo arranjo não palpitava a menor emoção da vida de família. Faltava o fogo e o pão, as duas primeiras condições na existência de um lar. Nada havia de quente, de irregular, de buliçoso; nada surpreendido num gesto de afago, nada marcando a evolução de um afeto, nada acusando esta honesta desordem que é o selo confiante da intimidade, nada amotinado nestas adoráveis confusões de coisas que as criancitas levantam, como um rufio de asa na pelugem de um ninho. Antes tudo ordenado, espanado, a postos, na cumplicidade passiva do prazer às horas; tudo pronto a garantir nos gozos de um sibarita a segurança do mistério.
Assim que entrou, o barão fechou cuidadosamente a porta por dentro e fez num exame rápido uma inspeção à casa. Tudo em ordem... A água corria no contador, havia roupa lavada nas gavetas... bem! Não poderia tardar. E deixou-se cair no canapé, alquebrado, numa languidez pungente de ansiedade, a cabeça contra a parede, os olhos cerrados, as mãos cruzadas sobre o ventre, e as pernas estendidas com os pés de calcanhar sobre a esteira, firmes ao alto.
Era a sua posição habitual em situações análogas. Lá estava a confirmá-lo, manchando a parede, uma gorduragem negra mesmo no ponto em que ele agora encostava a cabeça. Era assim, nesta impassibilidade ostensiva, que o pobre doente devorava os minutos de inquietação expectante, enquanto lhe devorava os nervos um trabalho de extermínio.
Mesmo esta posição inerte e na aparência tranquila era filha espontânea do seu ânimo hipócrita, era a que mais convinha ao seu jeito habitual de disfarçar.
E que a sala em volta se apropriara à hipocrisia do dono, via-se na ordenação pautada, quase severa, do seu arranjo.
O sol, que luzia de chapa nos prédios fronteiros, coava pela trama dos stores corridos uma luz uniforme, pacífica, suave, de atelier ou de templo, mascarando, por uma anomalia picante, com a sua meia-tinta parada e discreta aquela estância cachoante de paixão. Por forma que esse corpo humano, ali mineralizado, imóvel, devastado interiormente por uma turbamulta de desejos, dava a aparência calma e solene de uma estátua ou de um deus.
Tinha 32 anos o barão, e contudo dir-se-ia ao vê-lo que orçava já pelos quarenta. A sua finíssima pele, que fora tão alva, lanugenta e macia, perdera toda a mimosa frescura da adolescência. Endurecera, espessara, asperizara-se, granulara em concreções de tofus, orografara-se em vermelhidões de urticária, deixara roer toda a suavidade feminil da sua cor dos 15 anos pela erupção pintalgada e luzente da dermatose que lhe envenenava o sangue. Via-se a magreza estirando e cavando em volta dos malares salientes a face desfibrinada. Os olhos, grandes e negros, conservavam a mesma cintilação ardente; mas uma leve tinta cor-de-rosa lhe debruava as pálpebras, em cujo ângulo exterior uma purulência branca se pusera a ressumar, teimosa; e a descamação farelenta da pityriasis polvilhava-lhe abundante o bigode e as sobrancelhas. Uma calvície prematura começava a despovoar-lhe a frente e os lados da cabeça, rasgando uma testa larga, dominadora, inteligente, que seria formosíssima se não aparecesse mordida amiúde por vários botões acnosos, fugazes e incertos mas persistentes, picados ao centro em pustulazinhas duras, brancas e brilhantes como lâminas de arsénico. De cada lado do mento, escoltando a pêra, erguia-se um grosso afloramento irregular de placas avermelhadas, papulosas, estaladas, secas, largando um desagregado contínuo de películas pulverulentas. E uma oleosidade sebácea e lustrosa porejava constante da base do nariz e das glândulas temporais subcutâneas, dando a este pobre rosto, bariolado de herpetismo, o aspeto repugnante e mole de um morango sorvo.
Num sobressalto repentino, o barão estremeceu e endireitou-se, despertado pela instintiva noção do tempo, que é peculiar aos linfáticos. Olhou o relógio:
-- duas horas precisas. Ergueu-se num prurido de impaciência. Começou medindo a casa em passos largos, a todo o comprimento. Ia de uma das portas da sacada, pelo corredor adiante, a direito, até ao extremo da sala de jantar, e voltava ao ponto de partida. Depois que fez três vezes este passeio, afastou o store ligeiramente com a mão, a interrogar a rua... Cintilavam os olhos, e sob a língua crescia-lhe um excreto guloso de saliva. -- Mas que arrelia! Nem uma nesga se via de calçada!.. -- O pavimento da varanda projetava-se sobre o primeiro andar vizinho. Continuou então o passeio, e a cada três voltas, invariavelmente, volvia a arredar o store, para ver... na casa da frente as volutas de uma parreira e a ginástica adunca de um papagaio.
De vez em quando, parava a colar o ouvido contra a porta da escada. Meia hora passou assim... -- Se o cachorro faltava!? -- Ao pensar isto, interrompeu brusco o passeio e uma onda lhe tumultuou no cérebro, congestivamente. -- Era o mais certo... -- comentou descoroçoado, raivoso; e recomeçou a passear, com o mar nos ouvidos, vermelho, tonto, agitando os braços num vaivém de cólera.
Nisto, um espatinar surdo de pés descalços vinha crescendo na escada, vagarosamente. Duas pancaditas tremidas na porta... Era o rapaz!
Então, ao tê-lo ali bem vivo e bem completo, o barão sentiu-se iluminar todo numa exultação imensa, ao passo que o amolecia uma frescura de alívio; como se os seus nervos tivessem amansado de repente e lhe normalizasse agora o temperamento uma tonalidade tranquila. Estava alegre, mas senhor de si, calmo; parecia indiferente. E todavia a excitação não amainara; acendera-se mais, pelo contrário. Mas a certeza, a evidência na posse do prazer próximo operara o derramamento da sua ideopatia luxuriosa num doce equilíbrio de distribuição por todo o corpo, dando uma impressão serena e mansa de conjunto. Disse-lhe, pois, naturalmente:
-- Já cuidava que não vinhas.
E como o efebo se amarfanhasse tímido junto da porta, cosido à ombreira, o boné de alpaca torturado entre as mãos: -- Está à tua vontade... -- acrescentou.
O rapaz, perturbado por esta insistência de atenção na sua pessoa, espirou um monossílabo intraduzível. O barão estudava-o, media-o de longe, com entusiasmos de artista.
-- Olha para mim -- pediu-lhe.
O rapaz mal ergueu os olhos, coçando a cabeça, sorrindo contrafeito; e relanceou-os logo obliquamente, numa visagem desconfiada, a todo o comprimento do corredor ao lado. A isto, o barão aproximou-se, e familiarmente, descansando-lhe o braço sobre o ombro, fê-lo correr a casa toda, a mostrar-lhe que não havia lá mais ninguém.
-- Estás agora descansado?
-- Estou, sim, meu senhor.
-- Bem! -- E tomando-lhe a mão, carinhosamente: -- Anda cá... -- Levou-o para junto do canapé, sentou-se e meteu-o entre os joelhos, pondo- se a contemplar, a beber amorosamente, numa expansão febril de concupiscência, aquele maltrapilho adventício das ruas, que permanecia de pé, vagamente assustado, aturdido, estúpido, mas ainda assim com um leve traço de malícia a apontar-lhe no rosto lascarino.
Vestia um pedaço de jaqueta de casimira castanha, pendendo das costuras em farrapos, encodeada, lustrosa, ignóbil; e um colete larguíssimo de lã, que fora azul-claro e agora era cinzento-sujo, sem botões, sobreposto na cinta, paradoxalmente engelhado e preso por uma correia de fivela, que servia também para segurar as calças, de cotim em xadrez miudinho, talhadas «à faia», afuniladas, cerces, a trama esfiada e lassa mantendo-se num prodígio de resistência, num joelho um rasgão fechado por um alfinete, e incrustações altas de lama nas aberturas farpadas.
O barão, vestido no Catarro, perfumado, correto, limpo, saboreava um requinte supremo de luxúria naquele abandalhar-se ao contacto da ínfima porcaria. Sofria o aviltamento da sua diátese aberrativa. Com os longos dedos trémulos afagava e corria demoradamente aquele sórdido personagem, cuja refratária imundície largava a mesma aspereza crassa que nos deixa na mão o correr do pêlo a um cão vadio. Por fim, foi ao trapo engordurado e negro que o rapaz trazia a fazer de camisa, e quis despregar o alfinete que lho cingia ao pescoço. Mas logo o efebo, acudindo também com a mão e corando:
-- Deixe estar...
-- Tolo! -- insistiu a meia voz o barão, teimando. E abriu-lhe a camisa, que deixou ver um colo alvo, carnudo, cheio, de gordos peitorais amplos, saltantes, e de uma bela cor veludosa e macia, como de fruto que amadura.
O barão inflamou-se. Um calor de brasa mal apagada subia-lhe aos olhos, mordia-lhe sob a epiderme, latejava-lhe nas pontas dos dedos, tumultuariamente... Colheu, espremeu com fúria um dos refegos desse peito apolíneo, e cravou-lhe um beijo sôfrego, ardente, bárbaro, um destes beijos decisivos, formais, que despertam um amor incondicional ou uma inimizade eterna, beijo em que ele estilara toda a ânsia da sua alma, e que era a síntese das suas turbulências fatais de sodomita.
Aquela carne oleosa e suja, para quem a água fora sempre um mito, deu-lhe uma gustação salgada, que o estonteou. -- Despe-te lá! -- ordenou, largando o efebo e erguendo-se num ímpeto irresistível. O rapaz, sinceramente envergonhado, recusava-se; mas o barão, imperioso, breve, todo vibrante na tirania de um destes desejos cegos que levam às maiores audácias, insistiu. Ele mesmo lhe desafivelou a correia, para o obrigar. Então o rapaz, vergando segunda vez ao império daquela tenacidade de aço, obedeceu; e aborrecido, resignado, confuso por aquele vexame de exibição da sua miséria repelente, começou despindo os andrajos, que cada empuxão mais dilacerava, e atirando- os uns após outros, amarfanhados em rodilha, para trás do bastidor.
Quando o viu nu inteiramente, disse-lhe o barão:
-- Põe-te em cima daquele estrado... Anda! -- O rapaz subiu, sem perceber nada, começando a desconfiar que caíra nas mãos de um doido. -- Põe-te direito... Assim... As pernas bem unidas... Dobra um pouco a perna direita... joelho para dentro. -- Numa passividade idiota, o rapaz obedecia.
-- Agora está bem!... Perfeito.
E toca de ir sentar-se-lhe na frente, a distância, a cavalo numa cadeira, o queixo fincado nos braços assentes sobre o espaldar, concentrado numa alta contemplação de escultor estudando o modelo que vai reproduzir. A cada segundo de exame, o entusiasmo e o prazer cresciam. -- Admirável! admirável!... -- exclamou num flamejo de êxtase. -- Finalmente!... Não te mexas! -- Num relâmpago arrastou a mesinha de pé-de-galo para o meio da casa, trouxe papel e lápis de uma gaveta, e sentou-se a copiar a formosa figura que tinha diante de si.
O rapaz vestia, com efeito, uma plástica opulenta e firme de mármore antigo. Devia ter 16 anos, a julgar pela indecisão do buço e pelo frouxel topazino da sua virilidade, mal apontando ainda. A luz dava-lhe a três quartos, uniforme, pacífica, suave, destacando do bastidor o seu belo torso flexuoso e forte. Um cabelo curto, abundante, seco, todo revolto em crespos do estilo grego mais puro, coroava-lhe a cabeça, de uma oval harmoniosíssima, cujas faces pomejavam sangue, e cuja extensa e enérgica linha de sobrancelhas, cobrindo uns longos olhos rasgados em amêndoa, com o brilho do ónix na sombra dos grandes cílios, fartos e sedosos, mais idealmente fina tornava a terminação da barba, picada, como um fruto tocado de um pássaro, por uma covinha cor-de-rosa. A epiderme, áspera e trigueira das intempéries, passava cruamente, da gargalheira torrada e negra da base do pescoço, a amaciar sobre o tórax num branco lácteo, pastoso e cheio, que pelos antebraços descia adelgaçando e esbatendo-se té um azul tenro e diáfano de porcelana, cortado bruscamente nos pulsos por um outro círculo queimado. Depois, na região abdominal, a cor bistrava ao de leve, gradativamente; sobre as colunas das coxas altas e redondas reaparecia o branco luminoso e macio, mordido por um leve formigueiro de sangue; uma rugosidade escura enfarruscava os joelhos; daí para baixo, duas finas linhas lustrosas e brilhantes definiam a aresta das tíbias; e logo a pele tornava a asperizar-se e a queimar-se, numa abundância de cor nojosamente progressiva, feita de cieiro e de surro, terminando nuns pés enormes e sórdidos, negros de todas as escoriações e todas as imundícies.
-- Não te mexas! -- repetia o barão, todo na cópia, delirando. -- Finalmente!
É que este rapaz viera trazer-lhe a particularidade anatómica que o barão procurava há muito, afincadamente, com a tenacidade mansa dos linfáticos:
-- um comprimento exagerado de fémur, uma distância relativamente grande entre a região púbica e o joelho. -- Isto devia dar ao corpo um ar elançado e leve, um alongamento gracioso, um afinamento supremo de elegância, delicioso à retina de um artista. O barão morria por ver com os seus olhos, uma só vez que fosse, esta particularidade realizada. Em telas, gravuras, mármores, estava farto de a observar; mas queria encontrá-la no domínio da Natureza, flagrante, palpável, viva. Por isso havia anos que corria pertinazmente em cata do seu capricho. Dezenas de rapazes, de mulheres, de rapariguitas mesmo, tinham vindo àquela casa poisar perante a sua obstinação doentia. Perscrutinava ele na rua uma mulher fácil ou um garoto complacente que lhe parecesse deviam ter aquele desvio anatómico?... Não os largava enquanto não conseguisse, a impulso de astúcia e de dinheiro, conduzi-los à Rua da Rosa e analisar-lhes a nudez.
Mas a realização da sua fantasia era por extremo difícil neste nosso país de atarracados. Lá nas extensas regiões planas, por onde o corpo segue direito, e onde portanto a função locomotora se exercita desembaraçada e leve, numa mediocridade inalterável de esforço e numa igualdade sóbria de movimentos, que as leis do equilíbrio não obrigam geralmente a exceder, ser-lhe-ia fácil surpreender essa expansão vertical, tão idealmente apuradora da figura humana. Já não assim nas agruras das nossas terras montanhosas, em que o pé tem de ser garra, e em que a tirania dos bruscos e altos desníveis derreia a espinha e retesa os músculos em contrações violentas, tendo por consequência a espessidão e o encurtamento dos ossos em que se apoiam.
Também, de há muito que o barão porfiava no seu sonho, sempre sem resultado. A veemência deste desejo irrealizado enquistara mesmo numa fixidez sinistra de mania. Referia-lhe incondicionalmente as suas relações todas com o mundo exterior. Ao primeiro encarar com um desconhecido, o seu olhar baixava logo, numa avidez sombria, a medir-lhe as relações de comprimento entre o tronco e os membros inferiores. Quando vira na véspera o rapaz que lhe pedia a senha, relanceou-o logo... pareceu-lhe que ele devia corporizar excelentemente a sua ideia. Daí aquele fervoroso empenho em trazê-lo a este exame extravagante. E -- finalmente! -- acertara desta vez.
Mas a cópia levava tempo. O rapaz impacientava-se. Não saía bem o desenho, embrulhavam-se os traços...
A hiperestesia sensual, que cumulativamente com a obsessão artística trabalhava o barão, começara a preponderar. O apetite carnal cresceu, irreprimível. Num dado momento, parou a olhar o modelo, com a pupila empanada, o lápis caiu-lhe dos dedos trémulos, as maxilas oscilaram-lhe num jeito de carnívoro, e então foi tomar o efebo nos braços e refugiou-se com ele na penumbra da alcova...
Uma hora depois, o barão, vagaroso, lasso, neste abandono que nos adormenta os nervos que um largo dispêndio de gozo extenuou, dizia para o efebo, que acarreava o colete e as calças, atabalhoado:
-- E gostas desse modo de vida?
-- Não desgosto.
-- Vender jornais e cautelas... Pobre rapaz!
-- É reinadio -- comentou o efebo num encolher de ombros despreocupado e alegre. -- Farta-se a gente de berrar.
-- A polícia conhece-te?
-- Já fui preso uma vez... -- respondeu baixando os olhos.
-- Porquê?
-- Não tinha feito mal nenhum!... Foi de uma vez que deitaram a rede à gatunagem.
-- E então é bonito isso?
-- Ora adeus!... Eu não tinha roubado nada a ninguém.
-- Nunca tiveste fome?
-- Às vezes tenho... mas tenho também a minha liberdade, que vale mais que pão! -- afirmou convicto o garoto, num aprumo altivo.
-- Mas eu já te disse... Continuas na tua liberdade e não tornas a ter fome, querendo ficar pela minha conta.
-- O senhor está a gozar... -- insinuou a meia voz o lascarino, abrindo a expressão num sorriso malicioso de suspeita.
-- Ficas nesta casa e tens dez tostões por dia... Que mais queres?
E como a desconfiança acabasse de acentuar-se nas feições do rapaz:
-- Desconfias?... É natural; não me conheces... Ora, já que sabes ler, lê lá.
-- E, tirando da carteira um bilhete-de-visita, o barão estendeu-o ao rapaz.
Sobre um -- Barão de Lavos -- descrito em cursivo largo e elegante, reluzia a miniatura de um símbolo heráldico, policromada em relevo com rara perfeição. Escudo bipartido. A metade da direita esquartelada, tendo no primeiro e último quartel as armas reais com um filete em contrabanda, e no segundo e terceiro, em campo de prata, um mantel sanguinho com um castelo de ouro, entre dois leões sanguinhos batalhantes; tudo cingido numa finíssima orla, composta de dezasseis peças, oito de ouro lisas e oito de azul, cada uma com a sua vieira de prata. -- Era o escudo dos Noronhas, precioso tronco de que derivavam os condes de Valadares, Arcozelo e Paraty, e os marqueses de Angeja. -- Na metade esquerda do escudo brilhavam as armas dos Castros -- seis arruelas de azul, em duas palas, em campo de prata. Da coroa do timbre nascia, arrogante e minúsculo, um leão sanguinho.
O rapaz ficou deslumbrado. Evidentemente, estava tratando com um alto personagem! Fidalgo e rico, não havia dúvida. -- Deixar de farófias... era aproveitar, antes que outro o fizesse. Baguinho e boa vida, vinha do céu! -- E o malandrete, com o olhar hipnotizado na pinturilagem do escudo, baixou o pescoço em sinal de submissão.
O barão disse:
-- Que dizes?
-- Estou por o que o senhor quiser.
Então o barão, abocando um tubo acústico pendente ao lado da cama, chamou para baixo. Daí a minutos, entrava uma figura inexpressiva e reles de velha alcoviteira, corcunda e gotosa, os olhos sumidos na papujem flácida das pálpebras garatujadas de pés-de-galinha ao infinito, um sorriso perpétuo estereotipado nos lábios negros, as mãos cruzadas em aspa debaixo do avental. Era a mulher do dono do bric-à-brac da loja. Tinha ao seu cargo a conservação e arranjo da casa alugada pelo barão, que lhe disse, apenas ela entrou:
-- Ouviu, Sra. Ana?... De hoje em diante este rapaz fica a morar nesta casa.
-- Sim, senhor barão.
-- A senhora cumpre as ordens dele como se fosse eu que lhas desse.
-- Sim, senhor barão.
E logo este, colhendo o rapaz a um lado, a meia voz:
-- Tomaste sentido?... E a tua criada... Podes combinar com ela para te fazer a comida. Toma lá, para os primeiros dias. -- Meteu-lhe na mão duas moedas de ouro; depois concluiu: -- E, primeiro que tudo, tens aí água, coco e sabão... lavado, muito bem lavado, hem!... amanhã iremos ao alfaiate. Até amanhã.
Quando passou pela frente da Sra. Ana, que lhe fora abrir a porta, recomendou ainda:
-- Sirva-mo e trate-mo bem, veja lá!
-- O menino fica ao meu cuidado; vá descansado, senhor barão.
O pederasta desceu rápido a escada, leve desta alegria efémera que segue de perto a satisfação de um capricho. Mas em baixo, à porta, a luz forte do exterior cegou-o, acendeu-lhe num clarão doloroso a consciência... Então invadiu-o uma impressão de cobardia e de desgosto, caiu na fase do tédio, e foi seguindo pela rua estrangulada e suja, a que uma faixa límpida de azul fazia tampa, medroso e triste, quase arrependido, a malucar em mil preocupações funestas que o seu hipocondrismo desatara a sugerir-lhe.
CAPÍTULO IV
Quando os barões de Lavos entraram na sala dos seus amigos Paradelas -- Rua de S. Filipe Nery --, um silêncio de troça reprimida imobilizava os íntimos daquela noite em volta a uma pequena mesa, em que o coronel Militão se sentara a escrever. Apenas pressentiu a sua querida amiga, D. Leonor correu a abraçá-la, toda efusiva e alegre.
-- Chegas na melhor ocasião! -- segredou-lhe logo que trocaram o último beijo. -- O coronel está-me escrevendo uma poesia no álbum.
-- Oh! Que bom! -- comentou D. Elvira, com uma faúla escarninha a camalear-lhe o âmbar dos olhos translúcidos.
-- Para estros como aquele é que os álbuns foram inventados -- disse o barão, irónico. -- Está bem.
-- Anda ver -- disse D. Leonor para a amiga, impaciente; e conduziu-a, num enlace afetuoso de cintura, para junto do grupo que rodeava o coronel.
Todos se voltaram, a cumprimentar os recém-vindos; só o coronel se não mexeu. Com o cotovelo esquerdo firmado sobre a mesa e a mão rodilhando a pêra luzidia e negra numa abstração romântica de poeta que arma o laço a um verso rebelde; os olhos piscos e erguidos num gesto pedante de preciosa elaboração interior; e a mão direita, de pena enclavinhada, imóvel, implorando que alguma coisa descesse para ser escrita, o bom do velho, cheio de si, numa auréola de glória, sorridente, realizava um destes tipos imensamente patuscos de cretinos que se julgam génios, e de cuja desopilativa assistência anda a sociedade tão rica, para bem de quantos não podem ir a Arcachon ou a Vidago desengrossar humores...
Tinha mais de 60 anos; bastava a confirmá-lo a patente que alcançara no exército. No descalabro marcial do rosto, caparrosado e flácido, papejando engelhado e mole aos lados das maxilas, negrejava, num destaque ridículo de fazer dó, a juventude artificial das sobrancelhas ramalhudas e do espesso bigode, lustroso, erguido caracolado nas pontas por escamas de cera.
O cabelo, raro, mas povoando-lhe ainda toda a cabeça, igualmente lustroso, cor de crina, formava ao alto da testa uma poupa galinácea e empastava-se depois sobre o crânio numa aderência lambida e crassa de pomadas, afastado por uma grande risca que seguia do temporal esquerdo, alinhada como um pelotão, irrepreensível, larga, a perder-se, transposta a nuca, na fímbria do colarinho.
-- Como estás, minha filha? -- disse para D. Elvira a mãe, escoldrinhando com olho amoroso a baronesa.
-- Bem, e a mamã? -- respondeu a baronesita, chamando à expressão a mais branca e mimada alegria.
-- Quis vir pela tua casa; mas tua irmã -- não imaginas! --, hoje não acabava de se vestir!... Cada vez mais toleta... Tu em solteira não eras assim.
-- Credo! Também a mamã agora deu em embirrar comigo! -- acudiu, a fazer beicinho, a Julita, pequenina e redonda como Elvira, mas trigueira, inflamada, forte. E logo, ao ouvido da irmã: -- E que o Frederico tinha-me ido falar hoje -- sabes? --, e custava-me despedi-lo.
Estavam mais naquela sala fresca e simples -- de papel dourado, alcatifa em cornucópias, mobília trivial de mogno, piano vertical, lustre de pingentes, damasco vermelho no sofá, nos fauteuils e nos reposteiros; a Sra. Reodades, viúva de um desembargador, biliosa e hidrópica, de bigode, uma grande verruga a um lado com um pincel de cabelo; uma filha desta grave matrona, que vinha a ser a jovem e escanifrada D. Aurélia, uma das meninas mais prendadas do sítio, pois bordava a froco, pintava pratos, cantava por casas particulares e versejava no Almanaque de Lembranças', um estudantinho da Politécnica, abrejeirado, caspento e verde, com olheiras; a Sra. D. Plácida do Rio, espadanando em sedas berrantes, viúva inconsolável de um banqueiro honrado; um soberbo e simpático homem, o Sr. Alípio Vieira, de ombros largos, moreno, insinuante, ser misterioso e açucarado, sem modo de vida certo, sem domicílio conhecido, abotoado sempre numa impecável correção de diplomata, e que as más línguas diziam viver de complacências junto da inconsolável D. Plácida; Henrique Paradela; Inácio Miguéis; o barão de Lavos; e a filhita mais velha dos donos da casa, de 6 anos apenas, mas já cordata, ponderada, séria, compondo gestos, medindo palavras, observando as toilettes, toda a viveza e turbulência mortas nesta precocidade pretensiosa e doentia que forma a base da educação das crianças de Lisboa.
Como o coronel não desatasse do improviso, D. Leonor e D. Elvira acercaram-se dele, troçando:
-- O coronel, falta-lhe hoje a veia, que vergonha!
-- Pronto, pronto! -- explodiu ele, numa radiação de triunfo.
Escreveu a correr um último verso, ergueu-se, encavalou a luneta na base do nariz, chegou da luz o álbum, afastado a todo o comprimento dos braços, tossicou, e leu alto esta quadra:
Com a noite o Amor vem e cresceE as almas junta e inebria,Depois, tímido, se esvaneceQuando assoma a luz do dia.
Um coro de gargalhadas acolheu a parturição grotesca daquele avariado cérebro.
-- Bravo, coronel, muito bem! -- É madrigalesca, maganão! E maliciosa, vamos lá!...
-- Sabe a pouco, é o defeito que tem. -- Parece-me que o terceiro verso está errado -- criticou a meia voz para a mãe a linear D. Aurélia, cuja boca enorme, sem mucosa labial, fendida em costura, parecia estirada ao peso do corpo, como um rasgão de farrapo espetado ao alto de um pau nas searas, para espantalho. E a mãe apoiou: -- E um idiota! --, enquanto o bom do homem, derretido e grato, de gravata encarnada, sobrecasaca preta, a calça de pano fino, larga e embalonada, caindo em refego sobre as esporas, e qualquer coisa de couraçado e cingido como um espartilho a definir-lhe o abdómen e a quebrar-lhe a cinta sobre os quadris, balbuciava numa opressão de modéstia, as brotoejas rosáceas da testa roxas da comoção:
-- Ó minhas senhoras, confundem-me!... Eu não sou poeta... Apenas um simples jeitoso.
Entrava ao tempo, dandinante, viçoso e fresco, todo numa preocupação barulhenta de ser notado, o formoso Xavier da Câmara, pastinhas à petit- crevet, monóculo, polainas, e uma enorme gardénia, que parecia talhada em jaspe, brilhando na botoeira do fraque verde, muito curto, de botões de madrepérola. Era a figura dominante do sport lisboeta, o estalão da moda para os marialvas, o galanteador mais afortunado dos salões.
-- Que belo ar de festa aqui vai hoje! -- exclamou logo; depois, cumprimentando a dona da casa: -- Felicito-a, minha senhora... Pelo que vejo, trata-se de coroar de louros o nosso coronel... Pois vem-me tout à souhait a oportunidade; há muito que eu ardo no empenho de lhe fazer também un petit bout de apoteose. -- E sacudindo muito a mão do coronel, com o pé esquerdo leve e o corpo todo cambando à direita, num exagero pretensioso: -- Parabéns, coronel, muitos parabéns!
Entretanto a baronesa, levemente afogueada, levava-lhe obsequiosamente o álbum aberto e convidava:
-- Pois não é bonito?... Leia.
Ao que Xavier, depois de ler, deixando cair o monóculo e alongando a boca, sibilino:
-- Com franqueza, minha senhora, é uma sensaboria doublée de uma tolice... Nem admira. Daquele bestunto não pode sair coisa de jeito... -- E concluiu baixo: -- Nem mesmo que fosse inspirado por Vosselência!
E logo, rodando para junto do marido:
-- Diga-me, barão, as lições de esgrima têm continuado?
-- Ainda anteontem. Mas -- coisa esquisita! -- a cada assalto sinto sempre uma vaga impressão de dor no baixo-ventre, como se o caso fosse a valer.
-- Ah! Não se admire. Dá-se isso com quase toda a gente... Comigo não!
Porém sucedia a La Boessière; e Henri Quatre queixava-se sempre do mesmo, ao ter que entrar em batalha.
-- Olha lá, ó Xavier -- interveio aqui Henrique Paradela --, tu que entendes de armas... Comprei ontem uns floretes que me parecem magníficos.
Quero que me digas que tais os achas.
E o Xavier, com um ar superior:
-- Laissez-moi voir ça.
-- Vou-tos buscar -- anuiu Henrique. -- As senhoras dão licença... não têm medo. -- Daí a momentos, entrava com um belo par de lâminas, elásticas, lampejantes, frias. -- O Imberton disse-me que eram uma especialidade.
-- A quoi donc? -- disse Xavier, com um desdém impertinente. Examinou vagaroso os floretes, tateando-lhes o grão, fletindo-os contra a alcatifa, ensaiando a cravação dos punhos, fazendo-os varejar o espaço em sacões rápidos, silvantes; e, ao cabo: -- Com efeito... não são maus.
Então pousou-os sobre uma cadeira, e sentando-se como por acaso ao lado da baronesa:
-- Bom de lei -- sabem? -- é aquele revólver Wamant em que outro dia lhes falei. Tirei-lhe hoje a prova real. Não deixa de ser interessante... Imaginem! -- acrescentou com intimativa, de punhos sobre o joelho e braços em parêntesis, a prender a atenção. -- Tinha ido à Cruz do Tabuado, ver uns cavalos novos que o Instituto adquiriu. O dia estava convidativo: fui a pé. Ao sair, vinha do Matadouro um sujeito com um grande bulldog ao lado... Sem mais nem mais, a fera avança para mim e fila-me!... Bem o chamava, bem berrava o dono!... O celerado não largava, sacudia-me com raiva as calças, até que as rasgou! Por fortuna escapou o mollet... Eu então, furioso, deito-lhe esta mão à coleira, saco do revólver, aponto-lho à cabeça, entre os olhos... bem berrava o dono!... e ferro-lhe quatro tiros simétricos... O molosso caiu.
-- E o dono? -- acudiram num coro interessado as senhoras.
-- Já não berrava.
-- Não exigiu uma indemnização?...
-- Não perdeu a cabeça?
-- Qual!... Chamou simplesmente um galego que lhe levasse o cadáver do animal... naturalmente para mandar embalsamar.
-- Que imprudência! -- repreendeu cordial D. Elvira, com um pique de calor na face e a anastomose das veiazitas a engrossar, muito azulada.
E o sonso do Alípio Vieira, que se escoara para um vão de janela com a inconsolável D. Plácida, comentou entre dentes:
-- Cada vez mais «pãozinho»!
D. Leonor tinha-se aproximado do piano com D. Aurélia. A esquirolenta menina ia cantar. Compôs na estante a música, pigarrou, trocou duas palavras de combinação com D. Leonor, que era quem ia acompanhar, passou o lenço pela boca, e desfiou então chorosamente uma romanza sentimental, em que o histerismo plangente da amante abandonada lamuriava no rosário habitual de notas mugidas com ênfase, e vibrava nos trilos consagrados invariavelmente para o fecho das cadências. A transparente criatura gemia todo aquele idealismo obsceno compenetradamente, como se a heroína do caso fosse ela, cujos tristes 22 anos sangravam feridos de amaríssimas desilusões de amor. A sua voz aguda de soprano tinha acentos da mais pungente eloquência, e as notas saíam-lhe da laringe, que um excesso de salivação empenava, como que engrossadas de lágrimas, ásperas, molhadas.
A mãe, a Sra. Reodades, sentada mesmo ao lado do piano, bojuda e enorme, revia-se na filha e ia marcando o compasso com a cabeça, enquanto uma deliciosa mímica de aplauso lhe dançava no rosto cor de cera derretida.
Inácio Miguéis, em pé ao meio da casa, radioso, gordachudo, as mãos sustendo o abdómen, cerrava os olhos gulosamente numa beatitude alvar. O estudantinho da Politécnica, lascivo té ao casco, crivava a D. Julita com olhares suplicantes. Os outros ouviam numa complacência indiferente.
Depois das palmas do estilo, no final do canto, dizia D. Elvira para o coronel, que ocupava agora junto dela a cadeira deixada por Xavier da Câmara:
-- Ouviu, coronel?... Olhe que o meu álbum não é menos que o da Leonor. Quero também uns versos.
-- O baronesa! Isso é uma honra com que não pode o meu estro balbuciante... -- contrariou Militão inclinando-se, todo baboso.
-- E um homem feliz este coronel! -- disse D. Leonor, que veio sentar-se junto dos dois. -- Ainda relativamente novo, numa posição tão bonita...
-- Querido das damas... -- atalhou D. Elvira. -- Cheio de medalhas... ajudante-de-campo de El-Rei... com uns poucos de criados para o servirem de graça...
-- O que nós chamamos «impedidos»?
-- Não só esses, mas todo o regimento, não é assim?... São tudo seus criados... Oh! Deve ser um regalo! Mandar em centenas de homens, fazê-los mover todos a um tempo, como máquinas!... Eu, se fosse homem, não queria outra honra, não ambicionava melhor posição.
-- Ora, minha senhora, presta lá para nada!... E maçador. Dão muito que fazer! são maus, manhosos. E depois, tudo caras barbadas -- acrescentou, na intenção de ser amável. -- Se os regimentos fossem de senhoras, isso é que era delicioso!... Olhe, sabe, D. Leonor?... Se eu comandasse um regimento de senhoras e Vosselência tivesse praça nele, nomeava-a logo... A minha «impedida»!
Novo coro de gargalhadas festejou este galanteio do coronel, enquanto Henrique Paradela, vexado da audácia, mordia o beiço para o lado, e D. Leonor corava té à raiz dos cabelos. Ela era uma destas mulheres acanhadas e discretas, de inteligência medíocre e alma equilibrada, a quem a menor notoriedade assusta e o anormal, o extravagante escandalizam; mulheres sem vaidade, sem ambições, sem desvarios, fadadas para vegetar apagadamente no segundo plano da Vida, e-cuja exclusiva preocupação, cujo ideal supremo se cifra no cumprimento estrito do Dever.
Para a desafrontar do embaraço evidente, D. Elvira segredou-lhe, acotovelando-a com disfarce, a derivar:
-- Não vês?... Lá está a viúva ao canto, agarrada ao Vieira... Não sabes o que deles se diz?
-- Sei, filha, sei, mas não acredito. E uma boa gente, deixa falar -- respondeu com a mais generosa segurança D. Leonor. -- Ela tem um viver irrepreensível, garanto-te; apenas faz o possível por mitigar um pouco as saudades do marido, a quem amava loucamente. Querias que a pobre senhora ficasse toda a vida encerrada no seu quarto, a chorar e a arrepelar-se?
-- Pois sim, mas ele?... e então ele de que vive?
-- E comissário de vinhos agora, e agente de consignações.
-- Estás a brincar...
-- Palavra! Tem até escritório na Rua dos Fanqueiros. Diz meu marido.
Do grupo de homens que rodeavam, junto à porta da saleta do fumo, o coronel, destacou muito exibitivo Xavier da Câmara, e, sentando-se novamente ao lado da baronesa:
-- Não a vi no benefício da Rey Baila, minha senhora. Esteve doente?
-- Não, felizmente... nem eu, nem ninguém dos meus; mas fazia anos meu pai. Fui passar o dia e a noite com ele, e cedi a frisa às Pachecos.
-- Afinal não perdeu nada. A beneficiada sentia-se rouca, e o Junca também não estava nos seus dias. -- E acrescentou, todo curvo para a baronesa, num mal reprimido suspiro: -- O único que perdeu, fui eu...
-- O senhor!? -- estimulou a baronesita, com uma simulação coquette de espanto.
-- Eu sim, minha senhora... Tinha quase como certo ver Vosselência aquela noite, ali, branca e rosada na sua frisa, respondendo amável à minha saudação e dominando, como sempre, a sala, toda rendida ao prestígio da sua encantadora formosura!
-- Lisonjeiro!... Se assim gosta de me ver, porque nos não visita? S. Cristóvão assim é longe?... Recebemos todas as tardes -- bem sabe.
-- Faz sua diferença. Isto de vermos a mulher que nos cativa, no recinto acanhado de uma sala, apertados no formulário da etiqueta, sob o olhar espertalhotão e malicioso das outras visitas, c’est un supplice na vrant, comprometedor, atroz! -- E como D. Leonor se tivesse levantado, para ir pedir à Julita que tocasse o Noturno de Chopin: -- Não assim na amplidão anónima de um teatro, onde cada um pode entregar-se sans contrainte, sem receio de comprometer nem de ser surpreendido, à contemplação muda e ardente do anjo que o fascina porque realiza o seu ideal sonhado e apetecido!
Assim, o patife prosseguiu colhendo na retórica do galanteio as flores mais inflamadas, cuja venenosa essência D. Elvira aspirava deliciadamente, com a face afogueada, os lábios trémulos e os olhos húmidos de comoção. O barão, de longe, no grupo dos homens, observava a cena, desconfiado, torvo.
Gradualmente o ciúme regrou-lhe a testa, e os dedos longos e nodosos dobraram-se contra a palma da mão, numa fúria nervosa de bater.
A um claro da sua imprudência, a baronesa deu de olhos nele; então teve medo, e corrigiu logo a expressão e a atitude, abrindo ao mesmo tempo o leque e piparotando as pregas do vestido.
A Júlia veio ter com a irmã, a dizer-lhe:
-- Vou tocar, e vai ser uma vergonha! Estou tão nervosa!... O mafarrico do Mendonça em toda a noite não tira os olhos de mim! -- E logo o Câmara aproveitou para levantar-se e ir enfiar o braço no do barão, a explicar-lhe com a mais cínica naturalidade:
-- Sua esposa esteve-se informando do benefício da Rey Baila. Como não foi... -- O barão teve um rugido surdo de cólera e afastou do tronco o braço, de modo a fazer cair o de Xavier da Câmara. Este, porém, imperturbável: -- Como não foi... -- repetiu.
-- E natural a curiosidade, e nem ela podia ter escolhido mais condescendente informador... -- conseguiu dizer o barão, num tom frio de ironia. A baronesa espiava-os, branca de susto.
-- Obrigado, barão!... Mas não esteve grande coisa aquilo. Que o diga aqui o Alípio, que ficou mesmo ao meu lado.
-- O quê? -- perguntou o melífluo personagem, que em atenção às conveniências tinha deixado a viúva.
-- S. Carlos, na terça-feira.
-- Ah!... iludiu a expectativa. Nenhum dos cantores estava em voz, a não ser o Mongini. Os coros desafinados. E então a comparsaria muito fora da ordem.
-- É verdade, é verdade!
-- Lembras-te, no 2.° acto, aquelas três coristas que entraram antes de tempo, a saracotearem-se, todas pândegas, como se viessem fazendo uma grande figura?
-- Tal qual!... Eu até disse para o Pego, o meu grande companheiro de boémia: olha, lá vêm a «marquesa de Almada, a condessa dos Camarões e a Pavoa»!
E radiante por ter feito tanto a pêlo esta graciosa referência à trindade mais canalhamente em voga do mundanismo lisboeta, Xavier da Câmara deixou o barão com Alípio e aproximou-se de Inácio Miguéis, que sabia embirrava soberanamente com ele, para o arreliar.
-- Meu caro Miguéis, então já sabe?... Vamos ter aumento de direitos sobre a importação das fazendas estrangeiras. E é muito bem entendido!
-- Aumento!?... Oh! meu Deus! Onde irá isto parar? -- exclamou num desabafo de pacóvia indignação o antigo negociante, que se tinha associado recentemente a duas das casas mais fortes de panos da Baixa. -- Daqui a pouco, não há quem possa sustentar aberta uma loja de mercador!
-- Quebram todos?... Muito bem feito! Não tenho pena nenhuma. -- E, com um olho insidioso: -- Eles sabem quebrar a tempo...
Logo o oleoso burguês, com a calva rubra, formalizado:
-- Não calunie, Sr. Câmara, não calunie! Quem está de fora, fala bem... Creia que não há vida pior... Eu que o diga, que ainda hoje lhe sofro as consequências. -- E curvava hipocritamente o cachaço e baixava as pálpebras, como para conter alguma lágrima de mártir, retardatária.
-- Tenha paciência, meu caro, eu acho bem. -- Inácio Miguéis aprumou-se e cravou no interlocutor uma olhada fula. O Câmara prosseguiu: -- Pois não é assim?... Estamos a vestir caríssimo.
-- Se carregarem nos direitos, mais caro havemos de vestir.
-- Nada, não pode ser!
-- Não pode ser?... Homessa! -- insistiu com firmeza Inácio. -- Encarece o que vier de fora, que há de ser menos, e encarecem os artigos nacionais, que hão de ter mais procura.
Xavier da Câmara conheceu que estava a pique de sustentar uma tolice, e então salvou-se explanando, num atabalhoamento palavroso de ignorante que se defende:
-- É que os senhores negociantes, com o pretexto dos direitos, estão aí a impingir-nos fazendas nacionais como estrangeiras, por um dinheirão!... Mas isto acaba!... Desde que aumente na pauta a taxa da importação dos artigos de vestuário, por forma que venha a tornar-se insignificante a entrada deles nos nossos mercados, já a gente depois sabe que se há de vestir com panos da Covilhã e da Arrentela, e o comércio há de fornecê-los baratos e contentar-se com um lucro razoável, quer queira, quer não.
-- E confirmou com ares de quem bebia do fino, sem se desconcertar: -- O pensamento do Governo é este... é muito bom pensamento, e tem por si a opinião do País.
O tom superiormente convicto desta coarctada final ressoou fundo na córnea inteligência do velho traficante, que interrogou pálido, limpando o suor da calva:
-- Mas então, sério, há ideia disso?
-- Palavra! O briche nacional vai ser moda. A iniciativa parte da Família Real. A rainha já não usa rendas senão de Viana e de Peniche.
-- Querem-nos levar a pele! -- impou Inácio Miguéis, todo em suores frios, com a voz cava do desespero; enquanto o janota ia contar a Henrique Paradela, entre casquinadas de riso, os efeitos patogénicos da sua peta.
-- Outra como esta, e o barão fica sem sogro.
Ao que Henrique Paradela, pousando-lhe a mão no ombro, protetor e doce:
-- Deixa-o lá.
Entretanto, D. Aurélia, a pedido, cantarolava um tango, cuja melopeia quebrada e dolente, carpida na sua voz perra e molhada de escrofulosa, perdia toda a dengue voluptuosidade característica para se arrastar num queixume dorido e fúnebre de epicédio.
Alípio Vieira tinha-se sentado, e afagava entre os joelhos a gentilita filha dos Paradelas, que gostava imenso dele e viera encostar-se-lhe num abandono meigo, os longos anéis castanhos do cabelo a aflorar-lhe a gola da sobrecasaca, a mão esquerda apoiada sobre uma perna, e a direita bedelhando com a pequenina cabeça de biscuit engastada numa concha, que ele trazia a adornar- lhe o plastrão cor de malva.
-- Gostas deste alfinete?... Queres que to ofereça? -- perguntou com acento mimado o Vieira, todo curvo para a criança, cujo cabelo tocou ao de leve com os lábios, sobre a testa.
-- As senhoras não usam disto -- retorquiu ela, grave, dando uma compostura pretensiosa ao corpo e retirando a mão.
-- E então tu já és senhora, Ema?... -- A pequena teve um sobrecenho de enfado. -- Como vamos de lições?
-- Ainda hoje tive ótimo! -- acudiu logo, com orgulho. -- Tenho sempre ótimo... E mais olhe que a madame não é para graças... Já ando em contas. -- Ao participar este facto assinalável da sua vida, a encantadora Emazita curvou-se toda, de face ao alto e rins contra o braço do amigo, que encarou com orgulho. E demorou-se a fitá-lo, as mãos rodilhando agora na cadeia do relógio, o cabelo pendendo solto, quase a tocar na alcatifa, uma quebreira de ternura confiante a fosforar-lhe na pupila imaculada e na expressão ideal do rosto miudinho e fresco um sorriso sereno e cândido esvoaçando.
Neste alongamento do corpo, dobrado sobre o braço de Alípio Vieira, a barra do vestido subiu e deixou a descoberto uma ligeira porção de coxa, no prolongamento da perna, igualmente nua, muito alongada e fina. Então o olhar do barão, que estava sentado junto dos dois, sentiu-se imediatamente solicitado por uma força irresistível, fatal, involuntária, e logo desceu, cauteloso e vesgo, a comparar, a medir a relação de comprimento entre o tronco e os membros inferiores da pequenita, adoravelmente franzinos, mal escorçando-se ainda nesta indecisão de forma peculiar das idades em que a função dominante do organismo é crescer, e cuja nudez sagrada tinha a vesti- la a castidade absoluta da inocência.
-- E quantas bonecas agora? -- interrogou ele, chegando-se, com a vista hipnotizada sempre, contra sua vontade, sobre a carne froixa e nua da pequenita.
-- Dei-as todas à mamã, a guardar... Agora aprendo inglês -- respondeu ela, outra vez séria, endireitando-se e compondo o vestido, instintivamente molestada pela insistência de olhos do barão.
Mas nisto veio o chá, e a aparição dos bolos desconcertou-a, acendendo as sôfregas exigências do seu paladar cortante de criança. Com os olhos húmidos e a face longa de guloseima, ela correu breve para a mãe, apontando determinados pratos dos tabuleiros: -- O mamã, dê-me daqueles, sim?... -- E D. Leonor, colhendo-lhe as mãos: -- Espere, menina... Que modos são esses?!... Se começa a portar-se mal, vai-se deitar.
Xavier da Câmara antecipou-se a servir a baronesa. E como apanhasse ao lado dela uma cadeira devoluta, ensaiou reatar aquele diálogo quente, minutos antes interrompido. Porém a baronesa suplicou um: -- Por amor de Deus!
Tenha juízo! -- tão profundamente sensato e tão comovidamente cauto que o célebre sportman levantou-se e rodou largo, diferindo para melhor oportunidade a prossecução do bloqueio.
Ao mesmo tempo, o dono da casa servia D. Plácida e dizia-lhe:
-- Quase estive hoje privado de passar mais esta bela noite na companhia de Vosselência e dos meus bons amigos.
-- Sim?... Então?...
-- Temos tido serões no Ministério... até às 11 horas. De modo que pedi dispensa.
-- Andou muito bem.
-- Oh! O Estado não periga só porque deixei de enfiar por umas horas a clássica manga de alpaca; e eu lucrei imenso na deixar por esta noite dobrada ao canto da gaveta. O meu egoísmo, preferindo ao bastardo mazorro dos ofícios a palavra cordial dos meus amigos, creio que é, a mais não poder ser, justificado.
-- O nosso egoísmo é que nunca lhe perdoaria, se faltasse... -- contrariou amável, erguendo o rosto para Henrique, a mirabolante viúva, em cujos óculos de ouro centelharam duas miniaturas muito nítidas do lustre da sala, acendidas pela mesma reverberação que incendiava numa fosforescência de alga as esmeraldas do grande pente de tartaruga, erguido como um diadema na soberba trança grisalha que num jeito ateniense lhe coroava a cabeça.
Dentro, na casa do fumo:
-- Sinto-me bem esta noite, sim senhores! -- comunicava o coronel aos homens, bebericando num copo de água chalada.
-- Pudera! -- acudiu Alípio. -- Com uma ovação como a que teve!
-- Não é isso! -- contestou Militão com um desdém superior. -- É que esta manhã tivemos um trabalhão no quartel com aquele caso, que veio nas folhas, de um cabo que me esmurrou um primeiro-sargento. Não leram?... O auto do corpo de delito não tinha esclarecido bem a causa do crime. Levámos hoje o dia numas esmiuçadelas complicadas que nem seiscentos diabos. Fui jantar com dores de cabeça. Mas, afinal, a coisa apurou-se. E foi o que eu supus desde o princípio... O mariola do sargento andava metido com uma amiga do cabo, e este, quando o soube...
-- Ora! -- interrompeu Xavier da Câmara -- é o eterno cherchez la femme.
-- Qual fama nem meia fama! -- corrigiu irritado o coronel. -- Não era só a fama... -- e rematou a meia voz: -- Punha-se nela!
Custou imenso a conter a hilaridade dos presentes. O barão ferrou nos lábios mordeduras de fazer sangue; Xavier da Câmara valeu-se do lenço, fingindo que expetorava; o Mendonça correu para o vão da janela, a chorar de riso; Alípio, que mastigava um cake, teve um espasmo violento de laringe, que lhe fez jorrar com estrondo o chá pelo nariz e pela boca, numa sufocação de um cómico irresistível. Só Inácio Miguéis, de dedos no ar empolgando uma fatia, permanecia imóvel, sem perceber.
Aquela esfuziada de troça, Henrique veio informar-se. E logo Alípio de novo coleou para cerca da viúva, a trocar com ela versinhos das pastilhas.
Depois que as últimas bandejas circularam sem que ninguém se utilizasse, o Mendonça, a pedido das senhoras, foi recitar. Em pé no topo da casa, mãos no espaldar da cadeira oficiosamente chegada por Henrique Paradela, passada a destra pela sua grenha de vate romântico ou de tenor de café-concerto, ele bramiu calorosamente, entre iracundo e apocalíptico, uma extensa homilia toda sangrante de apóstrofes em brasa ao prosaísmo do mundo, ao conflito dos interesses, à imoralidade «campeando infrene», ao domínio brutal da força, ao «culto abominante» do deus Milhão. Era de ver como de estrofe para estrofe cresciam, lategando o assunto, as sátiras juvenalescas e os sarcasmos voltairianos; como esfuziavam conceitos pícaros ao modo de Pope, Dryden, Alfieri; como estouravam as gargalhadas satânicas de Rabelais -- o que tudo o inspirado jovem ia realçando a primor com repercussões cavas, tiradas ’do tórax a murro, com reviramentos trágicos dos olhos vingadores, e com choradinhos de efeito na voz lamuriante.
Depois, gradualmente, a poesia amansava e alisava-se, como um rio que passa de remoinhar num estrangulamento anfractuoso de rocha, a adormecer lânguido e fácil num leito amplo de areias. Então, mal corria no verso um como encrespamento de brisa, um suave frémito amoroso... De onde a onde, um cândido evolar de aspirações da mais pura transcendência, uma suplicação larga e veemente, erguida num fervor de prece para um alto ideal sonhado e inatingível, revelavam a alma do poeta, nobremente espantada, esmagada, agonizante no pandemónio do torvelinho humano; alanceada pelo contraste do facto com a ideia, da matéria com o espírito, da teoria com a realidade; sofrendo a fatal compressão de aniquilamento em que as transformações sociais espremem os fracos, os tímidos, os delicados. Ela pedia o exílio, a abstenção, o isolamento, para longe das batalhas épicas da vida, para um ermo onde pudesse finalmente alcançar, na sua expressão culminante, bem inteiro, bem completo e bem perfeito, esse divino, simples, imaculado gozo, que ele sentia intimamente, e que queria realizado a dois na grande pacificação dos campos, na tranquilidade obscura dos humildes, no esquecimento inefável de alguma casita modesta, perdida na solidão... E aqui os olhos do clamoroso vate iam cair suplicantes, num amortecimento langoroso, sobre os olhos da D.
Julita, que se torcia na cadeira, desesperada.
Desgrenhadamente lúgubre o final. Não esquecera o «mistério, o palor funéreo, o cemitério» e bastas rimas no género, que imprimiam àquela arenga arrepiante um ar plangente e fantástico de elegia.
A poesia, portanto, filiava-se por essência na pieguice então em voga do «teu amor e uma cabana». Mas era mais do que isso. Estilava um ceticismo torturado e lírico. Tinha de Melibeu e de Musset. Mesmo na primeira parte havia toda uma revolução de originalidades bravas, já «deboche» aparecia a rimar com «Rigolboche»; falava-se em Falstaff, em Luculo, em Moloch, em Sganarello; o sol era comparado a um «dobrão» e a lua a um «requeijão»; dizia- se muito acertadamente que o mundo agonizava entre o «bordel» e o «quartel»; gemiam-se trenos sobre o «calvário» do «proletário»; o céu era interpelado muito a sério sobre se o «ente imenso e necessário», que em nós habita, não passa de uma simples «argamassa de potassa e de calcário...» Para mais, tudo em alexandrinos!
Grande ovação no final. -- Linda! linda! -- conclamaram todas as damas, menos D. Júlia.
-- Que final! Que elevação! Que sentimento! -- sublinhava, de olhos em alvo, D. Aurélia.
-- Quem é o autor? -- perguntou a dona da casa. E, fitando muito o Mendonça, numa inquirição inteligente: -- Aposto que adivinho...
Ao que o estudante respondeu, modesto, baixando a inspirada cara:
-- Eu, sim, minha senhora.
-- Oh! Isso tresdobra-lhe o merecimento!... Que bem! Que bem!
-- Minha senhora, nem a poesia presta, nem eu sei recitar.
-- Não diga isso... Quem, melhor do que o autor, pode dar expressão ao próprio pensamento?
-- Decerto! -- confirmou o coro feminino.
-- Tem talento este rapaz -- disse o barão para Henrique. E, batendo no ombro ao caspento vate: -- Quer-me fazer favor desses versos para a Gazeta}... Dão um belo folhetim.
Porém Inácio Miguéis, que vagamente percebera ser tudo aquilo um memorial amantético dirigido à filha mais nova, e que não engraçava com esta corja de poetas, resmoneou:
-- «Me melem» se percebi palavra!
Pouco depois, o barão segredava a Henrique, num vão de janela:
-- Ó homem, diz-me com franqueza: ainda acreditas nas virtudes da D. Plácida?!
-- Que pergunta!... Não vês que continuo a admiti-la na minha casa?
-- Estás no teu direito... Mas olha que daquelas intimidades com o Alípio não se reza muito bem.
-- Deixa falar... A minha mulher conhece-a por dentro e por fora. A morte do marido deixou-a inconsolável.
-- Sempre ingénuo! Isto de «inconsolável» em matéria de viuvez é como o «irrevogável» em política... Tem uma sílaba a mais.
As senhoras agitavam-se de roda do coronel, pedindo-lhe que recitasse também; e ele a fazer-se rogado, com uns ares de isenção bonacheirona; e a D. Julita na brecha, afagando-lhe a barba com a ponta do leque. Afinal:
-- Visto que tanto apertam... Sou um criado de Vosselências...
-- Mas, na verdade, depois do Mendonçazinho... Enfim, depois da alvorada o sol-posto... Vamos lá!
E logo uma estralada de palmas:
-- Bravo! Bravo! Viva o coronel!
-- Que há de ser?... O Guerrilheiro!
-- Nada! Nada!
-- A Judia!
-- E maçada!
-- O Escravo!
-- Uma coisa alegre, ora adeus!
-- Coisa alegre?... Já sei!... Vão apanhar uma surpresa. Vou-lhes recitar Um toleirão!
-- Isso, isso! Bravo! -- aplaudiram à uma as senhoras. -- Venha o toleirão!
Era uma poesia cómica recentíssima, que um ator eminente havia representado pela primeira vez, ainda de poucos dias, em D. Maria. O coronel tinha-se apressado a procurá-la e a estudá-la, no desempenho do seu papel de «petisco» dos salões. E já começava de dizê-la com intimativa, em pé a um ângulo da sala, os calcanhares marcialmente unidos, o peito bojando para a frente numa irrisão de elegância, a crista do cabelo tesa de fatuidade, e os olhinhos correndo maganamente, em piscações ambíguas, o círculo das senhoras, enquanto as brotoejas vermelhas da testa supuravam humores desvanecidos.
A poesia contava o caso de um bom homem, tolo e poltrão, casado com uma virago despótica e insuportável, que lhe infligia uma vida de negro, não o deixando sair sozinho, obrigando-o a varrer a casa, acender o lume, fazer a cozinha, lavar a louça, tomar o rol à lavadeira, engomar, pontear, ir à praça -- tudo isto piorado com uma cegarrega de peguilhices sem fim:
Se me zango, porque zango,Se chalaço, porque mango,Se mexo, sou mexilhão,Se falo, sou tagarela...
O pobre diabo lamuriava singelamente a sua desgraça, numa eloquência tosca e simples, a que o lamechismo do coronel dava um colorido de um cómico inexcedível. De vez em quando, como para explicar a sua sorte mofina, chorava o queixoso este estribilho:
Eu o que sou é toleirão!
que o coronel soltava num belo tom convicto, e que a sala toda acolhia a gargalhadas do mais trocista assentimento.
Vinha um trecho em que era posta a falar uma actrizita, impingindo ao Sr. Simplício um bilhete «para o seu benefício». Isto disse-o Militão no falsete mais esganiçadamente agudo que é possível alcançar-se na gama do grotesco.
Também, aqui, a hilaridade das senhoras permitiu-se a mais ruidosa expansão.
Depois, no final, os aplausos estrepitaram furiosos, com uma grita inclemente de apupada. E as duas viúvas levaram o coronel em triunfo ao longo da sala toda, cada uma pelo seu braço,-enquanto D. Aurélia lhe fazia umbela sobre a crista com um livro de música aberto, D. Julita lhe dançava na frente abanando-o com o leque, e a pequenina Ema, perdida a seriedade, se lhe abraçava aos joelhos, repetindo: -- Toleirão! Toleirão!
Radiante da ovação, tressuava o coronel.
Foi o sinal da retirada. Entabularam-se as despedidas; e, com intermináveis combinações das senhoras junto da porta da escada, os convidados foram saindo, vagarosamente.
Daí a minutos, no coupé cortando rápido o Largo do Rato, o barão dizia para a esposa, malicioso, afetando a maior naturalidade:
-- Sempre o Câmara estava hoje muito ridículo!
E a baronesa, caindo na armadilha:
-- Não achei.
-- Oh! meu Deus! Ainda querias mais? -- insistiu o marido no mesmo tom despreocupado. -- Uma flor como a roda de um carro, o cabelo lambido de fazer nojo, as calças pelos joelhos, e então no palavreado uma mayonnaise de francesismo e de tolices, capaz de inutilizar pela náusea o espírito de melhor blindagem contra a asneira. Safa!
-- Vocês não podem ver um homem que dê na vista, é o que é... Tudo que sair do trivial, do comezinho, do amanuense ou do caixeiro, aterra e consome de inveja os banalões como tu.
-- O contrário das mulheres... -- observou o barão, ainda fazendo de tranquilo, mas com um ligeiro pique de azedume a travar-lhe a cristalinidade da expressão.
-- Está claro! -- acudiu ela com vivacidade. Mas de repente, vexada de se surpreender, ao ouvir as próprias palavras, na defesa calorosa do dandinoso sportman, e percebendo o fim que visava o jogo do marido: -- Muito te dá que fazer aquele Câmara!... Queres pegar porque conversei com ele, não é verdade?... Pois sê franco, homem! Ralha para aí!
-- Ralhar, eu! Que ideia! -- emendou manso o barão, progressivamente cáustico, numa bonomia desdenhosa. --Assim me supões tão ferozmente alarve?... Sei que para as senhoras o mais saboroso prazer é escutar amabilidades. Naturalíssimo... Roçagam-lhes a vaidade, que é a paixão dominante do sexo lindo. Chega a ser para vocês um divertimento inocente. E havia de eu censurar-te porque deste um pouco de atenção a um cavalheiro amável?... Pois não gostas também de amabilidades, tu?
-- Pudera! Ando tão pouco acostumada a elas!... -- remoqueou D. Elvira, agressiva, pondo no tom sacudido deste breve queixume um frio de amarga censura.
-- Eu não sou positivamente um lamecha. Tem paciência.
E a questiúncula ameaçava crescer, cada vez mais irritante.
Neste momento o coupé, que atingira o fundo da Rua do Salitre, rodava pela frente do Circo, ruidosamente... Tudo apagado. Terminara o espetáculo.
Na rua deserta apenas se movia uma patrulha da Municipal, deslize e muda como uma sombra, no seu duplo cone de oleado escorrendo o gás pacato dos lampiões. Ao aspeto do Circo, o barão reviveu num relance toda a cena da antevéspera com o efebo: -- as tentativas pertinazes para lhe atrair a atenção; a sua inflamada e tortuosa eloquência em convencê-lo, à esquina do Passeio -- aqui mesmo! --, e depois, no dia seguinte, Rua da Rosa, a impagável descoberta da sua linha anatómica, seguida de um minuto inolvidável de prazer... oh! o prazer mais rabidamente impetuoso e mais estonteadoramente cheio que, ao abalo da novidade e da surpresa, a sua natureza devassa de artrítico ainda até àquele dia tinha logrado sentir. Esta lembrança afogou-o numa undação celeste de volúpia, deu-lhe a leveza rútila do triunfo, ergueu-o numa acalmação dolente de felicidade que o levou para longe, para muito longe da deliciosa criatura, ali nervosa e quente ao lado dele, respirando o mesmo ar quase, dando-lhe contactos de carne polposa e fresca por cada solavanco do carro na calçada. E o Câmara esqueceu-lhe.
Porém a baronesa, em cuja alma inconsistente e mimalheira a reprimenda do marido desatara a fazer estragos, como um pingo de água numa pintura em cera, disse:
-- Para que a gente se casa!... Nem ao menos somos senhoras de conversar com quem quisermos!
Arrancado brusco à sua evocação voluptuosa, o barão deu em replicar grosseiramente, na crua intenção de ofender:
-- Olha, decerto!... Cabeças ventoinheiras como a tua melhor valia que não casassem. Ao menos, ficando solteiras, podiam tolejar à vontade sem se comprometerem mais do que a si mesmas.
-- Assim me insultas?... E incrível isto! -- murmurou a baronesa, mordendo os lábios, de raiva.
-- Pois tu realmente estarás convencida de que te não excedeste, de que te não tens excedido já muita vez, nos teus segredinhos com o Câmara?... Quererás convencer-me de que não sabes que ele te faz a corte?
-- E que tem que saiba?... Aceito-lha porventura?
-- Pelo menos, não o ouves a sangue-frio. As palavras de um indiferente não nos chamam o sangue às faces, não nos encrespam os lábios, não nos ensopam a pupila num delíquio terno... Ah! Que eu hoje não estive longe de fazer um escândalo!... Chegar-me ao pé de vocês, arrancar-te dali para fora... e a ele, dar-lhe com uma luva, insultá-lo, cuspir-lhe na cara... eu sei!
-- Que ganhavas com isso?... Desafiava-te... E a ele não lhe havia de dar grande cuidado. Joga bem todas as armas.
Faiscou um relâmpago no espírito do barão. Agora se revelara, neste dito inconsiderado, a perversão moral da esposa. A ideia do duelo preocupava-a... pela sorte do amante. -- Jogava bem as armas, não tinha dúvida... -- Queriam mais sincera a impudência?... O desgosto, o ciúme, a ira, o tédio estrangularam-lhe a voz. Nada contestou.
Já a carruagem costeava a Praça da Figueira, rolando sobre o basalto com uma sonoridade branda e macia de molas caras. Depois o rodar apagou-se no macadame da Rua da Madalena, e presto os dois esposos apeavam-se à porta do seu palacete no Largo de S. Cristóvão. Subiram silenciosos a escada, e silenciosos se dirigiram para os quartos interiores, ambos sob a vigilância do pequenino olho escoldrinhador da Doroteia, a adivinhar e a reconstituir a cena com delícia.
A baronesa, no quarto de toilette, começou-se a despir, atabalhoadamente, com estes gestos sacudidos e doidos em que nos faz cabriolar os músculos uma emoção violenta. Ao despentear-se, o jogo seco dos braços tirou das articulações uns estalinhos brancos; depois, as pulseiras caíram com ímpeto, num tilintar elástico, sobre o mármore do toucador; os colchetes, fivelas e alamares do vestido arranharam deploravelmente a laca bariolada e translúcida do guarda-vestidos magnífico de Boule: e ouviu-se o estoirar de fitas que não havia paciência de desatar, e o abrir de rasgões feitos por alfinetes que não houvera o cuidado de desprender.
O barão, esse refugiara-se, às escuras, na peça ao lado -- a saleta de estar da baronesa --, e media o pavimento em longas e rápidas passadas, numa obstinação de exaspero, entre um amontoamento de sombras, a face mal iluminada apenas, a cada fumaça, pela brasa do charuto que os seus dentes torturavam. Aquela altercação vulgar com a esposa tinha-a a sua imaginação veemente avolumado numa gravíssima contenda. E para ele todas as atenuantes, era de supor. Queria-se mal a si mesmo da sua cobarde complacência, dava-se proporções de mártir, vagamente pensava em libertar- se pela separação daquela tortura degradante e intolerável. Por boa meia hora continuou assim passeando, todo na galvanização de uma análise que a obscuridade exacerbava, topando frequente os móveis esparsos pela casa, de onde a onde uma contração do tórax soando num rugido cavo, e a ponta do charuto apagado a desfazer-se na trituração raivosa, toda salivada em bílis, das maxilas.
Quando entrou na alcova, a baronesa estava já deitada. Voltada à parede, enroscada, imóvel, o seu corpinho pequeno e redondo perdia-se na farta amplidão das coberturas; a sua faca fosadita e leve, toda afofada na alvura da travesseira, lembrava um bouquet de rosas num cartucho de velino rendilhado; e os fios mais claros do seu cabelo castanho tomavam na incidência discreta da luz vinosa da lâmpada uns laivos ténues de ametista.
Deitou-se também o barão, na sua cama, carregado, mudo, impando, ao voltar-se para a parede, uma funda expiração de raiva.
Procurou dormir... Impossível. Na luz crepuscular da alcova as pupilas teimavam em abrir-se, muito leves, erguidas pela mola de uma excitação mordente. Por mais esforços que fizesse em contrário, a cena com a esposa voltava a galopar-lhe no cérebro, arreliadora, estúpida... Nisto pareceu-lhe distinguir um ruído... Ouvido fora da roupa... Era a mulher que soluçava.
Ele então deu entre os lençóis um pequeno salto involuntário; e, subitamente compadecido, mas querendo fingir de forte:
-- Estás a chorar?... Ainda em cima!... -- E como ela, passivamente, continuasse no mesmo soluçar magoado: -- E boa esta!... Porque choras, afinal?...
-- Se te parece!... Ligada a um homem que me não estima, que me não faz companhia nenhuma, que só tem para mim palavras duras...
O barão voltou-se para a esposa e respondeu, com a voz quebrada por um enternecimento carinhoso:
-- Tu és tola! Pois eu não sou teu amigo?
-- ao teu modo...
-- O filha, que queres tu?... E o meu feitio. Já tinhas tempo de me conhecer... Sou mono, carrancudo, seco moral e fisicamente, é verdade; mas -- acrescentou estendendo os braços para o leito ao lado, numa solicitação conciliadora -- quero-te muito, Vivi!... Tu bem o sabes!
-- Se assim te conheces tão bem, não devias estranhar que eu ouvisse com agrado as pessoas que são amáveis para comigo... Tu quase que não tens para mim uma palavra afetuosa!... Se os outros ma dirigem, gosto... não por quem mas diz, que tolice! Mas unicamente por elas... por essas palavras de um efeito tão docemente inefável, que para a vida da mulher são tanto ou mais precisas do que o pão.
O barão tinha-se levantado; e, todo curvo sobre o leito da esposa, vencido, humilde, murmurou: -- Tens razão, Elvira... Fui brutal... Perdoa-me! -- passando esta última prece num beijo timorato e súplice aos lábios da baronesa. Ela porém repeliu: -- Ora, deixa-me! -- ainda enfadada do que ouvira, e já começando a gozar na submissão do marido a voluptuosidade da vingança.
Mas o barão sentia-se todo arrepelado de uma comoção complexa, estranha. A contrição, à dor, à piedade, naturalmente suscitada no seu ânimo bom e generoso pela aflição da baronesa, juntavam-se agora, num somatório absoluto de tirania, a hiperestesia da sua virilidade ao contacto daquela mulher jovem e formosa, e, mais que tudo, um desejo veemente de posse, acordado pelas pretensões audazes de Xavier da Câmara. -- Aquela mulher adorável era dele, só dele e muito dele!... Como podia haver um idiota que pensasse na infâmia de...? -- E veio-lhe o apetite cálido de firmar maritalmente os seus direitos, no mesmo instante, ali.
Por isso, novamente dobrado sobre a baronesa, afagou-a com um segundo beijo, desta vez demorado, caricioso, firme, seguido de outros, vertidos cantadamente na cabeça, nos olhos, na face, no colo... no pescoço, e cortados por um entaramelamento de balbuciações apaixonadas.
-- Deixa-me, ouviste?... Já te disse... Não estou para graças... Maçador! -- repelia ainda a baronesa, já sem azedume, sem energia, amolentada, morta, a vontade suspensa e os nervos formigantes ao contágio sensual do marido. E acrescentou, num tom de voz sumido mas ressonante, como se falasse de um ponto muito distante, à beira de um rio: -- Peço-te, vai-te deitar.
E o barão deitou-se, mas ao lado dela, imperioso, trémulo... E após uma pequenina luta, os dois breve afogaram num íntimo amplexo -- longo, suspirado, elétrico -- as últimas asperezas da contenda.
CAPÍTULO V
Depois do encontro na Rua da Rosa com o efebo, D. Sebastião sentia-se devastado, cada vez mais empolgativamente, pela sua sinistra andromania.
As entrevistas continuavam-se, diárias quase, absorventes, intermináveis, doidas; ora de dia, escandalizando com as baixas alucinações da sua febre o luaceiro alvadio e calmo que o sol peneirava pela trama dos stores, corridos discretamente; ora de noite, vividas em tumulto numa epilepsia de sugestões lascivas, fomentadas e protegidas pela deformação crepuscular das coisas, que um só candeeiro com pára-luz iluminava escasso, e lubricamente ainda exacerbadas por um vago resfolgar de sensualidade que vinha frequente, através o soalho, fumegando, do primeiro andar.
Muitas vezes, depois de uma demorada cena amorosa, de tarde, com o rapaz, o barão saía combalido, esgotado, trôpego, com os nervos debilitados, o olhar dorido, a alma humilhada e sombria. Mas então, por isso mesmo que caíra fraco, o vício, longe de ser para ele, como para as organizações sadias, uma simples derivação acidental de gozo na normalidade fisiológica da sua vida, dominava-o inteiro, montava-o, torcia-o, fundia-lhe o cérebro, fazia-lhe crescer no sangue uma obsessão de fogo... e o pobre pederasta lá voltava logo à noite, poucas horas decorridas, a fechar numa segunda cena de erotismo a parentesiação do seu desejo.
A plenitude de vida, a arrogância genital, a evolução orgânica ao máximo, próprias dos 32 anos, mantinham no barão ainda fortes e dominantes as tendências naturais da virilidade. Ele tinha por enquanto junto do efebo os mesmos apetites de penetração e de posse que o homem sente de ordinário para com a mulher. Todavia, em raros momentos de vertigem, ao contacto da sua carne com aqueloutra virilidade impetuosa e fresca, percorria-lhe os músculos, fugidio, breve, um movimento efeminado; faiscava-lhe no espírito uma pregustação de prazer que tivesse por base a passividade, o abandono; entrava de supurar-lhe da vontade uma solicitação em escorço de se entregar, de ser possuído, gozado, de ser femeado em suma. O que era, a um tempo, corolário do seu temperamento, e sinal patognómico do finalizar de uma raça inútil, do agonizar de uma família que vinha assim desfazer-se, podre das últimas aberrações e das últimas baixezas, na pessoa do seu representante derradeiro.
Era como o início da formação de um edema de natureza moral, purulento, mole, crescendo traiçoeiramente sem dor e sem pruridos, abeberando-se farto e rápido na degradativa essência do doente, como numa esterqueira os cogumelos.
Não se ia operando sem luta a ruína patológica do barão. Nas breves, espaçadas horas de reflexão e de repouso, a consciência deste pobre Belisário dos sentidos, ativada por uns leves fogachos de reabilitação moral em que a porção nobre do seu atavismo se inflamava ainda, punha-se a iluminar-lhe de alto as perturbações ignominiosas da alma, com a serenidade do luar que rompe a esclarecer, num claro de procela, a caligem estertorosa e revolta de um mar atormentado.
Então o barão via-se por dentro, media com horror toda a profundidade obscena do seu aviltamento, chegava a desprezar-se; e reunindo num esforço heroico as suas reações honrosas, conseguia, amparado nelas, dominar as fatalidades do sangue, travar o desmoronamento, reconquistar a própria estima.
Assim antes como depois de casado, era-lhe frequente topar por acaso, de noite, a uma quina de rua, no parapeito de um cais, no mosaico de uma praça, com o vulto escorregadio e sujo de algum vadio em almoeda. Logo se lhe afrodisiavam os nervos e se lhe congestionava o desejo. Daí, troca de olhares de inteligência, o diálogo entabulava-se, aprazava-se ponto de reunião... mas já depois, no caminhar para o gineceu combinado, vinha uma dessas reações salvadoras, os seus restos de honra fidalga despertavam, sacudia-o um repelão de bom senso, corava na sombra, tinha um medo vago de si mesmo... e parava de repente. O rapaz, que ia na frente, parava também, desconfiado. Chamava- o o barão, dava-lhe uma boa espórtula, despedia-o; e seguia para casa, com as mãos a escaldar, o cérebro pesado, a carne insatisfeita a emperrar-lhe o passo, contrariada; mas radiante, vaidoso, feliz por se haver dominado, por haver podido mais uma vez ser forte.
E mordia-o uma tentação de contar o seu íntimo triunfo aos transeuntes com quem cruzava. E, junto da esposa, desentranhava-se num caudal de sinceros acarinhamentos.
Ultimamente mesmo tinham dado em explodir mais amiúde estes movimentos salutares na degenerescência mórbida do barão. Havia até dois garotos que lhos exploravam habilmente. Sabia cada um onde era provável encontrá-lo de noite. Aí o esperavam. Acercavam-se-lhe, despertavam-lhe a luxúria. E depois, ao verem-no subjugado e quente, demoravam propositadamente os prelúdios da entrevista, a dar tempo, a ver... Na demora acontecia que o barão, se um frio de pejo ou de cansaço o percorria, reconsiderava e mandava-os embora sem se servir deles, mas não sem lhes pagar. E os lascarinos partiam lestos, a rir, numa gratidão troçada, sem perceberem como pudesse haver destas abstenções enigmáticas e generosas.
E que havia uma outra causa, além dos rebates de uma dignidade bruxuleante, nestes reviramentos louváveis do barão. A sua imaginação excessiva, de uma lucidez veemente, prejudicava-lhe em boa parte a sensibilidade. A cada momento ele ideava que ia gozar de um certo modo; a sua fantasia azougada e pitoresca levantava, encastelava entre ele e a realidade das coisas umas antecipações de prazer mirabolantes, estonteadoramente largas, transcendentes, complicadas de volúpias infinitas -- como se complica de arabescos inextricáveis, de alucinantes pinturilagens a maravilha dourada e leve de um palácio oriental. Mas, depois, nada disso acontecia! A realidade vinha e arrastava-se muito abaixo. Daí um desgosto cuja lembrança lhe fazia largar súbito, mesmo no momento mais próximo da realização, o instrumento de qualquer prazer que ele andara a sonhar longamente, ardentemente.
Com o efebo novo é que ainda se não tinha dado nem deceção, nem remorso. Havia dois meses que D. Sebastião o amava, sempre com a mesma igualdade, a mesma sofreguidão, a mesma efervescência. Ao contrário do que lhe sucedera com muitos outros, a paixão por este rapaz mantinha-se inalterável, firme, resistindo aos caprichos daquela vontade titubeante.
Era uma doentia obsessão, um amor estranho, dissolvente, enorme, de uma acuidade que fazia sofrer. Um misto extravagante de submissão e de império, de adoração e de lascívia, que prendia o barão àquele indivíduo do mesmo sexo por laços mais poderosos do que quantos nos serve a História como exemplos de ligação admirável entre homem e mulher. E este amor patológico não relampeava em turbulências; antes enquistara numa fixidez calma e sinistra de mania, que é a forma da paixão nos linfáticos. Antes de tudo e acima de tudo, na vida sinuosa do barão sempre lampejava agora, sobranceira a todas as preocupações e a todos os desvarios, esta paixão sindromática, pregada e fria como um luzir de espelho na penumbra.
O rapaz, que era um produto acidental de luxúria clandestina, amoldara-se facilmente, com toda a pastosidade do seu carácter de lama, ao modo de vida que as circunstâncias lhe tinham propiciado. Norteava-lhe o desejo um fim único: o bem-estar, o prazer, alcançado não importa como, e ainda à custa das maiores baixezas.
Logo na segunda entrevista com o barão, contara-lhe a sua vida, sem mentir, singelamente. -- Enjeitado. Nascera em Aveiro, dos amores de um militar com uma freira. Aos 10 anos saíra da Misericórdia para casa de um armador, como serviçal. Passara os seus pecados! A rudeza do trabalho marítimo não quadrava ao seu feitio delicado e mole. Retalhava-lhe a pele o vento cortante da ria; o esforço do corpo aos remos abria-lhe o peito; a manobra dos cabos calejava-lhe as mãos. Uma faina do inferno aquilo! Não podia... de uma ocasião, roubou ao patrão doze libras e fugiu para Lisboa.
E -- agora o vereis! -- enquanto lhe tiniu metal na algibeira, «laureou» que foi um regalo. Boa mesa, boa pinga e boas pequenas. Ia vendo a cidade, hoje num bairro, noutro amanhã, comendo onde calhava, dormindo nos vãos das portas, pelos patamares das escadas, e mesmo, se a polícia o deixava -- gostava tanto! --, sobre os bancos dos passeios. Houve um tempo em que ia ficar quase sempre à Travessa da Cara com uma rapariguita branca, de rosetas na face e uma grande costura no pescoço, que gostava muito dele. Mas aborreceu-se depressa. Desde uma noite, em que lhe deu com um emplastro no peito, por causa da tosse, nunca mais lá tomou.
Tinha arranjado amigos -- uns valdevinos como ele, sem eira nem beira, mas de lume no olho, endiabrados, pândegos, preferindo à maior riqueza do mundo a bela da sua liberdade. Rico tempo!... Quando se derreteu toda a chelpa -- o último «lepes» fora-se num cafezinho, à Mouraria --, então começou a vidinha a apertar... mas sempre alegre como um raio! Foi-se vendendo a farpela; ganhando a sua gorjeta por fazer um recado, segurar um cavalo, entregar uma caminha; e mesmo apanhando-se um pouco de trincadeira a algum sócio na «paródia». Quiseram-no engajar nesse tempo para o Brasil... Dera-lhe gana de bater no patife! Ele não era nenhum escravo... E gostava tanto da tropa! Ia todos os dias, horas, para em frente do Quartel- General, só para ver partir à desfilada as ordenanças. E aí apanhava bem bons cobres, quando segurava os cavalos aos senhores oficiais. De manhã, no Inverno, quando a «larica» e o frio apertavam, largava para a Baixa, à espera da música da guarda principal. Com o costume, já tinha de cor a escala. Hoje era o 2 de Caçadores?... Bem; vinha esperar a guarda ao Rossio. Amanhã era o 2 de Infantaria?... Marchava para o Corpo Santo. Depois era o 16?... Lá estava rente à hora, no Alto do Salitre.
E depois vinha por ali abaixo, pulando, cantando, à frente dos cobres reluzentes, na troça dos vadios, agitando um lenço em ar de bandeira quando a marcha era «catita». E em baixo, na Arcada, depois do «apresentar armas» e da «gaitada» final, sentia-se quente, reinadio, lesto, como se tivesse almoçado uma caldeirada de eiroses regadas com um litro do bom «torriano».
De ordinário enganava a «larica» fazendo partidas por essas ruas. Algumas com sorte... de uma ocasião -- fora no Largo da Palmatória --, estava um galego «vertendo as suas águas», de barril ao ombro, cheio. O rapaz viu-o naquela posição grotesca, vergado, com ambas as mãos ocupadas, atento ao que fazia, e subiu-lhe um calor de implicar com ele. A primeira ideia foi puxar- lhe o espicho do barril, para o encharcar; mas -- «pai paulino»! -- dava «chinfrim», e vinha um polícia de baixo, da Rua de S. Roque... Ora de um dos bolsos da jaqueta do javardo saía um papel dobrado. Deitou-lhe a mão, por partida, sem outra intenção mais do que arreliá-lo.
E enquanto ele rosnava, preso ao urinol: -- Ah! cão, que me roubaste -- toca de esgueirar num foguete pela Calçada do Duque abaixo.
No Rossio desdobrou o papel. Era uma espécie de carta. Tinha aprendido a ler e a escrever na Santa Casa. Dizia assim:
Lulu:
O portador desta trouxe-me o Joli, que encontrou muito aflito, mortinho de sede, à beira do Aterro. Dá-lhe as alvíssaras que entenderes.
Clara
Belo! Tinha chuchadeira!... Mas aonde seria?... Nas costas, a lápis, descortinou: -- Rua do Ouro, 260, 1.°. -- Num salto lá estava. Era um escritório. Um senhor todo testo, já velhote, de óculos de ouro, deu-lhe meia libra. Reinação para três dias!
Agora certas poucas-vergonhas, em que via meterem-se alguns dos companheiros, nunca lhes dera aceitação. Bem o tinham já perseguido, ele mesmo conhecia que não era peste, que poderia ganhar por esse modo boas «carinhas». Mas não lhe quadrava lá... fazia-lhe repugnância... Nunca tinha querido.
E rematou, de olhos baixos, roendo uma unha:
-- Foi o senhor o primeiro... pode crer.
-- O quê!? Antes de mim, homem nenhum?... -- interrogou o barão avidamente.
-- Tão certo como estarmos ambos com vida!... Em garoto pequeno, lá fazia o meu ranchinho com os petizes da minha idade... Todos passam por isso... Agora homem em cima de mim, antes do senhor, nem sombras do primeiro!
-- Acredito! -- explodiu o barão, radiante. E abraçando o efebo, com esta efusão de ternura envaidecida e grata que nos faz estreitar ao coração a virgem que se nos deu inteira: -- Como te chamas tu, afinal?
-- O meu nome de batismo é Eugénio... O meu pai era o senhor capitão Dias Lebre.
-- Eugénio Dias Lebre... é um nome cheio e bonito. Fica bem.
-- Agora na «púrria» tenho uma alcunha de estalo! Sou o Marcado.
-- porque diabo?...
-- Olhe, por isto, senhor. -- Arregaçou a manga direita da camisa té ao ombro, e mostrou na parte interna e superior do braço, junto ao sovaco, uma pequenina roseta, cor-de-rosa seca e de um corte arredondado de corola.
-- Dizem que foi porque minha mãe... andava ocupada de mim, já nos últimos meses... e vai foi assombrada por um raio quando estava a contemplar uma grande rosa que o meu pai lhe tinha mandado.
O barão, encantado com o detalhe, fascinado por aquela flor em miniatura, tão finamente águarelada a bistre na alvura azulada e tenra da epiderme penujosa, tomou com as duas mãos o braço, beijou demoradamente o sinal, e murmurou num êxtase triunfante:
-- Com que o primeiro, eu!...
Depois súbito, liberal, reconhecido:
-- De hoje em diante, tens dois mil-réis!
E a vida correu para o rapaz um néctar, um céu-aberto, uma «pânria» sem igual.
Tinha dinheiro à farta, boa casa, mesa excelente, cama de príncipe e obrigações... nenhumas! -- a não ser aquela de aturar, dias por dias, umas tantas horas, o barão. Que não era das mais custosas, afinal. Pior seria rizar uma vela, remar, fazer carretos, cavar, manejar a plaina ou a picareta. Puxava do peito!... Aquela porcaria, em suma, com a continuação já nem se lhe dava...
Era estar para ali.
D. Sebastião fê-lo vestir e calçar de novo. Ele próprio o acompanhava, no princípio, aos estabelecimentos, onde lhe abriu crédito e onde presidia à escolha dos artigos -- tudo do melhor! --, normalizando-lhe o gosto, incutindo-lhe regras de asseio, de apuro, de elegância. O falar ia-lho igualmente corrigindo. Não que o barão não gostasse de ouvir silvar os plebeísmos na boca acerejada do amante. Encantava-o até a propriedade flagrante e o sabor acanalhado de muitas dessas fórmulas da rua, que resumem tanta vez uma filosofia inteira. Mas entrara de flutuar-lhe na alma, inconfessado, tímido, o desejo de se apropriar, de tornar inseparável da sua aquela existência imprescindível... Por isso queria desbastá-lo, afiná-lo, fazê-lo correto, dândi, na previsão de ter de apresentá-lo um dia -- que diabo tinha! -- às pessoas das suas relações.
De seu lado o rapaz, cujo arguto espírito logo concebera o plano de «se arranjar», de se engrandecer, de entrar no mundo da influência e do dinheiro pela mão deste cínico derrancado, ia escutando o mestre com a maior atenção, com o máximo aproveitamento. E as lições, favorecidas na confluência das duas vontades, deram ótimo resultado. Mesmo Eugénio possuía esta assombrosa faculdade assimilativa, peculiar aos seres que o azar lançou à margem na via dolorosa da existência. Pouco a pouco, bruniu, afinou, metamorfoseou-se, adquiriu maneiras distintas, esqueceu o calão das vielas, perdeu o gingar afadistado. A cútis do rosto amaciou e atrigou levemente -- deste pálido macerado, aristocrático, das carnes formadas à sombra enlanguescente dos reposteiros; as mãos branquearam e afusaram; tomou brilho o cabelo; os pés sofreram o calçado, o tronco aprumou. Ao vê-lo passar agora, comedido, sério, os grandes olhos velados pelo coco de feltro branco, pequenino, redondo, fitinha estreita, a aba arpoada; o corpo corretamente moldado nalgum ligeiro «cheviote» escuro; em volta ao pescoço um laço de seda farto e negligente -- dir-se-ia um filho-família que vinha da aula ou do escritório, ignorando ainda o mundo; vendo só claro na vida, ingénua, simples.
O barão regozijava-se.
A Sra. Ana trazia-lhe o pequeno nas palminhas. Cozinhava menos mal, sempre à hora marcada. O barão tinha pago um trem de cozinha completo. E ela, muito bom modo -- tudo o que o menino quisesse, pois então! -- Apenas se permitia observar-lhe que o abuso do marisco havia de fazer-lhe mal. Eugénio, filho de uma cidade marítima, era guloso dos alimentos picantes, fortemente iodados, que nos fornece o mar. Não dispensava a sua omelete de camarão ao almoço; ao jantar as ostras, o arroz de amêijoa, lagosta quando aparecia, ligueirões, caranguejo; à noite uma tortilla bem abeberada de mexilhão. -- E a Sra. Ana a repontar sempre... Não que lhe desse trabalho arranjar estes petiscos. O velho das ostras era infalível à porta, todos os dias; tanto mais que tinha também freguesia certa no primeiro andar... Mas aquilo era muito quente... Havia de fazer-lhe «nervoso interior».
A verdade era que os dois velhos, em baixo, comiam-lhe os sobejos, e o «bricabraqueiro» estivera já de uma vez à morte, com uma irritação de intestinos.
Nunca mais Eugénio dera importância aos antigos companheiros de rua -- era dos livros! Impôs-lho mesmo expressamente o barão; assim como lhe impôs, sob pena de expulsão imediata, a proibição formal de receber quem quer que fosse, e de ter com homens relações de qualquer ordem. -- Daquela porta para dentro, só eles dois e a Sra. Ana!... E nada de se dar com calças... nem velhos, nem novos, nem feios, nem bonitos!
-- Quero-te só para mim! -- afagava, entre dois beijos húmidos, o pederasta.
Para se certificar de que não era atraiçoado, além dos miúdos interrogatórios à mulher do ferro-velho, invariavelmente rematados por espórtulas magnânimas, tinha ele uma chave da casa, que trazia sempre consigo, e que lhe permitia entrar a toda a hora, de surpresa, com olho inquisidor farejando...
Algumas vezes, depois de uma noite atormentada de desejos, toda levada em sonos curtos, fatigantes, cortados de estremeções nevróticos, dava o barão em levantar-se cedo, a pretexto de qualquer negócio urgente, e corria à Rua da Rosa. A sua alma de artista deleitava-se no conspecto da cidade àquela hora matutina... Lisboa espreguiçava no azul fresco e retinto os seus milhares de braços de calcário. Colgava os últimos andares dos prédios uma ténue faixa de ouro. Desse imenso anfiteatro, festivo e branco, largava para o espaço, erguia- se breve, atarefado e cheio, o sussurro de um povo que acordava. As carroças da limpeza passavam, com um chocalhido perro de campainhas. Gemiam pregões ao longe. Vinham às portas das lojas os caixeiros, mãos nos bolsos, as pernas em compasso, palito ao canto da boca, a olhar o céu. Chalravam pardais nas praças. Os carrilhões nas torres picavam árias de operettas.
Ranchos de garotos cruzavam-se como flechas, maços de jornais sobraçados, espalhando um cheiro acre de tinta húmida, a gritar:
-- Quem quer Diário!... Dez réis!
O ar fino e macio acalmava o barão, que chegava expansivo, acriançado, leve, todo flamante de disposições prazenteiras, como raríssimo lhe acontecia.
Eugénio, ainda deitado, estúpido, espesso do sono, recebia-o com mau modo.
Mas o barão bem lhe importava! Debruçava-se no leito e beijava-o; primeiro a furto, melindrosamente; e daí numa crescente insistência, imperioso, brutal, abrindo-se em acariciamentos piegas, em suplicações ferventes, em denguices de namorado.
-- «Seu» preguiçoso... Então isto são termos?... Não tem vergonha!
E ia-se pondo à vontade.
Depois, por altas horas, almoçavam juntos. Almoço lauto. E então à mesa, demoradamente, o barão prosseguia na educação do amante. O garfo empunhava-se assim, a faca deste modo, e para ali o guardanapo, e o Bucelas era para o peixe, e nunca vertesse champagne em copos sem pé... Nunca dissesse «calhou», mas «aconteceu»; nem «intrujice», era melhor «espertalhotice»; nem «pinóias», antes «meretrizes»; nem «pus-me na alheta», mas «safei-me a tempo». Nem chamasse aos municipais «guitas», nem «bufos» aos espiões.
Se saíam ambos: -- que cambasse o chapéu um pouco ao lado... assim; aquele laço de gravata menos simétrico; a luva amarrotada.
E ficava todo o dia de bom humor.
Eugénio foi tomando asas na familiaridade. A confiança do barão desembrulhou-o. De acanhado que era a princípio, timorato e submisso como um escravo, foi-se tomando animoso, dominador, sobranceiro, altivo. Escravo era mas era o barão da sua carne, do sangue que lhe formigava opulento sob a epiderme viçosa e fresca, da flexuosidade a um tempo efeminada e forte do seu corpo harmonioso. Assim como isto foi conhecendo, o efebo transformou-se. Ao cabo desses dois meses, permitia-se já ter vontade, estipulava exigências, falava ao barão fitando-o nos olhos, fazia-lhe arrelias.
Andava mesmo inclinado a dar-lhe falta um dia. -- Se ele se zangava?... Qual!... Tinha-o seguro, bem via. O fidalgo queria-lhe com uma «gana» cada vez maior. E, que o despedisse!... Não faltaria quem lhe continuasse o modo de vida... Ou melhor... Já bastantes lhe tinham mandado falar... Então «brasileiros»! Cada brilhante!... Deixar de tolérias; ia viver mais na liberdade. Se o mostrengo não gostasse, que o levasse o diabo!
E desde o dia em que fez esta reflexão emancipadora, nunca mais Eugénio se prendeu com horas de estar em casa, com emprazes de entrevistas, com atenções, com receios. Ao belo do ar livre, sempre que lhe apetecia. Não para se prostituir com outros. -- «Futres»! Mas porque era a melhor coisa deste mundo -- vadiar.
Muita vez então aconteceu chegar o barão e encontrar a casa deserta. A Sra. Ana, interrogada: -- que o menino agora saía muito... mas que não sabia por onde se gastava.
O barão ralava-se. Tinha com Eugénio cenas violentas. Começava iracundo, acusava-o de ingrato, de indecente, de o trair dando-se a outros homens... Logo, quebrado pela dura impassibilidade do efebo, arrependia-se, implorava perdão, lamuriava as desculpas cobardes com que se roja aos pés do juiz um criminoso, perguntava-lhe numa tremura ansiosa -- se já não era amigo?... -- largava quanto dinheiro o lascarino exigisse. E no descalabro moral destas reconciliações obscenas ia-se, a um tempo, erguendo cada vez mais sólido o império do rapaz, e cavando cada vez mais fundo o envilecimento do barão.
Mandou-o espreitar. Averiguado que o rapaz levava o maior do tempo num bilhar, à Rua do Príncipe, ou então em casa da Paca, Rua da Prata.
Sossegou o barão. -- E que gostava de jogar o seu bocado e tinha de acaso por amante alguma boa espanhola... Uma mulher... Não lhe importava isso!...
Natural, próprio da idade tudo aquilo... Sossegou. Mas agora, de cada vez que vinha à Rua da Rosa, a incerteza devorava-o. Era, ao subir da escada, um ruído espesso nos ouvidos, um latejar das fontes, um galopar sufocante do coração no peito, uma tortura picante de todo o seu ser violento e fraco, poleado na vibração da dúvida. E esta agitação, esta angústia mordente saboreava-a o barão com deleite, porque lhe trazia uma sensação nova, um prazer corrosivo e acre ao seu feitio mórbido de gozar.
Uma noite o barão saiu de casa no propósito de encontrar por força Eugénio. O dia antecedente -- um domingo --, tinha-o ido passar ao campo com a esposa. Do amante não sabia desde quinta-feira. Quatro dias!... Intolerável!
Eram 8 da noite. -- A essa hora, quase certo andar ele fora de casa... Quem sabe?... As vezes, por um feliz acaso... -- E subiu até S. Roque o barão. Mas aí, antes de embrenhar-se nas tortuosidades do Bairro Alto: -- Está lá em casa, agora! Tão cedo! -- Ia apanhar uma deceção, quase de certeza. -- Nada, o caminho é por aqui... -- Rodou sobre si mesmo, desceu a Calçada do Duque e tomou à esquerda, pela Rua do Príncipe, direito ao Jansen. Entrou.
Sob a arcaria resplandecente, forrada a papel fingindo mármore, do salão, abancava às mesas, ia e vinha, altercava, rodopiava, interpelava-se uma multidão barulhenta e viva, arrogante, bariolada, irrequieta. Um grosso burburinho, bizarro e quente, sobrenadava, dominado com frequência por um tinir de copos, um final de frase berrada, um esfuziar de gargalhadas. Algum estalido de palmas batidas com impaciência, a percussão de uma moeda numa bandeja, morriam na cantilena roncada e estrídula dos pedidos dos rapazes para o balcão. Era um concertante de harmonias bárbaras, um alarido cortado e dissonante, a que as fugas da abóbada imprimiam uma larga ressonância, e que crescia e revoava na atmosfera peneirada de ouro, entre espiralamentos de fumo, em volta do gás ardendo num arquejo rouco e fazendo turbinar em cima os anteparos de porcelana, pendentes do estuque esfumaçado. Quando a vozearia baixava, sentia-se no bilhar ao lado o som do marfim chocando-se.
No pavimento de pedra lustroso, em xadrez preto e branco, onde raro serpeavam rastilhos de serradura, refletiam-se trechos dos grupos -- firmes, nítidos, perfeitos, com a calma fidelidade e a translucidez suave de um espelhamento de lago adormecido.
O barão escoldrinhou miudamente o estabelecimento todo. Eugénio não estava! Nem nos bilhares, nem no botequim. -- E se fosse à Paca?... Estava doido!... Mesmo que lá encontrasse o rapaz, que ganhava com isso?... Ele exasperava-se, não saía... tinha génio, era capaz de romper para sempre... Nada, o melhor seria esperar, sofrear-se, e mais tarde, a horas prováveis dele ter recolhido, ir então. -- Uma peça a cuja representação assistira na véspera, com a sua mulher, no Ginásio, era um original. Ficara de dar a crítica para a Gazeta. Como neste dia não houvera jornal, o artigo ia de molde para o dia seguinte. Encaminhou-se à redação -- Rua dos Mouros --, um pouco para fazer horas, um pouco para escrever a apreciação da peça.
Subiu com segurança a escada, que mergulhava inteira na sombra e sobre cujos degraus, glutinosos da imundície, cambados e gastos, os pés não faziam ruído, assentavam brando, escorregavam. Um longo corredor à direita, verdoengo, esmadrigado, húmido, as paredes dançando em tortuosidades de ébrio. Dois grandes retângulos de luz avermelhada listravam transversalmente o soalho e marinhavam té meia altura pela parede oposta. Eram: a porta da administração, um cacifo negro, empilhado de papel em rama, onde um sujeito calvo, bigode e pêra grisalhos, cachimbo de raiz -- tipo achacoso e duro de major reformado --, escrevinhava; depois a da tipografia, brasido imundo que vaporava um bafo de forno humano, nauseativo e cálido, e em cuja atmosfera grossa, rubra, asfixiante, homens de blusa, com o olhar sofredor, pálidos, tressuando, tinham uma ginástica veloz e cabalística de dedos sobre os caixotins. Ao fundo a redação: pequena sala de teto de madeira apainelada, esconjuntado e baixo, a cola da velha pintura branca descamada e pendendo em estalactites que as moscas pontilhavam de uma renda escura, a modo de baldaquinos, graciosamente; o papel azul e branco das paredes despegado dos frisos, esfarfado, roto, zebrado de gotejamentos salitrosos, cortado de sulcos transversais pelas costas das cadeiras; de roda jornais espetados em ganchos; entre as duas janelas uma velha estante com brochuras; dois bicos de gás a arder nos extremos de uma simples vara de ferro, fazendo dois ângulos retos com o tubo que descia do teto, vertical; e ao centro uma comprida mesa de mogno, de uma cor promíscua de verniz e sebo.
Um sujeito ainda novo, ruivacento, lívido, escrevia à cabeceira, vertiginosamente, comendo bolos que, minuto a minuto, a sua mão esquerda, nodosa e fina, com um belo anel brasonado, tirava de um cartuchinho ao lado.
Um outro, de buço indeciso, franzino e sardento, cor de cera, encabeçava laboriosamente com duas linhas de prosa própria as notícias que ia cortando nas folhas da província. Um terceiro, de cotovelos finques na mesa, lia jornais, avelhentado, cabelo à escovinha, o perfil estirado no exagero do nariz pontiagudo e roxo.
O barão, alheado, entrou e sentou-se, mal murmurando um: vivam! -- impercetível.
-- Homem, fale à gente! -- interpelou amável, ao vê-lo, o homem dos doces, sem despegar de escrever. -- Que bicho lhe mordeu, ó barão?
-- Deixem-me... Não estou para os aturar! -- contestou o barão secamente, ajeitando na sua frente os linguados de papel.
-- Anda azeda essa coisa, outra vez? -- perguntou escarninho, piscando os olhos, o velho do nariz ornitológico.
-- É a hepatite do ócio -- explicou, sorrindo, e enquanto comia um queijinho de ovos, o colega do anel.
O barão vincou o sobrolho, sem responder.
-- Vais fazer Crónica dos Bastidores -- tomou o rasurado. -- Que tal é o Foragido !
E o barão com um grande desdém, alongando os lábios:
-- Borracheira!
O diálogo caiu. Aquecia. O ar pesado, deletério, impregnava-se de um cheiro espesso ao gás e a tintas gordas; tinha esta quietação relentada e mole que a falta de renovação e de asseio determinam. Ouvia-se distintamente a pressão rumorosa do gás nos extremos da vara de ferro, o arranhar das penas no papel, e, mais longe, o enfileirar do tipo nos granéis. Havia ocasiões em que no andar de cima estrondeava, abalando o teto, uma tropeada de crianças.
Então uma chuva de caliças inundava a mesa, como granizo. E logo o do anel resmoneava: -- Emporcalham-me o doce estes diabretes! -- Um ratinho tinha avançado de um vão de janela, primeiro cauto, manhoso, circunvagando num receio os olhitos de azeviche; depois mais seguro, em saltos rápidos, guloso; e roía agora as migalhas dos bolos junto à mesa, pausadamente, delicadamente, com a familiaridade e o abandono de quem se vê entre amigos, um leve arrepio voluptuoso a encrespar-lhe de onde a onde o pêlo aveludado.
O barão escrevia, escrevia... Mas toldava-lhe o cérebro a obsessão dos sentidos. Afogado na sua obstinação lasciva, o pensamento recusava-se a formular juízos que a ela se não reportassem justos, a expressão falhava à plasticidade das ideias que se lhe debatiam no cérebro, à procura de uma forma, confusamente. A letra, de ordinário, na febre da improvisação, rasgada e direita, saía-lhe garatujada, desigual, torcida. A pena emperrava no papel. As entrelinhas e as emendas multiplicavam-se. Escrevia devagar, com um esforço e uma dificuldade inusitada. Não lhe acudiam os termos. O seu grande poder habitual de concretizar, de vestir qualquer assunto com rapidez e propriedade, num estilo corrido, elegante, largo, atraiçoava-o.
O colega da cabeceira, que lhe conhecia a espontaneidade e o via a escrever há tanto tempo, disse-lhe:
-- Ó barão, não se alargue. Há hoje uma correspondência enorme, de Setúbal.
Ao que o barão:
-- Hoje não vou para longe, descanse.
Entrou neste momento um homem de figura insinuante e luminosa -- estatura mediana; ombros largos; grandes olhos castanhos faulando na sombra dumas pálpebras vibráteis, repregadas como asas, longas; o chapéu para a nuca; a face desta cor macerada e nobre que é feita da consumpção mordente das vigílias, e forma o prestígio e o encanto dos homens de talento; um cigarro pendente do lábio irónico e frio; o alongamento da barba acusando a fibra da tenacidade; uma farripa do cabelo corredio perdida sobre a testa poderosa, escantoada. Vestia com desalinho: jaquetão largo, cinzento, de uma casimira barata; colete e calça da mesma, com a camisa a sair de permeio; a gravata num simples nó pelo peito abaixo, estiraçada; o calçado grosso, ruço, orografado de engelhas.
Apenas o viu, exclamou, esmoendo o último bolo, o jornalista que ocupava o topo da mesa:
-- Ó «Mata-Gatos»! Hoje tão tarde!... Já supunha que não vinhas... Tenho estado a fazer o «fundo». Ouve lá!
E leu, nasalando as vogais, sibilando os «ss», oito linguados de prosa furibunda, toda opada de retórica soando oco, toda vazada nos moldes de um facciosismo declamatório, pueril e vazio, a qual terminava assim:
Continuaremos. Não nos quebrarão complacências, nem nos entibiarão ameaças.
Havemos de apontar com dedo vingador a senda de torpezas trilhada por esses seis homens que estão desacreditando e arrumando desvergonhadamente o País. Havemos de crucificar bem alto nas gemónias da execração pública a gerência, toda corrupção e desperdício, desse Governo nefasto e cínico que infelizmente nos rege!
Ao cabo, cheio de si:
-- Que tal?
Mata-Gatos, que se tinha sentado de esguelha sobre a mesa, um pé pousado no chão e o outro oscilando como um pêndulo no extremo da perna livre, comentou sacudindo a cinza do cigarro:
-- Um pouco dicionário do João Félix. O mais está bem.
Depois, chegando-se ao noticiarista:
-- Então, muito que respigar hoje?
-- Curioso: -- Uma senhora em Lamego que, tendo o marido doente de cama, pegou fogo à casa.
-- Ponha de epígrafe -- Experiência culinária. E, a seguir à notícia: «Este Vatel de saias quis ver se marido assado seria melhor que leitão.» Veio um aprendiz pedir original. Um mocito imberbe e cor de leite, de cabelo dourado e grandes olhos femininos, que por empenho do barão tinha sido empregado ali. Enquanto a criança, acanhada e boçal, colhia das diferentes mãos as tiras de papel escritas, o barão cobria-o com o olhar voluptuosamente. Depois, no fim de todos, passou-lhe também a Crónica, olhando-o sempre e tocando-lhe os dedos escabrosos, negros, lixados de tinta.
Quando o aprendiz saía, cruzou com ele um rapaz alto e magríssimo, garridamente vestido, chapéu de seda, monóculo, seu plastrão de linho cor de palha mosqueado, sobrecasaca azul-ferrete de diagonal inglês, muito cerce -- no perfil o que quer que fosse de apreensor e adunco, e a pele do rosto modelando a anatomia do crânio, áspera, seca, vincada de contractilidades súbitas. Era um literato incipiente e ousado, um fantasista de sensibilidade extrema, um temperamento subtilíssimo de artista, cujo estilo nervoso e petulante estava fazendo sensação.
-- Traz-me a prova do folhetim -- ordenou para o aprendiz.
E passou a apertar a mão aos colegas.
O barão disse-lhe:
-- Olha, senta-te aqui, que eu vou-me embora.
-- Já?
-- Tomo a passar mal; sinto-me incomodado.
-- Azias de quem é rico... -- arriscou invejoso o velhote ornitorrinco.
E, zombeteiro, Mata-Gatos:
-- Noz vómica, meu caro.
-- Foi tempo, em que sabias disso -- remoqueou duro o barão. -- Hoje não era eu que te passava receita nenhuma para aviares.
Tomou a bengala e as luvas, soltou um: vivam! -- tão forçado e impercetível como o da entrada, e enfiou pelo corredor, enquanto o nervoso folhetinista lhe dizia nas costas:
-- Vai minado de luxúria, o maldito! Lembra-me um bode castrado...
Deixem-no, tenham dó dele.
A porta da rua, o barão encontrou o diretor da Gazeta, bonacheirão e afável, um grande ar protetor no lábio grosso e redondo.
-- Adeus, barão... Não há quem o veja!... Que tem feito?
-- Nada, a bem dizer... Nem sempre posso... Lá fica artigo sobre o Foragido.
-- E então?
-- Borracheira! -- sintetizou desdenhoso, despedindo-se.
Num relance alcançou a Rua da Rosa.
Eugénio ainda não tinha entrado. O barão, depois de ter percorrido a casa, de candeeiro em punho, numa obstinação de exaspero: primeiro a saleta, onde havia agora uma cómoda de mogno, calçado pelo chão, roupa arrastando sobre cadeiras; depois a sala, a alcova, ao cabo do corredor a sala de jantar, a cozinha, a alcova anexa, e até o cubículo dos despejos; voltou à sala da frente, poisou o candeeiro sobre a mesinha de pé-de-galo e deixou-se cair no canapé, devorado de ansiedade, quebrado, inerte, as mãos cruzadas sobre o ventre, as pernas estendidas com os pés de calcanhar na esteira, firmes ao alto, a cabeça ajustando no círculo de gorduragem que manchava a parede.
-- Onde estaria, a tais desoras, aquele demónio?... Meia-noite... eram bem horas de recolher. -- E que não pensavam senão na estroinice estes rapazes de agora! -- comentava, com um ar paternal de reprimenda a mascarar-lhe, nas profundezas do ânimo hipócrita, a veemência do desejo.
-- Patuscadas, mulheres, jogatina... e ele a dar para tudo isto! E pago, ainda em cima, com a mais negra ingratidão!... Pois não era uma ingratidão, uma vileza sem nome aquele desprezo que o seu querido Eugénio agora lhe votava, ausente sempre, às mais desencontradas horas, noite e dia, sem a menor atenção de desculpa para com ele, sem a mínima lembrança das entrevistas combinadas, sem uma única frase, uma ação, um gesto de carinho compensador, de amorável solicitação de escusa!... Escusa?... Qual! Pelo contrário, à mais tímida, à mais ligeira admoestação, levantava-se logo com o santo e com a esmola aquele brejeiro!
Ergueu-se e começou a passear, agitadamente. -- Era um pedaço-de-asno, um lamecha tonto e ridículo, um parvajola, um lesma. Porque não havia de mandar o rapaz ao diabo e substituí-lo por outro, como já tanta vez fizera?... Era o tempo... E então que por essas praças enxameava tanto onde remontar e bem! -- Mas, de repente, a sua paixão por Eugénio a amolecer-lhe a cólera com justificações especiosas: Ele, afinal, o rapaz não podia agora adivinhar...
Talvez que tivesse passado sempre em casa, deitadinho ali, muito sossegado, as noites anteriores... e logo naquela, por uma arrelia de azar, é que lhe havia de dar em demorar-se!... Ele barão não lhe tinha deixado recado que vinha. O rapaz não adivinhava. Uma ou outra escapada naquelas idades, que muito era? -- E a alma do barão, um momento assombreada no receio da separação do efebo, e que estas mansas ponderações tranquilizaram, aí desatou a convulsivar novamente, com toda a rubra expansão da sua diátese, em vortilhões de uma impetuosidade sórdida, em fúrias de uma violência corrosiva e faminta.
No avermelhamento crepuscular que o petróleo do candeeiro derramava em volta, coado pelo pára-luz de louça branca, o atormentado vulto de D. Sebastião movia-se sinistro e longo como um espectro -- o olhar em brasa, dançantes os braços, a boca monologando, e os dedos compridos e nodosos acolchetando o vácuo em ânsias de náufrago, emaciados, trémulos.
-- Não acabava de chegar o maldito! -- E os passeios alongavam-se agora da sala, pelo corredor adiante, té ao extremo da casa de jantar, a qual já se não envergonhava da nudez doutro tempo. Muito bem guarnecida. Tremeluziam na sombra facetamentos de cristais, opalinidades de louças, golpeaduras metálicas de luz; esboçavam-se formas de uma mobília elegante de nogueira, filetada a preto; fosforejavam pelos vidros dos quadros e pelas portas do guarda-louça espelhamentos vagos. As paredes tinham sido forradas de um papel caro, em relevo, como se não encontrava àquele tempo em nenhuma outra casa de Lisboa, a não ser, Largo de S. Cristóvão, no escritório do barão; mandara-o vir expressamente; era de fabricação austríaca e imitava couro lavrado. Na monótona escuridão em que mergulhava, a luz transmitida do corredor deixava ainda, num ou noutro reflexo macio, adivinhar-lhe a rara excelência. Ao fundo, no triângulo fechado pelas cortinas e os parapeitos das janelas, vinha do exterior uma claridade. Era um trecho de céu veludoso e distante, picado de furozinhos cintilantes abrindo para o infinito. O seu azul misterioso e límpido vinha descendo, descendo e aclarando sucessivamente, desde um grosso tom ferrete, a morrer numa diafaneidade algodoada e fresca, ligeira como a gaze, vaporosa, flutuante, a fugir longe pelo espaço. À esquerda, barrando cruamente de sépia esta aguada imensa de safira, saía a curva dos montes da Outra Banda, gebando como um cetáceo da água metalizada, gorda, adormecida, em cuja pacificação absoluta as luzitas do cais, numa extensa fiada, mergulhavam prolongando-se esbatidamente. A direita, o anfiteatro atropelado e negro da cidade, clareando para a base, a grande linha terminal riscada com uma firmeza de «água-forte», o ventre brossado de claridades indecisas, de borrões impenetráveis, e todo cravado de fulgurações vermelhas.
Preso na grandiosidade fascinante do panorama, o barão encostou-se a uma janela, a olhar... Um grande astro redondo luzia em cima, como num escrínio um solitário... Lembraram-lhe as lindas vistas de noite do seu diorama de cartão, em pequenino: umas, limpas, claras, profusamente estreladas, frias, de uma transparência sideral imaculada e transida, a reverberar deslumbramentos doces nas camarinhas de neve acolchoando os telhados, pingentes dos arvoredos, ou espumaçando, como num bock, sobre a caliça em farrapos de algum moinho abandonado: outras, caliginosas, goyarescas, fulvas, o ar convulsionado, a paisagem torcida, o fundo arriçado por vagos perfis de castelos trágicos, na escuridão sinistra só coruscando as janelas, como brasas, da febre de uma orgia... Tinha também a esse tempo uma capela com a sua tribuna de folha dourada, jarritas de Saxe para flores, frontal de damasco vermelho, toalha de renda, cálix e banqueta de chumbo, lilipucinos, filiformes, luzentes, como prata. E todos os paramentos para o cálix: pequeninos véus em tafetá de seda -- brancos, encarnados, verdes, roxos e pretos --, para usar conforme as efemérides; corporais minúsculos de linho; e as respetivas bolsas, forradas a damasco das mesmas cinco cores. Dizia missa com toda a compostura, aos ombros um xailezinho qualquer da mãe, a iluminação feita de pavio em rolo, cortado, e por missal uma velha edição da Corte na Aldeia, brochada em pergaminho, da livraria. Em dias de festa, acendia um coto de vela dentro da sua bela catedral de gesso, baldaquinada, cor de açúcar a grande cúpula rendada de furos, as portas e as janelas com vidros corados, e que transluzia na penumbra religiosa do quarto uma bela cor suave e dourada, como uma auréola... A porção de religiosidade, subjacente pelo atavismo na sua consciência anestesiada e mole, faulou então, comovidamente, e afestoou-lhe a alma de inspirações graves e piedosas, de pensamentos cândidos -- como uma grinalda de anémonas, lilases e rosas silvestres coifando um nicho tosco de aldeia. A amnésia da sua infância, amassada através as escabrosidades da vida, eliminou-se; e os nervos, deliquescendo, trouxeram-lhe a evocação do tempo em que ele era ignorante e risonho, ingénuo, simples... -- Quem pudera retroceder!... Era bom ter fé, entusiasmo, crenças; era bom abater, prostrar a nossa contingência miserável perante a divina suserania do Impecável Arquiteto, do Ente Supremo e Necessário. Crer era vencer. Um dogma era um escudo. Fora, mais que a sofreguidão do Desconhecido, uma sorte de histeria mística, de solicitação ao martírio, de culto, de votação incondicional à Divindade, que levara os velhos portugueses de roldão por aquela barra fora, num prodígio de arremetida que faz o assombro da História, confiados a frágeis barcaças, batidos de inclemências, arranhados de incertezas, devastados de terrores, gloriosos de épicas aventuras, a cadastrar o Oceano, a açambarcar o mundo, a firmar o nosso domínio, lá bem longe, nos países dourados que a Cruz do Sol protege, muitos milhares de léguas de mar transpostas -- oh! esse mar iracundo e tenebroso a cuja caprichosa imensidade nunca os avoengos de D. Sebastião tinham ousado confiar-se.
Mas outros, mais corajosos, tinham ido... Um mundo novo surgira para a Europa, assombrada, reconhecida. O Catolicismo transpôs a linha. Ia a cruz no punho das espadas. Os novos povos descobertos não eram tanto súbditos agrilhoados para o rei de Portugal, como almas ganhas para o representante de Deus na terra. Das primícias magníficas do Oriente mandava-se o melhor ao sucessor de S. Pedro. No regaço de Leão X jorraram esmagadoras, infinitas, incontáveis riquezas... -- Então, aos olhos desvairados do barão, o anfiteatro monstruoso da cidade pareceu como um tesouro de incalculáveis maravilhas, acogulado numa grande salva de lápis-lazúli -- o Tejo. Esperavam-se os palafréns, os tigres, as onças, os elefantes que o tinham de transportar... As tortuosidades das ruas, as angulações dos prédios, as agulhas das torres, as manchas do arvoredo carvoavam na sombra, confusamente, desmarcadamente, porcelanas exóticas, jarrões de metais preciosos, vasos de cobre batido com incrustações de platina, prata e diamantes, caçoilas de turíbulos, patenas de ouro, arcas de sândalo, croças de báculos, relicários joalhados, casulas, dalmáticas, asperges de torçal, pregas e florões de tapeçarias. Onde a onde, uma cornija estreita, longa, de palácio emergia dos telhados, branca e floreteada como um dente de marfim, torturadamente insculpido. Havia recortes de escaiolas que pareciam corais; faróis de tabernas que lembravam carbúnculos. Extensas fieiras de lumes enrodilhavam-se, como rosários de pedrarias.
E, sobre o monte, uma mitra -- o zimbório da Estrela, pontiagudo, airoso, a sua grande cruz muito negra no azul-hortênsia do céu.
O barão pensou: -- Que valhacouto impudente de devassidão a Roma da Renascença! Que antro de infâmias douradas o Vaticano! A enervação, a fadiga faziam-lhe escabujar agora na fantasia a pompa esbagachada e homérica de um festim de cardeais.
Era ao fundo de um vasto jardim umbroso e inextricável, todo bordado de grutas, maciços de buxo, caramanchões, labirintos; milhares de balões de cores suspensos da abóbada verde; e por entre as ramagens da murta e dos loureiros, faunos e sátiros de mármore, brejeiros, a espreitar. Um amplo salão abria-se, magnificente e clássico, todo nessa arte sensual e robusta que os primeiros cristãos tinham, por medo e por ignorância, condenado. O teto, horizontal, apainelado, apoiava-se em pilastras de pórfiro luzente, parecendo escorrer sangue, riscado de alto a baixo em coruscâncias lineares pela deslumbradora luz dos candelabros. Os capitéis eram de bronze dourado, com torsos de mulheres nuas rompendo dos acantos. Pelos frisos rebolavam-se entalhados, numa riqueza espadanante, apoplética de misulagens, escócias, volutas, óvulos, os mais francos erotismos, as mais depravadas combinações do deboche e da luxúria. Sobre pedestais de aventurina ardiam essências caras.
Nas almofadas, com arabescos a ouro, do teto e das paredes, admiravam-se, num poderoso relevo, em cores alarmantes, em carnaduras redondas, fortes, obras-primas de Giotto, Vinci, Fiezola, Perugino, Sanzio, Buonarotti. O peristilo da entrada era flanqueado por dois coretos, de balaustradas de malaquite apoiados em cariátides de alabastro, que se erguiam sobre socos de mármore negro filetado a prata. Na parede oposta via-se armado um trono sobre degraus de mármore. Cobre-o um dossel de veludo carmesim.
Tamboretes de ébano ladeiam-no.
Em toda a quadra reverberando, nos relevos, nos ornatos, nos panos de muro, nas estátuas, esta nitidez espelhada que é filha da opulência e aumenta o brilho das coisas.
Ao centro, sobre um fofo tapete negro onde os pés mergulham té ao artelho, em volta da mesa abarbada de iguarias, um grupo truanesco de cardeais ceava -- gordachões, luzidios, rubros, a frase descomposta, as púrpuras em desalinho. Tocara o acume a orgia. Restos de quanto há de mimoso, de refinado, de esquisitamente opíparo na arte da copa e da cozinha alastravam, bodegavam na toalha de trama de ouro, escorriam das compoteiras, lacrimavam nos cristais, lambuzavam a baixela riquíssima, alto- lavrada, de um lavor divino. Um cheiro nauseante, azedo, acumulava-se. No ar grosso e morno, de uma espessidão atordoante, crepitavam risadas, vaporavam crassidões de iguarias, subtilizações de licores, átomos de essências, exalações humanas.
Os convivas, de face enlagostada, emborrachados, pândegos, as coroas congestionadas reluzindo como as bochechas de um santo encarnado de fresco, traçavam as pernas uns sobre os outros, escorregavam para baixo da mesa, trocavam-se com as bocas pedaços dos manjares, beijocavam-se, davam-se pançadas. Alguns, macilentos, mãos na cabeça, vomitavam.
Romperam as fanfarras num alegro de marcha triunfal. Corre-se a cortina carmesim do peristilo...
O cortejo a desfilar.
Vem primeiro um grupo de bambinos adoráveis, guapos, angelicalmente formosos, adolescentes, vivos, a carne viçosa e loura numa nudez arrogante, apenas simples bandas de púrpura fustigando-lhes as coxas nervosas, delicadas. Marcham na mesma cadência todos, a quatro e quatro, com uma exatidão marcial a mesma perna simultaneamente avançada, entoando um velho ritmo pagão, espumoso e quente, o braço esquerdo enroscado na cinta do camarada ao lado, o direito erguendo um pequeno estandarte branco de cetim, com um phallus a matiz bordado. Avançam com entusiasmo, dolentes, requebrados, e ao tempo vão deslaçando as cinturas e postando-se em alas ao longo das paredes.
Seguem grupos de soberbas mulheres, coifadas à romana, rijas, aparatosas, grandes, o colo alto a descoberto; finíssimas túnicas de linho cingidas por um vime logo abaixo dos seios fartos, arrojados, tesos, e caindo coladas aos largos membros brancos; açafates com flores sobre o quadril, no ângulo dos braços roliços, ornados de argolas de ouro e calcedónia. Estas sobem aos tamboretes que ladeiam o trono, também cantando.
Vêm depois uns sujeitos ferozes e barbaçudos, de elmo, couraça, alabarda e espada, borzeguins de búfalo e calções em golpeaduras, bariolados -- espécie de guarda pretoriana, movendo-se de uma só peça, talhados em bronze, carrancudos, hirtos. Avançam a meio da sala, meia volta, e postam-se aos lados do peristilo, sob os coretos, aflorando o alabastro das cariátides com o ferro das alabardas.
E desponta um pelotão sinistro de graves magistrados, solenes, cadavéricos; tufos nas mangas das becas amplamente refegadas, fúnebres; sobre as cabeleiras em rolos, brancas, uns capelos enormes, piramidais, como barretinas. perante os olhos apagados destes integérrimos senhores, óculos de ouro fazem as vezes da venda aplicada pela tradição aos olhos da justiça.
Lá vem a pena sobre a orelha, e grossos rolos de pergaminho entre as mãos trémulas, gotosas. Enfileiram-se, como cabe à sua conspícua jerarquia, aos lados do trono, em baixo, sobre o último degrau.
Uma troça de bacantes lhes cabriola na cauda, endiabradas, loucas, de epiderme tostada e olhos ardentes, recrutadas nos verde-negros pomares da Andaluzia. Os cabelos, de uma abundância inverosímil e de um negro retinto inultrapassável, em que vermiculejam fosforescências, desparzem-se entressachados de cachos e parras viridentes, cobrem-lhes as espinhas, batem- lhes os flancos, onde iam em nuvens bastas e untuosas. A alegria delirante vem com elas. Agitam castanhetas, pandeiros, e dançam uns fandangos paroxísmicos, ao mesmo tempo cariciosos e bruscos, doces e violentos, de uma petulância estonteadora, de uma graça paradisíaca -- o tronco e o ventre atormentados em contorções felinas, e os membros estrangulados num estofo recamado de cascavéis de ouro, platina e pérolas, coleando, faiscando no espaço como cobras.
Logo após, entra na sala um estrado franjado de ouro -- como um andor --, aos ombros de oito negros atarracados, oleosos, crespos, os olhos brilhantes como punhais.
Em cima, morbidamente reclinado sobre um farto pano de veludo negro com reflexos fulvos, vem um efebo, nu, de forma impecável, de carne deslumbrante, assombrosamente perfeito, sedutoramente belo. Prende-lhe no ombro direito um pequeno manto de púrpura, recamado de ouro; a cabeça toucada de louros; a mão esquerda empunhando um tirso de cristal.
E um amorzinho pairando ao lado, a velar-lhe o rosto com uma gaze cor- de-rosa...
A entrada do andor, os cardeais levantam-se todos, com dificuldade, numa lassidão cambaleante, e empunham e erguem para um brinde e fazem tinir uns contra os outros os cálices sagrados, transbordando de topázio líquido. Neste simultâneo agitar dos preciosos vasos de ouro, a gemas constelados, uma como rutilação de sol flamejou no recinto, enquanto um tilintido límpido soou, abafado num largo: -- Evoé! -- avinhado, rouco, vibrando com esforço pelo ar intoxicado e cálido.
Pousara-se o estrado. O efebo subiu ao trono e plantou-se em pé sobre o último degrau, numa atitude cheia de elegância e majestade, o tronco aprumado, as pernas afastadas levemente, caído o braço direito, e o esquerdo erguido, apoiando alto no tirso, com o pequeno manto arrepanhado do ombro, suspenso em pregas, como no Apoio do belvedere, e uma olímpica e fria serenidade ressumando do corpo harmonioso.
As mulheres de túnicas de linho atiravam-lhe flores. Dobraram o canto os coros. E o amorzinho pairando ao lado, a velar-lhe o rosto com a gaze cor-de- rosa.
Então os cardeais começaram nas suas reverências. Cada um subia, de genuflexão em genuflexão, os degraus do trono; aí curvava-se todo, de posterior ao alto, as mãos em cruz sobre o peito; depunha um beijo religioso, breve, na virilidade tranquila do efebo; e retirava da mesma sorte, genufletindo em cada degrau, curvado-, às arrecuas.
O barão seguia, gozava a lúbrica cerimónia com uma intensa agudeza, paredes-meias da loucura. Inflamava-o aquele exótico espetáculo, filho do seu espírito doente, aquela orgia teatral e majestática, onde príncipes magnos da Igreja prestavam culto, sensualizados, bêbados, ao eterno princípio fecundante, numa luz fumarenta, num ar deletério, aos hinos clamorosos das fanfarras, aos cânticos das matronas e dos bambinos, entre o chuveiro das flores e as danças bárbaras das bacantes, agora complicadas por pantominas facetas dos sátiros do jardim, que tinham vindo, com uma elasticidade admirável no seu mármore, e pinchavam, esfuziavam, rebolavam-se, apitavam nas frautas, erguiam-se a prumo sobre os cornos, davam saltos mortais sobre os rins cardinalícios.
Queria o barão também... ia incorporar-se na cauda do cortejo... De repente, no mais aceso da alucinação, o amor deixa cair a gaze, escarninho.
Vê-se o rosto ao efebo... Era Eugénio!... E o pederasta rugiu: -- Ah, canalha!... -- com os longos dedos emaciados crispantes de ameaça.
Aquele brado angustioso normalizou-lhe o cérebro. O barão apalpou-se, esfregou os olhos pávidos, interrogou-se, olhou em torno. Logo, sorriu de si mesmo. Rodou para a sala da frente. Ao passar no corredor, ouve barulho na escada. O coração alvorota-se-lhe. -- Seria ele?!...
Vozes no primeiro andar:
-- Adeus, filho, quando voltas?
-- Vamos a ver.
O ligeiro chupar de um beijo, um bater de cancela, e novamente o silêncio.
Desapontado, triste, veio D. Sebastião sentar-se à mesinha de pé-de-galo.
Porção de cartões arrastava em cima, com a figura nua de Eugénio desenhada -- a carvão, a lápis, a gouache, a aguarela, à pena -- e isto num sem-número de posições diferentes: de pé, sentado, deitado, em atitudes froixas de abandono, em poses violentas de academia, orografado o corpo em nobres, viris musculaturas. Nenhum dos desenhos estava acabado. Nuns, quase completos, admirava-se a parecença flagrante do rosto, a escrupulosa exatidão das carnes palpitantes, e apenas um braço, só indicado por dois traços, vazio, branco, na harmonia do conjunto claudicava; noutros, menos felizes, faltava a transparência, havia rasuras, emendas, tintas sobrepostas; outros eram simples, largos esboços, impressões de um momento, firme o traço, mas angulosos, toscos.
O barão agora, por efeito desta regressão cansada ao repouso que segue de perto as emoções torturantes, sentou-se, tirou o relógio da cadeia, muito sossegado, e colocou-o oblíquo, aberto, sobre a mesa, contra o pé do candeeiro. Depois deitou água num diluidor de porcelana com tintas, tomou um pincel e pôs-se a afinar, a retocar um dos retratos de Eugénio. Enquanto isto fazia, enquanto a mão ia com amor esbatendo uma sombra, fixando um contorno, mordendo um refego, uma prega, o seu espírito, calmo, despreocupado, num alheamento inteiro do motivo que o retinha àquela hora ali, comentava, analisava, passava agora em revista friamente a economia íntima da sua vida. -- Precisava ocupar-se um pouco mais da Elvirita... Ela, coitada, era-lhe dedicada, não lhe faltava com coisa nenhuma... Cabecita leve um pouco, sim... por culpa dele! Não a distraía... não fazia por lhe prender a alma, por lhe povoar o coração... Sozinha, sem filhos... Nada, ia dar agora em muito caseiro, miminhos, presentinhos, festas... Um marido exemplar!... Mesmo era tempo de entrar de vez, com decência, na vida literária. Tinha jeito e vocação. Teixeira de Vasconcelos animara-o, quando foi do último folhetim.
-- Na crítica podia ir longe -- tinha-lhe vaticinado, via-se que convencido, com a maior franqueza. Era preceiso fazer barulho. O seu grande romance sacro, a sua galeria de perfis célebres estavam planeados. Toca de dar-lhes forma! Já não era criança. Para quando diabo se guardava?... -- E, acompanhando de um gesto sacudido o pensamento, largou o pincel e arremessou o cartão, que foi cair longe, sobre o divã verde.
Mas logo, seguindo a mesma ordem de ideias, e corrigindo um esquisso a carvão, magnífico, do amante: -- Em Lisboa não se podia... Tanta distração, tanta maçada, tanto tempo perdido! Campo, campo... Porque não havia de refugiar-se em Lavos?... Tão boa casa!... Era o melhor. Arranjar aquela febre de produção em que falam os Goncourt, e depois encerrar-se ali, semanas, a escrever, a escrever... sem pensar em mais nada, dilatando, refrescando a fantasia na contemplação das suas marinhas imensas da Murraceira, luminosas, frescas, sugestivas... Mesmo as propriedades andavam-lhe um tanto ao desbarato. Roubavam-no os caseiros; precisava ir ver aquilo.
Então, erguendo-se, preso numa contrariedade, o polegar nos lábios, perplexo: -- Deixar Lisboa? Deixar Eugénio?... -- A cabeça abanou negativamente, e o miserável caiu na cadeira, descoroçoado, incapaz de repulsar a fatalidade do seu vício.
Pousaram os olhos no mostrador do relógio. -- Duas horas... Já não vinha o «estupor»!... -- Senhoreara-o novamente a excitação voluptuosa. Ergueu-se de ímpeto e voltou a passear, agitado, fulo, numa opressão de exaspero, o coração nas fontes, as extremidades frias. Depois, num grosso resfolgar de raiva, prendeu o relógio à cadeia, acendeu o rolo, apagou o candeeiro e saiu.
Começou descendo a rua na intenção de seguir direito, rápido para casa.
Mas a última esperança ainda o não tinha deixado. -- Podia às vezes acontecer, por não esperar mais um minuto... -- Assim o passo foi afrouxando na rua deserta e sombria. A primeira travessa, voltou, tomou a Rua da Atalaia e retrocedeu por ela acima até ir desembocar novamente à Rua da Rosa, bastante longe da altura onde tinha a casa. Procurou-a sôfrego, no mesmo instante, com um olhar de lince agudo da ansiedade ardente que o consumia. Lá a descortinou em cima, indecisa, no intervalo de dois lampiões.
Ao tempo um vulto passou, que pareceu entrar nela... O barão correu para em frente. Se fosse Eugénio, as portas da sacada tinham ficado abertas... havia de aparecer luz! -- Esperou... esperou... A mesma escuridão permaneceu, implacável.
Ele então tomou a afastar-se, desesperado, trépido de angústia, com um peso na espinha, vagamente doloroso. Mas, ao chegar à Rua da Atalaia, de novo voltou para cima. Queria arrancar-se daquele círculo infernal e não tinha coragem, não podia! A tirania do sangue fê-lo rodar convulso, dezenas de vezes, naquele trecho imundo do Bairro Alto. Dezenas de vezes ele percorreu aquele circuito, obstinadamente, com uma tenacidade de náufrago, enjaulado no seu desejo como numa gaiola uma fera. Por fim cansou. A excitação, abrandando, consentiu-lhe raciocinar: -- Que demónio de estúpida teima era aquela?!... Pois não podia estar com ele no dia seguinte, logo, dali a poucas horas?... Que mais fazia? Ou já não seria capaz de se vencer?... Tolice sem nome!... Nem que não tivesse senão aquela maldita noite para amar o diabo do rapaz! -- E foi descendo ao Rossio, vagaroso, perro, interrogando sempre maquinalmente com os olhos as pessoas que encontrava.
Aquela hora era quase nulo o movimento nesta porção mal afamada e lôbrega da cidade. Janelas, portas de lojas escancaradas, com lençóis passados em ar de cortinas, através dos quais uma luz do interior vinha, e mulheres de cuia e chambre branco deitadas no parapeito, a dormir, sobre almofadas de paninho vermelho. Dois fadistas amparando-se a mútua bebedeira. Rara taberna aberta. Algum lamento apagado de guitarra.
O barão, assim como se afastava do seu ninho de luxúria, ia acalmando. -- Que noite de loucura!... Se viria a endoidecer deveras!... Tinha medo, abominava-se. Desconhecia-se.
Nestas disposições chegou à porta de casa. Fumegavam-lhe os pés; ourava- se-lhe a cabeça, extenuava. Precisava descansar, dormir... Súbito -- ia a meter o trinque na fechadura --, hesita, acode-lhe ao cerebelo uma onda escandecente... Guardou a chave, voltou costas e repelou via para a Baixa, num passo estugado, desigual, incerto. E correu a esquadrinhar os recessos das ruas, os desvãos das portas, a sombra paludosa dos becos, as quinas dos sumidouros -- abrasado, exasperado, inquieto, como um lobo faminto.
Afinal, debaixo do Arco do Bandeira, deu com um garoto esfarrapado e torpe, e nele foi cevar ignobilmente, ao primeiro recanto imundo de viela, a bulimia sensual que o devorava.
Amanhecia.
CAPÍTULO VI
Na tarde desse dia, por volta da uma hora, Eugénio, que tinha acabado o seu almoço, acendeu um charuto, levantou-se da mesa e passou à sala da frente, a abrir uma das sacadas. O dia estava limpo, sereno, primaveralmente lúcido. Parecia novo em folha o sol; o céu era de esmalte. Apetecia ir fora de portas, pelos campos adiante, às papoilas, os pulmões banhados de ar fresco, os pés enterrados na verdura. Um vendilhão subia a rua com um burro pela arreata, carregado de hortaliças; de minuto a minuto soltando o seu pregão retumbante, cabeça levantada, olhos fechados e a mão posta contra a face, de anteparo ao ouvido, espalmada, enorme. Um surdo rolar de trens tremulejava.
A meio da rua, em baixo, dois galegos descarregavam trastes velhos da padiola para dentro do bric-à-brac.
Eugénio recebia em cheio a luz do rosto, consoladamente, neste vagar, neste descanso voluptuoso de quem não tem cuidados. Vizinhas anémicas olhavam-no gulosas, implorantes. Ele, sem as ver, distraidamente, deixou a varanda, lançou um olhar de relance à sua pessoa diante do espelho do toucador, chegou-se à mesinha de pé-de-galo e tomou ao acaso um dos desenhos, que se pôs a examinar, para matar o tempo, com uma atenção vaga e indiferente, com uma indolência feliz.
Ringe uma chave na porta de entrada. Era o barão que entrava, e que interpelou logo, entre repreensivo e meigo:
-- Isto tem algum jeito, «seu» vadio?
-- O quê? -- perguntou Eugénio, sem desfitar dos desenhos, seco, num desdém altivo.
-- Toda a noite aqui à sua espera, desde a meia-noite até às três da manhã!
-- Quem o mandou?
-- Ainda em cima!? -- reprimendou o barão, arregalando os olhos, com dureza.
-- Pois decerto. Alguém obrigou-o? -- disse Eugénio, deixando cair o cartão e encarando o interlocutor em ar de desafio.
-- Tu não estás bom! -- cresceu o barão, mais áspero. Foi cerrar a vidraça, e prosseguiu: -- Ouviste, Eugénio?... Toma bem sentido!... Isto assim não pode continuar... Fazes tanto caso de mim como de um cão! Que eu venha ou que não venha, que me desgoste, que me desespere, é para ti a mesma coisa! -- Eugénio passeava. -- Estou farto deste inferno! Ou adotas outro modo de vida, ou então...
E Eugénio à vidraça, olhando para fora:
-- Tanto se me dá como se me deu.
-- Sim!? -- explodiu o barão, colérico. -- Pois sei muito bem o que hei de fazer... Estou até aqui! -- e indicava a garganta. Agora era ele que passeava, raivoso, macilento. --Vou deixar de ser tolo... Eu é que pago, e que me hei de contrariar!... sempre, sempre, a todo o instante!... Nada, isto precisa um termo.
Sei o que hei de fazer.
-- À vontade.
Esta agressiva, provocante arrogância de Eugénio fez parar o barão, que, arrependido, forcejando por se conter, sentou-se no canapé e disse, conciliador, macio:
-- Onde passaste a noite?
Mas o efebo, teimoso na insolência:
-- «Bonda» que o saiba eu.
-- Toma conta, Eugénio... Olha que a paciência tem limites e esta casa é minha.
-- Pois goze-a à vontade. «Num» lha cobiço! -- recalcitrou Eugénio. E, tomando o chapéu e as luvas, encaminhou-se para a porta.
Cortou-lhe o passo o barão, num pulo, filando-lhe os ombros, alanceado, cor de lacre.
-- Para onde vais!?... Ofereceram-te casa noutra parte?
-- Talvez...
-- Proposta de algum frascário com mais dinheiro do que eu?...
-- Tal qual!
O barão, fulminado, sucumbido a uma vertigem, congestionado de aflição, de terror, de angústia, caiu de joelhos diante de Eugénio, e segurando-o pelo colete, colando-lhe os braços aos quadris, afagando-lhe com as mãos a cinta, prorrompeu nesta litania abjeta:
-- Eugénio, por quem és!... Filho, não me deixes! Não saias daqui!... Embora já me não estimes, dado que embirres mesmo comigo... peço-te por compaixão! Fica, não te vás!... Tenho a certeza de que não poderia viver sem ti. Se me deixas, matas-me... Por piedade, fica!... Não sejas ingrato... Bem sabes como eu te quero!... Dou-te tudo, faço tudo o que tu quiseres! -- E, encostando-lhe a cabeça aos joelhos, num desmaio implorador, enternecido:
-- «Vosmecê», seu mau, já não é meu amiguinho... Que mal lhe fiz?... diga lá. Tenha dó do seu velhinho! -- Depois, erguendo a cabeça, carinhoso, persuadente: --Não me deixas, não?...
O rapaz, que suportara esta cena penosamente, baforando para a rosácea do teto espirais de fumo, com um sorriso crispado, pousou as mãos na cabeça do amante, e fitando-o nos olhos, com um sorriso especial, amorosamente, insinuou:
-- Quando vamos a Sintra?
-- Quando quiseres -- anuiu logo o barão, erguendo-se, com um riso triunfante.
-- O senhor sabe que eu ando morto por lá ir -- lamuriou Eugénio, com beicinho mimalheiro --, e afinal... há uma eternidade sempre a prometer, a prometer... e nada de novo.
-- Pois vamos lá, meu amor, quando quiseres... -- murmurou D. Sebastião, beijocando a face penujosa do efebo.
-- Amanhã?
-- Seja amanhã... «Vosmecê» manda -- confirmou o barão, ridículo de ternura.
-- Que bela reinação! -- exclamava agora Eugénio, sinceramente alegre, leve do alvoroço, esfregando as mãos, abanando a sala aos pulos sacudidos.
Abriu a vidraça, deitou fora o charuto, inspirou com delícia o ar fresco e penetrante. -- Que grande patuscada! -- E de repente, parando a meio da casa e levando a mão à cabeça, num gesto de perplexidade muito bem estudado, numa como lembrança de coisa cuja proposição o embaraçava, doce, muito humilde, aventurou: -- Ah! mas eu tinha um favor a pedir ao senhor barão...
-- Que é?
-- Queria levar a Ester.
-- Quem diabo...!?
-- Uma judia muito «catita», de casa da Paca!... E de uma cana! Tem um corpo que é uma beleza. Há seis meses na vida e com uns seios de donzela!... E tão boa rapariga, tão minha amiga... Fico lá muitas noites... Como a noite passada... Queria-a levar.
-- Estás doido!?
-- Já lhe prometi...
-- Oh, filho... isso é o diabo!... Comigo... casado... que hão de dizer?
-- Que tem lá?... O senhor não vai só com ela: vai comigo. Ela é como se fosse minha amante, minha prima, minha irmã, minha tia... qualquer coisa... O que calhar. Assim não tem mal nenhum. -- E mocanqueiro, requebrado, anediando-lhe o bigode, dando-lhe nas costas palmadinhas promissoras: -- Então, dito, faz a vontade ao seu menino?
Depois de hesitar um instante, o barão:
-- Concedido... Amanhã, às seis da manhã, está-me no Rossio, esquina da Calçada do Duque. Lá vou com o trem.
-- Tão cedo!...
-- Então, bem vês... é para irmos almoçar cedo à Porcalhota e chegarmos a Sintra com tempo de gozar bem o dia e ver alguma coisa.
-- Tem razão... Com que, às seis, no Rossio... eu «mala» Ester.
-- Tu e a Ester.
-- Rico barãozinho da minha alma! -- exclamou o rapaz, num grosso abraço. -- És o rei dos homens! -- Iam descendo. -- Não és barão, és nata... Que grande patuscada!
Nos intervalos que a sua paixão lhe abria para a vida comum, amostrava-se o barão triste, macambúzio, inquieto, vagamente laborado de negras apreensões.
Com elas o seu pensamento aterrava-se, brusca, supersticiosamente. O temor de um incêndio, de um terremoto, de um desastre qualquer, enorme, convulsivante, acordava-o de noite em sobressalto muita vez. Ou caía despenhado num poço sem fundo; ou asfixiava num mar de lama; ou vinha rasgar-lhe o peito um monstro inarrável; ou estorcia-se na derradeira agonia... E abria então esgazeadamente os olhos, na luz topazina da lâmpada, o coração aos pulos, as mãos ardentes, nos ouvidos um tantã congestivo, e a voz estertorando nos gritos pávidos, incoerentes de um despertar aflito.
A voz da esposa, maternalmente protetora, caridosa, equilibrada, tranquilizava-o. Mas o seu hipocondrismo constante, o receio excessivo e contínuo de doenças fantasiadas, improváveis, tornava-lhe o humor irritável, mergulhava-o num desespero passivo, numa falta de resolução inânime, sombria. A mais insignificante desordem patológica bastava para lhe caliginar o espírito; a mais ligeira perturbação nas funções do seu melindroso estômago de dispéptico fazia-lhe ver tudo negro, entremostrava-lhe a morte, refugava-o para longas caminhadas solitárias nos squares excêntricos e desertos, nas azinhagas de fora de portas, na sinistra pacificação dos cemitérios.
Em casa, cada vez mais áspero, mais taciturno e raro. Embalde a baronesita, na medida do seu temperamento, se desatava em mimos, seduções, galanterias; embalde se aprimorava em povoar-lhe a casa de conforto, de regalos, de pequeninas surpresas adoráveis -- Deus sabe quão laboriosamente concertadas! Nada disto sentia, nada via o barão. Entrava e saía, desdenhoso, mudo, alheio a este malbaratado poemeto de ternura; e a pobre criança debatia-se num isolamento dessaborido, crepuscular, vizinho do desprezo. E como os filhos faltavam, o tédio vinha pousar-lhe no regaço, enquanto a alma se lhe espreguiçava e a cabecita, leve, inocupada, ia aventurando para a vida exterior inquirições perigosas.
Foi assim que nessa manhã em que tão alvoroçadamente havia aprazado a digressão a Sintra, mal o barão, na Patriarcal, se despediu de Eugénio, logo entrou de considerar, de arrepender-se, de descobrir fartos motivos de desgosto na diversão que, ainda menos de meia hora contada, de tão bom ânimo combinara. -- Que diabo de graça ia ter aquilo, no fim de contas?... O rapaz, com a amante atrelada, nenhum caso faria dele, era mais que certo...
Tinham de aproveitar todas as ocasiões, todos os pretextos, os mínimos incidentes -- Arcos das águas Livres, sinfonias verdes de uma quinta, uma boiada pastando, o choupal de uma ribeira, um moinho, uma nuvem --, para se tocarem, para se olharem, para mutuarem impressões, sorrisos, para se irem amando nas barbas dele, desaforadamente... Oh! Um ridículo sem igual... E ainda em cima, na intimidade, tinham depois fazer-lhe troça! Mas é que ele jamais se prestaria! Tolice de complacência!... Atirara-se para dentro de uma carruagem e mandara ir para os Prazeres. -- Seguramente, vou-lhes mandar dizer que amanhã não posso... Nem amanhã, nem nunca... Semelhante papel, nem que me queimem vivo! -- E daí a instantes, com uma pontinha de desejo, afinal, em ir: -- Pois eles não terão comigo um bocado de delicadeza?... Sobra-lhes tanto tempo para se amarem, longe da minha vista... -- Esta consideração morde-o de ciúme:
-- Birra de azar!... Ia tão bem só com ele!... Mas há de vir sempre um demónio de um empecilho, como agora essa «pindonga», envenenar todos os meus prazeres, ainda os mais inocentes, ainda os mais simples.
E nesta flutuação, nesta perplexidade, neste turbinar atormentado de reflexões e de apetites, vagueou horas o barão pelas frias alamedas do cemitério, detalhando na aparência os mausoléus, soletrando as inscrições piedosas, mas na realidade torturado pelas incongruências fatais da sua doença a expandir-se.
Pelo mesmo tempo, chegara D. Jacinta Miguéis a S. Cristóvão, com a filha mais nova, e ambas se tinham internado logo até à saleta predileta da baronesa, que, dobada na chaise-longue, ao seu cantinho, contava maquinalmente as folhas da grande magnólia que se erguia em frente, luzidia e negra, do jardim.
Depois dos cumprimentos de hábito:
-- Então, o teu homem, que é dele?!... Anda na «gíria», hem?
-- Saiu logo depois de almoço. -- E tinha recolhido de madrugada.
-- E tu aqui assim, como num convento! Passa-culpas do menino, sem desembaraço para nada. Sempre me saíste uma seresma! -- impava a mãe, sentada no sofá, muito vermelhaça, arrepiando os lábios e largando de si, num sacão dos braços, o mantelete carregado de vidrilhos.
-- A mamã fala bem... Queria-a ver no meu lugar.
-- Eu! -- esfuziou D. Jacinta, erguendo-se de ímpeto. E de olho coriscante, rugindo ameaças: -- Ah!.. Estás muito enganada! Havia de lhe pôr o sal na moleira. -- Media o pavimento a passos pesados. -- Biltre! Para isto se casam... Se queria uma escrava, fosse aos pretos buscá-la! -- As passadas continuavam sobre a alcatifa, redondas, maciças, enquanto as varetas do leque, machucado e batido com fúria, tilintavam nas unhas, nas pulseiras, nos anéis da mão esquerda. -- Não sabem ser mulheres estas delambidas de hoje. -- As duas filhas entreolhavam-se, encolhiam os ombros, trocavam às furtadelas sorrisos comiserativos. -- Panais de palha!
-- Súbito, parando diante de Elvira, com o tronco à frente e o leque erguido numa crispação de ameaça: -- Tu é que me tens a culpa, minha parva! Se o matrimónio é canga, seja canga para os dois!
E, numa reviravolta da mais cómica imponência, reatou o passeio autocrático ao longo do aposento.
A baronesa, sinceramente vexada, acudira com enfado, erguendo-se:
-- Tenho sermão, ainda em cima... Ora a minha vida!
E refugiou-se, a olhar ao largo, numa das janelas.
Mas a mãe, retesando o pescoço, implacável:
-- Custa-te ouvir as verdades? Minha rica, tem paciência; é sofrer e calar. Para isso és minha filha.
Então a Julita, chegando-se ao ouvido da irmã, em segredo:
-- Comprou-me um corte de vestido há bocado... Alguém o há de amargar.
-- Amarga-o tu, que lucraste com isso! -- retorquiu a baronesa, rufando nervosamente com os dedos na vidraça.
D. Jacinta agora sentara-se na chaise-longue e bamboava o corpo ameaçadoramente.
-- E ele também me vai ouvir, o paspalhão do meu genro!... Sempre me saiu uma prenda!... Já daqui me não vou, sem ele vir.
Forte nesta resolução, pôs-se a compor a «capota», cujo equilíbrio os violentos acionados da cabeça tinham tornado periclitante. Com o levantar dos braços, viu-se então a cor do vestido destingida no sovaco, donde fumava um fartum sebáceo e quente; e a seda do corpete ringiu ao esforço de levantar a grande massa do seio, em cuja imensidade mole desapareceu o queixo, o nariz e a larga face camarinhada de suor, congestionada.
A posição era difícil, fatigante. D. Jacinta implorou apoplética:
-- Valha-me Deus!... Meninas!
-- Espere, mãe, eu ajudo -- acudiu a Julita, da janela.
Restabelecida a simetria e a gravidade naquela cabeça barbada de matrona, D. Jacinta prosseguiu, olhando para o aposento, cada vez menos acrimoniosa, de leque aberto, refrescando-se:
-- Quer não... Ele arranjou-te aqui assim uma bonita gaiola de canário, não tem dúvida. -- Indicava os móveis: -- Bons poleiros... -- Forçava as molas da chaise-longue: -- Baloiço... -- Tocava os livros sobre a mesinha de charão:
-- E o pão-de-ló!... Está fresco isto... Não vejo senão inutilidades, futriquices.
-- Agora apontava os dois vasos etruscos, ao alto das colunas de talha: -- Dois cacos, bons para jogar o entrudo, ali naquela estimação! -- E o retrato:
-- Aqui, vejam! Quatro borrões, pagos por um dinheirão, a quererem ser a tua cara!... E tudo fora do seu lugar, tudo tão atravancado que até a gente tem medo de se mexer, aqui... -- Depois, grandemente colérica para a figurita escarolada do mandarim, posta a espreitar sobre a espalda do sofá: -- Pois então aquele bonifrate de olhos tortos... Implica comigo!... Como não têm filhos, entretêm-se com «bonecros»... Patetas! Arranjem-nos de carne e osso... Nem para isso têm jeito, sensaborões!
Foi acalmando; e ao cabo, morbidamente, abanando-se sempre, sonoleava.
As duas irmãs, esquecidas da mãe, em pé contra a vidraça, taramelavam com animação, baixinho.
A Julita, afogueada, dobrava à pressa nas mãos trémulas uma carta que a baronesa lhe passara.
-- Está boa, não está? -- interrogou, cheia de fé, envaidecida, metendo a carta na algibeira.
-- Está -- confirmou a irmã.
-- E séria?
-- Mas então porque te não vai pedir? porque espera ele?
-- Diz que, sem sair primeiro oficial, não pode. E com o outro Governo, verás, é logo.
Ruído no escritório de passos conhecidos. Era o barão.
Beijo nos crespos louros da esposa, na cunhada um abraço cordial, e um frio aperto de mão à sogra, que logo o interpelou, com mal disfarçado azedume a apontar da inflexão amorável:
-- Viva o senhor meu genro... Estava à sua espera.
-- Sim?
-- Para lhe ralhar!
E o barão, sorrindo:
-- Está no seu papel.
D. Jacinta remoeu: -- Atrevido! -- e logo um tudo-nada hostil, familiar:
-- A minha filha também é gente, percebeu? Também precisa de ar. Não é nenhum «bonecro».
-- Certamente -- anuiu o barão. -- Nem eu pensei nunca em reduzi-la à fútil condição de bibelot. Não sai mais porque não quer.
-- Não diz ela isso.
-- Oh, mamã... -- atalhou Elvira, pressurosa, lançando-se contra a mãe, uma doçura repreensiva e grata a fundir-se-lhe na graça da expressão.
Mas a mãe insistiu:
-- Então, filha, digo a verdade.
-- A mamã exagera -- tomou a baronesa. E acrescentou: -- Sou muito feliz! -- com duas lágrimas a camalearem-lhe o âmbar das pupilas. Depois, fitando o barão com meiguice: -- O Sebastião é muito meu amigo... Não digo que, uma vez ou outra, não tenha a sua pontinha de génio celebrão... Ora, mas isso todos nós temos... Eu, do meu maridinho, se tenho a queixar-me -- e pousava-lhe as mãos nos ombros --, é do muito mimo que me dá... é de me fazer muito as vontades! -- Voltou-se para D. Jacinta, com uma infantilidade confiante: -- E senão, mamã, quer ver?... -- E concluiu, intencional, abandonando-se contra o peito do barão: -- Sebastião, está um tempo tão bom!... Vamos nós a Sintra, amanhã?
O barão, colhido na dificuldade, empalideceu; mas num segundo, recuperado o sangue-frio:
-- Ora, logo amanhã!... Não pode ser. -- E simulava arrelia. -- Acabo de combinar com uns amigos irmos lá amanhã justamente! Não hei de agora...
-- Isso que tem? São teus amigos?... Vou com vocês.
-- Oh, filha, não os conheces. Nem tu, nem nós estaríamos à vontade. Amanhã, não.
-- Amanhã é que eu queria... -- murmurou a baronesa dulcidamente, numa provocação adorável, o busto suspenso e a cabeça ao raso dos lábios do marido.
-- Que mais te faz um dia, ou outro?
E a D. Jacinta, triunfante:
-- Vês?... Ora aí está!
-- Vamos, sim?... -- arriscou ainda baixinho, na mais sedutora das súplicas, a baronesa.
O marido, socorrendo-se a toda a sua energia, evocando Eugénio, afastava ao de leve o corpito eloquente de Elvira, evitando encontrar-lhe os olhos, afagando-lhe as mãos.
-- Amanhã -- já te disse, Vivi --, faz-me ferro, mas não pode ser.
Os braços de Elvira caíram; enquanto a mãe se acercava a dizer-lhe, com dureza, de modo que o barão ouvisse:
-- Não te abaixes a pedir mais!
Os olhos do barão fuzilaram.
-- Mas isto, no fim de contas, é uma pieguice! -- observou ele; e de novo junto da esposa, fitando-a com um sorriso que queria ser branco, voltando a afagar-lhe as mãos: -- Que mais faz?... Tirante amanhã, qualquer outro dia, logo depois, estou pronto. -- Elvira desembaraçou-se; e ele então, com um pique de génio: -- Que diabo!... Sempre as mulheres arranjam um caso de cada caprichinho!
D. Jacinta disse, ao ouvido da filha, mas alto:
-- Deixa, não peças mais!... Vamos nós, queres?
Um raio de alegria acerejou a face trigueira da Julita. Mas a irmã:
-- Não... contra vontade dele, de modo nenhum.
E a mãe, despedindo-se:
-- Não sejas criança! Resolve-te. -- Depois dardejou para o genro, ao dar-lhe a mão: -- Mau homem! -- a tempo que Júlia instava com a irmã: -- diz que sim!... Era tão bom!... Eu avisava o Frederico...
-- Mau homem! -- repetia a sogra ao barão, que acompanhava as duas senhoras ao patamar da escada. E ia ensaiando:
-- Ó minha senhora, sejamos razoáveis... pois porventura...?
D. Jacinta atalhou:
-- Não tem a mulher que merece... E mesmo péssimo! -- Depois, já no fundo da escada: -- E ficamos de mal! Vá-se com esta...
-- E a minha cunhadinha também fica mal comigo? -- apelou o barão para a Julita, que lhe dizia adeus.
-- Fico, sim senhor! -- confirmou ela num riso amorável.
E desceu a escada em dois pulos desenvoltos, para alcançar a mãe.
Tornado o barão à saleta, ele e a esposa conservaram-se durante muito tempo mudos, pregados no mesmo embaraço, vincados, longe. Assim veio estereotipá-los, gaudioso, o pequenino olho escoldrinhador da Doroteia, que anunciou:
-- O jantar está na mesa.
Derivou todo o jantar silencioso. Os nervos da baronesa, já mordidos pela humilhação que sofrera diante da mãe e da irmã, agora exacerbava-os, punha- os num ponto de irritabilidade excessiva a recordação da contrariedade e a imensa monotonia daquele estar à mesma mesa, ali só com uma pessoa aborrecida, sem vozes, sem cordialidade, sem expansões, sem ruído. Chocava- a o som mole dos passos do criado; o tilintar dos talheres e dos pratos fazia-a estremecer. Comia à pressa, com os olhos na toalha, aturdidamente, toda no empenho de abreviar aquela eternidade de refeição estúpida. Se o criado demorava um instante no levantar de um prato, no servir do seguinte, logo ela, sacudida:
-- Está a dormir? Avie-se!
Nem os canários, estranhos do silêncio, soltavam o canto. Mal pipiavam.
E então, se houve dia em que o barão, que não tinha nada de gastrónomo, achasse prazer em conservar-se à mesa, foi aquele. Comeu de tudo, repetindo, mascando mesmo um pouco ao saborear as iguarias prediletas, cofiando o bigode a intervalos, feliz, com um belo ar tranquilo.
Ao café, perguntou à esposa:
-- Queres sair?
-- Não.
Saiu ele.
E nem mais palavra trocaram nesse dia. A baronesa, como não soubesse da hora a que ele recolheria, deitou-se cedo, propositadamente; por forma que o marido, quando entrou, foi achá-la já na alcova, fingindo que dormia.
Mal a manhã seguinte dealbava ainda, a baronesa sentiu que o barão se levantava, com pressa mas docemente, sem dúvida para a não acordar. Ele tinha as articulações perras, parecia pouco senhor dos movimentos, atrapalhava. Duas vezes seguidas o pé esquerdo enfiou pela calça direita, embrulhado nos suspensórios; as botas não havia meio de dar com elas; o colete foi primeiro vestido do avesso. -- Efeitos do sono interrompido.
Lassava-lhe os membros e os sentidos o enlanguescimento de um despertar prematuro -- pensou a baronesa. -- Bem feito! -- e seguia regaladamente, do canto dos olhos, com um travor de maldade, o atabalhoamento do barão.
Todavia, a julgar pelo trémulo das mãos e pelo húmido faiscar dos olhos, não o laborava só o esforço de um estremunhamento, mas tonteava-o a vertigem de uma comoção. Aquele homem vestindo-se assim, de madrugada, atrapalhadamente, num vago de incerteza, não era o joguete das cómicas incoerências de um acordar antes de tempo: era uma organização veemente de sibarita, correndo ávida, em febre, para o prazer.
A baronesa ouviu o chapinhar da água fria, depois um tilintar de ouro, ranger de botas... e ele junto do leito, a dois dedos da sua face branca e redonda, soprando baixo: -- Elvira... ó Elvira. -- Não respondeu; antes arremedou, exagerando um pouco, o respirar compassado e alto de quem está dormindo bem. Vendo o que, o barão, sempre muito docemente, abriu a porta e saiu, tornando a fechá-la sobre si, sem fazer bulha.
A baronesa então voltou-se, num pulo de cobra, de costas sobre a cama, e abriu os olhos raivosamente na penumbra cor de ametista da alcova. Um frio encolheu-lhe os nervos, 'percorreu-lhe a pele. Nos lábios crispados silvou uma expiração de despeito, recalcada. -- Era pois certo!... Lá ia ele para Sintra com os amigos... que valiam mais que a esposa!... Do pedido dela não fizera caso, encolerizara-se... agora os amigos, esses estavam primeiro... Parecia incrível!... E que obstinação, que intransigência!... Haveria ele também «amigas» à mistura?... -- Teve um sobressalto. -- Era o que faltava!... Mas assim parecia... -- Depois, com uma inveja irada: -- E lá iam!... Lá iam gozar... com um dia criador, assoalhado, limpo! -- Saltou da cama, em camisa, e foi abrir as portas de uma das sacadas.
Olhava ao nascente. Um feixe de raios de sol entrou, fresco e louro como um sorriso de criança, e veio aflorar-lhe caricioso a rósea polpa do braço, dar brilho à macieza láctea do colo, palhetar de ouro a cabelo arruçado e crespo.
Através a vidraça, esbatia-se lisa e leve pelo espaço a aguada diáfana do céu.
Despertavam os primeiros pregões; os pardais cruzavam-se em bandos, grazinando. -- Um belo dia!
A baronesa demorou-se um instante neste banho de luz, olhando ao longe, inebriada... Porém de repente, num desespero, atirou com a porta, enfiou-se de novo, trémula de raiva, entre os finos lençóis de linho, e desatou a soluçar.
Levantou-se tarde. Esmagava-a uma profunda, uma atroz melancolia. Todo o dia passou com uma opressão no peito, na cabeça um peso horrível, uma apatia mental escura, marasmante. A mãe mandou-lhe recado, seriam nove horas. -- Se sempre se tinha resolvido, que fosse. O dia estava lindo. Podia de caminho trazer a manteiga e as begónias a que andava com vontade. -- A irmã reforçava o pedido. Mas ela: -- que não, que não ia que não acordara bem.
Depois de almoço, a sós na chaise-longue, quis ler, mas não conseguiu.
Como que perdera a faculdade de perceção das coisas. Surpreendia-se, ao cabo de minutos seguidos, com a vista pregada na mesma linha, que o pensamento lhe não lograva decifrar. Ao cabo, as mãos largaram com tédio o livro e a baronesa correu à janela. Que lindo dia! O céu, mais quente e mais lavado, despira as velaturas brumosas da madrugada e abria-se agora, muito luminoso, num azul vasto e distante. O sol, alto, coriscava, mordia as caliças da cidade, entornava a flux, cheias e vibrantes como notas de clarim, palpitações de alegria, e arrancava reflexos verdoengos à boca dos canhões assestados, em cima, na esplanada do Castelo. Tudo brunido, cintilante.
Criaditas, das janelas, sacudiam panos brancos. As vidraças dos prédios espelhavam-se na calçada.
Elvira recordou como àquela hora, em Sintra, devia ser deliciosa, embaladora a atmosfera, e as toiças de verdura perfumadas, e as águas da Sabuga cristalinas, e as sombras do Ramalhão narcotizantes... Como àquela hora seria bom, do alto da Pena, largar a vista a cabriolar por essa charneca fora, sobre a ondulação verde das searas, imensa, imensa... a fundir-se, lá muito longe, no extremo horizonte, com a ondulação azul do mar!
O toque da campainha no pátio fê-la estremecer como se fora um terremoto. E logo chamou:
-- Doroteia! Doroteia! --A criada acudiu, respeitosamente. -- Ouviu?...
Não estou em casa para ninguém.
A criada saiu logo; e, daí a instantes:
-- Era o carvoeiro.
Mas a baronesa:
-- Nem para a minha mãe!
E a Doroteia, piscando os olhos e afilando o queixo, radiante, a ler nas feições da ama toda a verdade:
-- Entendo, minha senhora... Só está para o médico.
-- Para o médico?
-- Sim... -- explicou a matreira, baixando a cabeça e correndo os dedos pelo avental -- porque a senhora, bem se vê, está muito doentinha. -- Arpoava o queixo. -- Mal empregado!
-- Mal empregado o quê?...
-- Uma riqueza de senhora destas, sempre aqui assim... tão... «moderna»... -- continuou Doroteia, com fingida compaixão, salivando os lábios ravinados. -- É mesmo um dó de alma... até embrulha o estômago à gente. -- E velhacamente, as mãos assentes sobre o ventre, escoldrinhando-a: -- Bem digo eu, que não é como as mais!
A baronesa nem a ouviu; depois de uma inspeção impaciente pela casa, ordenava agora, de costas para a criada, a disposição dos bibelots sobre um dos consolos. A megera então, segura de não ser vista, regalou por bom espaço os seus ódios de casta, dardejando contra a baronesa um longo olhar envenenado, enquanto o nariz lhe palpitava e a boca se lhe arreganhava aos cantos, toda alegre na certeza de que a ama sofria. Por fim, como quem acusa:
-- Também sempre o senhor barão...
Elvira voltou-se, de sobrecenho.
-- Perdão, senhora baronesa... -- emendou logo Doroteia, curvando-se, mãos no peito. -- Isto é por ser amiga da senhora.
-- Não se me faça adiantada! -- tomou Elvira, secamente, o indicador direito à frente do nariz, em ar de ameaça. E continuou a arrumar.
Doroteia, passados instantes, insistiu:
-- Quer que mande ao médico? -- Elvira voltara para a chaise-longue.
-- Vossemecê não está boa!
-- E que, se a senhora mandasse... eu também aproveitava -- explicou a criada, arteiramente, com a expressão mudada, tendo agora um vivo e sincero egoísmo a animar-lhe a hediondez das feições. -- A senhora baronesa perdoará esta confiança... -- E aproximando-se de Elvira, com um grande cuidado na sua pessoa: -- Mas, com o devido respeito, ando precisada de uma receita... para me desentupir.
A baronesa sorriu, momentaneamente distraída.
-- O mulher, purgue-se.
-- Não é isso... -- E, acanhada, baixando a voz: -- A víscera não anda má, Deus louvado! -- Humedecia os beiços. -- O mal é outro... O incómodo é que me falta, vai já para dois meses.
-- Que idade tem?
-- Cinquenta e dois anos.
Elvira riu desafogadamente.
-- E admira-se?... Não há nada mais natural.
-- Eu sei, minha senhora!
Mas logo a baronesa, secada:
-- Olhe, deixe-me!
Doroteia saiu, meditando o seu mal, vagarosamente.
E a baronesita foi suportando té à noite, mergulhada numa tristeza inquieta, aquela eternidade de dia monótono. Ora se esquecia, horas, amodorrada num fauteuil; ora percorria a casa, sem objetivo, à toa, numa indecisão imbecil, numa incongruência idiota, cantarolando, batendo as unhas com um papel dobrado. -- Ainda se pudesse chorar!... Em tempo, era-lhe o chorar bem fácil... Por qualquer coisa... Em criança, chamavam-lhe até a «fungona», porque, ao mais ligeiro ameaço de castigo, à menor contrariedade ou birra, era certo ela ir logo, munida de uma dúzia de lenços de assoar, os maiores que encontrasse, aferrolhar-se no quarto, e aí pôr-se a chorar, a chorar inextinguivelmente, até que a boa da mãe fosse animá-la e enxugar-lhe as lágrimas com beijos. -- Se pudesse chorar, agora!... Mas os olhos teimavam enresinados, secos. Por vezes, voluntariosa como era, rebelava-se, desatremava em fúrias de pequenina fera impotente fazendo mossas nos móveis, topando as cadeiras, esfolhaçando flores; mas logo os nervos cediam quebrados, num relaxe. Então, resignadamente, com um dó mortal de si mesma, Elvira dava-se ares de vítima, abandonava-se à sua sorte e apelava para a justiça póstuma que lhe havia de fazer o mundo: -- Paciência! Já agora viverei assim... sem me queixar... -- Mas o mundo quereria lá saber das suas desgraças! -- E via tudo roxo; a vida, os homens, a família, aparecia- lhe tudo numa hostilidade, num afastamento, como se a tivessem já refugado -- os maus! -- para a algidez de um in pace, ou para um gavetão de cemitério.
Quando anoiteceu, sentiu com mais agudeza o isolamento, o abandono.
Veio-lhe uma revolta. -- O espaço, a rua eram para todos! Mandou vir luz para o toucador, e, de esfuziote, perante a criada espantada, pôs o chapéu, lançou um mantelete sobre os ombros, e tomou, calçando as luvas, para o corredor que levava à escada.
-- A senhora vai sair!? -- exclamou Doroteia, levantando o queixo, boquiaberta.
-- Vou -- respondeu, num sibilo, a baronesa.
-- Sozinha?
-- Vou aqui a casa da minha mãe.
-- A pé? -- insistiu a criada, no auge do espanto.
-- Sim, a pé... que tem isso? Comem-me algum bocado? -- contestou com altivez Elvira, já no limiar da porta, voltando-se bruscamente.
E a Doroteia, agora de olhos no chão, muito doce:
-- E que isto... de noite...
-- Nunca se viu?
-- A senhora... não.
-- Ora adeus! -- cortou a baronesa com enfado. E mediu rápida o corredor.
-- Se o senhor barão vier e perguntar pela senhora -- arriscou ainda Doroteia, do alto da escada --, que lhe hei de eu dizer?
-- O que quiser.
E estava na rua.
-- Boa vai ela! -- comentava daí a um instante a Doroteia, na copa, à criadagem reunida. -- Então não querem saber?... A senhora não me abala agora por essas ruas, como um foguete, sozinha, sem dizer água vai!
-- A senhora que diz!? -- interrogou o mestre, num assombro, aproximando-se.
-- O que vocês ouviram! E isto mesmo. -- E Doroteia detalhou saborosamente, com grandes movimentos da cuia e um magano revolver dos olhos avinagrados, aquele repente da saída da baronesa.
No auditório uma atenção pasmada. O mestre -- de jaqueta branca, antebraço arremangado, o avental, branco também, colhido a um lado e os pulsos nos quadris -- arregalava uns olhos alvares na enxundície da larga face apoplética; o criado de mesa -- escanhoado, penteado, verde, ainda a gravata branca, em mangas de camisa -- parara a escutar, com a bandeja à frente, cheia de louça, nas mãos; e a costureira -- magra e com buço, morena, segunda saia e botinas, penteado alto, espartilhada -- tinha um risinho esperto, amolava.
-- Mas isso pode lá ser!? -- comentou, grave, o cozinheiro, arrumando o barrete engomado para a nuca, num gesto de desgosto.
-- A mim não me admira nada... -- disse bem alto, com a sua osga de desdém superior, a costureira.
-- Talvez descesse à Rua dos Fanqueiros, a casa dos pais.
-- Pois não foste! -- impugnou Doroteia, dando um estalinho com os dedos. -- Nada, a coisa é outra...
-- Sim, ele os ares a modo que «andem» turvos... -- gaguejou o criado de mesa, pousando a bandeja.
-- E a senhora que tem lume no olho! -- disse com intimativa a costureira, num diagnóstico folião de escândalo graúdo.
-- E da pele do diabo! -- concluiu Doroteia, escorropichando do fundo de um cálice uns restos de licor.
Entrava agora o guarda-portão, solene, aflito:
-- Então, ninguém foi com a senhora baronesa!?
-- Ai! Ela foi muito bem sozinha! -- gritou Doroteia, com um grande estalo de língua, assentando o cálice na bandeja.
-- Mas foi uma falta dos diabos! -- disse o guarda-portão, todo marcial, de casacão azul e polaina branca, anel no dedo. -- Nunca o senhor barão perdoará...
-- Perdoa ela, que tanto monta -- atalhou, com o mesmo risinho tóxico, a costureira.
E a Doroteia, sentenciosa, lambendo os beiços:
-- A senhora foi só, porque muito bem quis!
E voltou, esfregando as mãos, para o andar de cima; enquanto o guarda- portão voltava para o pátio, os dedos da mão esquerda enterrados na barba grisalha, apreensivo; e o cozinheiro, desgostoso, sério, puxava para a testa o barrete alvo e folhudo.
Entretanto a baronesa, apressada, atravessara o Largo de S. Cristóvão, descera as Escadinhas, depois a Calçada do Caldas, marginara a Praça da Figueira, e logo entrava no Rossio. Ia num passo miúdo e breve, olhando sempre na frente, escoando-se, cortando por longe as faixas de luz dos lampiões e das montras, com receio de ser conhecida. Amiudadas vezes o polegar e o indicador direito subiam a puxar o véu bem até junto ao queixo. Ia sem saber para onde, exaltada, entontecida. E o rumor, o bulício do centro da cidade àquela hora ruidosa passava-lhe na retina e soava-lhe no cérebro confusa, tumultuariamente -- como de bordo de uma lancha, no mar revolto --, dançando. Apenas uma ou outra sensação nítida no baralhado das impressões: -- ao fim da Calçada do Caldas, um estralejar de castanhetas e o martelar de um piano na crassidão luminosa de um café barato; ao longo da Praça da Figueira, uma escuridão deliquescente e uma atmosfera nauseabunda de hortaliças ardidas e dejetos de aves fermentando.
Mal apontou no Rossio, a largueza do espaço, a abundância da luz, o arrepio da aragem perfumada que vinha do Passeio, trouxeram-na à realidade, fizeram-lhe o efeito de um pano fresco nas fontes, acordaram-na do seu sonambulismo. Estava em plena Baixa, à hora do movimento burguês, surpreendendo no máximo de intensidade a animação pacata desse mundo de amanuenses e caixeiros. Davam no Carmo oito horas. Ao longo da grande praça, cortando-lhe o mosaico sinuosado, formando-lhe o claro-escuro, formigando-lhe na penumbra, moviam-se dezenas de grupos de todos os feitios, idades, condições. Em volta, abancando, cocheiros, militares, maltrapilhos, um ou outro vulto de capa té às orelhas, e ranchos de namorados. Contornando o recinto, enfileiradas, as lanternas dos trens luziam como pálpebras de gigantes; e nos ângulos erguiam-se, em pinturilagens facetas, as tendas dos vendedores de água fresca e capilé. Pelas mas laterais, rente aos prédios, a multidão cruzava-se, recortada em negro na luz líquida, esbatida, que das portadas das lojas fluía para o calcário puído dos passeios.
Um garotito passava de muleta, pregoando cautelas, claudicando. De onde a onde, a mancha parda de um vadio, o saracoteio e o almíscar de alguma filha de Citera. Em cima, no extremo oposto, um grande ESPETÁCULO, feito a bicos de gás, tremulejava através das árvores, colado em semicírculo ao pórtico do Teatro de D. Maria; e mais para longe, à esquerda, apagada na distância, bruxuleava a maledicência lendária do Martinho.
-- Como toda esta gente pisava bem, com garbo! Como de todo este remoinho de cabeças uma nota álacre saía, expansiva, quente!... Era a vida aquilo, a saúde, o prazer, a liberdade. -- Pois ela vinha fazer o mesmo! Vinha acender ao calor das massas a fria noite do seu abandono...
Quase ao passar no Arco do Bandeira, teve um abalo, um susto. O que quer que fosse, pesado e sujo, roçou por ela e magoou-a. Olhou: -- dois homens tinham irrompido, cambaleando, de uma taberna baixa ao lado, em cujas prateleiras, de gradinhas azuis e vermelhas, rutilavam licores em bateria, e ao centro da qual um mocetão sardento e ruivo enchia copinhos aos fregueses, junto do gás que jorrava ao alto de uma haste de cobre, a prumo sobre o balcão.
Mas logo adiante, ao longo da Rua do Ouro, que bela sensação de alegria! A larga artéria aí estava -- plana, direita --, flamejando, flamejando e estreitando no alongamento da perspetiva, levando a morrer as suas últimas luzes, já miudinhas e distantes, no azul de ardósia do Tejo. A baronesa via agora o mundo de perto pela primeira vez. Em solteira, que podia ela ter visto?... As crianças só sabem rir. Depois, casada, nas suas saídas habituais, de trem, ela olhara sempre a rua em globo, de alto, abstratamente; como no teatro, debruçada de um parapeito de camarote, via a mancha esfumaçada, anónima da plateia. Porém agora, assim só sem o marido, respirando o ar do povo, acotovelando o acaso, ela compreendia melhor, palpava, adivinhava as coisas.
E a vida entremostrava-lhe aspetos novos, deixava-lhe entrever o que haveria de imprevisto, de saboroso, de acirrante neste ir negligente e vago ao encontro do prazer, à caça da aventura. -- Oh! Seguramente, os dias, as noites, levados assim num divagar incerto e livre, deviam ser bem melhores de passar do que adstritos à monotonia de um palácio húmido e triste!... Por isso os senhores homens... -- Mil interrogações perturbadoras que bolhavam no espírito, na cabecita leve bateu uma onda de desejo, e todo o seu ser pequenino e redondo palpitava, alvoroçado, pávido -- como uma avezita que, fugida da gaiola, ensaia as asas, deslumbrada, perante o Infinito.
Parara a ver chapéus. Neste momento, alguém passou junto dela e segredou:
-- Que lindos olhos!
Elvira estremeceu e olhou em roda, assustada... -- Se alguém conhecido tivesse ouvido ou presenciado?... Se lhe apareciam por aí os pais!... que tinham de imaginar? -- Arrependeu-se de ter saído. E então notou que a fitava com insistência, de uma esquina, um homem baixo e gordo, de chapéu fino, sobretudo cor de ameixa, calça clara, e a mão enluvada apoiando-se numa bengala de preço. Devia passar dos cinquenta. Tinha um ar de comendador ou de negreiro. O bigode era de um louro grisalho e áspero; os olhos, pequeninos, insolentes, papejavam; a face tinha a flacidez balofa das carnes em decadência; e o ventre, enorme, obrigava-o, para manter o equilíbrio, a quebrar-se sobre os rins, muito aprumado.
A olhar sempre, o homem deu dois passos na direção dela, de pernas hirtas, muito apegado à bengala, arrastando. Havia um não sei quê de ofensivo e desnudante naquele olhar tortuoso e baço. Repugnou-lhe, ofendeu-a. Quis recolher. Mas, breve, empolgada pelo resfolgar de vida que a rodeava, continuou o seu passeio.
Não tardou que um janota lhe não gritasse mesmo no rosto, atrevidamente:
-- Que boa pequena!
Empanou-se-lhe a vista, empalideceu de cólera.
E o sujeito ventrudo e trôpego a segui-la!... Era dele sem dúvida o andar perro, surdo, que lhe vinha arrastando nas costas, ao longo do passeio.
A multidão marulhava, rumorejante, espessa. Pares idílicos passavam, unidos, ternos, entravam nas lojas, sumiam-se pelas esquinas. As gemas e os metais preciosos, no tom sanguíneo das pelúcias, cintilavam tentadoramente à flama dos revérberos. Grupos graves de letrados expunham-se nas livrarias à admiração das gentes. Gaiatavam troças de estudantes às portas dos cafés.
Meninas verdes, magritas, vestidas de coisas sem brilho, paravam às montras, corrompidas na adoração das sedas, dos veludos, das guarnições berrantes, dos vestidos de noivado; e os reflexos bariolados de todas estas opulências acendiam nos rostos anémicos e nos olhos famintos das pobres criaturas contrastes singulares.
De repente, a baronesa teve um calafrio e coseu-se rapidamente a uma coluna de candeeiro. Do lado oposto da rua, D. Plácida e o Alípio seguiam, de braço dado, cochichando... Olharam na direção de Elvira, pararam um segundo, como admirados, depois afastaram-se e subiram o Pote das Almas.
A baronesa respirou... no fundo com uma dúvida: -- Se a teriam reconhecido!?... -- Um rancho estúrdio de militares cruzou com ela. -- Que belo boiãozinho de doce! -- E de embarrilar a gente! -- e outros dichotes semelhantes, que a fizeram tomar pelo meio da rua. Mas logo: -- Eh! eh!... A minha senhora! Arreda!... -- Um trem, que por um triz a não colheu debaixo das rodas.
Cresceu-lhe um ódio a tudo aquilo. O homem gordo aproximava-se... Enfiou pela Rua dos Retroseiros, numa pressa, direita a casa. Apurando o ouvido... viu que lá vinha um arrastar, como de chinelos: era o velho gotoso que lhe seguia no encalço. Estugou o passo; o arrastar cresceu, mais frequente.
Cortou a rua; daí a nada, o mesmo andar duro e tardio vinha-lhe na esteira.
Parou em frente de uma loja; o homem parou... e, como ela demorasse, passou-lhe então adiante e foi esperá-la na sombra de um portal, para a trespassar, na passagem, com o seu olhar baço e insolente.
Elvira teve medo. A esquina da Rua da Prata, voltou por ela acima, em vez de continuar para a Madalena. -- Ao subir aquele deserto de ladeira, esse demónio alcançá-la-ia!... Ninguém a livrava de um enxovalho!... Não aparecer quem a furtasse àquele homem sinistro!... O Xavier da Câmara!
Na primeira travessa, tomou de novo em direção da Rua do Ouro. Tinha precisão de se ver entre muita gente, fugia das ruas menos frequentadas.
E agora, precisamente, o seu perseguidor vinha-lhe marchando ao lado e soprava numa toada soma e implacável palavras ininteligíveis. Por fim, resfolegou mais alto:
-- Vous conviendrais-je pour ce soir, madame?
A este insulto a baronesa cambaleou, numa vertigem, teve-se à parede para não cair.
Uma passagem vazia passava. Meteu-se nela e deu a morada. Batiam-lhe os queixos. Enquanto não chegava, ia perscrutinando com terror a rua, a ver se o homem a seguia ainda... se não teria saltado para a almofada!
Depois, em casa, na sua saleta, sem tirar o chapéu nem o mantelete, arrojou-se de bruços contra a chaise-longue, e, fatigada, torcida, cheia de remorso, chorou longamente.
O barão, quando entrou -- 11 horas dadas --, não deu pelo sulco que fendilhava, dos lacrimais à boca, a face alva e redonda da esposa. O alto candeeiro bizantino mantinha o quarto na recolhida luz do costume; e, mesmo, D. Sebastião não vinha em estado de ver com olhos de interesse a baronesa.
-- Viva a minha velhinha!... Aqui só?... -- exclamou ao entrar, numa expressão, à força de querer parecer doce, de um ridículo deplorável. E, sem beijar Elvira, sentou-se num fauteuil, à cabeceira da chaise-longue, pousando ao de leve a mão no braço da esposa, que premiu com familiar carinho.
Vinha de bom humor, bravo, contente. Os olhos negros cintilavam com vivacidade. O grande ar do campo avinagrara-lhe a pele, exagerara-lhe a descamação das placas vermelhas do queixo, que iam polvilhando de branco em abundância a lapela do sobretudo.
Elvira permanecia imóvel, alongada e torcida como estava, os olhos meio cerrados, um édredon sobre os pés.
-- Boa noite... -- murmurou. -- Divertiste-te?
-- Passei o dia bem. Oh! Sintra está adorável, não imaginas!... Que ar, que verdes, que frescura!
-- Alguém conhecido?
-- Nada, ninguém... O chalet do Gouveia tem levado um avanço!... Trago-te um pedaço de tronco de cedro, -- com hera, fetos e begónias. -- Elvira esboçou um sorriso. -- Deixei-o no pátio. Amanhã verás.
Como o silêncio se prolongasse, o barão tomou, coçando o queixo, donde uma chuva de caspa se desagregou, pulverulenta:
-- E tu que fizeste?... Tiveste alguém?
-- Não -- respondeu ela sem abrir os olhos, numa serenidade que era uma censura.
-- Pareces-me tristinha... Que tens?
-- Nada...
O barão, num embaraço indizível, sem força, sem vontade, sem jeito para levar mais longe esta inquirição solícita, ergueu-se e começou a passear.
Laborava-o uma dificuldade, uma hesitação intrincada e violenta. As últimas resistências do seu ser moral davam às malignidades que lhe virgulavam no sangue uma batalha formidável. De vez em quando, parava de frente para a esposa, ia a falar... mas logo os ombros se lhe erguiam num como repelão de dignidade, o rosto vincava-se-lhe, exprimia uma reação honrosa, e os lábios não proferiam palavra e recomeçava o passeio.
Por fim, quedou-se diante de Elvira, numa atitude de resolução, e falou com rapidez:
-- Passei bem o dia, é verdade... Lá te fizemos uma saúde. E, a propósito, um dos rapazes que me acompanharam -- ontem nem tive ocasião de to dizer -- chegou a Lisboa há dois dias e vem-me recomendado. Ainda é parente dos Lebres de Cantanhede -- sabes?... É um belo rapaz, simpático, inteligente. Vou ver se o emprego na redação da Gazeta.
E, evitando a luz, outra vez a andar, num supremo esforço:
-- Amanhã vem jantar connosco.
Tinha-o assaltado em Sintra esta ideia. Veio perdido. Ali, no largo bucolismo da paisagem, no meio dos divinos esponsais da Natureza, a sua paixão recrudescera. -- Aquele Eugénio, não podia viver sem ele! -- A veemência da atração física, à tirania do desejo juntava-se agora fascinação, um império, uma cobardia indominável. Carecia tê-lo junto de si a maior soma de tempo que pudesse! -- e para isso -- era fatal! -- recorreria a todos os meios, aos ínfimos expedientes... Senhoreava-o uma moleza. A dissolução progressiva do carácter batera-lhe o respeito de si próprio nos últimos redutos. Já nem hesitava em reunir a esposa e o amante debaixo do mesmo teto.
Como a baronesa parecesse não ter entendido, ele repetiu:
-- Vem jantar, ouviste?
-- Ouvi -- fez automaticamente a baronesa, que tinha ainda no ouvido o passo arrastado do homem grisalho e gordo.
CAPÍTULO VII
-- Então, vai-lhe parecendo bem Lisboa? -- disse para Eugénio o barão, comodamente reclinado, perna traçada, numa cadeira Luís XV, toda em pau- santo, os quatro pés figurando garras, o espaldar, alto e ligeiramente côncavo, terminando num trifólio de plumas.
E Eugénio, muito bem ensaiado:
-- Eu tenho gostado... mas, verdade, verdade, esperava mais.
-- Como assim? -- acudiu de um ângulo do aposento, sentada numa poltrona acolchoada de ouro envernizado a preto, a baronesa. -- Então a província é melhor?
-- Ah! Não, minha senhora... -- explicou o efebo, de chávena na mão, em pé, com o gesto fácil e a face corada e luzindo como um pêro criado ao sol. -- Não há mesmo termo de comparação. Nós é que, à força de lermos os jornais e de ouvirmos as petas dos que cá vieram antes de nós, imaginamos isto um paraíso...
-- A oitava maravilha -- reforçou, com uma pontinha de vaidade, D. Elvira.
-- Exato. E depois, chegamos... e tudo nos parece inferior...
-- Ao que tinham criado na fantasia. De acordo -- aquiesceu a baronesa; e acrescentou, num desvanecimento patriótico: -- Oh! Mas Lisboa está uma cidade linda! Os estrangeiros ficam encantados... Não é por eu ser daqui, mas, francamente, é a única terra de Portugal onde se pode viver. Há todas as comodidades, passeios lindíssimos, um teatro como poucos, um rio incomparável, um clima sem segundo...
-- E um café magnífico -- apoiou Eugénio, levando a chávena aos lábios.
E aproximou-se do barão, gorgolejando. -- Deste nunca eu apanhei no Refilão.
-- Creio, creio... Ah! Ah!... -- atalhou logo o barão, num grande rir contrafeito. -- Foi presente de um amigo. -- E levantou-se, a cortar a conversa, embaraçado.
Mas logo a baronesa a perguntar-lhe a meia voz:
-- O Refilão!... Que vem a ser?
E o barão, atabalhoando:
-- Não sabes, filha?... E um café que há no Porto, café de literatos... Herdou as tradições do Aguia d’Ouro. Corresponde aqui ao Martinho.
-- Sim, sim... -- fez, convencida, a baronesa; enquanto Eugénio, corado té às orelhas, refugiava a vergonha do seu desmando no vão de uma janela.
A cena passava-se no gabinete de trabalho do barão.
Terminado o jantar, em baixo, ele propusera que em vez de tomarem o café, como de uso, na casa do fumo, subissem antes para o seu escritório. Era dia bastante ainda; e ele queria que o seu hóspede, o seu novo amigo, visse a peça melhor da casa e de lá desfrutasse o panorama da cidade.
A decoração deste gabinete aplicara o barão com amor os seus mais finos instintos de artista. Era o seu quarto favorito. Todo forrado de um papel caro, em relevo, imitando couro lavrado -- cuja tonalidade adormecida dava um destaque macio às coisas --, tinha o teto pintado a fresco, no pavimento uma alcatifa cor de argila, e fartas cortinas de veludo liso, marron, caindo em pregas amplas, sóbrias, sobre os vãos das portas e das janelas.
A um dos ângulos da casa, entre a porta que dava para a saleta habitual dos serões e uma sacada deitando ao jardim, estava a baronesa, na poltrona envernizada a preto, fazendo o seu chá sobre uma destas mesas negras, redondas, que nos vêm da índia, profusamente, miudamente rendadas de florestas, de monstros, de figurinhas, de espiralagens cabalísticas, amassando- se e distribuindo-se em giros concêntricos, de uma extravagância bizarra de desenho, de uma opulência e de uma subtileza inverosímeis. Não podia a baronesa tomar café: tirava-lhe o sono. Por isso temperava devagar o seu chá preto, naquele ângulo da casa, sobre a mesa; e a sua figurita, picante e delicada, mais pequenina parecia agora, afogada nas dimensões do precioso contador hispano-árabe que junto lhe ficava à esquerda -- lendário, enorme, a cor deste cinzento farelado que é a herança dos séculos, grossas ferragens, nas almofadas grandes losangos de veludo carmesim, farripado e sujo, e as duas pernas ligadas por uma grade lembrando um trecho de rótula de harém.
Encostava à parede que descia ao jardim.
Na mesma parede, do outro lado da sacada, um belo troféu pendia, feito de uma celada e uma couraça godas, amolgadas, mordidas nas arestas, o aço tuberculado, herpetizado de óxidos, nos olhos das cavilhas, nas dobras dos arabescos, e dos flancos irradiando uma rosácea de piques, adagas, alabardas, espadas, guantes e punhais. Por baixo da panóplia, três poltronas Luís XV, numa das quais estivera sentado o barão. Em ângulo reto com esta parede, seguia-se outra, também exterior. Olhava ao poente; fazia esquina. Duas sacadas abriam nela para a cidade. Ao centro, via-se uma larga cadeira de braços -- pregaria e couro --, tendo à frente um grosso bufete de pau-santo, plantado maciçamente, luzidio, farto, a afirmar com orgulho a sua origem fradesca nas guarnições de tremidos, nas ferragens comidas de verdete, e nas grandes esferas superando, esmagando as pernas, curtas, torcidas como penitentes na tortura. À direita do bufete, um magnífico armário de castanho renascença refolhava, exuberativo, tropical, expluente de ovaluras e folhagens, tendo ao alto, sobre um frontão em arco, duas risonhas figuras de génios passando nas asas de uma ânfora uma grinalda. Caía-lhe a um dos lados, negligente, uma velha colcha cor-de-rosa seca, bordada a branco e ouro, solta, arrastando. A esquerda, um bufete mais pequeno, de ébano tauxiado a marfim, carregado de estampas e brochuras. Nos dois ângulos, sobre peanhas de talha, a porcelana de dois jarrões esguios, garatujados de azul num fundo pérola.
Caraira ao grande bufete-secretária ficava a porta da saleta dos serões; de forma que o barão podia, sentado à sua banca de trabalho, avistar, no aposento imediato, o cavalete vieux chêne com o retrato em busto da baronesa.
A direita dessa porta havia uma estante de pau-santo com livros, portas envidraçadas, o entablamento assente em colunas torcidas; outra estante análoga, mas mais alta, encostava à parede contígua; e, ligando os dois móveis, cortando o canto, uma azagaia passava de cornija a cornija, oblíqua, vergada ao peso de um pano espesso de veludo cor de vinho, que fazia fundo a uma estátua de mármore de Carrara. Era obra de Vítor Bastos: uma adolescente colhida nua, aproximando os joelhos, fazendo com as mãos concha aos seios.
Erguia-se confrangida, esbelta, entre as duas estantes, sobre um pedestal de pórfiro, à frente do veludo, que dava um realce incomparável à sua nudez puríssima e deslumbrante.
A esse lado, quase em frente da sacada que ficava à esquerda do bufete- secretária, estirava-se uma bela causeuse de cetim cor de pombo bordada a branco -- convidativa e macia, o torçal da grossa franja cor de canela pousando na alcatifa.
Seria fastidiento o inventário das pequenas preciosidades dispersas. Ao alto das estantes, exóticos budas, talhas da índia com largas folhas esmaltadas a branco num fundo castanho, das quais se perdeu o segredo; sobre o contador, velhos Saxes e um relógio império; no bufete, uma lâmpada Carcel, um tinteiro de prata com incrustações de ágata, sob um peso talhado em coral uma rima de manuscritos; pelas paredes, um tríptico de prata dourada, quadros a óleo, pastéis, gravuras, mísulas do século XVII com jarras, cofres, bronzes, e plintos com bustos e estatuetas.
Eugénio pasmava, considerava com um espanto que era quase desconfiança aquela colónia de maravilhas. Ele não lhes media o valor; não podia sentir o que havia de superiormente belo, de fascinador, de requintadamente bom e confortante naquele entesourar de raridades, naquele ardente rebuscar de harmonias plásticas, naquela seleção de cores, naquela coabitação de obras- primas. A voluptuosidade artística não a tinha; não lhe davam para isso a grosseria do temperamento nem os rudimentos da educação: mas uma noção vaga de prazer e de respeito fazia-o aplaudir. Só a estátua nua é que ele não podia encarar franco. Vedava-lho um pejo invencível. Com uma senhora ali presente, parecia-lhe um desacato.
-- Realmente «catita» esta sala!
-- Gosta?... -- acudiu o barão, tomando-lhe o braço.
-- Estou que, melhor, só no Paço da Ajuda.
-- Isso sim!... Há por aí muito... tomara eu!... Mas tenho algumas coisas menos más. Veja este quadro. -- E apontou-lhe com o indicador ligeiramente trémulo uma velha gravura que amarelejava no intervalo das sacadas, sobre a cadeira de pregaria.
O Rapto de Ganimedes. -- Júpiter, sob a forma de uma águia, sulca os ares abraçado à sua presa. As longas asas robustas prolongam-se no espaço, desdobradas; e as garras duras, luzentes, recolhem-se, empolgam de leve, com receio de ferir a encantadora criança, cujo corpo delicado pende para a terra num abandono gracioso. Ganimedes vai triste, numa atitude tocante de prostração e de desânimo; um pedaço de linho acaricia-lhe os quadris, flutuando, a cabeça descai-lhe sobre a espádua, e os olhos, entreabertos, parecem dizer-nos um lânguido adeus. Júpiter, na sua metamorfose, não perdeu a divindade; segue todo vaidoso do seu rapto; é bem a ave que maneja o raio; apenas trai na doçura do olhar o prazer que o amolece ao contacto do formoso troiano... Lambe-lhe, de bico aberto, o braço arredondado; e todo o seu ser arrogante e majestoso como que estremece no alvoroço de levar para o Olimpo o objeto do seu amor.
O belo grupo destaca num fundo de nuvens, abaixo das quais, na crista de um monte cheio de ruínas clássicas, o cão fiel de Ganimedes segue o avoejo do dono com ansiada ternura, cabeça ao ar, latindo.
Era uma gravura preciosíssima, duas vezes secular, de Coryn Boel; reproduzia o famoso quadro de Miguel Angelo. Tinha-a no lugar de honra o barão. Adorava-a. Queria-lhe como à melhor porção de si próprio. Era a consagração, o símbolo das suas abominações de pederasta.
Eugénio compreendeu. Instintivamente, viu naquela ave soberba e forte, estreitando um perfeito corpo de homem, a fúria secreta do barão cevando-se e mordendo na dulcidão da sua carne... Soltou o braço; -- um asco vago arrefecera-o.
A baronesa tinha-se aproximado.
-- Sempre estes homens que escrevem têm manias!... Esse pedaço de papel manchado e roto é, no entender do senhor meu marido, a melhor coisa da casa. Pessoa que aqui venha de novo, há de admirá-lo por força!
E o barão, num fuzilar de olhos:
-- Não o dava por dinheiro nenhum! -- Acendia um charuto. -- Pode fumar, Eugénio. A minha mulher não se incomoda. -- E, abrindo uma das vidraças do poente: -- Veja agora esta beleza.
Dizendo, adiantou-se, com Eugénio, na varanda, a olhar ao largo, de mão apoiada no parapeito de ferro fundido.
-- Com efeito! -- confirmou Eugénio, encantado.
O panorama era vasto e deslumbrante. A frente da casa, num plano muito inferior, dançava uma planície compacta de telhados, caliçosos, atropelados, cor de greda; furados de chaminés, claraboias, paus de bandeira, campanários; de onde a onde, o riso vermelho de um remendo novo; e renques pelintras de mansardas acocoradas nos beirais porejantes de verdura. Um chato amontoamento de angulosidades pardas, uma caótica profusão de linhas retas, que se cortava brusco, de um lado, sobre o Tejo, cujo azul arrepiado, frio, riscado de negro pela mancha linear dos navios, parecia uma pelúcia rasgada; e que do outro, para o norte, se ia adelgaçando e uniformizando na distância, pela caleira do vale, branquiçado de mármores, bronzeado de arvoredos, té fundir-se e perder-se no verde esmeraldino e húmido das últimas colinas; enquanto na frente, para além da monotonia da Baixa, trepava a encosta, definindo-se, erguendo fachadas carvoentas, cor de oca, brancas, formando anfiteatro, escurecendo como subia, té projetar-se em negro, com uma nitidez vigorosa, na luz cristalina e quente do céu que o sol acabava de deixar.
Desta franja irregular de prédios farripando o espaço, destacavam, do lado do rio, os quarteirões da Rua de S. Francisco; depois, subindo, a torre dos Mártires, os ventiladores, amplos como chapéus rubenescos, do Teatro da Trindade, a torre maciça de S. Roque, a esquina do Moinho de Vento, o talude, bracejando em árvores, de S. Pedro de Alcântara; e mais para cima, já entre quintais e hortas, coroando os grupos de casas que rareavam, a Escola Politécnica, um palácio em Campolide, e um mirante alto como uma almenara, esguio e branco.
Para lá da extensa bacia, esfumadamente, os flancos do Alfeite sangravam como chagas; e os montes da Outra Banda gibavam, canalizando o rio, mosqueados de casitas alvas -- como um dorso imenso de cetáceo que emergisse das águas, camarinhado de espuma.
Os últimos raios do sol, deixando na sombra o grosso irregular da casaria, rasavam horizontais a flecha dos edifícios, num céu muito claro, cujo ouro intenso ia degradando, para o alto, num cor-de-rosa percalino e brando, depois num roxo anilado e fraco, té perder-se longe pelo infinito num azul pálido, esmaecido... Nem uma nuvem pesando nesta levíssima, transcendente diluição de cores: apenas sobre o rio, no canal formado entre a cidade e Almada, a evaporação do dia engrossara um como túnel de poeira alaranjada e luminosa.
O empilhamento esmagador das cantarias tinha nesta luz crepuscular um aspeto sujo e melancólico. Riscavam-lhe uma longa faixa alvadia as traseiras do palácio Barcelinhos, e logo adiante as ruínas do Carmo rompiam daquele cancan de argila, lambidas de hera, tostadas, erguendo piedosamente no espaço, com mãos postas, as suas ogivas desamparadas, finas.
Gatos estendidos nas arestas dos telhados, mãos à frente como esfinges, gozavam numa beatitude esta agonia suavíssima do dia. As mansardas acachinavam-se, derrubadas, negras, como resignados perfis de octogenários.
Fumavam direitos das chaminés penachos ténues, tremulando. Bandadas de gaviões, em espirais, entrecruzavam-se. Um grande sossego pairava. E das ruas um vago rumor subia, fatigado.
A noite descia rápida. Uma uniformidade pardacenta fundia, apagava as coisas. Apenas agora, em Almada, à raiz do monte, os armazéns da beira do rio centelhavam, inflamados num clarão de incêndio; no Tejo um vaporzito rolava um fumo sanguinolento; pela cornija do arco da Rua Augusta escorregava uma banda cor-de-rosa; e à direita, em cima, no Moinho de Vento, uma claraboia, acesa como um farol, reverberava.
O barão chamou para dentro:
-- Anda até aqui, Elvira... Não bole uma folha.
E, ao voltar-se, viu todo o aposento incendido na rubra luz que vinha do poente; viu essa mesma luz corar e aquecer, dando uma perfeita ilusão de carne, o mármore finíssimo da estátua nua. E enquanto a baronesa se desculpava -- que via bem por entre os vidros --, e o efebo, de mão estendida no ar, para a direita, explicava -- que devia ser ali, passada tal travessa, a casa da sua Ester --, o barão abandonava-se, numa doce voluptuosidade, a toda a expansão do seu grande sentimento panteísta. O poema da Natureza embriagava-o. Sentia-se feliz. Achava natural, chegava a parecer-lhe bem ter trazido o amante para junto da esposa, para junto dos seus móveis queridos. -- Fora um acto lógico, uma síntese de sibarita: juntar assim, na mesma casa, tudo o que, de uma ou de outra forma, ele mais amava no mundo.
Acendiam-se as primeiras luzes. A vida exterior chamava-o. Bateu no ombro de Eugénio:
-- Vamos daí!
Depois desta primeira tarde passada em S. Cristóvão, Eugénio vinha assiduamente, a horas de almoço, em visita sobre o meio-dia, jantar, passar as noites. Assim o exigia o barão; e o rapaz, cada vez mais afeito aos mimos e molezas do conforto, acedia. -- Que lhe custava ir passar duas ou três horas a uma boa casa, onde eram seus amigos e onde se comia tão bem?... -- Mesmo o arranjo, a disposição, a seleção ornamental no adorno das melhores salas do palácio, inconscientemente, davam-lhe uma impressão indefinida, mas deliciosa, de bem-estar, de prazer. no meio da larga e opulenta sinfonia de cores, linhas, exotismos, antiqualhas, que o requintado senso artístico do barão conseguira organizar, aquele produto canalha da rua eterizava-se, deixava-se tomar desta admiração instintiva e regalada que em presença do Belo abre e ilumina as almas rudes.
Se vinha de manhã, recebiam-no na sala de jantar, sem cerimónia: -- a baronesa em roupão, fresca, cheirando a sabonete, o cabelo numa rosca negligente, os seios amojando; o barão todo afável, vestido para sair, o bigode muito acamado, a pele seca e macia. Almoçava-se... trocavam-se as novidades.
O sol vinha, através a cretonne escocesa das cortinas, quebrar-se no oleado, fingindo parquet, do soalho; as pratas luziam; havia um cheiro a café e a manteiga derretida; os canários chilreavam, debicavam na alface acabada de pôr, mergulhavam em banheirinhas de vidro e espanejavam-se, com um rufio de asas, desparzindo uma poeira líquida, leves, contentes.
Se vinha de tarde, para jantar, jogava com o barão uma partida de bilhar, a fazer horas, até chamarem para a mesa.
Quando aparecia de noite, o que era raro -- aborrecia-lhe... -- entretinha- se a ver estampas, no escritório, enquanto o barão, ao bufete, alinhava algum artigo, e a baronesa, na saleta ao lado, corria os dedos pelo piano soltamente, ou vinha sentar-se na poltrona envernizada a preto, e, com o seu candeeiro bizantino trazido para sobre a mesa indiana, bordava uma frioleira, detalhava o enredo do último romance lido, ou desfiava a psicologia amantética das suas conhecidas.
Possuído do respeito que lhe incutia este «meio» superior, Eugénio via em Elvira simplesmente uma senhora. Acatava-a e admirava-a. Nunca a menor faúla de desejo animal rompera ainda a aquecê-lo, perante a figurita rija e redonda da baronesa. A diferença de condições idealizava-lha. Sentia-a numa auréola, inatingível. Prestava-lhe este culto íntimo, todo ternura e todo austeridade, que dulcidamente nos agita perante essas brancas criaturas flutuando na claridade dos nossos sonhos de criança.
Por seu lado, também, a baronesa não via no efebo mais que um afilhado, um pupilo do marido. Acolhia-o bem, por condescendência a princípio, depois pelo hábito de o ver, depois ainda por esta simpatia que sempre acorda em nós a juventude dos outros. Mas, no fundo, indiferente.
-- Nem sabia bem como ele era! -- Votava-lhe um começo de estima despreocupada, em que havia um pouco de proteção e de bem-querença generosa, mas em cuja calma lisura jamais bolhara o turbulejo de um pensamento sensual. Para a baronesa, Eugénio figurava um rapazelho, um desprotegido, um órfão; nunca um homem.
Surpreendia-se ela às vezes do modo como o rapaz falava: porque Eugénio arrastava frequente por plebeísmos, por termos chulos, soezes, ambiguidades bandalhas, frases de um travor traiçoeiro e sujo. Chegava a ser ininteligível.
Traía-se. de uma vez, estava ele, de tarde, em S. Cristóvão, quando veio em visita aos barões Xavier da Câmara. Os dois falaram-se.
Finda a visita, perguntou o barão a Eugénio, referindo-se ao Câmara:
-- Conhece-lo?
E Eugénio, arregalando os olhos, com um sorriso largo de reticências:
-- Isto é um «gajo»!
Doutra vez, tratando-se de um caso de rua, Eugénio desatara em impropérios contra o «estarim», onde o «palrante» marcava muito devagar as horas e onde os «guitas» davam bordoada.
Perguntado se achava as mulheres de Lisboa bonitas: -- que por enquanto não podia dizer nada; ainda as não tinha «adicado» bem.
E contava uma partida real que vira fazer a dois «buscos»...
-- Dois quê?... -- fazia a baronesa.
-- Dois gatunos... Um deles «comera» com toda a limpeza a «retrusa»...
Agora era o barão que não percebia:
-- Que diabo é isso de «retrusa»?... Fala claro.
-- É a bolsa do dinheiro... Um dos súcios tinha-a palmado com toda a arte a um «golfo» -- um fidalgo --, e, quando este «se esbroncou», o outro «busco» veio num pulo fazer «pala» ao primeiro para se «tingar»! Uma perfeição.
E que para ele não havia tristezas senão quando faltava o «gadé». Dessem- lhe um bom «linguado recheado de lamiras»...
-- Um porte-monnaie bem cheio de libras, que todo o mundo era seu!
Como se vê, ia sendo de uma morosidade comprometedora o efeito civilizante das lições do barão.
-- Era esquisito!... -- pensava a baronesa. -- Como podia um rapaz inteligente e educado, como este era sem dúvida, falar daquele modo?... Ou não era realmente inteligente, ou era muitíssimo grosseiro, ou tivera uma péssima educação.
O barão explicava à esposa:
-- Que queres?... Vindo da província!
-- Ó filho, mas aquilo não são provincianismos... aquilo é calão. Não é Freixo de Espada à Cinta; é Mouraria.
-- Isso conforme... Que entendes tu do assunto?... O calão, as mais das vezes, não passa de um modo particular de dizer, que, sendo corrente, vernáculo num ponto qualquer do País, toma, ao ser trazido para a capital, um carácter exótico -- vês? -- que o abandalha.
E o barão prosseguia num vasto, num enlabirintado desdobramento de considerações sobre a morfologia da língua, que acabavam por afogar num dilúvio de confusão e de patranhas a dúvida no cérebro fraco da baronesa.
Não obstante: -- Mas Eugénio era, além disso -- contestava ela --, um ignorantão! Em se falando de literatura, não havia meio de lhe sacarrolhar palavra, fechava-se num mutismo desesperante, alvar. Não conhecia Hugo, Dumas, Feuillet, nem o Camilo; não recitava as Flores de Alma; nunca vira representar os Dois Renegados. Só uma vez é que citara como livros interessantes a Imperatriz Porcina, os Três Corcovados de Setúbal, a Princesa Magalona, as Poesias do Nabiça e o Auto de Santo Aleixo! Deste sabia ele:
Os bens deste firmamento Não estão sempre num ser, Que se mudam, como vento E vemos que num momento Vem o pesar, e o prazer.
A baronesa já desconfiara: -- se ele nem ler saberia!
E o barão:
-- Tem, com efeito, lido pouco... E faz muito bem! Não quer prejudicar com a assimilação da obra dos outros a virgindade de produção do seu talento. Para mais -- tu bem sabes --, isto de falar bem ou mal, muito ou pouco, para a avaliação de um espírito, não quer dizer coisa nenhuma. Aí tens tu o Gastão, engenheiro -- um rapaz de habilidade! Quem o ouvir, dá alguma coisa por ele?...
E era verdade.
-- O próprio Herculano -- digam quantos privam com ele --, a falar é uma desgraça... Depois, contigo, o rapaz acanha-se... -- E concluía, num prognóstico admirativo: -- Hás de vê-lo com a pena na mão!
Aparecia Eugénio também amiúde com os barões em público: -- nos teatros, no Passeio, no Campo Grande, a compras pelas ruas. Então do barão o rapaz era quase inseparável. Tornava-se reparada tamanha assiduidade.
Murmurava-se... Espalhou-se que o efebo morava na Rua da Rosa, em casa mobilada e mantida pelo barão. A coisa alastrou, soou, tomou corpo de escândalo. E tudo era uma incredulidade, um espanto: -- Podia lá ser!... Como diabo!?... -- porque, até àquele tempo, ninguém tinha dado pela andromania do barão, ninguém lhe soubera de um favorito.
Os mais íntimos arriscavam explicações, desculpas, negativas. Mormente Henrique Paradela, atormentado, não descansava em batalhar que semelhante invenção era uma calúnia infame e gratuita, porque aquele vício secreto e deprimente nunca ninguém o conhecera ao seu amigo. -- E ele sabia-lhe da vida... podia jurar.
D. Jacinta Miguéis odiava o efebo num receio vago, instintivamente, e frequente interpelava a filha: -- Donde vieram agora estas amizades?... Olha, teu marido está fazendo por essa lesma o que nunca fez por ti!
A Sra. Reodades censurava: -- que era um perigo dar assim tanta entrada em casa a um rapaz. O lume ao pé da estopa...
Xavier da Câmara era dos mais encarniçados detratores do barão. Parecia ter inveja ou ciúme: -- O barão com luxos gregos! Quem havia de dizer?... -- E, aos amigos, tudo era apregoar: -- Com uma mulher daquelas!... É burro, ou não é burro?... Deixa! Que só se eu não puder, é que o não faço outra coisa!
Um dia que o Paradela pediu licença para sair mais cedo do Ministério, encontrou em baixo, na Arcada, caminho do portão da «Guerra», o coronel Militão.
-- Viva o meu general! -- disse, ao cumprimentá-lo. -- Então, até lá acima, hem?
-- E verdade... cá vou ao meu fadário.
-- Ao «Gabinete»?
-- Não... o cavaco é na «primeira».
-- Gabo-lhe a pachorra.
-- Logo que dou a ordem, por aqui me venho gastar.
-- Porque não vai antes ao campo, dar um passeio?... Pudesse eu, com a Leonor e os pequenos! -- Maquinalmente, Henrique ia descendo a Arcada, a acompanhar o coronel.
-- Porque é preciso a gente mostrar-se... Isto cá na tropa é o jogo do empurra; se nós, os velhos, deixamos de aparecer, dizem logo que temos gota e mandam-nos à Junta!... Depois, é o meio de ter importância e saber as novidades. -- Aqui, parou, e continuou a meia voz, com intimativa, assentando a mão no tórax do amigo: -- O caso é que me andam agora aí a modos que a tramar uma promoção, que me vai preterir... Mas eu reclamo! -- berrou, erguendo o braço. E, outra vez baixo, distendendo com o polegar e o indicador a polpa da orelha rubra e carnuda: -- Ouvi por aqui zinir muita bala... Ninho atrás da orelha é que me não fazem! -- Depois, reatando o andar e enfiando o braço no de Henrique: -- E que me diz você do nosso barão de Lavos?
-- Tenho dó dele.
-- Aquilo é o diabo!
-- O coronel acredita!? -- interpelou Henrique, parando, indignado quase, de frente para o coronel.
E este, dando aos ombros, malicioso:
-- Eu sei, menino...
-- Ó meu amigo, mas -- pense bem! --, constou-lhe já porventura alguma vez que o Sebastião tivesse predileções daquelas?
-- Não, isso é verdade; mas, meu rico -- observou o coronel, de mão sobre o ombro de Henrique, piscando os olhos num risinho velhaco --, ele pode ter sido um grande sonso... Aqui estou eu, que nunca gostei de pequenos, e mais, quando fui major, em Tavira... não sei que peste me fervilhava no sangue, ou se era do clima... o que é certo é que, de cada vez que via o «terno» de tambores, sempre me davam umas melúrias!... Isto são moléstias que vêm coa idade.
-- O pior é que vai aí um falatório!
-- E o mais assanhado é o Câmara.
-- Devia ser o último a falar!
-- Decerto! Um valdevinos, um patife, que foi amante do falecido comendador Parreira...
-- Ó coronel...
-- É positivo!... foi amante dele e roubou-o! -- Tinham chegado ao portão do Ministério da Guerra. -- Como explica você este desafogo insolente em que o biltre vive agora?... Como explica que não aparecesse testamento, e deixasse apenas um espólio de dez ou doze contos um homem tão rico?...
-- Ele gastava tanto...
Ao tempo, o coronel pasmava diante de uma esplêndida rapariga que descia o mármore das escadas. -- Morena, alta e cheia, ondulante, descia com circunspeção e tristeza, vestida de preto, os olhos baixos, véu sobre o rosto, um rolo de papel nas mãos. -- E o coronel, todo lesto, com as brotoejas da testa roxas e os olhinhos vidracentos:
-- Henrique, ó Henrique amigo! Que me diz?... Com esta gastava eu... eh!
eh!... as minhas últimas munições de guerra!
-- Pois ainda?...
-- E haverá ministro que resista a uns olhos destes?
Seguia com a vista, inflamado, bamboando-se, a ondulação negra da rapariga a perder-se na chusma viscosa dos pretendentes.
Henrique Paradela deixou-o e tomou Rua do Ouro acima.
As versões que corriam sobre a vida do seu velho amigo preocupavam-no.
-- O Sebastião sodomita!... Agora, os trinta anos passados... quando tinha obrigação de pender para homem sério!... Não podia ser. -- E teimosamente levantava no sobressalto magoado do seu espírito uma tolerante arquitetura de argumentos, aclarações, desculpas à ostensiva depravação do amigo. -- O Sebastião fora sempre aquilo: uma excelente alma, indisciplinada, fogosa, com caprichos súbitos de fazer bem, com indomáveis impulsos generosos, que ele exercia num desprezo incondicional das conveniências, numa indiferença absoluta «do que poderiam dizer»... Nunca lhe havia de esquecer aquela história da Hermínia, uma pobre rapariga de quinze anos, com quem o barão, em solteiro, defrontara por acaso numa das suas excursões pela boémia do amor... Tinha sido mãe, poucos dias antes. O infame a quem a desgraçada cedera a virgindade, dera-lhe como prémio da oblata sublime o gérmen prolífico e o abandono. Ela fora empenhando e vendendo tudo, sucessivamente, desde as graças do corpo té à última camisa. Agora sucumbia à febre e à miséria, no enxovalho de uma alcova imunda de bordel. Pois o barão, apiedado, socorreu-a, forneceu-lhe médico, vestiu-a, pôs-lhe uma casita no campo, afrontou mesmo a opinião pública levando-a a distrair a toda a parte; e nem uma só vez quis regalar os sentidos nos seus encantos de mulher!
A rapariga, sem compreender, a estalar de dedicação, vexada, triste, chegou a pedir-lhe com lágrimas que a amasse, que lograsse na pujança juvenil da sua carne a soma de prazer a que tinha direito, que consentisse em tomar-lhe a medida à gratidão nos paroxismos da ternura... Ele recusou sempre: -- não a protegera com esse olhar; excluía uma retribuição grosseira a natureza do benefício... se algum lhe tinha feito. -- Pois podia ser agora isto do rapaz um caso análogo, uma veleidade caritativa, uma doidice, um exagero.
Mas a casa da Rua da Rosa? -- perante esta interrogação, a consciência de Henrique assustava-se e as atenuações ruíam na dúvida. O seu temperamento pautado, meticuloso e calmo tremia pelo equilíbrio da sua existência, posta assim em contacto com um homem de vida irregular, desacreditado; o seu nobre coração de amigo tremia na previsão de um escândalo insanável, destroçando a paz honesta do casal de S. Cristóvão.
Passava em frente do Montepio Geral, donde precisamente o barão saía.
Abraçou-o Henrique:
-- Adeus, Sebastião!
Este empalideceu um pouco, embaraçado.
-- Por aqui?!... Como vão lá em casa?
-- Bem... e a baronesa?
-- Menos mal. Aonde vais?
-- Vou meter-me numa carruagem e buscar a Leonor... Fazer umas visitas... Há que tempos que andamos para isto! E uma vergonha... E tu?
-- Sem destino. Acompanho-te ao trem.
Seguiram para o Rossio, de braço dado, silenciosos, laborados no mesmo embaraço. A primeira vez que, entre os dois, uma reserva cabia. Por fim, Henrique, num movimento claro, parou, e, tomando para si o amigo:
-- Ouve lá, ó Sebastião, diz-me com franqueza... -- Fitava-o nos olhos. -- Que espécie de relações são estas tuas com esse Eugénio?
-- Não to disse já?... Recomendaram-mo: preciso ampará-lo... E nem sei porque é tamanho espanto! Porque não acompanhe com ele... E tão bom rapazinho! -- Dizendo, o barão baixava os olhos à ponteira da bengala, com que fingia percutir distraidamente o lajedo do passeio.
Henrique tomou:
-- E esse segundo andar, no Bairro Alto?
-- Ó filho, tenho-o há tanto tempo -- que diabo!... Ninguém tem nada com isso... Sei fazer as coisas... Olha se alguém deu por tal?... Nem tu!
-- Mas...
-- É verdade... levava lá mulheres. -- Henrique teve um gesto de desgosto.
-- Agora instalei nele o rapaz. Forrei-me a procurar-lhe casa noutra parte e -- acrescentou de ironia -- acabei com a imoralidade!... Ora aí está.
Henrique, muito sério, com uma energia forçada, insistiu:
-- Sebastião! Olha bem para mim... Isso é verdade?
-- Pois não é! -- exclamou o barão, olhando o céu, sem encarar o amigo.
-- Não tens com ele...?
-- Não!... Já te disse; ando a ver se lhe arranjo um emprego.
-- Em todo o caso, vê lá... Sabes que falam... Toma conta!
-- Ora adeus!
-- És casado...
E o barão, irritando-se:
-- Que maçadores de moralistas!
Henrique, pensativo, acabara por acreditar o amigo. -- No fim de contas, era a coisa mais natural e mais simples ter o barão arranjado casa ao rapaz...
Isto, o mundo!... Que cegueira de gente!... só pelo prazer de dizer mal!
Fechou sobre si a porta do coupé em que tinha entrado, e, de mão para fora, estendida ao barão:
-- Desculpa...
Aproximava-se o dia 18 de Maio -- aniversário do nascimento da baronesa.
Cada ano, nesta data, invariavelmente, o portão de S. Cristóvão abria-se sobre todos os gonzos e uma festa cativante animava-lhe os salões. Era uma celebração pomposa e refinada, a que o barão aplicava de hábito o melhor das suas finas improvisações de artista. De cada vez vinha uma combinação nova, um atrativo, uma surpresa lisonjear os convidados e fazer à juventude provocante de Elvira um pouco de apoteose.
Também, era a única receção de aparato que na sua casa, durante todo o ano, consentia o barão. Não para fugir a despesas, mas em obediência à lógica do temperamento. Odiava as grossas reuniões, os juntamentos, a tumultuária agitação dos homens, a pressão das massas, o acotovelar da turbamulta; e isto quer no ar agitado e leve de um recinto público, quer na atmosfera parada e quente de um salão. Ia raro ao teatro; não suportava a sociedade. O atrito da multidão irritava-o, fazia-o doente, pesava-lhe no cérebro, punha-lhe as ideias em debandada, com uma intensidade, uma crueza e uma dor que iam crescendo na medida que as depredações do seu artritismo lhe minavam, com a idade, o normalismo das resistências fisiológicas.
Naquele dia, porém, fazia uma violência e recebia, mais em respeito ao mundo que por amor à esposa; e sempre depois ao esforço uma reação sobrevinha de sombrio, intratável hipocondrismo.
Aproximava-se pois o 18 de Maio: e um dia, sobre o almoço, organizava a baronesa com o marido a lista dos convidados. -- Quase a mesma do ano anterior; dois ou três, que tinham morrido, viera substituí-los igual número de relações de fresca data. -- A baronesa ia escrevendo, e de vez em quando parava, o extremo superior do lápis encostado ao lábio, a recordar-se: -- Quem mais?...
O barão ajudava:
-- Olha: o marquês de Torredeita... o Florindo...
-- O Câmara... -- acrescentou, depois de nova pausa, a baronesa.
E ia a escrever. Mas logo o barão, imperioso:
-- Não! Esse não!
A baronesa estremeceu. Uma rosácea de sangue manchou-lhe a face de vermelho, e as veiazitas azuis tumeficaram, grossas, latejando.
-- Não!?... -- inquiriu ela, de olhar franzido. -- Porquê?...
-- Porque não quero! -- volveu brusco o barão, com um brilho de intransigência rancorosa nos olhos profundos.
E a baronesa, placidamente:
-- Sebastião... Tu estás doido?...
-- Estarei o que tu quiseres... O Câmara não vem... não põe mais pé aqui!
Elvira agora empalideceu. Pousando a mão com o lápis sobre o papel e endireitando com dignidade o tronco, retorquiu:
-- Teimas em ofender-me com essa suspeita?... Voltas a lembrar-me aquilo em que não penso?... Acenas-me com o fruto proibido?... -- Atirou longe o lápis, num soberano gesto de enfado: -- És tolo!
O barão cruzou os braços e repetiu, mordaz:
-- Não vem!
-- Mas repara -- insistiu, com calor, a esposa -- que com essa omissão absurda agravas o mal, em vez de remediá-lo! Os restantes, acostumados a vê-lo aqui todos os anos, se sabem que ele agora não foi convidado, o que hão de dizer?... Verão na exclusão do homem a confirmação das suspeitas... Agrada-te? -- O barão, sempre de braços cruzados, baloiçava-se na cadeira e não desfitava da baronesa, incrédulo, sarcástico. Ela repontou, secada: -- Não imagines que tenho grande empenho de o ver cá!... O que quero é evitar o escândalo. Zelo o teu nome... E pagas-me com esse risinho!... -- Depois, tolerante, num conselho amigo: -- Pensa bem...
O barão baloiçava-se... Por fim ergueu-se, contrariado, e com um aceno de mão anuiu:
-- Põe lá...
A verdadeira origem desta súbita malquerença de D. Sebastião ao Câmara hemos de ir pedi-la, não a um impulso da sua honra em jogo, mas a uma causa mais em harmonia com a despolarização moral da sua vida.
Na noite do dia em que pela primeira vez Eugénio jantara em S. Cristóvão, o barão fora com ele ao Circo Price. Pelo caminho, interrogou-o: -- se sempre era verdade o que, dois dias antes, lhe tinha dito, na Rua da Rosa, de um homem que lhe oferecera casa noutra parte? -- E Eugénio: -- que sim... mas que importava isso?... Nem já de tal se lembrava. -- Porém o barão insistia, inflamado; queria pormenores, queria saber o nome do meliante; e que lhe dissesse as condições em que fora feita a proposta? Se lhe tinha oferecido mais do que ele lhe dava?... -- Se for coisa até onde eu possa chegar!... Eugénio foi torneando com manha o desejo do barão. -- Não se lembrava de nada, não sabia o nome do homem... Estava até que, vendo-o na rua, nem já o conhecia!... Por coisa nenhuma faria partida ao senhor barão!... Nem que lhe dessem ouro em pó! -- E como nem assim o amante aquietasse, Eugénio explicou, apertando-lhe o braço e sorrindo com ternura: -- Isto é brincadeira... Eu disse aquilo porque estava zangado.
Mas a inquietação, o sobressalto amoroso do barão voltava ao menor pretexto. Quando foi, depois, da visita do Câmara, e viu que Eugénio o conhecia e não formava dele o melhor juízo, tudo era perguntar, bastas vezes ao dia, com uma insistência selvagem: -- Mas donde o conheces?... Porque o alcunhaste de «gajo»?... Alguma te fez ele!... Donde o conheces? Que diabo! explica-te.
Eugénio foi, como pôde, resistindo; até que, uma vez, também no Circo -- tinha a função começado --, e o efebo exclamou para o barão, apontando à entrada, para um pequeno grupo que estacionava, em pé, debaixo do camarote real:
-- Olhe, olhe! O «gajo» que me queria ter por conta!... Lá está!... à entrada.
-- Qual é!? -- fez, voltando-se de ímpeto, o barão com uma onda de sangue a cachoar-lhe nas fontes.
-- Aquele, encostado à bengala, de bigodinho retorcido e grandes botões brancos.
-- E monóculo?...
-- Esse mesmo.
-- O Xavier!?
-- Percebeu agora?
Era Xavier da Câmara.
O barão, desde esse instante, odiou-o entranhadamente. Sentia nele um competidor, um concorrente, um irmão no vício, doente da mesma desvirtuação sexual, escravo do mesmo sodomitismo, e, para mais, um rival! -- com o desejo posto no mesmo objetivo... Junto dele o coração arrefecia- lhe. -- Conhecia-o bem agora!... As abominações, que corriam, do peralvilho com respeito ao defunto comendador Parreira, justificavam-se! -- Evitava-o.
Fugia de falar nele. Em casa, negava-se. Na rua, fazia que o não via. de uma vez até, em que parou a falar a um grupo onde o Câmara estava, chegou a estender a mão a todos menos a este, simulando distração.
Porque não era o barão moralmente homem de meias-tintas; a paixão dominava-o fácil; à menor pressão de contrariedade, o seu temperamento cálido e fraco saltava, como uma rolha de champagne, com um estampido cavo. começou a dar na vista a sua frieza de trato para com o Câmara. Não a disfarçava. Mas a explicação liam-na todos, una voce, na corte que o virtuoso sportman fazia à baronesa.
O Câmara, porém, que tinha realmente feito propostas a Eugénio, depois que viu este atrelado ao barão, compreendeu, achou natural o retraimento.
Por isso, quando alguém lhe insinuava que deixasse em paz a mulher ao barão, ele encolhia os ombros e tinha um riso especial. E de si para si resolveu afervorar no cerco à lourita gentil de S. Cristóvão.
Graças ao bom senso da baronesa, Xavier entrou pois no rol dos convidados para a festa de 18; e não faltou. Por sinal que foi dos primeiros a chegar. Ainda o gás, acendido de fresco, não havia tido tempo de aquecer as salas, e já o espaventoso marialva rojava as suas felicitações diante de Elvira, que o escutava risonha, com um pique de comoção na face, e nos olhos cor de alga um brilho húmido, fosforescente. Estava encantadora. Vestia com simpleza. Decotada. Sobre uma saia lisa de cetim branco, sem folho, uma segunda saia tufava, de tulle igualmente branco, apanhada aos lados por fartas tiras de tulle bordado e debruado com renda de Inglaterra. Uma tira análoga, enconchando, circundava em guisa de folho a saia de cetim, e formava leque posteriormente, ao longo da cauda. Um fichu Marie Antoinette, com renda, passava sobre as espáduas, vinha cruzar à frente do seio, e descia a atar sobre os rins, formando um grande laço, cujas duas pontas pendiam, muito longas, té à raiz da cauda e aí terminavam em diagonal, bifendidas, sob a fiada de laços de tulle igual ao do enconchado da saia, que as guarneciam. Nas pregas do tulle cachos de lilás. Ao pescoço um colar de pérolas. O cabelo levantado um pouco, ondeado, frisado em crespos ligeiros sobre a testa e as fontes!
Esta toilette fazia deliciosa a baronesa; dava um realce finíssimo ao cor-de-rosa polpudo e lácteo da sua carne florescente. Xavier da Câmara aquecia...
-- Mas que opulência de juventude, baronesa!... Que frescura!
-- Então que queria o senhor, na minha idade!... Ainda vou à escala ascendente.
-- Ah! Sem dúvida... E muito em baixo.
Curvava-se todo, de claque à frente de peito, a pomada das pastinhas luzindo no clarão que descia do grande lustre dourado.
-- Muito obrigada pela sua atenção! -- disse, apertando-lhe a mão, a baronesa. -- Que belas flores!... Tenho-as no meu toilette e aí as hei de conservar...
-- Enquanto não fanarem.
-- Naturalmente -- confirmou Elvira, velando na sombra do leque um risinho gaiato.
-- Serão durante um dia ditosas... Invejo-as! E ouso pedir-lhe, baronesa, que conserve no seu coração, um pouco mais do que o tempo de vida que resta a essas pobres flores, a grata lembrança de quem lhas deu...
Elvira, com uma graciosa mesura, aquiesceu sorrindo, e adiantou-se a receber D. Plácida, que acabava de apontar no topo da escada -- fresca, majestática, de seda roxa, folho Luís XV, rolos de tafetá da mesma cor, mais clara, aplicados sobre as costuras, medalhões bordados a vidrilhos e pérolas por todo o vestido, óculos de ouro e no grande penteado fidiesco um diadema de esmeraldas.
E uma sociedade mesclada foi enchendo rapidamente as salas. Vistas do Largo de S. Cristóvão, todas as sacadas da frente, no andar nobre do palácio, centelhavam, fortemente iluminadas. Em baixo, ao portão, os trens vinham desfilando. Um a um paravam, com um tropear de ferraduras... um pé irrepreensível descia a procurar o estribo, e logo o outro saltava, prolongado por um rápido escorço de perna calçada de seda, a pousar na calçada... depois, um bater de portinhola, novo estrupido de cavalos... e, no intervalo de carruagem em carruagem, a figura do guarda-portão projetando-se negra e solene na claridade do vestíbulo, que luxuriava em verduras, espelhentado, lúcido, ao fundo amostrando a macieza do duvet, riscado a barrazinhas luzentes, da escadaria.
No topo desta, para um lado da saleta de entrada, duas salas em correnteza se abriam, quadradas, altas, mobiladas parcamente, comunicando em cotovelo com o escritório do barão; do lado oposto ficava o salão de baile, em cujo fundo fora este ano armado um teatrinho. A toda esta parte do palácio conservava o barão, quase sem mudança, a decoração e o aspeto antigo. Nos tetos, côncavos, distantes, destingiam frescos de uma fatura ingénua; as guarnições, os estofos e os reposteiros, de damasco, já nas porções mais mordidas da luz esfiampavam, desbotados; a mobília, toda em vinhático ou envernizada com guarnições de bronze dourado, ou pintada de branco filetado a ouro, tinha falhas, mossas, laivos gordurentos, as linhas dos ornatos embutidas de pó; e as flores, que em fundos claros juncavam as alcatifas, deliam-se rapadas, gastas, nas direções das portas.
O barão parecia contente. Agora recebia ele nos braços o marquês de Torredeita -- o seu velho amigo! --, que já não via há bem tempo. Era um tipo franco, sadio, aberto; uma destas figuras de velho, consoladoras e resistentes, que num momento captam a simpatia e impõem a confiança.
Direito, grande, robusto, a mão e o pé pequeníssimos; gesto largo e a voz abaritonada; duas falripas de cãs alvíssimas orlando-lhe o crânio amplo, macio; o olhar firme e magnânimo, a epiderme cor-de-rosa, a face inteiramente escanhoada; um destes narizes retilíneos, prolongando a testa, das consciências sem mácula; um rico ar bonacheirão aclarando-lhe a fisionomia, e arqueando-lhe os grossos lábios um eterno sorriso de bondade e tolerância.
Limpo e cativante como uma tarde bem assoalhada de Outono. Trocava por gg os rr; e erguia de hábito a mão direita a puxar da nuca para a frente, com um jeito caricioso dos dedos, a seda prateada do cabelo. Derivava de nobre, antiquíssima família. No escudo do seu brasão cinco flores-de-lis, de ouro, saltavam, em sautor, de um campo azul. Tinha propriedades em Malta; e dos muros senhoriais do seu palácio, à frente dos panos de rás, pendiam telas numerosas de gentis-homens, como ele escanhoados e rosados, ventrudos, fortes, sorridentes, sobre o seu glorioso uniforme vermelho de bailios a cruz bífida luzindo.
-- Está pgincipesco isto, maganão! -- exclamava ele, olhando em torno, radiante. -- Tu quegues-me competig com o teu vizinho Penafiel?
-- Eu sim!... Falta-me o melhor.
-- Dinheigo!... Olha, gosto não tem ele mais! -- E já rodava para as salas interiores, bradando, de braços abertos: -- Mas onde me está essa gentil bagonesa!
A Sra. Reodades veio depois, com a filha -- esquirolenta, apagada, o cabelo em molhelha, uma túnica de seda lilás sobre o peito entabuado; os Paradelas com a Emazita; Horácio Martins; o coronel, com a inseparável gravata encarnada e na lapela a rosácea carmesim da Ordem de Cristo; o Mendonçazito; os pais e a irmã de Elvira; mulheres dúbias; um velho desembargador; funcionários, titulares, artistas; e, quase dos últimos, o Florindo, poeta e filósofo de nomeada -- alto, pálido, o olho cavado e negro, os molares esticando a face, o bigode rocambolesco. Uma esporadície do romantismo. Não sofria o vulgo; fazia-se passar por incompreendido. Dava-se ares de inspirado e tinha seis dentes postiços. A cabeleira, postiça também, cor de asa de corvo, basta, longa, inextricável, dobrava-se sobre as orelhas e rasava-lhe a gola da casaca. Nunca ouvia as primeiras palavras que lhe diziam... fingia-se distraído. Andava sempre de cara erguida, olhando ao alto, como perdido em sublimidades, alheado em transcendências. nas suas falas usava frases de pontifical, termos escovados, conceitos de ponto em branco: -- de algum crítico «má-língua», que o abocanhasse, dizia que era um «dicaz», o Parlamento era o «santuário das leis»; uma sentina era um «defecadouro»; a Academia a «sela curul do intelecto»; a Praça da Figueira o «pascigo da cidade». Era autor de uma obra de fôlego, O Imanente e o Contingente, de que se tinham vendido seis exemplares. Do seu traje de passeio era inseparável um jaquetão de veludo preto, bota alta e laço branco. Afirmava descender de um «brâmane»; e anos havia já que ele indefessamente perturbava o sono poeiroso das bibliotecas e dos arquivos, na fúria de juntar documentos comprobativos de tão conspícua ascendência.
Toda esta sociedade se baralhava, buliçosa, vária, levantando um murmurinho alto, casquinando; vinda em turnos prestar suas homenagens à baronesa; e espraiava-se depois na luz abundante das salas, ou boquejava pelos vãos das portas, na sombra dos reposteiros.
Tendia, ao tempo, a desaparecer a crinoline, essa abominável perversão do bom gosto, vinda de França, e que fora sempre o desespero do barão. Já não a usava a baronesa: o vestido caía-lhe quase sem roda, direito, sóbrio; e assim a sua figurita pequena e redonda, cingida num branco espumoso e leve, mais airosa e grácil destacava de entre a pesada formidolagem dos outros vestidos, embalonados, tufados, todos em cinzento, azul ou violeta -- as cores da moda --, todos laboriosamente ajoujados de vidrilhos, passamanes, franjas, galões e penduricalhos de preço.
Eugénio escoava-se pelos grupos, mortificado, vendido, com um ar palerma, sem saber que fazer das mãos. Ordenara-lhe o barão que não falasse.
Naturalmente, ele era o alvo das atenções, o centro dos comentários. Uma senhora larga, pálida, de barbela e nariz pendente, colar de ametistas, muito decotada, dizia para uma amiga, amancebada com um político em voga -- que ele tinha «boa pinta»; ao velho desembargador pareceu «ordinarote»; um pintor de género achava-o «bom pequeno».
A novidade, pois, desta noite era uma récita de crianças. Armara-se no salão de baile o teatrinho, todo em lona pintada, lilipucino, branco, uma riquíssima colcha de damasco verde, bordado a ouro, caída à boca do proscénio, na frente do qual as bancadas do salão se alinhavam, paralelamente.
Enquanto não começava o espetáculo, Horácio Martins conversava a um lado, junto a um tremó dourado, com a baronesa. Era um rapaz baixo e magro, ligeiramente estrábico, de olhar tímido, e testa lisa e serena. Ciciava as palavras, não tinha um gesto, e os olhos, frios, parados, pousavam imovelmente numa das pernas do tremó... Amara extremosamente Elvira; e ela correspondia-lhe por igual. Pediu-a em casamento... -- Não passava de um simples caixeiro de cobrança de uma casa de comércio, ao Corpo Santo, -- e Inácio Miguéis fantasiava melhor fortuna para a filha. Rejeitado. Elvira teve desmaios; comeu lumes prontos. Com um amante de decisão, instigada, teria fugido. Porém Horácio tinha uma alma de molusco: a sua mansa submissão e uns vomitórios curaram-na depressa.
Veio depois o casamento com o barão; e Horácio abotoou-se nesta resignação passiva e triste das situações sem remédio. Linfático e obscuro, tinha um feitio pegadiço e mole. Ficou amando Elvira espiritualmente, numa adoração interior, não como mulher, porém como uma ilusão tombada, uma lembrança, um vislumbre perdido de ventura... e comprazia-se em tecer com ela uns eternos diálogos, humildes, a meia voz, quase segredados, que nem eram provocação nem queixume, em que a doce modéstia da sua alma hauria um travor voluptuoso, e vivendo todos, nunca na audácia de uma esperança, antes sempre na saudade das recordações.
O barão sentia-o inofensivo. Tratava-o benévolo; estimava-o. Jamais o preocupou a intenção nem o assunto desses largos cavacos platónicos. A baronesa, parte por gratidão, parte por um impulso íntimo, estimava-o também, tinha com ele a mesma complacência e suportava-o.
-- Pois bem -- dizia-lhe ela, esta noite --, mas ainda não falámos de si...
-- Vejo-a feliz, minha senhora... Estou bem.
-- Feliz! Eu?... -- suspirou, erguendo-se, a baronesa. E logo derivou, muito alto, para o barão que apontara de dentro do teatrinho: -- Então, pode começar isto?
Podia.
Encheu-se a sala. Representaram-se três provérbios franceses, leves, inocentes. Os pequeninos atores tiveram-se de um modo adorável. Sobretudo Ema, encarregada dos primeiros papéis, foi inexcedível de inteligência e graça.
Cumulados de bombons e de beijos, perante o desvanecimento das mamãs.
No fim, as bancadas voltaram para junto às paredes e a dança rompeu, cortada a espaços por um avoejar de rabonas de criados com bandejas.
O marquês de Torredeita refugiara-se, com Florindo e o coronel, a fumar, no escritório do barão. O marquês, bonacheiramente reclinado na causeuse cor de pombo, a cabeça ao alto seguindo as espiralagens do fumo, que se imobilizavam no ar quente e parado, dizia para os dois, com um leve acento admirativo:
-- Este magoto deste bagão tem negvo de aguetista!... Vejam isto... que beleza!... E sempgue coisas novas... Nunca aqui venho, que não encontgue que admigag.
-- Tem a mania destas coisas, tem... -- apoiou o coronel, de pé, as pernas em compasso, sacudindo num cinzeiro sobre o grande bufete de pau-santo a ponta do charuto. -- Se eu o conhecesse há mais tempo, de quando fui governador militar em Coimbra, podia-lhe ter dado um presente que ele havia de estimar.
-- Sim? -- fez o marquês, curioso, destrocando as pernas.
-- É verdade! Apareceu por acaso ali, no arrabalde, uma argola de ouro, muito velha... diziam que do tempo dos mouros, ou dos romanos. Deram-ma...
-- E V. Exa.?...
-- Para que queria eu aquilo?... Ofereci-a a um amigo meu que andava organizando um pequeno museu mitológico.
-- Arqueológico, talvez... -- emendou o Florindo.
-- Ou isso... não sei. É a mesma rima -- obtemperou Militão prontamente, iludindo a tolice. -- Hão de concordar que para o barão...
-- Ah! -- confirmou com um grande aceno de cabeça o marquês -- ega um mimo inestimável.
-- Sempre valeria mais do que aquele trapo amarelo -- disse o coronel, apontando o Rapto de Ganimedes.
Florindo, que estava sentado na cadeira de couro, mesmo por baixo da gravura, ergueu-se, e, voltado para ela, costas ao bufete, explicou:
-- Isto afinal não passa de um documento mórbido na evolução secular da humanidade. Filia-se nas tendências aberrativas da espécie humana a sodomia; é um fator moral da sua degenerescência, como são fatores físicos a sífilis, a lepra e o espartilho. A pederastia é uma das formas da nevrose: floresceu na Grécia; tivemo-la no Oriente, o divino Livro dos Hinos da religião hindu lá insere a tradição análoga de Indra, levando o jovem Medhatithi através do mundo e dos céus; mesmo ainda hoje na índia o efebismo tem, como em Lucknow e Lahore, um culto extraordinário. E então cá pela Europa, é o que todos nós sabemos...
-- Fortes bestas! -- rugiu o coronel, dando dois passos no aposento, o braço brandido no ar, a testa vermelha.
Entrava com Henrique o barão, que perguntou:
-- Pode saber-se quem lhe merece tão desavergonhada invetiva, coronel?
-- Pois não pode!
-- Está fulo contga os apgueciadogues do sexo fogte! -- explicou numa ampla gargalhada, levantando-se, o marquês.
-- Sim! Mete-me nojo toda essa gente a quem dá para gostar de garotos... Irra!
Perturbou-se o barão. Mas logo, senhoreando-se, estendeu a mão emaciada, e plácido, risonho, com este tom a um tempo motejador e convicto de quem vai por prazer desdobrar um paradoxo, aventurou:
-- O meus amigos, queiram perdoar... mas não estou de acordo. -- Acercaram-se todos, com interesse. -- Se encaramos a questão pelo lado afetivo, a nossa preferência deve ser para a mulher... muito bem!... Mas em face da estesia pura, medido no estalão da boa plástica, o corpo do varão é muito mais nobre, muito mais perfeito e harmónico de formas do que o corpo feminino!
-- Oh!... -- explodiram, num coro de indignação e de surpresa.
-- Essa agora! -- exclamou, da porta, Xavier da Câmara, que vinha também fumar e ouvira as últimas palavras do barão.
Mas este prosseguiu, sempre plácido, com o mesmo ar zombeteiro:
-- Pois não é assim?... Olhem-me aquela gravura. -- Apontava o Rapto de Ganimedes. -- Que encontram os meus amigos na melhor das mulheres... à vontade!... Que vão encontrar nela de superior àquele corpo divino em suavidade de linhas, em pureza de contorno, em ritmo, em delicadeza, em graça?... Há nada na mulher capaz de competir com a modelação daquela carne, que é cheia sem ser crassa, que é firme sem ser dura, que é lisa sem ser mole, e que é fina e enxuta sem magreza?... -- Cruzava as mãos sobre o ventre, e num dar de ombros envaidecido, correndo com a vista pela multidão, desafiava:
-- Digam!
-- Oh! Meu Deus! Pois não há!... -- contraditou o marquês, apontando a estátua de mármore. -- Não vamos mais longe... Aqui tens tu um cogpo de mulher que...
-- Essa estátua -- gritou o barão, triunfante -- é precisamente um argumento no meu favor!... Figura uma mulher, sim, mas no primeiro período da adolescência, quando a anatomia do sexo se não completou ainda. A forma admirável dessa escultura é neutra -- quase podia ser de um efebo. Parece um anjo... e os anjos não têm sexo! Ali o tecido celular ainda não é em demasia, ainda não engrossou as articulações, ainda não empastou o relevo. Faltam-lhe as redondezas, as excrescências da mulher feita; e é precisamente nessa sobriedade de ádipos que reside a sua beleza, o seu afinamento.
As pessoas olhavam-se intrigadas. Florindo, de braços cruzados e olho meditativo, cofiando a pêra, dignara-se prestar atenção. Henrique fora esconder-se na poltrona, a morder o bigode, cabisbaixo, cheio de tristeza.
Xavier da Câmara colhia as palavras do barão num tácito aplauso. O coronel monologava, entre froixos de riso: -- Ora!... Ora!... -- O marquês, anediando as cãs, media o pavimento em torcicolos de arrelia.
E o barão então, com grande intimativa, agora sério, os olhos em brasa, os longos dedos trémulos acolchetando o espaço, continuava:
-- Oh senhores! Pois se nós vemos que em toda a escala animal o macho é mais belo do que a fêmea, para que havemos de querer que a espécie humana faça exceção?... O que nos faz ver a mulher superior em matéria de beleza é puramente uma qualidade de organização, uma questão sensual, uma solicitação do sexo. A pujança das suas curvas fascina-nos... erotiza-nos a sua orbicuidade. Somos assim feitos... Mas não confundamos a atração carnal com a impressão artística, a fisiologia com o sentimento, a ereção com a Arte! O nosso entusiasmo perante a mulher não é de forma alguma um movimento psíquico; é um mero, um trivial fenómeno de osmose do sangue num órgão especial.
Interrupções incrédulas cortaram o discurso. -- Esta não é má! -- E a primeira vez que tal ouço! -- Henrique arrastara o pé na alcatifa, numa tração de desgosto. Xavier da Câmara aparentava ser o mais discorde; mas o monóculo caíra-lhe; e a face dilatada, e o olhar incendido e fixo traíam nele uma uniformidade de pontos de vista sobre as teorias peregrinas do barão.
Este prosseguiu, apostolando com fervor a sua tese:
-- No corpo do homem todas as redondezas se explicam: são apenas o invólucro bastante à expansão muscular. Na mulher, não. O corpo feminino é um acervo de redundâncias: -- redundância dos seios sobre o tórax, redundância do ventre bojando, engelhando, caindo em pregas, redundância da bacia alargando, engrossando os quadris, redundâncias pendendo na região do sacro. -- E como os ouvintes lhe voltassem costas, numa objeção unânime, ele insistiu: -- Desenganem-se! Entre o Apoio do belvedere e a Vénus de Milo, o pomo da vitória é para o primeiro.
-- Como quem diz -- casquinou o Câmara --, entre um soldado da Municipal e uma andaluza, devemos optar pelo soldado!
E o Florindo:
-- Isso não se pode afirmar em absoluto.
Mas o barão, arrastado nas predileções do temperamento, cego, todo no impulso da sua febre:
-- Pois não pode!... Vamos buscar um corpo de homem e um de mulher, em igualdade de condições... -- Voltava a colocar-se no meio deles. -- A um «meio» que nos possa fornecer os melhores modelos, desenvolvidos pela ginástica ou pelo franco exercício da vida animal... Exemplo, ao Circo. -- Segurava-os pelos braços. -- Comparemos... O atleta é harmonioso, perfeito, simples: toda aquela carne vive e é forte na sua sobriedade; não tem molezas, nem tem demasias; resulta da fibrinagem dos tecidos ativos; escorre larga, enxuta, fácil, numa gradação racional, proporcionada, desde a curva dos peitorais à musculatura da coxa... e vem-lhe disto a elegância; a maior dimensão reside em cima, nos ombros, largos, direitos, e o corpo vem afinando depois e estreitando, invariavelmente, pela linha do quadril e da perna, té à junção dos pés. Na mulher, o contrário: os ombros são sempre estreitos, em ladeira... depois o torso alarga desgraciosamente para os quadris... e, passados estes, a coxa tumeja de um modo excessivo, nauseante, por vezes inverosímil, lembrando um pião, prolongada como é por uma perna rapidamente fina.
E perorava com veemência, enardecido, trémulo:
-- Oh! O macho é o aticismo, a beleza sem atavio, confiante na própria essência; a fêmea é o gongorismo, a turgidez, o tédio...
Aqui o marquês exclamou, erguendo ao alto os braços:
-- Ó Sebastião! Tu não estás bom.
-- Está calado... -- veio suplicar a meia voz, pousando-lhe a mão no ombro, Henrique Paradela.
O barão não via, não ouvia nada:
-- O grande Aquiles, ao deplorar a morte de Pátroclo, lá diz:
Femorum tuorum sanctae consuetudinis Quid pulchrius!
-- Ó menino -- atalhou o marquês --, pegdoa... mas estou fagto de ouvig baboseigas. Vou paga o pé das damas.
-- E dois! -- apoiou o coronel.
-- E a fogma do meu pgotesto.
-- Para mais -- voltou o barão, demorando os dois --, esperem!... as formas da mulher engrossam de ordinário com a idade. Na Península isto é fatal, depois dos trinta anos... Escolha-se aí a mais elançada, a mais ideal, a mais nervosa elegância: dobrado o cabo dos trinta é ver! -- atarracou, achatou, cevou, fez-se quadrada...
-- As vezes, cúbica! -- disse, rindo, o marquês.
-- O barão -- pediu o Câmara, simulando um ar maçado --, tenha dó da gente!... Ponto nas heresias!
O barão estacou, a face bilisou-se-lhe, e, varando o rival com um olhar rancoroso e fundo:
-- Homem! Que outro qualquer divergisse das minhas ideias... mas o senhor!...
-- Eu?... -- fez Xavier, naturalmente. -- Então que tem?
-- O senhor, sim!
-- Não percebo...
Houve um silêncio... Arrefeceram todos. Sentia-se iminente uma disputa.
Chegavam flébeis as notas de uma valsa. O marquês e o coronel, que tinham já transposto a porta na direção das salas, voltaram-se, inquietos; Henrique punha as mãos na cabeça e o Câmara, depois de um segundo reflexivo, fez-se de cera, e adiantou-se ao barão, formalizado:
-- Barão... V. Exa. há de explicar essa sua frase.
-- Para quê?... -- retrucou o barão, fitando-o sempre, com insolência.
-- Há de explicá-la!
E o barão, dando-lhe as costas:
-- Entenda-a como quiser!
-- Não, isso é que há de!... aliás... -- insistia o ofendido, com energia, entre os amigos, que se tinham interposto e procuravam arrastá-lo para fora do escritório. -- E um procedimento insólito!... Deixem-me! -- barafustava, nos braços de Henrique e do coronel, que iam desculpando:
-- Não vale nada... Exaltou-se... Aquele génio!...
Fazia cauda o Florindo.
Assim conseguiram, numa grande confusão de vozes e de gestos, levar o janota para longe; enquanto o barão se arrojava para a cadeira de couro, e na sua frente o marquês, em pé, de braços cruzados, murmurava amigável, bamboando a grande cabeça luminosa:
-- Sempgue sem juízo!
CAPÍTULO VIII
Foi crescendo, ascuando ladravazmente a paixão por Eugénio na alma doente do barão. O seu temperamento descraseava-se; dominava-o o orgasmo daquela obsessão violenta e dolorosa. Uma excitação devastadora e ácida escareava-o, fazia-o alternadamente gozar e sofrer. Ora andava luminoso e afável, leve desta alegria ruidosa e boa que marca no homem a realização de um capricho; ora se volvia desconfortado, triste, o ar inquieto e suspicaz, a face encorreada e sombria.
Poder de resistência nenhum. Escravo da cacoquimia ingénita, ia trupando cegamente na cauda dos seus instintos.
De princípio, antes de conhecer Eugénio, estas predileções antinaturais tinham de ordinário uma ação toda exterior e uma duração efémera. Eram exceções morais; erros, apetites de um dia. A falta de equilíbrio da sua organização dava-lhe à emotividade uma hiperestesia doente; e um histerismo da inteligência, junto com uma exageração do sentimento plástico, faziam-no sensível em extremo às várias formas de beleza. Qualquer harmoniosa ligação de cores, de linhas, por insignificante que fosse, impressionava-o. O mínimo elemento estético, para a grande maioria despercebido, feria-lhe a retina com uma intensidade despótica e veemente. Ficava o barão subjugado. -- Tal corpo esbelto de efebo, tal perna elástica de varina, uma ondulação de cinta, um quadril nervoso, um talhe de olhos, um corte de cabeça, um quadro, um móvel -- que a multidão encarava fria, indiferente --, a ele atraíam-no, prendiam-no, picavam-no de gula, torciam-no de rábidas apetências; e o barão buscava então apreender, tocar, admirar longamente, possuir por todos os sentidos o objeto que assim vinha atormentar a sua idiossincrasia artística em violências irresistíveis. Porque logo, fatalmente, por uma degradação natural, se lhe convertia esta alta emoção, toda da inteligência, num movimento sensual ou numa irritação lasciva.
Assim, se a coisa era possível, o móvel, o objeto de arte era comprado; o efebo cedia ao suborno, ao lenocínio, aos mais baixos meios de sedução.
Tinha-os o barão pelos seus -- era feliz! E fruía-os com ardor... balaiava neles a todo o pano os seus êxtases de artista ou as suas abjeções de pederasta.
Depois vinha, com a posse inteira, a saciedade; vinha a reação das energias salutares; e o desgosto no convencimento da inatingibilidade do ideal, da perfeição sonhada... Então, breve, o efebo esquecia, aborrecia. E o barão, num ímpeto de tédio, despedia-o, com o mesmo furor intransigente com que iria no dia seguinte desfazer-se -- não importava porque preço -- de um artigo raro, adquirido meses antes com entusiasmo, a peso de ouro, em qualquer loja de bric-à-brac.
Porém agora, com Eugénio, não. Era mais grave. Perdera a faculdade de reagir. Enraizava no amor e no vício esta atração abominável.
A intimidade dos dois tornara-se pertinaz, contínua, absoluta. Quase ininterrompidamente, as visitas de Eugénio a S. Cristóvão alternavam com as visitas do barão à Rua da Rosa. E aqui, neste algar obscuro de inconfessadas torpezas, na cumplicidade estimulante da penumbra, cerradas as portas das sacadas ou diminuída a luz do candeeiro, a diátese do barão, posta à vontade, resfolgava as ânsias, todas carnais, do seu destino; clownizava aos trancos, embriagada, sôfrega, por todos os espasmos, todas as convulsões, todas as febres de uma luxúria ardente e envenenada.
Em público, sempre alerta a cobardia moral do barão. Aí punha ele todo o cuidado em ocultar a natureza das suas relações com o efebo. Afável para Eugénio, familiar, amigo, falava-lhe todavia de alto, sublinhando o gesto, a frase com um ar de proteção que marcasse aos olhos do mundo a distância que ostensivamente devia separá-los.
E sempre liberalizando-lhe a deferência espontânea, amável do superior para o inferior. Dava-lhe os melhores lugares, fazia-o passar primeiro as portas, assentava-lhe de vez em quando no ombro paternalmente a mão.
Desaparecia o «tu»; e os tratamentos lamechas da intimidade -- «filho»... «meu narciso»... «minha flor» --, sempre cuidadosamente substituídos por -- «meu caro Eugénio»... «meu rapazote»... «meu nobre amigo». Isto mantido com a manha imperturbável de um sonso, rebuçado numa constante hipocrisia, que à força de astúcia e método chegava a ser pavorosa.
Somente em casa, com a esposa, levado desta necessidade de expansão que nos dilata na consciência a tepidez tranquila do at home, se permitia falar um pouco a sabor da sua predileção, do seu instinto.
Não raro, muito cordial, uma flamazinha amoruda nos grandes olhos negros, ele entretinha a baronesa com o relato das perfeições do amante.
-- E um excelente rapaz, não achas?... -- dizia-lhe uma vez, sobre o almoço. -- E bonito... Que elegância de porte! Que macieza de cútis!... Já reparaste?
Elvira mal o ouvia.
-- Nem eu tinha mais que fazer! -- respondeu.
E ficou-se a pensar noutra coisa. Não a prendia o assunto.
O barão, porém, disse, fiado na inexperiência da esposa:
-- E um corpo tão bem torneado... Que abençoada saúde!
Ela, na mais inteira indiferença, classificou o rapaz de sensaborão. Achava-lhe as mãos ásperas; -- e que tinha um ar imbecil.
-- Não digas isso, filha! -- contrariou logo o barão, cofiando o bigode, erguendo-se. -- Tudo aquilo é saúde, força. É ura corpo primaveril!... Não vês o sangue como lhe espirra das faces?
-- E que tenho eu com isso? -- acudiu Elvira, num bom humor negligente, baloiçando na ponta do pé o chapim cor de cana. -- Olha... Lembra-me estes homens dos talhos... Enjoa-me.
Mas o barão parava diante dela e exclamava, animado, arregalando os olhos:
-- O Vivi, que é lindo!... Onde viste tu já uns olhos como aqueles... tão rasgados... de um molde egípcio tão perfeito e tão raro?... Uns olhos macios, doces como o veludo, e como a azeitona húmidos, escuros?... Ora repara! Onde viste?...
E a baronesa atalhou, a rir, atinando, sem saber, com a verdade:
-- Estás apaixonado!
Eugénio ia tirando a maior soma possível de interesses da sua situação abominosa. Natureza doble e indecisa, carácter bastardo, alma de argila -- capaz, segundo a hora, o dia e o lugar, do bem ou do mal, do vício ou da virtude, da abstinência ou da orgia --, dava-se a explorar sem sombra de dó nem de escrúpulo a inesgotável complacência do amante. Assim exercia, numa inconsciência, a vingança do seu aviltamento.
Pagava-lhe agora o barão dois mil-réis por dia, fora extraordinários, que eram formidáveis. Com este dinheiro pudera Eugénio tirar a Ester de casa da Paca: tinha-a pela sua conta. Alugara-lhe um 2.° andar, à Mouraria. Aí passava as magras horas que podia furtar ao barão; e quanto dinheiro lograva caçar a este, todo era gasto com a rapariga. Um carrear de formiga. Presenteava-a de mimos, joias, vestidos caros; engalanava-lhe o quarto de luzidas bonecragens; ia-a enchendo de roupas brancas. Fora o que apanhava para si... Era junto do barão um pedinchar constante, um infindável rol de necessidades. Nunca atravessava com ele a Baixa, que do precioso filão não extraísse algum valor mais.
Agora, cortava de repente por uma travessa, andando e dizendo:
-- O barão, vamos aqui ao Cocó comprar uns pastéis e uma garrafinha de kermann. Ando muito fraco.
Logo, como passasse em frente de uma camisaria:
-- Tem aí uns dois mil-réis?... Lembrou-me agora: ando precisado de gravatas.
Ou então, à porta do Roxo:
-- Preciso tanto de um chapéu!
O barão arriscava:
-- O filho, esse ainda está bom.
Mas Eugénio, secamente, com um momo de enfado:
-- Não está!
E entrava na loja.
E o barão submetia-se... Entrava empós dele, vinha para a porta das lojas, esperava, voltava dentro, aconselhava na escolha do artefacto. E ao fim pagava, as mais das vezes contrariado, frio, com uma retração dolorosa, mas sem uma objeção, sem uma censura, sem a mínima ostensão de má vontade, sem a menor marca de azedume. Apenas, de vez em quando, um: -- Sais-me muito caro! -- dito num sorriso que era um incitamento.
A maior parte das vezes, toda a indústria de Eugénio se cifrava em lhe apanhar dinheiro.
Se costeavam de acaso as portadas de um armazém de mobília, rogava, por exemplo:
-- O barão, compra-me um sofá, um guarda-fato daqueles?
D. Sebastião moía:
-- Vá lá...
E o efebo ia a entrar; mas logo, simulando mudança de resolução:
-- Para não demorarmos agora... Quanto poderá custar?
O barão avaliava; e o rapaz, estendendo a mão:
-- Dê cá o «gadé»... Venho comprar amanhã.
As maiores e mais fáceis extorsões tinham lugar na Rua da Rosa. Aqui, depois de uma dessas aproximações extenuantes em que o temperamento dartroso do barão se galvanizava; quando Eugénio o colhia derreado, inerte, numa passiva beatitude, a pálpebra longa, o olho amortecido, húmido, os nervos destemperados e a vontade à mercê do seu primeiro capricho; então chegava-se, e, humilde, mocanqueiro, roçando-o de leve ou afinando-lhe as guias do bigode, murmurava com a voz meiga, insidiosa:
-- Ó barãozinho da minha alma, ainda não paguei o feitio deste fato... Fiquei de satisfazer amanhã... São seis mil-réis... Palavra! Mostro-lhe a conta... Não mos empresta?
E o dinheiro lá ia, quantioso, farto, para casa da Ester. Havia ocasiões em que Eugénio, faltando ao barão, tomava para casa da amante, seguido por um galego com um cabaz. -- Iguarias, vinhos, doces de cogulo. -- Punha-se a mesa num instante; acendiam-se todas as luzes; e os dois ali, na plena expansão do seu amor, felizes, brincalhando, improvisavam pequenas pândegas íntimas, pantagruelismos deliciosos, que se prolongavam pela noite adiante e terminavam por longos, tremiculosos amplexos, em cujas espirais vortilhava generoso, ardente, o sangue dessas duas juventudes.
De mais sabia a Ester de que sodomítica origem lhe fluía a abundância no regaço. -- Não lhe importava... Tinha o que queria; e Eugénio era jovem e belo, demorado e quente no amor... Tanto bastava aos seus 22 anos. -- Eugénio às vezes lembrava-se de poupar um pouco o barão. Vinha-lhe, raríssimo, algum segundo de pena, de remorso; vinha-lhe principalmente o medo de o «espantar». Mas a Ester fazia-lhe vergonha do seu bom movimento.
-- Anda-me com o «trangola»!... Quem quer ter luxos, paga-os bem.
A verdade é que estes saques repetidos e avultados iam minando um desequilíbrio grande nas finanças do barão. Não lhe davam para tanto os rendimentos da sua casa. Quando Henrique o tinha encontrado à porta do Montepio, saía ele de levantar uns centos de mil-réis, que ali tinha em depósito. Desconfiara já o olho esperto de Eugénio de que nem sempre bojava recheada a bolsa do amante. Algumas vezes surpreendera ele o esforço de uma violência na passividade magnânima do barão, pagando. Mas nem por isso apiedava. Se, raro, lhe acudia que não devia ser ingrato com o «pobre diabo», era um relâmpago. Não se acomodava a gratidão nem a clemência na sua alma de lascarino. -- Que não fosse «fona»! -- Tranquilizava-o, para mais, esta consideração: -- O barão era rico. -- Porque a miséria vê sempre a riqueza dos outros ao microscópio. Para o proletário avolumam em proporções de exagero os recursos do homem de fortuna.
O barão inquietava-se e sofria... Conhecia bem que começara a escorregar no ladeiramento da ruína. Adivinhava a ensombrar-lhe o futuro um viver tortuoso de expedientes, a humilhante espoliação da agiotagem, os compromissos insolúveis, o sustento dia-a-dia atamancado, o passivo de hoje invariavelmente descontado sobre o ativo de amanhã. A seguir, o calote, a bancarrota, a vergonha, a fome... Era fatal. -- Quereria parar... mas as solicitações do efebo tinham mais força!
Por isso fechava os olhos e abandonava-se ao rumo da sorte com este calmo desespero do náufrago, perdido entre dois infinitos, que, exausto de rebolar debalde em todas as direções a vista alanceada, se resigna por fim a deixar-se afundar na morte, a cabeça ao alto, pendendo os braços, lentamente.
E esta quase certeza no cavar da própria desgraça, a despeito de tudo, aprazia-lhe: aziumava-lhe as dulcituras da paixão, punha-lhe nos gorjeios da alma uma irritação de troça, uma caligem de ameaça, um frio acre e arrepiante, que eram para o seu modo doente de sentir uma duplicação de gozo, um pique, um estímulo, uma excitação mais.
Tal mórbida aspereza de nervos, carecida de aplicação, toda naturalmente se condensava pois em ódio a Xavier da Câmara. Não podia agora o barão sofrer este ostentoso peralta, que parecia feito para triunfar no mundo; que tinha por si as condições todas de êxito -- a beleza, o garridismo, o descaramento, a petulância, a audácia; e que, não contente em lhe galantear a esposa, parecia querer também subtrair-lhe o amante! Não o suportava; tinha- lhe uma sede de morte. Era o travanco da sua vida. Abominava-o. De cada vez que o vistoso sportman lhe lembrava -- e acontecia amiúde --, um gorgulho de raiva subia-lhe do coração à garganta, fuzilavam-lhe arestas vítreas nos olhos secos, e rompia-lhe brusca, num salto de mola por muito tempo comprimida, a fúria de eliminar, destruir -- fosse porque forma fosse! -- este intolerável peralvilho.
A altercação dos dois em S. Cristóvão havia transpirado. Filiou-a a sociedade numa explosão de ciúme. Explicava-se pela assiduidade do Câmara junto da baronesa a sanha do barão. Assim pensaram as senhoras; assim o julgou Elvira, Porém o marquês, o coronel, Florindo e Henrique vagamente pressentiam uma outra causa, ignorada mas tangível, à provocação do amigo.
perante as peregrinas teorias que perante eles, no escritório, o barão desdobrara com tão convicto ardor, assentaram como coisa indubitável ser o seu comum amigo um furioso pederasta. -- Quem diria!... Com que amorosa veemência ele falava! Via-se-lhe em cada argumento a alma fumegando.
Degenerara em andrófilo, incontrastavelmente; e, sem dúvida, era Eugénio o seu Alcibíades. Espantavam-se, não atinavam, não compreendiam como pudera dar naquilo o barão -- agora que ia a pender para velho! -- Florindo filiava em esdrúxulos atavismos este caso, hoje trivial, de psicopatia. O marquês, penalizado, tudo era ponderar: -- Paga que dá Deus cabeça a um homem! -- O coronel, esse monologava: -- São inclinações do diabo... -- e lembrava-lhe o «temo» de tambores do seu regimento, em Tavira.
Que relação poderia haver entre a andromania do barão e o Câmara?... -- A bem dizer, nenhuma. Pretendia-lhe o marialva a esposa: não parecia que devesse com isso incomodar-se demasiado o marido. Todavia, refletindo... acudia o passado do Câmara, o caso do comendador... notavam-se ilações, analogias... -- de modo que, sem bem saber porquê, quando, depois do sarau em S. Cristóvão, os três se encontraram, foram unânimes em que o ódio do barão ao marialva se firmava, não no sobressalto do risco do seu tálamo, mas numa causa misteriosa, por eles adivinhada vagamente.
Quem mais amargo se sentiu da descoberta, foi Henrique Paradela. Agora melhor explicava ele certos bizarrismos, certas predileções do amigo. de uma vez que cruzara pelos dois na rua uma equipagem de luxo -- oito molas, escudo na portinhola, libré, peliças e por trintanário uma criança rosadita e branca --, o barão exclamara, fascinado:
-- Quem me dera poder montar carruagem... só para ter um trintanariozinho!
E adorava os grumetes... pelo fardamento -- dizia; e gabava muito os braços dos rapazes padeiros.
Não havia dúvida: era um deslavado, um torpe... Estava empolgado por esse vício ínfimo: empolgado a ponto de já nem com ele ser franco!
Recordava o diálogo de há dias, do Montepio à Praça de D. Pedro; revia e compreendia, numa evocação desgostosa, a falta de serenidade, a impaciência, a cobardia de olhos do barão. -- Fora uma comédia completa! Enganara-o... Pela primeira vez lhe mentira o seu melhor amigo! -- Caía-lhe com um peso de chumbo esta certeza na cristalinidade da consciência. -- Como podia ser aquilo?... Como podia ser? Levantar-se agora uma barreira, cavar-se uma distância, coar-se o veneno da impostura entre duas almas crescidas a jornadear de mãos dadas, numa perfeita e recíproca transparência, duas almas afeitas a mutuar sem restrições e sem reserva a totalidade das suas aspirações, das suas alegrias, dos seus entusiasmos, das suas mágoas?... Falta de confiança? E porquê?... Se motivo de alguma coisa havia, era para se arreigarem entre os dois, mais rijo e mais fundo, a sinceridade e a fé... Pejo, nascido num resto de brio?... Talvez... Pobre barão! E Henrique, longamente, lastimava-o, medindo do alto da sua vida limpa e direita as negras tortuosidades do despenhamento moral do amigo.
Mas vinha-lhe a intervalos um sobressalto: -- Não seria antes diminuição, esfriamento na amizade?... -- Ou estoutra interrogação o assaltava, de um pessimismo inquietante e doloroso: -- E se o barão tivesse sido sempre um desleal, um dissimulado? Se fosse vezeiro em enganá-lo? Se nunca tivesse feito senão abusar da candura do seu coração?... -- Parecia-lhe absurda de monstruosidade esta hipótese. Repelia-a. -- Não podia ser!
-- Todavia, uma coisa havia apurada ao certo: -- sobre o caso de Eugénio ainda o barão lhe não dissera a verdade.
Doía-lhe esta evidência, mergulhava-o em largos silêncios de imobilidade sombria.
-- Que tens tu? -- inquiria D. Leonor, carinhosa, passando-lhe os dedos pelo cabelo.
E ele triste, imóvel, o olhar vago e saudoso:
-- O barão já não é o mesmo para mim!
Era uma das primeiras noites de Junho. Quinta-feira. Função dedicada ao high-life no Passeio Público. -- Pirotecnias complicadas, o produto das entradas dobrado, duas bandas marciais. A receita da festa a benefício de um asilo. Esperava-se a rainha. Havia um certâmen de transcendentes fogo-de- artifício entre um artista afamado de Londres e o fogueteiro de Vila Nova.
Com tão seguros aperientes à vaidade e ao pacovismo indígena, não admira que regurgitasse de gente aquele sítio agreste e húmido, ao qual pela mais atrevida antonomásia se convencionara chamar uma estância de recreio.
Depois das 9 da noite era difícil o trânsito pela rua central. Aí confluía a maior concorrência, numa fúria ridícula de exibição e bisbilhotice. Todos os «mundos» da capital. Gente de todas as condições, feitios, tamanhos, cores.
Longas, complexas, incontáveis famílias burguesas, capazes de suprir à repovoação da Terra, guardadas numa nova arca de Noé, desde o bisavô, um paquiderme, ao bisneto engoiado; desde o priminho, emproado e taful como um pavão, té à prima, pintalgada e áspera como uma arara. E fidalgos roçando por costureiras; um ministro a par e passo de um gatuno; um poeta ao lado de um barbeiro; uma virgem estudando uma prostituta. Tudo isto pavoneando- se, acotovelando-se, cruzando-se, olhando-se, empoeirando os pulmões e moendo as pernas, num alcatruzar monótono, num ir e vir interminável, do grande tanque circular, junto ao portão do sul, té à pequena taça em semicírculo, sob a balaustrada, no extremo norte, da qual uma náiade emergia, de mármore, a sua urna sobraçada, em volta ao nicho um resplendor de globos brancos, e largas, carnudas folhas de fúchsia aflorando-lhe os flancos.
De vez em quando produzem-se, aqui, ali, pejamentos, nodos; embatem as duas correntes; abalroa-se. Então a onda pára, oscila, escoa-se... e continua grave, vagarosa, o seu fadário, na luz tremulina do gás, entre os renques de acácias e faias arrepiadas pelo nordeste, numa atmosfera de pó vermelho subtilíssimo fumando da areia recalcada e varrida.
Em cima, à esquerda, junto ao coreto principal, há grupos bizarros de cadeiras, ocupadas por famílias desdenhosas, «chics», que afetam fruir daqueles lugares a posse permanente. Saltam frases soltas, risadinhas. Diz-se mal dos outros. Namora-se... Está-se em família. E enquanto uns velhinhos, de burel, tira encarnada no barrete, escanhoados, circulam e se arrastam acaquinadamente, a troco de um vintém dando papelinhos.
Ao lado, em baixo, no barracão das bebidas, palpita uma forte claridade. Ao mármore das mesas, uma grande loura turbuleja numa roda estúrdia de admiradores; militares saboreiam grogs; velhos atores tomam capilés; amanuenses palitam-se. Quase ninguém pelas ruas laterais. Aí, nos recessos das toiças de uma flora de quintalejo, nos maciços baratos de verdura, abrem- se grandes espaços desertos, clareiras de necrópole, mal iluminadas por línguas de luz ao alto de colunelos de pinho, e por cuja discreta solidão vagueiam, estramalhados, raros, provincianos tímidos, arcaboiços derrengues de doentes, vultos hirtos de magistrados, pares idílicos desfolhando malmequeres.
Agora ressoam alto as fanfarras. Ziguezagueiam na massa, breves, estrídulos, ranchos de estudantes. As crianças, como bandos de estorninhos, perseguem-se, voam, grazinam, lançam arcos, fazem roda subitamente a algum transeunte isolado, num chilrido de troça cristalina. E a multidão indo e vindo sempre grave, compacta, vagarosa. Não têm elegância as mulheres. A crinoline desfigura-as. Trazem no vértice da cabeça um chapéu microscópico; e o corpo, depois para a base progressivamente alargado pelo xale ou mantelete e a roda do balão, mascara-lhes as formas, toma-as inteiriças, grossas, dá-lhes uma linha desgraciosa, piramidal, pesada. A mancha escura dos homens entristece. Luzem marcialmente no conjunto os ombros com charlateiras.
De fora, colam-se fisionomias ávidas às grades que enjaulam o recinto.
Sobre a beira limosa e negra dos lagos vêm a pneumonia e o paludismo debruçar-se, a espreitar a boa-fé do passeante desprevenido. Um marulho de formigueiro sobe desta longa reta, riscada a ouro na escuridão da noite. E ao de cima, salvando as copas, metalizadas pelo gás, do arvoredo baixo, esfuma- se a carvão a mancha dos pinheiros, esfiolam-se dos cedros as franças lugentes, e as araucárias imobilizam no céu frio e alto a sua rama geométrica.
Frente ao coreto, do lado oposto da rua, no abrigo de uma grande acácia olorosa, em grupozinho amigo tagarelavam D. Leonor, Elvira e a irmã.
D. Leonor ao centro; a um lado, a baronesa, ladeada pela imobilidade resignada e estrábica de Horácio Martins; no outro lado a Julita, azougada, pingue, perscrutinando a cada instante o perfil de Frederico no turbinar de cabeças que lhe desfilava na frente. Um pouco atrás, destacava a figura correta e açucarada de Alípio Vieira, com a Emazita ao colo. Mais atrás ainda, um pouco à parte, no coração da sombra, o barão, de costas ao movimento, dialogava com Eugénio.
-- Olha, olha, Elvira! Não percas... -- exclamou Júlia, num rir zombeteiro, de braço estendido à multidão e aprumada na cadeira. -- Repare, D. Leonor... Que disparate de chapéu!
-- E verdade... -- motejou a irmã, com gáudio. -- Enorme!
-- E que cores!
-- E que feitio! -- apoiou D. Leonor.
-- Parece um açafate de costura, com o fundo ao alto -- volveu a baronesa. -- Não vê, Sr. Martins?
E Horácio, esboçando o mesmo riso de troça, passivamente:
-- Vejo, sim... é exato... Um açafate de costura.
Duas criancitas, de mãos dadas, aproximaram-se do grupo -- louras, frescas, luminosas, o cabelo em cachos, a pele exsudando este cheiro doce da inocência, um sangue leve e generoso formigando-lhes nas faces ligeiramente afogueadas. Vinham em comissão pedir a D. Leonor -- se dava licença que a sua menina fosse brincar com elas.
-- Pois não, meus amorinhos! -- aquiesceu D. Leonor, beijocando-as.
-- Mas não corram muito... -- Depois, para a filha, que não despegava de Alípio: -- O Ema, então?...
Porém esta objetou, enrodilhando-se ao pescoço do seu grande amigo, com mimalhices de enfado:
-- Ora, mamã... não quero... -- E como o olhar da mãe insistisse: -- Estou muito cansada.
-- Sensaborona! Para outra vez não vens.
-- Coitadita! Deixe-a estar, minha senhora -- acudiu Alípio, afagando a cativante criança.
Já a Julita bradava:
-- Ah! Vejam quem ali vai! -- E logo, erguendo a voz: -- Coronel! O coronel!
Militão parou, olhou na direção donde o tinham chamado, pôs a mão em pala à frente do chapéu, afirmou-se; e, mal reconheceu o grupo, ei-lo num relance junto das senhoras, lustrado e vermelhinho, quebrando-se, cumprimentando, sorridelhando -- a crista do cabelo em grande uniforme, o abdómen espremido, as brotoejas da testa luzindo volumosas.
E as senhoras à compita, num coro travesso:
-- Então isso faz-se? Ingrato! A fingir que nos não via!
-- Ó minhas senhoras, desculpem... tenho a vista cansada.
-- Qual!... É que não lhe fazia conta! -- objetou Julita gaiatamente.
-- Mas vai pagá-las... -- E empurrando-o contra uma cadeira: -- Sente-se!
O coronel caiu de sacão sobre o frágil assento de palhinha, que oscilou desequilibradamente.
Ao mesmo tempo:
-- Anda por aí conquista... -- sublinhou com malícia D. Leonor. Militão respondeu, trabalhando por equilibrar-se, entre o riso do grupo, num cómico barafustar das pernas trôpegas:
-- Como hei de conquistar, se eu é que sou o conquistado?
-- Por quem?
-- Quem é a ditosa?
E o coronel, deliquescente de ternura:
-- Pelo eterno feminino!
Henrique Paradela chegava, seguido de um rapaz do restaurante com água.
-- Aqui tem, minha senhora -- disse, indicando a bandeja, para a irmã da baronesa.
D. Julita bebeu vorazmente um copo cheio.
-- Muito obrigada.
Henrique então para Elvira:
-- Vosselência não quer?...
-- A esposa, depois: -- E tu?
-- Eu não; Deus me livre.
-- Eu estou até com frio -- disse, lançando um xailezinho sobre os ombros, a baronesa.
-- Arrefeceu... -- acudiu Horácio. -- Provavelmente, a rainha nem se arrisca.
-- Está uma noite democrática... -- observou o coronel.
Ao longo da rua central continuava passando em revista a bariolagem sorumbática, pelintra, de uma população estiolada. Dos braços dos lampiões baixava uma luz trémula e lambida em que a hispidez do nordeste punha intermitências. Nos silêncios dos latões das músicas o arvoredo ramalhava.
Longe a longe, riscavam-se perfis claros de «árvores de fogo», toscas, hirtas, primitivas, helicoidadas de papéis de cores e vestidas de cartuchinhos.
E quase ao fundo da ma, um grande tablado se erguia, negro, cavernoso e alto, esfarripado de vigas, cordagens, lonas alcatroadas. Seria a peça de furor da noite: -- o naufrágio, seguido de incêndio, de um navio.
-- Não estou bem, é verdade... -- disse a baronesa, franzindo o rosto e aproximando do tronco os braços, num jeito friorento.
-- Tem frio? -- perguntou Horácio.
-- Mas um frio interior... Não sei que adivinho.
-- Faz-me sofrer vê-la assim... -- disse Horácio, a meia voz, olhando a areia. -- Se na minha mão estivesse o remédio... -- E depois de uma pausa, fitando Elvira com meiguice: -- Veja! Mande-me.
A baronesita afagou com um olhar de gratidão inefável o olhar carinhoso e resignado do seu discreto adorador, e pousando-lhe a mão no braço, murmurou docemente:
-- Certíssima estou eu da sua dedicação, meu amigo.
Xavier da Câmara tinha cortado a onda e viera cumprimentar D. Leonor.
-- Oh madame! comment ça va?... Bien? -- E depois de falar a Júlia:
-- Baronesa, como está?
Sentou-se logo junto de Elvira, entre ela e Horácio, incivilmente; e, tendo armado o monóculo, prosseguiu devagar, numa melopeia juanesca, todo curvado:
-- Que fenómeno, que mistério será este, não me dirá?... Eu seguia por aí, com um amigo meu, por esse tédio fora, alheio a tudo isto, aborrecido... quando sinto de repente a chamar-me para este lado uma força estranha, agaçante e deliciosa... Olho: vejo-a aqui... Que será isto?
-- Puro acaso... -- explicou Elvira, sorrindo, lisonjeada; e as pálpebras bateram-lhe numa palpitação de asas de borboleta.
-- Diga antes -- insistiu o Câmara --, uma atração invencível!
E continuou a toadilha, audaciosamente, agora todo de costas contra Horácio, que se fechara no seu mutismo de molusco, passivo e mole.
Já não tinha frio a baronesa. Afastara o xailezinho de sobre o seio, num gesto de quem se sentia oprimida, e entreabria-lhe, encrespava-lhe os lábios uma comoção galante.
Da sua sombra o barão, apenas viu chegar o marialva, resmoneou: -- Já tardavas... -- e não mais o deixou com a vista. Perdera a serenidade. Volvia-se na cadeira; torcia as guias longas do bigode; piscava os seus olhos de míope em crispações de uma análise impertinente, rancorosa.
Nada disto via o Câmara. Nem ainda dera por ele.
-- Então, este ano, nada de ir a Sintra? -- interpelou o coronel para as senhoras.
-- Tem razão -- fez D. Leonor. -- Ainda lá não fomos.
-- Com a Primavera no fim, é uma vergonha!
-- E é! -- confirmou Henrique.
-- É um crime de leso-tom, de lesa-sociedade.
-- Mas -- disse Henrique -- a todo o tempo é tempo. O que se não faz em dia de Santa Luzia... Tratemos de remediar a falta, valeu?
-- Apoiado, apoiado! -- esfuziou Júlia, batendo as palmas.
-- Vá feito! -- disse para o grupo a baronesa, a desviar do Câmara as atenções.
O barão tinha-se levantado.
-- Uma partida a Colares -- propôs o Câmara.
-- Um picnic.
-- Para quê?... Come-se bem no Vítor.
-- Um picnic é o melhor -- conclamaram vozes femininas.
-- Sobre a relva, à beira de água, será divino!
-- Só o nosso ranchinho... -- observou D. Leonor. -- Não se quer mais ninguém.
-- Pois claro!
-- Bem -- assentou a baronesa --, vamos a ver quantos somos. -- E ia contando pelos dedos. -- Aqui a Leonor... o Sr. Henrique...
-- Também vou, mamãzinha? -- suplicou mocanqueira a Emazita, o olhar terno e guloso, lançando ao pescoço da mãe os braços. D. Leonor fitou-a sem responder, com severidade. -- Eu vou brincar com aquelas meninas...
-- Pois vai também a Ema -- continuou, a rir muito, a baronesa. -- A Reodades e a filha...
-- D. Plácida... -- lembrou Henrique.
-- Seis -- contou Elvira. -- A não ser que... -- E voltando-se para Alípio:
-- Diga-me, Sr. Vieira, poderemos contar com a Sra. D. Plácida, ou receará ela ainda pelo seu reumatismo?
E Alípio, impenetrável, com uma mesura, soerguendo-se na cadeira:
-- Não tenho a honra de ser médico dela... Não sei, minha senhora.
Em face do grupo então surdiu, prazenteiro, afável, o marquês de Torredeita pelo braço do barão, cantando:
-- Também posso entegag paga a conta?
Ao apelo desta voz bonacheirona e sã, logo se abriu um concerto cordial de simpatias.
-- Olha o marquês!
-- Com certeza.
-- Viva o nosso marquês!
E ele com um rir afetuoso, claro:
-- Pouca bulha, minhas amiguinhas.
-- Estragam-no com mimo -- disse o barão.
-- Não é da sua conta! -- contrariou, num motete familiar, D. Julita. E avançando uma cadeira: -- Para aqui, marquês.
E o marquês, acedendo ao convite, gentilmente:
-- As juventudes queguem-se a pag!
Depois, para Elvira:
-- De que se tgata, bagonesa!
-- Uma «sintrada», para depois de amanhã... Aprova?
-- Pois não hei de apgovag!... Basta que o tenha guesolvido o congguesso das senhogas.
-- Adeus, barão! -- exclamava, estendendo a mão, o Câmara. -- Nem ainda o tinha visto.
-- Viva o Sr. Câmara -- respondeu o barão, seco e breve, de onde estava, sem oferecer a dextra ao marialva.
-- Oh! Não me dá esse shake hands! -- observou desprevenidamente Xavier, ainda com a mão à frente, num abandono confiado.
Mas o barão, polido, retraído, com um frio de lâmina ervada na ironia:
-- Meu caro, quero poupar-lhe um acto que, sei, o contraria.
-- Nunca esqueço aquele dito de V. Exa.: que não gosta de apertar a mão a quem não tenha um cavalo, pelo menos.
Xavier da Câmara enverdeceu. O braço descaiu-lhe, hesitante, vagaroso, enquanto ele pigarrava: -- Ora, barão... uma blague... -- com o rir amarelo e aos cantos dos lábios uma saliva azeda.
As senhoras e o marquês, embebidos na organização do passeio, não deram conta do incidente.
A baronesa contava:
-- Muito bem; o marquês, sete...
Henrique é que não perdera uma palavra. Tremeu do escândalo e saltou-lhe um receio no coração.
-- Ó marquês, olhe lá!... -- perguntou D. Júlia -- a rainha vem ou não vem?
-- Não sei, minha senhoga: não sou da coguete... Mas, espegue... -- disse o marquês, olhando ao largo. -- Descubgo lá em baixo o conde de Fgadelos... Aquilo é um batedog... Vem com cegteza.
Enfiado e pálido, Xavier da Câmara confirmava-se em que o barão o trazia de ponta... não havia dúvida. E acercou-se das senhoras, remoendo a injúria num bom humor forçado.
-- Então, pronta a contagem?
-- Somos quinze, ao todo.
-- Ótimo! Procedamos agora à divisão do trabalho. As senhoras encarregam-se dos farnéis, que eu trato da jumentação.
-- De quê?... De que é que V. Exa. trata? -- perguntou alto o barão, numa intenção agressiva transparente.
-- Ora essa! Não ouviu?... -- tomou o Câmara. -- Da jumentação, da burricada.
-- «Jumentação»? -- mastigou o barão, implacável de sarcasmo. -- Belo termo! Expressivo, novo... Hei de arquivá-lo. Mas, se me permite, a paternidade desse neologismo burrical não lhe pertence. E sem dúvida um plágio ao Rosalino.
-- Cautela, barão... -- ameaçou Xavier, desorbitando o monóculo, trémulo. -- Acho pesado o gracejo.
-- Talvez ache mais pesada a minha mão! -- o barão retrucou, num pulo selvagem, crescendo, erguendo o braço. E a mão descamada, longa, fundibulou no ar, silvando.
Foi uma desordem. Tudo vibrou num sobressalto. Henrique parou a agressão no caminho. Os outros afastaram. Elvira desmaiou. Abria a Emazita pavidamente os olhos. D. Leonor e Julita soltaram pequenos gritos, escondendo o rosto com as mãos. Em torno houve um levante; acorreram, fizeram roda. Agora o ofendido, nos braços do marquês e de Alípio, lutava ardidamente por desenvencilhar-se, atingir o barão, vingar no mesmo instante a afronta. Os homens acalmavam:
-- Doidos!
-- Então!
-- Tenham atenção com estas senhoras.
E os longos, magros dedos do pederasta, seguro pelos pulsos, vermiculavam, estertoravam, debatiam-se em torções de raiva.
Então no espaço uma girândola subiu e estralejou, festiva. Romperam simultâneas o hino real as bandas. A multidão abria alas, premia-se, alinhava- se cortesmente; e pelo meio da rua, ao longo da vasta clareira avermelhada, uma altiva e rara elegância feminina avançava, vestida de branco -- pausada, majestosamente --, ao lado de um homem baixo e louro, fardado de almirante, o ar confrangido e doce, cortejando.
CAPÍTULO IX
Sentada num pequeno fauteuil, de cretonne em ramos, no toilette, a baronesa considerava que Eugénio, sentado na sua frente, e adormecido, era realmente um jovem apetitoso e belo.
Nunca reparara bem como ele era; nunca lhe dera para atentar nas feições do rapaz. Instintivamente, sem bem saber porquê, ela de si para si tivera como assente, desde o princípio, que aquele criançola, vindo não sabia bem donde, talvez um intrujão, talvez um vadio -- pela sua intuição feminina recebido em todo o caso com desconfiança e reserva --, era alvar e grosseiro, tinha as mãos ásperas, a epiderme torrada das intempéries, a luz dos olhos apagada e gasta na frequentação de vícios bordescos, os pés chatos, enormes... e não sabia dizer duas coisas direitas, nem tratar com senhoras. Por tudo isto lhe votava uma indiferença paredes meias do desfavor. E todavia -- era singular! -- o rapaz tinha umas feições lindas.
-- Bem dizia o barão! -- Uma cabeça daquelas, assim pequena e redonda, com um emaranhamento de cabelo tão crespo e tão abundante, não era vulgar; a curva do sobrolho, solta e fácil, pincelada com firme elegância sobre umas pestanas de anjo, sedosas, longas, fazia sonhar... a boca era um cravo; e na ponta da barba, então, que covinha tentadora! -- Nunca devia deixar crescer pêra este rapaz... Mosca, bigode e mosca, simplesmente.
Mas que lhe importava a ela isto?... -- No mais absorvente da sua análise, Elvira estremeceu. Surpreendeu-se no exercício de uma ação indigna. Corou... Viu que na contemplação do efebo ia pondo mais interesse do que era lícito ao seu estado de mulher casada. Não era só curiosidade, desfastio de ociosa... mas um começozito de prazer. Um diabinho sedutor se acocorava, a fazer-lhe feitiço, naquela covinha cor-de-rosa... -- Cuidado!... -- Estava atraiçoando o seu bom marido, que ali jazia prostrado e doente, na alcova próxima, sofrendo por amor dela... O seu bom, o seu santo marido, que ela tinha agora, mais do que nunca, obrigação de amar!
-- Endireitou-se rápida no fauteuil, passou a mão pelos olhos, como a afugentar um mau sonho, e num lânguido espreguiçamento distendeu os braços, cujas articulações deram uns estalinhos secos.
Noite alta. Na morna quietação do aposento, que o candeeiro bizantino, trazido da saleta, iluminava discretamente, pesava um ar de mortificação e de fadiga. A baronesa estava abatida, amarfanhada e pálida. Marcava-a visivelmente a prostração que segue as fortes comoções e as vigílias. Os ombros vergavam numa solicitação de repouso; sinuosavam mais grossas e mais roxas as vénulas da face descaída; e no âmbar dos olhos ardia-lhe uma pontinha de excitação, filha do cansaço.
Em frente dela, junto à parede, Eugénio, estendido sobre um outro fauteuil, a cabeça ao ar e as mãos pendentes, dormitava, numa atitude abandonada e mole, tendo cedido a esta facilidade confiante que caracteriza o sono dos jovens e dos fortes.
Da alcova ao lado vinha um cheiro a febre; e um ralo de respiração estertorava, apressado, desigual, difícil. -- Era o barão -- considerava Elvira --, o seu querido, o seu valente e bom marido... Como ele lhe queria! No fundo das suas secaturas e impertinências amava-a muito... não havia dúvida.
Para se bater assim!... Tinha bem obrigação de o amar e de o respeitar agora!
-- Isto se dizia interiormente a baronesa; porém, a despeito de todo o esforço da sua vontade, não lhe calava fácil na alma esta obrigação sagrada.
Trabalhava-a uma rebelião, uma antipatia surda... Sobretudo, aquele «querido», tratando-se do barão, não lhe saía espontâneo; soava-lhe mal, como um hallali exótico; fazia-lhe no coração um arrepio. E Elvira, vagamente assustada, com um baque na consciência, sem compreender, desconhecendo-se, defendia-se contudo contra este assalto de tentação à queima-roupa, repetindo, repetindo obstinadamente: -- que sim... que tinha obrigação de o respeitar.
Como era de prever, tinha dado em pendência de honra a agressão do barão ao Câmara. Logo na manhã do dia seguinte, dois amigos deste demandavam S. Cristóvão, a exigir uma reparação à ofensa feita ao seu constituinte.
Em termos escovados e solenes, a catadura e a sobrecasaca minazmente abotoadas, eles expuseram o seu bélico arrazoado ao barão, que lhes anunciou enviaria dois dos seus amigos a dirimir com eles a contenda, no ponto e à hora que S. Exas. designassem.
Na tarde do mesmo dia, juntavam-se, a conferenciar com as testemunhas de Xavier da Câmara, Henrique e o marquês de Torredeita, nomeados testemunhas do barão. Nos termos de voluntariosa intransigência em que a questão de ponta a ponta foi posta, não houve composição possível. Exigia o Câmara, para seu desagravo, uma satisfação formal e pública, imposta em termos bastante humilhantes para o ofensor; este pusera como assente aos dois procuradores da sua honra em jogo, que não daria a mínima explicação.
Caiu-se no duelo, naturalmente; com vigorosa oposição do Paradela, que voltou e atacou por todos os lados o melindroso assunto, que esgotou corajosamente todos os ensaios de solução amigável, todos os argumentos pacíficos, todos os meios possíveis de conciliação, dentro da dignidade.
Baldadamente. Escolheram-se as armas; o local e a hora para o encontro foram ajustados. Nessa mesma noite -- avisado o barão que teria de bater-se ao florete, na madrugada seguinte, com o marialva.
Deu-lhe a notícia uma impressão, mais que de gáudio, desagradável. Logo deplorou a atitude de rancorosa soberbia em que se havia entrincheirado. -- Se não fora a sua estúpida intolerância, o seu veto in limine aos meios suasórios, poderia talvez ter-se resolvido o caso sem sangue, a contento do mundo, por forma que ambos ficassem bem... Estava-se vendo disto, todos os dias; era uma questão de convenção, de poeira nos olhos da sociedade, simplesmente. Teria sido o bastante... E então que ele, sem risco de espécie alguma, é que ficaria, afinal, melhor! Porque a bofetada, não obstante parada no ar, era como se aquele pulhastra a tivesse apanhado... Agora isto do encontro -- refletia --, era o diabo... dependia da sorte... Era pimpão ao florete o Câmara. Não fosse sair-se o diabo tendeiro!
A inconsistência do seu temperamento fraco e desigual recuperara o ascendente. Passada a excitação do momento, a moleza, a cobardia, a inércia que lhe formavam o fundo ético, 'tinham voltado a dominá-lo. Era bem o descendente, piorado, do zombeteiro áulico de D. João III. Arrefeciam-lhe, apoltronavam-lhe o sangue atavismos iniludíveis. -- Como diabo lhe dera aquela fúria!?... -- Tinha medo, arrependia-se. Davam-lhe assomos de apodar de desleais, de ineptos os padrinhos.
Elvira passara todo o dia num sobressalto mordente, numa expectação alanceada e dolorosa. Logo previra um conflito sério. Veio confirmá-la no receio a visita matinal dos dois minazes e escovados cavalheiros. Apenas eles saíram, interrogou com ansiedade o marido, que lhe respondeu por evasivas, troçando o caso, iludindo o perigo. Elvira porém não descansou: e à noite, quando o barão recolheu, ela soube ler-lhe imediatamente na cara sombria, no aspeto transtornado e no sobrolho vincado, unido, que era negócio resolvido um encontro à mão armada. Então lançou-se-lhe nos braços, suplicou-o com lágrimas que lhe dissesse a verdade. O barão derivava, dizia-lhe que sossegasse, que não havia nada, que se tinham acomodado as coisas. E ao cabo, fazendo de tranquilo, como quem aventa uma hipótese distante; -- E se tivesse que me bater? -- O Sebastião! Isso de modo nenhum! -- protestava ela, num terror, abraçando-o, acariciando-o muito. -- Ires-te expor num duelo!... De modo nenhum!... Estás doido? -- acrescentava, estrangulando-o nos braços nervosamente e agitando com impaciência a cabecita, as veias da face tumefeitas, roxas, e os olhos agora fosforejando metalicamente, numa vivacidade atormentada e vítrea. -- Não! Ela jamais consentiria... Era o seu marido. -- Encostava-lhe ao peito a face rija e redonda, e lamuriava docemente, de olhos outra vez húmidos, num queixume arrastado e meigo, numa confissão tocante de simpleza: -- Mas se não valia nada... E podia ter consequências funestas!... Tudo, ainda por cima, por causa dela! Tinha a culpa... Quereria ele fazê-la infeliz pró resto da sua vida?...
O barão olhava o teto.
Ela insistiu, pendurando-se-lhe do pescoço, lançando para trás a cabeça, agarrando-lhe com alma os braços e fitando-o com ternura:
-- Não te bates, não?... Promete-me!... Ou não te deixo sair... -- ameaçou com energia -- berro, grito, vou avisar a polícia!
O barão sorria. A carinhosa e veemente exoração contrapôs esta frase cruel:
-- Descansa, que não to mato.
Sentiu-se trespassada no coração a baronesita por um frio de sarcasmo.
Caíram-lhe inertes os braços. Petrificou, emudeceu... um instante ficou, de cabeça baixa, esmagada, imóvel, devorando com o insulto as lágrimas.
Depois rodou vagarosamente, com um ódio surdo a crescer-lhe; tomou o caminho da porta do toilette e foi enterrar-se mm fauteuil, desesperadamente, a soluçar.
Mandou pedir à mãe que viesse acompanhá-la. Pouco depois, apareceu também D. Leonor com o marido. Este, apoquentado, triste, com o Código do Duelo debaixo do braço, enfiou para o escritório do barão, com quem discreteou longamente sobre o procedimento a haver no dia seguinte. -- Os trens estavam falados... fora comprar o marquês os floretes... E que levasse uma camisola de agasalho, e não pensasse mais no caso... tudo havia de ser pelo melhor. Fosse ver se dormia: era o que lhe convinha mais.
Paralelamente, D. Leonor pensava incutir ânimo na baronesa. -- Então!...
Tivesse paciência, coragem e confiança em Deus. Não podia deixar de ser... A honra entre os homens era assim compreendida. -- Elvira, sucumbida e pálida, apertava com efusão a mão da amiga entre as suas; parecia resignada, calma... Na sua inteiriça corpulência, D. Jacinta tressuava. O mesmo vago terror laborava o coração das três senhoras. Elas tinham, sobrenadando fatal e pungente, na lembrança, o desfecho trágico de um duelo recente, à pistola, em Carnide... Sinistramente lhes bailava na imaginação apavorada a figura desse pobre rapaz, estupidamente arrebatado, num segundo, à simpatia e estima pública, à esperança, ao amor, à vida por um átomo de chumbo soprado de um orifício negro. -- Este recontro funesto emocionara grandemente a cidade, o País inteiro. Fora um clamor, uma indignação unânime. Ao saber desta morte escusada e prematura, tudo se levantara no mesmo impulso de reprovação e de piedade. -- Esta lembrança alarmava as três senhoras, fazia- as vagamente estremecer. Por isso D. Leonor, a afugentar maus presságios -- que este agora não tinha dúvida... era à arma branca, ao primeiro sangue... Bastava uma arranhadura e estava pronto.
Henrique deixara o barão. A mulher despediu-se. -- Não podia demorar mais; tinha a sua casa, os seus diabretes pequenos... Acompanhou-os ao corredor Elvira. E à porta, enroscada ao braço de Henrique, suplicou:
-- Sr. Paradela, por quem é!... Não levem as espadas muito afiadas!
Seguidamente, após uma hesitação, a baronesa foi bater à porta do gabinete do marido:
-- Não te vens deitar?
-- Não... -- respondeu ele. -- Deixa-me cá...
-- Precisas alguma coisa?
-- Não preciso nada.
-- Mas ouve... abre lá... deixa-me ir pró pé de ti!
-- Não, não! -- repeliu o marido. E fechou a porta à chave.
Elvira voltou para adonde a mãe. E toda a noite levaram as duas no toilette:
Elvira sucumbida, aflita; D. Jacinta invocando o seu exemplo de nunca desmentida fidelidade «ao seu Inácio»; ralhando, peguilhando; não se fartando de censurar que a filha tivesse nunca dado ouvidos às baboseiras «daquele delambido, daquele almiscarado peralvilho».
Também, por seu lado, não se deitou o barão. Passou a noite no escritório, com uma só vela acesa sobre o bufete, e preocupado, torvo, inquieto, ordenando, inutilizando papéis, revolvendo gavetas, grifando impressos, injetando-se éter para, vigorando os nervos, espertar a coragem. Ora o abalavam de frio tremuras súbitas, ora lhe formigava pela espinha uma onda de calor, derretendo-lhe as ideias, tumultuando-lhe nas fontes. A espaços, deixava-se cair sobre um móvel qualquer a todo o peso, com um estalido de ossos, como um desmoronar de velho edifício que esmadrigou na ruína; e logo desatava a passear pelo aposento, em todas as direções, desencontradamente -- o olhar apontado aos pés e a mão rodilhando a pêra --, em incoerências de um espírito perplexo e pávido té à cobardia.
Houve uma ocasião em que, tomando de uma bengala, se pôs no meio da casa a esgrimir com orgulho, ensaiando-se, fintando, caindo a fundo, respondendo, atacando, parando; mas bem depressa, convencido da ridícula inanidade do exercício, atirou longe com a bengala e foi amarfanhar-se na poltrona de couro, frente ao grande bufete de pau-santo. Um grande dó de si próprio enternecia-o; molhava-lhe a alma a saudade «das suas coisas», que ia talvez perder para sempre!... Desmoralizava-o esta raiva impotente e desesperada do sibarita que se sente pela fatalidade sequestrado ao prazer. -- Ter de deixar todos esses preciosos e estremecidos objetos, ali de roda dele... os seus companheiros, os seus confidentes, os seus amigos... que tantos anos levara a entesourar com entranhado amor... que com ele tinham vivido tantas horas -- as melhores! -- da sua vida!... ter de renunciar aos seus manuscritos, aos seus projetos e aspirações de renome e glória literária... que tudo agora podia ser por uma fria picada de aço impossibilitado, nulo!... -- Então erguia, brandia os punhos cerrados; espremia o tórax num suspiro cavo; e ficava-se a contemplar embevecida, entemecidamente, com um olhar de além-túmulo, num esquecimento atormentado e lúgubre, toda essa aprimorada sinfonia de cores e linhas, toda essa opulenta seleção de raridades -- a lâmpada árabe, o armário, o contador, o tríptico, os quadros, as porcelanas, as sedas, a estátua nua -- a poder de tenacidade, bom gosto e fervor acumuladas, e a que a luz escassa da vela dava um destaque lutuoso e incerto, esmorecido... E para a velha gravura de Ganimedes era o mais longo, o mais penetrante e o mais magoado olhar.
Muito antes da manhã, saiu. Quando Elvira voltou ao escritório, já o não encontrou.
Ao dealbar de sábado, nas terras junto à ponte de Carenque, ao abrigo de um trecho de muro do aqueduto, cruzavam os ferros o barão e Xavier. Este caiu em guarda com elegância e firmeza; estava flamante, vistoso; enobrecia- lhe o rosto, que a aragem fina da manhã purpureava, um belo ar de fleuma, uma pontinha de desdém. Não assim o barão: tinha um olhar idiota, cavara- se-lhe a face, e os nervos tremiam-lhe numa febre de incerteza e de receio.
Atacou logo, com violência, atabalhoadamente, descobrindo-se, numa pressa de terminar, às cegas.
Ao segundo assalto, no impulso de uma estocada inábil, veio oferecer-se ao ferro do contrário, que se limitou a manter-se em guarda, sereno, firme, bem coberto.
Um ligeiro grito partiu das testemunhas. O barão recuou um passo... Bolhava-lhe na região supraclavicular um fio de sangue, fresco e vivo como um rubi. Caíram os ferros. O Câmara correu a amparar o adversário, que cambaleava, e com uma nobre e teatral isenção foi ajudando a conduzi-lo ao trem.
Elvira foi perfeita de mimo e caridade. perante a realidade sanguinolenta, fundiram-se-lhe as incompatibilidades morais com o barão num fogo de ternura. Lembrava o marialva com horror, com asco. Parecia-lhe impossível que tivesse dado naquele desastre um entretenimento, uma brincadeira inocente. E todo o dia levou à beira do marido, acompanhada em solícitas alternâncias por D. Leonor, pela mãe e pela irmã.
Também Eugénio passou boa parte do dia na alcova do amante. De si para si pensou que não podia deixar de o fazer. O próprio barão solicitara, com o olhar enlanguecido:
-- Ajuda, acompanha a Vivi... tem paciência.
Não diagnosticara o ferimento grave a medicina. Fora pequena a hemorragia, e não tinha ofendido o ferro vaso algum importante. -- Não valia nada: com uns anti-sépticos e uns calmantes tudo iria bem... Que vigiassem o doente, no entanto. -- E, tendo receitado e recomendando assistência e cuidado, o médico saiu apressadamente.
Elvira soube ser uma carinhosa enfermeira. Com um grande tino burguês, tomando todo o sentido no receituário, fazendo-se repetir, para as fixar bem, as recomendações terapêuticas, a atenção sempre fita às horas da aplicação dos remédios, toda a noite ela velou junto ao leito do marido, acompanhada pela mãe té à meia-noite e pelo efebo da meia-noite té manhã.
Mas no dia seguinte, o médico sombreou o rosto, teve um ligeiro abalo de surpresa. A febre traumática aumentara de um modo assustador; debatia-se o enfermo numa excitação violenta e estes sintomas, cotejados com a pouca hemorragia, incutiram-lhe um receio. -- Estava talvez uma infeção purulenta a organizar-se... e isso era sério.
A baronesa, adivinhando num relance a preocupação do facultativo, interrogou-o ansiosa: -- Então, como o achava?... Haveria risco de vida?... -- E que o salvasse, pelo amor de Deus! E lhe dissesse toda, toda a verdade!
O médico, tranquilizador, polido, ponderou:
-- Que melhor não estava... iria devagar. Mas não havia perigo.
Todo o domingo se passou assim em S. Cristóvão, sob a opressão de um receio vago. E a noite novamente de vigília. Proximamente à meia-noite, retirara a Julita com o pai, e de novo ficaram velando o enfermo Eugénio e a baronesa. E foi então que esta, naquela ociosidade de esforço, numa pontinha de loucura, desorientada e aturdida do cansaço, se pusera a considerar que o efebo era realmente um lindo rapaz.
Era tarde. A baronesa tinha frio; pesava-lhe a cabeça. Durante estes dois dias de aflição e sobressalto, nem ainda tivera tempo de se despentear. Agora ergueu-se, com o passo leve, passou as mãos ao cabelo, atirou com o pente de tartaruga para sobre o mármore do toucador, e, frente ao espelho, de costas para Eugénio, pôs-se a desmanchar o penteado. Ao ruído, o efebo abriu os olhos, ao tempo que a grossa trança se soltava, serpentinando rápida, desenroscando-se, manando -- corrida de fiozinhos de ouro, abundante, jorrante como o mar e como a seda macia e fluida --, numa onda farta e robusta, numa provocação magnética, felina.
Eugénio ficou assombrado, preso num delicioso encantamento, numa admiração, numa surpresa. Elvira, que no espelho tinha visto o despertar do efebo, fez descer pelo cabelo solto, com um breve sacudir de cabeça, uma última ondulação, e voltando-se, a meia voz:
-- Desculpe a sem-cerimónia... Tinha um peso de arrobas na cabeça! Não podia parar.
Dizendo, o verde metálico dos seus olhos procurava a covinha da barba do efebo, e a opulência do cabelo basto e longo emoldurava-lhe divinamente o rosto macerado.
-- O minha senhora... -- balbuciou Eugénio, perro do embaraço, levantando-se. -- Está na sua casa.
Um gemido mais alto estertorou na alcova, implorativo, rouco.
-- Que queres?... Aí vou -- logo acudiu a baronesa.
E entrou no quarto, em bicos de pés, cautelosamente, enquanto Eugénio ia seguindo com um olhar moroso e parado aquela magnificência, aquela fascinação, aquela densa fluidez, aquela maravilha, que encaudava, majestática e veludosa como um manto, a baronesa, e que tão de improviso lhe assaltara no amadornamento do despertar a retina desprevenida. -- Que riqueza de cabelo!... Nunca tal vira!... Era o defeito da Ester... tinha um trancelho reles. -- E deixando-se cair de novo no fauteuil: -- Oh, se ela se apanhasse com uma trunfa assim!
Quando Elvira voltou de junto do barão, Eugénio interrogou, baixinho:
-- Que queria?... Está pior?
-- Tinha sede -- explicou Elvira. -- Está a arder! -- Voltou para o espelho. -- Com licença. -- E dando outra vez costas ao efebo, ergueu as mãos a abarcar o cabelo sob a nuca: cingiu-o bem apertado com a esquerda, e foi-o com a direita juntando, torcendo, aplicando em rosca lassa e negligente -- de cabeça baixa e rins quebrados, os braços em ansa ao alto, airoso, livre o busto, e o seio reteso e túmido. Para o fim, a mão esquerda amparava, enquanto a direita descia a procurar nos ganchos. Um aroma untuoso e quente desdobrava-se, acariciava Eugénio, que ia olhando, olhando sempre, emparvecido, tonto.
Quando terminou, Elvira teve um suspiro de alívio. Depois escutou para a alcova, lavou as mãos, e voltou a sentar-se no mesmo fauteuil, em frente de Eugénio.
Daí a nada:
-- Serão horas de remédio? -- perguntou.
O efebo informou, puxando do relógio:
-- Tomou à uma... São duas e três quartos...
-- Daqui por um quarto de hora -- rematou Elvira. E suspirou, deixando pender numa quebreira os braços: -- Que noites, que noites, meu Deus!... Ai! Quem me dera que fosse dia e que viesse o médico!
O mesmo silêncio recaiu, opressivo e momo. Cheirava a febre. Vinha da alcova, a intermitências, do barão o anélito febricitante. Borboleteava em tomo do candeeiro um inseto cor de cinza. Elvira, agitada, pálida, numa traiçoeira excitação, a cabecita e os nervos alarmados pelo desastre que viera cortar a pacatez habitual da sua vida, seguia com ouvido atento o resfolgar doente do marido, e conjuntamente fitava numa atração, numa gula inconsciente, a covinha da barba de Eugénio. Este continuava a ter, imperioso e vivo, na retina o deslumbramento do cabelo de Elvira, e a compará-lo com o trancelho curto e raro da Ester.
À hora do remédio, foram dá-lo juntos ao doente. de um lado do leito, Elvira estendeu a colher à garrafa que Eugénio tinha, do lado oposto, destampado. Um líquido viscoso e claro saiu, num gorgolejo. Depois, como ambos fossem, a um tempo, a afastar dos lábios do barão a dobra do lençol, as suas mãos tocaram-se. E ao verter o remédio na boca do padecente, a colher tremia...
Voltaram para o toilette, para os mesmos lugares, mudos e o ar inquieto, sem fazer bulha. Eugénio agora estava mais à vontade.
-- Senhora baronesa, porque não descansa um bocadinho?... Passe pelo sono.
-- Não posso...
-- Faça a diligência -- insistiu Eugénio.
E como visse a baronesita repluir-se toda, num arrepio, levantou-se, entrou, pé perante pé, na alcova, voltou com um édredon e lançou-lho timidamente sobre os joelhos.
-- Muito obrigada... -- balbuciou Elvira. -- Ah! Agora estou melhor.
E os olhos húmidos fecharam-se-lhe num lânguido requebro.
Ao terceiro dia, a febre tomou rapidamente uma declinação auspiciosa.
Esmaíram os receios de agravamento na evolução mórbida da ferida. A excitação resultante do traumatismo, simpaticamente afervida nos aziúmes do herpetismo do barão, dera-se a galopar os cancans de uma febre de 40 graus; porém a natureza do ferimento não fora de jeito a impulsionar ou manter este estado anormal de hemostasia. Decaiu rápido a febre. O doente baixou das ruelas torsas do delírio, calmou, reconheceu as pessoas, pediu de comer, conseguiu por momentos dormir.
Então foi uma alegria, um gáudio, um hausto soalheiro e amplo de alegria.
A baronesa, rosada e viva, loquaz, sinceramente jovial, traquinas, tinha o grácil saltitar de um passarito, casquinava risadinhas loucas, ia e vinha, abria janelas e portas, espanejava todo o seu pequenino ser, azougado e fresco, nesta undante pletora de jubilação e de alívio que nos dá a evidência no recuar de um perigo para que julgávamos haver concorrido. -- Louvado seja Deus! -- monologava pelos corredores, enternecida e leve do prazer, farandolando. E tudo era gratificar a criadagem, numa solicitação de evidência, num tresbordamento de gratidão, de festa.
-- Vamos, tome lá... em ação de graças pelo restabelecimento do «senhor».
-- Bem haja! minha senhora... Bem haja! -- assobiara a Doroteia. -- Deus lho conserve muitos anos, inteirinho. -- E, dizendo, crispava-lhe a orla vermelha dos olhos uma intenção maliceira.
Não menos rejubilava Eugénio, que um instante receara uma parentesiação de fome na áurea dissipação da sua vida. -- Se aquela mina lhe faltava!?... -- mais de uma vez se interrogara ele, pavidamente, naquelas duas noites de terror e ansiedade, no toilette, quando mais perro o estertor do barão cavemava na alcova. -- Mas, felizmente, não! O seu protetor ia sarar depressa... Era de uma cana!... E a «frescata» havia de continuar.
Elvira tratava agora naturalmente o efebo com uma grande e cordial familiaridade. Como se o conhecesse de anos... A colaboração no mesmo dever acamaradara-os, juntara-os este partilhar comum de cuidados e de vigílias, este voluntário afainamento, lado a lado, de trabalhos para o mesmo fim encaminhados. Assim, num dos dias seguintes, Eugénio demorara, um pouco tarde sobre a noite, em S. Cristóvão, e de puro fatigado adormeceu.
Elvira, sentada em frente dele, costurava. E quando o rapaz, confuso e de instinto, despertou:
-- Dorminhoco... -- reprimendou ela com doçura. -- Não tem vergonha!
-- Oh, perdão, minha senhora... Não sei como isto foi... desculpe... Mas eu não tenho sono!
-- Ah! não... tenho-o eu.
E os olhos em faíscas voluptuosas na demanda da covinha cor-de-rosa...
E, com isto, palmadas de corretivo nas mãos, e, num sorriso:
-- Atenda ao que faz!... Desastrado! -- quando o efebo ajeitava mal um pano de linho, um frasco de remédio; ou palavras sopradas junto à orelha, muito rijo, quando ele fingia não ouvir; ou, numa ironia coquette:
-- Está tolo!... Não é isso! --, se o rapaz ia por um objeto diferente do que ela havia indicado. Ou então, ordens dadas secamente, mas logo com um faular de olhos mimalheiro a quebrar-lhes a aspereza; impressões, lembranças de nada, ninharias, mutuadas num lance de olhos, vertidas num segredo; mesmo um ou outro «tu», escapado de vez em quando, involuntário; em suma, todas as mil tortuagens e subtilezas do veneno que traiçoeiramente ia ensopando, numa osmose de desejo, a juventude quase virgínea e fresca da baronesa.
O marido deu breve nesta alarmante feição de intimidade; e, filosofalmente, rejubilou.
-- Ora assim é que eu gosto de os ver!... Bravo! -- de uma vez exclamou ele, no primeiro dia em que se tinha levantado, porque os dois corriam empós um do outro, garrulejando, apostados a ver qual alcançaria primeiro um jornal que o barão tinha pedido.
Era na saleta dos serões. Num fauteuil, junto ao cantinho favorito de Elvira, o barão, amadomado e esquálido, na proteção violácea do biombo, cingidos os pés e pernas num cobrejão de peles de raposa, acompanhava deliciado e complacente -- o rosto emaciado a desfranzir-se num sorrir baço de convalescido -- a corridinha cacarejada e maliciosa dos dois amigos ao longo do aposento. Eles iam breves, quase ombro com ombro, com fito no jornal que arrastava sobre um dos consolos, na parede em frente. No desgarre da carreira, como a baronesa embarrasse contra o sofá de pelúcia azul de linho, a figurita de mandarim, que espreitava, sumiu-se, tombada, por detrás da espalda, numa presteza de mágica que fez rir muito o barão. -- Vai, chegam, lutam... ganha Eugénio a partida. E Elvira, rubra de despeito, ao vê- lo empunhando no ar a folha, triunfante, descarregou-lhe contra a espádua uma palmada felina.
-- Mau! -- ela arrastou, num queixume.
E mordia o lábio, num motete amorável.
Do seu canto o barão, esfregando o punho direito fechado na concha da mão esquerda, esfuziou:
-- Perdeste, minha amiguinha! Surriada!
E tomava as mãos dos dois vivamente, alegre, derrengue de ternura.
Ia em pouco mais de meio esse dia calmo de Verão. Brilhavam marcialmente as coisas. Vinha de fora, com um surdo ronronar de sestas, uma poalha rútila de claridade estival, fecunda. Emudecera a bigorna no flanco próximo do monte do Castelo. Uma alacridade gloriosa e quente regrava as paredes do quarto de golpeaduras aurifoscadas, de estriamentos de luz. Contra a vidraça as moscas garatujavam no ar, zinindo. E o barão, debilitado, branco, mais evidente a devastação do rosto na crua refulgência do alto sol ascuante, rodava alternamente para a esposa e para o efebo os grandes olhos, que a maceração da doença fazia parecer maiores, e onde o retângulo das sacadas luzia em miniaturinhas de esmalte; e numa grata exultação balbuciava:
-- Devo-lhes a vida!... E tão bom... a saúde!
A cintilação habitual da pupila velava-lha ainda um amarelecimento quebrantado e húmido; a papulagem que em dois promontórios roxos lhe escoltava a pêra, estalava, requeimada, ardida; grossas placas de caspa floconavam pela barba, que crescera ao abandono; e pendia-lhe dos malares a face em pelhancas estiraçadas, moles.
Um pouco devagar, foi seguindo o seu caminho natural a convalescença. E passava os dias o barão entre visitas de amigos. Agora era o marquês de Torredeita, que lhe trazia bolos; logo era o sogro, a aconselhar-lhe um chá de tília soberbo, com flor de laranja e canela, invenção da sua mulher. O coronel informava-o de pecadilhos mundanos, mexericava escândalos, mentirolava pormenores frascários das suas aventuras. Henrique Paradela, muito assíduo, ia aproveitando o remanso do barão, em cujas boas letras confiava, para ler- lhe um infindável relatório, intitulado Proteção e livre cambismo ou Das excelências do regímen aduaneiro nos países de pouco impulsiva indústria. -- Tinha sido incumbência do seu diretor-geral... Dera-lhe água pela barba! -- explicou ele de uma vez ao coronel, que viera surpreendê-lo na leitura.
E muito verbosamente explicativo, rilhando o lápis, tudo era desfiar o infindável aranzel da sua burocrática cerzidura ao bom do militar, que o escutava de alto, em pequenos meneios de cabeça, com uma irrepreensível empáfia de cretino. Ao cabo, sem nada ter percebido de justo, inquiriu:
-- De modo que afinal o meu amigo é pelo livre câmbio?
-- Ah! Não... Quanto a indústria, sou todo protecionista! Não pode deixar de ser. Portugal é um país essencialmente agrícola, bem vê. Só muito protegido é que poderá manter-se este nosso arremedo de vida industrial.
-- Apoiado! -- berrou Militão, feliz de ter apanhado o bordão à conversa.
-- Apoiado!... E mesmo, quer que lhe diga?... Eu cá sou velho... Isto de certos progressos, temos conversado! Veja esta coisa dos caminhos-de-ferro -- uma calamidade!... Só são bons para as estações terminus. As terras de «entremeio» todas perdem. Olhe Aveiro... que rico «promontório» de comércio! antes da linha... Hoje morreu.
Amparado no exemplo valedor de Henrique, também o coronel quis ler ali, aos amigos, o rascunho da conferência sobre Disciplina que no próximo domingo ia fazer aos seus oficiais, depois do juramento de bandeiras. Trouxe- o no dia seguinte: ninguém faltava. E o bom do homem então leu, numa melopeia comicamente solene, uma esdrúxula toadilha de banalidades, a qual terminava assim:
Se não interpretei com mais fino fraseamento o presente exórdio, é porque as ideias já não abundam e o cérebro, sempre em grossas labaredas, não deixa produzir acertadamente um pensamento de valor.
De sorte que o palacete de S. Cristóvão foi assim, por um momento, um pequenino ateneu familiar, um cenáculo a chá e torradas de que o barão era o oráculo, o juiz, o Mecenas incontrovertido. O Mendoncita da Politécnica veio- lhe pedir que revisse uma coleção de sonetos satíricos -- fisionomias dos lentes -- que tencionava dar em folheto com as competentes caricaturas. Até Florindo, o hierático, o alado, o sublime Florindo, se dedignou vir submeter- lhe à censura uma ode em latim -- que havia de mostrar também ao Viale; trouxe-lhe lances do seu Epítome de vária história; e cumulativamente, numa radiação apostejante, confidenciou que tinha por fim achado, no arquivo da Academia, um velho códice hindu, do qual ressaltava em termos inconfundíveis a lídima filiação da sua prosápia divina. -- Era mais que certo! -- Simplesmente... ele bem, bem o texto não o sabia decifrar... Mas não tinha dúvida! Iria de viagem ao estrangeiro, expressamente para consultar um orientalista idóneo. -- Só por descargo de consciência, para confundir os seus detratores... porque a coisa adivinhava-se!
E tilintando a espora e arpoando as guias rocambolescas do bigode, confirmava:
-- Agora é certo!... Vão ficar achatados! Verás!
Vinham também as mulheres. Por sinal que as vegetações capilares da verruga da Sra. Reodades arriçaram-se de indignação e de cólera, um dia em que a grossa matrona julgou surpreender, trocado entre Elvira e Eugénio, um olhar concupiscente. Por isso ela a saída resmoneou para D. Plácida, que a acompanhava:
-- Então, não observaste?... aquele desaforo! Eu bem tenho pregado...
E a vistosa viúva, num risinho misterioso:
-- O menina, acho tão natural...
O barão todo se desvanecia neste sentir-se o centro de cuidados, notícias, afeições, respeitos; deliciava-se na embriaguez da notoriedade. Estava na moda. Grossa correspondência, a saber como ele ia... Falado, biografado, enaltecido nos jornais... Estava um homem importante: -- E para ali assim a esterilizar-se! -- Nada! Agora ia correr de vez com esta sua inqualificável inércia de madraço, aproveitar a onda, e trabalhar, trabalhar muito! Camartelar com alma o alicerce do seu grande monumento literário.
-- Monumento a que este duelo faria um pórtico soberbo, tinham de convir!
Entretanto, um inquietante e surdo fogo laborava a vida interior da baronesa. Já não era a mesma criança, bondosa e frívola, de dias antes, com brilhos de porcelana pela cútis e pelo espírito rotações de ventoinha. Tornara- se grave, parcimoniosa de falas, pouco abordável, dura. Pendia amiúde a cabeça; a testa anuviara; vinham-lhe ruborizações por crises em que a narina arfava, latejante; e a ténue arborização das veiazitas anastomosava agora, mais aparente, em intumescências de um roxo macerado.
Elvira sentia que Eugénio a preocupava um pouco mais do que convinha; que se lhe moldava na plasticidade do desejo; que teimava em impor-se, viril e soberbo, à avidez feminina das suas emoções. -- Era uma arrelia, uma abominação, uma fatalidade, um crime! Baluartavam contra ele os seus deveres de esposa uma incompatibilidade absoluta. -- Não podia ser! Cuidado!... E teria ela a força de resistir?... -- Esta consideração afligia-a sinceramente, inimizava-a consigo mesma, punha-lhe uma repugnância, apavorava-a. Era como o espanto de uma colegial em frente de uma orgia. A torva desordenação do adultério não cabia fácil na sua alma lisa de burguesa, criada no discreto claro-escuro da Rua dos Fanqueiros, cortada a fio direito como uma partida de lenços, aferida ao metro, à jarda como uma peça de pano cru.
Quando, restabelecido o barão inteiramente, passaram a excitação e a desordem, companheiras da doença, é que Elvira viu mais claro na alma e mais seriamente se assustou. Conheceu que na barulhada imprevidência daqueles dias negros uma sórdida obsessão a tomara de assalto e a viera sujar.
Mas como começara aquilo, Santo Deus!?... Uma noite... no toilette... -- recordava-se. -- Pusera-se a olhar... não tinha que fazer... -- Então vinha-lhe um espasmo aos olhos e um calor aos lábios; e consoladamente relembrava como é que num momento feliz de ociosidade fizera aquela descoberta da covinha cor-de-rosa... E logo se increpava, num arrepio, num salto violento, e crescia-lhe um ódio imortal ao marialva, causa evidente de todo este mal.
Assim, horas e horas de seguida, renhia mentalmente a baronesa, batida de apreensões, de dúvidas; angustiadamente boiando entre a repulsão e a gula, entre a honradez e o desvario. Por momentos ela se dizia, a querer iludir-se: -- que o rapaz era ordinarote, grosseiro... tinha uma pele de lixa.
-- Mas não... -- reflexionava a seguir -- ela ainda do último aperto de mão conservava uma impressão macia de arminho! -- Em todo o caso -- voltava --, não tinha educação nenhuma... -- E contudo, como explicar que este belo rapaz, primitivo e bronco, soubesse desatar-se para com ela em tantas e tão adoráveis e subtis delicadezas? -- Mas decididamente era um ignorantão! E todavia há bem tempo que daquela deliciosa boca não saía um desacerto.
Assim, o coração acabava por vencer.
Depois, irrefletidamente, a cada instante Elvira comparava o marido com Eugénio. A sua obstinação sensual naturalmente defrontava esse asqueroso perfil de velho homem, cancerado e gasto -- áspera, lixosa a barba, a pele suando podridões, e a ossatura escorchante --, com a carnação tropical do efebo, rosado e macio, perfeito como um deus e luminoso como um astro, o olhar prometedor, o buço lanugento. E, naturalmente também, a baronesa fantasiava que o amor bebido no contacto de uma natureza assim fascinante e impetuosa e completa, havia de vibrar em dulcíssimos paroxismos, em misteriosos e ignorados êxtases, em rubros vortilhões de febre e de loucura -- tais como os abraços frios e breves do barão jamais tinham logrado comunicar-lhe.
Porém, logo caía em si, arrependia-se... E então era um desespero, uma fúria, um repente de raiva e de revolta. Quereria não ver mais o rapaz, fugir- lhe, desfeiteá-lo. -- Oh! Se não parecesse mal, com que límpida e santa veemência ela não confessaria tudo a sua mãe! -- Mas breve a fascinação voltava a dominá-la, a erguer-lhe num alvoroço a carne, a aguçar-lhe esta acre sensação do novo, do desconhecido... Então a consciência capitulava; e perante aquela infernal tentação da covinha da barba do efebo, Elvira compreendia e desculpava a tentação de Eva no Paraíso.
Esta luta moral fatigava-a. Trabalhavam-na sonhos opressivos, agitações, insónias, tédios. Os nervos desacordavam e varrera-se-lhe a alegria. Para mais, o barão, flamante, ingénuo, e todo expansivo desta generosidade de ouro em que o nosso egoísmo se desata quando da penumbra trágica da morte nos sentimos renascer à vida, tinha decretado uma vez, juntando as mãos dos dois entre as suas:
-- Ouviram?... Quero que se tratem por primos.
E tiveram que assentir.
Lascarinamente, Eugénio vira num relance que a baronesa o apetecia.
-- E a ele também não se lhe dava... -- Polarizava-os a mesma atração física, uma estenia comum eletrizava-os. Puro dinamismo fisiológico: a atividade de dois sexos, que viviam próximos, tendendo a exercitar-se.
Natural.
Por isso Eugénio tratou de pôr toda a arte e sedução em avivar na esposa do amante aquele incêndio fácil de adultério. Escrúpulos, remorsos não podia tê-los: eram qualidades inabordáveis à sua alma de vadio. Quando mais que ele era jovem, rico de audácia e de sangue. Quando mais que, na intimidade, essa mulher redondinha e fresca ressumava um aroma cheio e são de carnalidade, um forte cheiro animal, feito de lactescências de amojadura e exsudações da axila, mil vezes mais perturbador e mais estimulante que o perfume suspeito das besuntices baratas com que se paramentava a Ester.
Com um cego arranque de flecha despedida, o efebo marchou direito ao seu fim. -- Possuir, gozar a baronesa! -- era no que pensava. -- E o melhor e o mais rapidamente e o mais inteiramente que pudesse!... -- Na ardente laboração do seu plano sobrenadava, com a fúria sensual, este pique de prazer acanalhado: prostituir uma fidalga. E ia mais um instintivo e cavo sentimento de vindicta. Porque Eugénio tinha ao barão sua pontinha de osga -- compreendia-se... Quezilava daquela sua forçada desvirtuação de sexo, daquele imundo papel «ganimédico», daquela função passiva e infamante a que o pederasta o sujeitava na mecânica dos seus gozos.
Mesmo um pequeno acontecimento veio, incidentalmente, afervorá-lo neste seu vesgo e cavo sentimento.
Saíra ele uma noite, de S. Cristóvão, singularmente estimulado pela apetitosa frescura e as veladas provocações da baronesa. Todo o caminho até casa levou -- e foi um segundo -- com a fantasia cheia e quente das perfeições de Elvira, visionando numa flama a posse daquela criatura miudinha e picante, e já todo ardendo no antegozo desse raio de prazer que a sua boa sorte lhe anunciava, tão capitoso e tão próximo, tão salgado e tão novo.
Neste congestivo crescer da excitação, naturalmente, o desejo carnal pulsou, cresceu, ergueu-se, e com a intransigência brutal da juventude exigiu imediata aplicação, uma pronta saída animal, sumária, cega, sem hesitações nem escolhas, às magníficas energias que o enristavam. -- Porém, àquela hora, ali... Para retroceder... a Ester morava longe... Lembrou-se das vizinhas do primeiro andar e tangeu a campainha.
Um busto apontou à grade, de escrava enfarinhada, a qual, mal que o conheceu, injuriou logo:
-- «Chiça», paneleiro!
E arremessou desprezivelmente a porta, com estrondo.
Na sombra da escada, o efebo corou té à raiz dos cabelos, veio-lhe uma chama aos olhos, teve calor na espinha, odiou-se... e compenetradamente jurou vingar-se da vida que lhe tinham feito. Então, desde esse instante, a sedução da baronesa sorria-lhe principalmente como uma desforra. Tiraria um rico desforço do aviltamento que lhe infligia o amante, minotaurando o marido.
Como tão complexos estímulos o espicaçassem, vá de pôr logo em praça o seu desejo. No que houve de princípio tal ou qual dificuldade. De hábito só frequentando costureiritas, cigarreiras, colarejas, mendigas, meretrizes, toda a andrajosa escumalha dos bordéis e da rua, o trato com senhoras intimidava-o, prendia-o num embaraço. Em frente das «madamas», no dizer dele, atarantava, emudecia. Queria ser fino, amável, e só conseguia ser grotesco.
Junto de Elvira, quantas vezes não sucedeu ir ele a aventurar-se num ensaio de galanteio, e de repente falecer-lhe o jeito, atraiçoá-lo a coragem, e o pobre rapaz ficar-se ali, de olhar estúpido, suspensa a frase, cortado o gesto, em atitudes de um ridículo adorável, em ginásticas mudas de uma eloquente impotência! -- Não importa... -- A baronesa sobremaneira agradava esta mesma timidez: sinal de que Eugénio não somente a estremecia, mas adorava nela o que quer que fosse de vagamente superior.
Mesmo a familiaridade foi com o tempo alhanando as dificuldades e encurtando as distâncias. Manso e manso, foi Eugénio desemperrando, afinando. A sua natureza oxigenada e fértil exuberava, e ao calor do desejo deliquescia em meiguices, atenções, ternuras, que mais e mais enleavam a baronesa, apenas afeita às secaturas do marido.
Estava perdida.
Implacavelmente, Eugénio obsidiava-a. Com uma tenacidade feroz de aracnídeo, ele ia-lhe enliçando as asas da vontade numa fina teia de seduções, lisonjarias, graças, pequeninos e pueris mocanqueirismos. -- Eram preocupações constantes com a sua saúde, o seu bem-estar, a sua comodidade: um banquinho para os pés, um xale para os ombros, e fechar uma porta donde vinha ar, e ir pelas luvas que tinham esquecido, e adivinhar uma vontade, e surpreender um apetite... eram submissões tímidas de pajem, suspiros escapados na sombra, febris apertos de mão prolongados em tremuras de súplica e promessa... eram, nos claros do diálogo, fundos dardejamentos de olhos, penetrantes e elétricos, luzindo como punhais.
De tudo isto vinha à baronesa um desespero. Evitava Eugénio, falava-lhe de escape, franzindo a testa, ou então por inteiro esquecia as raias da conveniência e do bom senso nas suas relações de sociedade com o rapaz.
O que era para o barão basto motivo de desgosto e dava tema de rezingas entre ele e a baronesa. -- Donde lhe vinha aquele aborrecimento ao Eugénio?... Era incrível!... apresentando-se tão bem! tão bom rapazinho, tão dedicado!... Só por grande birra! -- Conservava-se muda a baronesa; e ele, julgando descobrir no silêncio da esposa uma aquiescência, aventurava:
-- Vamos, trata-o bem... O rapaz merece-o... E há de reparar.
A baronesa entrincheirava-se numa recusa. Então o barão retaliava:
-- Ai! Mulheres, mulheres...
Ou inquiria, impaciente:
-- Mas porquê?... Que mal te fez o rapaz?
Ao que ela, secada:
-- Não sei! Não sei... Que queres?... E cá uma embirração!
E o marido, fulo:
-- Está visto!... Ou eu não fosse amigo dele!
Nem de leve suspeitava o barão da louvável briga moral em que andavam enliçados o ânimo e o coração da esposa. Mercê do feitio das suas relações com Eugénio, esquecia-lhe o sexo. Considerava o efebo um temperamento passivo e feminino; o que o fazia achar entre o amante e a esposa uma irmanação sexual de tendências e de desejos. Aquela antinomia aparente de sentimentos, seus e de Elvira, com respeito a Eugénio, não via a honrada causa, a santa origem. Por isso, nem de sombras futurava que uma chispa sensual pudesse saltar, fulgurante e irreprimível, ao contacto dessas duas juventudes.
Louvavelmente, Elvira deu-se a lançar mão de todos os meios que tivessem o ar de couraçá-la contra o pecado. Toda a sorte de distrações: esmolas, concertos, bailes, visitas, passeios longe. Sempre sem o concurso de Eugénio.
Acontecia até andar ela preparando-se com delícia para uma festa, e depois, à última hora, sabendo que Eugénio seria da sociedade, recusar-se terminantemente a ir.
Assim, de uma vez, tinham sido convidados para uma ferra de garraios, em Salvaterra, numa propriedade do marquês de Torredeita. Diversão de elite, muito da paixão da baronesa. Poucos convidados As senhoras iam vestidas de «manolas» e os homens de campinos. Elvira pusera, durante dias, todo o seu garridismo de mulher no empenho de apresentar-se com vantagem neste arriscado certâmen de belezas à grande luz do sol. E já ela esperava impaciente, no toilette, frente ao espelho, dando os últimos toques nas pregas da mantilha, quando o barão entrou:
-- Estás pronta?... Afinal, levo também o Eugénio.
Elvira empalideceu, mordeu os lábios, teve uns segundos de hesitação e respondeu a custo:
-- Pois vai, vai com ele... Eu não vou. -- E, perante o espanto do barão:
-- Dói-me imenso a cabeça.
-- E todavia vestiste-te?...
-- É que tinha imensa vontade de ir! -- explicou Elvira, com os olhos húmidos. -- Mas não vou, não... não posso... seria uma imprudência. -- E arrancou num repelão a mantilha, contendo as lágrimas.
O barão insistiu. -- Era uma pieguice, não valia nada... far-lhe-ia bem o campo... Que tinham de dizer?... -- Porém ela rematou, deixando o aposento, sacudidamente:
-- Já te disse... não vou!
Toda a sua vida subordinava a este lema honesto: evitar Eugénio. Em afervoramentos do amor conjugal chegava a procurar derivativos; e então desatava-se em carinhos que espantavam do mais puro espanto o barão.
Nunca tão desoladoramente ela sentira a infecundidade do casal. -- Filhos, os filhos!... Quem lhos dera!... São a virtude e o encanto de uma casa... Enchiam o coração, entretinham tanto!... E acontecia que quando no claro-escuro da chaise-longue vinha a tentação surpreendê-la, a baronesa seguia de salto para a grande luz das sacadas, e aí, de pé, a face colada à vidraça, o olhar aceso num terror sagrado, baixava e curvava a mão no gesto de afagar as cabecitas louras que deviam estar ali assim, ao lado dela, inocentinhas, tenras, para a defender.
Daí, uma manhã, depois de almoço, lembrou Elvira:
-- Então este ano não saímos de Lisboa, Sebastião?
-- Sairmos de Lisboa!? -- exclamou o barão, levantando-se, num ímpeto de surpresa.
-- E alguma coisa nunca vista?
-- Para onde e para quê!?...
-- Ora essa!... Para a Figueira.
-- Deixa-te disso.
-- Pois não é o costume, logo que chega o Verão, todos os anos?
-- Este ano não posso.
-- O quê?...
-- Estou muito preso aqui.
-- Apetecia-me tanto...
-- Pois tem paciência; este ano não vamos... Não pode ser. -- E como Elvira o fitasse de sobrecenho, insistiu, com dureza: -- Já te disse!... E então?...
-- Muito obrigada... -- silvou, erguendo-se também, a baronesa. -- Isto é que é um maridinho... de preço! Se eu não tivesse vontade de ir, então havias de tu querer ir por força, só pelo gosto de me contrariar!
-- O menina, mas ouve...
-- És fresco!
E deixou-se cair num sofá, com os olhos em lágrimas e a face roxa de cólera.
O barão, levemente pálido, aproximou-se, e, suasivo, manso, foi desfiando uma artificiosa série de pretextos: indagações urgentes na biblioteca, a fundação de uma companhia mineira, a direção da Gazeta, que o diretor e proprietário, ausente, lhe tinha confiado, solicitações nos ministérios, os seus negócios...
-- Os teus negócios?... -- atacou finamente Elvira. -- Mas é exatamente por isso que devemos lá ir... Não te andas tu aí sempre a queixar do procurador e dos caseiros?... Que roubam? Que fazem? Que acontecem?... Pois vamos nós mesmos ver, fiscalizar as coisas.
-- Não posso! Não posso! -- contrariou azedo o barão, confuso de se ver colhido no próprio estratagema.
Era-lhe um impossível moral distanciar-se de Eugénio.
E Elvira, que precisamente afastar-se do efebo era o que mais desejava, e que assim via apostada em impeli-la ao resvalo a pessoa que, com ela, mais empenho devia ter na suster na queda, sentia-se invadir de um desgosto dissolvente; no íntimo deplorava tanto lutar ao malbarato; e mais que uma vez chegou a apontar-lhe no desejo, como um prémio à sua dignidade menosprezada, o pensamento do adultério. Mas breve recobrava o ascendente o seu plasma etiológico de burguesa, e, como corolário, voltava então a insistência, formulada em todos os tons e sob todas as formas, de sair de Lisboa.
Ao que inalteravelmente se recusava o barão. A só ideia de deixar de ver assiduamente o amante emparvecia-o. Esta frequentação aviltante com o efebo tomara-se-lhe imprescindível como o alimento e absorvente como o vício. Sem o amor de Eugénio sentia que não poderia viver... Havia um meio de conciliar as coisas: -- levá-lo para a Figueira. Porém como mascarar decentemente perante o mundo esse sujo expediente?... E o dinheiro que tudo isso lhe ia custar! -- Não podia... -- Por isso recusava sempre.
Então Elvira sofreu e definhou, como uma planta contrariada, e debateu-se na quebra da sua vontade, constrangidamente. Levava os dias amalhoada e triste, fugindo à convivência. Emagreceu. Tinha retrações de freira e cóleras de epilética. De hora para hora o seu espírito escabujava, versátil, louco, nas mais abstrusas regiões da incoerência.
Tornou-se notada esta transfiguração alarmante da azougada e gentil criaturita. Sobre a causa os ânimos divergiam. Sofria dos nervos, talvez...
Ou, então, princípios de anemia. Mudança de ares -- aconselhavam.
Boquejavam-se sequidades, maus tratos do marido. E todos sinceramente interessados. Todos, com a família à frente, de roda do barão, fazendo sua a causa da doente, intercedendo; todos tornando-o amigavelmente réu do mal- estar da esposa. Por forma que, um dia, viu-se ele finalmente obrigado a assentir:
-- Bem... vamos quando tu quiseres.
Desceram à gare, a despedir-se, os íntimos de S. Cristóvão; e colados a um ponto da linha de wagons, formando cauda e intercetando o movimento, premem-se todos à portinhola da carruagem para onde ia entrar Elvira.
Um pouco ao lado, abstrato, quente, com a mão num dos varões da carruagem, conversa com Eugénio o barão.
Noite. Quase horas de partida. A gente é compacta. Anda-se com dificuldade. Cresce este atropelamento gritado e confuso da multidão que tem pressa. Pregoa-se água e jornais. Ouve-se uma confusão de idiomas. Homens de blusa arrastam zorras com bagagem, num chilrido perro. Há olhares longos de saudade, lágrimas, felicitações, invejas. E do grupo que rodeia a baronesa sobe a espaços um cristal de risadinhas femininas, que a imensa cobertura de ferro e vidro da gare alarga numa ampla ressonância.
Já a sineta tinha dado o sinal da partida. A baronesa beijara mais uma vez as amigas; e por último à D. Leonor, em segredo: -- que não lhe esqueceria trazer as costumadas «gargantas de freira», da Luísa... contasse com elas. -- Entre a massa dos que ficavam e o comboio, à beira do cais, ficara a descoberto uma estreita fita de asfalto, ao longo da qual um homem seguia, de bonnet agaloado, batendo com força as portinholas. Só o barão continuava em baixo, a alma nos olhos, dialogando com Eugénio, inteiramente alheio ao que se passava em torno.
Gritou-lhe a baronesa:
-- Ó Sebastião! que ficas em terra!
Era tempo. O monstro gemeu, arfou, numa sonora inspiração, a preparar- se para a caminhada; e logo a deslocar-se sobre os rails com um estrondo ferralhado e cheio. Ergue-se de ADEUS um saudoso smorzamento; palpitam acenos de mãos, de chapéus, de lenços; cruza o ar uma ou outra frase perdida.
O barão debruçou-se. Num segundo, o asfalto é deserto e o grande réptil de aço vai já com o seu penacho de fogo serpentinando longe. E, já também longe, ainda o barão, debruçado sempre, a olhar, não desfita a fieira luminosa do gás da gare, que ele vê apequenando e fugindo rapidamente.
CAPÍTULO X
Na Figueira a breve trecho entrou de sentir-se entaliscado o barão. A fútil vacuidade do viver elegante das praias causticava-lhe de tédio o espírito, a par e passo que a alma lacrimava por Eugénio as mais acres e ferventes instilações da saudade. Longe do seu ídolo, aquele temperamento de emocionista exacerbava-se.
Dia sobre dia, ganhava-o a tristeza. Varrera-lhe o cérebro a amnésia de tudo quanto fosse excêntrico ao seu amor. E assim, gradualmente foi marasmando num como estado de passividade orgânica, numa inânia de imbecil ou de selvagem, numa alheação, num desdém, numa reserva, numa transcendente e muda hostilidade, que lhe davam a aparência imponderável de um sonâmbulo e quase por inteiro o separavam do conflito da vida exterior.
Eram, horas e horas, parêntesis duros de meditação, de incêndio íntimo, de devastadoras regressões ao passado -- essa pátria da alma --, pela divina tortuagem de cujas volutas ele largava a escabujar doridamente a fantasia, enquanto, de olhos cerrados e mãos sobre o ventre, hipocritamente perreava o corpo numa imobilidade. Era um sistemático fugir ao convívio mundano, um vergonhoso receio da grande luz do dia, um asco mortal da sociedade. Era para com a baronesa o diálogo todo em monossílabos, e oposições de vontade, repentes de génio, ralhos. Eram pelo campo, sobre a tarde, té horas mortas da noite, solitárias, intermináveis caminhadas.
Aí, uma forte corrente de simpatia se fechava entre as agonias da sua alma e a sombria tristeza da paisagem, que forma com a aparência graciosa, lavada e ganida da cidade um tão flagrante contraste. Aprazia-lhe sobretudo o passeio arejado e amplo ao longo da costa, deixada a estrada, sobre a direita, pela cima dos cabeços fora, confundido com aquela natureza terna e sofredora, em que há manchas verde-negras de pinheiros, mesquinhos, torturados, arrepiados, mancos da fúria dos vendavais; em que se rasgam cavidades lineares de argila, rubras como pálpebras inflamadas de chorar; em que o rastolho é lívido, a erva rara e áspera, a areia amarelenta; e onde em baixo, lambida do mar, na falda anegrada da serra, a aldeia de Buarcos aparece, na distância, cinzenta e lúgubre como uma necrópole de há mil anos.
Era de ordinário sol-posto. Lá muito alto, a cavaleiro sobre a estrada, o barão sentava-se. Na vastidão em frente diluía-se, marinhava para o horizonte o mar -- preguiçoso, cor de chumbo --, como uma tampa imensa de sarcófago; pela raiz do céu escampado a luz, numa amarelidão de círio, esmaecia; como apagadores negrejavam sobre os montes os moinhos de vento; o crepúsculo seguia na sua hecatombe da cor, dando às coisas um ar confidencial, macio; e, mal alvejando em torno, a grande bacia encurvava-se como um zero de cinzas. Nem um rasto de vapor pelo largo, nem uma vela de barco panejando.
Era a anulação universal pelo silêncio e pela sombra. E a todo o momento o barão, identificado, esperava beatificamente, olhos cerrados, que nessa diluição progressiva, nesse moroso aniquilamento do real e do tangível, alcançasse também o supremo refrigério do aniquilamento o seu desgosto da vida, o seu mal-estar, a sua dor.
Mas, bandadas de raparigas, sonoras como estorninhos, aqui vinham retirando da labuta da cidade; e então, nesta negra pacificação de cemitério, o seu canto soava arreliador e profano, num repelão de antítese, estrelante:
O teu amor é dourado,Mas sem firmeza nenhuma;E como a névoa do rio,E uma bola de espuma...Oh, maravilha, oh, maravilha, oh, maravilhaEu sei qual é...E ter um anjo, é ter um anjo, é ter um anjoAqui ao pé!
Às primeiras notas, a cristalina vibração do canto e a estridules das vozes, arrogantes de vigor e de saúde, despertavam rudemente o barão do seu sonho merencório. -- Quem diabo vinha assim perturbar?... -- Erguia-se a meio, irado e áspero, sobre o seu rústico pedestal de agulhas secas de pinheiro. A boca vincava aos cantos, fuzilavam-lhe os olhos, corria-o um tremor de cólera, momentâneo. Porém, manso e manso, eloquente da insistência, aquela melopeia solta e fácil, que a proximidade da água amplificava, trespassava-o, espontava-lhe as resistências, ganhava-o, amaciava-o... dulcidamente lhe infiltrava na alma as efusões do seu ritmo sincero. Transportado e vencido, o barão gostava, habituava-se. Cada tarde vinha, gostosamente, pedir um derivativo aos seus males à rude cantilena das filhas robustas do campo. Agora atentava na letra, demorava-se na análise das cadências. E levemente distraído, num flamejo vago de prazer, ia escutando.
Os ranchos das cantoras sucediam-se, estrídulos, cheios, numa abundância gárrula e forte. De bandas da cidade surdiam, e com elas, crescendo, crescendo, o seu belo canto agudo; passavam em baixo, à raiz do monte, estúrdias, breves -- cestos à cabeça, troixas no braço, infusas, encinhos, foices --, nobremente juntadas em lindos grupos pagãos; e lá seguiam a sumir-se e perder-se na distância, pelo âmbito das aldeias próximas, cantando sempre:
Oh, maravilha, oh, maravilha, oh, maravilha Eu sei qual...
Ao cabo, mal soprava já, das bandas de Tavarede ou de Buarcos, amortecida na calma aragem do norte, e fugaz, agonizante, uma flebilíssima toada. O barão, de bruços sobre a terra, em concha a orelha, e a face estirada e sôfrega, apreendia-lhe com avidez os mais fugidios sons, os últimos acentos.
Sofria da extinção gradual da límpida melodia, cujos últimos arpejos se empenhava em guardar no ouvido, demoradamente. Com eles se evolvia pelo espaço a sua mórbida tristeza... E então ficava-se, horas, amnesiado pelo efeito cordial daquela música tão simples, numa quebreira morna da vontade, perdido num sonhar de que não era senhor, que não dirigia, a alma ensopada em não sei quê de fluido e enternecido -- e sempre fortemente reclamado, numa solicitação, num estiramento de todos os seus nervos, tensos e acordes como fibras gementes de uma harpa, na invariável direção onde deixara o seu amor...
Ao contrário do marido, a baronesa nunca na sua vida se sentira tão alegre e tão bem. Com a mesma facilidade com que um encrespamento de onda escorrega, a perder-se, pelo verde liso e vário das águas, assim na fátua inconsistência do espírito de Elvira a imagem do efebo lisamente escorregou e se perdeu.
Nos primeiros dias lembrara-lhe ele ainda bastante, mas sem calor, sem vivacidade, apenas em mansos claros do desejo, todo gasto nas saltantes diversões da quadra balnear.
Organizara-se a pândega culta. Superabundavam festas. Raiava no zénite essa temporada patusca de doutores em férias, que anualmente vão desemburrar seus sapientes ideologismos da algidez dos meses letivos num espinoteio galante de festas. Sucediam-se as regatas, os picnics, os bailes, os bazares, as tômbolas. Um deboche a fiambre e torradas. Coimbra em peso a retoiçar, pelintra, empavonada. Nem faltavam os nadadores bem contornados, os guapos cavaleiros, os admiradores de olho em acento circunflexo, os lamechas com mau hálito, os «valsistas» de juba fatal e joanetes. Para mais, ia o tempo de feição, o peixe abundava e as casas estavam baratas. De forma que, a grado e grado, naturalmente o perigo passou, o rapaz ia esquecendo. -- Como ela estivera a pique, por uma criancice, de sujar a sua reputação, enlamear o nome do marido, perder a tranquilidade e arriscar a própria vida!... Pedaço de tola! Valia lá a pena... Rapazes bonitos era o que mais havia, afinal... e era muito melhor levar a vida brincando com todos, como agora, a ouvir de um, a ouvir de outro, e de outro... mas sempre trocista, esquiva, livre... sem dar preferência a nenhum! -- Assim a almita estouvada e leve da baronesa ia correndo nesse «Eldorado» de gozo, embriagada. E a lembrança de Eugénio mal vinha agora, só já pelo tarde, numa preguiça de calor sonolento, vagamente, num misto de saudade e de alívio que a segurança do presente açucarava, e que era quase um prazer.
Vogando nesta quermesse undante de felicidade, não podia a baronesa atinar com uma causa razoada à misantropia do marido. Com tanta distração, tanto divertimento, tão boa sociedade... parecia impossível! -- E como não podia medir os latrinários desvãos daquela alma, ia Elvira deitando à conta de risíveis mesquinharias domésticas a displicência do barão.
Duma vez repontou ela, posta em prova:
-- Como vieste de má vontade -- entendo-te! --, desforras-te em arremessos e suspiros da violência que fizeste... Olha, caro favor!
E assim, voluntariosa e insolente como era, amiúde acontecia de improviso armar alguma dessas fúteis tempestades que, no seu ódio implacável de casta, a Doroteia saboreava, alargando o nariz e aprumando o queixo.
Mas de outras vezes também, avisada e paciente, amolando, acomodava-se.
-- Alterar-se para quê?... Era asneira, e fazer-lhe o gostinho, ainda em cima...
-- Um pouco para distrair o marido, um pouco para justificar a sua insistência em vir à província, resolveu-o mesmo ela a irem os dois, passado o rio, visitar a Lavos e à Murraceira os seus rústicos domínios, cuja administração andava por mãos de caseiros broncos e procuradores ladinos deploravelmente esbandalhada. Eram rendas em atraso, demarcações contestadas, desvios de águas, foros duvidosos, um deficit constante. Era a lógica aluição de uma fortuna que o dono trazia longe da vista e do cuidado. Urgia acudir ao desbarato iminente. Foram; mas demoraram-se pouco. Não tinha ali a baronesa bailes, e o barão, apático, dormente, não achava palavras para inquirir, nem olhos para ver, nem rigores para castigar. Fechado numa anorexia absoluta de tudo quanto fosse à sua paixão alheio, deixavam-no frio as sugestivas careações da paisagem: -- tufamentos druídicos de florestas; largos campos de milharais, cerrados como pelotões, empenachados, firmes; a epilepsia verde dos vinhedos; as ruínas de um mosteiro ensilveirado e negro, encapuzado de hera, idealmente escalavrado; e horizontes frescos de marinhas, plácidas, suaves, verdadeiros céus de esmeralda, em cuja terna e diáfana imensidade os montõezinhos de sal centelhavam como estrelas.
Para mais, abominando escriturações, granjeios, róis de jornas, e as penhoras, demandas, tribunais, alicantinas, papelada. Para mais, sem interesse pelos meios materiais de agenciar a vida; sem coragem para despedir, reformar pessoal, para empunhar com energia e tino o timão das coisas. Eis porque ele:
-- Não são maus, deixa lá!... explicou à esposa. -- O tempo é que vai mau para as terras... Se os pobres mal tiram para comer, como é que me hão de pagar?
E deste modo atamancando o presente, alijando cuidados, descurando a fazenda; assim forte neste desapego inverosímil, voltou com a mulher para a cidade.
Raro a acompanhava ao banho, de manhã; e, se o fazia, jamais descia à praia. Mantinha-se mudo, em pé, hostilmente retraído ao alto do talude, colhendo em globo as coisas, vagamente, num fumo de indiferença; mal vendo a multidão que em baixo formigava, por entre o vasto deslumbramento branco das barracas, na areia fina de arminho; mal apreendendo o ronronar bonacheirão da água, espreguiçado e manso, que com a brisa vinha, hilaremente picado de risinhos, gritos, expansões, casquinadas de troça.
Dia nenhum deixava de escrever para Lisboa. Tinha até combinado entreter com Eugénio um cartear quotidiano constante. Mas o efebo, como era de supor, não cumpriu: nem o coração lhe poderia fornecer emoções, nem o cérebro ideias que bondassem a tão estonteador dispêndio de tinta.
Como escrevesse pouco e de largo, repreendido, logo à terceira ou quarta missiva se desculpou com a falta de assunto. -- Tudo velho... não sabia de que lhe havia de falar. -- Ao que o barão, apaixonadamente:
Embora, Escreve-me, escreve sempre... De tudo, de tudo, seja o que for! Qualquer assunto, ainda o mais trivial, exalça-se numa auréola de prestígio ao ser tratado por ti.
As cartas sucediam-se, pontualmente infalíveis, implacáveis, longas, furiosas de dor e de ternura. O mesmo fogo interior as requeimava. Grilhetava-as ao mesmo objetivo uma insistente propulsão de monomaníaco. Escritas ao calor da paixão, aos sacões da nevrose, sofriam todas do mesmo estilo paroxísmico, esfarrapado. Ora se contorcia a frase, desvergonhada, em aravias impudicas de histérica; ora tímida se rebuçava numa candidez virgínea, imaculada. Aqui sublimava-se em olímpicos idealismos, para logo estadear uma nudez esbagachada e torpe. E sempre, uma por uma, a dançar nelas a mesma incoerência de delírio. Sempre todas rubras num calor de incêndio, todas parafraseando a patonomia moral de um degenerado.
Como esta:
Meu amigo.
São duas horas da manhã. Acabo de chegar, mal humorado, vazio, estúpido, de mais um desses suplícios galantes, chamados bailes da ASSEMBLEIA. A Elvira riu, comeu, falou e dançou despropositadamente. Ridícula de frivolidade e tolice, coitada! a ponto de fazer pena. Havia mais uns franchinotes pomadados e esguios, com todo o ar de se divertirem, e uns graves doutores grisalhos, trazendo comicamente para a luz das contradanças a mesma clássica investidura e a mesma mímica solene com que de fresco ainda tinham pompeado no doutoramento do último bacharel.
Eu, como deves imaginar, arrastei a noite penosamente, alheio a toda essa bambochata, sumido num canto do salão, arreliado, sombrio, taciturno, pensando só e sempre em ti...
Não sei a que atribua a tua falta de notícias. És inverosimilmente ingrato. Por mais veementes, por mais vulcânicas que irrompam das profundezas desta pobre alma, chagada de saudade, não logram as minhas exorações mover-te a comunicares comigo por escrito mais amiudadamente, preguiceiro!... Do exagerado mimo te ressentes. Por te amar demasiado é que demasiado sofro também, É condição do amor ter como reverso a tortura. Ingrato!
Porque assim te obstinas, mau, teimoso, nesse largo, nesse implacável silêncio?... Fazes-me tanto mal! Todas as manhãs eu aguardo impaciente, relógio em punho -- se tu visses! --, a hora do correio, e, mal que ele toca, eu próprio voo logo à porta e corro num relâmpago a correspondência, a ver se desse frio empilhamento de coisas indiferentes um papel qualquer me salta, iluminado, quente, regrado pela tua mão! -- E isto é tão raro!... Que horror de deceção, quase de contínuo! Nada, pela palavra nada!... Ingrato! Eu então exaspero-me, sinto espuma nos lábios, paro de respirar, ensurdeço, inflamo-me... e tudo me irrita: os móveis crescem desmesuradamente, a Elvira seca-me, os jornais figuram-se-me impressos a vermelho, o sol parece fazer-me uma troça pegada. E vou e fujo e refugio-me no meu quarto, onde, para não cometer alguma loucura, tenho de amparar-me a toda a minha coragem -- que é já bem pouca! -- e concentrar-me na recordação dos nossos prazeres passados, na antevisão dos nossos prazeres por vir... É isto o que me sustém, me alimenta e me dá a razão da própria vida. Oh! Se me vejo novamente ao pé de ti -- junto, bem junto! --, sabedor dos teus pensamentos, fiscal das tuas ações, senhor da tua carne!... eletriza-me todo esta esperança num espasmo voluptuoso e terrível... põe-me até medo, acobardo-me de a imaginar, tamanha felicidade.
Porque eu sinto-me, como nunca, tributário do teu corpo, escravo da tua presença, faminto do teu calor, do teu hálito de veludo... Este meu amor por ti é solene como a morte, e indefetível, fatal como a fatalidade. Em todas as horas do dia e da noite, esteja só ou acompanhado, em casa ou no campo, acordado ou sonhando, são ou doente -- e não é isto uma doença? -- tudo quanto se não relacione com esta minha paixão diabólica é como se não existisse para mim. Podes crer, Eugénio -- nunca ninguém tanto como eu porfiou na veemência de um desejo; nunca um coração de homem vibrou de tão cálido furor, de tão voraz energia! A minha alma pertence-te, polarizou nos teus olhos, é-te inseparável, envolve- te como uma corola de beijos... Tanto que, quando eu morrer, ela há de ficar acorrentada à terra para te não largar um instante, para te inundar de meiguice... e só juntamente com a tua é que subirá ao céu!
Escreve.
SEBASTIÃO
Eugénio, de as ler, emparvecia. Amalhoava-o este avatar formidável de baixezas, este esfuzio de abjeções, esta odisseia de vergonhas. As primeiras ainda ensaiou levá-las de chalaça, comentadas a pilhéria e a riso, de pagode com a Ester; mas acontecia que na mais desprevenida altura da troça uma ideia, uma frase saltava de repente -- inesperada, estranha -- , e desconcertava-os. Ora um conceito fulvo chispava, cegando-os, coriscante; ora uma rasa obscenidade estralejava, crua, audaciosa; ora um pensamento alado e profundo, de larga envergadura, de alcance inatingível, vinha e caía- lhes com um peso de marreta sobre os crânios broncos, esmagadoramente. E a essas passagens árduas, o rir gelava nos lábios, tomava-os um estonteamento de pasmo e de vertigem. O que quer que era de exótico, de intempestivo e grande ressumbrava do papel perante os seus espíritos tacanhos, pávidos, e intimidava-os... Aquilo era um corrimento acre de vilezas, traindo a desintegração de um carácter, a podridez de uma razão, o esfacelar de uma vontade. Ficavam-se então a olhar um para o outro, acabrunhados, mudos; ou abriam-se em monossílabos de alarme, comiserativas interjeições, incredulidades, espantos, dúvidas.
Era quando a Ester interrompia a leitura e: -- Safa! -- analisava. -- E de escaldar! As mulheres nunca vocês dizem tanto... -- E que não queria ouvir mais... Muito fina para ela aquela solfa... ourava-se-lhe o juízo.
Uma vez mesmo repelou para Eugénio, indignada:
-- Tem vergonha!
Eugénio corou, vexado. Sentiu que aquela epistolografia imunda, aquela paixão contranatural, aquele amor ao arrepio, o cerceavam perante a amante nos seus atributos do homem -- como se o castrassem moralmente. E de emparce com o barão o envileciam.
De sorte que, de certo ponto em diante, as cartas do barão desviava-as dos olhos, punha-as de banda, queimava-as sem as ler.
Mas nem assim neste jorrante derivativo epistolar, lograva normalizar-se a degenerescência psíquica do barão. Por isso, extenuado de sentir, ele de frequência recorria ao castigo animal das grandes caminhadas. Estas tinham, sim, uma limitada mas segura eficácia. Vencidas do cansaço físico, adormecidas na violência do dispêndio muscular, as turbulências da sua alma enferma amadornavam. E era então, durante essa monótona insipidez dos longos passeios solitários, que para iludir o tempo e cativar o espírito o barão se entregava, numa inconsciência infantil, aos mais ocos exercícios, aos mais idiotas e pueris entretenimentos. -- Dava-se a notar de dia para dia, com uma exatidão de segundos, escrupulosamente, a diferença do instante em que o sol deixava tal árvore; em que a fábrica de tijolo apitava para a leva do trabalho; em que o fumo irrompia de tal ou tal chaminé, desenrolado e branco. Ou todo se aplicava a ir pisando, passo por passo, cabisbaixo, atento, as pegadas de um labrego qualquer que de acaso descortinara, nitidamente moldadas na poeira, ao longo do caminho. Ou lhe apetecia assinalar, num recesso de vale, numa volta de riacho, num mamelão, num ermo, algum cantinho de mundo simpático ao seu estado, ignorado, aprazível, triste: para isso, aí escolhia um pinheiro, fixava-lhe na mente a situação, a facies, as relações de forma e posição com os vizinhos, e depois partia-lhe um ramo; no dia seguinte, voltava, e logo obstinando-se, ainda de longe, em reconhecê-lo... vinha, vinha mais perto... aproximava-se... e sentia um encanto singular ao ver que da ferida vegetal supurara, translúcida, redonda, uma lágrima de seiva.
Irritava-o no mais alto ponto a frivolidade louçã da baronesa. -- Por via dela tinha vindo... por via dela sofria... E o pago era aquele!... Tonta! Egoísta! Bem lhe importava... Inferno de sujeição! -- E em segundos perversos de demência -- que o desgraçado repelia com pavor --, chegou a pensar na libertação, pela morte da esposa, daquela sua tortura de vida, contrafeita e velada.
Consequentemente, a misantropia aziumava; as rezingas aceleravam-se, crescentes, insofríveis. A termos que ainda antes de um mês contado regressaram à capital.
Declinava o sol, numa destas agonias de tarde de Outono, cheias de expressão, claras, lentas, que são de uma tão tocante melancolia e de uma tão cordial serenidade.
Tinham voltado.
No escritório do barão, a S. Cristóvão, Elvira sozinha, em pé contra a vidraça de uma das sacadas, olhava distraidamente da cidade o vasto panorama. -- Como se de há muito o não tivera visto. Desconhecia-o.
Afigurava-se-lhe tudo mais pequeno: tudo em remendos, acanhado, triste; tudo mesquinho e sujo. Uma caliçagem musgosa e húmida carunchava os prédios, e, ao alto das torres, de uma cárie enfarruscada e funda se esboroavam as cantarias. Nem uma pontinha de verde adoçando deste empilhamento esmagador de velhos mármores a aridez desesperante. O ar sem limpidez, sem movimento as ruas, a gente sem cor, sem brilho; e o Tejo, quase deserto, parado e gordo, numa pacatez de vida vergonhosa. -- Oh! Seguramente na Figueira havia mais cal, mais luz, mais vida e mais saúde.
Uma perturbadora agitação picava-lhe nos nervos... fazia-lhe bater o coração e turbinar inquieta a fantasia.
Tinham chegado naquela madrugada mesmo, sem prevenir ninguém, inesperadamente. Os pais e a irmã, mal que o souberam, tinham vindo logo abraçá-los, entre admirativas interjeições, numa ponta de surpresa, censurando: -- Assim tão de repente!... Com efeito!... Quem havia de futurar?...
Quase que nem valera a pena, para aquilo, terem arredado pé da capital.
-- E D. Jacinta juntava, desconfiada, escoldrinhando a expressão da filha:
-- Ou acaso vocês...? Hem! aguaceiro telhas adentro?...
Porém a baronesa atestara -- que não --, e o marido assegurara também, sorrindo complacente -- que se tinham simplesmente aborrecido... Cada vez mais secante a província... No fim de contas, convencessem-se, ainda era Lisboa a melhor terra para passar o Verão.
Os Paradelas --já tinham também recado -- eram certos à noite. Faltava Eugénio... Não devia tardar. -- E esta ideia aquecia, perturbava a baronesa, erguia-lhe empolas na alma, arrepelava-a num pique de emoção, banhava-a num terno amolecimento.
-- Mas, por amor de Deus! Que tolice de comoção era aquela?... Recaía no antigo?... -- inquiria-se, a reagir, mortificada. -- Um sobressalto assim por ir ver de novo uma pessoa indiferente... sim... pois não lhe era ele indiferente, a falar a verdade? Não era ele afinal, a despeito dos seus olhos em amêndoa e da covinha da sua barba cor-de-rosa, um tipo vasconço e grosseiro, infinitamente mais grosseiro do que esses belos rapazes, perfumados, dandys, com quem ela vinha regalada de valsar? -- Ah! Que não era! -- alarmava do fundo da sua consciência a pirexia do desejo. E a baronesa visionava apaixonadamente o efebo, recordava-se... quando fora da primeira vez que o tinha conhecido... ali, naquela sala mesma... estava a vê-lo! com a chávena do café na mão, penujoso, macio, alvo, nos movimentos a flexibilidade própria dos seres cujo equilíbrio vital é perfeito, e o riso franco e o gesto fácil, e a face corada e luzindo como um pêro criado ao sol... Estava a vê-lo. Fora ali mesmo... Como saltava, como quadrava bem naquela escovada e lúcida moldura de coisas de preço a sua impetuosa e viva juventude! -- Então a pobrezita sentia que o rapaz tardava; e da sua alma erguia-se cálida a incombatível febre de o tomar a ver.
Quando das salas da frente veio um crescer de pés apressados, e logo o reposteiro, colhido, deu passagem à figura gentil do efebo -- sorridente, magnífica, desempenada e forte.
Um arrepio trotou nos nervos da baronesa e passou-lhe pela nuca um sopro quente. Estremeceu, crispou os olhos. Foi como se com ele tivesse entrado uma grande claridade. -- Era o mesmo rapaz soberbo, grácil, bem plantado, com uma desenvoltura infantil nos modos e uma harmonia cantante no andar. O mesmo cabelo crespo e revolto; a curva ideal do rosto osculada pela mesma covinha tentadora; e na sombra dos grandes cílios o negro veludoso dos olhos golpeava-se-lhe de luz.
Adiantou-se expansivo, lesto, risonho, o busto lançado à frente como no impulso de dar um abraço; e logo contendo-se e beijando a mão de Elvira, num galanteio respeitoso e convicto, aventurou:
-- Como vem bonita!
A baronesa, fria nas mãos, fugindo à luz do exterior, gaguejou ruborizada:
-- Bonita?... Ora e o senhor... que direi eu então?
E num pronto a corrigir o instintivo desmando, grave e familiar, acrescentou:
-- Vá de lisonjas... Entre velhos amigos, não é próprio.
-- Qual lisonja! -- exclamou Eugénio, abrindo os braços de ímpeto.
-- Mas se é a pura da verdade!
Plantou-se em frente de Elvira, e enlevado, hipnotizado, as mãos agora juntas num abandono extático dos braços, tudo era monologar:
-- Como ela vem! Como ela vem!
Depois desandou rápido pela quadra, na simulação feliz de um propósito honesto, e suspirou:
-- Mais me valera não ter olhos, palavra!
-- Ai! Meu Deus, como ele está!... -- reprimendou Elvira, com um peguinhar sintomático na fala enovelada. E, dando costas ao efebo, voltou rapidamente, esquiva para o vão da sacada, donde continuou: -- Ouviu?... Nessa afinação nem mais palavra, percebeu?... Proibição formal. Não estou pró aturar!
Logo Eugénio condescendeu, todo urbano:
-- Bem... já aqui não está quem falou.
E foi deixar-se cair numa das cadeiras Luís XV, com uma aquiescência muda de ombros, baixa a cabeça, anulando-se.
Transcorreram segundos de silêncio... largo silêncio, difícil e molesto, perro de hesitações, gorgolejante de audácias, cavado de incertezas. Cortou-o Eugénio interrogando, manhoso, frialão, num exagero arrastado de indiferença, quase num bocejo:
-- Deu-se então muito bem por lá?
-- Passámos perfeitamente -- acudiu no mesmo tom, sem desabaluartar da janela, a baronesa.
Eugénio insofrido, levantou-se, foi mansamente, devagar, caminho da janela, e aí muito junto de Elvira, fitando-a nos olhos, cintilante, varonil na grande luz do dia:
-- Já nos faziam falta... -- insinuou.
Ao que ela, abroquelando-se na mais brônzea reserva:
-- Está uma tarde tristonha, não está?
-- Não acho.
-- Será dos meus olhos...
E ficou-se a querer fazer de séria, mas toda alerte na aflita previsão de um momento grave e decisivo; -- os olhos errando avidamente pelo espaço, e as mãos marinhando a vidraça numa ânsia de avezita que irrequieta esgratinha às grades da gaiola, pelidando a liberdade.
A tarde tocava o seu termo, num doce esmair de luz, repousado e branco.
Já se amalgamava na sombra o pardo amontoamento da cidade. Pela angusta caleira do vale, à direita, o grosso irregular da casaria protuberava, confuso e maciço, adelgaçando, em pulverulosas manchas, em extensos carvoamentos, em titânicos borrões de argila e de calcário. O rio era de níquel, o céu lilás, as mansardas cor de cinza. Para lá da negra franja irregular dos prédios, o sol, deixando as ruas em luto, agonizava. Somente em baixo, sobre o Tejo, a «Glória» monumental do arco da Rua Augusta vivia ainda de um cor-de-rosa macio e leve, um como rubor humano; e no Moinho de Vento, ao alto, uma claraboia, acesa como um farol, reverberava. Rés dos telhados uma grossa vaporação pairava, algodoando as coisas, imóvel, deletéria; e para cima o infinito espraiava-se, diáfano, enxuto, escarolado e luzente como uma faille de preço. Nem uma nuvem esgarçando a cetínea limpidez do ar distante. Apenas no ocaso, sobre os Mártires, uma nuvenzita de bistre se formava -- como um charuto --, horizontal, afilada e ténue. Das ruas um vago rumor crescia, surdo, fatigado. E nesta luz breve e saudosa as ruínas lendárias do Carmo, erguendo as finas ogivas, rezavam «trindades», piedosamente.
Não se sentia segura a baronesa. Ladeirava ao adultério. Uma angústia sensual arrepanhava-a, larvas de tentações formigavam-lhe nos nervos.
Debatia-se numa destas alarmantes situações, predecessoras de uma falta, que abominamos, mas a que nos arrasta implacavelmente uma onda de desejo.
Incerta do que fazer, deixou a janela e foi sentar-se ao canto, na poltrona de couro, mordida pelo olhar insistente de Eugénio e demorando o passo.
Mal que a viu aí, o efebo arrastou para o mesmo canto um tamborete e amarfanhou-se sobre ele aos pés da baronesa, astutamente, numa delicada submissão de pajem, humilde, timorato. Depois, meigo, achegando-se, a cabeça quase nos joelhos de Elvira, e nos grandes olhos a mesma ternura dominadora e insistente, murmurou:
-- Conte-me então alguma coisa... do que viu por lá, do que gozou.
-- Que lhe hei de eu contar?... -- disse ela, sem o olhar, com a voz molhada.
Dissimulava desenriçando com as mãos, sobre o regaço, uma meada de velhas sedas que de acaso pousava sobre a mesa ao lado. Esta atitude pendente de atenção avolumava-lhe a amojadura do seio; fazia-lhe refego no pulso a carne redonda do antebraço; e a moribunda luz do crepúsculo dourava-lhe ao de leve sobre a orelha as mechas do cabelo cor de cidra.
Eugénio, ganhando terreno, arriscou um dedo no alcance de um dos fios de seda, repuxando... outro depois, e outro e outro. -- Queria ajudar... -- Breve, tinha as duas mãos entre as de Elvira, bedelhando. Então os dois aplicaram-se, todos solícitos, num mútuo engano, interessados, trémulos, a deslaçar a inocente meada que aquele garatujar febril mais enredava. Onde a onde, a baronesa, mimadamente, batia na mão de Eugénio: -- Largue, largue, desajeitado... ainda me atrapalha mais. -- E daí seguiam íntimos contactos, gestos de uma ousadia hipócrita, aproximações lascivas. Ou fitavam-se, paravam... um novo silêncio se espaçava, eloquente, opressivo e morno, embaraçado... e os dois ficavam-se longamente, suspensa a vida, esquecidos, mudos, felizes... os olhos nos olhos, as mãos entre as mãos.
De repente, acordando, a baronesa arremessou longe o fio, endireitou-se, e num suspiro que era ao mesmo tempo um apetite e um remorso, observou:
-- Demora-se o barão...
Um sorriso maquiavélico franziu o belo rosto de Eugénio, ao explicar:
-- Ah! Esse não vem senão lá por essa noite fora.
-- Como assim!? -- exclamou num sobressalto a baronesa.
E Eugénio a insistir, perverso:
-- Janta com o marquês... Encarregou-me até de o participar a V. Exa..
-- Palavra!?...
-- Palavra de honra... -- jurou o efebo, untuoso, o olhar insistente, muito de manso.
Ela ergueu-se de repelão, contraindo as mãos, alvoroçada, aflita, o olhar metalizado e as veiazitas muito azuis na face branca de cera. E chamando-se a todas as suas energias de burguesa, repetindo-se os ditames da honra conjugal, entrincheirada na rigidez dos velhos preconceitos, perguntou ao efebo com um ar quase ofensivo de enfado, distraidamente:
-- E o senhor aonde vai jantar?
-- Se me não puserem fora -- arriscou, levantando-se também, o pérfido, com melúria --, farei aqui companhia à priminha...
-- Como quiser... -- deixou cair dos lábios friamente a baronesa, num desprendimento calculado, numa desdenhosa e seca hostilidade.
E entrou na saleta dos serões, ao lado.
Aí sentou-se ao piano e correu o teclado com os dedos, atabalhoadamente.
-- Fraca válvula, impotente derivativo mecânico à plena agitação da sua alma.
Não havia meio de uma melodia qualquer sair, distinta, nítida, desse atoado picar das mãos entarameladas. Era abominavelmente deliciosa a comoção que a estrangulava. -- Jantar com o marquês?... Oh! Mas então tinha-o seguro... longe... até altas horas! -- Aplaudia-se e apavorava-se... Impetuoso e quente, sistolava-lhe o sangue pesadamente no coração congestionado. Todo um mundo de ignoradas, de preadivinhadas e boas coisas lhe fervia na ideia, tumultuando. Um vivo e corrosivo sentimento a causticava, misto de voluptuosidade e de susto, de medo e de prazer.
Eugénio, sem falar, aproximara-se. Sentia os membros perros, corria-lhe uma névoa perante a vista, acudia-lhe aos lábios uma pontinha de saliva, impercetivelmente, e doía-lhe nos músculos dos braços uma vontade de espreguiçamento. Súbito, num impulso de tentação diabólica, aproximou-se mais e tocou com os lábios em fogo a nuca da baronesa.
Elvira teve um salto elétrico; e com a voz embargada e um zumbido estonteador nas fontes procurou voltar, fugindo, para o escritório. Mas já Eugénio lhe caía aos pés, tomando-lhe o passo, e inflamado, pequeno, murmurava:
-- Perdão...
E ela, entre agastada e sorridente:
-- Está doido!... Que quer o senhor fazer?...
-- O que quero fazer?... Sei lá!... Quando muito, se o sei, a prima sabe-o tão bem como eu...
-- Sossegue... -- suplicou Elvira, evitando-o.
Porém Eugénio insistiu, entrando empós dela no escritório:
-- Sabe, sim, que lhe quero muito! Imensamente!... com todas as veras do meu coração, com toda a sofreguidão da minha alma, com todo o invencível furor dos meus dezasseis anos!
-- Então!... É o que eu digo, está doido!
A baronesa, agora a distância do efebo e parapeitada com o bufete, julgando-se segura, tinha gestos graciosos de incrédula, abria o rosto em momos de troça, e torcendo os braços e balanceando alternadamente o tronco sobre os pés irrequietos, casquinava risadinhas loucas.
Eugénio prosseguiu, adiantando-se:
-- Mas o que eu sei melhor que tudo isso... o grande segredo que me interessa e de que eu tenho a plena certeza, é que tanto ou mais do que eu a desejo, me deseja a prima também a mim!
-- Que ideia!
-- Ah! Não pretenda negá-lo... E bem manifesta, bem transparente a sua comoção!
Tinha torneado habilmente o bufete, num pulo rápido, antes que Elvira achasse o tempo de se lhe escapar: e segurando-a pelos pulsos, que beijava com fúria, continuou num tom de voz cavado e ardente, numa energia recalcada e funda:
-- E tempo, Elvira... Vamos!... Se assim é, se tão poderosamente nos queremos, para que hão de tolher-nos tolas considerações, melindres doutro tempo?... Vamos! Sejamos felizes um momento... Ambos novos, amando-nos... porque esperamos?...
A baronesa, sinceramente aterrada, debatia-se nos braços de Eugénio -- os olhos pavidamente abertos, uma humidade fria nas fontes, a testa ranilhada, os lábios lívidos.
-- Por alma dos seus, Eugénio!... E horrível!... Deixe-me!
Num sacão violento, conseguiu soltar-se; e então, de longe, toda tremendo, implorou de mãos postas, ofegante, espavorida:
-- Tenha pena de mim!
-- A prima é que há de ter pena de mim primeiro... E mulher...
E furiosamente perseguia-a pela sala, num encarniçamento selvagem, arredando, saltando os móveis, salvando os obstáculos, desfazendo as inofensivas barricadas que a baronesa armava num atropelo de pressa e de receio:
-- Deixe-me! Deixe-me!... Quer-me obrigar a chamar alguém?
Mas não admitia delongas o despotismo viril daquela rubra juventude.
A caça à fêmea seguiu, sem tréguas nem quartel, em tortuagens de febre, implacável, doida, numa gula de canibal, num sanguinolento furor de besta-fera.
Minutos durou assim, espiralando bizarramente o aposento a impulsos de fome e de pavor, este steeplechase fantástico de duas sombras, desmesurado e incerto na penumbra do crepúsculo. Por fim a baronesa cedeu, vencida do simpatismo sensual, prostrada de fadiga. O efebo alcançara-a novamente e adstringia-a contra o peito num abraço férvido, inclemente. Dava-lhe aos músculos uma têmpera de aço a rigidez impetuosa do desejo.
-- Inevitável! -- Elvira abandonou-se... Os olhos molharam-se-lhe, o rosto fez-se mais pálido, os pés tartamelearam um instante na alcatifa, desfalecidos.
Doíam-lhe os bicos dos peitos, tinha frio nas fontes, o coração parava-lhe... Cingida sempre por Eugénio, languidamente recumbiu sobre a causeuse... e suplicava ainda:
-- Não! Não! Eugénio... Isso não!
Fora, pela cidade, acendiam-se as primeiras luzes. O anónimo resfolgar da multidão ressoava mais alto e mais limpo como uma troça, na fresquidão da noite. No imenso empilhamento irregular dos prédios as ruas cavavam-se como valas -- negras, direitas, fundas. E pela enxuta limpidez do céu, no ocaso, a nuvenzita afilada e ténue avolumara, alastrando, opaca e roxa, como uma grande nódoa.
CAPÍTULO XI
Desde esse dia uma fase nova se abriu, de comoções e turbulências, na vida regrada e simples da baronesa. Como um golpe de luz, numa tela de Velasquez, chispa de repente a dar valor às caóticas confusões do claro- escuro, assim a ousadia máscula de Eugénio veio aquecer e tomar férteis, vibrantes as modalidades daquela alma baça de burguesita, cujos valores sensoriais e afetivos, mercê das condições de educação e convivência, se tinham té ali conservado nulos, espatinados, surdos. O efebo foi da ânsia latente de gozar dessa branca juventude, o Galvani afortunado. A sua amorosa investida foi o revelador de quanta sede de prazer bravejava ignorada na carne e no espírito da mulher do barão.
Porém as primeiras horas que seguiram àquela brutalidade quente de adultério amargou-as cruelmente Elvira numa passividade de assombro, numa opressão de asco e de vergonha, num parêntesis negro de tristeza. Depois, seguidamente, nos primeiros dias, o arrependimento, a aflição e a dor preponderaram. -- Mas, Santo Deus! Como fora aquilo?... Que coisa tão vil, tão sem-razão, tão animal, tão torpe!... E agora ei-la aí estava, acorrentada à vontade daquele homem... e indigna dos seus, marcada, suja para sempre!... A sua consciência de burguesa condenava-a; as próprias solicitações, mediocremente sensuais, do seu temperamento e a equilibrada abstenção do seu passado, eram incapazes de compreender, e de absolver portanto o exoterismo implacável da paixão, nem as veemências cálidas do desejo. Por isso Elvira queria-se mal da cobardia dos seus sentidos, da sua aquiescência criminosa. Não dava com os olhos no barão de frente; flagelavam-na terrores, insónias, frios, pesadelos. E, cheia de remorso e de tédio, via a vida dos outros como do fundo de um subterrâneo moral, muito acima da sua, iluminada, longe...
Porém também, a cada passo, a porção de primavera e de azul a que a sua juventude tinha direito, crescia a litigar por ela. As inclinações naturais absolviam-na. No plebiscito inflamado de todos os seus nervos o amor vencia. Mal que o efebo, a horas próprias, apontava junto da baronesa, ela atirava-se-lhe, tremendo, contra o peito apolíneo, numa como ânsia vitoriosa e exultante, e colava os lábios aos lábios, sorvia-o, cingia-o, estrangulava-o, a desforrar-se, na cachoante exultação de um magnífico instante de loucura, dessa chateza dissaborida e mesquinha do seu viver interior. Gozavam... E depois, dormente no abandono lânguido, feliz, na complacente lassidão em que os paroxismos do prazer nos amolentam, a baronesa demorava as mãos entre as mãos do efebo, sentava-se-lhe no colo, afagava-o e olhava-o longamente, numa expressão empanada e húmida, misto de gratidão e de ternura.
Quando voltava a ficar só, passada a cegueira da excitação, mordia-lhe no coração a falta. -- Oh, era vilíssimo!... Nunca mais! Nunca mais! -- Então afervorava num propósito firme de emenda. Chegava a pensar em adotar qualquer meio de cura heroico, infalível, súbito... pedir, por exemplo, ao marido que não mais consentisse em casa o rapaz. -- Junto dele, era dele... não tinha vontade! -- Mas logo, especiosamente, a sua forte paixão engatilhava dúvidas, levantava inconvenientes, avolumava perigos. -- Como justificar um pedido desta ordem?... Que imaginaria o Sebastião?... Podia levantar suspeitas... aclarar-se a verdade.
E forte nesta sonsa dialética, a baronesa hesitava e tornava-se a ficar, ventoinhando entre a temeridade e o receio, entre a demência e o dever. E de cada vez que um destes parêntesis lúcidos se fechava, com dobrada fúria depois se entregava ao amante.
Deram mesmo em vir, com o tempo, mais e mais raros estes propósitos salutares de emenda. O amor da baronesa por Eugénio enraizou, converteu-se de um acidente num hábito, de uma alucinação eventual num estado de alma, enquistou-se-lhe no sangue e no desejo. -- Estava-se deixando atascar, era uma verdade, num pego de ignomínia... mas, que remédio! Era o destino... O mal estava feito. Resvalava, sim... deixar lá!... Sabia-lhe tão bem!... Era um resvalo voluptuoso, fácil, por uma rampa de veludo.
Eugénio foi gradualmente, por seu lado, aquecendo e renitindo na frequentação amorosa da baronesa. As audácias e apetites próprios da sua fresca juventude, juntava-se a acicatar-lhe o desejo o irritante prazer destes amores clandestinos, o receio, a precipitação, a incerteza, o acirrativo travor da dificuldade. Sempre que podiam, os dois amavam-se sem reserva, dias e dias de seguida, afastando o barão, distraindo os criados, de dia ou de noite, no primeiro minuto que pudessem subtrair ao chorrilho habitual da vida -- com uma frequência, um furor, uma plenitude e uma audácia que passavam as raias da demência.
Já saboridamente os jungia a mesma cumplicidade adulterina. Para desviar suspeitas, nem sempre o efebo vinha -- havia concertado com Elvira -- lisamente e a descoberto pela porta principal. Mandara fazer uma grande chave, que servia no portão de ferro do jardim, abrindo para o Largo do Caldas. E nas noites em que o barão dava indício de que recolheria tarde, logo Eugénio, avisado, entrava cavidamente, à sorrelfa, por esse lado. A baronesa haveria tido o cuidado de ir tirar ao portão, do lado de dentro, a chave, para que a do amante pudesse ser introduzida e servir. Igualmente haveria deixado cerrada, ao entrar em casa, e apenas coa tranqueta no descanso, a porta envidraçada, que dava para um corredor estreito, aberto entre a sala de jantar e a copa, inferiormente aos aposentos de Elvira. Daí uma escadita em hélice comunicava com eles, pela qual o efebo então subia de escape, surdo, veleiro, a respiração suspensa e os pés aflorando numa afonia de espectro a passadeira de «juta» mandada deitar de propósito.
Eugénio não largava assim pé de casa do barão; tornara-se em S. Cristóvão de uma assiduidade comprometedora, que seria alarmante para olhos menos cegos que os de um marido. A Ester queixava-se... E Elvira cada hora parecia que mais se inflamava no amor por Eugénio. Não era só a lógica atração carnal de duas juventudes; era principalmente uma fascinação diabólica, irresistível, efeito desse embriagante mundo de ignoradas delícias, de estranhos refinamentos, de finos prelúdios de deboche que o efebo lhe viera ensinar.
Por forma que Eugénio tinha agora sobre ela um império de tiranete imprescindível.
Predestinadamente colado entre estas duas manifestações estesiantes de ventura, também o corno do barão rejubilava. Ele encontrava sempre agora Eugénio bem humorado, e mocanqueiro, alegre, complacente como nunca; via por igual Elvira alegre, estouvadita, fácil... comendo bem, mansa de génio, permitindo-lhe contactos demorados; via-a feita uma exemplar dona de casa e uma esposa inteligente e carinhosa, já sabendo dar a tempo o valor a um abraço, já sublinhando a primor a intenção de um beijo, e dispensando-lhe graças, afagos, mimos que positivamente o encantavam pela espontaneidade e pelo desuso. Era o essencial, este ambiente luminoso e tranquilo, às suas preocupações de sibarita. -- Um viver de príncipe! se arreliadoramente lho não agorentasse de vez em quando a falta de dinheiro.
E assim neste tríplice comércio de amor, clandestino e cómodo, as semanas, os meses foram correndo, paradisiacamente. Eugénio liberava aos dois esposos com fartura, pelo seu modo a cada um, a capitosa guloseima da sua juventude. Contrariado um pouco, às vezes: as ternuras acres do barão eram-lhe em certos dias insuportáveis; a própria baronesita, cujas propriedades estimulantes se tinham com a frequência embotado, maçava-o também um tudo-nada; e, para mais, ainda havia de suprir depois em casa, quer quisesse, quer não, às exigências cálidas da Ester. -- Demasiado trabalho... Embora! Todos temos de sofrer alguma coisa... Nem tudo podia ser pão com mel.
À baronesa não raro acontecia rebelar-se contra si mesma. Não quadrava esta vida de sobressaltos ao seu temperamento pacato de burguesa.
-- Queria o amor, sim, mas um amor pautado, cadenciado, à hora, um amor militarmente regulamentado como as horas da comida, prudencial, discreto, higienicamente intervalado de repousos. Aquela trapalhada assim de encontros súbitos, ao acaso, pelos cantos, agarrando a ocasião pelos cabelos, não era para as suas forças, dava cabo dela... Nada! Assim, não queria mais! -- Mas aqui comparava a pele árida e os modos secos do marido com as dengues mimalhices e a epiderme penujosa do efebo, e logo mandava ao diabo a higiene, a prudência, a moral e o dever.
Chegava Eugénio; tinham uma cena 'de amor, de cuja vibração a ressonância ficava tinindo longamente, e cuja despótica impressão a baronesa todo o dia guardava na medula dos nervos, religiosamente, fugindo de falar e de pensar, na meia luz do toilette, enovelada nos sofás, cerrando as portas; e à noite, quando recolhida à alcova, ela despia-se de manso, com jeitinho, os olhos ainda meio cerrados numa concentração voluptuosa, e pousava a cabeça muito ao de leve no travesseiro... não fosse algum movimento mais forte desarranjar a graciosa filigrana de amor que lhe afestoava a alma.
Depois vinha o barão, mais tarde, também de ter estado com Eugénio.
Deitava-se, sem dar palavra à mulher, todo na galvanização do gozo recente.
E então, no silêncio tépido da alcova, sob a luz topazina da lâmpada, os dois esposos, a cem léguas um do outro, adormeciam, enquanto as suas imaginações galopavam paralelamente no impulso das comoções do dia, e cada um visionava no escuro das pálpebras trementes a mesma imagem loura do efebo, subjugando-lhes a carne e iluminando-lhes os sonhos, radiosa, divina e quente, obsessiva.
De breve duração foi, porém, para a baronesa este halo de prazer, esta lua- de-mel do crime, este como que estado de graça no pecado. Asinha entrou com ela o fastio cruel da dissimulação imposta. Entre a hipocrisia tediosa da sua afabilidade em público com o marido, e os criminosos desvarios a ocultas com o amante, a sua natureza imprevidente e frívola ia-se amparando, claudicante, cortada de sobressaltos, picada de estranhos gozos, atropelada de receios.
A sociedade murmurava... D. Leonor tinha aventurado, entre ukases de modas e novas de teatros, a sua aresta de conselho: -- não desse tanta confiança ao rapaz... não era bonito... tornava-se reparado. -- Horácio Martins exagerara sensivelmente o seu mutismo de molusco. A Sra. Reodades deixara de ir, com a filha, visitar a baronesa. Xavier da Câmara, não obstante os melindres da sua situação com respeito à família de S. Cristóvão, fazia gala em pregoar -- que não havia dúvida, via-se obrigado a confessar, fora suplantado... e por um biltre «que lhe fazia vergonha»! -- A D. Plácida tudo era falar muito agora em Alípio, diante de Elvira, de cabeça alta e risinho esperto, no claro propósito de confrontar situações. A própria sogra do barão sentia crescer-lhe o ódio instintivo que sempre desde o começo votara ao efebo, e com o seu olhar de mãe experiente como que ia soletrando aterrada, nas feições e nos modos, a patente viciação da filha.
Fora da roda dos íntimos, pelos teatros, pela rua, nas praças, na selvageria engravatada e mesquinha dos salões, não era raro que, propositalmente ou de acaso, alguma ponta de frase ervada viesse alfinetar Elvira, azulando-lhe as arteríolas da face e fazendo-a corar. Portas adentro, não largava os dois de vista o pequenino olho escoldrinhador da Doroteia, cérbero terrível, cujo peregrino instinto de alcaiota desde logo fariseara o escândalo e toda a concomitante mina de fortunas que da sua bem regulada exploração poderiam advir-lhe. -- Que rica coisa, «se adregasse de os pilhar» com a boca na botija!... Tinha pão pró resto dos seus dias. -- Daí a insistência feroz na espionagem.
Tudo isto punha a baronesa cada vez mais deploravelmente à mercê dos caprichos e imposições do amante. Bem o conheceu ele. -- Servia-lhe.
Por um esmair de tarde de Dezembro, lutulenta e fria, conversavam os dois, sentados na chaise-longue da saleta, muito juntos, num largo abandono, macio e confiante. O dia ia findar, carrancudo e áspero. Chovia. Bastas cordas de água zimbravam do sul contra as vidraças, fundindo a claridade do alto, mais ténue tornada ainda no recinto pela sombra da grande magnólia do jardim. -- Hora confidencial e conchegada, hora amiga, hora tolerante... hora a escorrer, como a névoa que a rua envaginava, melancolia e ternura... hora convidando ã confessiva expansão das coisas mais íntimas e às moles dulcituras do prazer.
Eugénio, meditativo e curvado, a cabeça entre as mãos, parecia debater-se num embaraço, vergar a uma tristeza! Elvira observava-o com interesse.
-- Mas que tens tu hoje, meu tonto? -- interrogou ela, com meiguice, levantando com a sua pequenina mão, repolhuda e alva, a testa do efebo.
-- Nada... -- murmurou ele arteiramente, recalcando para entre as mãos a cabeça, num suspiro largo de reticências.
-- Não és franco... -- insistiu Elvira com amor. E afagando-lhe os crespos do cabelo: -- Anda, diz lá...
-- Acanho-me...
A baronesa ergueu-se e afastou-se, a pô-lo à vontade; e já longe, fechando o piano:
-- Tens precisão de alguma coisa? -- inquiriu, sem se voltar.
-- Talvez...
E como a baronesa desse em vaguear pela quadra, num tácito incitamento à confidência, o rapaz arriscou baixinho, num bem simulado gaguejo de confusão, suspirando sempre:
-- Não vês o tempo que está?... E eu sem um agasalho!
-- Pois é só por isso!? -- chilreou alto, batendo as mãos de contente, a baronesa.
Num pulo estava junto ao contador de teca, do qual abriu uma das gavetinhas. Sacou de dentro algumas notas do Banco, e passando-as disfarçadamente, entre dois beijos, à algibeira do efebo:
-- Por tão pouco, não vale a pena amofinar!
Depois fugiu logo, leve, afogueada, às consequentes efusões do agradecimento, e, tocando uma campainha:
-- Doroteia! Traga luz.
Quando, horas depois, a sós, ela reconstruía a cena saborosamente na imaginação alvoroçada, um nobre entusiasmo ideal a calafriava, latejavam-lhe no coração perspetivas siderais, poemas de dedicação, energias novas, e um delicioso envaidecimento lhe aquecia a alma, transfundida e grata. -- Grata, sim... porque, positivamente, ela nunca em toda a sua vida, fizesse o que fizesse! conseguiria agradecer capazmente a esse belo rapaz o ter-lhe assim fornecido um meio, tão insignificante, tão simples, de ela lhe mostrar quão incondicionalmente lhe queria, e de como sem medida o amava... inteira, absoluta e desinteressadamente! -- Com diamantina evidência, Elvira sentia que, na dobrada proporção do benefício, a sua paixão pelo rapaz crescera. Vai tão bem com o amor a generosidade!... Assim esta primeira impulsão dadivosa anunciava-se o pródromo de um degradante resvalo de passivíssimos, renúncias, sujeições, baixezas. A sensibilidade mais e mais a sublimar-se, e a arrastar-se-lhe cada vez mais charramente o nível da vontade.
Da sua parte o efebo, enardecido pelo resultado excelente daquele primeiro saque, para logo resolveu continuá-los. Para mais, o barão dera agora em somítego -- o raio do diabo! Apanhar-lhe uma «lamira» era negócio de costa acima. Já tinha chegado a dar-lhe só «chelebre», o indecente!... Mas não tinha dúvida: lá estava a mulher pra pagar as diferenças. -- E com o mais lascarino dos cinismos, aí se deu este devasso trampolim, astuto biltre sabido em manhas de souteneur, em alcavalas de bordel, a pedir amiúde dinheiro à baronesa.
Estava-lhe o papel bem na corda. Antigo rufião da Mouraria, afeito a pelintrar forrageando nos haréns carimbados do Bairro Alto, e a lamber às amantes o dinheiro dos fregueses, ia naturalmente e de instinto este escanzelo moral forrando-se em bom dinheiro de contado dos fumegantes regalos que ao seu sangue florescente aprazia liberar com a juventude incauta e frívola da pobre criatura.
E a dulcerosa lábia, o fino maquiavelismo, o melado aranzel de artimanhas e mentirolas que o patife desperdiçava no desdobramento canalha da sua indústria! Valia ver como exuberava de prodigiosos recursos a sua estratégia lasciva. -- Eram solertes invenções, amuos, preces, mimalheiras, súplicas; eram carícias inéditas, esquivanças a tempo, silogismos de beijos, dilemas de fogo; eram agastamentos adrede preparados para fazer valer o efeito da reconciliação; era o franzino carcaz do amor tornado, ao manejo deste prestímano insigne, uma copa inexaurível de cativantes eloquências, de blindadas seduções, de persuasivas garras.
Tudo isto ao desbarato, por luxo, no fim de contas; porque Elvira, desnorteada, feliz, numa facilidade manante, num desprendimento sem jaça, numa alegria passional e ingénua, ia dando, dando sempre. Primeiro o produto das suas economias: macinhos de notas do Banco, velhas moedas de ouro, pequenas pilhas de libras, de coroas, de meios-tostões novos, que ela conservava disseminadas ao acaso, com as joias, pelos móveis, em cofrezinhos perfumados; depois, sucessivamente, o produto da venda de coisas suas com uso -- vestidos, abafos, corpinhos, saias, sapatos com uma engelha, chapéus fora da moda --, coisas que ela já não vestia e que com certas reservas ia curando de mandar vender.
O próprio Eugénio lhe sugeria o desfazer-se de tal ou tal objeto. Acontecia, uma ou outra vez, ele censurar para a amante, com o ar desgostado e frio:
-- Ainda pões esse vestido?... Fica-te tão mal! Pra que queres tu isso?...
E o vestido no dia seguinte era vendido, e o efebo colhia o valor gafo que lhe arbitrara o mercado.
Mas esta segunda mina esgotou-se também a breve prazo; deu quanto podia dar a pelintragem dessa romaria ofertório de coisas gastas, destintas, sujas, por lojas de adelos, caixas de teatros, pátios de fábricas e escadas de lupanares. E agora a baronesa a ver-se empalada entre as exigências do amante e o aperto de satisfazê-las, entre a veemência incondicional do seu desejo e a dificuldade suma de o realizar! A termos que um dia veio finalmente em que ela meteu mão, para aquietar Eugénio, no dinheiro que o barão dava para as despesas da casa.
Foi este para a baronesa um dia atormentado e negro, um dia de expiação, um dia de remorso. Ré convicta do roubo, e roubo feito nas mais odiosas condições, Elvira tudo era increpar-se, invetivar-se, e de seguida afervorar num claro plano de correção futura. -- Seria sem exemplo! -- Mas o efebo era cruel, insaciável; acendia-lhe, para mais, a audácia e açulava-lhe a gula esta mesma satisfação fácil, pronta, dos seus crescentes apetites. -- Se ele nunca apanhara tanto dinheiro junto! -- Assim, as exigências amiudavam-se e a baronesa submetia-se.
Vinham de ocasiões sacudi-la, nos raros momentos lúcidos, furores de emancipação, ímpetos de ódio, flamejos súbitos de revolta. Então resolvia correr de vez com esse pulha, esse carraça, esse ínfimo cobardão, o mais desprezível tipo do «chupista»! -- E acontecesse o que acontecesse... estava farta! -- ela assentava, pronta a arrostar o escândalo, na arrogante imprevisão das consequências, corajosa, despejadamente. Porém, na primeira entrevista, a virilidade robusta e grácil do efebo subjugava-a de novo; nesta mesma sujeição ela achava um bom motivo voluptuoso; consequente, voltava a atonia da vontade, e a adúltera recaía na sua bruta resignação de escrava, na sua doce submissão de cadela contrariada, na sua mansa passividade. E aí tomava a verter a mãos plenas o dinheiro, arranjado fosse porque forma fosse, para dentro desse abismo incoagulável, que tinha a porosidade inverosímil da esponja e a estonteadora vastidão do mar.
Daqui, as falhas, os embaraços, os alcances, as pequenas economias ridículas -- manteiga nacional em vez da inglesa, os ovos comprados fora de portas, o açúcar mais barato trinta réis em quilo --, e débitos nas lojas, atrasos aos criados, questões com a lavadeira, e pedidos de dinheiro antecipados, incessantes, ao marido, fora de tempo e de propósito.
Como visse crescerem assim de um modo inusitado e ilógico as despesas da casa, o barão repontou um dia:
-- Que diabo fazes tu ao dinheiro?... Entraste para alguma Sociedade de Beneficência, ou subscreves também com a tua esmola mensal pró Papa?
Elvira torcia-se de dor e de vergonha, sem responder, confrangida, em brasa.
Ao vê-la tão manifestamente incomodada, logo o marido acudiu bonacheiramente: -- que não a queria mortificar... porém a verdade era que, pelo mais estúpido dos azares, vinham agora encontrar-se as veleidades perdulárias dela com um deplorabilíssimo estado económico da sua casa! -- E serenamente, numa resignada ironia, sem a mais leve suspeita da torpíssima voragem que lhe tragava os rendimentos, o barão aclarou:
-- Devo contos de réis... Estão vencidos juros e juros das hipotecas dos nossos prédios, aos Anjos... o Banco inabalável... e eu sem um real para os pagar!
-- Têm então de ir à praça!?
-- É provável... ainda por cima, da província não vem um chavo!
-- Pois ainda não é tão pouco o que devem!
-- A quem o dizes! Mas então que queres?... Os meliantes não só não pagam rendas nem foros, mas ainda em cima me estão constantemente a fazer requisições de dinheiro!
A baronesa ouvia pavidamente, agora lívida, grossa a língua e os lábios hirtos. Num esforço, observou:
-- Tens tanta confiança no senhor procurador...
-- Ah, não! Foi tempo...
-- Bem to tenho eu pregado!
-- Esse patife ou é um imbecil completo, ou um desaforado gatuno!
-- Porque não vais lá?... Porque não escreves, ao menos?
E o barão, contente de iludir o seu desleixo num assomo de honra fidalga:
-- Eu não me correspondo com ladrões!
A implacável nitidez desta revelação deixou ferida do mais agudo terror a baronesa. -- Estavam portanto a dois passos da ruína! A lógica das cifras era inexorável... Mais dia menos dia, em breve iam ver-se fatalmente sem recursos, sem crédito, sem capitais e sem dinheiro!... E o seu nome pregoado em leilões, feito almoeda... o seu nome grotescamente apenso ao pelourinho da miséria! E isto tanto por culpa do desmazelo, do abandono, da incorrigível feição dissipadora do marido, como também, e em boa parte, mercê das suas nímias condescendências, das suas quantiosas e repetidas dádivas, dos seus esbanjamentos vergonhosos... Mas isto podia lá ser!... Que enormidade de escândalo! Que alegrão, que festa, que troça, que debandada dos amigos! Que falcatruoso desabar perante a sociedade!... Nada! Antes a morte!... Era preciso marchar afoitamente de encontro ao perigo, para conjurar a miséria iminente do dia de amanhã... Oh! Certamente, ela agora ia fazer-se uma «unhas de fome» -- veriam! -- como um prego! a começar nos gastos consigo e a acabar nas dissipações ao amante.
Passados dias, veio este e pediu-lhe com instância duas libras. Elvira escusou-se: -- na ocasião não tinha... nem lhe era possível obtê-las assim de pronto. -- E perante a dura incredulidade do efebo, ela insistia na negativa: -- Pela sua saúde! não tinha... podia acreditar. Acaso já alguma vez a tinha apanhado em mentira?... -- A justificar a recusa, gesticulava, aquecia, amparando no artifício o seu propósito leal de resistência; ia buscar bolsinhas, bocetas, cofres que abria à vista do efebo, resolutamente; inventariava róis, detalhava despesas, esvaziava gavetas, puxava o fundo às algibeiras; e: -- Não te dizia eu! -- epilogava ao cabo do abjecional varejo, admirada e contente do seu ânimo.
Ora Eugénio havia para aquela mesma noite combinado uma «frescata» ao Dafundo. Ia a Ester, e umas espanholas cos amigos. Não queria fazer de pelintra; tinha absoluta precisão do dinheiro. Não desistiu, portanto; antes mimadamente recorreu a toda a casta de sortilégios galantes, no fim de ver se lograva deferição ao seu pedido.
Baldo empenho! Elvira foi inflexível. O espectro da fome vigorava-a. Digna filha agora do Miguéis mercador, ardilosa e sovina, recusava sempre, -- Não posso! Hoje não posso! Já te disse... Arranja-te como puderes.
Então o efebo, picado no seu orgulho, mudou de tática: veio e estacou, de pé, à frente da baronesa, e bamboando cinicamente o busto sobre as pernas em compasso, as mãos juntas no ventre, o olhar acerado, hostil, e nos lábios uma leve crispação de ameaça, insinuou:
-- Que remédio tens tu, senão dar!
O efeito foi fulminante. A infamíssima intimação, Elvira cedeu, estarrecida; tomou-a uma cobardia indominável; toda a sua coragem tombou, como a um vento de neve, inanimada, fria... Então ergueu, a tremer, para Eugénio um olhar implorativo e húmido; e como lesse nas feições do efebo a mesma dura expressão de intransigência, num salto esfuziou da chaise-longue, entrou no toilette ao lado, daí a instantes voltou com um pequeno escrínio de veludo, e atirando-o para cima da mesinha de charão, num arremesso de insulto:
-- Toma, anda! Vai-o empenhar.
Logo o efebo colheu na algibeira o cofrezito, rodou vagaroso, altivo, e saiu monologando: -- Hás de dar tudo! -- com um sobrecenho de império e um risinho triunfante.
Daí a instantes entrava D. Jacinta; e como encontrasse a filha ainda toda vibrante da cena anterior, numa destas desordens morais, num destes desconcertos de alma que as expansões mitigam e que docemente reclamam sempre um derivar de confidência, então deu-se a assediá-la numa íntima inquirição, entre áspera e afável, e toda lisamente apontada ao propósito de apurar a verdade sobre essa lenda escandalosa de adultério.
Há muito que andava para lhe falar em certas coisas, e sempre a adiar, a adiar... tinha repugnância... Mas, já agora, alguma vez havia de ser... Por aí rosnava-se... com o Eugénio... Não lhe dava novidade nenhuma... E ela achava-lhe sua diferença... mais magra, distraída, tristonha... Mas não acreditava! Ou ela não fosse sua filha! Infeliz, era o que era... Já com o Câmara... Nem esses disparates tinham jeito nenhum! Era feio; e pra quê?... Isto os homens, peralvilhos, velhos, garotos, ricos ou pobres, gordos ou magros, com franqueza, na cama eram todos a mesma coisa... Uma mulher podia ser o seu bocado toleta, gostar de agradar... mas sem esquecer nunca o que deve à sua decência. Isso nem o mundo o consente, nem vale a pena... Que ele, às vezes...
E assim neste palavroso apontoado de insidiosas estimulações à confidência, quando D. Jacinta viu que a filha, anestesiada do aranzel, escutava já passivamente, aventurou:
-- E verdade, ou não é?...
Por única resposta, Elvira atirou-lhe contra o colo a face, numa explosão de soluços.
Então a mãe a lamuriar:
-- És os meus pecados, filha!
E oprimida e transida por esta tácita revelação, a boa da matrona tudo era suspirar, impar, persignar-se... e acariciava com as mãos sapudas e afogava na imensidade mole do seio o rosto da baronesa, que chorou longamente.
Paralela com a mordente agitação e a torturante angústia moral da baronesa, uma outra febre de tortura se desdobrava em S. Cristóvão, numa tragicomédia de astúcia, de cálculo e de crueza.
Coerente na atuação dos seus ódios de casta, movida de uma curiosidade insalubre e esperta ao aguilhão do interesse, a Doroteia perseverava na devassa incessante, pertinaz, desse desaforado crime de adultério que ela ali pressentia pompeando, regalado e impune, resfolgando, seguro e quente, sob o mesmo teto aonde se arrastava a sua vida de serviçal, escravizada e mesquinha. Queria caçá-lo, havê-lo nas mãos, bem obediente e bem palpável, de forma que lhe fosse então fácil e útil manejá-lo, como instrumento e como indústria, como título comercial e como arma de vingança.
Por isso ela não desatremava da pista, insistente, marroaz, sempre à espreita; fértil em manhas de raposa, em expedientes insidiosos, em serviços e atenções com fundo falso; cingida em coleamentos de cobra aos mais íntimos detalhes do viver da baronesa; seguindo a vida comum dos dois quanto podia, entrando súbito nos aposentos onde eles estavam, pondo sinais nos móveis, revistando roupas, vasculhando os cantos, escutando às portas. Por isso ela aferradamente lidava no empenho de alcançar qualquer indício -- uma ponta de cigarro, um fio solto de cabelo, um molde de cabeça num travesseiro, uma nódoa, uma prega suspeita --, um sinal qualquer, em suma, embora mínimo, porém certo e evidente, que lhe assegurasse o êxito, que lhe garantisse a vitória no presente e a subsistência no futuro; cuja posse a habilitasse a formular as suas exigências com império e a fundamentar com altanaria o seu desprezo.
Nesta faina de inquirição chegava mesmo a sua estratégia odienta a improvisar ardis, a tecer armadilhas, que, estalando desprevenidamente no suspeitoso cuidado da baronesa, de relance a levavam a instintivas aclarações, a irreflexivos traimentos, a ingénuas pontas de revelação, denunciativas, graves, de que breve lhe vinha a cognição e o arrependimento.
Duma noite em que a criada desconfiara que Eugénio se tinha ocultado -- e era verdade -- num dos quartos da casa, não sabia qual, ao entrar com a baronesa no toilette soltou de repente um grande grito de susto, com os olhos pavidamente apontados à orla de um reposteiro.
-- Ai! Credo, senhora! Aquilo que é?...
-- O quê, mulher!?...
-- Pareciam-me uns pés de homem... -- explicou, tendo-se afirmado, fazendo já de tranquila. E, dizendo, notava que Elvira se encostara, lívida, ao mármore do toucador, e continha numa ânsia o coração dentro do peito.
Manhã em que ela fariscasse, no esmero galante do vestir e no festivo garrulejar da baronesa, que havia entrevista aprazada, então ela fazia gala de pela sua conta e risco lastimar, com um soberbo ar merencório:
-- Ai! Senhora... não é hoje que temos por cá o Sr. Eugeninho.
-- Então?...
-- Mandou dizer que não podia... Está muito doente!
A baronesa enublava, arrefecia... E mais de uma vez aconteceu depois, no momento justo em que ela ordenava fossem saber do efebo, entrar o rapaz, sadio, alegre, e logo a Doroteia registar um belo sol de alvoroço balhando nas feições da baronesa.
Mas nada disto bastava, nada a satisfazia. Faltava-lhe um testemunho concludente, uma prova de fé, cabal, inconfundível, que lhe entregasse nas mãos a trama do segredo e lhe espalmasse sob o chinelo a honra da patroa.
-- E os dois manobravam que era uma raiva!... Não havia meio!...
Daí teimava, dava-se a perros, desesperava-se... ao par que Elvira, num desassossego mordaz, se desesperava também, paralelamente. E as contingências de risco amontoando-se. -- de um instante pró outro, vinha aquela atrevida, apanhava-os... e estavam perdidos.
Com Elvira, assim o receava também Eugénio. A ponto que os dois acordaram que seria prudente, quanto antes, despedir a mulher.
Isto propôs a baronesa ao marido, a pretexto de economia. -- Podiam muito bem passar sem ela... e sempre se poupava alguma coisa.
O barão, que nunca pudera afazer-se à fealdade e ao mau feitio da repelente criatura, aquiesceu prontamente.
-- Ora até que enfim te vejo farta dessa megera! -- acudiu radioso, num alívio de artista que se sente forro de tomar a ver uma coisa aborrecível.
E acrescentou: -- que sim, que estava de acordo em despedi-la... mas havia de ser para já!
Intimada a deixar a casa, estacou de puro enraivada e surpresa a Doroteia.
Ia tendo uma síncope. Um vento de insânia lhe varreu o espírito tacanho e sórdido. Sentiu a fortuna escorregar-lhe das unhas, irreparavelmente! Então teve um rugido de fera colhida no laço... e a subir-lhe uma osga indomável, verde, de pôr para ali tudo em pratos limpos! Perder o medo e desmascarar, afocinhar, achatar bem na lama essa lambisgoia descarada.
Refletindo, porém, não tardou que não visse no acontecimento a ação defensiva da baronesa. Contraminava-lhe a obra. -- Era de esperar... Salvava- se a tempo, o «estepor»! Só cum diabo!... Raio de farsista! -- Reconsiderou, conteve-se. -- Falar, agora, pra quê? Que ganhava ela com isso?... A «moinanta» havia de ter tomado as suas precauções... Não a acreditavam; não lograria mais que o gostinho do estardalhaço... E o garoto era capaz de lhe dar uma sova!
Mandou-lhe a baronesa oferecer-- que podia continuar a estar, até que arranjasse casa. -- Não aceitou. -- Queria-se ir ao mesmo instante! -- E enquanto arrumava o magro espólio no baú, a trouxe-mouxe, espremida em silvos de réptil espezinhado, gemendo lamentações, regougando impropérios: -- Não as perdia! -- acentuava; e ia meditando vagamente o seu plano de desforra.
Já no escritório o barão, ao fazer-lhe as contas, explicava: -- que a mandavam embora, não porque contra ela houvesse qualquer motivo de queixa ou de desgosto, mas simplesmente porque não era indispensável... podiam por agora prescindir dos seus serviços.
A matreira, que ouvira, de lábio pregado e olhos baixos, o tubérculo gretado do nariz branco de cera, então gaguejou docemente, recalcando a onda que lhe bravejava lá dentro:
-- Faz muito bem, senhor barão... Olhe, costuma-se a dizer, e é uma palavra muito direitinha, que isto numa casa, quanto menos olhos, melhor...
E dardejou de esconso um viperino olhar para Elvira, que vergou nas pernas, tremulando.
-- Que quer vossemecê dizer com isso? -- interrogou o barão, intrigado.
E ela, sem responder, como se não tivera ouvido, muito cortês, toda humilde, a cuia em riste sobre o ócciput, seguiu caminho da porta, apenas resmoneando velhacamente, com um compungido pendular de cabeça, numa simulação teatral de piedade:
-- Mal empregado senhor!
CAPÍTULO XII
Deu a insinuação seu natural efeito. Destramente vertida na desabusada confiança do barão, achou fácil e ajeitado campo ao seu veneno a babugem roaz da alcoviteira. -- Mal empregado, ele?... E aquilo dito com que modo!
Com uma tão compassiva expressão... como que a avisá-lo... Era singular! Mas avisá-lo de quê, no fim de contas?... -- E o barão, contrariado e frio, diligenciava cerrar ouvidos à cavilosa cantilena; e com a sua versatilidade egoísta e o seu sistemático fugir a coisas ponderosas, teimosamente lidava em afastar essa arreliativa névoa de suspeita.
Mas a maligna insídia tinha caído a propósito. Minuto a minuto, mau grado o esforço em contrário, a suspeição voltava; e a sua ação corrosiva ia no ânimo do barão causticamente esfervilhando. -- Nada, seguramente ali havia alguma coisa... Só pela raiva de se ver despedida, não se punha agora a velha ali assim, que diabo! a improvisar uma calúnia qualquer. O caso era mais sério... Pensando bem, para lá da agressiva feição daquelas frases problemáticas entrevia-se pulsando uma intenção excelente. Era isto, por certo... Nem de outra forma podia decifrar-se o olhar enviesado com que ela, ao falar, trespassara Elvira. Aquilo não era ódio, era indignação... não era uma desforra, era um castigo... Claramente... Porque a mulher vergara!... -- E, já rapidamente seguindo uma outra ordem de ideias, o barão reflexionava: -- A mulher... É verdade, sim, ele afinal, ninguém diria! Mas era um homem casado... tinha lar, tinha mulher, tinha obrigações morais, tinha família... Havia uma frágil e gentil criaturita, de cujo viver se apropriara, cujo destino fizera comparte do seu, cuja alma, cujos afetos, cujo coração assimilara... criatura graciosa e frágil, desarmada, ingénua, para quem ele se constituíra no dever, perante a Igreja e perante o mundo, de ser sempre um bom companheiro desvelado, um protetor, um pai, um amante e um amigo. E contudo, ignóbil coisa! Ei-lo que aí levava a mais solta e escandalosa vida de celibatário! Uma vida descosida, infrutuosa, desprezível, porca... toda em dissipações da pior espécie, toda em canalhismos obscenos, em crapulosos desvarios, vida inconfessável, sórdida, vida de animal, vida de vadio... só em casa para comer e dormir... e isto mesmo sempre mudo, sombrio, desdenhoso e árido... cego a mimos e atenções, ingrato a carícias, surdo a galanteios, alheio a ternuras... tendo esquecido deveres, tendo abjurado promessas, tendo votado a pupila da sua alma a um desprezo humilhante... a tudo e a todos sempre antepondo os seus prazeres, odiando tudo quanto fosse às suas predileções, excêntrico... sempre ardidamente rodopiando na vertigem das suas paixões de lama, sempre tudo ferozmente imolando ao seu sibaritismo insaciável, sempre doido e fogoso a trupar na ala ardente das suas fantasias!... Ora a mulher era nova, bonita, pretendida, frívola... Que muito de admirar, então, se...
E aqui concluiu, num relâmpago de evidência e de receio:
-- Tinha a Doroteia razão!
Dava-lhe uma fúria, um desespero impotente, enorme, de a não haver na ocasião demorado, interrogado com arte... e tê-la por força ou por manha obrigado a falar. -- Então é que era!... Mas, que raio de moleza! Deixara fugir a ocasião estupidamente!... Sempre assim, emparvecido, atado... Nunca na sua vida houvera meio de lhe ocorrer uma resolução a tempo! Bonita lesma! -- Queria ir ter com ela; porém como? de que modo? aonde acertar-lhe com o paradeiro, agora, nesse pandemónio imundo da cidade?
E assim a venenosa baba da alcaiota prosseguiu lavrando, roaz, destruidora.
Gemia a consciência do barão entre o constrangimento áspero do cuidado e a devastadora flagelação da dúvida. Aquele sibilo de voz açucarada e irónica estava-lhe sempre no ouvido, com uma insistência de troça, insuportavelmente! Não podia mais!... O seu génio fraco e violento escabujava, num exaspero de cansaço. Lembrou-lhe, para pôr termo ao tormento, provocar uma cena com a mulher, ser imperioso, franco, exigir de súbito uma explicação, arrancar de assalto o rebuço ao mistério. Porém logo, reconsiderando... melhor seria sofrer mais um pouco e operar como estratégico hábil, devagar, ocultando o seu jogo, mascarando o objetivo, sem precipitações nem demasias. -- Mesmo estava-lhe mais este processo no temperamento e nos hábitos. -- Então, assente no plano, aí se entregou ele a pesquisar inquisitorialmente o viver da esposa -- sereno e confiante na aparência, no íntimo devorado de uma cruciante e irritada incerteza.
Evidentemente, Elvira já não era a mesma.
Aquele espírito lavado, loução, virgíneo, caliginara. Marmoreavam-lhe a alvura do rosto, antes tão escarolada e tão fresca, sombras de mortificação, esbatimentos de cera. A antiga lisura de esmalte da pequenina testa sulcavam- na agora teimosos, fundos ranilhamentos. Havia súbitas borrascas de humor, improvidas mutações, brusquerias, ímpetos, inconsequências, tédios. E a despreocupação, a leveza, a alegria, a serena e bondosa conformidade de outro tempo tinham cedido o passo a um explosivo tumultuar de inexplicáveis caprichos.
Alguma coisa havia, evidentemente...
Pela primeira vez, ao cabo de quatro anos de vida conjugal, o barão encarou bem na luz da realidade e da evidência os melindres, os contras, os deveres e os óbices da sua situação. -- Ele casara atoada, friamente, por curiosidade em parte, em parte por desfastio. Um incidente pitoresco a mais na charra insipidez da existência. A ver... Queria no rol dos seus prazeres de impressionista inscrever mais essa novidade. Simplesmente...
Que de resto, nem o mais fugidio alor de idealismo, nem o mais elementar movimento afetivo, nem o mínimo vislumbre de instigação moral. Pensara também um pouco na ocasião, era certo -- em refugiar-se, no casamento, das grossas dissipações em que ia tolamente gastando a juventude e a fortuna. Um corretivo, sim, um freio... Ingénuas balelas, manhas! Nada disso no fundo era sincero; nunca tal voto lhe descera do pensamento ao desejo. Se acaso essa intenção lhe bruxuleou no cérebro, faltou-lhe o alento para descer a firmar-se na vontade... Tanto, que em nada com o casamento alterara o seu modo de viver antigo.
Ora não tolerava isto assim o mundo; obrigava a sérias e ponderativas coisas o título de marido... Todo o homem jungido maritalmente aos requindins e paquifes de uma fêmea, havia de por força tomar-se um pouco podengo e um pouco mártir; ir à corrente do vulgar, do comum; abdicar da vontade, borrar sonhos, ambições, tolher a iniciativa; amoldar o feitio, a índole, o proceder, as inclinações, os hábitos, aos usos, hábitos e inclinações de toda a gente... Havia de enraizar largo e fundo no prosaísmo da vida; havia de engrenar de jeito e feição na rodagem banal da sociedade. Tinha de converter a sua individualidade nesse manequim engraxado e anónimo que se chama «um cavalheiro». Ar grave e pata redonda. E o olho alerta!... Podia avolumar lambazmente o abdómen... mas que não desaprumasse da lisura antenupcial a testa! Que não apontasse a afurar-lhe o frontal alguma protuberância suspeita, orografassem-se-lhe embora de calos os ossos do metatarso.
E o barão indignava-se.
-- Podia lá ser! Era porventura sensato, admissível, justo que a suserania, a independência, a força, o poder de um homem -- que tem o mundo todo pelo seu! --, os esterilize assim um parvo preconceito?... Que o seu indisputado lugar à testa das coisas criadas, o seu inato dom preponderante, se inutilizem rojados na servidão e na guarda da primeira mulher a quem para todo o sempre o hajam singelado?... Estúpida prisão! Para um como para outro,.. Importara-lhe lá nunca nada disso! Maçada!... Nunca lhe dera para pensar, se quando o marido deixa vazio o seu lugar no tálamo, não está logo um mau gnomo à espreita para sugerir à esposa que o faça preencher por outrem... nem se na estrutura osteológica do seu crânio não iriam acaso escarninhamente bracejando esses tais anómalos alongamentos cuja hilariante arborescência logo a sociedade marcava, numa apupada implacável, de infâmia e de ridículo... Pois era talvez o seu caso!... Ao demorar na exulcerante conjetura, o barão congestionava. Uma lavrante e surda flama trabalhava-o. Vinham-lhe acumes, orgulhos, cóleras, rebeliões, desvarios. Fumavam-lhe no coração instintos novos. Assaltavam-no rebates de indignação e esfuriadas de sentimentos a que ele se não julgava atreito, e cujo alto, cujo destemperado fragor o azamboava. Então um baralhado vento de confusão empanava-lhe as ideias, fuzilavam os olhos, as mãos vermiculavam, nodosas, entresilhadas, grandes, o espírito entanguia num gelo de receio... e logo o nobre e cálido desejo o sacudia de fazer luz no dilúculo mistério da sua alcova, trazer a limpo a dúvida, escanhoar a reputação, aclarar a verdade. • -- Trai-lo-ia com efeito a mulher!?... E com quem? E como?... Não via... Ligar-se-ia com este ignominioso desastre o tresvario caudal dos seus esbanjamentos?... Possível!... Para cúmulo de vergonha estavam dando muito nisto as mulheres --, havia de ir esbarrar com um monsieur Alphonse qualquer! Um pulhastrão, um reles, cuja vilíssima estofa mais dolorosamente infame lhe fizesse o adultério... e que a um tempo o bigodeasse e o roubasse! lhe escarrasse na honra e lhe comesse o dinheiro!
E arrepeso, doido, em febre:
-- Casar, casar. Que asneira!... Fora o erro capital da sua vida!
Com este constante martelar no mesmo assunto e este flageloso incidir no mesmo cuidado, pouco e pouco, esmoitaram-se as iras; as impaciências, as fúrias, as mortificações e os orgulhos enfraqueceram. Nem para mais lhe dava a planturosa adinamia do temperamento, nem o género de sentimentos que votava à esposa. Então, apaziguado e inconsequente, extenuado, cínico, foi epicureamente filosofando o sodomita: -- Isto o marido, se em face da etologia humana é uma entidade respeitável, considerado em absoluto é de todos os produtos da civilização o mais absurdo, o mais tolo, o mais artificial e o mais grotesco... Assim como um ídolo exótico, um manipanço, um buda, que desprevenidamente ninguém toma a sério, e cujo transcendente simbolismo só a poder de convencionalismo, de cegueira e de fé se consegue a custo prestigiar, manter... Um absurdo, em suma! Ele na álgebra do amor fora sempre pelos polinómios... Era a lei natural. A vida era para cada um gozar o mais e o melhor que pudesse, em amplas tarraçadas de ouro, como um néctar, franca, libérrima, perdulariamente! Para que nos deu o bom Deus sentidos?... O seu cuidado eram as suas paixões. Nelas renhindo procaz, nunca lhe dera para atinar que levava arrastada e presa no flanco, brutamente sacrificada ao seu egoísmo bárbaro, uma mulher nova e bonita, feita como ele de carne e de sangue, como ele tendo direito à vida, tendo espírito, alma, coração, apetites, nervos... mulher a quem ele se dispensara de liberar a parte de felicidade a que se tinha obrigado... e a quem paralelamente portanto fazia o tácito convite de ir descuidosa e leve ventoinhando pelas dúlcidas regiões da falta e do delírio... Era fatal! -- concluía, amalhoado. E logo, transigindo: -- A Elvira enganava-o?... Bem, e então?... De quem a culpa?... No deserto escampado que ele lhe fazia da vida, que admirar se a pobre se atirasse lascivamente a cabriolar?... Não lhe havia de querer inteiramente mal por isso... Ele não fazia outro tanto?
E agora já manso e resignado, sem ciúme nem ódio, o barão persistia na devassa do escândalo unicamente de indústria para aclarar a situação, para arredar de si o ridículo, se motivo dele houvesse; a ver no que havia de ficar, para saber «em que lei vivia». Sorria-lhe até, como libertação, numa ponta de desejo, a hipótese de ser corno.
-- Corria com a mulher... Acabou-se! E seria todo, todo do Eugénio, depois!
Porém, por mais que insistisse na perscrutinação da falta, não havia modo de descobrir a verdade, de apanhar o fio à intriga, de atinar com a certeza!
Mantinha-se essa desesperante ameaça de adultério teimosamente recuada no vago, incoercível, longe... num brumoso indeciso de paisagem matutina. Nem um traço firme, um testemunho, um indício! Só receios, suspeições...
E o seu espírito de atalaia a uma quimera! E a sua honra a esgrimir com moinhos!
Elvira continuava mole e passiva, sim, o ar fatigado e a tez sem brilho, amarfanhada, pálida... como que a devastavam súbitos repelões de angústia... mas logo ao mesmo tempo tão serena, tão calma... e outra vez afável, carinhosa e boa... e os olhos sempre brilhando desse claro brunido e enxuto de consciência que não teme... -- Não sabia que pensar!
Quando uma manhã, sobre o almoço, na casa de jantar -- vinha apontando na loura limpidez do sol a nova Primavera --, o barão contava à mulher o dinheiro para as despesas do mês que ia seguir. Na luminosa tepidez da quadra, entre um levantar de louças e um chilrido de aves, o ouro ia tinindo, espelhento, rútilo, e fulvamente desparzia-se pela toalha de linho adamascado.
Depois do ouro, a prata; e depois, tendo o barão consultado: -- Não te faz diferença, hem?... Gasta-se... -- fluiu algum cobre também.
Ao cabo:
-- Verifica -- disse para Elvira o marido.
Ela agora pelo seu turno se pôs contando, devagar -- primeiro as notas e depois o metal, pela ordem decrescente do seu valor --, demorando e afagando as moedas nas mãos, voluptuosamente, o sobrolho vincado, unidos os lábios, a expressão endurecida.
Tendo terminado, esboçou na sôfrega expressão do rosto uma contrariedade, voltou a contar, e no final disse ao marido, com a serena firmeza da evidência, erguendo os olhos:
-- Aqui falta dinheiro.
-- Ora...
-- É pouco, mas falta... -- ela insistiu, a sorrir. -- Não te perdoo um real.
-- Quanto, diz lá?
-- Falta uma «coroa mulata».
-- O quê!? -- fez o barão, sem perceber, num pasmo.
E Elvira, estralando uma gargalhada travessa:
-- Não sabes o que é?... Estes literatos! não pescam senão de palavras finas!... E um vintém!
-- Essa agora!... Sabes mais do que eu!
-- São favores, meu caro... Não me envergonhes! -- E num leve gingar do braço, com uma moeda de cinco tostões suspensa da ponta dos dedos, acrescentou: -- Aposto que também não sabes como se apelida isto em vulgar?
Moveu o barão negativamente a cabeça. E logo ela, com um ar superior, deixando cair a placa:
-- E uma «camisa lavada»!
Agora erguia uma moeda de dois tostões:
-- E esta?
O barão encolheu os ombros.
-- Sei lá...
-- E um «penteado»!
-- Com efeito!... Mas aonde diabo...!?
-- Lições do teu amigo Eugénio... -- aclarou, numa inconsciência infantil, a baronesa.
E como numa áspera retração de surpresa e de despeito se contraíssem as mãos e fuzilassem os olhos do marido, a estouvada, caindo em si, corou rijamente... e tudo era disfarçar colhendo às mãos ambas o dinheiro e insistindo alto, numa grande abundância de gestos:
-- Vá, vá! O vintenzinho para aqui... não te faças esquecido.
O caso era que a fraseologia de calão vinha agora aos lábios da baronesa com uma insistência, uma predileção e uma propriedade, que as suas simples relações de sociedade com o efebo não podiam explicar bastantemente. Seria latitudinar demasiado o instinto da imitação. -- Ela como que se revia, se comprazia no termo chulo. A cada instante. Essa vasconça aravia da escumalha parecia ser a que melhor lhe dizia às plebeias condições do temperamento e às tacanhas solicitações do espírito.
Leu-lhe o marido no jornal o caso de um rapazito, um fraca-figura qualquer, que em combate singular tinha conseguido sair triunfante do «Largueza», uma espécie de hércules típico de feira, por de mais conhecido e temido na cidade. O garoto vencera na luta o colosso -- explicava a folha -- porque o esfaqueara, à falsa fé, pelas costas. E logo a baronesa:
-- Muito obrigada! Assim não admira... Deu-lhe à «carunfa».
E uma tarde, ao jantar, olhando para a mão esquerda, sem anéis, já ela considerava:
-- Então, não me deu hoje para andar todo o dia sem «arcosos»!
Mesmo, num dos últimos dias, como passassem os dois à montra do Mourão, no Chiado, ela exclamara, encantada, apontando um belo par de «solitários»:
-- Ó Sebastião, que ricos «penduros» aqueles!... Muito gostava...
Isto de longe em longe agravado com uns quiebros de cinta, algum largo bolinar do braço e uns meneios gingões de furta-corpo, claramente acusando com algum prático «faia» a mais contagiosa intimidade.
Então ao pederasta ocorreu, num calafrio, que o bigodeava talvez com o efebo a baronesa.
-- Seria possível!?...
Rasgou-lhe a alma, gelou-o de pasmo e de terror, pregou-o hirto na alcatifa esta horrorosa suspeita. -- Com Eugénio! O seu querido amor!?... Podia lá ser!... Pois eles tinham de ter cinismo, desaforo, audácia, impudor para tanto?... -- Um frio de susto arrepiava-lhe a espinha; galvanizava-o um áspero, um inflamado rancor; uma devastadora subversão moral destemperava-o. -- Com Eugénio!... -- dizia. -- E contudo, porque não?... Dadas as suas licenciosas teorias de alforria conjugal; concedido que à mulher assiste um certo direito de encher como puder de variedade e de gozo a monótona vacuidão da sua vida, que muito estranhar se esta sua tivesse atraído para amável cireneu do seu calvário esse belo e apetitoso rapaz, que pela porta dentro o próprio marido alarvemente lhe enfiara; cujas perfeições e amorios ele se pusera no cargo de lhe evidenciar solícito; que obstinadamente lhe metera à cara, lhe trouxera para junto do leito, e aí como que bem nu e bem tentador lho despira, a poder de entusiasmo e de falta de pudor?... Podia muito bem ser! Era até natural... Que infâmia!
Uma bravia onda de cólera afogava-lhe, assolava-lhe o espírito; uma angústia mordente, subtil como uma víbora, lascava-lhe o coração.
-- E não se ter ele nunca lembrado disto!... Não ter nunca visto, futurado o perigo!... Confiança de camelo! Monumental parvoeira!... E ele rabidamente por fora à caça do crime, e o crime a refocilar ali à beira dele, a todo o instante, protegido e a salvo, tranquilo, impune! Protegido, sim... Se ele próprio fora quem ordenara as coisas assim ao melhor jeito e sabor dos dois!... O puro do «cabrão», nem mais nem menos! -- confessava, num ímpeto. E da súbita ulceração do golpe todo o fel da sua dor manava, esvurmado por um fatal receio. -- Mas isto era impossível! Eugénio e Elvira amarem-se... com mil raios! Significaria, por causa dos dois malandrins, o último grau da ingratidão, a suprema perfídia, a mais crua e mais perfeita integração da vilania e do despejo!
Agora o barão, enleado nas malhas infernais da dúvida, tinha horas mortais, atormentadas, longas... de uma contínua mortificação, de uma voraz, de uma esmagadora tristeza. perante a ameaça terrorizante, todo o seu ceticismo de frascário desertara; todos os seus gafos ideais de tolerância tinham, num sacão de terremoto, esbarrondado. Dançavam-lhe na retina farrapos de sangue, perreava-se-lhe o tórax em constrições de asfixia... e a dúvida sempre na sua moenda implacável... e as noites em claro, trituradas, infindáveis, e os dias negros, sem comer, longe de casa.
Mesmo os seus paroxismos de gozo com o amante eram agora selvagens, incoerentes, rábidos; participavam do amor e do ódio; tinham afervorações brutais, iras, reversos, cóleras. No mais absorvente momento do prazer, quando era natural que os nervos do sodomita vogassem numa suspensão de todos os sentidos, de repente picavam-no guinadas de atrabílis, vinham-lhe apetites de estrangulamento, fúrias assassinas, febres de extermínio, sedes de torturas. A ponto que mais de uma vez o efebo, amedorentado e sem ar, houve de descravar do pescoço, a poder de pulso, os longos dedos do barão, fincados cerces e grifos como garras.
-- Ai, tratante! O que tu merecias... -- ameaçava o facínora, apertando e rugindo, enardecido.
O efebo queixava-se, lutava. Mas já o barão era doce outra vez, e: -- Não é por mal... perdoa! -- explicava.
O caso foi que o amor do pederasta, agora inquinado de raivas e azedumes, por efeito desta mesma nova e acre tensão avolumara. Do mesmo passo que crescera a má vontade, o desamor, té desfechar em aversão à baronesa. Esta agora o barão abominava-a. Porque no seu espírito a noção da mulher, da esposa desaparecera, para só ver nela, em rodilhões de ciúme, um trambolho, um rival, um estorvo odiado, um empecilho irritante, um competidor terrível, que assim vinha, traiçoeiro e impudente, tomar-lhe o passo -- com que direito? -- roubar-lhe o amor do efebo -- que era só dele! -- destorvá-lo, desbancá-lo, atravessar-se... impedir a sua regalada e solta fruição da vida!
A participação carnal do amante com a Ester e outras mulheres de acaso nunca lhe dera preocupação. -- Não as conhecia... não ia lá ver... Mas com El vira! A sua companheira, a sua mulher, a sua única família... o que de mais respeitável e mais íntimo ele possuía... Era inacreditável!... Não podia ser!... Pois então ela, a própria mulher, ela é que havia de vir disputar-lhe?... Ah! Mas qual dos dois levaria a melhor é o que ainda se estava para ver!... Se é que efetivamente?... E desesperava. -- Nada! A verdade ia ele agora certo e breve topar com ela, custasse o que custasse, era inadiável! Sob pena de enlouquecer, de estourar para aí como um sapo ao fogo, de impaciência, de zelos, de raiva e de vergonha!
Ora para esse efeito ansiado deram os indícios em somar-se e convergir precipitadamente.
Mais já que uma vez julgara o barão ter surpreendido a detonar nos olhos dos dois, simultânea e rápida, a mesma eletrização ardente. Não era raro também a macerada palidez de Elvira aurorar-se súbito, com a entrada de Eugénio, de um rubor confortativo e quente -- como um mármore de fogão à flama do revérbero. E quando o rapaz entrava, pela tarde adiante, e distraído, natural, nem estendia a mão nem fazia o menor cumprimento à baronesa, tal como se já no dia se tivessem antes falado?
E iam cumulativamente na mesma escala progressiva as dissipações da esposa. A propósito de tudo. Não tinha fundo a voragem, não tinha termo a loucura!
Como a estação quente avizinhava, falou-se em toilettes novas, e Elvira pediu com instância dinheiro para um vestido. -- Precisava, pra já, dum, pelo menos. -- E queria ela mesma comprar a fazenda, escolher à sua vontade. Na modista, tinha de se sujeitar... e roubavam muito.
Aprontou-lhe o barão, com dificuldade, a quantia. Mas passaram dias, semanas, e nunca tal vestido vinha. -- Aquela modista! -- atrapalhava Elvira, a cada nova questão do marido sobre o assunto. Parece que a encarreguei de ir buscar a morte! Não há meio de a fazer despachar.
-- E que era por despique... por não ter comprado lá. Mas não tinha dúvida...
Por fim, quando a mentira era já, por absurda e escampe, improtelável, a baronesita atamancou: -- que tinha reconsiderado... não valia a pena. Os do Verão passado, amodernados, podiam servir. O dinheiro fora para outras coisas precisas...
E persuasiva, mimalheira:
-- Andava aí sempre a rezingar... Visse lá se ela não era poupada!
Veio um convite para grande soirée, no palácio de um dos príncipes da finança. -- Sábado de Aleluia. Milhares de adesões, de pedidos. Anunciava-se a derradeira festa fashionable da estação. Conveniente que a mulher do barão de Lavos, aparecendo, justificasse e firmasse mais uma vez, num testemunho minúsculo que fosse, a fama de original e de artista que aureolava o marido.
Por isso ele ensaiou resolvê-la a pôr nessa noite o seu belo adereço Pompadour de pérolas -- colar, brincos, broche, cocar de plumas e bracelete --, velha relíquia de família, profusamente bordada a gemas de todos os feitios, cores, tamanhos, toda embrechada e revolta de folhas, plumagens, lises e volutas caprichosas, peça exuberativa e rara, notável pelo seu preço intrínseco e pela imaginosa e fina trama do seu lavor.
A baronesa opunha-se, contrariada, inquieta. -- Que ideia! Era pretensioso, pesado... Não tinha jeito! -- E censurava:
-- Tens mania por pérolas!
-- São o génio das joias.
-- Ora adeus!... E tão antigo!
-- Por isso mesmo... tem cachet. E fica-te maravilhosamente!
Deu ainda a baronesa em socorrer-se a toda a casta de ardis e subterfúgios que quebrar pudessem a cruel insistência do marido. Tudo debalde. Não houve remédio senão ceder.
-- Pois bem! Levo as pérolas, descansa... -- anuiu por fim a mulher, com enfado. E depois de uma curta pausa, reflexionando: -- O caso é saber onde elas param...
Então desandou a procurar a famosa relíquia por toda a parte -- ao acaso, como perdida a reminiscência --, pelos cofres, guarda-joias, estojos, pelos baús, pelas gavetas, numa bem simulada atrapalhação, num terror crescente, numa aflitiva ansiedade. E ao cabo, vinha, desorientada, confessar -- que não dava com ele!
Foi um espanto, uma desolação, um alvoroto, uma desordem. Agora procurava, vasculhava também o barão, furiosamente. E de um lado ao outro jogadas, num furor de insânia, injúrias, retaliações, gritarias, ralhos. -- Que tinha uma cabeça de avelã!... despegada! palerma!... em que é que ela pensava?... -- E ela: -- Que não! Que toda a culpa era dele!... porque, lembrava-se muito bem, ia jurar! ele é que o tinha arrecadado. -- Revolveu-se, de cima a baixo, a casa, nos mais lôbregos desvãos, nos mais ínvios escaninhos... revistada a criadagem (o guarda-portão, ofendido, despediu-se...), malsinada de ladra a Doroteia. E o adereço não apareceu.
Entretanto, germinara e crescera fabulosamente em Eugénio o amor das joias. Era a sua mania, o seu tic, a sua paixão, a sua telha. Certo e constante vê-lo agora todo em berloques, deslumbrante, joalhado; magnificente como um rajá e alvar como um «brasileiro»; todo aceso em irisações de montra ambulante; pomposo e soberbo carreando uma fortuna em botões, em anéis, em alfinetes de gravata, em castões de bengala e pingentes de relógio.
Punha na exibição e no manejo da estonteadora riqueza um garridismo infantil, uma voluptuosidade casquilha e nobre, uma vaidade feminina. E todos os dias trocas, novidades, variações, surpresas. E o pulso esquerdo sempre invariavelmente afogado por uma fina árula de ouro.
Um despropósito, uma tonteira, um cúmulo. Donde provinha tamanha opulência era para o barão um mistério. -- Queriam ver que os desperdícios da mulher e as flamâncias do amante se ligavam?!... Mais que provável... Metia-se pelos olhos... Mais esta! -- E como um ferro em brasa rechinava-lhe na alma esta hipótese de ignomínia.
Mas havia mais e melhor, mais comprometedor, mais nítido.
Uma manhã, ao entrar, antes de almoço, no escritório, viu o barão que num dos cinzeiros, ao bufete, havia cinza de charuto. Ora ele tinha ainda na véspera mandado fazer a limpeza do aposento. Desde então, nem ele, nem ninguém que ele soubesse, tinha ali fumado. -- Como diabo?...
Pois nessa mesma data, como ele recolhesse à noite mais cedo do que tinha anunciado, sucedeu vir Elvira pressurosamente recebê-lo ao corredor, toda expansiva e loquaz, num garrulejo de ave, um tudo-nada alvoroçada. E, perante a surpresa do marido: -- Não o esperava tão cedo, simplesmente... Mas ainda bem! -- E a demorá-lo, a prendê-lo mimadamente. -- Extraordinário!
Entrados na saleta dos serões, nada de Suspeitoso ou alarmante notou o barão. Tudo no seu lugar, tudo como de costume afinado, ordenado e frio.
Todavia, passavam nos nervos da esposa -- parecia -- as derradeiras vibrações de uma animação estranha; afagava-lhe o rosto um como ar de dificuldade vencida... e no ambiente acentuava-se um aroma de corylopsis, o perfume de que ao tempo abusava Eugénio.
Passando à alcova o barão, e quando se despia, junto ao leito, da sua mesinha-de-cabeceira uma vaga centelhação lhe feriu a vista. Olhou. Era um anel, e um anel -- por Deus! -- muito seu conhecido! Uma grossa rosca de ouro, em hélice, maciça, bastofolhada de brilhantes, como uma custódia, e no extremo superior, achatado como uma cabeça de ofídio, ardendo-lhe um grande carbúnculo. -- O anel com que ele de fresco presenteara o efebo!...
Estava tudo explicado!... O alvoroço, a perturbação, a solicitude, o interesse da mulher em demorá-lo. Acudia pelo seu mignon!
Era a cobrir-lhe a retirada!... -- Sem querer, olhava o anel. -- Era o mesmo! Não havia dúvida... Evidente, o infame tinha estado ali, poucos minutos antes... O anel esquecera-o na precipitação da fuga...
Aqui foi preciso o barão amparar-se a todas as sinistras ribaldarias do seu ânimo, para se dominar e não desatremar de repente, não desfechar num crime. -- Prudência, prudência e sossego... não deitar a perder as coisas...
Apanhá-los em flagrante, era o caso! E ser-lhe-ia fácil! por desgraça.
Resfolgando surdas iras, deitou-se, e de olhos fechados enrodilhou-se nos lençóis, pequeno, imóvel; a procurar dormir, querendo salvar num segundo a noite. Mas impossível de todo o ponto dominar-se! Tumultuosa e ardente, vinha instante a instante saltar-lhe na ideia a infâmia irrefragável da sua situação, a desamparada ruína do seu nome. -- A prova tinha-a ele ali assim, ao alcance da mão, fatal, implacável! E, sem querer, abria os olhos, procurava o anel, fitava-o, detalhava-o... sem querer causticava com o seu rubro cintilar a retina espavorida.
E logo de reagir, concertando com firmeza e afinco o seu plano de vingança. -- Havia de ser já no dia seguinte!... um laço qualquer... fingia ir para fora... E aniquilava-os!
Mas nem assim, apoiado na segurança de uma vindicta iniludível, próxima, conseguia aquietar. O grande carbúnculo via-o sempre, flamante, enorme... sentia-o, tinha-o nos nervos... cada vez mais arreliativo e mais rubro centelhava. Furava-lhe as pálpebras, ardia-lhe na retina! -- Tapou com o lençol o rosto; sem resultado! E a roupa da cama escaldava-o. -- Que mais esperava?... Não tinha ali assim a prova, concludente, cabal?... E a mulher dormindo ao lado dele, incauta, desvergonhada, impune!... Era já, já vingar-se!
Três vezes foi a erguer-se do leito, para a estrangular; três vezes, a poder de obstinação e cautela, foi sossegando.
Mas sempre o carbúnculo!
Enrodilhou-se mais, anulou-se, capaz de abafar, entre os lençóis. Baldo trabalho! Através de mais esse obstáculo, ardente, inexorável, o anel centelhava sempre! -- Era a espaços um enorme, um insofrível brasido, cujo calor lhe afogueava as faces e lhe crestava o cabelo.
Lembrou-lhe virar-se na cama, de rosto para o leito da esposa, a ver se assim, dando costas à visão infernal... Mas não achou forças para tão simples, tão elementar movimento. A raiva pregava-o. Defendia-lhe voltar-se para a mulher uma repugnância, um ódio, um asco insuperável.
Amontoou então, ergueu entre ele e a maldita fogueira, repuxando os cobertores, uma trincheira de roupa. Inútil! Agora a implacável gema fendera- se: -- eram dois grossos lábios de sátiro, avinhados, sensuais, sarcásticos, que em altas vozes cornamusavam a ária picara de D. Bártolo, na ópera célebre de Rossini... E tão intensa feição de real esta alucinação tomava, que o barão descobriu e voltou a cabeça, e abriu os olhos, a ver se de acaso a esposa não estaria a escutar.
Na mecânica anormal do seu cérebro, que o cansaço e a dor destemperavam, as sensações e as ideias baralhavam-se. -- O anel ei-lo a desdobrar-se, a deslaçar, a afusar e a crescer, elástico, elançado e fino como um estame de ninfeia... ei-la rabejando e estendendo ao alto a sua hélice lampejante e vibrátil, mosqueada, como uma escama de sáurio antediluviano, de irisações coleantes, de fugazes crispaturas, inusitados brilhos. E deslocava- se de cima do mármore da banquinha, ia a escorregar para a alcatifa -- o barão estendeu a mão, a querer segurá-lo... -- balanceava-se como um ébrio, pendulava, oscilava, tomava atitudes patuscas, corriam-no titilações de vida.
Num salto, ei-lo no chão, obliquamente agora esfuriando entre a alcatifa e o estuque, a toda a altura do aposento. Apoia-se na ponta inferior, e aí larga a remoinhar doidamente, alongando e encurtando, ora perfurante e hirto como um gládio, ora enrolado e concho como um saca-rolhas, numa velocidade alucinadora de turbina, cuspindo um chuveiro de coruscâncias, desfeito numa coma de estrelas.
Com tão bravo rodopiar, natural, partiu-se, estilhaçou em mil fragmentos, cada um dos quais agora, solto, sobre si, e projetado longe, largou também a remoinhar com fúria. Na vertigem do volteio, espiralavam, encanudavam, torciam-se... Então uma chusma de diabinhos veio, esvoaçando, e afiou-lhes uma das pontas, com as unhas. Breve, aí cabriolava no ar espesso e quente uma legião fosforejante de chavelhos, pinchando, cavalgando-se... dançando de roda do leito do barão uma grande ronda macabra. E o mágico do carbúnculo fragmentara-se por igual ao infinito; e cada chavelho tinha na ponta uma lasca, rubra, agressiva; e todos à uma se mexiam escarniceiramente, como garotos tirando a língua de fora.
As dimensões do quarto tinham desmesuradamente alargado. Tudo redondo: um circo. Na arena, em baixo, ele, samarrado de clown, e de funâmbula Elvira. Luz a jorros; cheio a transbordar o anfiteatro; e a legião dos chavelhos virgulando pelo ar, endemoninhada. Ia-se a um intermédio cómico.
A orquestra calara. Pregados são os espectadores numa atenção unânime. -- Veio para ele a mulher, desenvolta, escarninha -- que bela coxa! -- trazendo à cauda oculto um outro clown, o qual passou os braços por baixo dos sovacos dela, e com uma admirável perícia de jongleur apanhava no ar, por pares, os chavelhos e ia-os aplicando na testa do barão, a modo de ensaio.
O que a baronesa ria! -- Era bem feita a valer a achincalhante pantomima.
O anfiteatro aplaudia, num estrupido delirante. E ele a querer furtar-se à ignomínia, e os pés colados à arena solidamente!
A mulher ria, ria sempre, sem tino nem medida; redobravam no seu cancan os chavelhos de ouro; e -- coisa extraordinária e dolorosa! -- era Eugénio o seu verdugo, e todos os assistentes tinham o rosto de Eugénio!
Num repelão de pesadelo, sacudiu-se e levou aflitivamente as mãos à testa, enquanto soltava um rugido de opressão, um brado raspante de angústia.
Sobressaltada, Elvira acordou e inquiriu do que ele tinha.
-- Não é nada... um pesadelo... Este meu estômago!
No dia seguinte, de manhã, ao abrir a correspondência, e como tivesse carta de Lavos, logo o barão, agarrado ao pretexto, anunciou:
-- Vou a Lavos... não há remédio.
-- Vais?
-- Olá!... E há de ser hoje mesmo.
E forte nesta súbita resolução, que a mulher soube muito de indústria afervorar-lhe, o barão deu ordem para que ela lhe mandasse à noite, ao comboio, uma das malas pequenas com alguma roupa -- a indispensável para uns quatro ou cinco dias. E alguma coisa de agasalho.
-- A que horas?
-- O comboio parte às nove: mas, à cautela, manda o criado uma boa hora mais cedo.
-- As nove?... Tinha ideia que partia às oito.
-- Isso era no Inverno.
-- Está bem.
Despediram-se. Pretextou ele que precisava ir munido de uns certos documentos; que tinha passos a dar no tabelião, uma conferência com o advogado, inquirições, consultas... todo o dia pequeno para tão arreliante estopada! E que por isso nem viria jantar a casa. -- Se queria de lá alguma coisa?...
-- Boa viagem!
O que o pederasta queria era não ver, durante o dia, Eugénio. Receava que, ao súbito conspecto do pulhastra, a fácil virulência do seu temperamento o lançasse nalguma cena violenta e ridícula que lhe frustrasse os planos, baldando o único meio radical e seguro de surpreender a verdade.
-- Colhê-los em flagrante era o melhor, o mais decisivo, o mais pronto. -- Já com o fim de evitar que o rapaz lhe fosse ao bota-fora, dera propositadamente à mulher, para uma hora mais tarde, a partida do comboio.
E frandunamente, ao acaso, levou o dia preguiceira e lasso lanando por ateliers de pintores, oficinas de estatuários, redações de jornais, bibliotecas, museus, livrarias. Entrava risonho, familiar, cortês; de largo taramelava, expondo teorias, analisando as obras, louvando, estimulando; armava ditos, sugeria composições, planizava estéticas, cinzelava paradoxos, informava de novidades. E como trazia o dinamismo passional da alma todo suspenso de um cruciante cuidado, acontecia que a remanescente porção espiritual do seu ser saltitava, solta e leve, numa tranquila complacência, numa cordial e soalheira afabilidade. Nunca tão cativante, tão expansivo se amostrara o barão.
A secatura habitual amaciava-lha uma quente e persuasiva eloquência, uma formosa e loquaz jovialidade. A ponto que quando ele, por fim, mordido da sua dor, se despedia, rubricavam-lhe os restantes, encantados, a saída, todos à uma concordando em que era um homem feliz verdadeiramente.
Em Santa Apolónia, à noite, no instante preciso em que a grande sineta bimbalhava o sinal da partida, viu o barão apontar a uma das portas e crescer, açodado e vermelho, para a linha dos waggons, o perfil de Eugénio. Num instante o avistou e alcançou de salto.
-- Ah! Ainda bem... Por um triz!... Então aquilo fazia-se? Partir assim, sem ter dado cavaco?... Bem tinha ele dito à senhora baronesa, que decerto havia engano na hora. Tanto que, como via, viera mais cedo. E ainda bem, que, felizmente, ainda tinha tempo de lhe apertar a mão!
O pederasta, debruçado da portinhola, agradecia, breve, frio, ringindo os dentes, com a mão do efebo retida nas suas... Para mais, aí voltava a escarnecê-lo o implacável, o terrível, o denunciativo anel! No anular esquerdo do efebo lá coriscava, escarnica, impudente, o formidável carbúnculo.
Então veio ao barão um apetite canibalesco, louco, de empurrar o traidor para debaixo das rodas. -- Era o castigo! -- Queria vê-lo debater-se ali, entalado entre o mármore do apeadeiro e a rijura cortante dos rails, desfeito, em massa, espostejado! Queria sentir-lhe debaixo dos pés o estralido dos ossos, na passagem! Queria gozar o instantâneo amaciamento que ao atrito do monstro devia de fazer o empaste das suas carnes trituradas!
Já o comboio a arrastar-se, aos primeiros haustos do vapor, num fragor pesado; e o barão segurando sempre o efebo, prendendo-o, puxando-o, atraindo-o a si, levando-o pendurado... Por forma que, quando Eugénio conseguiu soltar das mãos do barão a sua, por bom espaço ficou rodopiando, a cambalear, sobre o asfalto, como um ébrio, e em riscos de cair, desamparadamente.
Em Sacavém, o barão apeou; e, numa carruagem que ali tinha mandado ir esperá-lo, de seguida dirigiu-se para a cidade.
Saltando no estribo, às portas, agora veio seguindo, demorado, a pé, pela viscosa tortuagem de Alfama, caminho do seu bairro. A fazer horas. Num vagar negligente de boémio, sinuoso e à tuna, arrastadamente, ele aí vem a espatinar a sua dor pelo embricamento estrangulado e sórdido desse velho trecho de burgo inverosímil. -- Pisava o berço, a medula, a origem, a porção atavicamente nobre e heráldica da cidade. Como era interessante!
-- Vadiando e torcendo, enredava o passeio, aqui e ali parava, demorava- se...
permitia-se pesquisas de arqueólogo, investigações de sábio, impressionismos de artista. Enquanto no fundo da alma afagava com calor o seu plano, ia na aparência, tranquilo e indolente, deblaterando a apagada hieroglifia desse carunchoso montão de ruinarias: -- as casas em molho, à cunha, galgando-se, penetrando-se; as ruas perpendiculares, vielas inviáveis, becos subtérreos, frentes de casebres tocando-se pelos telhados, varandas medievas, em ressalto, escadinhas cavadas em muralhas, ermidas no ar, terraços sobrepondo-se; e ogivas golfando podridões, a cárie esmadrigando as madeiras, o bolor eczemando as caliças; e nichos góticos, lápides, rosáceas, cunhais, arabescos; troços de portais que são poemas, florões de gelosias que são maravilhas.
Vagaroso e atento, o barão parava, voltava atrás, perdia-se... mergulhava a vista na noite nauseabunda das pocilgas, colhia dolências de guitarra à boca das tabernas, fixava, pegado ao muro dos telheiros, as tristes canções das lavadeiras.
E a pitoresca diversão trazia-o já um pouco longe do seu mal, indeciso, amolecia-o. Quando, vencido, aos Lóios, o alto da montanha, súbito na frente se lhe desdobra, a voo de pássaro, numa presteza de mágica e picado de lumes, rumoroso, imenso, o amontoamento ciclópico da cidade.
Esta brusca aparição do vasto e pintalgado anfiteatro lembrou-lhe o rabejamento lúcido, na véspera, das mil arestas do carbúnculo. E logo a causa da sua vagabundagem por ali, àquela hora... e o testemunho próximo da sua desgraça, e a ruína iminente da sua vida!
Então, com um peso de arrobas na cabeça, derreado e vacilante, o barão seguiu no seu caminho. Um faia, com quem ele embarrou, teve a frase:
-- «Ena» que «tachada», pai da vida!
Descendo a Calçada do Marquês de Tancos, o barão, em vez de tomar ao longo dela, té abaixo, a S. Cristóvão, cortou logo, à esquerda, pelo invisível estrangulamento da Travessa Nova da Parreirinha, seguiu a ladeira a prumo do Beco da Atafona, e veio romper ao fundo, no Largo do Chão do Loureiro, rente à própria casa, mas colado ao muro do jardim, de ouvido à escuta, esconso como um conspirador, pequeno como um facínora.
Entrado no Largo do Caldas, marchou direito e rápido ao longo dele, cingido ao lado oriental, dando costas à casa, sem se voltar, quase fechando os olhos; e assim enfiou pela Rua de S. Mamede. Isto por dois motivos: o cuidado em não ser visto pela vizinhança, e um doloroso receio de dar de rosto, de repente, com algum testemunho irreparável da sua desonra.
Tendo-se internado bastante na Rua de S. Mamede, então voltou-se, todo de frente para o seu largo, tateando e afirmando-se, com este rasgo de vista do pintor que procura o ponto de vista à perspetiva.
No pequeno espaço em frente, negro e marmóreo como um túmulo, o sossego e a solidão eram absolutos. Não rastejava um noctâmbulo, não rodava um trem, não trotava um vadio, nem a sombra de um gato flanava, não palpitava uma alma. Dos dois lados erguiam-se, altas, as grandes massas dos prédios, escaioladas de sombra, maciças, hirtas. A fúnebre rigidez das fachadas regrava-se em renques negros de janelas, cavados e alinhados como as gavetas de um carneiro; da fria imobilidade do espaço a escuridão e o silêncio caíam em fartos panos, como crepes; e pela aresta dos telhados a luz sideral sinuosava em cancãs de fogos-fátuos. -- Aparatosa essa armada para a derruição formal da sua felicidade, para a irremediável inumação do seu amor! -- Lá tremulinava à esquina uma luz de lampião, macilenta como um círio, fluindo longe em salpicos lívidos pelo basalto envernizado.
Na mortal absorção, na inerte algidez deste cenário de luto, a mancha do seu palacete mal se escorçava ao fundo, cor de cinza, vulgar, na indecisão anónima da penumbra. E tão sem nobreza, tão chato, tão pequeno! Comia-lhe as dimensões a noite; esmagavam-no, a cavaleiro, as torres de S. Cristóvão; a cor da frontaria apelintrava, escabiosa, farrusca, ardida, como de um gesso de séculos. E, carvoada a toda a altura da parede, como um grande ponto de interrogação, a fronde robusta da velha magnólia, recurva e negra.
Tudo apagado. Apenas na última portada da direita, no primeiro andar, próximo da esquina, se abria um retângulo luminoso. Era no quarto de toilette. Aí vinha do interior, através do store, uma claridade loura, de um louro de pergaminho, imóvel, ténue. -- A mulher de vigília... Só ou acompanhada!?... -- Com a pergunta, o barão estremeceu, os olhos cintilaram, coseu-lhe o esófago um lume ciumento. -- Ia já saber! -- E avançou quente, rápido, sem precauções, em linha reta, atravessou o largo, e correu a examinar o portão de ferro.
Fechado... mas sem chave pelo lado de dentro! Aplicando o olho, a pequenina rosca da fechadura vazia ia projetar-se inteira, ao longe, como um corninho branco, na fachada cinzenta do palácio. Era o caso! Tudo previsto... O caminho aberto, fácil à gazua do gatuno!... Quem sabe se ele não teria já entrado?... A ver!
E, desvairado, o barão ia, num impulso insustável, para entrar também.
Mas, já de mão no ar, com a chave: -- Não seria ainda cedo?... reconsiderou.
-- Por antecipar uns segundos, podia deitar tudo a perder.
Cauteloso, manso, voltou para o seu posto de observação, em frente.
Acolheu-se na sombra de um portal. Uma tremura nervosa abanava-lhe as pernas; ardia-lhe nas entranhas um lume de ansiedade; e numa insistência feroz, numa atração indominável, os seus olhos piscantes de míope cravavam- se, obstinados, grandes, na loura e ténue luz da janela.
Ele agora com fervor madurava, aperfeiçoava o seu plano. Não perderia tempo... Bem! O biltre não tinha ainda entrado... mais que certo. Era cedo... E havia de vir, seguramente... Pra que fora ele à estação, senão para se assegurar da sua partida?... Eu te direi! Idiota!... Ele havia de vir... E de certeza também que não cairia em ir bater ao portão da frente... havia de saber insinuar-se pela grade do jardim, surdamente -- a coisa estava preparada --, quando o descanso da criadagem e a sonolenta pacificação do largo lhe assegurassem à infâmia do assalto a impunidade do mistério... Ah! Mas por isso ele tinha vindo postar-se ali, vigilante, firme e alerta como as sentinelas de cima, do Castelo! por isso ele espreitaria a coisa, com todos os seus sentidos... e, apenas pressentisse o patife... ele ali estava!... deixá-lo-ia entrar e correria logo empós do maldito... depois cairia sobre eles, como um raio! e, era um pronto, então fulminaria, estrangularia os dois!
Gradualmente, a noite arrefecia. A desentorpecer os membros e a espertar o sangue, de vez em quando o barão deixava o portal e vinha dar fora uns passos, na rua, ao longo do passeio. Então, perdendo de vista o retângulo alourado da janela, variava, acalmava, esquecia-se... -- Que fazia ele ali?...
Traírem-no logo os dois, um com o outro!... Impossível, não podia crer!...
Estava sendo talvez vítima de uma absurda série de equívocos... alguma pura mistificação do acaso. Averiguar bem, primeiro... -- Mas, como se voltasse, lá lhe tomava o olhar a fixar-se, interrogativo, ansioso, no retângulo luminoso da sacada. -- E então aquela luz... aquela luz, até tão tarde acesa!?...
E o barão, outra vez ciumento, impacientava-se... aquecia, brandia os braços, e, desesperado, verificava que não tinha consigo uma arma.
Lentamente ia a noite seguindo ao seu termo, preguiçosa e longa, infindável, negra. Uma glacial mudez paresiava a vida noturna das coisas.
Floconava pelo ar, descendo, algodoada, a glácida poeira da cacimba. Algum par tardígrado passava, num esbatido de sonho, veleiramente. Raro estropia ao longe, no fundo da calçada, algum ralo obsceno de rameira; ou vinha um silvo de vapor do rio; ou bocejavam no Castelo, em cima, seu pregão sonolento as sentinelas.
O barão tinha frio. Uma humidade hostil perolava-lhe o bigode, molhava- lhe as espáduas e trespassava-lhe a espinha. A fadiga, a moleza, a impaciência, a dúvida acobardavam-no. O olhar, cansado e estimulado, não desfitava da janela; mas com repugnância mantido, a custo, num esforço dolorido.
Desvirtuava-lhe mesmo a sensação aquela obstinada fixidez, contínua, interminável. Alucinativamente, agora, essa aberta de luz tenuemente dourada apequenava e crescia, girava, deslocava-se... ora se lhe abria numa visagem atormentada, ora era um riso farsista. E para onde quer que ele arredasse, num confrangimento, os olhos, aí lhe saltava na frente o implacável retângulo, dançando, roxo, cor de sangue.
Nisto, pareceu-lhe que um vulto de homem apontava, sorrateiro, das bandas do Beco da Atafona, e lentamente vinha avançando, pelo mesmo itinerário que ele próprio, horas antes, tinha feito, cosido ao muro do jardim.
A indecisa figura parou um instante, à orla do largo, a certificar-se de que não era vista... depois caminhou para a grade... abriu... entrou.
O primeiro impulso do barão foi largar logo atrás dele! desse misterioso intruso do seu lar, esse infame salteador da sua honra! Mas uma luta se abriu entre a explosão súbita do seu orgulho e a fundamental cobardia do seu ânimo. -- Esperar um pouco... a dar-lhes tempo. -- E a meio do largo estacou, ansiado, leve, latejando, os olhos fervidamente postos na ténue luz da janela.
Daí a instantes, na loura amarelidão do store um monstro vago a crescer, a crescer e a afirmar-se, cada vez mais nítido... Um homem!... Ergueu os dois braços... duas mãos avançaram, grandes, grandes, enormes... Cerrou as duas portadas da janela.
A súbita eliminação da froixa claridade teve no crânio do pederasta uma repercussão de terremoto. -- Era a derradeira amarra da sua esperança, partida! o último sol da sua vida, apagado! Era o sinal fatídico, formal... era a desonra irreparável! -- Num relâmpago investiu com o portão, atravessou o jardim, subiu a escada em hélice.
Em poucos minutos, estava em cima, à porta, a escutar.
O efebo ria como um perdido. E Elvira, a meia voz, agastada e mimalheira, obtemperava:
-- Mau! Então... tem juízo... Podem ouvir lá em cima... Acordas os criados.
-- Tens razão -- anuiu o efebo, moderando a sua estúrdia alegria. E num tom imperioso e escarninho: -- Bem, mas vamos à coisa!
-- Ora, mas que telha! -- observou, num ligeiro enfado, a baronesa.
E o amante, perseverando:
-- Vá! Vá! Como eu te disse...
-- Teimoso!
Ouviu-se um breve ringir de roupas repuxadas -- como de coisa que se despe; depois um som mole de estofo vergando a um peso... alguém que se sentara num dos fauteuils. E o ringir das roupas continuou, áspero, insistente.
Como que se procurava uma posição... O fauteuil, premido, gemia rodiziando na alcatifa.
Por fim, aquietada, a baronesa interrogou, com um voluptuoso peguinhar nos lábios:
-- E assim que queres?
-- Exato! Muito bem! -- aplaudiu, num gáudio, Eugénio.
Este agora sentara-se também, longe da baronesa -- parecia; mexia em papéis; e, com uma solenidade cómica:
-- Vamos, minha senhora, atenção! Essa cabeça mais descaída um pouco... apoiada na mão... Assim. -- Havia um arremedo intencional da voz do barão: era evidente. -- Mais denguice nesses olhos... Bravo! Vou começar... Está muito bem. Está mesmo como paxaste!
E voltava a rir, a rir num riso alto e sonoro, lascarinamente.
Garrotado numa tenaz de fogo, o barão adiantara-se a espreitar, por uma fisga da porta entreaberta. -- O que ele viu! -- Na sua frente quase, junto à parede oposta, esbagachava sobre um fauteuil, desgorjada e lasciva, a baronesa. Desmanchada e estendida, nesta atitude fácil e complacente da mulher que se entrega, ela tinha o peito, o colo e os braços nus, numa avidez os beiços, a narina palpitando, a maravilha do cabelo jorrando farta pela espádua... e eloquências quentes vibrando, por entre as rendas, na crispatura eréctil dos seios, e no âmbar elétrico dos olhos ardendo um brilho de luxúria.
Demoniacamente bela, assim! Magnífica, irresistível! -- Deslumbrado, o barão afirmava-se, emparvoava, desconhecia-a... Nunca sob este aspeto canalha e cínico tinha visto a mulher... nunca a tinha surpreendido assim, animal, picante... assim pela acre perversão do vício deliciosamente transfigurada!
E enlevado na cativante figura, por momentos distraía-se, gozava, esquecia a atroz realidade.
Em frente dela, afogueado e risonho, estava Eugénio, de banquinha na frente, papel e lápis na mão -- como quem copiava o adorável modelo que tinha diante de si.
Sem interesse nenhum por este jogo, cujo alcance não podia atingir, a baronesa tomou, impaciente:
-- Não me dirás para que serve isto, afinal?... Não percebo nada.
E o efebo:
-- Deixa: percebo eu... São manhas de um sujeito que eu cá sei!
-- Não tem graça! -- fez Elvira, aborrecida. E, tendo rodado na direção da porta os olhos: -- Oh, meu Deus! -- exclamou, erguendo-se de salto, apavorada, lívida.
Dera com a vista no marido, que tinha aberto de par em par a porta.
Então houve um silêncio de terror; um horrível silêncio expectante, embaraçado, frio...
A adúltera, morta de medo, ficara-se pregada no mesmo lugar, hirta e sem movimento, a boca meio aberta, os lábios brancos, e não desfitava do marido os grandes olhos pávidos. Eugénio desabancara, num relance, e fugira para o extremo da quadra, aterrado e cabisbaixo. E sozinho em pé a meio do quarto, o barão, fulminado desta dupla traição pela evidência iniludível, assim brutalmente ulcerado na sua condição de amante e de marido, permanecia imóvel e branco também, petrificado, cego, e não atinava com um castigo bastante à enormidade da ofensa, não achava a fórmula do seu desforço, a medida da sua vingança, o estalão do seu desprezo.
Num ímpeto, cresceu dois passos para Eugénio, com o punho brandido ao ar e a pupila em fogo, e regougou:
-- Puto indecente!
Depois, novamente perplexo, circunvagava como um doido a vista, varava a mulher com os olhos coriscantes, e no ar espesso e parado enclavinhava os grandes dedos, grossos de ameaças.
O mesmo silêncio expectante pesava... um silêncio frio e de embaraço. A baronesa, gelada, num espasmo apavorado, não despregava os seus olhos de morta dos olhos do marido, e vagamente baixava a mão a procurar qualquer coisa com que tapar o seio, que galopava na fúria do sobressalto e do medo.
Mais senhor de si, o efebo seguia cautelosamente todos os movimentos do barão com a vista, num instintivo receio, e simultaneamente procurava um objeto que pudesse ser-lhe bom instrumento de defesa e do qual ele lançasse mão, na contingência de uma luta. Enquanto o barão desandara a passear ao longo do aposento, esbraseado, fumegando, e, perro numa irresolução, rugia amiúde:
-- E incrível! E incrível isto!...
Marcava-lhe a face uma sede de brutalidade, tinha os olhos orlados de negro, e os punhos fechados molinavam no ar, raivosos, numa pressa de esmigalhar os dois pulhastras, de seguida!
Num traiçoeiro instante de desfalência, deixou-se tombar sobre um fauteuil, enterrou a cabeça nas mãos e:
-- Que sorte a minha! -- lamuriou, desalentado.
Mas logo, vergonhoso de si mesmo, levantou-se, resoluto, iluminado por um prazer cruel.
-- Eu já os... Esperem!
Saiu de golpe, fechando sobre si a porta, à chave. E de carreira marchou para o escritório, titubeante e incerto no escuro, vacilando, apalpando, tombando móveis, abalroando com as portas, escoriando-se nas esquinas.
Quando ele voltou, armado de um revólver, a mulher enroscou-se-lhe aos pés, de rojo, implorando e chorando, fazendo-se pequenina:
-- Perdão! Perdão!...
Mas o barão não a via, não lhe importava aquilo. Arredou-a como a um trapo que lhe embrulhasse os passos. Nem a sentia... Todo o seu rancor, todo o seu ódio eram contra o efebo.
-- Que é dele? Onde está ele?... -- vociferava.
Viu então aberta a vidraça da varanda que dava para o jardim. -- Escapulira-se por ali! Queriam ver?... -- Nisto, um leve sussurro tremia nas folhas da magnólia... Correu à sacada. Um corpo saltou, em baixo, da árvore para a areia.
-- Ah! Meu malandrim! Eu te arranjo...
Avançou o braço na treva e fez fogo, duas vezes, para a negra escuridão da noite. E logo no impulso da fúria, deixando a janela, regelou escada abaixo, correu o jardim, saiu pelo portão, que já encontrou desamparadamente aberto, e largou, num instinto, pela Calçada do Caldas fora; enquanto em cima, em casa, no toilette, as criadas, num terror, faziam círculo à baronesa, desmaiada, e das bandas de S. Mamede vinha trotando açodada uma patrulha.
Então, tresvariado e arquejante, num começo de síncope que lhe funde o entendimento e lhe esperta as energias mórbidas, aí desata o barão numa carreira escandecente e rábida ao longo da cidade.
Na sua frente, umas em seguida às outras, as ruas alargam; fazem-lhe praça, fogem... à sua aproximação rasgam-se e arredam-se, como se todas se tivessem dado senha de o evitar, numa geral repulsão, num movimento unânime de asco e de desprezo.
E a noite é negra, muda, implacável; os prédios, altos e duros, cerrados como esquadrões de enormes monstros fósseis, fogem, fogem sempre; e a caligem hostil da treva dá uma trágica amplidão, uma grandeza épica e sinistra, a esta debandada colossal de mármores e argilas -- palácios, mansardas, torres, estátuas, templos --, voando na frente do sodomita, em massa, inflexíveis, sob um céu de ferro... um céu distante e impassível, mineral, fechado.
Era o abandono, o escárnio, o nojo da cidade! Era a Natureza toda dando- lhe costas, num rancor, num chasco! --Aguçava-lhe a dor, exacerbava-lhe o tormento este absoluto desdém das coisas pela sua desgraça. Na cruciante despolarização moral que o descerebrava, o sofrimento, o espanto, a raiva multiplicavam-se. A recetividade passional centuplicara. Cada molécula dos seus nervos, revulsa da emoção, tomara vida à parte, cobrara autonomia, emancipara-se... a integridade sensorial do seu ser decompusera-se, como na véspera o anel do carbúnculo, em miríades de centros de tortura, de pólos dolorosos... por forma que agora a miséria da sua ignomínia, assim ao infinito refrangida, tresbordava, e num inferno de acuição mortificante fervorava em cravar-lhe na alma as envenenadas puas.
Adeus! adeus! prazer... adeus! largos sibaritismos, epicúrias sestas, desmaios, êxtases... adeus! divinos carmes de ventura! Adeus para sempre!... Impossível gozar mais o seu bem-amado efebo! afagar-lhe a penujosa frescura do corpo... lambê-lo, mordê-lo, trincá-lo, absorvê-lo... impossível misturar com o dele o seu sangue, assimilar-lhe o calor, beber-lhe o hálito de veludo! Nunca mais! nunca mais!...
A acuidade da angústia era tão aflitivamente grande, que o seu alastramento doloroso não dava margem a especializações de sofrimento. Mas, rasgando a causa principal do seu cuidado, vinham por lances dançar-lhe na retina, numa alucinação visual intensíssima, numa espécie de loucura lúcida, fantasias sem nexo, bizarros grupos, anómalas imagens, visões extravagantes: -- modelos de formas plásticas, afrodisias grotescas, troças de quadris roliços, convulsões de coitos, estases ninfomanias, virilidades em riste, virgens espeitoradas... tudo isto em turbilhão, doido, convulso, tudo epilepsiado de furores, tudo a arder em tintas de delírio.
Correndo, correndo sempre! sem plano, sem vontade, cego e maluco, à toa.
Agora as ruas, tortuosas e estreitas, moviam-lhe na frente as suas fieiras de lumes, em sinuagens lúgubres, como renques de brandões acesos, diluindo-se longe num vapor macilento... A sua felicidade morrera! Aí lhe seguia o enterro... Era o saimento do seu destino, eram as obséquias da sua vida.
Havia momentos em que, levando-lhe as reações honrosas de vencida, o assaltava uma gula furiosa do passado! Não se afazia à ideia de ter de resignar- se irremediavelmente a cortar com o efebo. A lembrança de que havia de passar de ora avante sem o seu Eugénio, amalhoava-o uma saudade insalubre; cresciam-lhe ferozes, cobardes apetites; tomava-o um horror mortal à vida.
Então redobrava na carreira... escoava-se pelos panos de sombra, como um gato com cio... gaguejava frases sem nexo, batia-se, castigava-se... e agarrava-se com ânsia aos argolões das portas, como se fosse a despenhar-se num vácuo sem medida.
Felizmente para o pobre nevropata não o macerava numa flagelação contínua esta crua enormidade de tortura. A excitação a espaços amainava. E então, nas intercadências da febre, numa ligeira amnésia do seu mal, por um instante acalmado, o pederasta parava, tomava alento e dilatava o tórax numa espiração de alívio. Mas aí lhe chispava outra vez na lembrança, brusca, irrefragável, nítida, a cena de ainda há pouco! -- e ele de novo todo tremia, jurava imprecações, entresilhava os dedos, e com um brasido no crânio aí largava pelas ruas, crispado de raivas, doido, feroz, desesperado.
Passaram horas. Com o frio da madrugada e a forçosa quebreira do cansaço, a perturbação mental foi cedendo, gradualmente. Agora o barão, derreado, devagar, ia subindo, e à medida que o dia avizinhava, ia pondo também no espírito sua claridade.
Quase manhã. Já aquatinta e define as cimas dos prédios uma auréola cinzenta, enquanto na funda penumbra das ruas vagamente passam longos perfis de operários -- as mãos nos bolsos, monótonos, cabisbaixos, com o tropear dos sapatos ferrados acordando os ecos das colinas próximas.
Estava no Largo das Amoreiras o barão. Caíra num banco, esmorecido, exausto, e olhava em roda, sem fito certo, numa triste mansidão de convalescido... Toda a paisagem ensopada numa loura e ingénua frescura. O ligeiro gluglu da água da fonte ritmava com o despenhamento fresco e cheio da água dentro do aqueduto. Os beirais das casas já dourados; floridas as árvores; um rosto de bambino o céu; o ar em carícias de ninho... e os passaritos de ramo em ramo a pardalar, e a virem ablucionar-se e beber na grande taça do tanque, nimbados de pérolas, leves, saltitando.
E o barão, tendo comparado a branca, a sagrada, a sublime e perenal ordem das coisas com a imunda desordenação da sua vida, desatou a soluçar.
Como estava próximo da morada de Henrique -- era cedo, mas não pôde resistir --, levantou-se para ir ter com ele.
Embaraçada e surpreendida, a criada informou -- que o senhor estava ainda recolhido. Todavia, perante a urgente insistência do barão, e sabendo-o íntimo entre os íntimos da casa, por fim acedeu a deixá-lo entrar.
Quando, um bom quarto de hora depois, Henrique assomou à porta da sala, em roupão e chinelas, e num admirativo interesse interrogou: -- O Sebastião! Então que temos?... -- o pederasta atirou-se-lhe aos braços, numa explosão enternecida, exclamando:
-- Um desgraçado! Henrique... Sou um desgraçado!...
-- Assustas-me...
-- Tinhas razão, tu... tu e os mais que me avisaram tantas vezes!... Vocês é que viam claro no lamaçal da minha vida!
-- Mas então...?
-- Obedeceram os factos à lógica da infâmia! deram-vos razão... razão de mais! -- E, medindo num passo nervoso o aposento: -- Sou um desgraçado!
-- Explica-te, sossega... -- acalmava, de mãos afagando os ombros do barão, o Paradela.
E o barão, num desesperado arranque, estacando de repente:
-- E verdade, sim! Minha mulher atraiçoava-me! Adivinhas com quem...
-- Sério!? -- acudiu Henrique, suspenso, recuando dois passos.
E aqui desandava o barão a narrar-lhe, quebrado agora e inerte numa cadeira, sem paixão aparente, numa toadilha uniforme de máquina, passiva, atropeladamente, a origem casual das suas suspeitas e o inferno subsequente da sua vida... as indagações, as conjeturas, as raivas, os frenesis, os zelos... e a crescente convergência dos indícios, o testemunho do anel, a suposta ida a Lavos, a surpresa, o laço, as violentas cenas da noite passada.
A medida como ele falava, o Paradela, contrariado, inquieto -- conchegando o cache-nez, as pálpebras moles do sono interrompido --ia e vinha no aposento, mudava de lugar, coçava a cabeça, seguia a espreitar, num receio, à porta que dava para o interior da casa. Por fim, não podendo mais conter-se, interrompeu e segredou com intimativa à orelha do amigo:
-- Sebastião... ouve, modera-te... Sou teu amigo, sabes. Compreendo e sinto, como se fosse minha, a enormidade da tua desgraça... E estou inteiramente ao teu dispor, pró que tu quiseres! Mas esta conversa, aqui em casa... -- baixava mais a voz -- bem vês... A Leonor pode vir escutar... não percebe e assusta-se... Vamos nós sair ambos, queres?... Lá fora, ao ar livre, estamos melhor... desabafas à vontade.
Numa aquiescência muda, o barão baixou a cabeça e esperou que o amigo voltasse de dentro, de tranquilizar a mulher, e lavado, arranjado, vestido e pronto para sair.
Então os dois seguiram juntos, na frescura matinal do sol, pela cidade abaixo, indiferentes à luz e ao bulício, falando com calor, parando amiúde.
Insensivelmente tinham tomado caminho de S. Cristóvão. Mas, na aresta do largo, o barão parou nobremente e recusou-se... queria no mesmo instante retroceder. -- Voltar a ver a mulher!... de forma nenhuma! -- O Paradela, porém, insinuativo, manso -- que tivesse prudência... iam para o escritório... ela ficava lá longe -- aconselhava.
Hesitava o barão. De repente, iluminado por um vago pressentimento, avançou para o palácio. O guarda-portão perfilou-se e cortejou-o, fitando-o muito, numa interrogação pasmada.
-- A senhora baronesa?...
Tinha saído também... alta noite. E ainda não tinha voltado.
-- Foi ter com ele! Bem... -- considerou o barão. E ao impulso de um agudo sentimento, que era uma raiva e um alívio, subiu com decisão a escada.
Fechados no escritório, em cima, reprimendava com doçura Henrique:
-- Meu pobre amigo!... Aí tens! Não te disse eu, tanta vez, que te resolvesses a ter juízo?
-- E o que chamas tu ter juízo?... -- acudiu irónico o barão, numa ponta de exaspero. -- E ser-se por acaso manhoso e falso, dissimulado, frio?... É fazer do coração relógio? E ter um temperamento de algodão-em-rama, contra cuja flácida macieza a ressaca das paixões se quebre e se anule, silenciosamente?... Mas isso -- objetava com alma --, isso é a negação da vida!
-- diz antes que é a garantia da felicidade -- retorquiu Henrique.
-- Sim... como vós a compreendeis, vá! homens cataplasmas -- comentou o barão desdenhosamente. E passeando e falando: -- O juízo... É bom, é cómodo... Pois quantas vezes não tentei, não quis eu... com um aferro de náufrago, podes crer, desesperadamente! Quantas vezes não tentei subordinar- me a esse juízo redentor, que tanto me enalteces, e que inteiramente me faltava!... Oh! Lutei, lutei e porfiei muito! acredita... -- confidenciava ele agora com calor, parado diante de Henrique, as mãos sobre o coração e um brilho sincero nos olhos muito abertos. -- Sem nada conseguir, simplesmente!, sem que uma só vez lograsse dominar-me... acomodar nesse messiânico édredon as demasias da minha alma impetuosa!
-- Porque nunca quiseste verdadeiramente.
-- Não! Porque nasci sem ele, sem o tal juízo... Está acima de nós... Não rias... -- E com a voz molhada, os olhos húmidos e nos lábios brancos um sorriso escorrente de amargura: -- Feliz homem!... Ah! É que tu não sabes, meu amigo, o que é uma pessoa conhecer, pesar, medir o mal e não ter a força de evitá-lo... apetecê-lo e temê-lo ao mesmo tempo, correr-lhe no encalço e fugir-lhe, desejá-lo e aborrecê-lo! Não sabes o que é vermos o vício apontar, crescer, formar o salto... já paira no ar, desceu, empolga-nos... enterra-nos, afoga-nos num mar de lama... e nós querendo reagir e abandonando-nos! transidos de aversão, de horror e contudo gozando não sei que amarga voluptuosidade em nos deixar enterrar!
Uma expressão incrédula sardonizava o rosto de Henrique, irritando o barão, que prosseguiu com veemência:
-- Não avalias, não... não sabes, e ainda bem! o que pode haver de tragicamente horrível, de sobre-humano, de fenomenal, de grande! numa dessas extenuantes e ignoradas lutas entre o coração e o cérebro, entre a razão e o sangue, entre os nervos e a vontade, entre a reflexão e o instinto... E, principalmente, não sabes o que é ser-se, como eu, o resíduo dumas poucas de gerações, o fermento pútrido da decomposição secular de uma família... Não sabes o que é vir a gente a este mundo furunculada de diáteses mórbidas, inquinada de vícios, embostelada de fraquezas... por um fatalismo sórdido votada a fossar em todas as vergonhas, a vergar a todas as ignomínias!... Eu havia de ser isto, por força! Trago a tatuagem da infâmia. Estava escrito... A genealogia moral dos meus é edificante... O meu trisavô, inquisidor, era um verdugo e um místico; meu bisavô, um sodomita incorrigível, morreu aos dezanove anos, esgotado, tísico; um irmão dele, que foi cardeal, organizou com tiples castrados da Sé e meninos do coro um harém para seu uso exclusivo; minha avó paterna, espécie de Egéria debochada e histérica, essa pagava os madrigais e os sonetos com dormidas, por escala, às noites, no seu leito, à choldra almiscarada dos seus preciosos turiferários; e o meu pai... O meu pai foi mignon de D. João VI... Tudo o mais assim... Ora com tais precedentes, que querias tu que eu viesse a ser, senão isto que tenho sido -- um escanzelo, um pulha?
-- Terias esconjurado a catástrofe, refugiando-te no verdadeiro amor.
-- O amor, o amor!... E o que é o amor, senão um egoísmo dos sentidos?... Abnegações, ideais, platonismos, êxtases... são outras tantas quimeras. O amor é uma paixão puramente orgânica, toda animal e de instinto. Esses belos arroubos líricos, de que os poetas nos falam, são bonitos eufemismos inventados pela nossa vaidade, são simples lisonjerias do nosso orgulho... mas sem realidade, sem vida... pura toleima!
Henrique protestava, indignado. E o barão, insistindo:
-- Ora, diz-me: como viste tu pela primeira vez, em que condições te enamoraste dessa senhora, a D. Leonor, com quem vieste a casar?
-- No teatro, uma noite... lembra-me como se fosse hoje! -- respondeu logo o Paradela, erguendo-se, com uma chama juvenil nos olhos. -- Estava ela com um vestido cor-de-rosa e um ramo de lilases na cabeça.
-- Não preciso mais! -- atalhou o barão, vitorioso. -- Vês como instintivamente notas e conservas na alma, indelével, o lineamento físico da tua fascinação: a vestimenta, a moldura, a objetivação, a causa exterior da tua impressão amorosa?...
-- Explica-te...
-- Que sabias, que podias tu saber, na ocasião, do moral dessa menina?... Coisa nenhuma! Falou-te aos sentidos... Mais nada! Na pureza luarenta dos teus sonhos, na dinamia ardente do teu desejo, era da imagem dela inseparável esse vestido cor-de-rosa e esse ramo de lilases no cabelo.
-- Não, isso não!... Que exagero!
-- É a verdade. Se a tivesses visto sem espartilho, sem luvas, despenteada, acreditas que te tivesse impressionado da mesma forma?
-- Sem dúvida!
-- Sem dúvida que não... E é sempre uma impressão toda física que nos move em geral a alma... que nos faz simpatizar com este, antipatizar com aquele... preferir certos lugares, escolher as casas, ter amor aos filhos... São pequeninos, tenros, cor-de-rosa! são bibelots que falam... Um encanto! imagino eu... E isto!
Deu em silêncio algumas voltas no aposento e prosseguiu a meia voz, compenetrado e triste:
-- Mas, em suma, a vida é assim... uma armação de teatro, falsa, efémera... E é agradável, no entanto, é boa... vale a pena... E eu podia nesse pé gozá-la como ninguém! Estúpido!...
Parara a contemplar saudosamente o retrato a óleo da baronesa, pousado no cavalete, na saleta contígua.
-- E a Elvira -- olha -- era bonita, miudinha, fresca! A um tempo doce e petulante, maliciosa e ingénua... Que sugestiva figura!... Podia ter sido feliz com ela... e deitei tudo a perder!... Eu bem via, bem via... Não me importei!... E, agora, aí está... tudo perdido! sem remédio!...
Caiu prostrado na causeuse e apertou nas mãos a cabeça: -- Ai! a minha vida! a minha vida!... -- soluçando.
Aqui, pancadas repetidas soaram à porta do escritório, e franca e alegre estrugia fora a voz abaritonada do marquês de Torredeita.
-- O Sebastião, anda, abgue lá! Avia-te... Sebastião, ouviste? Sou eu... diabo! Estagás tu a fazeg moeda falsa?
Estremeceu o barão e ergueu-se de ímpeto.
-- O marquês, a esta hora!... Saberá já alguma coisa?...
Acabrunhado e humilde como um réu, foi abrir a porta.
Logo o marquês entrou, ruidoso, teatral, festeiro, com um rolo de papel na mão.
Numa grande prodigalidade de gestos, abraçou o barão, depois Henrique, depois o barão outra vez, sublinhando:
-- Minha flog! meu aguetista! -- E tudo era pavonear-se, tossicar, dar-se à importância, como quem é portador de boas notícias.
-- Muito cedo, hem?... admigas-te!... O meu guico -- explicou --, nas ocasiões é que os amigos se conhecem.
-- Obrigado! obrigado!... -- balbuciou o barão, abraçando-o, numa ternura fundente.
E o marquês, admirado, arredando-o:
-- Que tens tu?... Ouve, espega. -- Ergueu ao ar o cartão, na ponta dos dedos. -- Tgago-te aqui um pguesente magnífico!
-- Uma surpresa? -- acudiu o barão, a sorrir, num grande alívio, sossegando.
-- Olá! papa-fina!... Apanhei-o de acaso, ontem, num feggo-velho. Apenas o vi, disse logo comigo: que guica coisa paga o Sebastião! Não descansava sem to tgazeg. Vinha com ela fisgada! E vai pog isso vim a esta hoga... paga te apanhag em casa.
-- Meu amigo! Meu amigo! -- agradecia efusivo o barão.
O marquês continuava agitando no ar o precioso papel. Tinha o barão suspenso. Clareava-lhe os olhos uma bondade cativante, e uma larga e sã ironia o hilariava, aquecendo-lhe as feições e purpureando-lhe o crânio.
O barão acercara-se, com interesse.
-- Vamos então a ver...
O marquês desenrolou com pausa o velho cartão, de longe, e expô-lo ao alto, tenso nas duas mãos, solenemente.
-- Um mimo de pgueço, vê! Conheces?... Tem mais de cem anos. E, ou não é, uma peça de valog, um belo pendant ao teu Ganimedes!
Era uma velha gravura amarelenta, de Cardon, reproduzindo a célebre tela caricatural de Rembrandt, que Dresde no seu museu arquiva com orgulho. -- A meio do quadro, Júpiter, feito águia, e um mocetão de sete para oito anos, quase nu, figurado de costas, gordachudo, lorpa. Num desfastio de bom humor, o brejeiro senhor do Olimpo soergue ao rapaz com o bico a fralda da camisa, e o poltrão chora, berra e esperneia com medo, e, na diurese do terror, vai fazendo em bichinha pelo ar o mesmo que os aldeões de Teniers bonacheiramente fazem, de perna aberta, em pé contra os muros. -- A fiel e clássica reprodução dessa admirável sátira pictural, feita com uma veia poderosa, tocada por um traço de génio, magistral, eterna.
Num salto, o barão apoderara-se da gravura.
-- Sim, é... sim... -- confirmava amargamente, examinando-a.
-- Magnífica, hem?... E em muito bom estado. Sou, ou não sou amigo?
-- Amigo, sim... -- repetia o barão, sem consciência.
Amarfanhado na causeuse, retinha o cartão nas mãos trémulas, e com um olhar embrutecido de dor estudava-o, devorava-o... sofrendo a cruciante ulceração do subitâneo epigrama.
Por cima do ombro dele, o Paradela, em pé ao lado, olhava também o papel, embaraçado. Nenhum dos dois falava. E o marquês, intrigado deste silêncio molesto, sem perceber, numa ponta de impaciência, interpelou: -- Que diabo tinha havido naquela casa?... tudo macambúzio e sorna, tudo com cara de caso! o guarda-portão, a criada, o dono da casa, os amigos...
-- Dono da casa! que irrisão! -- suspirou o pederasta.
-- Então não és?
-- O filho! poupa-me...
-- Mas que demónio de mistéguios são estes, afinal?... Paguece que espegam a móguete!
-- Quem dera!...
-- Homem, eu não sou coscuvilheiro -- insistiu o marquês -- nunca vivi de mexeguicos nem de intguigas... mas, com a bguecal os desgostos dos meus amigos hão de me sempgue integuessag, ou eu não sou seu amigo!
E, para Henrique:
-- Que foi isto?...
Henrique então, tomando-o a um lado, apontou-lhe rapidamente, em meias frases, ao ouvido, o que se tinha passado. Aturdido e esmagado, não podia crer o marquês. Em raptos de indignação, atalhava a cada instante:
-- Isso é impossível!
Mas o Paradela confirmava, esmiuçava, insistia. Mais que certo. A termos que, por fim, perante a esmagadora evidência, já o marquês não fazia senão lastimar o barão, compadecido.
Uma dolorosa preocupação empanava-lhe a fina coloração rosa da epiderme, afilava-lhe os lábios, contraía-lhe os punhos.
-- Diabo! Diabo!... -- monologava ele, num embaraço, agitando-se e puxando da nuca para a frente, com a mão direita, a seda prateada do cabelo.
E, grandemente aflito, para Henrique: -- Como havemos de nós agoga!... E a bagonesa, é vegdade!... Pguecisamos sabeg... Não tenha ela ido fazeg alguma asneiga!
Depois, parado na frente do barão, com inexprimível meiguice:
-- Meu pobgue amigo!... Não sabia nada, jugo-te...
Mas o barão, áspero, hostil:
-- Por amor de Deus! Não me lastimes... -- exclamava. E para os dois, num ímpeto: -- Vão-se embora! Deixem-me, deixem-me vocês!
Viera-lhe a rebeldia do seu mal, a vergonha da sua miséria.
E recaía a devorar amargamente a gravura:
-- E um rico pendant, é... à minha desgraça!
E as pelhancas da face pingando em bagadas de lágrimas.
CAPÍTULO XIII
Serenado o alvoroto que na mudez cava da noite as detonações do revólver do barão tinham acordado, não conseguia a baronesa, desnorteada e pávida, assentar ao certo no que devia fazer.
Com a explicação de um caso qualquer de ladrões conseguira-se desviar a patrulha; a criadagem reacomodara-se; e Elvira agora, só, no toilette, num desassossego de espanto, debatia-se entre a ordenança imprescritível do dever e as alucinadas visões de um pavor indominável. -- O seu dever era ficar... bem o sentia... ficar e aguardar ali, numa passividade de ré colhida em flagrante, o veredictum do seu juiz e senhor legal, a punição da sua fraqueza, o castigo da sua infâmia. E aplicava o ouvido, assustada. -- Mas assim, tão nova!... Ele matava-a! Era o mais certo... E havia de ela sujeitar-se a esse horror, sem resistência nem protesto... com a vida tão cheia de risos e de promessas... assim prematuramente? -- Vinha-lhe uma revolta. -- Era talvez excessivo! Quando mais que para a lenta gestação do seu crime havia o marido concorrido também, em grande parte. O mais ferrenho cúmplice, ele, do seu desvario!... Pois quem, senão ele, lhe metera o rapaz à cara?... porque era assim, porque era assado... Quem a aquecer-lhes a intimidade... a estimulá- los... a aproximá-los... a facilitar-lhes os manejos, a amiudar-lhes as entrevistas?... Seria bom meter tudo isto em conta!
E num rebate froixo de esperança, cobrando coragem, a baronesa serenava.
Mas logo, desolada: -- Em todo o caso, por onde quer que ela encarasse a sua falta, por mais voltas que desse à sua desgraça, não havia meio de iludi-la! fugir-lhe... Fatal!... Era uma mulher perdida, irremediavelmente! -- E chorava. -- Que fazer, que fazer agora?... que futuro ia ser o seu?... como atenuar para o mundo...? a quem acolher-se? quem a havia de querer? que jeito dar à sua vida?... -- E, desesperada: -- Acabar por uma vez!... era o melhor! -- concluía.
Assim nesta atormentada incerteza continuava hesitando, entre a submissão e a revolta, entre a obrigação e o medo. A todo o instante lhe parecia sentir passos do barão... Vacilava, estremecia. E no tresnorteamento da febre e do receio as ideias, as soluções, os alvitres baralhavam-se-lhe.
Por fim, o terror predominou -- um terror desapoderado, insustável, doido. Venceu-a a instintiva defesa da sua juventude. Pôs à pressa um chapéu, cobriu um mantelete, e, sem bem saber explicar-se porquê, nem para onde, saiu também de casa pelo portão do jardim.
Em breves minutos, estava à porta da casa de Xavier da Câmara. No momento preciso em que este recolhia do Grémio. Julgou-se fora do seu juízo o marialva. -- Não podia crer! -- Foi-lhe necessário afirmar-se bem, uma e outra vez, e apertar muito entre as suas a pequenina mão da inopinada figura, para se convencer de que estava pleno senhor das suas faculdades e que era realmente a baronesita de Lavos que ele tinha ali assim, àquela hora, desabusada e fácil, como uma cocotte à gandaia, a procurá-lo.
No súbito alarme do pasmo e da surpresa, nem um instante o atraiçoou contudo o seu feitio urbano e delicado. Cumprimentou com respeito, e já rodeava de deferências, de atenções a gentil miniaturita; já, gaudioso e afável, a convidava a subir, indo ele na frente, a iluminar, de rolo de pavio aceso.
Em breve entravam os dois, em cima, no seu grande quarto de rapaz -- mil coisas fúteis a monte, largo sofá de crina, do espelho umas meias de mulher pendendo, frascos de essências destampados, uma água de sabonete na bacia, pelas paredes terracotas, peitos e luvas de camurça, máscaras de arame, floretes, águarelas.
Xavier da Câmara acendeu, numa pressa, os trinta e dois lumes do seu toucador de érable e ébano. -- Não podia crer ainda, não voltava a si do espanto, não conseguia explicar a que devia a honra daquela visita, tão supinamente deliciosa quão absolutamente inesperada. -- Ao que a baronesa, com o olhar em branco, indo e vindo no aposento, gaguejava, trépida e quente da vergonha: -- Não lhe tinha ele dito e repetido, centos de vezes, que a amava? que a amava muito?... Pois bem! ela vinha oferecer-se-lhe... resolvera aquela loucura! Vinha entregar-se-lhe, incondicionalmente, para sempre!... Era só isto... -- E num sorrir provocador, abrindo os braços: -- Ali a tinha!
A medida como ela falava, o marialva porém, manhoso, experiente, fariscando cilada, fechava-se numa reserva. Pô-lo súbito em guarda o seu egoísmo feroz de celibatário. -- Convinha-lhe o amor da baronesa, certo... uma aventura «catita»!... Mas habitando ela em S. Cristóvão, inteiramente ao cargo e cuidado do marido... Assim, muito bem! Agora mantê-la ele como sua... cair na pôr à trela da sua rica vida... nada! nem o seu apetite por ela era para tanto, nem ele tinha posses, nem pachorra, nem vagar para isso.
Tanto, que ao gracioso ofertório apenas contrapôs, num leve desdém:
-- Oh! Eu não mereço tamanha honra, baronesa... -- E indiferente à exoração da adúltera, tendo acendido um charuto, repotreou-se no sofá, de perna traçada e cabeça ao alto, mudo, inacessível, numa apostura de gelo.
Vencida de impaciência e de despeito, a baronesa então rompeu numa catadupa inflamada de revelações, de súplicas; atropeladamente relatou e aclarou tudo -- a sua paixão pelo efebo, a emboscada do marido, o escândalo, os tiros, a perseguição, a fuga; ao cabo rogava com ardor, rojada aos pés do esquivo semideus, num exaspero, desgrenhada -- que consentisse em salvar as aparências, aceitando-a... fosse liberal, magnânimo... tomasse-a para amante!
O marialva, num risinho sardónico, amolava.
-- Quer então dizer... Compreendo... V. Exa., tendo-me denegado a porção espontânea e limpa do seu amor -- a única apreciável --, vem agora trazer-me, violentada pelas circunstâncias e no seu próprio interesse, as alimpaduras da sua alma, do seu coração o rebotalho!
-- Ouça...
-- O minha senhora! realmente... -- num tom magoado atalhou o Câmara.
E ela a insistir:
-- Salve-me! Salve-me!
-- Para as falhas, hem?... Quer-me parecer que eu não lhe merecia uma tão assinalada marca de desprezo!
-- Seja um tudo-nada generoso!
-- O amor é um divino néctar que eu consumo e adoro, como todo o mortal que se preza. Simplesmente, quero o meu copo bem cheio e bem diáfano... No me piace esvaziar escorralhas.
-- Por caridade! -- afervorava na súplica a baronesa.
-- E, depois, esse Eugénio é um rapaz perfeito... não posso competir...
-- Amando-me, como dizia...
-- Num certo tempo...
-- Não lhe deve ser custoso... E é natural: o mundo supõe que nos amamos.
-- Não faça tão tolo o mundo, minha senhora.
E como sinceramente o irritasse este estratagema, nada honroso para ele, da baronesa, o Câmara foi cruel, zombeteiro, hostil.
-- Enganou-se, enganou-se, baronesa...
Aqui ela emudeceu e tombou sobre um fauteuil, esmorecida. Passados minutos, disse, balbuciante:
-- Recusa, então?...
-- Certamente -- fez o Câmara, erguendo-se. E com um ar superior continuou: -- De resto, nada disso que aconteceu me surpreende... Era de esperar. Muito tardou! -- A baronesa escutava. -- As duas figuras de um ménage ambas simultaneamente a morderem na mesma fatia, de força que, mais tarde ou mais cedo, tinham de os seus dentes encontrar-se... E é sempre desagradável.
-- Mas como?... Não percebo.
-- Ora! ora!...
-- Não compreendo, palavra... -- insistiu, num sobressalto ansiado, a baronesa.
E o Câmara, regalado:
-- Pois à exceção de V. Exa., toda Lisboa o sabia!
-- O quê...?
-- Que entre seu marido e essa irrisão de homem, chamado Eugénio, se mantinham as mais vergonhosas relações de intimidade.
-- Que me diz?
-- Sim... era maricon do Barão o seu amante.
-- O quê!? Pois há disso?... -- exclamou Elvira, erguendo-se de repente, branca, muito branca na grande luz dos candelabros.
-- Sim, minha senhora, então não há?... -- carregou cinicamente o Câmara.
-- E é bom, para escarmento das esposas levianas e picante recreação das gentes.
-- Oh, meu Deus! meu Deus!... -- balbuciou dolorosamente a baronesa, afogando o rosto nas mãos crispadas.
Tal assombro de revelação fulminou-a de morte. Esmagada de espanto e de dor, vacilou e caiu exânime nos braços do marialva. Então, num relâmpago de excruciante lucidez, fez-se por inteiro a luz no seu espírito.
-- Assim tudo se explicava... Abominável! -- Num ligeiro delíquio, passando em revista certas cenas do passado, breve achou o claro motivo de coisas que antes sempre tinham sido para ela indecifráveis. Sentiu a lógica dos factos, tirou ilações, viu analogias. Num instante compreendeu e alcançou a horrorosa verdade! a prostituição sua e do efebo, a abjeção moral dos três, aquela obscena e bestial promiscuidade, o abandalhamento inverosímil do marido... num instante mediu, horrorizada, desse viver prostibular de S. Cristóvão toda a pavorosa ignomínia. -- Oh, era horrível!... sobre-humanamente horrível! -- Sacudia, agitava aflitamente a cabeça... queria a todo o custo revoltar-se contra a evidência da infâmia... e na atormentada ranilhura do rosto gravava-se-lhe uma expressão intraduzível de arrependimento, de pasmo, de nojo e de vergonha.
Gozando o efeito da revelação, o Câmara observou, malignamente:
-- Já vê pois V. Exa. que em semelhantes condições... No entanto, minha senhora -- acrescentou com um riso canalha, adoçando a frase -- não tenho a menor dúvida em lhe dar rio meu leito, por uma noite, agasalho...
Ao insulto, a baronesa soltou-se e arrancou pela escada abaixo, com um nó na laringe e o coração batendo como um martelo, aos tombos no escuro, embrutecida, louca.
Quando, horas depois, já dia fora, entrou em casa dos pais, as fontes estalavam-lhe, escaldavam-lhe as mãos, doíam-lhe os músculos. A narrativa do sucedido à mãe exacerbou-lhe a dor. Resultaram crises de nervos temerosas; violentas perturbações mentais, apatias, desmaios, delírios, fúrias; e uma febre biliosa sobreveio, alta, insistente, que a teve à beira da morte.
Na lógica fatal da sua natureza, logo o barão pensou em furtar-se, o mais pronto e rápido que pudesse, às deplorabilíssimas condições a que o arrastara a desgraça. A viva irritabilidade do temperamento não lhe consentiria suportar capazmente, sem fundas perturbações funcionais, sem anormalismos nervosos graves, do seu novo estado social a infâmia irrefragável. Demasiado aberto à dor e ao sofrimento, um insustável movimento interior o levava a reagir contra ele, pela capitulação e a fuga indominavelmente. -- Fugir! fugir presto e longe!... não importava se bem, se mal... para onde nem porque modo... mas fugir, fugir por força! --, era a necessidade suprema, o voto incondicional da sua alma.
Queria por completo e breve iludir as responsabilidades, delir, esquecer os factos, evitar o ridículo, sacudir a desonra; queria, com a facilidade de quem larga um fato sujo, libertar-se do estigma indelével do passado, para de seguida entrar numa nova situação que não pudesse ter com a anterior o mínimo ponto de contacto. E isto ao passo que as perversões psíquicas e somáticas do carácter, a passividade ingénita do seu ânimo o faziam aceitar a cobardia do precipitado expediente como a coisa do mundo mais natural e mais lisa.
Assim, num destes súbitos impulsos que são essenciais na psicopatia dos doentes e dos fracos, ele resolveu cortar por inteiro, sem dilação nem preparo, as suas relações morais e materiais com tudo quanto havia sucedido. A mulher fez notificar que não mais viveria com ela, sem descer a requerer separação judicial, mas abandonando-lhe no entanto inteiramente a administração dos bens, no valor de vinte contos de réis, com que a tinha dotado. Ao mesmo tempo decidia, para seu sossego, vender, reduzir prontamente a dinheiro o remanescente da fortuna, solver todas as dívidas e converter depois o resto em papéis de crédito; pois calculava deveria ainda ficar-lhe o bastante para segurança de uma mediania repousada e modesta.
E como tudo isto seria fastidiento e ingrato; como obrigava a uma longa série impertinente de formalidades, cálculos, atenções, cuidados, para que ele se sentia em absoluto impotente, o barão instou valentemente com o marquês e o Paradela, a ver se estes se resignavam a tomar nos ombros a comissão enfadonha; e, tendo conseguido, a poder de lástimas e rogos, resolvê-los, para logo lhes deu carta branca e saiu do Reino.
Aceitaram os dois com viva relutância o molesto encargo. Só muito violentados, só de uma grande comiseração movidos pelo infortúnio enorme do amigo, é que se tinham submetido. E apesar de toda a sua boa vontade e diligência, deu o desastroso resultado que era de esperar esta liquidação forçada. A maior parte dos valores, tanto móveis como imóveis, as fazendas rurais principalmente, assim oferecidos com instância, lançados quase simultaneamente no mercado, e onerados para mais com a exigência feita ao comprador da sua imediata realização em moeda, foram, pode dizer-se, vendidos ao desbarato. O belo palacete de S. Cristóvão houve de ser cedido pelo custo da cantaria. Os próprios objetos de arte, como quer que na ocasião se achasse gravemente doente o rei D. Fernando, com cuja idiossincrasia artística se contava, tiveram uma cotação arrastada.
Isto enquanto o barão, pela Espanha e pela Itália dissipando e divagando, frivolamente se dava a mascarar, esvaecido e disperso em amores de ocasião, em aventuras de baixo preço, em latibulares fortunas, o naufrágio moral da sua vida.
Passados seis meses, no regresso, o barão vinha como novo. Amnesiara por inteiro o passado. Transfigurara-se. Era agora como que uma outra personagem, um homem de longe, um estranho, um ignorante, um simples, cheio de surpresa e interesse esmiuçando os pormenores de um país desconhecido.
Alheado e leve, deliciado, atento, de manhã à noite levava percorrendo, em desfastios de ócio, os pitorescos acidentes da cidade. Procurava pontos de vista, pasmava do céu, rebuscava os monumentos, estudava os costumes.
Longe a longe, defrontava com algum velho conhecimento e aí o abraçava expansivamente, numa soalheira alegria. E pouco a pouco reentrava no antigo, reconhecia onde estava, lembrava-se, familiarizava-se... pouco a pouco voltava a descobrir, sem sombra de melhoria ou de progresso, o mesmo «meio» laxativo e pelintra, e, paradas numa estagnação de pântano, cruamente avivadas pelo mesmo sol implacável, as mesmas imundas e dissaboridas coisas: -- os remoinhos de pó nas praças, um ar de cloaca nas lojas, as ruas nauseabundas, as pilecas dos trens, o pregão dos cauteleiros, galegos sujos, em molho, atravancando as esquinas.
Foi um dos seus primeiros encontros o Mendoncita, à paisana, esverdongado e derrengue, sujo, caspento, as pernas em compasso, o arcaboiço estiolado. Estava um velho precoce. Prognata e míope, sifilisado, bretoejavam-lhe pelo rosto rosáceas de eczemas suspeitos, rugas de sexagenário radiavam do ângulo das pálpebras cosidas, na órbita vermelha dos olhos ardia-lhe uma luz seca e fria, nos lábios sem cor nem brilho um riso falso e exangue estrebuchava.
-- Tinha largado a vida militar... Vida de autómatos. Uma maçada! incompatível com a dignidade humana -- acentuava, aprumando-se e abotoando o jaquetão coçado. -- Outras funções mais altas e mais nobres o reclamavam! Tomara praça na fogachante legião dos Titãs do espírito.
Escrevia muito... e com vantagem. Tinha um drama em cena... crónicas, poesias, contos pelos jornais dispersos... Começava o seu nome a estar em voga. Originalidade, uma certa audácia... -- Amarfanhava, envaidecido, o grande chapéu mole contra a nuca, e, tomando familiarmente o braço do barão: -- Havia de ver!
E os dois aí descem agora a Rua de S. Roque, de braço dado, taramelando, amigos.
No Chiado, em baixo, depararam com o coronel Militão, sempre gordo, vermelhinho e teso, o bigode e a pêra como azeviche, reluzentes, o olho frascário, os rins cilhados.
Grande e amistosa efusão, ao súbito conspecto do pederasta.
-- Ó meu caro Sebastião! Bravo!... Já de volta?... E agora de vez, hem?... Ainda bem. Muito estimo. Você vem famoso!
E informava-se -- quando tinha chegado? -- e, contrariado, lastimava:
-- Que pena! não poder demorar-se com ele um bocado, agora... Tinha uma entrevista... com uma «pécora». -- Apertava a polpa carnuda da orelha, explicando, num risinho pedante: -- Daqui!... -- E -- coisa bela! -- sublinhava. -- Contos largos...
Já um passo adiante, e despedindo-se, não pôde ter-se que perguntasse ao Mendonça:
-- É verdade, então o amigo -- vi nos jornais -- sempre deixou as divisas?
-- Tal qual.
-- Pois, com a devida vénia, fez uma fematada tolice.
-- São modos de ver...
-- Que demónio de telha foi essa?... Deixar assim uma posição, bela, garantida, «catita»! como esta minha... cá havia de chegar.
-- Não se rale, coronel. Isso é comigo.
-- Ande-me pelas literatices, ande, que há de ir longe... -- ainda remoqueou Militão, encolhendo os ombros. -- Enfim, você é poeta, e os poetas todos têm seus «queses».
Agora, definitivamente, ia deixá-los.
-- Adeus, adeus, meus amigos... não quero fazer esperar a «pequena».
-- Felizão! -- lisonjeou o pederasta.
E o Mendonça, segurando-o:
-- Espere, coronel, ouça lá... E então, depois, não reparte com a gente?
-- Nem pensar nisso!
E tendo segredado -- é coisa muito particular... -- o pimponaço partiu, emproado e taful, brandindo alto o chicote e tilintando com arreganho as esporas no asfalto.
Depois de lhe rir desafogadamente nas costas, o barão passou a informar- se, num voluptuoso vagar, das relações antigas. -- À parte os seus dois divinos amigos, Henrique e o marquês, não tinha visto quase ninguém ainda.
Que era feito do Alípio? A Reodades?... E, era verdade, estavam-lhe ao pé da porta... e o Florindo?
-- Oh, que grande impostor! -- explodiu azedo o Mendonça, num irreprimível impulso de animadversão, de inveja. -- O Florindo... Isso está cada vez mais sibilino, mais «pão», mais indecifrável, mais torto! É a múmia de uma vaidade, um caco velho com gatos, uma reputação frustrada. Desandou em intrujão, na impossibilidade de ser génio. Tudo postiço: os miolos, os dentes, a erudição e o cabelo. Tornava-se preciso de um novo Champollion o engenho elucidante, para nessa esmadrigada carcaça poder com segurança destrinçar o que é propriamente dela e o que é emprestado.
-- Que vontade você lhe tem!
-- Vontade, não... Não serei amigo dele: mas também não tenho privilégio nenhum de invenção a tirar, por qualquer droga mirífica... de forma que não preciso dele pra nada. Sim, porque o Florindo é hoje uma espécie de cartaz ambulante, de letreiro de elixir, de rótulo de garrafa... um reclamo vivo para uso de especialistas, charlatães e vários ladrões congéneres. Disso vive. E o seu ofício... Anda por conta de várias indústrias de específicos, propagando aos quatro ventos da cidade das respetivas drogas as excelências. O Mascaró deu-lhe um olho de vidro; o almanak de Ayer fornece-lhe o padrão das cores para o seu jaquetão de gala; e dão-lhe bem boa «massa», que eu saiba, o Alexander dentista, o Magalhães peluqueiro, o Pomada florestal... e a Academia.
-- Um pobre diabo... deixe lá. Vou vê-lo.
E, tendo ajustado para essa mesma noite um novo encontro, os dois separaram-se.
Subiu pois o barão os oitenta e seis degraus que davam ingresso à tebaida do filósofo, e, introduzido, notou que o hierático personagem o recebia com palpáveis sinais de embaraço. Trocado um rápido amplexo, as primeiras frases de cumprimento, que naturalmente deviam saltar, espontâneas, frescas, foram ditas a custo e arrancadas sem calor, num gaguejo perro de arrelia. Não estava à vontade o Florindo. Qualquer ponderosa causa amordaçava a festiva expansão de cordialidade que, era de esperar, na sua nobre alma de poeta despertaria a súbita e inopinada reaparição do amigo.
Chocado e sem perceber, já o barão pensava em retirar-se, quando reparou que não estava só no aposento com o pretenso semideus. Dois personagens mais se debuxavam, exóticos, parados, na penumbra druídica da pequenina sala de visitas, pifiamente adornada de paisagens a froco, daguerreótipos, conchas e florinhas de papel. -- Seriam dervixes do templo? Não; apenas uns intonsos labrostes. Provincianos, sem dúvida. Eram duas criaturas grotescas, ordinárias, sujas... principalmente sujas -- sentia-se... votando sem discrepância à água -- Darwin tinha razão! -- um horror ancestral e intransigente. Lavava-se então, como hoje, muito pouco a província.
Vestidos de casimiras desbotadas, esfiampando nas dobras, de padrões gastos, de corte antediluviano, e os colarinhos sem goma, em rodilha as gravatas, as botas brancas de argamassa, escarcelada a pele, os ossos largos -- pareciam os dois alarves preciosas peças arqueológicas, primitivos deuses talhados em pau do sertão, quaisquer velhos amuletos, assim todos em arestas, negros, disformes na meia luz religiosa daquele pagode a meses, de anagramas em missanga, canapé de mogno e papel de seis vinténs.
Não os apresentou ao barão o Florindo. Parecia vexado. Indicou-lhe, sem falar, uma cadeira, e continuou em pé, agitado, contrariado, azedo.
Então o menos velho dos dois basbaques seguiu interpelando, num arreliativo tom familiar, o dono da casa, e sem a menor deferência pela entrada do barão, como quem reatava uma conversa interrompida.
-- Ora o primo não se lembrar de mim! -- ele mascava, tristonho.
Sentado numa posição contrafeita e ridícula, o tronco para a frente, os pés pendurados, de tacões cambos, e entaladas as mãos entre as pernas, com o chapéu nos dedos, toda a mesquinha figura do sabujo se anulava na sombra enorme da cabeça, paradoxal, imunda, casquetada, como a do primo, por uma imensa cabeleira cor de asa de corvo, em cuja espessura apocalíptica se adivinhava formigando e prosperando alguma escola Froebel de parasitas.
-- Eu era o Augusto... Puxe pia memória... hem? o Gatinhas... -- insistia, untuoso, mostrando os dentes. -- Jogámos o «eixo» muita vez, à saída da aula do Pito! E no jogo do «homem» então era eu um barra! Muito pataco fizemos nós macanjo, à força de os roçar na terra, naquele largo do Colégio!
O Florindo tinha um riso forçado. O primo continuou:
-- E quando eu esmurrei as ventas àquele atrevido do Bráulio, pela sua causa -- lembra-se?... Aposto que agora...
-- E verdade, sim... começo a recordar-me. Muito obrigado... -- balbuciou o Florindo, torturando o bigode, aos torcicolos.
-- Eu era bem seu amigo! Era e sou, por alma do meu pai -- disse o farsola, achegando-se e amarrotando com fervor o chapéu braguês contra o peito. -- Olhe que uma vez, na quinta do Arcozelo... vinha a gente do pomar, eram «trindades»... e, recordo-me muito bem, o seu paizinho disse-lhe:
«Florindo, toma conta... Este diabrete do Augustinho ninguém dirá que é teu parente afastado. Parece-se imenso contigo, e quer-te muito. Podia ser teu irmão... Se pelos vaivéns da sorte vieres um dia a ter no mundo um lugar preponderante, vê lá, não sejas ingrato! Não deixes de repartir com ele o quinhão das tuas fortunas.» -- Santas palavras essas! -- acudia agora o outro labrego, levantando-se também, sentencioso. -- O paizinho era um santo... Conheci-o muito bem; vinha a ser segundo primo do avô da minha mulher, que Deus haja. E amigo dele como eu era... boa! Éramos unha com carne. «Bondas» vezes o ajudei eu, o tirei de aflições, na medida das minhas posses... E o menino então, fartei-me de o trazer às cavalitas. Por sinal que, de uma vez, sempre me fez pelo cachaço abaixo uma desfeita!... O que a mãezinha riu! Bons tempos... Mas, em suma -- epilogava, amarfanhando-se --, isto a terra é de quem apanha e o céu de quem o ganha... Hoje aqui o temos, sem inveja o digo, todo áureo... rico, importante... e eu um triste lavrador, sem passar da cepa torta, limitado às verças e às batatas... quando as há.
E os dois rodeavam e prendiam, numa canina avidez, o Florindo, que posto em prova, sem paciência, peguinhava -- que estimava muito vê-los... mas que tinham vindo debalde, porque a verdade era que não havia herança nenhuma a repartir, palavra de honra!
Muito ao de leve soou neste instante a campainha da escada. O Florindo estremeceu, enquanto os dois carraça* trocavam um olhar de inteligência.
Daí a instantes, um terceiro bonifrate invadia a salinha, tipo faminto e solene de mestre-escola -- escanifrado, espectral, barretinho de algodão protegendo a calva, óculos na ponta do nariz, os olhos aquilinos.
Tendo reverenciado da porta, com uma profunda mesura, a pessoa do poeta, o novo intruso abalançou, endireitando-se quanto podia e abrindo a expressão num motete afetuoso:
-- Então... quem sou eu?...
Sobraçava um guarda-sol enorme de paninho azul com ponteira amarela, tinha as calças arregaçadas, volta de seda ao pescoço, e as fartas abas da sobrecasaca «patuleia» dançavam-lhe muito abaixo dos joelhos.
Como o Florindo não desse a menor mostra de conhecê-lo, avançou e envolveu-o num abraço hipócrita, censurando:
-- Não me conheces, hem?... -- Isto é fino!... E pintadinho! -- acrescentou, olhando-lhe de perto o bigode.
-- Pintado isso é que não!... Que ideia! -- repelou, ofendido, o Florindo.
-- Não precisas?... E a boa vida que levas... -- E mudando de tom, muito cheio de si, amparado ao guarda-sol, com ênfase: -- Pois, senhores, eu nunca tinha vindo à capital do meu reino. Apesar de que já visitei Braga, o Porto, Coimbra e outras cidades muito frequentadas... E estou encantado! Isto é belo, belo!
Tornou arreliativamente a soar na escada a campainha. E um novo piscar de olhos houve, agora dos três patrícios, ao passo que o Florindo rompeu para o corredor de salto, a gritar para o criado:
-- José, ó José! ouviu?... Seja quem for, não estou em casa! Que espiga! Safa! -- exclamou ele ainda, ao voltar-se, vendo o barão, que o tinha seguido.
E este, mal podendo suster o riso:
-- Vou-me embora. E lastimo-te... Mas que é, isto, afinal, não me dirás?...
-- Vais-te rir... Bem cómico! A minha divina ascendência está mais que provada. Resolvi requerer um título. Mas, antes, escrevi para a terra, a ver se de acaso não teriam já morrido por lá uns certos parentes... que me envergonham, falando com franqueza. Vai os almas do diabo, todos vivos e sãos! não sei que imaginaram! cheirou-lhes a espólio, a herança... como eu andei pelo Brasil, sabes? Ainda por cima, e temos lá parentes. Vai, caem-me todos aqui em cima, como vês, uma verdadeira praga! não me acreditam e amolam... e eu não sei como me hei de ver livre desta cainçada! não sei... Um inferno!
À noite o Mendonça teve uma bebedeira de prazer, quando, pelo barão, soube do caso.
Tinham-se os dois encontrado, Rua Nova da Trindade, naquela vasta cervejaria, toda em azulejo e abóbada, lembrando um refeitório de frades, na qual davam em reunir-se então, das dez à meia-noite, os nossos primeiros republicanos.
O barão detalhava a cena com rubricas mordazes; e o casposo vate, esquecido do bock que tinha na frente, desquadrilhava de riso, saboreando em amplas gargalaçadas, colhido dos lábios do barão, o desopilativo episódio.
-- Então, vê? Que lhe dizia eu?... Farsista! -- comentava ele, radiante, o fermento acre da inveja a brincalhar na luz seca e fria das pálpebras vermelhas.
Breve, passando a outro assunto, sacou da algibeira do jaquetão, com o lenço e os cigarros, uma porção de gazetas que trazia em molho, já comidas de surro, amarrotadas, quase ilegíveis, torpes; e tendo ordenado com entono jupiteriano ao criado que limpasse a mesa, estendeu-as solenemente, com vagar, uma por uma, sobre o mármore cor-de-rosa.
-- Aqui tem o meu amigo... -- explicou, de mão espalmada sobre os ignóbeis papéis, ao barão aterrado. -- Estes são os meus títulos de nobreza, os documentos do meu valor, ligeiros pródromos do meu talento. Aqui tem... vai ver.
E, acarinhando os jornais, passava a mostrar, todo dobrado sobre a mesa.
Ali tinha, para começar, a primeira das suas crónicas galantes, inserta num jornal criado recentemente e dedicado em especial às damas -- jornal fino, leve, elegante, verdadeiro jornal «fim de século», o qual diariamente dava, além dos aniversários natalícios das pessoas... que já tivessem morrido, graciosas exumações das mais caóticas gravuras do velho Panorama e retratos de várias celebridades indígenas, à razão de quatro libras.
Era assim a crónica:
Emergido para este meio, do fundo da minha pacata vilória alentejana, onde me decorreram nos últimos tempos os dias mais crepusculinos da minha poentiva existência, tu compreendes, hipotética, gentil leitora, que vais ter o mau gosto de me ler, que eu não poderei corresponder à expectativa exigente em que te encontras, por motivo da tua leitura assídua deste género de literatura em ilustrações «fashionables».
No entanto, eu prometo-te que só aqui virei às quintas-feiras, palestrar contigo «dois dedos de cavaco», ressalvas as falhas, para quando o assunto escassear, ou a melancolia, serpente sinistra, me não amarrar nas suas válvulas ao potro da obtusidade.
Procurarei informar-te das ocorrências da semana, e delas tirarei as ilições que ao meu pobre espírito parecerem consentâneas às meticulosidades da tua inteligência, recalcando, quanto em mim caiba, as sugestões tristes que os casos reclamem, para te não bulir com o nervosismo, já de antemão exacerbado...
Tudo o mais neste teor.
O barão bocejava; enquanto, aquecido, o Mendonça passava a ler-lhe de uma outra crónica as seguintes frases, que, com grosso louvor, vários jornais tinham transcrito:
Lisboa é uma nação pequena. Tem talentos seus, antiguidades suas, vergéis floridos e perpétua juventude. Em Lisboa existe a capela gótica, o convento monástico, e o fundador da dinastia, senão modelado em mármore, hirto e solene no silêncio do sepulcro.
Em Lisboa passeia o republicano (dentro dos limites da Carta), devaneia o poeta, aconselha o autoritário. E uma lira coroada de mirtos, e uma cítara coroada de estrelas.
Tem especialmente três cordas: a juventude que canta, a tradição que encanta, e a Rocha do Conde de Óbidos que espanta.
E tem sobretudo a Arcada que anicha.
Sem falar nesta metafórica síntese do génio de Vítor Hugo, dada à luz noutro jornal: -- «Hugo! Esse grande de Espanha de primeira classe em poesia, cujo estro sublime tem percorrido toda a imensa gama dos sentimentos humanos, desde “letícia” até “metícia”.» E, na noite seguinte, teve o barão de ir ao Príncipe Real, à quinquagésima representação do melodrama do amigo. -- De fio a pavio aplaudidíssimo, por um público franco e rude, sinceralhão, violento. Sobretudo, a ovação tocava as raias do delírio, quando, no final do segundo acto, o tirano rugia para a ingénua -- a voz cava, o punhal dardejante, e ao peso das largas passadas do tablado estremecido:
«Insultas-me!?... Treme de mim, mulher! O coração que se vê calcado sob o coturno do ódio o mais vil, pode tornar-se, de tenra rola, em adunco abutre, e esfacelar com as suas garras cruentas aquela que o desprezou!» Mas aqui houve de explicar ao barão o Mendonça -- que a literatura, só por si, não o satisfazia. Era muito bom ter imaginação, fantasia, génio... mas isto, só por si, sem base, não dava nada, era arriscado. As mais das vezes, falta de apoio, a inata impulsão dos neotéricos não gerava efeitos condizentes à sua divina força nativa... Ao acaso e à toa esperdiçava-se. Muito mais valeria que, ao abrir voo, tais arroubos inventivos se firmassem num sólido esteio de erudição e de saber. E era ao que ele aspirava: vir a ser um artista, doublé de um sábio. Bem sabia que, por via de regra, a Ciência com a algema das suas regras fazia abortar as faculdades criadoras: mas províncias de estudos havia que, não se adstringindo ao campo puramente experimental, à iniciativa ideológica de cada um, deixavam larga safra de exploração e de trabalho. Aí estava a química, com as suas análises subtilíssimas pesando e esquadrinhando da microscomia os mais intangíveis segredos... revelando as predileções, as repulsões, a organização social dos infinitamente pequenos, dissecando a vida íntima do átomo, pondo a nu a alma das coisas. A química! Que mais sedutor assunto à meditação do filósofo ou à imaginativa do poeta?... E, dentro da mesma química, especialidades havia, para um artista, particularmente interessantes. Por exemplo, a fotografia, com o seu mágico dom de fixar de relance, com toda a energia e exatidão, implacavelmente, não só já o aspeto físico ordinário de quanto nos rodeia, mas as mais rápidas, as mais breves, as mais fugidias e subtis modulações vitais da Natureza -- a contração de um músculo como a faúla de um sentimento, o esgar de uma paixão como o impulso de um desejo... e o frémito da aragem, a carreira de um cavalo, os dentes de serra de um raio, o bater de uma asa, o voar de uma nuvem.
-- Oh, a fotografia, a fotografia! -- rematava com calor o meliante, erguendo ao alto os olhos, num grande ar de iluminado. -- Tivesse eu dinheiro, e não era preciso muito, e veriam as maravilhas que nesse campo obtinha!
-- Sim?...
-- Palavra... Tenho cá umas coisas imaginadas... -- insinuava pretensiosamente, levando a mão à testa. -- Que revolução! Talvez descoberta a fotografia com as cores naturais, imagine!... Em pouco tempo estávamos milionários!
Com estes e símiles dizeres adredemente encaminhados, difícil não foi ao Mendonça acabar de embair por completo o barão. Restava a este uma dezena de contos de réis, prontos a serem imolados ao calor do primeiro apetite, à ordem do primeiro capricho. E não se fez esperar a oportunidade. O entusiasmo do intrujão ganhou-o de assalto. Que bela coisa, a fotografia!
Estava ao alcance de qualquer... e era uma diversão artística, nobre, uma prenda de bom-tom, cheia de atração, de imprevisto. E ele, justamente, carecia de entreter-se nalguma coisa... Vá feito!
Então, despojadamente, mascarando dos mais honestos propósitos de aplicação e gosto ao trabalho as latibulares impaciências do seu ânimo, concertou o barão montar, de sociedade com o Mendonça, um atelier de fotografia modelo.
Escolheu-se um ponto central da cidade, ao Bairro Alto, e logo as obras começaram, com decisão e furor, valentemente. Não olhava o barão a despesas; queria montar um estabelecimento cheio de comodidades, de luxo, de aperitivas seduções, de novidades. -- Além da «galeria» propriamente dita, toda em ferro e cristal -- iluminada diagonalmente, pintada de um pardo- azulado fraco e uniforme, para evitar reflexos e reverberações nocivas, e farto vestida de complicados jogos de stores e cortinas, em todas as variações do azul; com as espessuras convenientemente reguladas, construiu-se uma opulenta «sala de espera», mobilada a pelúcia cor de mel, tremós de carvalho, piano, e as «ilustrações» em voga arrastando convidativas pelas mesas: mais um adorável e mignon toilette, com espelhos de Veneza e divã de veludo, pequenino, fofo, aconchegado; para laboratório uma câmara de luz «não actínica», que era um primor de simplicidade, de elegância, de engenho e de método; e três vastos repartimentos interiores, para arrecadações e acomodação dos vários trabalhos complementares.
Todo de primeira ordem também o material manuseável. Uma grande câmara, de duplo fole e de longa tiragem portanto, à qual podiam adaptar-se interiormente, livres de irradiações desfavoráveis, as objetivas; e destas nada menos de cinco, todas magníficas e de subido preço: -- uma «rápida retilinta», de Dallmeyer, excelente para provas instantâneas, retratos, paisagens e interiores pouco iluminados; uma outra, do mesmo autor, de «grande ângulo», mais própria para visar trechos compósitos de arquitetura; uma «extra-rápida», com obturador, de Guerry; uma «tríplice acromática», para paisagem, de Ross; e ainda uma outra, «aplanética», de Steinheil.
A mesma largueza grand seigneur, a mesma pródiga abundância no sortimento dos reagentes, miudagens e aparelhos acessórios; porção de diafragmas, balanças, anteparos, panos de fundo, prensas, laminadores, caixilhos; tinas de porcelana para os banhos de prata e ouro, e para a lavagem e fixação dos «negativos»; baterias de frascos formidolosas, bastidores para os retoques, papel albuminado às pilhas, e aparelhos de secagem, chapas, retortas, cubas, esmaltes, rochedos de cartão, tapetes rústicos.
Posteriormente à «galeria», ainda houve meio de entalar uma pequenina estufa; e pelos degraus da escada principal subiam em alas pomposas grandes vasos de faiança com aucubas, rododendros, agaves, cicas, aloés, fúchsias e begónias.
Ao passo que dirigia e ativava as obras, ia o Mendonça curando de enfronhar-se no assunto o melhor que podia. Ainda ao tempo não estava descoberto o processo seco da gelatina e «brometos», que acabou de democratizar a fotografia, e o geral das suas operações eram todas obtidas pelo collodion húmido, que era um meio muito mais complexo e delicado.
Por isso o Mendonça não largava do estudo, lendo os melhores tratados da especialidade, procedendo a consultas, procurando surpreender segredos de prática nos colegas, recrutando pessoal idóneo, fazendo ensaios.
E o barão radiante.
Voltara a obsessão do nu vitoriosamente a trabalhá-lo. -- Possuir um atelier fotográfico o mesmo era que disciplinar, acorrentar a luz; era poder fazer do sol um discreto e inteligente colaborador, um dócil e passivo instrumento. Era o meio fácil, seguro e pronto de obter, colhidas no vivo diretamente -- inéditas, frescas, flagrantes --, as mais perfeitas e sãs «academias»!
Ainda o atelier não tinha sido aberto ao público, e já ele afanosamente corria os vários cantos de miséria e crápula da cidade, todo alerte na febre de encontrar modelos que se prestassem a deixar-se reproduzir na eloquente nudez das suas formas. Difícil. A enorme dose de ignorância que ainda hoje assoberba e afoga, pelo geral, a mentalidade portuguesa, mesmo nas camadas sociais mais altas, não lhes permite imaginar que a contemplação das belas formas humanas possa despertar quaisquer ideias diferentes da sensual estenia.
Além disto, na grande massa bronca das costureiritas, serviçais, operárias, meretrizes, matéria-prima barata e fácil no comércio bestial da carne, um adorável fundo místico de recato e pudor subsiste, instintivo, austero, junto com a dissoluta prática corrente das mais cruas obscenidades, dos mais imundos desvarios.
Assim, por mais dinheiro, vantagens e presentes que o barão oferecesse, a relutância era geral, e as suas propostas sempre quase de certeza repelidas com admirações, insultos, arremessos, palavradas. E mais já ele reduzira o campo de exploração só às ínfimas camadas. Mas, mesmo aí, muitas das aliciadas, tão fora de razão e propósito lhes parecia o destempera, que não o tomavam na sua justa medida; olhavam-no à conta de graça; nem se espantavam; e arredando com um breve monossílabo de enfado o achincalhante convite, passavam familiarmente a informar o barão de coisas mais em relação com elas, a última surra que tinham levado do amante, a porção de camisas que tinham no «prego», a conta com a contrabandista, os dias que deviam à «dona da casa».
Razões todas pelas quais o barão mal lograva convencer alguns raríssimos modelos, dos mais degradados, dos mais vis na etologia humana, e estes mesmos só se acertava de ir nalgum momento angustioso desafiá-los, quando a fome era muita ou o descalabro moral completo.
Resultado: não obtinha senão cópias ingratas, repugnantes, exemplares que faziam tristeza. -- Algum rapazito infante, desgracioso, esguio, com os olhos esparvados e a anatomia incompleta; ou então corpos de mulher dessorados, gastos, os ossos disformes e os tecidos carcinomados, as carnes em granulações anestésicas, moles, pendentes, as veias varicelando volumosas sob a pele, as glândulas escorchadas.
Nos primeiros momentos, ao ver emergir passivamente da sordície das roupas as estioladas formas das pobres criaturas, o barão exultava, e numa ponta de desvairamento, enardecido, quente, chegava a iludir-se. Trompeava-o ardidamente a miragem do desejo. -- Desta vez, sim -- tinha achado... uma curva harmoniosa, um traço puro, arrogante, uma linha apreciável... Ia fixá-la! -- E então, enquanto ensinava a «pousar» o modelo, enquanto corrigia e afinava a posição, enquanto punha a máquina em foco, tudo lhe era pretexto para com astúcia e mimo ir tocar e acariciar, uma e muitas vezes, essa esbagachada nudez que o embriagava; então fervidamente saciava a vista na enxovalhada anatomia desses espécimes de hospital, que na congestiva visão do seu espírito figuravam de gentis, de modelares obras-primas.
Mas depois, passados dias, na fria impassibilidade do cliché ou da «prova», lá saltava a desilusão e triunfava a desoladora verdade. -- Sonhava a perfeição, saíam-lhe grotescos! E o seu ideal furioso de beleza teimava em fugir-lhe, recuado na região do último impossível.
Daí, um desespero, que maniacamente o arrastava, cada vez com mais desatinado furor, na atoada persecução do seu desejo. Por forma que estas suas disfarçadas sessões de pornografia, que a princípio se realizavam só muito de manhã, com toda a cautela, e sempre invariavelmente de véspera combinadas, ou então aos dias santos, quando para o grande público as portas se fechavam, agora tinham lugar a toda a hora, estivesse quem estivesse, sem prevenção, sem cuidado, sem a menor sombra de atenção para com os fregueses, postas de lado as mais elementares precauções aconselhadas.
E prolongavam-se às vezes dias inteiros, cortando o trabalho normal da oficina. E tinham de fazer-se imediatamente, apenas o barão entrasse de fora, com algum escanzelo filado -- porque este podia, enquanto esperasse, arrepender-se -- e cuja momentânea aquiescência era portanto imprescindível, logo, logo aproveitar.
O que não podia deixar de refluir em prejuízo da fama e dos interesses do atelier, que vogando começava em plena corrente do favor público. Arreliava o Mendonça, protestava, opunha-se... mas o barão, exaltado, contestava -- que quem mandava ali era ele! se não estava pelos autos que se pusesse ao fresco! -- e, intransigente, seguia na sua loucura.
Começaram algumas provas obscenas a circular por fora, em segredo. Eram até com empenho disputadas pelos mais graúdos frascários da arte e da finança. A coisa alastrou, tomou dimensões de escândalo. Aludiram alguns jornais ao desaforo. E agora os garotos e as rameiras, que de princípio eram cavidamente introduzidos por uma portinha escusa, dava o barão em subir desvergonhadamente com eles pela escada principal.
De sorte que então aconteceu, não raro, uma ou outra família burguesa defrontar, horrorizada, na galeria, no toilette, na sala de espera, com vultos suspeitos de mulheres de xale e lenço, carmim na face e saia engomada, as quais se enrolavam nos fauteuils, dê cabeça baixa, como gatas, ou, tapando o rosto, cosiam-se com os cantos. E aqui e ali, a esmo, cuias, andrajos, ligas, aventais, farrapos, fitas ensebadas; e pelo ar gordo um cheiro nauseante, misto aziumado de lupanar e de taberna.
Por tudo isto, breve um denso véu de descrédito se correu sobre o famoso atelier. Chamavam-lhe a fotografia dos «quadros vivos». A gente séria retraiu- se. Demandado era só por cocottes, caixeiros, estudantes, ou então pelos vários déclassés de todas as camadas, os quais, depois de servidos, diziam mal da casa e não pagavam.
Para mais, não eram de uma garantida excelência os produtos da indústria do Mendonça. O atelier, encostado a um prédio muito alto, que o superava de uns poucos de andares, não estava nas melhores condições de exposição e de luz. As provas saíam sem claro-escuro, chatas, monótonas -- os negros muito negros e as várias cambiantes do branco diluídas numa tonalidade deslavada e fria. Não conseguiam agradar.
Assim, a pouco mais de um ano de intervalo, o grande plano industrial e artístico do vate derrocava. Oprimidos por um deficit monstruoso e com a casa deserta, tiveram que fechar e liquidar.
CAPÍTULO XIV
Correu então boato que Eugénio, o luminoso efebo, debutava brevemente, como ator, numa operetta em ensaios no Teatro da Trindade.
Tinha assumido proporções de acontecimento este episódio trivial de bastidores. Eugénio não era um desconhecido. O ruidoso descalabro moral e material da vida do barão havia aurorado de uma picante tinta de escândalo o seu perfil insidioso e cínico; e, logo de seguida, uma aventura de amor com uma opulenta e formosa crioula, separada do marido, a quem o lascarino sugara contos de réis, em prolongada viagem pelo estrangeiro, acabara de bordar-lhe em volta ao nome uma bela lenda, romanesca e terrível.
Por isso na noite da sua estreia, em grossas letras no cartaz anunciada, ainda bem antes da hora de começar o espetáculo já o teatro abarrotava de gente.
Verdadeira noite de sensação, de curiosidade e de festa. Todos os jornais representados. Nos lugares junto da orquestra e no balcão, com peitilhos cintilantes, a nata da alta boémia e dos argentários repatriados, de mistura com velhos de vícios ocultos, atores, mundanas, poetas, garanhões, marítimos e artistas. Um vivo e amorudo interesse em ver à luz da rampa o herói.
O grande lustre dourado, a toda a luz aceso, mordia de fulvas crispaturas os lavores dos camarotes, espelhava as escaiolas, corria de um mole esbatido de cera a baça alvura dos claros, dava um forte vigor incandescente à fina cúpula lavrada, e, projetando nos tetos da primeira ordem uma leve sombra, muito oblíqua, ia desenhar nos da segunda, fortemente iluminados, os quadrilongos luzentes das suas varetas douradas. -- Erguia-se de toda a sala um burburinho espesso, cortado pelo bater seco e brusco de um ou outro assento de cadeira.
No ar morno e pesado começava de adoçar os contornos das coisas uma como trepidação de poeira luminosa. A frente dos camarotes palpitavam numa sinfonia patrícia as cores tenras dos tecidos caros.
Havia cumprimentos de lado a lado, acenos de leques, de mãos, exclamações, chamadas. Estava-se em família. E, mal ergueu a batuta o regente, os últimos tomando à pressa os seus lugares. E por sobre esta multidão, mesclada e desenvolta, garrulamente pairando uma lasciva animação, um pique de ansiedade.
Quando, a meio do primeiro acto, o efebo entrou em cena -- vestido de pajem --, modesto, grácil, bem-feito; a um tempo dengue e viril, efeminado e robusto; árula de ouro no pulso e um rico maillot de seda creme realçando-lhe a primor da rija coxa o contorno suavíssimo, em toda a sala chispou um «ah!» unânime de admiração, de calor, de gula, de aplauso. Vermelhos desejos luziram na clorose abstemial das virgens, militares reformados mexeram-se nas cadeiras e súbito uma cerrada bateria de binóculos era apontada às formas modelares do novo personagem.
A termo da primeira cançoneta, que ele soube soltar com frescura e mimo, rompeu uma estralada de palmas. Comedido, modesto, o rapaz agradecia... e tão peregrina arte sabia pôr neste seu agradecimento, com tal graça o fazia, tão insinuante, tão simples, tão sabiamente armando ao favor e à simpatia, que, encantada, não despegava de aplaudir a plateia prolongando e avolumando a ovação indefinidamente. Na expectativa, a orquestra calara-se; os colegas de cena faziam-lhe praça e arredavam-se, com um riso amarelo; e agora só e enchendo o palco da sua olímpica figura, o efebo continuava a agradecer, tendo descido ao proscénio, todo efusivo, já familiar, já risonho, deitando beijos à plateia, erguendo aos camarotes olhares petulantes.
Por último, numa bem aparente repugnância, curvou-se todo, de mão no peito, para um determinado ponto no ângulo do balcão. Todos olharam; houve um murmúrio de espanto. -- Era o barão de Lavos, que, em pé, afogueado, aplaudia também, delirantemente; e que, no intervalo, foi tomar aquele lugar de assinatura, sendo infalível depois ali, todas as noites, hipnotizado e imóvel, de binóculo assestado, passeando e regalando a vista pela doce geografia daquele corpo, tão sua conhecida, a qual supunha não ter para ele mistérios, mas aonde a indiscreta luz da ribalta arreliativamente lhe mostrava deliciosas osculações de curvas, inexplorados, minúsculos relevos, ignorados escaninhos, covinhas paradisíacas...
Começara a publicar-se por esse tempo o Jornal da Noite, e o seu redondo pregão, soltamente gritado, a correr, por um lépido enxame de garotos, cada noite inundava de uma bárbara e estrídula música as principais artérias da cidade. Era um desabalado voar no impulso da rápida transmissão da notícia; era um áspero grazinar de vozes a que a Baixa não estava acostumada. O grosso pacato dos transeuntes quezilavam do despropósito; insurgia-se o tímpano do burguês contra a «inferneira»; vários lojistas protestaram. Mas tinha um cunho intenso de vitalidade e audácia a nova indústria, cujo alto hallali interessava o barão poderosamente.
Depois de tomado o seu café, no Europa ou no Martinho, ele aí vinha invariavelmente, Rossio fora, demorado e parando, a regular o tempo e o passo de jeito a encontrar-se, logo ao fundo da Rua Nova do Carmo, com a revoada cantante dos gaiatos que desciam, pregoando o jornal. Quase sempre precedidos, estes, a minutos de intervalo, por um outro bando estúrdio de plumitivos, que corriam também, de cestinhos de verga sobraçados, a berrar num ritmo quente e loução:
Pãezinhos a cinco réis,E a dez réis,Bolacha fina...
Eram os batedores das ruas. A esta primeira bandada logo a outra seguia, turbulenta, veloz, atroadora, salvando às canchas o macadam.
O barão exultava e animava-se, tomava o meio da rua, parava-lhes o ímpeto, metia-se por meio deles... chamava um, chamava outro, comprava o jornal a quantos lho oferecessem... tudo pelo prazer de fazê-los estacar de repente, no desgarre da carreira; tudo para contemplá-los um momento, esbofados, rubros, nos olhos um brilho ardente, o pé no ar, violenta a respiração e um acre cheiro animal exsudando, magníficos de seiva, de calor, de vida e de saúde.
Algumas vezes mesmo sucedia virem rolando simultâneas pela íngreme ladeira as duas estrilantes legiões. Então mais de ponto o barão alegrava-se. O travesso cardume cercava-o, num alarido. -- Era o pai de todos, o seu rico protetor, o seu amiguinho. -- Sabiam-lhe já da estólida complacência, adivinhavam-lhe a balda, conheciam-no. Por isso, de noite para noite, ganhavam confiança: vinham para ele de longe, gatinhavam-lhe por entre as pernas, assobiavam-lhe, davam-lhe palmadas; e enquanto uns lhe passavam jornais às dúzias, metiam-lhe os outros os pãezinhos pelos bolsos, pelas mangas, pelas abas, pelo forro do casaco.
De forma que o barão, à medida como subia, via-se mais e mais com o carrego embaraçado; mas, não obstante, numa canalha inconsciência, num absoluto desprezo daquele ridículo incomportável, ia sempre, risonho e afável, aceitando e pagando; e depois, em cima, perto do teatro, ajoujado a mais não poder, com as mãos cheias e todo o corpo gibando anormais disformidades, rogava então, comprometido, aos últimos vadios que encontrava, a esmola de o aliviarem da colheita piramidal que o abarbava e de que ele graciosamente lhes fazia doação, para revenderem.
Assim, progressivamente, a lilipucina colmeia dos rotos fervorava em preocupá-lo. Ao passo que a artrítica virulência do temperamento lhe armava sórdidas predileções por esta escumalha das ruas, o debilitamento gradual das suas energias fisiológicas ia-o fazendo particularmente guloso dos tipos engoiados, mórbidos, da carne insazonada e froixa dos adolescentes. A franca expansão animal das organizações robustas amedrontava-o. Só já o vicioso constrangimento das formas, a acanhada estiolez dos degenerados conseguiam ter uma influência estenial nos seus sentidos.
Por isso a troça dos pequeninos vendedores da noite, com o alto galrejo dos seus pregões, estimulava-o. E então que em alguns o barão previa magníficos escorços de futuros efebos, adoráveis gérmens de perfeições, promissoras e incubas delícias, finas estâncias de amor, ignorados, doces páramos de embriagante ventura! Um havia principalmente, que com desmarcado furor o atraía: -- um pobre parraqueta, franzino e imberbe, ruivo, sardento, de carapuça de lã verde, camisolita vermelha e calça branca, de linho, muito cingida à coxa, modelando os músculos com escrúpulo, curta, arregaçada. Uma débil e saltitante figurita, quase andrógina, fresca... para o barão a mais branca e alada quinta-essência dos sortilégios ardentes do prazer...
Com este quantas vezes não ensaiara já o barão tentativas de suborno, dádivas, aliciações, engodos, liberdades! quanta manha, quanta astúcia, quanta proposta cavilosa! quão laboriosos travamentos, de diálogo, depois de feita a venda do jornal, sobre o tarde, ao abrigo indiscreto das esquinas! Mas, esquivo, desamorável, não se deixava o garoto enviscar. Distraído, leve, irrequieto, ouvia, ouvia... e apenas, no momento oportuno, lograva apanhar o «seu vintenzinho pra um café», ei-lo que largava, como um gamo, a correr. E o barão ficava-se pregado no mesmo lugar, desconcertado, estúpido, a ver longe os calcanhares enormes dor garoto alternamente projetando na estreita alvura das nádegas a sua grande mancha imunda.
Não desistiu, porém; antes, ao esporão da dificuldade, um não sei quê de obsessivo e insano tomou de impulsioná-lo à perseguição do rapaz, maniacamente. Conhecia-lhe o timbre da voz, distinguia-lhe, apesar de míope, o perfil a distâncias inverosímeis, adivinhava-lhe o patinar dos saltos na calçada. Assim, num instante, estava junto dele. E se por acaso acontecia demorar-se um pouco, alguma tarde, no café, ou o jornal sair mais cedo, por forma que o estouvado rancho descesse, estando ele ainda abancado, aí logo o pederasta se concentrava, numa avidez, à escuta, e mal diferençava no estrídulo tropel o pregão do seu eleito, sentia qualquer coisa despegar-se-lhe no ventre, levantava-se de salto, e trémulo de comoção rompia ao largo, cego, direito, a defrontar-se com ele.
Estava-se no Entrudo... um verdadeiro Entrudo lisboeta, desconsolado, sujo, pulhento. -- Entrudo manga-de-alpaca, sem espontaneidade e com chuva. As três da tarde, o Chiado, o nosso dissaborido corso, rebarbava de sensaboria, de gente, de lama e de ruído. Duas insulsas filas de carros seguiam, em sentido contrário, num pesado gemer de alcatruzes, devagar, farinhentas de pó e mascarradas de lodo, no ar nevoento e frio com a mais heroica insipidez estadeando essa infindável «bicha» de relhas e tristonhas coisas -- o estafado grasnir das cocottes, de pernas pendentes, rufando pandeiros, batendo as palmas; e filarmónicas truculentas, máscaras de papelão, dominós de paninho, ingénuos reclamos de armazéns e livrarias, caixeiros com os casacos do avesso, a farrapagem do Circo, um enorme tonel roxo coifado de verdura.
Das varandas dos prédios, de vez em quando, as «madamas» permitiam-se travar com a fandangada dos trens breves tiroteios de tremoços, rebuçados e confeitos, discretamente espaçados. Ao longo dos passeios, moles e falsos como lameiros, apinhoava-se a multidão, vestida de negro, compacta e soturna, salitrada de barro, perfilada, à espera... Nem uma sátira, uma pilhéria, uma flor, um dito. E, miudinha e intermitente, a chuva tudo afogando no mesmo tom cor de cinza, num dilúculo lençol embrulhando este arremedo burocrático de alegria; a chuva trazendo ao arrastado e lúgubre diorama a sua moldura de crepúsculo, o ar condizente a esse triste escabujar de chulismos, de pelintrice e de miséria.
A essa hora, o barão subia a rua, sem interesse nem calor, alheio à bambochata. Viera a ver simplesmente, num relance, «como aquilo estava».
No seu entranhado horror a aglomeramentos, seguia só e depressa, constrangido, áspero, na cabeça um peso, contraídas as mãos, vincadas as sobrancelhas. Ia arreliado, frio, quase arrepeso.
Quando avistou hilaremente dançando na onda o pequenino da camisola.
Então, de repente, desanuviou e aqueceu, transfigurou-se. Fuzilaram-lhe as pálpebras, os longos dedos, abertos, vermicularam, e perra a maxila teve uma contração faminta. Já não perde o rapaz de vista; já servilmente o arrasta na trela da manchazinha vermelha e branca a indominável ardência do desejo.
Essa alegre e miudita combinação das duas cores ateia um grande calor sensual na sua alma doente. E vá de seguir pertinazmente o garoto, através a grossa ondulação da turba -- empurrando, trilhando, fazendo cunha do ombro, pedindo licença; vá de por inteiro entregar-se ao empenho veemente de lhe captar a atenção.
Ia e alcançava-o, passava-lhe na frente, sorria-lhe, tocava-o, chamava-o pelo nome. Porém o rapaz, todo no estímulo do bródio carnavalesco, a imensa distância portanto do desejo e das intenções do seu perseguidor, não o vê, não dá por ele, não o reconhece; e, salto aqui, salto acolá, simples, veleiro, vai deliciadamente continuando a sua alegre «flirtagem», agora agachado a apanhar rebuçados, pastilhas, «cromos», logo misturado com os colegas, insinuando-se pelos grupos, pinchando para um trem, perdido a correr na cauda de um «salsa»... e a cada instante os olhos alvarmente arregalados para a bigarrada celeuma da rua.
Mas o barão não cede, não cansa. E a tresbordante excitação animal que lhe resfolga em torno, mais o espicaça... Numa fera obstinação, num encarniçamento selvagem, persegue, persegue sempre o rapaz, sofregamente.
De lado dizem-lhe chufas, põem-lhe rabos, enfarinham-no, a poder de gebadas amachucam-lhe o chapéu. Não importa; persiste sempre. Tortuoso e feroz, atascado em lama, cortando vezes sem conto a rua, tropeçando, praguejando, ele aí teima em debater-se numa circuição infernal de libertinagem, de febre; ele aí segue rubricando infamemente, num passo atormentado e incerto, as mil soltas sinuosagens por onde ao capricho infantil do pequeno vai aprazendo espanejar-se.
Sem resultado contudo, desta vez ainda! A porta de uma tabacaria eis que se trava desordem. Insultos, gritos, bengalas no ar, um homem ferido. O churriar dos trens interrompe-se... de toda a parte, em tropel, a gente aflui.
Espremem, esmagam o barão, empurram-no para longe. Por forma que, depois, quando a cavalaria municipal chegou, na apavorada dispersão do juntamento havia o rapaz desaparecido.
Passado algum tempo, sobre o tarde, uma noite, o barão seguia apressado, do Rossio, ao longo da Rua Augusta, pelo lado ocidental; enquanto do lado oposto, gingando, num disfarce, ia também seguindo o rapaz da camisola.
Era de ver, humanizara-se. Por fim rendido à vontade insistente do seu infame aliciador, certo que ia ali assim marchando de concerto com ele.
Era tarde. Punham as últimas lojas os taipais, com ruído; os transeuntes rareavam; crescia na húmida ressonância do ar o chocalhido de quadris dos guardas-noturnos; lestos perfis de meretrizes passavam, nua a perna, descalças, vestidas de varinas; e, apagado na discreta penumbra da luz municipal, cosido à parede, o barão seguia rua abaixo, rápido e leve, té sumir- se-lhe o vulto esconso na boca de um portal.
Por sua vez então, o garoto, que o vira desaparecer, manobrou de harmonia. Afrouxando o passo, marchou té ao fundo do quarteirão; aí parou, como indeciso, simulando uma incerteza; e, atravessando a rua, desandou depois por ela acima e veio insinuar-se pela mesma porta aonde tinha visto entrar o barão.
Aguardava-o este em cima, no segundo andar, junto a uma porta forrada de baeta verde, com a sua elipse de vidro tendo a zarcão pintado -- HOTEL.
Apenas o rapaz apontou no patamar, o barão disse-lhe: -- Entra... -- e empurrou com decisão a porta, que largou a carrilhonar destemperadamente.
Dentro era logo a cozinha. -- Um luxuoso estendal de toalhitas, rodilhas e esfregões, guardanapos; copiosa bateria de cobres reluzentes; na tosca mesa de pinho, rimas de louça lavada; e sobre um mocho, um alguidar com um monte de roupa molhada e torcida, tendo ao alto um resto de sabão.
Pregado na parede, logo ao lado da porta verde, havia um grande retângulo de papelão com este dístico em maus caracteres romanos:
POR ORDEM DA POLÍCIA, PEÇO OBSÉQUIO AOS HÓSPEDES DE INSCREVEREM OS SEUS NOMES QUANDO VÊM ALUGAR OS QUARTOS: O QUE MUITO AGRADEÇO.
Ao fundo, sobre o seu supedâneo de tijolo, junto à fornalha, uma grossa virago estava frigindo peixe. No revérbero mordente da chama, o seu perfil roliço e robusto destacava vivamente -- suado, rubro, apoplético, de seios paradoxais, os braços nus sobre o ventre, um garfo na mão, o lenço caído.
Para a esquerda avistava-se uma pequena sala, com um velho guarda-louça de vinhático, estalado e cambo, comprida mesa coberta por um pano estampado, o candeeiro pendente do teto, fruteiros de louça das Caldas, um canário, oleografias, e no peitoril da janela, de tabuinhas verdes abrindo para a rua, uma bilha de barro de Estremoz. Sobre a mesa, uma senhora idosa, vestida de preto -- touca e bandós --, fazia uma «paciência»; e, ao lado, uma criancita soletrava alto num livro, de dedo no nariz, bocejando. A direita, uma escada em hélice furava para o andar superior, com o corrimão vestido por uma chita de ramagens.
Mal deu de olhos no barão, com o gaiato, dardejou-lhe a mocetona um olhar comiserativo, e, sem arredar do serviço:
-- Pode subir... tem quarto.
Em cima estrangulava-se um exíguo corredor, com pequeninas portas abertas em lonas vestidas de florinhas farpadas, e escassamente iluminado por uma fumosa luz de petróleo, pregada no topo, com a chaminé negra, partida, e no bojo um parche de papel.
Entrados num dos cubículos, enquanto o barão fechava a porta e passava um cuidadoso exame ao aposento, o rapaz despiu-se e estendeu-se ao comprido sobre a cama, frio e natural, automaticamente, sem o mínimo recato. -- O seu tenro e débil corpito, apenas núbil, macio, longo, adelgaçado, tinha a crestada alvura do linho, a flexibilidade ideal do junco e o dourado matiz dos canaviais dos rios. Casto e divino -- tão pequeno ele era! -- na crua estadeação da sua falta de pudor. Velutíneo como um lírio e louro como um favo. Protegia-o o seu grande ar de infantilidade; eterizava-o não sei que doce velatura de inocência. Parecia feito de morango e neve... e no vermelho retinto da colcha a sua franzina eflorescência esbatia-se num tom açucarado e fundente, numa translúcida cor de guloseima.
Esbraseado e tremendo, o barão, sem respirar, sem falar, sentindo por um voluptuoso exaspero todo o seu ser arrepanhado, aproximou-se do leito e dobrou-se, a abranger numa estirada carícia, a haurir num férvido beijo, longo, bem longo, a mélica doçura do seu amante pequenino. E então, passeada com inarrável deleite pela ressumante frescura daquelas formas mimosas, um momento houve em que a imunda boca, numa insalubre avidez, num insustável furor, doido, convulso, a um dado ponto se colou, sôfrega, sugando...
Ao cabo, num desmedido horror de si mesmo, sem poder explicar-se como baixara àquela abjeção suprema, o barão balbuciou:
-- Nunca ninguém te tinha feito isto...?
Ao que o rapaz, filosofalmente, abotoando-se:
-- Ainda ontem... um padre. Era preto.
Deixou fulminado esta resposta de surpresa e de assombro o barão.
-- Como!?... Então não era só ele?... Outros havia também que... E muitos, talvez, quem sabe?... Muitos, sim, provavelmente... Muitos! Bem mais do que ele, do que o mundo imaginava!
-- E porque não?... Que fizera ele de condenável, no fim de contas?... -- na subsequente vibração da insânia, aventurava. -- Quem sabe uma palavra da natureza das coisas? Quem era capaz de com segurança lhe apontar a linha terminal entre a porcaria e o asseio? Quem de dizer-lhe onde começa o vício e onde acaba a virtude?... Lérias! Não há ignomínias que se transmutam em glórias?... Cristo, por exemplo! -- E tinha um riso cínico. -- Nada sobre o caso de ciência certa sabemos. Os nossos modos triviais de pensar e sentir... as nossas predileções, antipatias, jeitos de ver, tendências... as nossas adorações, os nossos ódios, nada têm de racional, de sólido em que se estribem. Nenhum princípio universal e eterno que lhes defina a essência. Pelo contrário, a sua compreensão é ilusória e falível, porque oscila à mercê dos preconceitos... Tal ação é magnânima porque assim vem considerada, por uns tantos homens; tal outra é ignominiosa... porque convém que o seja! Ora adeus!...
Tinha descido. Ao receber o preço do aluguer do quarto, a criada, com os seios à cara, lançou-lhe o mesmo olhar comiserativo de ainda há pouco, enquanto com a ponta do lenço alimpava do suor a caluba. Na sala ao lado, tomava a patroa o seu chá e torradas. De bruços sobre o livro, a pequena adormecera.
E o barão, já na rua, tudo era ainda meditar e bordar atenuantes sobre a extraordinária revelação do rapaz. Alçava com orgulho a cabeça, sentia-se reabilitado, reavia a própria estima. -- Isto do bem e do mal, da justiça e da iniquidade, da razão e do desvario, da santidade e do crime, era tudo relativo.
Estava por fixar e medir o estalão do vício... E mesmo, afinal, pensando bem, essa ácida gota de linfa que lhe jorrara aos lábios, era uma coisa pura, transcendental, sagrada... era o gérmen misterioso da vida, o líquido fecundo e nobre por excelência... era o divino plasma de todos nós.
CAPÍTULO XV
O subsequente descrasear desta vida latrinária, as últimas anotações da torpe monografia, hemos de deixá-las apontadas a correr, em fugacíssimas legendas, acossados nesta pressa nauseada e medrosa do viajante que se vê forçado a saltilhar a deletéria vasa de um pântano.
Porque, de ora avante, a vida do barão arrasta-se, turporosa e lôbrega, pelas inconfessadas volutas da chatinagem mais sórdida; e resvala às ínfimas degradações do pulhismo, da miséria, da loucura e da infâmia... A loucura em que ele se afundara sem remédio, no momento em que deixou por completo as suas paixões dominarem-no.
Tinha na alma a corrupção do século. Impulsivo e maníaco, faltara-lhe sempre no dinamismo funcional dos nervos essa grande harmonia circunfusa que caracteriza os fortes. Agora merecia todos os desprezos, porque vergava a todas as torpezas. Tendo perdido o respeito de si próprio, claro que nenhum freio moral a reprimi-lo, nenhum valoroso dique oposto à assoladora onda das tentações e das curiosidades. Solitário e egoísta, sem ocupações, sem ligações, sem família, ele fizera da vida um regalado ofício de malandrim; uma cadeia prostibular de aviltamentos, vergonhas, inépcias, tresvarios; uma coisa sinuosa e solta, imunda, esfarrapada. Seguia direito e leve como um sonâmbulo, maquinal, num acto sem vergonha. E na despejada fruição da sua ascoenta vadiagem, só o vício tinha voz, só as mais baixas paixões tinham império... só ao farpão do último apetite é que desse pleno impaludismo a sua alma acordava.
Faminto de gozar, flagelava-o o mal de haver conhecido, antes da realidade, a imagem dela... antes das sensações e dos sentimentos, a imagem desses sentimentos e dessas sensações. E a cada passo o desgraçado esquecia que nunca a quantidade de gozo que alcançamos consegue, nem de longe, guindar- se às veemências cálidas do desejo; que jamais a nossa alma terá o condão de instilar ilusões que bastem a um incêndio de êxtase contínuo; e que no fundo das mais fúlgidas taças de prazer saburra sempre a mesma escorralha de tédio.
Estava inteiramente falho de recursos, nu, desalojado, pobre como um seixo e leproso como um pária. Valeu-lhe o marquês de Torredeita, instalando-o na sua casa. E quis fazer-lhe uma hospedagem generosa e distinta, alojando-o numa das grandes salas senhoriais do andar nobre. -- Não lhe fazia diferença... Estavam às moscas. -- Mas o barão opôs-se tenazmente.
Por uma singular introversão da sua honra derrancada, queria reduzir às ínfimas proporções materiais este forçado vexame do favor do amigo; e queria sobretudo, na humildosa dependência da nova situação, poder assegurar-se a maior soma possível de liberdade, de isolamento e de mistério.
Assim, teve que anuir o marquês a deixá-lo acomodar-se numa horrível cela do rés-do-chão, mal branqueada a cal, em perene divórcio do sol, escura, salitrosa, com uma janela baixa de grades e porta direta para a rua. E, aí mesmo, nada de fidalgo, de cómodo, de supérfluo consentiu o barão a guarnecê-la. Nada que um tanto ou quanto afirmasse a gentil magnanimidade do amigo, ou nem de leve recordar pudesse as magnificências da sua condição anterior. -- Um simples catre de ferro, pintado a preto, quatro cadeiras de palhinha, lavatório de ferro também, com espelho, guarda-fato, uma mesa, e suspenso na parede fronteira ao leito o seu velho Rapto de Ganimedes. -- A única joia que do radioso bazar de S. Cristóvão ele havia conservado.
Continuava, acima de tudo, adorando-a. Era a melhor, a mais latejante parcela de si mesmo. Era o seu ídolo, o seu talismã, a sua divisa, o seu timbre. Votava- lhe um culto incondicional, uma ardente e religiosa ternura. Delicioso traslado da sua alma... síntese dulceral dos seus desejos, das suas ambições, dos seus ideais, do seu destino. Era o símbolo das perturbações da sua carne, era uma celeste alegoria «travestindo» em graça as abominações do seu viver.
Nas suas horas mais sentidamente angustiadas, nas frequentes intercadências de dor e de desânimo, o barão, numa súplica, fitava-a... e estava animado, feliz... e estava contente.
Tinha pois o mísero onde abrigar-se e dormir. No que toca a alimentação, por igual queria o marquês, do melhor grado, fornecer-lha. -- Tão pouco era! -- Mas o barão não consentiu; e outros havia também com sincera compaixão disputando o exercício deste leve e caridosa ação. De forma que um filantrópico sindicato se formou, entre os mais chegados amigos, para lhe darem de comer, por turnos. Feita a coisa segundo as boas praxes associativas.
Organizada a escala, foi posta à votação. Não sem primeiro haver sido grandemente discutida e alterada. Levou tempo. Havia seus óbices, complicações, implicâncias. Por exemplo, o velho desembargador, para o qual tinha a comissão executiva delineado que desse de jantar ao barão às quintas- feiras, apressou-se objetando e protestando -- que não, que não lhe convinha... porque precisamente às quintas-feiras costumava ele ter «gente boa» a jantar. Queriam outros o homem ao domingo; um bacalhoeiro somítego reclamava para si os dias de magro; outros julgavam-se desconsiderados por lhes terem distribuído o último dia da semana.
Organizada por fim, a poder de emendas, remoques e discursos, a lista definitiva, foi uma cópia passada às mãos do barão, que se comprometeu a cumpri-la pontualmente. Almoçava de ordinário com o marquês; e à hora própria depois, de tarde, apático e servil como um cão vadio, lá ia ele pelas mesas de cada um, mendigando. Ia o mais tarde que podia, para não ter que demorar-se... abancava, jantava... e de seguida escoava-se, no primeiro instante favorável, sem se despedir, sem desarranjar ninguém, híspido, selvagem.
Faltava dinheiro, pouco que fosse, para extraordinários. O marquês arbitrou-lhe uma mesada; a qual não podia chegar ao dissoluto para a orgia constante dos desregramentos. Daí, toda a casta de expedientes armados à obtenção de dinheiro. Pedia a um, pedia a outro -- que no dia seguinte satisfazia, e esse dia seguinte não vinha nunca. Em apertos maiores, vingava-se no minguado recheio do seu guarda-fato, que sucessivamente corria a empenhar, sem vergonha. Uma ou outra vez, chegou a ter o mesmo destino pelintra a roupa da cama. E andaina nova de vestir que lhe dessem, se vinha em dia crítico -- e era o trivial --, mal chegava do alfaiate estava logo no prego.
Valia que à atoada febre dos desfalques andava sempre solícita provendo, sem uma admoestação, sem uma censura, a bondosa alma do marquês.
Raro saía de dia o barão. Furtava-se a relações, fugia à convivência. O demasiado incidir de estranhas atenções na sua pessoa fazia-o sofrer. A luz do sol causticava-o, estonteava-o o ar das ruas, o bariolado marulho da multidão causava-lhe vertigens. Baldado para a luta, morto para o conflito quotidiano dos interesses, incapaz de ação, de deliberação, de qualquer ativa ingerência no incessante estrebuchar da vida, bem asperamente sentia o pobre nevrosténico a dolorosa impressão da sua inutilidade... bem via como andava constituindo um escandaloso ser de exceção, bem via até que ponto lhe era hostil a natureza! Por isso, antes que o eliminassem, eliminava-se. Ao impulso de uma resignada abstenção, tímido e covarde, fechava-se de hábito no seu cárcere voluntário, antes que a grande lei do equilíbrio social o cuspisse da sua engrenagem.
Para mais, cada novo passeio que arriscava sob a franca e sonora luz do dia pleno, fatalmente volvia-se-lhe noutras tantas deceções, tornava-se-lhe em dilacerantes motivos de tortura. Porque agora o conspecto das mulheres, o seu vivo e petulante volitar na quente auréola do sol, na crepitante confusão da rua, já não conseguia dar-lhe a menor impressão... deixavam-no insensível, frio, indiferente! E a descoberta deste árido sentimento, junta ao reconhecimento paralelo da sua absoluta impotência em debelá-lo, mergulhava-o numa tristeza profunda, arrastava a melancolia inicial do seu carácter a uma amargura cruciante, a uma esverdeada e feroz misantropia. -- Aquilo tinham baixado já... era horrível!... as fatais depredações do seu temperamento, a pavorosa assolação do seu espírito!
E, assim, o desgraçado preferia levar os dias amadornado e lânguido sobre a cama, parada a vida -- numa noite artificial, tendo cerrado a janela --, numa lassidão muscular, numa atonia da vontade, num alheamento... de longe em longe saudosamente visionando as ridências do passado... e ansioso ao mesmo tempo porque a treva viesse, e toda a energia fervidamente posta no concertar do plano para a vagabundagem da noite.
Então, à medida como as primeiras sombras caíam, uma vaga inquietação ia por ele subindo. Fechava-se â noite, e o que quer que era de bestial, de empolgador, de rubescente, despertava nele e galvanizava-o. -- Agora, sim -- com a flama nervosa e pulsátil do gás se queria ele!... Impossível de conter-se.
Não cabia no quarto, abafava, suava. Numa pressa saltava do leito, punha o chapéu, recolhia ao bolso alguma prata miúda que de acaso lhe restava, e ei-lo descendo tortuoso e breve ao terreiro das suas façanhas.
Na meia treva das praças começava, roçando ao de leve os seres efeminados que com ele vinham cruzar, de nádegas salientes e olhar provocador, um indecente bolinar de quadris, a mão na algibeira, abaulando o dorso. De ordinário tipos inferiores, cifosos, dissimétricos -- pastinhas sobre a orelha e gorro de peles na cabeça, jaqueta, escanhoados --, suspeitosos e expertos rodopiando no mosaico, um olho no freguês e outro na polícia.
Com eles trocava o barão qualquer frase banal, a entabular relações: -- o tempo como estava... lume para o cigarro... se andavam passeando. -- E era extraordinária a crise de eretismo que no pederasta acendiam as primeiras palavras destes seres inomináveis.
Daí, a breve trecho, entendiam-se, armavam confiança, eram sócios, amigos. E a pândega travada. Depois, alegremente, com uns, com outros, enquanto havia chelpa, voava a noite num instante. Preludiavam-se amores pelos bancos, bebericava-se nas tascas, subia-se de braço dado aos «paraísos» dos teatros, ia-se ocultar na sombra de crapulosos antros a satisfação de apetites monstruosos. E por fim, derretidas as forças e acabada a patuscada, ao remoto impulso da fúria sensual, derreado e vibrante dos últimos paroxismos, o barão seguia ainda desdobrando, até ser manhã, numa idiota vagabundagem pelos altos, bruto, estafado, as derradeiras contorções do seu tarantular sinistro.
Já começavam então de espaço apontando e desdobrando-se os primeiros sintomas da doença que o minava.
Primeiro dores nevralgiformes intensas, porém de uma vaga localização, de uma incerta e caprichosa incidência, atacando hoje uma perna, a outra amanhã, daí a dias as duas juntamente; desaparecendo tão rápido como surdiam, e operando por sacões, bruscas, fulgurantes. Era como se saltassem a verrumar-lhe os ossos, como se estivessem a picar-lhe a medula. Tão violentas por vezes, mormente de noite, tão fundas, tão agudas, que obrigavam o doente a soltar gritos desesperados. E raro lhes dava para se manifestarem em territórios nervosos localizados. De ordinário passeavam pelas articulações a sua ação devastadora, agora num ponto, logo noutro, fugazes, rebeldes, zombando de indagações, iludindo as pesquisas, por completo escapando aos rigores da topografia anatómica.
Isto junto com dolorosas sensações de estrangulamento em volta da cinta, no tórax, nos rins, em toda a região intestinal; com sobressaltos de tendões, súbitas alternâncias de frio e calor nas extremidades, formigueiros, cócegas; nevralgias viscerais, violentas crises gástricas, vómitos biliosos; e um sentimento de opressão nos brônquios, sufocações, estases de pulso, dores lombares, tenesmos.
Esta inquietante série de sintomas vinha e causticava o barão dias e dias, às vezes semanas, de seguida; depois de repente, sem causa apreensível, remitia, aplacava-se, desaparecia por inteiro; e tudo fazia então supor que o doente reentrara na saudável pleniposse do seu normalismo psicológico.
Tanto, que a princípio julgou o médico, chamado pelo marquês, ter apenas que haver-se com algum caso trivial de reumatismo, ciática ou diabetes.
Porém não tardou a evidenciar-se uma outra convergência terrível de sintomas, nitidamente demonstrando que o mal do barão era da natureza daqueles contra cuja perniciosa invasão ainda hoje não tem poder a medicina.
Começou ele a queixar-se de que tinha nas plantas dos pés o que quer que fosse de importuno e estranho. Parecia que lhe tinham colado a eles umas palmilhas de borracha. Não sentia bem o chão, como antigamente. Achava-o mole, escapava-lhe. Assim como se andasse sempre sobre alcatifas de preço, sobre fofos colchões de lã ou de penas, sobre odres cheios de água. E nesta sensação, é de saber, a mesma fugaz alternância das nevralgias, ora num pé, ora noutro, ora nos dois ao mesmo tempo. De ocasiões mesmo a parestesia tornava-se geral, alastrava pelos membros superiores, pelo tronco e cabeça, tomava-lhe todo o corpo, e o doente chegava a perder por inteiro a sensação da resistência e do contacto. A ponto que, deitado e às escuras, não recolhia a mínima noção do decúbito, e parecia-lhe que pairava no ar, flutuando.
Uma manhã, no quarto, quando se lavava, como o barão fechasse os olhos ao mergulhar o rosto na bacia, perdeu o equilíbrio e caiu desamparado.
Entontecido e surpreso, erguendo-se, atribuiu o caso a algum acidente obscuro de vertigem. E estranhava. -- Estava bom... não sentia nada... -- Todavia, observando-se, inesperadas fontes foi colher de terror, de angústia... -- Porque, voltando a fechar os olhos, logo uma grande hesitação o pregou no mesmo ponto onde estava; perdera a noção das direções, dos lugares, das distâncias; incapaz de dirigir as pernas; se arriscava um passo, numa instabilidade de ébrio, e em riscos de cair, oscilava e divagava. Abria os olhos, andava bem.
Sentou-se num banco sem costas e sentia-se seguro, à vontade, firme o tronco, direita a espinha... Fechou os olhos, perdeu o equilíbrio, ia a cair novamente.
E impossível ter-se direito, com os pés juntos, sem uma larga base de sustentação a ampará-lo. Se tal tentava, logo, como uma torre sem alicerce, oscilava e pendia.
Evidentemente, era-lhe imprescindível que a vista suprisse à falta do sentido muscular. Certo que uma artropatia renitente lhe verminava o arcaboiço. Como se o atirasse para o vácuo a sombra.
As belas pupilas dos seus grandes olhos, negros e ardentes, tinham inverosimilmente apequenado; reduzidas quase ao diâmetro de uma cabeça de alfinete -- uma delas mais do que outra. Como duas contazinhas de missanga.
E as íris paradas, vidrentas, mortas... sem reagirem à luz... para este caso por inteiro perdida a sua normal contractilidade. Deficiência a que uma atrofia parcial de nervos viera somar uma ligeira ponta de estrabismo.
Junte-se a estas alterações trópicas do aparelho visual a paralisia de certos músculos faciais, produzindo um leve descaimento da pálpebra esquerda e dando-lhe ao conjunto das feições um ar de máscara, empastando-as numa bruta e mineral impassibilidade, e poderá imaginar-se a pungitiva impressão de descalabro, entre grotesca e repelente, entre aflitiva e cínica, que flagelava agora a fisionomia esquálida do barão.
Tudo fulminantes sinais do quadro clínico da tabes, a tenaz e implacável doença, que zombando, pelo geral, da terapêutica, sabe com desdenhosa e feroz segurança desdobrar o seu trabalho de sapa até completa imobilização das vítimas na paralisia ou na morte.
Como atacavam o mal ainda próximo da origem, ensaiaram no entanto os médicos a ergotina, a morfina, o nitrato de prata, os narcóticos. Sem resultado.
A terrível afeção medular seguia acelerando numa escala rapidamente depressiva a desintegração orgânica do sodomita. Não desanimaram, ainda assim. Uma diagnose do mal mais minuciosa fez-lhes suspeitar na sífilis a causa propática da doença. Então fizeram uso das fricções mercuriais. Mas breve o novo medicamento deu em resultado o agravamento agudo dos sintomas -- intolerável exacerbação das dores, principalmente. A intoxicação argírica lavrando glácil num terreno favorável. Com o que o barão, exasperado, tornou-se rebelde ao tratamento: à hora da visita escapulia-se, ou corria os médicos a palavradas, lançava à rua as drogas, rasgava as receitas, desatremava em fugir de casa, dias seguidos.
Estoicamente resolvera entregar à sorte, à fatalidade, à natureza, ao diabo, a final resolução -- fosse ela pelo aniquilamento -- das agruras subsequentes do seu martirológio, das estâncias cruéis do seu calvário.
Correram anos. Na mesma dissipação arrastados; de contínuo o destino do barão rolado, como um calhau, na maré dos seus instintos.
Entretanto, acentuavam-se os fenómenos propriamente atáxicos, a perversão do sentido muscular tinha assustadoramente progredido. O barão sentia-se ativo, forte; erguia pesos, lutava, andava muito; tinha a consciência de guardar ainda consigo uma boa soma relativa de energia. Simplesmente, essa energia escapava-lhe ao desejo; não lhe obedeciam os músculos; não era capaz de executar o que queria, de pôr ordem nos movimentos, encaminhá- los, discipliná-los. -- A sua capacidade motriz em «greve» contra o poder da vontade.
Tinha horas no dia em que sobrexcitações paradoxais lhe atassalhavam a epiderme; tomava-o um tremor convulsivo; assaltava-o uma surdez completa, mordia-lhe uma ânsia no coração, irradiando para o braço; e ei-lo impotente para executar os mais triviais movimentos -- levar o comer à boca, abotoar um botão, pôr a gravata, calçar uma bota. Não havia então meio de dar firmeza às mãos, de erguer, dirigir os braços... perdia o tato, supunha-se no ar... não atinava com as pernas.
O andar punha-lhe a devastação atáxica em toda a sua evidência.
Impossível atirar com decisão um pé adiante do outro, marchar em linha reta. Havia de o barão caminhar aos torcicolos, abanando, devagar, numa incerteza; e as articulações presas, ferrugentas, as pernas atiradas hirtas, o calcanhar pesado; e passo por passo o esbugalhado olhar cingido a cada um dos atoados movimentos, receoso, atento.
As vezes, no quarto, a esconjurar o mal, renhia o barão em fúteis, em baldados exercícios: -- procurava firmar-se no peito do pé, dar maleabilidade à rótula, avançar, sem desvio, entre as riscas paralelas do sobrado. Mas sempre, ao cabo, a inane batalha o afogava em desespero, porque nenhuma destas coisas, dantes tão elementares, tão naturais, tão simples, lograva o desgraçado conseguir.
As aberrações visuais eram frequentes. -- Como quando ele ia pelo chapéu, que julgara ver sobre uma cadeira, e aí abaixava a mão, uma e outra vez, a arranhar na palhinha, que por fim reconhecia estar limpa, sem nada em cima... e, contudo, o chapéu ia jurar que o tinha visto ali! -- Se fixava um objeto com demora, as linhas deste iam perdendo a coesão, a harmonia... numa oscilação de fadiga aumentavam, confrangiam-se... e, de reduzidas, chegavam mesmo a desaparecer, Ou, de repente, era a baronesa que via junto dele, o marquês, o criado que o servia; ou simples pessoas conhecidas, com quem já de há anos se não avistava. E a cada instante o enganar-se com o lugar da cama; e de cada vez se lhe figurava do seu lado a porta de saída.
E as alucinativas visões, as surpresas de delírio, as mentais fantasmagorias que, à aproximação do sono, a deliquescência nervosa lhe preparava! -- Eram fulvas correrias de monstros, que em torrentes lhe golfavam pelo quarto, montando-se e devorando-se, descomunais, rabiosos; enxames de anões, coxas de bambinos, ventres de gigantes, espasmos famintos de maxilas descarnadas; eram mutilações obscenas, incongruências de horrores, violações, carnificinas... tudo num estrupido infernal, num congestivo caos, numa explosão, numa desordem... tudo ao estricote dançando nos meandros da loucura.
Agora, como que a desmentir os estragos galopantes da doença, vinham assomos de vigor eletrizá-lo; vitalizava-o uma falaz regressão das antigas energias. Então a sua voluptuosa bulimia exacerbava-se. Uma exageração mórbida do apetite genital atormentava-o. O pobre tabético abrasava nos furores de um priapismo molesto, insaciável. Os derramamentos seminais atropelavam-se, numa atónica incontinência, fáceis, abundantes, intervalados de insónias, suores úricos, medos, pesadelos. E frequentes poluções o mínimo pretexto lhe causava -- às vezes a simples lembrança de um dado prazer que trazia em mente, ou o desabrochar de um desejo, ou um encontro inesperado. -- E então sonhava que gozava outra vez Eugénio, ou o marquês, ou a baronesa, transformada em homem por uma formidável adição de sexo; ou figurava-se ele ainda criança, no colégio... vinham o pai e um jesuíta admoestá- lo... e, num prazer aziumado de remorso, gozava também aos dois, seguidamente.
Ao mesmo tempo, a porção de feminilidade subjacente neste ascoento epílogo de raça, fizera explosão por completo. Ansiava o barão por entregar- se. Queria de força realizar as abjetas imaginações, as execráveis quimeras que, do berço, lhe arranhavam a sensualidade. A perversão do sentido genésico ganhara por fim o ascendente. Por isso agora a circuitagem de noctívago do barão não coleava tanto de volta dos efebos, como em roda dos tipos de músculo e de forca, dos marujos, dos militares e dos cocheiros. De dia, na meia treva do quarto, furioso e maquinal como um símio, masturbava-se. De noite, por mero prazer, prostituía-se... E era pavorosa de ver a esmadrigada figura do sodomita, quando, raro, lhe acontecia, com sol, vir derivar, numa pressa, num terror, ao longo das ruas. -- Foragia pelos panos de sombra, deslombado, trémulo, uma grossa bengala sustendo-o, o passo periclitante, amparado aos prédios. A última palavra o seu traje em desmazelo e porcaria.
E a espinha em S, o ventre à frente, côncavo o peito, o rosto socavado.
Consequência fatal do onanismo, a acnosa e a psoríases dermatosavam-lhe o rosto de uma maneira horrível. Apostemada e rubra, toda a pele estalava de dartros, avolumava em flegmoses, escorria podridões, rebarbava de escamas...
e no bigarrado ordume da pustulosa orografia medravam cachos de pequeninas vesículas, brancas, metalizadas, duras, como empolas de um metal que bolhara ao fogo. Esponjoso, amorfo, o nariz porejava sânias podres. Pela adinamia muscular da face a mesma impassibilidade estampada, de máscara ou de cadáver. A pálpebra esquerda, descaindo mais, arregaçara, deixando a descoberto a redondeza do globo ocular e a hipertrofiada rede vascular da mucosa, na qual um excesso de sorosidade lacrimejava sempre. E era incerto, perro, o andar, todo em grandes passadas inteiriças; as pernas, infletíveis, brusco atiradas para a frente, como impelidas por molas... e a esta torturada locomoção os dedos das mãos ajudavam, num ansiado vermicular, torcidos em paroxismais carfologias.
Relapso na vagabundagem. Era de noite a sua vida. Estava na intimidade de todos os malandrins, conhecia de alcunha os gatunos célebres, sabia a toca dos mais incoercíveis vadios. Tudo seus familiares. Tratavam-no de «tu», espiavam-no ferozmente, chamavam-lhe «pinguinhas». Ele que aparecia, e era uma festa! Daqui e dali a correrem, fantasmáticos, longos na desfiguração da noite, perfis de súcubos, gibas de mariolas, arestas de gavroches, chapeirões claudicando, toda a fruste população da sombra. E aí a malta a ganir de roda do osso; todos a estender-lhe a mão, a travar-lhe do braço... havia ódios, bulhas, ciúmes, defendiam o seu lugar, disputavam-se primazias... e lá o levavam, num alegrão, para longe, revistavam-no, espremiam-no, e se o desgraçado não levava dinheiro, por fim batiam-lhe.
O dinheiro, de facto, faltava muitas vezes. E achava-se inteiramente esgotada na improvisão dos meios de alcançá-lo a astúcia do barão. Chegou a pensar em pedir esmola. Instantes vinham mesmo de aguda penúria, em que o salteava o impulso de desfazer-se da sua amada gravura de Ganimedes. Mas era um relâmpago. Breve acudia a afogar-lhe o desígnio um frio de superstição, um terror sacrílego.
Quando saía, depois de jantado, uma noite, de casa de Henrique Paradela, o barão viu tentadoramente luzir sobre o mogno de um consolo, na salinha de entrada, uma moeda de prata. Teve um estremeção de avaro, um calor congestivo afogueou-o. E não largava de olhar... aproximou-se.
-- Era uma rica meia-coroa, com efeito!... Parecia providencial aquele acaso... tinha graça! -- Não se resolvia a sair... hesitava. -- E então que naquela noite ele estava sem vintém, precisamente! E a tentação de guardar a moeda ia-o levando de vencida. -- Não saberiam que tinha sido ele... Que mal fazia?... -- Então, abafados os últimos escrúpulos e seguro de que não era visto, abaixou-se de salto, lançou-lhe a mão, guardou-a e saiu.
Ainda nessa mesma noite, deu logo D. Leonor pela falta do dinheiro. E mil suposições, mil conjeturas sobre quem teria sido, logo desfeitas, todas inaceitáveis, todas absurdas. Até que, constrangidamente, mas ao mesmo tempo movida não sabia porque estranha lucidez de instinto, a mulher do Paradela aventurou:
-- Só se o barão...
Censurou-a o marido. -- Não chasqueasse da miséria... Era até falta de caridade. -- No entanto, pelo sim, pelo não, a verificar, novas placas de cinco tostões foram deixadas, na mesma sala, sempre que o barão devia vir, a título de experiência. Invariavelmente, desapareciam.
E foi quando Henrique, apiedado, mandou que, todas as vezes que o seu velho amigo viesse jantar, uma moeda de prata fosse posta sobre o consolo da salinha de entrada.
Nessas noites, infalível, bródio largo até desoras, com a corja dos salafrés filada. Eles mesmos marcavam o itinerário. «Corriam-se as capelinhas».
Aturdido, contente, o barão obedecia. De ordinário mal chegava o seu cálice aos lábios; incendiava-o a aguardente. Não obstante, sempre o primeiro a entrar no botequim ou na tasca: bondava-lhe o prazer de dessedentar os outros; gostava de vê-los beber, e pagar ele.
As frascárias estações do beberete iam sabiamente intervaladas de acolhidas à Calçada do Garcia, aos becos do Forno e da Ricarda. Aí, no mistério dos antros defumados a alfazema e candeias de petróleo, o sinistro andromaníaco sofria os mais aviltadores exercícios, prestava-se às mais secretas exações, às mais infames promiscuidades. E assim, nesta vesânia circular em volta às mesmas abjeções e aos mesmos vícios, teimava esbodegando a dignidade e a vida -- amarrado agora à cancela das casas suspeitas, logo rompendo a tragar mais uma gota de vitríolo na última baiuca ainda aberta, espojado depois nas enxergas dos alcouces -- pelos ínfimos bosteiros da cidade solto e doido completando o ciclo prostibular do seu destino.
CAPÍTULO XVI
Estava uma senhora a Emazita, filha dos Paradelas. Alta, delgada e débil, o seu meticuloso porte, entre reservado e ingénuo, entre orgulhoso e tímido, era um documento enternecedor de boa assistência doméstica, era toda uma bíblia de educação e de carinho. Vestia sempre de branco, assim como a sua alma. E na clara expressão dos olhos cor do sumo do tabaco, essa perturbadora e indefinida metamorfose se operara, anúncio da transformação da criança em mulher.
Notável a impressão que a sua esbelta figura de noviça na alma palustre do barão despertava. -- Notável sobretudo pela inesperada extravagância, pela teimosa e grave intensidade.
Conhecendo-a de pequena, longe de toda a ideia sensual, sem se aperceber das leves mudanças nela dia a dia acrescentadas, afizera-se a olhá-la como uma coisa eternamente infantil, um bibelot a mais, uma adorável miniaturita, que ele gostava de contemplar e que amava de hábito, mas a frio, porque lhe era agradável de ver, unicamente. Votando-lhe assim não mais que este fundo pagão de ternura egoísta que frivolamente nos prende à posse de um quadro, de um livro, uma joia, um artefacto raro, um móvel precioso.
Mas muito outro era agora o sentimento... agora que na criança a evolução núbil terminara. Aterradamente sentia o barão essa doce figura de virgem atraí-lo, reclamá-lo, impor-se-lhe... e na presença dela o que quer que era de impressivo e sério acabrunhava-o.
Não era um grosseiro alarme dos sentidos, nem o apetite animal de um outro sexo. Era um estremecimento redentor, uma emoção nobre e sagrada, uma irial fascinação, um banho lustral de aurora. Era como o enlevo de um coração para outro coração, o avoejo de um espírito para outro espírito, o extático aspirar a uma sublime ligação sem sexo. Era o ardente pelidar pelo refúgio numa transcendente amizade, num radioso platonismo... e abrasados os dois no mesmo halo de ignorância e de pureza, lá muito em cima, longe do mundo, no alto céu hissopado de estrelas.
Quanto mais de longe o barão atentava no estranho sentimento, mais poderosamente o via avolumar. Não havia ilusão possível. E o barão assustava-se. -- Que significava agora aquilo?... Tinha lá jeito! Estava doido!... Até aonde o não poderia levar esta paixão sem nexo! -- Parecia-lhe uma profanação. Fustigava-o o pejo sincero de macular com a peste das suas exorações, embora santas, puríssimas, a candura abstemial da divindade. E não podia compreender. -- Como! Pois era agora, quando ele mais fundo e de vontade mergulhava no atasqueiro, que semelhante sentimento o vinha alvoroçar?... Verdade que o vício é nocivo ao amor. Assim como abastarda o prazer, o deboche acanalha a alma. Porém -- de cada vez que a inanidade do gozo físico nos castiga os nervos --, sempre no interior de toda a humana criatura, ainda a mais ínfima, um ansiado apelo se eleva para outra ordem de emoções... há uma alada aspiração sentimental, que será sempre nosso destino visionarmos, e que sempre também, incoercível, nos escapa... É da essência humana o fenómeno. Mormente se, como com o barão sucedia, nos aquece o impulso um resíduo atávico de misticismo e de nobreza.
Por isso, nas bestiais prostrações da alta manhã, quando o pederasta vinha espapaçar-se inerte sobre o catre, e na madorna da vadiagem e da luxúria a carcaça jazia extenuada, então a imanente porção espiritual do seu ser, limpa da jaça dos sentidos, as asas livres, recobrava a nativa força, ensaiava voo, desdobrava-se... e carinhosa descia a ungir essa rebarbativa podridão do seu balsâmico e almo refrigério... -- Na branca nudez da cela havia luz... uma luz de éter e de sonho... luz de outros mundos. E o barão via um altar armado, e outro, e outro -- para onde quer que olhasse --, fiéis reproduções do seu fresco templozito de inocente... flores, muitas flores, a catedral de gesso, o frontal de damasco, as jarrinhas de Saxe, a tribuna dourada... até a si próprio também se via, rosadito e alvo, na frente da toalha de renda, por sobrepeliz um xailezinho da mãe aos ombros, composto e solene, oficiando. Uma serenidade azul divinizava as coisas. Rolavam ao alto ondas de incenso. Mais propulsiva uma delas, a meio do altar parava, adelgaçava... Um esbelto corpo feminino a definir-se... e em torno um nimbo de glória. Era a Emazita! pairando diáfana, branca, ideal, na branca nudez da cela. Estendia-lhe a mão, sorria-lhe. Numa assunção virginal, numa auréola divina, levando-lhe aos pés a alma, ia subindo... Anjos invisíveis salmodiavam uma música celeste... -- E apaziguado, feliz, com uma claridade no sono, o barão adormecia.
Depois, pelo dia adiante, ao sagrado calor da emoção transfigurado, o barão analisava-se. E este exame de consciência horrorizava-o... Cheio de asco pela hediondez animal da sua vida, prostrava-se de rojo perante a branca evocação, murmurando palavras de atrição e de fé, rosários de súplicas, ardentes protestações de arrependimento e de vergonha: e na ara do culmíneo sentimento votava o holocausto fácil do seus vícios. Mas vinha a noite, mordia-o a mesma vaga e rubescente inquietação, rugia a carne... e a bordelesca dissolução recomeçava.
Diante da cândida e tímida criança, nunca o menor vislumbre deixara apontar da estranha comoção que o trabalhava. Defendia-lho um natural sentimento de decoro, a clara noção do absurdo, e ao ridículo um medo imensurável. Mesmo à transcendental essência do seu amor era o que melhor quadrava -- aquela solitária exoração na distância, fervorosa e íntima, recatadamente velada, como um anjo num berço, por essa incoercível bruma de mistério. Na frente da aurorai criatura, o barão limitava-se a olhar... parado numa adoração interior, uma alta ideação embevecida.
Todavia, momentos lhe vinham em que as demasias da paixão ardiam por expandir-se. Irreprimivelmente queria o barão contar, fixar, gravar o que lhe ia lá dentro; queria deixar, sobrevivendo-lhe, qualquer marca da esplendente agitação das suas horas boas. Qualquer coisa, em suma -- confidências, cartas, litanias, versos --, embora muito aquém do seu ideal, embora bem elementares e bem medíocres, mas que sobre as suas cinzas tivessem o dom de estilar daqueles olhos celestes uma lágrima de piedade.
Então, afanoso, lesto, como nos seus melhores tempos de improvisação literária, o barão sentava-se à mesa, para escrever.
Mas debalde, insofrida e trémula sobre o papel, a mão esperava! Não achava por onde começar. A sua anemia intelectual era completa. -- Nada! Nem uma linha, uma frase, uma oração, uma letra... Lá dentro tanto! tanto que sentir... e não achava meio de o dizer! -- Vinham fumantes, em cachão, as ideias bater-lhe contra as paredes do crânio, mas não conseguiam a ansiada forma que as plasticizasse. Irremediavelmente, a expressão faltava!
E, de o verificar, o barão tinha horas horrorosas. Era uma agulha a trespassar-lhe a alma... atirava a cabeça contra os muros, batia-se, torturava- se... desfalências histéricas o imobilizavam, horas, apirético, morto, sobre o catre: ou pelo sobrado rolava em crises epilépticas de dor e desespero.
Natural que à filhita dos Paradelas a presença do barão não agradasse.
Nutria por ele uma invencível repulsão física; arrepiava-a de nojo e de terror aquela afrontosa e senil leprosidade. Inelutavelmente. Ele a entrar e ela a sair das salas... não lhe estendia a mão, quase não lhe falava. Poderia alguma vez, por caridade, querer ser benévola com o hóspede, mas não o conseguia. Era uma repugnância absoluta, essencial, inteiramente rebelde ao domínio da vontade.
Tão depressa como suspeitou ser origem do aviltoso sentimento, o barão sofreu enormemente, salteou-o um frio de morte, na solidão do seu quarto chorou lágrimas de sangue. A confirmação da suspeita fez-lhe a dor incomportável. Não podia com ela... E então se viu esse torpe escarro de homem, inteiramente varrido de senso moral, apático, derrancado, que sofria todo o insulto, que não reagiria a uma bofetada, debater-se e consumir-se ao mais pungitivo calor da sensibilidade, por ver que não passava de um vil objeto de tédio e de desgosto para a ideal evocação das genuflexões da sua alma e das agonias do seu cérebro.
Progressivamente arisco e sombrio, deu em falhar em casa de Henrique, dias, semanas seguidas. Até que um dia houve, depois do qual nunca mais entrou em casa do amigo. Bondas vezes vinha este à beira dele, solícito, meigo, desafiá-lo: -- não fosse esquisito, que viesse... e não se cansava, tinha uma carruagem à porta. -- Inútil. A termos que o bom do Paradela resignava- se e retirava como tinha vindo, tristonhamente filiando nalgum pavoroso desarranjo mental a inexplicável transformação do amigo.
Breve, a todos os outros conhecimentos e relações do barão se estendeu este apartamento de fera, entre altaneiro e selvagem, meio soberba, meio loucura. A pouco o barão embirrou em não subir mais a escada dos amigos.
Por muito favor, se lhes entrava a porta, era para comer, em baixo, com os criados, na cozinha. Com o tempo, isto mesmo deixou de fazer. De todos fugia sistematicamente. -- Não precisava deles... Como as aves e os vermes, iria vivendo, ao acaso, à lei da natureza.
O marquês tinha morrido, deixando-lhe no testamento assegurada a permanência da mesada e o usufruto da pequena cela no rés-do-chão do palácio. -- Isto, sim, continuava ele aproveitando; benefício era esse que não tinha o menor escrúpulo de gozar, porque o autor dele já lá estava, desfeito na terra, donde não poderia vir moê-lo com humilhações, exigências, escárnios, ditos! -- Para o pobre louco tudo agora eram inimigos. Perante o seu torvo critério, aquele tédio e aversão de Ema tinham alastrado por toda a gente. Daí, um cada vez mais entranhado horror a tudo quanto fosse humano. Passava dias sem tomar alimento. E não lhe fazia diferença. -- Para o que ele comia!... Apenas, e isso raro, com desconfiança, frequentava a escória, e mal então consentia aceitar auxilio -- um caldo, um pão, uma «carocha» -- à munificência macanja dos malandrins que o tinham explorado.
Uma tarde, ao encontrar-se, em S. Pedro de Alcântara, com um cabo de Caçadores, muito seu achegado, de repente o barão olha-lhe para o braço, e admirado exclama:
-- Levaste baixa de posto!?
-- «Nentes», que ideia!
-- Então as divisas?
-- Está cego, ou doido? -- repontou o rapaz, enfastiado.
Com efeito, chegando os olhos, o barão apalpou... lá estavam; mas -- singular! -- não lhes discriminava a cor. Só se era de ser já noitinha, mas não as diferençava bem... via a manga toda negra!
Então, num movimento instintivo, ergueu a vista ao alto... e teve um desmaio cobarde. O verde das árvores não o diferençava também! Vestidas e bem vestidas estavam elas... pois se era Primavera! A forma, o recorte das folhas, tudo isso ele via, basto, opulento... mas negro! implacavelmente negro!... assim como negros, em roda, os batentes das portas, os varões das grades, os renques de persianas! -- Declarada a perversão da vista! -- dizia-se ele, alanceado. Era o começo do fim, irremissivelmente!...
Começara então de talhar-se a Avenida, iniciando Lisboa com o corajoso rasgar da luminosa artéria o tardio movimento da sua atual renovação. Era por toda a extensão da imensa rampa uma freima que alegrava, uma pressa, uma azáfama, um resoluto camartelar de faina e de progresso, uma ânsia valente de trabalho. Numa confusão babilónica, num caos colossal, com as novas construções os destroços baralhavam-se. Por toda a parte, em montão, caliças, barrotes no ar, troncos de rojo, cascalho, entulhos, barracas, ferramentas, paredões em osso, muros com espeques, aterros, covas, florestas de vigas, casas estripadas. Nesta inteligente desordem, neste raso desmantelamento um enxame de alvanéus formiga. Da vigorosa aluição do antigo vem o fresco gérmen do novo frondejando. De dia um arsenal, de noite um acampamento.
E o eco multiplica bizarramente toda a casta de sólidos ruídos: o ranger das carroças na terra mal assente, o picar dos mármores, o carpintear nas madeiras, e buzinas, deflagrações, chicotes, derrocadas.
Pelo vasto escampado vinha o barão de preferência passear a sua bravia febre de noctívago. -- Era ótimo, assim... tudo confuso, disforme... tudo às escuras! -- Rodava longe dos lumes das ceias dos operários, invadia os quintais, atascava-se nas covas, trepava aos monturos, ia triste colar à alvenaria fresca dos novos canos de esgoto a cabeça escandecida. Encarquilhado e adusto, como um figo passado, apequenara e sumira-se. Tão reduzido e tão vergado, que na rua a bengala a que se arrimava parecia, a par dele, enorme, e a sua croça puída salvava-lhe muito acima da cabeça. E era como a galopante desintegração material das suas células corria parelhas com a absoluta solidão moral da sua vida.
CAPÍTULO XVII
-- Não leu hoje o Notícias! -- perguntava Horácio Martins à baronesa, aquela manhã, na salinha de costura, com os olhos frios maquinalmente seguindo-lhe o giro da agulha do crochet entre os dedos.
-- Não, por exceção, é verdade... Que vem lá, que valha a pena? -- acudiu ela com indiferença, sem desfitar do trabalho.
-- Sempre casa hoje a Emazita.
-- Ah!...
-- Pois casa... A esta hora, justamente. Devem estar na igreja.
-- Mais uma infeliz! -- comentou Elvira, num suspiro reprimido, e erguendo o braço a puxar do novelo o fio de algodão branco.
-- Menina! sabe lá... -- arguiu do lado, abrindo os olhos, D. Jacinta, que dormitava, num sofá, com um gato ao colo.
-- Ou, quer dizer, esta talvez não -- remoqueou a filha --, porque ninguém lhe fez violência na vontade.
A transparente censura teve por prudente a mãe obtemperar, voltando ao sono. Porém, mordaz, Elvira continuava:
-- Oh! Se os pais futurassem o inferno de vida que talham aos filhos, quando lhes contrariam as inclinações! -- Novo suspiro, mais franco e mais cheio, aziumado da sua ponta de osga rancorosa. -- Poupavam-lhes horas bem amargas... e a si poupavam-se os remorsos.
Acolhida à sua cómoda reserva, a mãe ressonava.
-- Se é que os têm! -- gritou fitando-a, de sobrolho franzido, a filha.
Mas aqui subiu de ponto o ribombo nasal da matrona, e agora em falsete, com um estalido de língua, sibilado.
Horácio Martins, enternecido e grato, encarava bem na face a antiga namorada.
A doce modéstia da sua alma ganhara com essa aresta de diálogo um carinhoso incitamento. Na lânguida pupila nadava-lhe uma voluptuosa efusão de beatitude. -- Como ela lhe queria! -- Encarava-a, meigo, bem na face... e logo, como os dois olhares se cruzassem, repeso da ousadia, ele voltou a imobilizar os olhos frios na labuta daqueles dois pequeninos dedos, entre cuja miúda e alva redondeza um quadradinho branco, preso à agulha, enconchado e leve, ia crescendo.
Depois do rompimento com o marido, a seguir àquela noite inolvidável, em S. Cristóvão, e ao enxovalho brutal de Xavier da Câmara, é sabido que uma grave e prolongada doença teve, durante meses, jogada a vida da baronesa.
Restabelecida, não podia ela depois recordar sem calafrios aquelas cenas tumultuosas. Lembrava-as com horror. A sua agitada figuração aparecia-lhe num pesadelo, como um escabujar de delírio, como um atormentado acidente da doença. Chegava a duvidar que as tivesse vivido. Seguidamente mesmo, essa aversão, esse horror deram em estender-se a todo o tempo da sua convivência com o barão. Não podia ela agora, sem um frio na alma, recordar essa quadra ostentosa e vazia do seu passado, tão flamante de brilho exterior como negra e estéril de um puro sentimento. E tão convulsionada, tão à toa!
Fora um horrível parêntesis de febre e de loucura na burguesa ordenação da sua vida. Abominava-a... O próprio amor por Eugénio -- cuja falta a princípio lhe entornava nos nervos uma aguda saudade -- como fora uma paixão toda animal, de acaso, e em boa parte portanto no hábito alimentada, com a cessação do comércio libidinoso foi gradualmente delindo-se, esqueceu, passou. E assim, serenamente, a baronesa reentrara na monótona imbecilidade do seu viver anterior.
A Julita casara. O pai tinha morrido. Entretanto, Horácio Martins, a quem a delicadeza do coração tomava perspicaz, voltara a ser assíduo como dantes.
Num relance o antigo caixeiro adivinhara que Elvira lhe votava ainda os mesmos extremos de outro tempo. Logo, subsequentes demonstrações vieram confirmá-lo na dulcerosa descoberta. Eram, a cada hora, deferências, atenções, cuidados; eram pequeninos nadas a todo o instante sublinhando de afeição a sua discreta e doce intimidade. E então que a baronesa ostentava agora essa turbadora magnificência da mulher de quarenta anos, cuja expansão carnal foi na quadra própria favorecida por um ativo e gostoso funcionamento dos sentidos. -- Mais grossa e mais cheia, a testa igualmente lisa, fosforentes os olhos, na crassa alvura do rosto uns laivos quentes de bistre, os lábios mais vermelhos, o cabelo acastanhado. -- Por isso ele, estimulado, perseverava.
Reservado e sóbrio, nem por isso com menos ardor amava a baronesa. Os exageros da exterioridade são em última análise migrações de movimentos interiores, que na prodigalidade da falácia e do gesto vêm deploravelmente escoar-se e morrer à superfície. Quanto mais profundo enraizou um sentimento, maior a sua relutância em vir ao de cima fazer teatrais estadeações de força e de virtudes. Horácio amava Elvira ao seu modo, na medida do seu temperamento e do seu feitio, com um amor velado e triste, resignadamente.
E como o barão estava velho e ele já nesse tempo se tinha estabelecido, embalado numa esperança, ia ruminando.
Naquela manhã, a conversa seguiu arrastando por toda a casta de assuntos banais: -- a gente que já começava a sair para águas, para o campo, as modas da estação, a nova zarzuela nos Recreios, as corridas, o tempo, a Avenida... E aqui Elvira aplaudia, animava-se. -- Que bela coisa! Era chic, era grandioso, era fino... E já se fazia perfeitamente ideia de como havia de ficar. Um melhoramento digno de uma capital. Uma delícia! -- E a mãe, que entendeu já não precisava do disfarce do sono a escudá-la, prorrompeu:
-- Um bom destempero, não haja dúvida!... Aquilo agora aberto a toda a gente, cheio sempre de «poviléu»! Foi a morte do nosso rico Passeio!
-- Oh, mãe! que disparate!
-- E uma estragação de prédios!
-- Eu tenho dó das árvores... -- ciciou Horácio.
-- Isso outras crescem num instante -- observou Elvira.
-- E as comodidades que a gente ali tinha, também crescem?... -- disse a mãe, acrimoniosa. -- Era bem bom!... De modo que nós agora aqui na Baixa não temos «espairecimento» nenhum... Só se formos para o Terreiro do Paço, tomar a pitada da vazante e ouvir palavrões aos catraeiros... Sim, porque eu sempre quero ver onde há de agora tocar a música! Fizeram-na asseada os senhores da «cambra»! -- impou erguendo-se e sacudindo o gato. -- Paspalhões!...
E ao impulso da objurgatória saiu este edil manqué da sala, enquanto, repelido do colo desavergonhado, o gato arpoava, numa preguiça, a espinha, e Horácio voltava a olhar passivamente, nos dedos da baronesa, o giro breve da agulha de marfim.
Justamente a essa hora, nos Mártires, um burburinho festival rompia.
Grupos eventuais de curiosos, os degraus coalhados de mendigos, os sinos repicando alegremente, aparatos de trens pelas travessas. Pares solenes e inteiriços --casacas, sedas claras --, a espaços, vinham subindo.
Empavesados singram, num vagar, pelo estreito carreiro que no sórdido apertão dois polícias cavam a custo, e -- cumprimento daqui, sorriso dacolá -- sob o portal da igreja vão postar-se, junto ao cata-vento, onde um ranchito de albergadas de um asilo esperam também, sobraçando açafates com rosas esfolhadas.
Na primeira fila dos curiosos, disputando com furor o seu lugar, mais que todos interessado e ávido, consegue manter-se um velhinho, encarquilhado e sumido, todo dobrado, trémulo, com esforço suspenso de um longo bengalão que lhe passa acima da cabeça. Faltam os noivos. Progressivamente, num simpatismo animal, a curiosidade, o interesse alastram e sobem pela onda. Há dichotes, interrogações, pilhérias, malignidades, uma nota mordaz esparsa.
Estimula as expressões um brilho de malícia. E uma umbela de azul ao alto. E flamante o sol na sua dalmática de ouro -- um soberbo sol de esponsais, puro, quente e loução, aveludado.
Já sobe os degraus a noiva. De todos os lados acorrem. Adiantam-se os convidados. Redobra o tremor do velho. -- E a ingénua timidez, o espiritual recato com que a branca virgem segue! Confrangida, modesta, de puro enleio cativa na grossa agitação que lhe palpita em roda, numa nuvem de filós e rendas ela avança, ideal, intangível, um beijo de sol aureolando-a... as pálpebras lânguidas, veladas, um leve aurorar de emoção na face, presos os lábios, e paresiado o rosto numa extática embriaguez de sonho e de virgem.
Rompe uma admirativa vibração geral, há uma rápida corrente de atenção e de aplauso. Todos querem admirar de mais perto. Vê-se em apuros para alargar alas a polícia. Afinal, protestando, arruaçando, a multidão submete-se, recua. Só o velho não... porque não pode! Ele quer obedecer também, quer-se esconder, esforça-se, luta... mas as pernas recusam-se-lhe, são de pedra... e o asqueroso truão tem de ficar assim, sozinho, no caminho da noiva, atravessado.
Ao dar de olhos nele, Ema teve uma retração de desgosto; e ao mesmo tempo um polícia vinha e arredava-o bruscamente.
Que o barão sofresse do incidente, não parecia, a avaliar pela impassibilidade mineral do rosto... mas lá estava uma mortal, uma intraduzível angústia estertorando-lhe no olhar! A poder de chufas e encontrões, quando a noiva entrava na igreja, a turba repeliu-o. E o desgraçado naquele instante nem saberia dizer se sofria -- tão empolgativamente o desprezo de si mesmo lhe acalcanhava a alma!
Pela primeira vez na sua vida, pensou no suicídio. -- Era o melhor, o mais pronto... Quando ela, de braço com o noivo, saísse da igreja, era o melhor... atirava-se-lhe pra debaixo da carruagem! pra ela acabar de o esmagar de vez.
Seria o alívio dele... e a sua desforra! Meio infalível de lhe agoirar o noivado...
-- Mas faltou-lhe a coragem de ir afoito procurar a morte. E então vá de iludir: -- Podia não morrer... E que culpa tinha ela, afinal, daquela sua repulsiva ruína?... Quem o mandou vir aonde não era chamado?... Irresoluto, odiando-se, arrastou até casa; mas também não pôde parar aí.
Nas paredes, nuas, inteiramente nuas desta vez, faltava o seu inseparável talismã -- o Rapto de Ganimedes. Tinha-se resolvido, na véspera, a vendê-lo, para com o dinheiro obtido comprar uma camisa e um chapéu decentes com que fosse assistir à cerimónia. -- E tinha valido a pena!... -- Mas a desaparição da estremecida gravura fazia-lhe o efeito do último elo da sua vida, partido. E parecia-lhe um túmulo a cela, onde ele, entalado, asfixiava, pasto já das larvas, enterrado vivo! Com uma latejante opressão no peito e um coro interior de maldições rugindo, saiu novamente. -- Pra quê... pra onde?... Não sabia. Resolvido a acabar, fosse como fosse... Pois se o seu deus tutelar faltava, como continuar a atamancar a vida!?...
Noite do mesmo dia.
Na Avenida, sobre a direita, profusas rutilâncias de gás circundam um pretensioso barracão, de balaústres de ripas e arcarias de lona, que o município tinha deixado armar no sítio onde fora o Teatro da Rua dos Condes. O palpitar fulvo da luz dourava de uns gafos arremedos de opulência a cola ardida das toscas pinturas -- liras, capitéis e cornijas de açafrão, pórticos envernizados a breu, máscaras cor de tomate --, e iluminando em cheio, na frente, a escarolada lisura dos novos canteiros, fazia alucinativamente dançar, pela larga rampa acima, abstratas aglomerações, fantásticas sombras, intestinos de prédios, esqueletos de árvores, arquiteturas descomunais de pesadelo.
Atraído simplesmente pela luz, numa estagnação das faculdades, lasso, imbecil, tinha vindo o barão sentar-se num banco, frente ao teatro. Dentro a representação -- ouvia-se -- eletrizava o público. Em pleno «sucesso» a revista do ano findo. Acanalhadamente, as coplas em voga sucediam-se, feitas «bisar», num estrupido de palmas. Distraído e maquinal, o barão escutava.
Quando dois gaiatos, que vinham à «marmelada» das senhas, dão com ele, conhecem-no, e o mesmo foi que entrar-lhes logo uma gana de o judiarem.
Vão e sentam-se-lhe cada um do seu lado; e num simultâneo arranco largam a afinar com o coro de cara:
As irmãs da caridade, Pum!Moram na Quinta Amarela, Pum! Catapum!Agora, agora, Réu, réu, Pum!
E cada «pum!» berravam-no os dois aos ouvidos do barão, num achincalho.
Logo a frescata atraiu quanto desabusado marmitão farandolava perto. Uns chamam os outros. -- Aprendizes de ofícios, vendedores de jornais, «pilos», súcubos, clarins, cauteleiros. -- Breve, implacável, de roda do mártir fervilhava a troça dos garotos. Eram vaias, impropérios, coscorões, motejos, um infernal alarido. O mísero defendia-se, furtando o corpo, agitando os braços, esgrimindo o bengalão com desespero. O que não fazia senão estimular a algazarra. Um, mais ousado, arrancou-lhe o pau das mãos; outro foi, cruel, pelas costas e beliscou-o.
Ao esporão da raiva e da dor, o pederasta ergueu-se, a castigar o meliante; mas, no dar da volta, trepidando, vacilou e caiu em cheio sobre o béton.
Então, ao verem-no prostrado e inerme, rejubilam os malandrins, a assuada atinge proporções de delírio. Fazem-lhe roda, assobiam, apupam-no, atiram- lhe com os gorros; e apertando, apertando o círculo, e agachados, ferozes, de mãos nos joelhos, tudo era bradar; -- Vá! «pinguinhas», arriba!... Pum!... Então que é isso?... Aí, «seu» farsola! Aí, «seu pinguinhas!» E o farsola não se levantava. A custo erguia o busto, em torturados solavancos, sobre um dos cotovelos... e não podia mais! que as pernas jaziam-lhe inertes, como desligadas do corpo, desmembradas. E daí, desalentado, exausto, voltava a cair, uivando retalhantes gemidos, rolando numa agonia os olhos.
Camarinhou-se-lhe de suor a testa, um instante estrebuchou... e a cabeça pendeu, exangue, e a boca bolsou um líquido negro.
Foi quando a chusma dos gaiatos, suspeitando que o incidente descambara no que quer que fosse de comprometedor e grave, se entreolharam, num terror, e, dando costas, silenciosos, lestos, debandaram.
Dentro, no barracão, findara o acto. A esmadrigada construção tremia ao furor dos aplausos. E agora era a multidão que vinha fora gozar o intervalo, e ao sopro do entusiasmo repetia:
As imãs da caridade, Pum!Já usam pregas atrás.Zás! Catapum!Agora, agora, Zás! Catapum!Zás!
Lobrigando o velho estendido, foi um polícia acudir. Empurra com o pé, brada, ameaça. Por fim, perante aquela absoluta imobilidade, sério, debruçou-se. -- As duas pernas e um braço, partidos... o negro charco em que a face nadava, não era vinho, era sangue. -- Imaginara um bêbado, defrontou um cadáver.
MARÇO DE 1888 A MAIO DE 1889.
Appendix A
«Cobre», em calão.
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- TextGrid Repository (2022). Portuguese Novel Corpus (ELTeC-por). O Barão de Lavos: Edição para o ELTeC. O Barão de Lavos: Edição para o ELTeC. European Literary Text Collection (ELTeC). ELTeC conversion. https://hdl.handle.net/21.T11991/0000-001B-D8BC-C