LISBOA NO ANO TRÊS MIL

CÂNDIDO DE FIGUEIREDO

PROJECTO ADAMASTOR

.ORG

Ao notável historiador, poeta, romancista,

dramaturgo,

jurisconsulto e heróico militar,

O SENHOR GENERAL

D. VICENTE RIVA PALÁCIO

ministro plenipotenciário

dos Estados Unidos Mexicanos

em Portugal e Espanha.

Em demonstração de homenagem, reconhecimento e respeitoso afecto

of.

Cândido de Figueiredo

PREFÁCIO

Hipnotismo. — Ruínas da Europa. — O omnipotente russo Ivan LIV. — A civilização na Austrália. — A «Biblioteca Universal» de Sydney. — A prodigiosa obra de um sábio futuro. — Da Austrália ao Tejo.

Quando o doutor Das anunciou ao público lisbonense várias cenas de hipnotização, tive desde logo um vivo sentimento de curiosidade. A vida sugestiva pode realmente exibir os mais extraordinários cambiantes, os mais fantásticos panoramas, os lances mais belos e os mais terríveis.

Aproximando-me do hipnotizador, senti ao mesmo tempo o medo e a atracção do abismo, a ânsia do incognoscível, a sede de revelações sobrenaturais, e manifestei-lhe receosamente o desejo de uma experiência. O doutor anuiu, mas eu pedi a palavra para uma questão prévia, como se diz em São Bento, e parolei-lhe assim:

-- Senhor conde. Nasci montanhês, criei-me entre as serranias da Beira, bebi nas mesmas fontes onde se dessedentaram os heróis que vingaram a afronta de Galba e fizeram rosto ao cônsul Serviliano... (E a este propósito ingeri-lhe no tímpano toda a história de Viriato.) O grande caso, senhor conde, é que o sentimento da independência e da liberdade radicou-se em mim a tal ponto, que me horrorizam instintivamente as caprichosas e arbitrárias sugestões de Vossa Excelência -- não consentirei jamais que a minha consciência seja estranha aos meus actos; e, antes de hipnotizar-me, pretendo que Vossa Excelência se obrigue a não me sugerir palavras ou actos que não tenham a minha aprovação prévia. --

Concordou o doutor com as minhas reflexões, e pediu-me que indicasse a sugestão.

Neste ponto, desdobraram-se diante de mim os planos mais deslumbrantes. Que diria eu? que deveria eu fazer durante o sono hipnótico?

Ocorreu-me uma grande e legítima ambição: viver no futuro; guindar-me ao vértice das civilizações vindoiras, e estirar a vista por todo o passado, abrangendo num lance de olhos todas as sociedades extintas e todo o quadro ingente dos progressos humanos. Devia ser um momento assombroso.

Mas este plano, segundo o que me observou o doutor, era de execução dificílima. Para ler toda a história do futuro, seria mister um sono hipnótico de muitos meses ou de muitos anos, e à dificuldade acresceria o perigo.

Tive que modificar a minha ambição:

-- Visto que em poucas horas não é possível fazer a revista dos séculos, como se faz a revista do ano para os teatros de terceira ordem, desejo, senhor conde, que por duas ou três horas a sugestão me transporte ao ano Três Mil, e que me coloque no ponto mais civilizado do mundo de então, podendo eu saber se ainda haverá memória do meu país e o que dele se pensa.

-- Far-se-á o que deseja, -- rematou o hipnotizador. --

E, sem pronunciar uma palavra mais, sentou-se defronte de mim, tocando nos meus joelhos com os dele. Abriu as mãos e espalmou-mas nas regiões temporais, obrigando-me a fixar os olhos no seu olhar, vivo, penetrante e ao mesmo tempo imóvel.

Senti percorrer-me o corpo uma languidez estranha, e adormeci profundamente.

Pelo que eu soube depois, o hipnotizador ordenou-me que fosse sentar-me junto de uma mesa e que, tomando uma pena, descrevesse tudo o que visse.

Conservo, e conservarei, quanto escrevi durante o sono hipnótico; e é à vista desse escrito que posso contar hoje a assombrosa excursão que fiz, durante algumas horas, pelo mundo do futuro.

Num dado momento, esvaeceram-se-me todas as memórias do presente, perdi a consciência da minha primitiva personalidade, e achei-me dentro de um grande veículo aéreo, -- um balão do ano Três Mil1, -- em companhia de muitos milhares de passageiros, que falavam todos a mesma língua, o volapuque, e descemos na Austrália, um pouco acima do lago Torrens.

A Austrália era então a nação mais civilizada do mundo.

Extraordinários cataclismos geológicos e grandes convulsões sociais haviam transformado enormemente os velhos continentes. Grandes arquipélagos, muito celebrados nas histórias antigas, haviam desaparecido, submergidos pelo oceano. Em compensação, uma infinidade de ilhas madrepóricas, desconhecidas hoje, disseminavam-se alegremente pelo Pacífico, opulentas de vida e de vegetação.

A Europa e a Ásia, como duas cortesãs decadentes, atestavam a inanidade das grandezas humanas; e tudo o que escapara aos cataclismos naturais e sociais constituía um feudo enorme, que reconhecia por seu único chefe Sua Omnipotência Russa. Esta omnipotência intitulava-se Ivan LIV, e residia guardado por ursos brancos, nas ruínas do Kremlin.

O movimento, a vida, o progresso, concentrava-se todo na Austrália, tendo esta por dependências a África ao poente, e a leste as duas Américas.

Desde a Carpentária à Tasmânia, e desde o cabo Biron ao cabo Cuvier, numa extensão de mais de sete milhões de quilómetros quadrados, era tudo uma cidade enorme, repleta de gente laboriosa, sadia e alegre. Os antigos desertos Vitória e Gibson estavam agora cobertos de fábricas, aquários, jardins, bibliotecas e palácios. As águas do Brisbane e do Murrei, desviadas por grandes canais, iam abastecer aqueles bairros. Mas os bairros mais opulentos e magnificentes eram Sydney, Melbourne, Adelaide e Perth.

Grandes aleias de acácias, cedros, palmeiras, laranjeiras e eucaliptos, sombreavam as praças mais amplas daqueles bairros.

A agricultura decaíra, porque a alimentação humana estava reduzida a um simples elixir, de que bastava tomar uma gota diariamente, e cuja invenção era atribuída pelos antiquários a Tâner e a Succi, que viveram, um na Europa, e outro na América, pouco antes do século XX.

Não havia caminhos-de-ferro nem navegação a vapor: as viagens e os transportes faziam-se por meio de rápidos veículos aéreos, que numa hora cruzavam todo o Pacífico, desde Sydney até à Califórnia. O Dragão, em que eu descera na Austrália, fora imediatamente fretado por dois noivos, que iam passar a lua-de-mel, pairando alguns meses sobre as Filipinas e os estreitos da Malásia.

A governação pública era de uma simplicidade extraordinária. Conheciam-se dois poderes do Estado, -- o legislativo e o executivo, que residiam essencialmente numa corporação única, uma espécie de senado eleito, de funções vitalícias, excepto no caso raríssimo de nepotismo ou concussão.

Os delegados do senado eram, sob a responsabilidade deste, os executores especiais da lei, dentro de todo o falanstério, e das suas dependências. Esquecia-me dizer que esta originalíssima nacionalidade se denominava falanstério, em homenagem a um filósofo humanitário, Fourier, que vivera no século XIX, segundo afirmavam os cronicões australianos.

Os delegados do senado, mal comparados, eram como os nossos governadores civis. Tinham a seu cargo a execução das leis na sua respectiva área, correspondiam-se com o senado pelo teléfono, e eram os únicos candidatos à dignidade senatorial.

O que mais vivamente me atraiu a vista e a atenção foi um imenso farol eléctrico, tão alto, e tão monstruosamente grande, que do centro da Austrália iluminava todas as costas do continente! Falta só dizer que esse farol era apenas o zimbório do mais majestoso e extraordinário edifício de toda a Austrália, -- a Biblioteca Universal.

Exteriormente, a Biblioteca era um imenso palácio de coral, de forma quadrangular, com dois quilómetros de diâmetro, e cem portas, rasgadas em toda a altura do edifício e constantemente abertas. Os intervalos das portas compreendiam interiormente a biblioteca propriamente dita. Mas livros propriamente ditos, não os havia: eram enormes rolos de papel, dispostos e empilhados, como nos nossos estabelecimentos de papel para forrar casas.

Cada um destes rolos tinha um número de ordem, correspondente ao número que cada obra tinha no catálogo. Catálogo era uma maneira de dizer. Lá não havia catálogos como os nossos: em cada repartimento, isto é, em cada intervalo das portas, estendia-se, a toda a altura, um grande listão de metal branco, exibindo, em grandes letras doiradas, os números e os títulos das obras contidas no respectivo repartimento.

Não obstante a aparente justaposição dos rolos, qualquer deles podia sair dos seus lugares, sem se alterar a posição dos demais. O visitante, ou o estudioso, consultava o listão-catálogo, e, tocando no botão de um aparelho eléctrico, fazia descer a obra que procurava: o rolo poisava numa grande mesa, onde se desenrolava, depressa ou devagar, segundo a pressão que o leitor exercesse no botão do aparelho. O aparelho estava em comunicação com uma lâmina metálica, à volta da qual se enrolava a obra, e com outra lâmina que correspondia à margem oposta.

Como é natural, entre as duas margens mediava maior ou menor extensão, segundo as dimensões da obra. Havia obra que daria um quilómetro: mas, ao ler-se, a lâmina exterior ia dobrando sobre si a parte lida; e, quando se chegava ao fim da primeira página, a lâmina interior, que então se descobria, realizava a operação da outra lâmina, para que se lesse a segunda e última página.

Nem escadas, nem contínuos, nem cadeiras. Lia-se, escrevia-se de pé, a toda a altura do peito, porque a ciência e a higiene assim o prescreviam.

Em vez do contínuo, e junto de cada repartimento, permanecia um sábio, que tinha o encargo de explicar, durante duas horas em cada dia, as doutrinas científicas, artísticas ou literárias, contidas nas obras que lhe estavam ao lado.

Os sábios da biblioteca constituíam o corpo universitário; e, pelas naves do edifício agrupavam-se os mais engenhosos maquinismos, maravilhas práticas da indústria, das ciências e das artes, poderosos auxiliares do ensino universitário. Este ensino, embora graduado, compreendia todos os ramos de conhecimentos humanos, desde a instrução elementar até à mecânica celeste.

Todas as obras da biblioteca, originais umas e traduzidas outras, estavam escritas no idioma universal, o volapuque, que todos podiam ler e entender. Procurei o listão-catálogo, que tinha por título geral Viagens, e tive tentações de ler o n.º 98.765, porque eram as Digressões no Extremo Ocidente, pelo sábio Terramarique.

Toquei no botão eléctrico, e, momentos depois, devorava com avidez uma obra curiosíssima, em forma de cartas. Era nada menos que a descrição geográfica, histórica, sociológica e etnográfica das extremas regiões ocidentais, de que se conservava uma vaga reminiscência, como das lendas que ouvimos na meninice.

Terramarique saíra do Queensland, no seu balão de recreio, com uma numerosa comitiva de operários e estudantes, ao quinto dia da vigésima lua do ano 2995, e demorara-se algum tempo na Anatólia e na Sibéria, realizando escavações e investigações interessantíssimas. Aproximara-se do Báltico, para obter de Sua Omnipotência Russa a permissão de visitar as ruínas ocidentais, desde o Reno até Gibraltar e achava-se à beira do Tejo, no primeiro equinócio do ano 3000.

Sobretudo as cartas que ele data das ruínas portugalenses excitaram em mim o maior interesse e a mais natural surpresa. E, como escrevi quanto pude ver e ler até que o doutor Das me despertou cruelmente para os tristes esplendores da actualidade, não posso esquivar-me a tornar públicas algumas dessas cartas.

Não obstante a seriedade e a imparcialidade do sábio australiano, há por vezes nas suas palavras uma franqueza tão rude a nosso respeito, que, pelo menos por agora, não reproduzirei o que mais possa ferir as susceptibilidades nacionais. Se eu fizer a edição definitiva das cartas, resolverei se devo ou não manter a prudente reserva de agora.

E, dito isto, vou ceder a palavra a Terramarique.

Cândido de Figueiredo

Carta I2

Os ermos ocidentais. -- Um pescador de pérolas nas Berlengas. Um cenobita nos Açores. -- Recordações de Portugal: Camões, a decadência, a morte.

Querido mestre e amigo. -- Escrevo-te das ruínas de um castelo, a 38º 42' de latitude boreal, e a 160º 24' de longitude ocidental do meridiano de Sydney.

Aqui foi Lisboa.

Quando me despedi de Sua Omnipotência Russa, norteei a minha bússola, e dirigi-me ao ponto donde te escrevo, convencido de que, na bacia do Tejo, encontraria alguns indígenas, que me auxiliassem nas investigações que me preocupam. Não obstante a profusão de mapas geográficos e topográficos, parecia-me indispensável um guia, que melhor conhecesse o território e as tradições do país. Não encontrando ninguém, equipei o balão, e fui pairando sobre a costa até acima do paralelo 39, deparando-se-me então, nas ilhas Berlengas, um pescador de pérolas, não indígena, mas australiano, que percorre todos os meses o litoral da Europa, da África e da Austrália, e que me deu esclarecimentos úteis.

Segundo as suas indicações, a população portugalense não se extinguira totalmente, e, pelo menos nos Açores, havia ainda alguns representantes da velha nacionalidade ocidental.

Vinte minutos depois, tinha eu descido no vale das Furnas, na ilha de São Miguel, onde o amanho dos terrenos e o alvejar de algumas habitações dispersas me revelaram, a distância, o que quer que fosse de vida actual.

Efectivamente, no mais esconso do vale, um respeitável cenobita assomou à porta do seu casebre, para me receber e à minha comitiva, porque alguém lhe havia anunciado a aproximação do nosso veículo aéreo.

Tive grande dificuldade em o compreender, e em me fazer compreendido; porque, embora o nosso vocabulário volapuque tenha as respectivas equivalências para todas as línguas mortas, a linguagem do cenobita não era portuguesa, nem francesa, nem inglesa, nem italiana, mas um misto caótico de todas estas.

Felizmente, o cenobita, que dava pelo nome de Reliquiano, conhecia largamente as tradições de Portugal, e possuía uma vasta colecção de histórias e memórias. Por mais difícil que fosse a interpretação das suas palavras e dos seus livros, vi nele um cicerone imprescindível, e com ele e com os seus livros voltei ao esteiro do Tejo, sobranceiro ao qual, ergui a tenda, donde te escrevo.

Antes de proceder às explorações e investigações que mais me interessam, quero traçar-te, em duas palavras, a história do pequeno país, de que foi capital a cidade, cujas ruínas me cercam.

Portugal, um país microscópico, de origem neo-visigótica, pôde manter a sua autonomia por dez séculos. Meado porém o século XXI, já quase nada existia daquela nacionalidade, que teve na história alguns momentos de robustez e prestígio. Dizem que foi um português quem mostrou aos povos ocidentais o caminho marítimo das Índias. A Ásia e a África estremeceram perante os navegadores portugueses; as nossas bibliotecas ainda hoje consignam o nome de um português de génio, Camões; e nas tradições do ocidente ainda não morreu o nome de um estadista, a quem todo este país, especialmente Lisboa, deveu assinalados serviços. Mas para que formes ideia de como entre os portugueses se galardoavam os melhores serviços, bastará dizer-te que, em meio dos monumentos com que Pombal restaurou Lisboa, os seus contemporâneos ergueram à sua memória um cavalo de bronze, que ainda dura, montado por um cavaleiro anónimo.

Muito excêntricos, estes neo-visigodos!

Excêntricos, e de pouco juízo. As riquezas africanas e asiáticas, que poderiam ter impulsionado as artes e as indústrias, serviram para erguer conventos e praças de toiros. Não sabes talvez o que eram no ocidente as praças de toiros, e é bom que o não saibas, para não mareares por qualquer maneira a ideia sublime que formas da humanidade.

Nos princípios do século XIX, Portugal sentiu uns vagos pruridos de civilização, e começou a golpear os privilégios das classes, a humanizar-se, por que assim o diga, e a demandar indecisos ideais que já ficavam longe dos povos verdadeiramente selvagens.

Mas, no espírito daquela nação, operava-se ao mesmo tempo uma evolução psicológica, que podes oferecer como problema ao nosso eminente sociólogo Priscofilogêncio: à proporção que se alumiava o espírito público, e que se iam entrevendo os caminhos do dever cívico e dos destinos humanos, a vontade reagia contra a ciência e contra o bem, e voltavam-se as costas para não ver o abismo, a que a vontade impelia...

São muito curiosas, a este propósito, as memórias de Reliquiano, a que me estou socorrendo. Nos fins do século XIX, grande parte da população já sabia ler. Estudavam-se direitos e deveres, democratizava-se a educação, multiplicavam-se associações humanitárias, celebravam-se congressos de beneficência, reconhecia-se por lei a soberania popular, e não se deferiam prémios à virtude por se entender que ela estava na índole e na brandura dos costumes nacionais e era de si própria o mais elevado prémio. Conjuntamente porém, o direito e a justiça, todas as vezes que tivesse de dar um passo, necessitava de muletas ou patronos esforçados; o nepotismo e os privilégios sorriam-se das leis, e esmagavam os pequenos e os fracos: os poderes públicos consentiam a exposição de domadores de feras, e aplaudiam nos anfiteatros a destreza com que se sangrava um toiro em briga com o homem; nas trapeiras dos mais vistosos arruamentos, morria-se de fome e de frio; os velhos e as crianças não tinham protecção especial; os infanticídios ficavam muitas vezes impunes; as ciganas mendigavam livremente, levando os filhos às costas, quase asfixiados em trapos imundos, dentro de ceirões infectos; dois ou três homens dispunham da soberania nacional, e arrebanhavam-se as ovelhas de Panurgo, para borregarem o seu voto nas assembleias legislativas; a prostituição adquiria os foros de uma instituição social, e instalava-se, paredes-meias, com a burguesia honesta e com a mais delicada aristocracia, levando o contágio aos mais vedados recessos. E mais; muito mais que a blasfémia de Bruto.

Tu sabes, meu querido mestre, que as leis históricas hão-de resistir sempre a blasfémia igual; não é verdade? Como é natural, foi rápida a decadência dos portugueses. Nos primeiros anos do século XX, o industrialismo concentrara o resto das forças vivas do país, e o predomínio individual era a ambição única, o sonho doirado de seis milhões de cidadãos. No encalço dessa ambição, todos os meios eram legítimos. Os governados injuriavam os governantes, estes locupletavam-se à custa daqueles, o poder transmitia-se ao mais audaz e mais feliz, e a efémera duração dos consulados supremos apressava a anarquia geral. Por fim, ninguém pagava as despesas públicas, ninguém reconhecia os poderes do Estado. Nesta conjuntura, houve quem pensasse que o cesarismo poderia alongar os dias de uma nação moribunda, e um grupo de agricultores chamou do exílio um príncipe desconhecido. Mas o princípio da autoridade era mais desconhecido ainda, e as ondas da guerra civil varreram o príncipe, refluindo sobre si mesmas e dizimando a população.

Foi então que uma nação aliada condoendo-se do pouco que produziam estes campos e do abandono em que estavam as riquezas naturais do país, mandou ao Tejo uma esquadra, que saqueou as principais cidades, transportou os homens válidos para o Canadá, e disse aos velhos e aos doentes que lavrassem os campos da pátria.

Se os lavraram, não sei. Sei apenas que aquela boa aliada não veio tratar da colheita, porque se achou envolvida numa luta geral entre as maiores potências da Europa. A esse tempo, a Rússia alargava já o seu domínio até ao interior da China, e pôde apresentar nas fronteiras ocidentais da Europa dois milhões de moscovitas, mongóis, tártaros, e manchus, que reduziram a Europa a um grande campo de batalha, em que só eles colheram despojos. Desde então, ninguém manda na Europa, senão Sua Omnipotência Russa, que vive nas ruínas do Kremlin, guardado por ursos brancos.

E agora, já é tempo de te dar conta das explorações que estou fazendo nas ruínas da capital portugalense. Vejo, porém, que o pescador de pérolas, de quem receberás esta missiva, vai partir, e obriga-me a fazer ponto por agora. Aguarda para breve mais informações minhas, como eu aguardo as tuas boas novas.

Carta II

O Cartaxo. -- A empresa «Mixórdia & C.ª». -- Os contrabandistas. -- Bandidos de casaca. -- Os alçapões da fortuna. -- Homens-mulheres e mulheres-homens. -- A bebedeira nacional. -- Influência do vinho na política.

Mestre. -- Estamos já na segunda lua do primeiro equinócio do ano 3000, e é escasso o que, por enquanto, te posso comunicar acerca das explorações, a que anteriormente me referi. Debruçado sobre os mapas da antiguidade lisbonense, e à vista dos cerros e vales por onde se estendia a cidade do Tejo, tenho levado dias e noites a reconstituir na memória essa pitoresca povoação, a que a passagem do tempo e os abalos subterrâneos nem sequer pouparam a sua primitiva configuração.

A tenda, em que te escrevo, está erguida onde provavelmente existia o castelo de São Jorge. O monte de Santa Catarina, referido nas descrições antigas, foi provavelmente arrasado por algum cataclismo, que permitiu alargar-se o Tejo até São Roque, cobrindo também o que noutras eras se chamava a cidade baixa.

Nas horas em que a maré deixa a descoberto a antiga Praça do Comércio e a Avenida Marginal do século XX, já tenho feito algumas ligeiras explorações, e recolhido alguns fósseis e exemplares arqueológicos, de que minuciosamente falarei no meu Diário.

À mingua de interesse científico, não deixa de ser curioso um dos primeiros objectos que se me depararam numa pequena escavação, a leste da minha tenda, no mesmo sítio talvez, em que se emaranhavam as vielas de Alfama.

É uma prancha, ou lâmina, petrificada, e recoberta de calcário e grés de formação marina. Fi-la imergir numa solução de corrosivo antilítico, e, desligado o calcário da prancha primitiva, pude ler nela, em indecisos caracteres:

ALTO AQUI!

LEGÍTIMO VINHO DO CARTAXO!

As memórias escritas do quinto período geológico, um pouco mais claras que as do período terciário e quaternário, e bem assim as preciosas informações do cenobita açoriano, convenceram-me de que a prancha aludida era uma tabuleta comercial; e de que a aparente redundância da expressão vinho legítimo era a mais legítima consequência do estado económico e social dos portugueses, no século XX, ou fins do século XIX, a que a prancha provavelmente pertencia.

Cartaxo devia ser algum burgo vinhateiro; mas, com o seu nome, vendia-se vinho legítimo e vinho falsificado. Parece que o mesmo sucedia com outras regiões vinhateiras, porque havia vinho do Porto, que era da Bairrada; vinho de Colares, que era de Tomar; vinho de Bordéus, que era de Carcavelos; vinho de Champanhe, que era do Poço do Bispo.

Este quiproquó industrial estava tão radicado nos costumes do povo e no interesse das grandes indústrias, que, quando um governo julgou indispensável dar o nome às vacas e por os pontos nos ii, como então se dizia, uma empresa poderosa, Mixórdia & C.ª, fez uma revolta, que obrigou o governo a cantar a palinódia e deixar correr o marfim. Em todo o caso, não havia desdoiro na transigência, porque estava ainda em voga uma ciência, chamada economia política, de cujos princípios bastar citar este: «laissez faire... mixórdia e tudo.»

O que se dava com o vinho reproduzia-se nas demais indústrias: a manteiga era margarina, o café era grão-de-bico, o açúcar era farinha, os panos da Covilhã eram panos de além-Caia. Por desamor a estes panos e a outras fazendas suspeitas, esteve um ministro em risco de ser crucificado por uma seita de contrabandistas, que infestava o país.

E as falsificações estendiam-se a tudo, desde as indústrias até aos industriais, desde o povo até aos governos. Comerciantes de gente negra, bandidos de casaca e luvas, marçanos anónimos que surgiam endinheirados dos alçapões da fortuna, tinham no seu tempo o cognome de homens de bem, beneméritos e sustentáculos da pátria.

Uma das festas favoritas do ocidente era o Carnaval, em que toda a gente revelava as suas tendências e aspirações, mascarando-se do que não era. Pois nos últimos tempos desta nacionalidade, o Carnaval tornou-se permanente, não a rir, mas a sério. As lendas de Sardanápalo, de Joana d'Arc, e de Maria da Fonte, tiveram a sua consagração prática nos últimos tempos de Portugal. Havia homens que eram mulheres, e mulheres que eram homens. Nas vendas de modas, robustos mocetões, cheios de denguices e perfumes, ajustavam tournures em ancas femininas. A mulher do campo lavrava as terras; a da cidade, se não vendia cautelas nem fazia a guarda nocturna da cidade, fazia política e ingeria-se vigorosamente na burocracia, aniquilando os seus indiferentes, e elevando os seus favoritos aos mais altos cargos da coisa pública. A uma palavra, a um simples gesto de mulher formosa, mais de um ministro criou inconscientemente um director-geral, um governador, um cônsul.

Mas isto é antecipar assuntos, meu querido mestre. Hei-de descrever-te, mais por miúdo, a organização social e democrática da nacionalidade portugalense; e, por muito que te espantes desde já, só perante um quadro mais completo e mais vivo, poderás entrever a decadência a que aludo.

Nesta carta, propus-me falar-te apenas da minha primeira exploração nas ruínas lisbonenses, e transmitir-te as impressões que ela me deixou.

Está demonstrado que a venda do Cartaxo era um entre milhares de estabelecimentos congéneres. Os portugueses bebiam muito Cartaxo, muito Torresão e muito Termo, ou coisas com esse nome. Só assim se explica como este país foi cambaleando através de alguns quartéis do século XX, até cair no sono, de que nunca mais despertou.

De noite pelas ruas e praças da cidade, havia agentes policiais, encarregados de conduzir a albergues públicos os cidadãos que, cansados de beber, se estiravam na calçada.

A embriaguez, longe de ser punida, chegava a ser gentil, quando não provocava o sono. Para se ser amável, para se falar sem hesitação, para se pronunciar um discurso arrebatador, chegou a julgar-se indispensável o ter grão na asa.

E isso explica-se. Em Portugal, os faladores tiveram sempre a mais larga aceitação. Quem o não fosse era sensabor e reles; e, se o desgraçado fosse deputado, nunca chegaria a ministro, excepto em caso de recomposição urgente. Audácia e parola, com um poucochinho ao menos de ignorância recomendada, era aqui o mais curto e direito caminho para as grandezas políticas e sociais.

Muito excêntricos, este neo-visigodos; não é verdade?

Ainda não viste nada, meu grande amigo. As informações de Reliquiano e as antigas crónicas que o acompanham, descerraram-me um mundo novo, e tudo te contarei.

Por agora, estão-me chamando a atenção uns postes escuros, que se erguem no Tejo, de espaço a espaço, desde uma à outra banda. Vou examiná-los.

Até já.

Carta III

A ponte monumental. -- Melhoramentos desnacionais. -- Ministros budistas. -- A lenda da «Pasta». -- Epopeia e comédia.

Amigo e mestre. -- Fui, com efeito, examinar os postes, que da minha tenda, se avistam no Tejo, de espaço a espaço, desde uma à outra banda.

São restos de grandes pilares de ferro, meio carcomidos pelo tempo e pelos óxidos salinos. Folheando memórias seculares, cheguei à conclusão de que estes pilares sustentaram, há dez séculos, uma grande ponte que ligava as duas margens do Tejo.

É difícil verificar-se hoje a quem pertenceu a iniciativa daquela construção, realmente notável. As relações e monografias coevas falam vagamente de um construtor nacional, Pais, como sendo o primeiro que forneceu um plano exequível para a famosa ponte. Parece no entanto averiguado que os portugueses não acreditaram jamais que santos de casa fizessem milagres, e que aceitaram o primeiro ou segundo plano que apareceu firmado por um ou mais nomes estrangeiros.

Timbravam de patriotas os portugueses, mas tinham uma adoração fetichista por tudo que lhes viesse de fora, desde os toireiros e cantores de opereta até aos trajes de gala e aos planos de construções nacionais. Nacionais, digo eu, por se realizarem dentro da nação; mas foram de ordinário estrangeiros os construtores das obras, de que mais se envaidecia o país.

A velha e grande ponte fizeram-na pois estrangeiros, que por muitos anos lhe auferiram os melhores lucros.

Não devo porém ocultar-te que os governos nem sempre negaram o seu apoio aos grandes melhoramentos materiais.

Mas tal apoio não era, nem podia ser vulgar, porque exigia rara coragem e disposição para o sacrifício e para os golpes da calúnia. Ministro que aparecesse, com ânimo para grandes empreendimentos; que tivesse a coragem de cortar fundo nos abusos que o rodeavam; que zelasse a sério os rendimentos do Estado, fiscalizando as receitas, embaraçando as falsificações industriais, e despertando os devedores remissos, acendia desde logo a eloquência do rancor, e açulava as matilhas, que constituíam a guarda de honra dos corrilhos de seita.

Como natural consequência destes processos, para que um ministro passasse por exemplar, fashionable, aplaudido de gregos e troianos, devia ter uns laivos de filosofia budista, e não incomodar a consciência nem a legislação sobre as necessidades do Estado e o dever dos estadistas. E assim, os ministros mais prudentes eram os que nada faziam, arriscando-se apenas a fazer tolice, quando um director de semana, uma favorita, ou um contínuo, lhes aproveitavam a habitual sonolência, para lhes introduzirem arteiramente na pasta uma ilegalidade, ou uma espoliação, sob-color de decreto.

Muito provavelmente, não sabes o que era a pasta.

A pasta era o velocino de oiro, dos tempos mitológicos da Grécia: frotas de Jasões coalhavam os mares, em demanda do carneiro precioso... A pasta era o verdadeiro Santo Graal, das lendas medievais: cada cidadão era um cavaleiro andante, que levava a existência, em procura do vaso sagrado... A pasta era a terra santa, que estava sempre em poder do infiéis; e todo o fiel português reconhecia em si o patriótico e religioso dever de ser Godofredo, ainda que fosse Godofredo de loiça das Caldas.

A pasta era um símbolo e uma religião, meu amigo. Assim como o barril era o símbolo do trabalho, e a giga o símbolo da honradez nacional, a pasta era o símbolo do poder, dos ócios deslumbrantes, das vacas gordas do Egipto, do paraíso do Alcorão.

Como as grandes ideias e os grandes cometimentos, a pasta foi assunto de grandiosas epopeias, de que apenas restam alguns fragmentos. Destes, conservo um, com que me brindou Reliquiano, e cuja reprodução me não desagradecerás, porque tem verdade e... cor local. Não sei se pertence a algum trovador de gestas; mas, pela caligrafia e pelos conceitos, não pode ser anterior ao século XIX.

O bardo cantava assim a pasta:

I

Ela saía triunfante, cheia,

alegre, rubicunda e satisfeita,

tomando pela rua a mais direita

que leva ao real paço, onde pompeia,

entre festões e púrpuras e rendas,

a chancela das graças e prebendas.

II

E todos estendiam olhos ávidos

para o bojo da pasta, são, repleto;

e, sofreando o coração inquieto,

abriam alas aos corcéis impávidos,

que levavam a pasta deslumbrante

como um rajá num dorso de elefante.

III

E as alas murmuravam em segredo:

-- Que leva a pasta? Não haver quem entre

naquele estranho e avermelhado ventre! --

E uma viúva suspirava a medo:

-- É talvez a pensão! talvez... -- E um padre:

-- Tem mais um bispo a nossa Santa Madre...

IV

-- Enfim, vou ver barão! -- outro dizia,

poisando as mãos na refegada pança.

Um patriota: -- Firma-se a aliança

de Albion com a nossa monarquia! --

Um político: -- Eu já o tinha dito:

vai Astreia reinar no meu distrito! --

V

Um servidor da pátria: -- Os meus serviços

vão ter o galardão, o justo prémio! --

Uma elegante: -- Ele perdeu no Grémio

uns quatro contos, mas os meus feitiços

conquistaram da sábia ditadura

para nós dois a perenal ventura. --

VI

Um traficante: -- Temos já governo

que remunera amigos prestadios;

entro na alfândega; e o cunhado e os tios

lá entrarão, quando chegar o inverno. --

Um proletário: -- Mesmo assim servente,

já se pode ter casa e cama quente. --

VII

Um sábio, quasi a crer na Providência:

-- Até que enfim, houve um ministro amigo,

que me viu, e que disse lá consigo:

«não é bonito esfomear a ciência!»

e por decreto vai mandar-me em breve

tratar de bombas, que é ofício leve. --

VIII

E a pasta prosseguia o seu caminho,

serena, impermeável... Quando a abriram,

um rato e uma grã-cruz dela saíram,

um cónego, um fiscal, um barãozinho,

um sino, três comendas, uma estrada,

um escândalo reles e... Mais nada.

Sendo as coisas assim, como se refere nas epopeias, a comédia política em Portugal devia ser muito divertida... para os espectadores. Tinha apenas o inconveniente de não ser edificante, porque ninguém aproveitou as lições, a não sermos nós, que hoje podemos moralizar a história.

Deixo porém à tua discrição todas as ponderações morais, e vou, ainda hoje, examinar a antiga praça de São Bento, onde parece que se reuniam os legisladores, e onde naturalmente se me depararão alguns fósseis e monumentos para estudo.

Até logo.

Carta IV

A estátua de José Estevão. -- Como se fabricavam legisladores. -- Caixeiros e titulares. -- O telónio da «Arcada». -- Os escaninhos da burocracia. -- Cretinos e bongas. -- História dos concursos.

Caríssimo. -- Visitei demoradamente as ruínas de São Bento, que ficam a meio de uma encosta, quase a cavaleiro da margem, donde partia a velha ponte, de que já te falei.

O monumento, que primeiro se me deparou, foi uma estátua de bronze, derruída e meio coberta de sedimentos argilosos. A estátua representa José Estevão, um legislador eloquente, que floresceu no século XIX, no tempo em que os homens públicos ainda tinham convicções, sacrificando-se por elas, e falando sinceramente dos interesses da pátria.

José Estevão, a julgar pelo que se escreveu nessas eras, possuía a ingenuidade das crianças e dos homens de bem, a coragem dos apóstolos convictos, e aquela eloquência inexcedível, que não tem nada com a arte, e tudo com a alma, com a inspiração, e com a grandeza dos ideais, que fazem acurvar todos os espíritos sãos.

A alma portuguesa ainda vibrava um pouco, sob as ondulações mágicas daquela voz privilegiada, que, se a morte a não gelara, poderia salvar um país condenado...

Foi merecida a estátua, bem vês. Mas se José Estevão fora vivo quarenta anos depois, a sua voz ardente e nobilíssima cairia friamente no tímpano dos legisladores; e, os que não dormitassem, teriam para o discurso um bocejo e um comentário reles: -- Cantigas! --

É que a política foi-se transformando com os anos. Por fim, não se compreendia que houvesse eloquência parlamentar, quando o orador não tivesse o necessário vigor para fazer voar em estilhas uma bancada de legisladores, ou o desplante suficiente para cuspir na cara do presidente da assembleia; e o verdadeiro político seria aquele que mais afortunadamente se afanasse no bom arranjo da sua pessoa e dos seus afins.

Os legisladores, na sua maioria, eram eleitos indirectamente pelos governos, a quem impendia o redigir as leis, que eram da responsabilidade dos eleitos. Conseguintemente, os predicados de um legislador eram de uma simplicidade extraordinária; e assim, a par de um ou outro erudito, de um ou outro publicista, o diploma de legislador era emprestado graciosamente a caixeiros de balcão, recoveiros, arrais e cabos-de-esquadra. Verdade é que, a pouco trecho, os cabos eram generais, os arrais eram almirantes, os recoveiros eram banqueiros, e os caixeiros eram marqueses. Não se discutia o ponto de partida; a questão era subir e chegar. Aceitavam-se os factos, e, segundo o consenso geral, harmonizavam-se perfeitamente com a índole da democracia. A única dificuldade era evitar que, ao mezinheiro convertido em alta potência, não se desse nome que recordasse as mezinhas.

Para obviar a dificuldade, criaram-se expedientes vários. Ao mezinheiro, por exemplo, impunha-se oficialmente a crisma de -- conde de qualquer coisa ilustre. Um Santos, bacalhoeiro, passava a chamar-se conselheiro Dias Santos. Domingos houve, que foram comendadores, quando na organização predial já não havia comendas nem feudos. A um Semana, que curava flatos e erguia a espinhela, chamou-se doutor Semana; e até os meses serviram para baptizar as grandezas anónimas, dizendo-se geralmente: o director Janeiro, o inspector Fevereiro, o pescador Maio.

Uma vez guindadas aos intermúndios da prosápia social e burocrática, as nulidades da véspera davam-se particularmente a longos ensaios para falar de papo, e varriam da memória todos os seus conhecidos, desde conselheiro para baixo. Barbeadas, erectas, solenes, à semelhança de Momos mascarados de Júpiter, eram inacessíveis à humanidade do seu bairro e aos peões da sua antiga igualha; e quando se dignavam de palmilhar o asfalto da cidade, os candidatos a escriturários e os pacóvios de todos os matizes abriam alas respeitosas, murmurando com reverência.

-- Sr. comendador...

-- Sr. conselheiro...

-- Sr. marquês...

E o marquês, e o conselheiro, e comendador, aprumavam mais a espinha, aproximavam da aba do chapéu o dedo indicador, e orientavam-se para a Arcada.

A Arcada era a bolsa pública, em que se cotavam as celebridades daqueles tempos. O prólogo das crises políticas, dos sindicatos, e da comédia da alta vida e da alta finança, representava-se na Arcada. O cavalo de bronze, que o reconhecimento público ergueu à memória de Pombal, assistia impassível ao falario dos grupos; as majestades momentâneas subiam às secretarias, e as ondas do Tejo espreguiçavam-se na lama...

E o Semana, e o Domingos, e o Dias Santos, e o Fevereiro, e o Maio, e o Natividade, e o Cebola, devidamente crismados com títulos vistosos, e transformados agora em árbitros da coisa pública, guiavam arteiramente as suas combinações pelos escaninhos burocráticos, em que se baralhavam os memoriais e as alpacas, num jogo complicado de trunfos, biscas, tolice e patronato. O jogador, que melhor conhecesse as cartas e contasse com algum mérito próprio, como o Maio, era degredado para as regiões da retórica, ou para o país dos ingénuos, e o bolo era repartido pelos afilhados dos jogadores mais felizes, mais ineptos e de consciência mais elástica.

Os Fevereiros e os Natividades davam-se as mãos, para atravancar a passagem e o acesso a todos os importunos que valessem alguma coisa e pudessem sombreá-los.

E assim, aqueles que um cego acaso, ou um braço de mulher, ou os esforços inconscientes do prefeito de um burgo, elevavam às eminências sociais, desvelavam-se tenazmente em rodear-se de cretinos, que os não excedessem na craveira intelectual, e que lhes garantissem o predomínio de um bonga em aringa de cafres.

Tal garantia e tais intuitos eram, uma vez ou outra, contrariados por uma formalidade legal, a que se dava o nome de concursos. Uma vez ou outra, e não em geral. Em geral, sucedia uma de duas: ou o ministro despachava in petto, previamente, o sobrinho, o cunhado, ou o afilhado, e nessa hipótese o resultado do concurso era indiferente para a nomeação definitiva; ou a nomeação dependia da classificação superior, e os candidatos analfabetos tinham ao lado, por trás de um reposteiro, um espírito santo de alpaca, que os convertia momentaneamente em Mezzofantes e Picos de Mirandola, infundindo-lhes o saber preciso para discorrerem de omni scibili e desbancarem os enciclopedistas do século XVIII.

Entre os livros do Reliquiano, há uma interessante monografia, A História dos Concursos em Portugal, e não resisto à tentação de te referir alguns dos seus episódios mais edificantes.3

Podes rir-te à vontade, porque ninguém hoje sente os lastimosos efeitos dos episódios que leste. É essa uma das grandes vantagens da história: podermos assistir, em espírito, ao desmoronar das sociedades, sem que venha ferir-nos o ouvido o tripúdio dos impenitentes e as imprecações das vítimas.

E tudo isto a propósito de uma estátua! Mas é que realmente, enquanto se não adiantarem mais as minhas explorações, os assuntos escasseiam-me, e vou discorrendo ao acaso, familiarmente, como quando conversamos juntos, nas naves da Universidade Central.

Parece que em Lisboa abundavam as estátuas. Pelo menos, um dos meus operários já me anuncia o aparecimento de outra, na orla do Tejo, à beira talvez da antiga Avenida Marginal. Não a vi ainda, mas, segundo as indicações de Reliquiano, deve ser a de um guerreiro ilustre, que tinha por nome Bandeira.

Vou vê-la. Até breve.

Carta V

Sá da bandeira. -- Bifes de moiro. -- Os guerreiros: o soldado; o alferes. -- Os ideais portugueses. -- A reforma, a aposentação, o sindicato, a sorte grande. -- O sabre municipal. -- Pé de alferes. -- O uniforme, sua influência social.

Querido mestre. -- Efectivamente, a estátua, de que te falei, representa um guerreiro, que se apelidava Bandeira, e que era marquês, e Sá, e outras coisas, mas que, sob outro aspecto, era menos que qualquer homem, porque tinha apenas um braço. O outro, perdera-o combatendo por o que ele supunha a liberdade da pátria, e teve a fortuna de morrer, antes de perdida a gratíssima ilusão.

Teve guerreiros esforçados este pequeno país. Conta-se até que o seu emancipador Afonso não se alimentava senão com bifes de moiro, magistralmente cozinhados em Santarém e Lisboa. Outro chefe português, quando já se não caçava um moiro ou um judeu para assar nos brasidos da Inquisição, sentiu a nostalgia do acepipe, e atirou consigo para as terras da Moirama, morrendo de uma indigestão em Alcácer-Quibir.

Quando se convenceram da impossibilidade de perpetuar a iguaria, os portugueses molharam a sopa em sangue de espanhóis e franceses, e por fim lançaram-se uns contra os outros, porque a religião dizia a estes -- mata! -- e a liberdade dizia àqueles -- esfola!

Havia porém larguíssimos intervalos, em que os guerreiros, cansados de esfolar e matar, faziam exposição gratuita da sua pessoa, da sua espada e do seu uniforme, por todos os ângulos do país, como para atestar que não se havia extinguido a raça mavórcia daqueles que comiam bifes de moiro.

Exposição gratuita... não disse bem. Os guerreiros, em tempo de paz, eram largamente estipendiados, e o estipêndio sobrevivia ao uniforme, porque a reforma garantia a subsistência, e dispensava os serviços da exposição.

Como consequência, o ideal de 2.250.000 portugueses era a reforma, como a aposentação era o ideal de outros 2.250.000; havia também 2.250.000 que tinham por ideal o sindicato; e o ideal dos restantes era a sorte grande.

Somados todos estes ideais, cifravam-se em: viver sem trabalhar. Os que atingiam convertiam-se em sátrapas, que dormiam desde a madrugada ao lusco-fusco, para se absorverem nos mistérios da noite, e defrontarem os seus diamantes com o brilho das estrelas do céu e da terra. Os que o não atingiam, eram novos Prometeus, que, amarrados ao destino, sentiam devorar-lhes as entranhas um abutre invisível e implacável.

Entretanto, não se pode dizer que a reforma fosse o ideal exclusivo de todos os guerreiros em férias. Pelo menos, havia entre eles duas categorias, o soldado e o alferes, que de outra forma repartiam os seus cuidados.

Notarei de passagem que eram variadíssimas as categorias militares, e mais ou menos numerosas, segundo a elevação do posto: nos princípios do século XX, o exército português era composto de duas bocas de fogo, 50 soldados, 100 sargentos, 200 alferes, 400 tenentes, 800 capitães, 1.600 majores, 3.200 tenentes-coronéis, 6.400 coronéis, 12.800 generais de brigada.

De todas as categorias, as mais características eram as de soldado e alferes.

O soldado era a tentação viva, ou, como se dizia então, o ai Jesus das vendedeiras ambulantes e das servas de cozinha. Havia moça, que sentia um prazer inefável, ao correr as mãos pela bainha de um sabre municipal; e o guerreiro, ao contemplar-lhe as mãos, manchadas do fogão e tresandando a refugo de cebola, sentia as visões do ópio e julgava aspirar o mais inebriante perfume oriental.

Desde que, ao fim de uma rua, vermelhejava um uniforme de soldado, havia rebate nas cozinhas e refeitórios: dezenas de cabeças, no desalinho da ansiedade, assomavam às janelas e às trapeiras, e muitos olhos convergiam instintivamente no mesmo ponto, ilaqueando o guerreiro numa rede interminável de aventuras. Ao mesmo tempo, a sopa esturrava-se na panela, o gato saboreava o guisado e provava as costeletas, e a dona da casa perguntava ao seu cristal de Veneza se já não teriam demora os pés de galinha. E o guerreiro, triunfante e feliz, contava, à noite, na tarimba, ao 29 da 5.ª, a história dos seus feitos e conquistas, que deixavam a perder de vista as proezas do Albuquerque terríbil e do Castro forte. Meses depois, a imprensa linguareira noticiava que em vários saguões e becos, e até em barris de lixo, apareceram vários recém-nascidos, de procedência misteriosa.

Mas o alferes não se confundia com os guerreiros da ínfima escala. Embora não exercesse menor prestígio, só excepcionalmente tomava a cozinha por campo de batalha: as suas vistas mediam todos os andares dos prédios burgueses; a sua estratégia abrangia os passeios públicos; nos seus planos entravam essencialmente os templos, os teatros e as praias.

Conhecia-se em tudo o alferes; até no andar. Fazer pé de alferes era o predicado mais gentil dos moços esperançosos. Não permitiam as leis a poligamia nem a poliandria; mas a multiplicidade de amoricos num peito de alferes era a primeira e mais inevitável das condecorações de um guerreiro.

Era desmedido o domínio de cada alferes. Verdadeiro senhor feudal da burguesia feminina, os pais de família olhavam-nos de soslaio, as tias viajavam as fechaduras e os moços de fretes, as mamãs estarreciam-se de susto, e as meninas alvoroçavam-se de esperanças e incertezas.

Passara o tempo, em que as jovens Lílias tinham por alvo o amor e uma cabana. Em todos os corações femininos dos quintos andares só cabia por fim esta aspiração: um piano e um alferes. O piano era o prelúdio da marcha, o alferes era a música da vida.

Desejas certamente que eu te desvende o mistério desta influição magnética, exercida outrora pelos guerreiros em férias. Mas, não penses que vou falar-te do seu espírito, ou da sua beleza; não se ocupam disto as memórias coevas, e o que pude averiguar é que o soldado e o alferes não precisavam de outros amavios nem de outras seduções além do seu uniforme. Houve até um alferes que, por ter despido o uniforme na noite das suas núpcias, viu fugir-lhe a esposa no dia seguinte; e um cronista daquele tempo conta que uma noiva exigira do seu par que não se separasse do uniforme durante a lua-de-mel.

Tu não imaginas o irresistível poder que as aparências em geral, e os uniformes em particular, exerciam no espírito dos portugueses da decadência. O uniforme reagia exactamente contra a uniformidade dos trajes: para que não houvesse uniformidade, é que se criou o uniforme. Este separava as classes e até as categorias de cada classe; e tal distinção era universalmente acatada, enquanto universalmente se proclamava e aplaudia a extinção das classes e a abolição dos privilégios.

Mas, de facto, as categorias sociais subiam a tal número, que a imaginação ocidental, se bem que poderosa, teve que confessar-se impotente para criar uniforme em todas as categorias, e aceitou, para certos cidadãos e para actos solenes da vida social, uniformes que haviam sido o traje habitual de gerações extintas. Assim, cem anos depois da extinção dos monges, os estudantes trajavam o uniforme monacal; os homens nobres vestiam-se de cavaleiros e pajens da Idade Média; os sábios perpetuavam a usança dos vistosos colares do tempo da regência; e os caprichosos chapéus emplumados dos jograis de carnaval eram, nas ocasiões mais graves, o emblema obrigatório de um homem distinto.

Os espíritos superiores aceitavam estes factos sem discussão; e a arraia-miúda sentia-se tomada de respeito, perante uma fila de uniformes. Era do estilo; e conta um gracioso cronista, que, quando em público aparecia um cavaleiro uniformizado, o povo formava alas, e a besta passava.

Cerro-me hoje por aqui; mas, antes de fazer ponto, quero dizer-te que, na minha próxima carta, te falarei ainda de uma estátua. Creio que já te disse que uma convulsão geológica abateu o antigo monte de Santa Catarina. Na vertente dessa depressão, onde deveria existir o bairro de São Roque, pude descobrir, soterrada e mutilada, uma estátua que representava o poeta, a que noutra carta aludi, e cujo nome é ainda hoje o vivo reflexo da arte portuguesa.

Falar-te-ei portanto de Camões e de letras portuguesas, o quanto me permitam os ensinamentos de Reliquiano e os livros que o acompanham.

Pensa em mim, e vive para todos.

Carta VI

A escrita portuguesa. -- Os mestres da decadência. -- A crítica; a poesia. -- Os Lusíadas. -- A arte e a couve-galega.

O grande poeta, a que anteriormente me referi, -- Camões, -- escreveu numa língua, hoje universalmente desconhecida, como todas as línguas do século XX.

A língua dos portugueses fora primitivamente um misto de locuções romanas, árabes e provençais. Regularizara as suas formas sintácticas e prosódicas no século XV, e chegara à possível perfeição no século XVI, a que pertenceu o poeta d'Os Lusíadas. Deteriorada no século XVII pelo prurido das inovações, da extravagância e das subtilezas ocas, tentou baldadamente recuperar os seus créditos no século XVIII, até que depois de meiado o século XIX, entrou num período de deplorável anarquia e de decadência definitiva. Os raros modelos de boa linguagem, carcomia-os o gusano e apodreciam em arquivos tenebrosos e bafientos.

Os escritores, que o consenso geral classificava de pontífices literários, reduziam o seu exemplo e a sua ciência ao jogo casuístico das etimologias, considerando mais perfeita a escrita que mais difícil fosse de aprender e imitar. Em vez de terem um sinal exclusivo para a representação de cada som, estribavam-se nos infólios gregos e latinos, e permitiam-se o luxo nocivo e inútil de dar a um só sinal valores diferentes, para que os estrangeiros, as mulheres e as crianças nunca pudessem dizer que sabiam a língua nacional. Assim, o nh pronunciava-se de um modo em minha e de outro em inhábil; o ch em fachada não se pronunciava como em monarcha. Em certas locuções, faziam adicionamentos que não significavam coisa alguma, como em phtysica, para exprimirem uma ideia que, com a maior simplicidade e nitidez, podia exprimir-se por tísica.

E tudo isto, em nome das etimologias, que os próprios pontífices desacatavam, pois que insensivelmente escreviam caridade, caro amigo, idade, Santos, semelhante, etc., quando, se fossem consequentes no próprio absurdo, deveriam escrever charidade, charo amígo, Sanctos, similhante, etc.

Faziam mais ainda. Quando a etimologia lhes não oferecia pretextos para escrever e complicar a linguagem com adições sábias, acrescentavam sinais e duplicavam consoantes, a seu bel-prazer. De forma, que era vulgaríssimo ver-se um patriarca das letras escrever: cahir, sahir, fallar, Thiago, sachristão, quando não havia razão nem sobra de pretexto para que se não escrevesse: cair, sair, falar, Tiago, sacristão.

A esta anarquia, para que se não olhava, ainda nas esferas mais ilustradas, mas que era já um grande passo para a ruína da língua, acrescia o caos, em que atropelavam a linguagem os escritores que, antes de o serem, não estudaram o seu idioma.

A ânsia do renome, a pressa da celebridade, sacrificava as mais evidentes aptidões, atirando os sedentos de glória, das bancadas da escola primária, para as arenas do jornalismo, do romance, da crítica e da poesia.

Não podes imaginar o que se disse e o que se escreveu, por esses tempos. A linguagem chegou a ser uma algaravia inextrincável, donde a gramática e o bom senso fugiam espavoridos e horrorizados. A crítica tornou-se uma faculdade puramente individual, pela ausência de princípios e de orientação: o crítico A. celebrava a apoteose daquilo que, para o crítico B., era a suprema toleima; num dia, todo o ocidente aclamava um herói, e, momentos depois, o herói era recenseado na confraria dos ineptos ou dos infames. O romance era a fotografia da linguagem do tempo e o estimulante de paixões reles. A poesia, ou, antes, o que se crismava com este nome, era, por via de regra, a extravagância metrificada a palmos, em gíria de estudante cábula.

E contudo, meu amigo, Portugal teve uma literatura. Pode até dizer-se que, de todas as belas artes, a poesia foi a que maior número contou de notáveis artistas. Em parte, explica-se o facto pela influência de tradições aventurosas, e pelo cálido temperamento e vago sentimentalismo das gentes ocidentais.

Teve, pois, muitos e bons poetas este pequeno país.

A todos, porém, sobreleva Camões, pela relativa perfeição artística da sua obra, pela grandeza da sua alma ardente e devaneadora, e pelo acrisolado patriotismo que repassou o seu poema.

Nunca se fez um poema tão nacional e tão patriótico, como Os Lusíadas. A Ilíada e a Eneida são prejudicadas pela fábula; a Divina Comédia é uma fantasia imortal, mas uma fantasia; a Gierusalemme, e o Orlando, e o Paradise Lost, e a Messíada, absorvem-se no misticismo, ou na contemplação de proezas de estranhos; a Henriade representa uma hora de ócio de um filósofo demolidor; o Fausto é um problema de verso. Só Os Lusíadas são a incarnação brilhante do espírito da pátria, da aspiração nacional, das glórias de um povo, que morreu desconhecido e desprezado, mas que, sendo dos mais pequenos do mundo, soubera tomar as proporções do maior povo do velho continente.

Seguidamente ao brado patriótico d'Os Lusíadas, o país perdeu por sessenta anos a sua autonomia; e, por tal forma se habituou à dependência, que proscreveu a musa do patriotismo, como se os cantos livres da pátria fossem uma banalidade râncida e piegas. A musa nacional deu-se depois ao inofensivo labor de reconstituir a Arcádia, mas povoada de pastores, que, em vez da agresta avena ou frauta rude, tangiam a lira, um instrumento célebre, de que ainda não pude descobrir vestígios.

Quando a voz dos poetas já não chegava aos ouvidos de ninguém, a musa desgrenhou-se compungida, nevrótica, fantástica, e deu-se a fazer baladas e trenos e melopeias com acompanhamento de piano. Esteve a ponto de morrer de clorose, mas foi restabelecer-se no campo: e de tal maneira se afeiçoou às coisas da Natureza, que passou a cantar a cenoira e a couve-galega, comprazendo-se, aos serões, em estudar a filosofia de Epicuro. A linguagem da poesia, quando não era sibilina, como nos poemas de Rosalino era, como nos poemas de Jaime José, tão natural que parecia prosa, mas prosa sem normas, em que o sublime era grotesco, e em que o simples e o natural era o soro chilro de miolos sem vida.

Das colecções de Reliquiano, separo um fragmento poético, para que melhor entrevejas a índole e a linguagem da poesia da decadência. Lê, e arquiva, que vale a pena:

Quando olhas para mim, lírio do val',

esvai-se-me a razão, foge-me o estilo,

pois vejo nos teus olhos, tal e qual,

com licença do clássico Camilo,

duas... -- não queiras levar isto a mal! --

duas cabeças rútilas de grilo;

e juro-te que tenho em ti mais fé,

do que no próprio Comte ou no Littré.

Tu és o meu ideal em carne e osso,

e, quando te não vejo, alva Anfitrite,

dou o cavaco, foge-me o apetite,

e fico todo o dia sem almoço.

Que belos frangãos tinha o Mata, um dia,

em que almocei na tua companhia!

Pois os espargos?! não te lembras, filha?

Hei-de levar-te um leque de Sevilha

e cerejas da praça da Figueira,

se voltares ao Mata, quinta-feira.

Não te esqueças, amor, leva a mantilha.

És um bijou com ela;

e quero ver se ainda hoje falo

ao Rafael Bordalo,

para fazer de ti uma aguarela!

Tenho-me espraiado muito sobre literatura, e ainda te não disse o que tinha para dizer-te. Outro dia falaremos.

Recebe o meu ósculo de saudação.

Carta VII

A história. -- O romance. -- O teatro. -- Garrett, e Emília.

Sapientíssimo mestre. -- Já compreendeste que a poesia da decadência, em Portugal, tinha alguma coisa de planta exótica, transplantada para vaso camareiro, em horto de tasca.

Pois as letras de outros géneros, a não serem as do câmbio, não eram melhor tratadas.

A História, ou não existia, ou, para ter leitores, diluía-se em contos de fadas, com que se embalavam as crianças e se acalentava o patriotismo dos velhos. Quando um investigador sisudo, Herculano, se lembrou de fazer História a sério, parou a meio da empresa, porque viu que estava em terra de getas e que os portugueses preferiam à história o conto.

E tão preferido era este, que quase todos os literatos faziam profissão de contistas ou romancistas.

Segundo as diversas influências do tempo, o romance variou de escolas e processos. Um dia, era a Menina e Moça, levada de casa de seus pais, e baldamente procurada em montes e vales pelo seu pastor aflito e amante; de outra vez era o Feliz Independente do Mundo e da Fortuna, gizando filosofias à laia de Horácio...

Felix ille qui, procul negotiis,

Ut prisca gens mortalium,

Paterna rura bobus exercet suis,

Solutus omni foenore.

Aqui, era a Filha do Brasileiro, golfando o sangue dos pulmões sobre ilusões perdidas; cheia de incompreendidas amarguras; rasgada pelos espinhos da saudade, e obrigando a lágrimas as meninas sentimentais e as viúvas novas; ali eram as Cenas de Hoje, em que o autor, dispensando-se de estudar a sociedade no seu conjunto moral e social, e sem se preocupar da beleza real, nem ainda da beleza ideal apostolada pela filosofia da arte, devassava os monturos e os hospitais de leprosos, para só registar o asqueroso e o ignóbil, brindando a pervertida sensibilidade do público com o desenho grotesco das mais torpes e hediondas aberrações da Vida.

Segundo se depreende da colecção da Revista Negra, redigida pelo crítico Sampaio Pires, que morreu em 1925 ou 1926, os quadros dissolventes do romance predilecto, para que melhor atraíssem a atenção e a leitura do mundo feminino, vulgarizavam-se em luxuosas edições, acompanhadas de estampas d'aprés nature, e adornadas, em letras versais, com o título geral de Leitura para Homens, Biblioteca Secreta, etc.; e o Estado, pela sua indiferença ou tácita aprovação, protegia essa indústria, que se lhe recomendava por ser verdadeiramente nacional.

Infere-se da citada revista que a dissolução literária, lisonjeando a dissolução social, não se restringia ao romance, e reflectia-se no teatro e no jornalismo; e conta Sampaio Pires que o mais aplaudido dramaturgo, nos princípios do século XX, era Bernardo Supino. Este autor não se limitava, como os seus antecessores do século XIX, a descrever os escândalos picantes, reais ou imaginários, de uma sociedade decadente, e a disfarçar mal a obscenidade soez com um trocadilho de mau gosto ou com uma frase cheia de reticências. Bernardo Supino ia mais longe: alarvemente convencido de que a literatura deve corresponder ao meio social, levou para o palco, dando-lhes o tom das mais cruas realidades, as agências de Vénus; o comércio das rameiras; incestos aristocráticos, extraídos da crónica das classes mais elevadas; estupros inacreditáveis, fielmente transladados da vida prática dos burgueses e peões; maridos filósofos, que apreciavam a consorte, na proporção dos lucros que ela auferia das suas aventuras galantes.

Dentre as comédias de Bernardo Supino, cita a Revista Negra uma, que teve extraordinário êxito, representando-se quinhentas vezes sucessivamente, e que enriqueceu a empresa do Teatro Aéreo, construído, segundo parece, a meio de um grande viaduto que passava sobre a Avenida da Liberdade. Chamava-se a comédia O Novo Paraíso; e o protagonista, Adão Júnior, fielmente caracterizado à semelhança do Adão Sénior da lenda bíblica, exibia-se em cena, muito naturalmente, sem pecados, sem folha de parra, sem nada. A ingénua, Eva Lusa, trajava unicamente a sua longa trança flutuante, e demonstrava, com a mais atraente convicção, que o fruto proibido não passava de uma lenda. O cenário do último acto representava uma alcova, em que os habitantes do paraíso devassavam ardentemente os mistérios da criação.

E o Padre Eterno, representado por um administrador de bairro, trémulo de solenidade, abençoava o novo tronco de nova progénie, deixando escoar dos cílios uma lágrima eloquente de ternura paradisíaca.

E o entusiasmo apossava-se dos espectadores. Os velhos choravam de alegria, agitavam-se febrilmente nas cadeiras, e distendiam as pupilas incendidas, para ver, ver muito, ver tudo. As meninas consultavam as mamãs e absorviam-se em profundas meditações, em planos de uma ventura desmedida. E os novos irrompiam em aplausos delirantes, arremessavam à alcova luvas, chapéus e binóculos, e arremessavam-se depois eles próprios, abraçando doidamente os protagonistas, na maior das confusões, num pêle-mêle infernal, em que já ninguém distinguia Adão e todos distinguiam Eva. A ovação convertia-se numa luta, o pano caía, a luz afroixava, e os espectadores resignavam-se a deixar por 24 horas as cadeiras do teatro, e iam dessedentar-se nas próximas locandas.

O público fizera o teatro, e o teatro satisfazia o público.

Os moralistas caturras, os Larragas de todos os tempos, pregavam furiosamente contra a desmoralização dramática, e, à noite, por distracção, iam ver o Paraíso no Teatro Aéreo.

As autoridades, desde a polícia até ao prefeito da cidade, assistiam ao espectáculo e não tinham observações que fizessem.

Os governos, fiéis mantenedores da pureza dos costumes, sustentavam um teatro-modelo, destinado a fomentar a boa literatura nacional e a educação pelo drama; mas as empresas não se inventaram para fomentar o interesse alheio, e muito menos os interesses morais de uma sociedade qualquer; donde se conclui que avisadamente andaram as empresas, que preferiam, por economia, as peças estrangeiras, e se dispensavam de estimular a literatura do país.

Entretanto, o teatro-modelo tinha a coragem de se desviar um pouco da escola do tempo, mas a coragem obrigou-o a reconsiderações, porque os dramas e as chamadas comédias de sala faziam-lhe adormecer os espectadores nas bancadas, e esteve a ponto de ser abandonado, se não entrasse na esteira dos confrades, dando larga extracção ao género burlesco das revistas do ano e à literatura picante das comédias bocacianas, ou das operetas espanholas.

E foi isso o que salvou a empresa, mas não salvou a arte. A arte resvalou pelo pendor enlameado das cenas eróticas; e os bustos de Garrett e Emília, -- dois nomes gloriosos na história do teatro, -- descobri-os ontem, cobertos de pó e de vergonha, de envolta com fragmentos de loiça e de estatuetas, no sítio onde existiu um mercado originalíssimo, a Feira da Ladra.

As minhas explorações concentram-se agora neste mercado, e dar-te-ei conta do que mais importante se me deparar ali.

Abraço-te com efusão.

Carta VIII

A Feira da Ladra. -- Fac-símile de uma gazeta. -- O artigo de «fundo». -- O noticiário. -- O anúncio.

Mestre. -- Referi-me anteriormente, e de passagem, ao célebre mercado, a Feira da Ladra, onde se me havia deparado o busto de Garrett, de envolta com fragmentos de estatuetas e utensílios da velha cerâmica.

Consultei as memórias de Reliquiano, para, de alguma forma, ajuizares o que era a Feira, e encontrei, dispersos por várias crónicas, excertos de uma apologia, atribuída a um fabulista do século XIX, O'Neill.

Aproximando e reunindo esses excertos, parece-me que terei pintado a Feira, sem urgência de paleta.

Era isto a Feira:

Aqui a imagem, venerada outrora

Por milagrosa...

Ali, retratos, que os avós preclaros

A netos imbecis mal recordavam.

Além, bojudo calhamaço insulso,

Obra de frade, forjador de petas.

Mais longe vejo colossais volumes:

São leis, decretos, alvarás, Diários.

Vejo novelas mil, por fora imundas,

Mais imundas por dentro, traduzidas

Em chulo português de francês chocho.

Colecções de jornais... ai, os meus pecados!

Em que eu ia falar; cala-te boca!

.....................................Agora vejo

Arcas de pinho dos boçais galegos

Mais longe está o batalhão cerrado

De quanto já calçou pés delicados,

Desformes patas, um museu completo!

Armas não faltam, mais ou menos virgens.

Ocioso é dizer que, de todo esse pandemónio, só restam, para o visitante e para o explorador, fragmentos de estatuetas e loiças, tachos de ferro, bacias de arame, chaves e fechaduras, ferraduras e arreios, e outros objectos de metal. Entre estes, deparou-se-me uma lâmina, que tenho estudado com muita curiosidade, porque equivale a um largo e minucioso capítulo da história portugalense.

É uma inscrição, gravada em cobre, e que constituía certamente uma vistosa tabuleta, para decorar a frontaria de uma casa de redacção.

A inscrição abrange três divisões: duas laterais e uma central; aquelas são o fac-símile da primeira e a segunda página da Opinião da Arcada, diário político, noticioso e industrial; e a parte central reza assim, em grandes caracteres:

NESTA CASA SE FUNDOU

EM 1895

A OPINIÃO DA ARCADA,

A MAIOR E A MAIS POPULAR GAZETA

DAS REGIÕES OCIDENTAIS.

TIRAGEM 365.000 EXEMPLARES.

REDACTOR -- CÉSAR FERNANDES,

O fac-símile da segunda página representa a parte anunciatória do jornal, donde se infere que a terceira e a quarta página seriam analogias àquela; e o fac-símile da primeira exibe o título do jornal, o nome do redactor e da Empresa, e numerosos assuntos, distribuídos por 15 colunas.

Politicamente, vê-se que a Opinião da Arcada estava sempre na oposição, porque, falando sempre mal de tudo e de todos, é que adquiriu a mais a extraordinária popularidade e o maior prestígio no ânimo de todos os governos.

No primeiro artigo do fac-símile, há cruezas deste calibre:

-- «Desengane-se o governo: enquanto não restituir à fazenda os dez mil e quinhentos contos que roubou aos contribuintes e distribuiu pelo compadre Nunes e pelo afilhado Lopes, havemos de dizer bem alto que o ministério é uma quadrilha de ladrões, e havemos de esgotar todos os nossos tinteiros, cobrindo de negra ignomínia a lama em que os miseráveis se a atolam.»

Mais adiante, a pena do noticiarista conta-nos:

-- «Veio hoje ao nosso escritório Josefa Simeoa, uma galante rapariga de 18 anos, padeira, queixar-se de que o seu namorado, num momento de despeito, a ferira com uma tesoira na coxa esquerda.

Vimos o ferimento: é um golpe de 2 centímetros de comprimento e 1 de profundidade. Compungia-nos o contraste do sangue com a alvura da pele, que é de uma macieza veludínea. A coxa direita estava perfeitamente incólume. O sangue havia espirrado para a fímbria da camisa, maculando-a. As meias, que eram de finíssimo algodão, não ofereciam nada de notável. Fomos ver depois o instrumento do crime: é uma tesoira pequena e barata, tendo ainda numa das folhas uma nodoazinha de sangue. Pedimos todo o rigor da lei para o criminoso, e sentimos o desgosto da pobre Simeoa, que é realmente de uma condescendência amabilíssima, e de uma formosura tentadora.» --

A Opinião fornecia aos seus 365.000 leitores, de todos os sexos e de todas as idades, minuciosas informações sobre os factos ainda os mais insignificantes. Parece que a vida particular deixara de existir, porque entrava no domínio público tudo o que hoje consideramos íntimo, e defeso à curiosidade pública. No fac-símile da primeira página lê-se, por exemplo:

-- «Quando ontem subíamos ao 5.º andar do prédio n.º 229 da Rua do Conselheiro Aoaoci, aonde íamos levar as nossas consolações a uma pobre menina que chegou da província e ainda não tem colocação, percebemos que havia altercação entre os habitantes do 4.º andar; e, na nossa qualidade de repórter da Opinião, foi-nos facultada a entrada, e percebemos então que o sr. major reformado Silvestre Silvano discutia com sua esposa o orçamento doméstico. Toda a razão estava do lado do sr. major, porque já tinha empenhado a cama por 4$000 réis, não vestia camisa lavada há 15 dias, não tinha sapatos para sair à rua, e negava-se a empenhar a espada, para que a esposa fosse ver os elefantes do circo.»

Em assuntos industriais, cito-te apenas um exemplo. Em discussão com um colega, dizia a Opinião:

-- «Acusa-nos a Voz da Baixa de que deixámos de agredir violentamente a nova Companhia do Guano, desde que a direcção desta companhia nos brindou com duas mil acções beneficiárias. Não tem de que acusar-nos: a companhia procedeu nobremente, esquecendo nocivos ressentimentos, para ter ao seu lado um defensor convicto; e nós convencemo-nos afinal de que é dever de todos auxiliar qualquer indústria destinada a fomentar a riqueza pública.» --

A parte anunciatória da Opinião oferece curiosidades, que o nosso critério estranha hoje, mas que eram factos vulgaríssimos da vida portuguesa.

Um anúncio:

-- «Barnabé Catão da Silva, director-geral dos descaminhos e contrabandos, prontifica-se, por módico preço, a obter o lugar do tesoireiro das décimas para quem tenha boa forma de letra e conheça as quatro operações, satisfazendo o mais que se combinar.» --

Outro:

-- «O lavrador do casal das Pintas, que dispõe de 4 votos e possui os melhores porcos do Alentejo, dará 3 contos em dinheiro ao sr. deputado ou a qualquer influente, que lhe consiga o título de marquês das ditas Pintas.» --

Outro ainda, em caracteres maiores, no alto da coluna 12.ª:

-- «Previne-se o sr. ministro das justiças de que, se não nomeia Miguel dos Anjos para o lugar de escrivão dos órfãos, publicaremos integralmente a cartinha desencaminhada que o ministro escreveu à sr.ª condessa dos Açudes, e na qual ele prometia tratar imediatamente de se divorciar da sua mulher, para consagrar o resto dos seus dias à encantadora condessa.» --

Mais ainda:

-- «Meu bem. Teu pai opõe-se, mas vamos vencer tudo. Está pois combinado: amanhã, às 2 da madrugada um trem há-de parar à tua porta. Não te digo mais. Como seremos felizes!» --

Ainda outro:

-- «Uma senhora muito decente, de 21 anos, e possuidora de todas as prendas, oferece-se para governante de homem só, solteiro, novo, que esteja em boa posição e dê boas abonações. Carta a P. P.»

Não tenho espaço para reproduzir todo o fac-símile, nem vale a pena. Isto, meu grande amigo, não é o fac-símile de um jornal, é o fac-símile de uma época, e por isso o recomendo aos teus estudos de filosofia da história.

Os demais objectos, que observei nas ruínas da Feira da Ladra, pouco interessam à arqueologia. Há entretanto uns restos de portão, de ferro fundido, conservando sobrepostos um tinteiro, um livro e uma ave nocturna, tudo do mesmo metal. Provavelmente são vestígios dos tempos simbólicos. Vou estudar o assunto, e ainda te escreverei, antes do solstício do Verão.

Carta IX

O mocho simbólico. -- Portugal e a Turquia perante a instrução. -- O professor mendigo. -- 52 reformas em 47 anos. -- Os reformadores. -- Bafio universitário.

Mestre e amigo. -- Efectivamente, o pedaço de ferro fundido, representando um tinteiro, um livro e uma ave, era um símbolo. Assim o afirma Reliquiano, que é autoridade incontrovertível.

Sobre a espécie da ave, ocorreram-me dúvidas graves, porque, cotejando a figura com os vestígios análogos da fauna fóssil da península hispânica, e sendo aquele documento um símbolo do estudo, cheguei a persuadir-me de que se tratava de um papagaio, porque o estudo em Portugal tinha geralmente, como resultante, a faculdade de falar, sem necessidade de pensar. Mas por fim, melhor orientado, entendo que o simbólico passarão era uma ave de rapina, não só pela configuração do bico, mas também porque, nos últimos tempos da nacionalidade portugalense, as aves predominantes eram as aves de rapina.

Mas o que mais importa à crítica histórica é a síntese das ideias que o símbolo representava.

O estudo existia e recomendava-se em Portugal, como prenda galante de gentes ociosas, e como meio de conquistar os lugares menos rendosos. As sinecuras, as prebendas, as fontes de pingues proventos, isso era partilhado entre os que, à falta de letras, tinham por ascensores o patronato e a audácia.

Havia aqui três categorias de estudo: primário, secundário e superior.

Para o estudo primário, chegou a haver em Portugal perto de seis mil escolas públicas. Entretanto, e ainda que se decretou o ensino obrigatório, apenas sabia ler uma parte insignificante da população. Numa Exposição Universal, que houve em Viena de Áustria, quase no último quartel do século XIX, provou-se que Portugal, em assuntos de instrução, estava a par da Turquia e da Rússia, que eram por aquele tempo as nações europeias menos civilizadas.

-- Que faziam então os seis mil mestres de ensino primário? -- perguntarás tu.

Davam palmatoadas e pediam esmola. Primitivamente a esmola era-lhes dada pelo Estado, a título de retribuição. Depois, ergueu-se a bandeira sedutora da descentralização, e os municípios foram encarregados de esmolar os professores; mas, como os municípios também eram pobres, e como a caridade bem ordenada não sai de casa, os professores sentaram-se à porta das escolas, estendendo a mão à caridade particular.

A caridade oficial, ao mesmo tempo, exercia-se profusamente, esmolando com avultados prémios os poldros que mais corressem nos hipódromos, e distribuindo muitos contos de réis pelos comediantes aposentados, que ainda pudessem trabalhar. Os poldros premiados significavam que o seu criador tinha excelentes éguas para o seu uso; e a aposentação dos comediantes em serviço activo representava o sacerdócio da arte, que atirou o busto de Garrett para a Feira da Ladra.

A instrução secundária, não posso dizer-te claramente o que isto era, porque nunca teve uma organização definida. Nas colecções de Reliquiano, há um índice da legislação da instrução pública em Portugal, e por aí vejo que, desde 1863 até 1910, houve cinquenta e duas reformas do ensino secundário, não falando naquelas que não chegaram a executar-se, por absoluta inexequibilidade.

Imagina como se desenvolveria o ensino secundário! Uns dos reformadores eram rotineiros, quase imbecis, e punham o latim à esquerda e à direita, atrás e adiante de cada uma das demais disciplinas, obrigando até os alunos de matemática a resolverem em latim as equações trigonométricas. Outros eram filósofos utopistas e exigiam meninos sábios, que aos dez anos soubessem fisiologia, química, paleontologia, e outras ciências vistosas, que o legislador conhecia perfeitamente, por lhes ter visto o título nuns catálogos transrenanos. Havia tal, que mandava estudar os preliminares de uma ciência um ano depois de estudada a mesma ciência. Outro pretendia que todos soubessem desenhar, ainda aqueles que nascessem sem braços. Outro mandava estudar as línguas estranhas no primeiro ano do curso, e a língua nacional no último ano. Outro... Não te conto mais, porque terias o direito de duvidar de quanto eu te dissesse a esse este respeito. E, contudo, juro pelo teu nome, que nada há mais autêntico!

Do ensino superior, o exemplar mais completo era a universidade coimbrã. Este instituto, quanto a reformas, seguiu destino oposto ao do ensino secundário: enquanto este sofria cinquenta e duas reformas em quarenta e sete anos, a universidade, abordoada a uns estatutos do tempo da Inquisição e dos frades, arrastava imutavelmente a sua majestosa decrepitude por todo o século XIX, e apresentava ao século XX, intacta, a ciência fossilizada do padre Verney e de outros acólitos do marquês de Pombal. Na universidade, às ideias correspondia a forma: professores e alunos trajavam de monges; os delinquentes eram julgados em tribunal secreto, sem direito de defesa; os livros eram do séc. VI, do tempo de Justiniano; e o Estado gastava ali boa parte da receita pública, mantendo, com foros de ciência universitária, a ciência dos mistérios e dos dogmas, -- a teologia.

Compara este quadro antigo com a Universidade Central, e congratula-te, homem do presente.

Até muito breve.

Carta X

Feitos de Emílio, o «Brando». -- Império dos nefelibatas. -- O rapé e a salvação da pátria. -- A balança da justiça. -- Legisladores aos pés de João de Deus. -- A sociedade portuguesa: espiritistas, filólogos, dentistas e salvadores. -- A folha de parra.

Mestre amigo. -- O equinócio do Outono anunciou-se aqui com tão copiosos aguaceiros, que sou forçado a interromper as minhas investigações ao ar livre.

Entrementes, e enquanto a nortada açoita os panais da minha tenda, vou-me recreando e instruindo, ao decifrar com Reliquiano algumas das suas mais curiosas crónicas e lendas.

À míngua de mais levantado assunto, falar-te-ei de uma ou duas dessas crónicas.

A que neste momento se abre diante de mim não tem data, mas foi impressa numa chamada tipografia do Varatojo, e é acompanhada de desenhos simbólicos e figuras de devoção.

O título reza assim:

Piedosa crónica

dos feitos, virtudes e gloriosas manhas

de Emílio, o Justo,

também cognominado o Brando,

senhor de baraço e cutelo

em terras lusas,

pelo seu admirador e familiar

Francisco Acólito

O título não se impõe nimiamente ao interesse dos homens de hoje; mas, quando se nos depara a biografia de um herói antigo, escrita por um contemporâneo do biografado, a crítica, descontando o que haja de adulação, tem seguros elementos para a reconstituição histórica de uma individualidade célebre.

Li por isso a crónica, e da leitura me não arrependo.

O protagonista da lenda, consoante o indicam as expressões baraço e cutelo, foi senhor de grande valia, governador ou cônsul, no país lusitano, ou em parte dele.

A sua ascensão ao fastígio do poder fora precedida de grandes sinais e vaticínios.

Predominava naqueles tempos uma seita, inteiramente desconhecida nos tempos anteriores.

Era a seita dos nefelibatas.

É difícil reconstruir hoje com exactidão a história da seita, os seus princípios e os seus dogmas. Parece porém que herdara alguma coisa do budismo asiático. Os seus adeptos entregavam-se a misteriosas contemplações, e, nos momentos de êxtase, pairavam em espírito sobre as nuvens do Tejo e de Cacilhas...

Quando a pátria se afundava nos tremedais da depravação e da anarquia, chamou de Cacilhas Emílio-o-Justo, para que que sustivesse a onda turva, que alagava a Baixa e o cavalo de bronze.

E, quando o bote de Emílio-o-Justo, também cognominado o Brando, abicou ao Sodré, o povo levantou-lhe hosanas, as damas acenaram das janelas, e as multidões da Arcada aclamaram-no príncipe dos nefelibatas.

E Emílio-o-Brando, a cada saudação, destapava um pequenino cofre de oiro, cujo conteúdo era um pó medicinal, que fazia espirrar quem o cheirava.

Naqueles tempos, fazer espirrar alguém era testemunhar-lhe amizade e justiça.

E a cada espirro de cada cidadão, Emílio-o-Justo dizia sorridente: -- Viva! --

E todos os cidadãos, assoavam-se entusiasmados, conclamavam: -- Viva o Justo! --

E, quando o príncipe dos nefelibatas se sentou na sua cadeira de administrador do direito e de dispenseiro da justiça, as leis empoeiradas e carcomidas que o ladeavam, sentiram um estremecimento de júbilo: iam ser limpas, arejadas, e cumpridas como se fazia mister.

E os litigantes chegaram em cardume.

E disseram-lhe:

-- Salve, Justo e Brando! O Apocalipse anunciou a tua vinda. Tu és íntegro, como um poldro, e bom como um melão! Salve! --

Horas depois, anunciada a audiência primeira, chegou o primeiro peticionário, Paulo.

Trazia escrituras e pergaminhos em barda, a atestarem o seu direito. Servira honrada e largamente o país, sem uma nódoa e sem desprimor. Fora atropelado a cada passo pelos mimosos da fortuna e pelos concussionários do poder. Trazia as sandálias corroídas pela aspereza dos caminhos. Acercou-se do príncipe, e disse-lhe apenas:

-- Justiça! --

Emílio-o-Justo abraçou-o comovido, e, entre lágrimas:

-- A justiça não se pede, -- disse; -- justiça é dever, e eu vou pagar o que o país te deve. --

E, destapando o pequenino cofre de oiro, acrescentou:

-- Cheira, amigo.

Paulo curvou-se, e foi anunciar aos filhos que no outro dia teriam pão.

Mas, ao lavrar da sentença, Francisco Acólito, biógrafo do príncipe, obtemperou:

-- Se fizerdes Paulo escrivão das sisas, agravado será o pretendente Bernardo.

-- Falai vós da justiça de Bernardo, -- ordenou o príncipe.

-- É meu amigo, senhor!

-- E que mais?

-- Dá-me polimento nos sapatos, e prepara excelentemente torradas com manteiga.

-- E em funções públicas de que é capaz?

-- Pode pautar o almaço em que se lavram decretos, e correr o reposteiro de Vossa Serenidade.

-- Sabe ler? sabe escrever?

-- Um pouco, senhor; o bastante... Lede o seu memorial. --

E Emílio-o-Justo leu:

Selentíssimo Sinhor. Diz Vernando Candeias Lebre que é seu desejo assubir a escrivão das cizas, pró que tem todas as avelidades nesseçarias.

E. R. M.

-- Tendes razão, Francisco, -- concluiu o príncipe; -- nomeie-se o Bernardo. --

E o Bernardo foi nomeado.

Este facto, de que não pode haver dúvida, em vista da autoridade do biógrafo, é tema de muitas páginas laudatórias, na biografia de Emílio-o-Brando, como documento de inexcedível bondade e nunca igualável justiça.

Não desejava eu avolumar excessivamente esta carta com assuntos de limitado interesse; mas o ócio desculpa-me, e o prazer de contigo conversar absolve-me.

Falar-te-ei pois ainda de um curioso folículo de Reliquiano. Intitula-se Memórias de um Pedagogo, e é atribuído a um poeta do século XIX, que parece chamar-se João Dedeus, ou coisa assim.

Traduzirei apenas algumas linhas.

-- «É inquestionável a excelência do meu método, sobretudo pela rapidez, com que os analfabetos passam a homens letrados. Basta-me registar um facto:

Em vésperas de eleições políticas, é vulgar procurarem-me pessoas gradas, que desejam iniciar-se nos mistérios da escrita e da leitura. Por via de regra, essas pessoas são candidatos a deputados, e, quando recebem o seu diploma, já o sabem ler correctamente.

De um sei eu dizer que, tendo saído eleito antes de saber ler, me apresentou o seu diploma, para começar por ali os seus exercícios de leitura. Certo é que, quatro dias depois, falava nas cortes, era um dos legisladores mais celebrados, e no ano seguinte estava ministro.

E, como este, muitos casos, que por brevidade omito.» --

Já agora, não farei ponto na epístola de hoje, sem te dar conta de um dos mais interessantes documentos da livraria arqueológica de Reliquiano, documento religiosamente conservado num cofre de cedro, graças ao prestígio, de que certamente gozou o nome de quem escreveu o precioso trabalho.

A obra, escrita no idioma luso-franco-anglo-russo, remonta ao primeiro ou segundo quartel do século XX, e foi escrita, sob o título de História Filosófica da Decadência Portuguesa, por um filósofo coimbrão, Simpliciano Cozelhas, desterrado na Sibéria.

Fastidioso e longo seria, se não impossível, dar-te miúda relação dos factos registados por Cozelhas, e da filosofia com que os glosa.

Referir-me-ei simplesmente ao que de mais notável, ou de mais curioso, se me deparava na História Filosófica.

Refere Simpliciano que, assim como em tempos remotíssimos houvera brâmanes e sudras, espartanos e ilotas, patrícios e plebeus, a sociedade portuguesa, em homenagem aos seus avoengos da Índia, Grécia e Roma, dividia-se, nos seus últimos tempos, em duas classes: ovelhas e pastores.

A classe dos pastores subdividia-se em quatro numerosas famílias: espiritistas, filólogos, dentistas e salvadores.

Eu te explico.

Os espiritistas, à semelhança do dualismo persa de Ahriman e Ormuzd, reconheciam como deuses supremos Mesmer e Allan Kardec.

Celebravam os seus mistérios à volta da tábua redonda dos cavaleiros do rei Artur, consultavam as almas que vagueavam pelos céus de Ptolomeu, desprendiam-se dos interesses mundanos, e pregavam a inanidade da matéria em face de grandeza e da majestade do espírito.

Pertencia a esta família a seita dos nefelibatas, que faziam amor, política e literatura na serena e despedida região dos espíritos, por sobre as nuvens que se recortam na direcção da Via Láctea.

Por um desdobramento de faculdades visionistas, os espiritistas, sem aliás perderem a sua individualidade metafísica, produziram uma segunda família, a dos filólogos.

Segundo os estudos frenológicos de sábios russos, alguns crânios filológicos, guardados no museu do Kremlin, ostentavam depressões, denunciadoras de uma especial estrutura encefálica.

O filólogo português, em obediência ao credo espiritista, procurava a convivência dos mortos, estudava-lhes a linguagem, e subordinava a um sistema único todas as velhas línguas do Universo. Os próprios mortos espantavam-se da audácia do filólogo, e vingavam-se, convertendo-lhe as noites em pesadelos horríveis: Homero aparecia-lhe então, mascarado de advérbio, Virgílio tomava a figura de uma vírgula, Shakespeare encaracolava-se numa interjeição, e Juvenal, disfarçado em acento agudo, beliscava as orelhas do filólogo.

Neste convívio com os mortos, o filólogo detestava os vivos, como ignorantes, materialistas e desrespeitadores do verbo dos espíritos; e atirava-lhes tropos e conjunções e anátemas.

Na contemplação dos espíritos e de si próprio, o filólogo comprazia-se na solidão; e quando, raramente, aparecia em público, perseguia-o a vaia do rapazio estúrdio: -- Agarra, que é filólogo! Carrega-lhe os tropos! Conjuga-lhe as orelhas! Dá-lhe barrela! --

E o filólogo, corrido e traquejado, sumia-se.

As academias médicas discutiram largamente se a filologite seria caso patológico. Um alienista célebre sustentou que a filologite era quase sempre um prenúncio do delírium tremens, e exibiu um admirável exemplar, que, abanando as orelhas, fazia cair uma chuva de dialectos.

Não se propagou muito a família dos filólogos; pois que, demonstrado o carácter contagioso e hidrofóbico da filologite, foram apanhados a laço os exemplares mais notórios, e hospitalados no ermitério da Arrábida.

Por noite velha, quando a Lua irrompia detrás das ruínas setubalesas, pelas chapadas da Arrábida reboavam lamentações e salmos. Viandantes, transidos de susto, julgavam ouvir gritos e blasfémias de alma penada, e, na vertigem da fuga, precipitavam-se no Sado. Asseguravam outros que tudo aquilo eram latidos de cães silvestres, uivando ao luar.

Daqueles tempos nada resta hoje onde foi a Arrábida. Pude observar apenas os vestígios da canalização dos dejectos hospitalares, construída com ardosias, pacientemente lavradas pelos filólogos. Uma delas, expungida a crusta de secreções petrificadas, permitiu-me ver, entre arabescos romano-celto-germânico-mirandeses, um substantivo neutro abraçado a um verbo passivo, sobrepostos nesta legenda: -- À glória de Zé Filólogo, patriarca da Arrábida. --

Foi curta e obscura a história daquela família.

Mais positiva, mais alegre e mais prolífica, a família dos dentistas, bem recebida em toda a parte, foi todavia uma das causas mais determinantes da decadência portuguesa.

Do século XVI ao século XX, operou-se uma transformação extraordinária na fisiologia portugalense.

Um pernicioso invento de Filipe Nicot levara a sociedade a absorver habitualmente fumo de tabaco, que, entre outros efeitos, tinha o de enegrecer os dentes, fomentar-lhes a carcoma, e abreviar a vida dentária.

A esta circunstância acresceu o hábito que muita gente tinha, à semelhança dos filólogos, de morder nas pedras.

Eram por isso vulgaríssimos os dentes sujos e ruins, e as maxilas desdentadas.

Daí graves embaraços para a vida orgânica, que, pela deficiente trituração dos alimentos, começou a elanguescer e a decair, como árvore desfrondada pelo temporal.

Nesta conjuntura, foi-se organizando a família dos dentistas, que se apresentaram como conservadores e restauradores da beleza e saúde dentária, e, portanto, como vivificadores do organismo portugalense.

Uns apregoavam a creosote contra dores de dentes e moscas varejas; outros inventavam os pós da viscondessa e o elixir dos beneditinos; estes fabricavam dentaduras à custa de velhos esqueletos e da generosidade dos coveiros; outros rebocavam com chumbo os caninos carcomidos; e outros, ainda, percorriam as feiras, os parlamentos e os comícios, tirando dentes sem dor.

De tão simpática e tentadora indústria resultou apenas o agravamento do mal.

Por um lado, os pós, os elixires e a creosote, e por outro a barateza e a satisfação com que se extraíam dentes, punham a descoberto os alvéolos de toda a gente, dando-se o caso de que as últimas gerações portugalenses se desdentaram antes dos dezoito anos.

Imagina como seriam laboriosas as digestões dos pratos de resistência, nos bufetes do Teatro Aéreo, ou a deglutição dos chifres, com que o Estado alimentava o funcionalismo. As compleições depauperavam-se prematuramente, a mocidade tornou-se uma lenda, e quem chegava aos trinta anos atingia a decrepitude.

Como consequência natural, a debilidade orgânica arrastava consigo a debilidade moral, intelectual e estética.

O trabalho deixou de ser um dever e tornou-se sacrifício; o roubo converteu-se numa indústria, tacitamente permitida pelas leis; e a luta pela vida, cerrando-se pela vitória do mais forte, tornou a miséria um facto geral.

Os estranhos, menos decadentes, ou mais audazes, não reconheciam as fronteiras portugalenses, e levaram o que de melhor se lhes deparava no país, deixando-lhe alguns pedações de pão bolorento, cordas de viola e violas em sacos.

Como as épocas mais calamitosas de todos os povos foram sempre acompanhadas da esperança num messias redentor, os profetas sebastianistas haviam anunciado em Portugal que dos nevoeiros da sociedade surgiriam libertadores heróicos.

À sombra das profecias, surgiu no século XVII a seita dos falsos sebastiões; e nos princípios do século XX, ou fins do século XIX, formou-se a família dos salvadores.

O programa dos salvadores era de uma simplicidade cativante: -- Amor à pátria; guerra à imoralidade, prémio à virtude e ao mérito; paz e concórdia em todos os domínios da Catânia lusa; comboios gratuitos; pão barato; a Primavera em Dezembro, e, além da vida, o paraíso de Mafoma. --

Apóstolos da salvação da pátria, as suas palavras eram repassadas de unção e amor do próximo; e, quando eles passavam, o povo curvava-se, e beijava-lhes a fímbria da túnica roçagante.

Decorridos anos numa expectativa ansiosa, notou o povo que a sua subsistência não melhorava, e que toda a caça dos montes era consumida nas ceias dos salvadores. E disse-lhes:

-- Padres conscritos, e grandes senhores! A vós recorre o povo, que não tem celeiros nem adegas, ponderando respeitosamente que os servos de Vossas Altezas varrem a caça dos nossos montes, levando-nos o talvez último recurso da nossa subsistência. Justiça e piedade, senhores! --

E o príncipe dos salvadores, erguendo-se no supedâneo do cavalo de bronze, erigido à memória de Pombal, perorou às gentes:

-- Povo meu dilecto. A tua virtude é grande, e a tua confiança é justa. Não caias todavia em tentação, e foge dos maus pensamentos. A caça desaparece dos teus montes, porque toda ela é indispensável para o cumprimento da missão que a providência nos deferiu. Afanados no rejuvenescimento da pátria, verificamos que esse desiderato só pode obter-se pelo elixir de Brown-Sequard; e este elixir, na quantidade necessária, nunca poderia alcançar-se, se nas retortas do laboratório não entrasse a caça montesinha, nomeadamente os coelhos. Por isso...

-- Basta! conclamou o povo! Deus ajude os salvadores. --

E os salvadores devoraram tranquilamente todos os coelhos. Em cumprimento do seu programa, premiaram bizarramente a virtude que o povo lhes atribuía; viajaram de facto em comboios gratuitos; e não lhes escapou sequer a Primavera em Dezembro, porque a foram gozar na África Central, depois de extinta a caça e esterilizadas as veigas nas regiões adjacentes ao Tejo. Propuseram-se salvar o Daomé e o Tombuctu, monopolizaram o marfim, as amazonas, e a cachaça, e exterminaram-se reciprocamente, na partilha do continente negro.

O povo portugalense, esse ficara a pão e laranja, mas pão caríssimo, e laranja detestável. Depois... Já te contei o resto.

Mudando de assunto, quero comunicar-te ainda alguns episódios interessantíssimos das lendas portugalenses.

E digo lendas, porque nos parecem realmente fantásticas muitas destas crónicas de Reliquiano, mas tudo leva a crer que os ingénuos cronistas não falsearam a verdade histórica.

Prepara-te para assombros, e vai lendo.

Houve nos fins do século XIX

E aceita as saudações cordiais do teu velho amigo,

TERRAMARIQUE

Notas

Vêm a pêlo algumas palavras sobre a estrutura e configuração daquela embarcação aérea, que nada se assemelha aos nossos balões de hoje, e ainda menos aos modelos do nosso padre Bartolomeu de Gusmão, ou dos irmãos Montgolfier, de Lennox, de Genet, do barão Scott, ou de Dupuy de Lome.

A configuração daquele veículo era a de um dragão enorme, com as respectivas asas e garras.

As garras eram como que âncoras fixas, que sustinham a embarcação aérea, quando chegavam ao solo. As asas, no comprimento de 20 metros, eram construídas de ébano e aço, e moviam-se mais ou menos rapidamente, segundo a indicação de um comutador eléctrico, muito diferente do comutador de Tissandier. A cabeça do dragão constituía o leme do enorme navio aéreo, que comportava 100 passageiros. O leme e as asas eram conjuntamente reguladas pelo comutador, que estava em contacto com uma potente máquina dínamo-eléctrica.

O aço polido das asas, marchetando e reforçando o ébano, tinha cintilações fantásticas nas solidões do espaço. Do costado azul e verde do Dragão, que era o nome e a configuração do veículo, pendiam, doiradas, as garras.

Interiormente, o Dragão oferecia o luxo e as comodidades do mais sumptuoso e perfeito palácio; e à frente, isto é, um pouco atrás do leme, erguia-se um elegante torreão, que era observatório astronómico, guarnecido de maravilhosos instrumentos científicos, entre os quais avultavam telescópios, cujo alcance excedia todas as previsões de Flammarion.

Um encanto, aquele Dragão de cedro, aço e ébano! (Nota do editor [Cândido de Figueiredo].)

Esta carta ocupa no texto o número XIX; mas, publicando só algumas das que se referem a Lisboa, subordino ao meu propósito a numeração das cartas. (Nota do editor [Cândido de Figueiredo].)

Neste ponto, como noutros muitos, permito-me a liberdade de reservar para a edição definitiva muitas citações e referências de Terramarique. O sábio não tinha motivo para condescendências, e é por vezes tão cruel, que vou perguntar ao meu travesseiro se será patriotismo vulgarizar desde já todas as alegações e comentários do futuro crítico.

Além do que, o meu revisor sustenta convictamente que há muitos casos, em que se deve ter papas na língua.

Assim será. E desça a folha de parra. (Nota do editor [Cândido de Figueiredo].)


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TextGrid Repository (2022). Portuguese Novel Corpus (ELTeC-por). Lisboa no Ano Três Mil: Edição para o ELTeC. Lisboa no Ano Três Mil: Edição para o ELTeC. European Literary Text Collection (ELTeC). ELTeC conversion. https://hdl.handle.net/21.T11991/0000-001B-D898-4