UM CONTO PORTUGUEZ
EPISODIO DA GUERRA CIVIL
A MARIA DA FONTE
POR
MIGUEL J. T. MASCARENHAS
PORTO
Typographia Lusitana
84--Rua das Flores--84
1873.
PROLOGO
Não ha forças humanas que nos destruam as tendencias.
Quando o pae d'um antigo poeta latino castigou severamente o filho por escrever poesias, ouviu do castigado um famoso verso heroico, como promessa de não compôr mais versos.
Desde os onze annos de idade que sinto uma irresistivel attracção para as letras.
Não frequentei escólas: apenas me ensinaram o--a, b, c. Em tal ignorancia, como chegar á realisação dos meus ambiciosos sonhos, que todos eram de vêr em letra redonda a minha «letra de mão»?!
Tive por unicos auxiliares da minha ambiciosa quanto ardua empreza, a muita leitura, de boa ou má digestão, o muito ouvido, a muita vontade, e a muita audacia, que é o fructo da ignorancia.
Tenho soffrido decepções amargas, por muitas das minhas impensadas obrinhas: se eu fui escrevedor de gazetas!...
Remirei os meus peccados, com a publicação d'este livro?...
Sugeitei a primeira parte do «Conto portuguez» á censura d'um dos mais eruditos litteratos do Minho, que se dignou fazel-a, com a pericia e imparcialidade dignas d'elle. Os seus prudentes e sabios conselhos, a que dei todo o peso, estiveram, por um triz, a matar a obra: depois de ler o bom juizo do meu sensor, tudo que eu havia escripto me parecia horrendo.
Resolvi, pois, concluir, e dar publicidade ao meu «Conto» sem continuar o prévio exame da pessoa competente a que me refiro. A rasão d'este proceder, que parece atrevido, está no vehemente desejo de ver publicada a obra, e na minha indole de hoje: tive já tanto de audacioso, quanto agora tenho de poltrão. O estudo, os annos, e tambem as doenças, concorreram para a mudança: vem sempre tarde o perfeito conhecimento da nossa ignorancia. Não curo do concerto, para não desabar o edificio. Se continuasse a apresentar o meu trabalho, como tencionei, ao mesmo excellente critico, e elle como é de crer, lhe notasse os defeitos,--morria o «Conto» com toda a certeza: morria, porque eu, por um erro apontado, desconfiava que fossem erros todas as palavras.
Seria melhor?...
São exactissimas as citações que faço tanto na parte historica como na romantica, colhidas em livros insuspeitos; e o que é acção do «Conto», sem ter allusões determinadas, é, com tudo, verdadeira: são muitos factos, meus conhecidos, desviados das épocas e logares em que se deram, atados e compostos com a arte de que posso dispôr, e postos a cargo de imaginarios personagens.
Resta-me dizer que, na pontuação, segui o systema de regular a escriptura pelas pausas do discurso. Regras, deduzidas dos principios ideologicos, e da grammatica geral, não estão ainda assentadas, e já é tarde para o serem. Assim, entendi que não errava, seguindo opiniões esclarecidissimas, que podem ser capitaneadas pela mui douta opinião do nosso immortal padre Vieira, manifestada, por exemplo, n'este famoso periodo:
«Arranca o estatuario uma pedra d'essas montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão, e começa a formar um homem; primeiro, membro a membro, e depois, feição por feição, até a mais miuda: ondeia-lhe os cabellos; aliza-lhe a testa; rasga-lhe os olhos; afila-lhe o nariz; abre-lhe a bocca; avulta-lhe as faces; torneia-lhe o pescoço; estende-lhe os braços; espalma-lhe as mãos; divide-lhe os dedos; lança-lhe os vestidos: aqui desprega; alli arruga; acolá recama: e fica um homem perfeito, e, talvez, um sancto, que se póde pôr no altar.»
Guimarães, 12 de Agosto de 1873.
Miguel J. T. Mascarenhas.
PRIMEIRA PARTE
HONRA
«No que o mundo chama "honra" ha muitas vezes mais vaidade que virtude».
(DR. CORRÊA DE LACERDA).
UM CONTO PORTUGUEZ
I
Trez DonzellasTres, sim. Não cuidesQue te desgraças:Vês?Tres são as Graças,Tres, as Virtudes,Tres.»«"João de Deus"--FLOR DO CAMPO.»
Ao cahir da tarde de um dia que fôra borrascôso, no mez de Maria de 1846, avistavam-se, em preparados assentos de terreiro povoado de arvores floridas junto do atrio de nobre e vetusto domicilio, no valle de Sousa, das cercanias de Penafiel, tres formosas donzellas em colloquio intimo. O donaire de uma d'ellas e, a par de seu garbo senhoril, a riqueza e o bem posto de seus atavios, estremando-a das companheiras, annunciavam a elevada posição social a que pertencia. A natureza é que fôra egualmente prodiga para todas tres, no tocante a dotes physicos. Possuiam essas feições caracteristicas das nossas mimosas portuguezas--e não é cego patriotismo esta asserção--que reunem o que ha de seductor em todos os typos do mundo.
Chamava-se a fidalga D. Maria da Gloria da Mesquita Bandeira e Abendanho: por menos euphonico que pareça este ultimo appellido--seja dito aqui ligeiramente--é muito nobre e muito peninsular.
D. Maria achava-se no gôso de todas as caricias da familia, porque vira fallecer, um após outro, cinco irmãos varões, ficando a ser, por tal falta, o unico enlevo de seus nobres e abastados progenitores; como tambem usofruia o respeito admirativo de todos os mancebos de muitas leguas em redor de sua habitação, por ser esbelta; possuir cintura como de vespa; pés pequenissimos; mãos a que todos os poetas--e os democraticos mais que todos--chamam aristocraticas, por não encontrarem palavra mais significativa do bello; rosto comprido; tez pallido-rosa; nariz um tanto aquilino; olhos pretos, rasgados em fórma de amêndoa, e penetrantes; bocca, ainda que não mui breve, attrahente e engraçada, pelos alvissimos dentes que sustinha, e delicioso sorrir que semeava; cabellos que se lhe formavam em natural e opulenta corôa; piso de alvéloa sobre gêlo, e... mais de trezentos mil cruzados em dote.
Digamos em abono de poucos dos frequentadores da morada de D. Maria, que as magnificas e rendosas propriedades da gentil fidalga, entravam, só por ultimo, nos calculos que faziam, e nos sentimentos que manifestavam.
A donzella que apresentamos como principal heroina do nosso conto--que á força de ser verdadeiro ha de parecer inverosimil--apenas desmentia os seus nobilissimos antepassados na applicação ao estudo, e nos apreciaveis resultados que de tal ia colhendo. Era já mais de mediocremente instruida, e muito além do geral das senhoras portuguezas.
Sobre a instrucção, devia a Deus um talento investigador, que, junto ao espirito repentista do sexo, dava á briosa fidalga proveitosas vantagens.
Sustamos este bosquejo da nossa estremada heroina, que muita occasião teremos de pôr em relêvo seus dotes e qualidades.
As companheiras de D. Maria, chamavam-se Anna de Jesus e Rosa de Lima, estimadas filhas de dous dos muitos caseiros da fidalga. Eram muito parecidas, apesar de não conhecerem parentesco algum entre si, e tão similhantes uma á outra, que muitas vezes as confundiam, e lhes trocavam os nomes.
Fallaremos de fugida nos dotes physicos de Rosa e Anna: altas; delgadas; fórmas airosas, ainda que incompletas; tez alva; olhos azues; cabellos de fino ouro, e um todo encantador, que os modestos trajes não conseguiam abafar completamente, antes deixavam transluzir suas occultas bellezas.
Anna de Jesus era docil; timida; e de umas crenças religiosas, que tocavam na beatice. Ao avêsso, Rosa de Lima, era agil; viva; falladeira; sequiosa de saber; crente, sim, na religião de seus paes, mas desprendida de certas apparencias, a que ella sabia chamar "phantasias sagradas".
Anna, interrogada, demorava as respostas que dava, e sahiam-lhe, por assim dizer, coadas pelo receio de não acertar. Rosa, respondia a tudo com a rapidez do relampago, e algumas vezes, com admiravel acerto. Ambas deviam á boa indole, e amisade de D. Maria, o saberem lêr e escrever, quasi correctamente, pelo que, e tambem pela convivencia com a esmerada e voluntaria preceptora, mostravam uma util superioridade ás demais donzellas da mesma classe.
A mais velha das nossas tres heroinas, que era a fidalga, contava apenas dezoito primaveras.
Rosa, e Anna, ignoravam a edade que ao certo tinham, sustentando, com tudo, o pueril capricho de que não era mais velha uma do que a outra.
Rosa de Lima, mal conhecera o pae, fallecido ha dez annos, que fôra desde rapaz caseiro em uma das propriedades do casal de D. Maria, onde a viuva e a filha foram conservadas, mesmo com prejuizo do bom amanho das terras, como costumavam proceder os bons fidalgos portuguezes, em grata memoria d'aquelles que bem os serviam. A mãe, alquebrada pelos trabalhos mais que pela idade, tudo confiava da sua querida Rosinha. E sempre na filha tivera embebidos os olhos, e a alma presa.
Rumorejava o povo contra o extremo maternal da mãe de Rosa, conhecida por Emilia do Adro, attribuindo-lhe causas mysteriosas, o que mais d'uma vez fôra origem de mágoas para o marido, José do Adro, o fallecido pae de Roza.
Quasi sempre, o povo condemna sem averiguar, d'onde lhe vem o ser pouco certeiro nos juizos que fórma, embora tenham alvo, proximo ou remoto, os rumores de que se faz echo.
Anna de Jesus, vivia na companhia de seus paes, ainda novos e vigorosos, e de quatro irmãos mais velhos, que eram completos homens do campo. Empregava-se no arranjo do bragal, e misteres internos, e quasi desapercebida passava, a existencia da timida Anna, no centro de sua laboriosa e rude familia.
Não deve ser estranhada a confiança que D. Maria da Gloria dava, como iremos conhecendo, ás filhas de seus caseiros. E de certo o não estranham, aquelles dos leitores que bem conhecerem a distincta affabilidade no trato da verdadeira nobreza de Portugal, mórmente com as pessoas de condição humilde.
Corre um tempo pouco favoravel á nobreza de sangue, no dizer dos que só d'esta herança desdenham.
Respeitam-se todos os titulos hereditarios, menos aquelles, que provam uma geração briosa, e heroica!
Porquê?
É facil a resposta, a quem a quizer dar em boa fé: ralha-se do que se não póde ter. Adquirem-se bens de fortuna, distincções, tudo: só não é possivel mudar-se o berço. E quantos o mudariam, se podessem, mesmo na occasião do seu mais frenetico vociferar contra a nobreza herdada!...
Sejamos justos: haja consideração para tudo que o merece, que o bello é de todas as classes sociaes.
Descender de boa extirpe, é indubitavel gloria, e tambem onus, que obriga a muito.
Os que hoje adquirem nobreza, -- e é comezinho o accesso, -- se podessem testimunhar d'aqui a trezentos annos os gabos de seus fidalgos descendentes aos heroicos avós, não ficariam repletos de intima alegria?
Abrandem, pois, os propagadores demagogicos, as democraticas íras, em que decerto já tem parte o muito plebeu auctor do conto, e deixem-nos dizer, com um dos nossos doutos portuguezes, que não ha cousa mais estimavel e bella, que a nobreza do sangue, junta á nobreza do coração: é uma saphira engastada em oiro purissimo.
O colloquio das tres donzellas, fôra assim:
-- Pareces-me hoje mais pensativa, ainda que de costume, minha estimavel Anna, o que tens tu?
-- Pensará talvez nas Ladainhas, e no jejum, fidalga; -- respondeu, pela interrogada, a falladeira Rosa.
-- Ora vamos, travessura da vida!... Já te prohibi que me chamasses fidalga, como tambem te fiz vêr, o respeito que se deve a tudo que prende com a religião que professamos. Bem deves conhecer, que tenho auctoridade de mestra, e que posso chamar á palmatoria a discipula rebelde...
-- Diz bem fidal... snr.^a D. Maria; e aqui tem a mão, sem fazer momices... mas eu só digo estas coisas no intuito de animar um pouco a nossa Annitas, que parece mesmo a figura da tristeza, quando não ha motivos para lagrimas.
-- Tu pódes lá saber, o que vae no coração da nossa amiga, doudinha?
-- Sabe de certo, minha senhora, porque entre nós tres não ha segredos; -- respondeu a custo a questionada donzella.
-- Não ha, não... Juro por Santa Rosa de Lima, da qual tenho o nome e desejara ter as virtudes, que a nossa scismadora, Anna de Jesus, me tem revelado todos os seus mais vedados pensamentos... Por exemplo: se tem a desventura de deixar uma noite cahir a candêa, e emborcar o azeite, para logo prevê graves successos, que fielmente me vae narrar... Se estala um vidro na casa, toda se encolhe, como a sensitiva, empallidece, treme, e diz-me, depois, que grandes calamidades nos esperam... Se entra no meu casebre, e vê que eu, por melhor disposição ou limpeza, deixei ficar a minha cama com os pés para o lado da porta, faz tal exclamação, que devéras me assusta; e...
-- Basta, tontinha, basta... interrompeu D. Maria, entre frouxos de riso. Não será possivel conseguir que tu deixes de atormentar, com as tuas graças, a nossa commum amiga?
-- Deixe-a fallar, minha senhora, que eu necessito ouvil-a, a vêr se perco algum do meu natural acanhamento. Conheço-me defeituosa, e sinto não ter a necessaria força para vencer os meus defeitos. Apraz-me sentir um aviso de Deus, nas jocosas palavras da boa Rosinha.
-- Nem tanto, pequena, que me arrependo já... Fazeres de mim, por obra do Eterno, um propheta de saias, é mais pesado do que ouvir-te quantos preconceitos aprendeste de teus crédulos parentes.
-- Se tu confessas que foram aprendidos, como posso eu ter culpa das culpas alheias?... Não é assim, minha senhora?
-- Dizes pouco, mas sempre bem. É o resultado de quem pensa o que diz. O favor que me fazes de "tua senhora", é que eu não queria receber. Chamai-me só D. Maria, já que não quereis habituar-vos a um tratamento mais intimo, e proprio das nossas idades, como eu appetecia.
-- Era o que faltava! As rainhas bem amigas são das damas do paço, e mais estas ajoelham-se para beijarem a mão de sua real ama...
-- Invejo-te a verbosidade e o talento, querida Rosa... Has-de chegar a muito se fôres bem fadada por Deus.
-- Vês, Rosinha, "minha vassalla", que o mal da inveja tambem toca nas almas como a da nossa Annitas!?
-- Aquillo, senhora, não é inveja, é mostrar que "pensa o que diz"... mas é muito de crêr que nem sempre "diga o que pensa"...
-- Com a tua pessoa, em jogo de bons ditos, minha doutora, não ha partido... Olhai!... Se não são visões do crepusculo, o que eu diviso, é muita gente reunida na serra de Guilhufe!...
-- É muito povo, é, snr.^a D. Maria! Responderam, a uma voz, surprehendidas, as duas amigas da fidalga.
-- É caso extraordinario! A esta hora, e n'um dia de serviço!... Ahi vem o sobrinho do snr. reitor, que nos vai dizer o que significa aquelle ajuntamento...
Interrogado, o recem-vindo, pelas tres donzellas ao mesmo tempo, respondeu, -- precedendo um cumprimento de cabeça, por lhe não darem logar a outro -- é... a «Maria da Fonte!»
II
RUGIDO
«Não vêdes, que nos destruiremos a nós, e á nossa Republica, se intentarmos cousas, que não podem ser, porque nos hão-de dar na cabeça todos esses remedios?»
("Vieira" -- ARTE DE FURTAR.)
Ha palavras, que excitam o espanto dos ouvintes, sem visivel rasão justificativa do enleio: aquellas -- «Maria da Fonte» -- tiveram esse condão. Interrogado, e interrogantes, entraram silenciosos na casa solar de D. Maria da Gloria, em direcção á sala chamada das visitas, onde estavam os velhos senhores d'ella.
Não seremos exagerados dando o nome de palacio, á nobre e grande habitação, que fazemos aqui figurar. Antes de se chegar á sala de recepção, encontravam-se immensos salões e repartimentos, tudo a desafiar, pela solidez, a acção do tempo, como são quasi todas as antigas edificações portuguezas.
Na sala de visitas, para não desmentir o adagio muito nosso, -- «Em Maio florido, ainda ao brasido» -- havia lume no fogão. Em cima de uma mesa circular, estava um grande candieiro de metal amarello, com quatro bicos; e postos nas demais mesas, castiçaes de prata, com vélas de cêra: moveis de pau santo, cadeiras de espaldar, com botões de metal e arabêscos esculpidos em sola, e denotando haver sido mudas testimunhas da passagem de algumas gerações.
Nas duas portas, que nos topos da sala se defrontavam, estavam pendentes de fortes lanças reposteiros de grossa baêta encarnada, em que se viam bordadas as armas de familia. Ao lado dos reposteiros, occupando parte da parede, pendiam dous grandes quadros, representando, um d'elles, S. Sebastião, e o outro Santa Isabel, primores de arte do celebre pintor portuguez Affonso Sanches Coelho, que foi protegido pelo snr. principe D. João, pae de El-Rei D. Sebastião, e depois apreciado por Filippe II de Hespanha, onde morreu mui favorecido da côrte.
Na parede fronteira a nove rasgadas janellas, que olhavam para um lindo jardim, e famoso vergel de fructiferas arvores, estavam suspensas de grossos cordões de sêda, de côr verde, as arvores genealogicas dos Mesquitas, Bandeiras, Abendanhos, Souzas, e Mellos; collocados por cima d'ellas, seis antiquissimos retratos de antepassados d'aquelle solar.
Pelas mesas da sala, viam-se espalhados alguns livros, e periodicos da época, merecendo especial menção um alto e largo volume, agasalhado em veludo côr de rosa bordado a ouro, que dava a razão dos nobres appellidos da familia, e, minuciosamente, contava as honras, e mercês a ella concedidas, pelos monarchas, e senhores de Portugal.
Sebastião da Mesquita Bandeira de Mello, pae de D. Maria da Gloria, e verdadeiro representante e possuidor d'aquella casa, era um velho fidalgo portuguez, dos rarissimos que chegaram até nós, sabendo fazer acatar a nobreza de sangue, que é ephemera sem a nobreza da alma. Era alto; direito, apesar dos seus 70 annos; com fartos bigodes; olhos grandes, castanhos-escuros; de olhar suave, que elle sabia, a proposito; tornar imperativo; fronte elevada; cabellos brancos, e ar magestoso.
Affavel em extremo, só era Sebastião da Mesquita, intransigivel, com os desvios da honra. Recebia gentilmente em sua casa todos que n'ella se acolhessem, e mui difficil seria não voltar alli tendo-se lá entrado uma vez. O verdadeiro culto, que prestava á nobreza, levava-o a ser nimiamente sevéro para as fraquezas dos nobres. O que fosse fidalgo, havia de mostral-o mais pelas suas acções do que pela ostentação de seus pergaminhos: era este um dos invariaveis preceitos do velho nobre.
Não se attingiam de repente as sympathias de Sebastião da Mesquita. Tratando a todos -- nobres e plebeus -- sem odiosas distincções, sabia occultar as preferencias, que talvez sentisse. Ainda assim, sustentava, sempre que se lhe deparava occasião, conversas demoradas e intimas com Arthur Soares, sobrinho do reitor da freguezia, e, só este, no dizer dos analysadores, merecia ao velho fidalgo reservadas prerogativas.
D. Isabel de Abendanho e Sousa, prima e esposa de Sebastião da Mesquita era uma idosa senhora, que deixava ainda entrever alguns traços de belleza, pelo meio das ruinas do tempo, e do soffrimento, com a prematura morte de seus cinco filhos varões. Toda entregue á direcção interna do seu casal, só á noite apparecia na sala das visitas, á hora do chá, servido o qual, as pessoas estranhas á familia da casa, não a viam mais, até á mesma hora do dia seguinte.
Manifestava certo respeito ao marido, muito voluntario que não imposto, e adorava a filha, como unico existente penhor do seu inalteravel affecto ao esposo.
A todas as pessoas apparecia D. Isabel com um mólho de chaves prêso á cintura, o que lhe grangeou o epitheto de -- "fidalga das chaves" -- dito pelo povo, á bocca pequena, sem o menor intento de offender a virtuosa e velha fidalga. As chaves, companheiras inseparaveis de D. Isabel, provavam unicamente, vigilancia e cuidado de boa dona de casa, que confia mais em si do que nos melhores criados e familiares; e não diziam, de nenhum modo, avareza, ou mesquinhez. E tanto isto assim era, que o povo igualmente a denominava -- "chaveira dos pobres", -- em grata allusão ás immensas esmolas, que distribuia, e fazia distribuir, pela freguezia; além das que diariamente se davam á porta d'aquella nobre casa, que, n'isto, se assemelhava á portaria d'um convento.
Falta apresentar aos leitores, o cavalheiro que vae acompanhando as tres donzellas.
Arthur Soares, sobrinho do reitor d'aquella freguezia, era homem de 27 annos de idade; sympathico; bem parecido; insinuante; grave; erudito sem affectação; brioso; conveniente em todos os seus dizeres, e procedimentos; sobrio em palavras; vestindo com modesto aceio, e tratando todas as pessoas com respeito e dignidade. Quando mancebo, frequentara eschola de primeiras lettras; e o seu verdadeiro estudo principiou aos quinze annos de idade, e teve logar, sem presidencia de mestres, apenas auxiliado pelos livros de seu thio reitor, e pela sua privilegiada intelligencia, e natural talento.
Era Arthur conhecido em muitas terras de Portugal, e, por todas ellas, a nobreza de sangue lhe mostrava apparente agrado, desdenhando sempre do plebeu, que entendia saber um pouco de tudo, e que dava seus ares de fidalgo orgulhôso. Os capitalistas, os grandes proprietarios, os modernos titulares, todos os homens de fortuna, emfim, olhavam de soslaio para o litterato sem diplomas, que se atrevia a mostrar indifferença pelo dinheiro, o rei do mundo.
Fóra da residencia de seu thio, n'aquella freguezia, só era visto Arthur Soares em casa de Sebastião da Mesquita, seu padrinho de baptismo, que o considerava do modo que já dissemos.
Ao entrarem na sala das visitas, as quatro pessoas que acompanhamos desde o terreiro, ouviram-se badalar as "Ave-Marias" no campanario da terra, o que logo fez pôr em pé os velhos senhores da casa, dos quaes se aproximaram as donzellas, e Arthur, e todos, com a devida reverencia, resaram em côro a conhecida oração da Santissima Trindade. Acabada a resa, foi D. Maria beijar a mão e a face de sua mãe, e, depois, curvando os joelhos, pediu a benção ao pae, que lhe offereceu a face direita, onde D. Maria depositou um respeitoso osculo.
As duas companheiras de D. Maria, pediram, de mãos postas, a benção aos velhos fidalgos, que as acariciaram, chamando-lhes as lindas discipulas de Maria, nomes com que Sebastião da Mesquita as dava a conhecer ás suas visitas.
Arthur Soares, saúdou D. Isabel, beijando-lhe as extremidades dos dedos da mão direita, e recebeu um amplo aperto de mão do fidalgo, acompanhado das palavras -- bem vindo, afilhado -- e de um certo fitar, que n'elle demonstrava contentamento, e interesse pela pessoa a quem o dirigia.
Estabelecida certa liberdade familiar, promovida pelos velhos fidalgos, occuparam as cadeiras proximas do fogão, Sebastião da Mesquita, D. Izabel e Arthur Soares. D. Maria e as suas discipulas procuraram outro lado da sala, onde podessem confidenciar, á vontade, os mil nonadas, que são os encantos dos annos verdes, e, algumas vezes, até dos já illustrados pelo estudo. Rosa, e Anna, ficaram de pé, aos lados da cadeira, occupada por D. Maria: só tomavam assento na presença dos velhos fidalgos, quando estes imperativamente o ordenavam. Sebastião da Mesquita e D. Isabel -- diga-se a verdade -- não desgostavam d'aquella prova de submissão, e quasi sempre se esqueciam de lhe pôr termo. É que o barro, por mais apurado que seja, tem asperezas, que só em pó se desfazem.
Passado pouco tempo, D. Isabel sahiu da sala, e o fidalgo estabeleceu com Arthur o seguinte dialogo:
-- Que pesadelo o fez triste, como parece estar, snr. meu afilhado?
-- Tenho que dar a v. ex.^a a desagradavel noticia de que o povo se agita em desordem, começada por não sei que «"Maria da Fonte"» das proximidades de Lanhôso, e temo que os tumultos cresçam até á altura de revolução, porque a semente lançada pelas paixões partidarias hade produzir os benésses a que miram os curas da imprensa desenvolta.
-- É cousa essa, snr. Arthur Soares, que não deve surprehender aquelles que, como nós, acompanharam de longe as dissensões, e os desacertos, da familia liberal, a que não pertenço pela communhão de idéas, mas que desejára, como portuguez, vêr prosperar, para o bem de todos. E o que diz e faz o povo?
-- O povo diz, "que abaixo o ministerio e as contribuições", e queima os mappas, que se mandaram encher, para um novo systema de contribuições, reprovado, sem analyse séria, pelos partidos da opposição, que incutiram nas massas ignorantes o absurdo de que aquelles papeis serviriam de documentos para hypotheca da propriedade aos inglezes!
-- Quando haverá seriedade nos homens politicos, que assim fazem brinco de uma nação?!
-- Neguei até hoje, o meu voto aos bandos politicos militantes, que já da gloriosa ilha Terceira vieram eivados do mal, que devia affectar o heroismo de um povo, e d'um rei-soldado. Os feitos praticados dentro das muralhas da invicta cidade da Virgem, dariam assumpto para uma epopéa, se não tivessem a macula de fratricidas... Perdôe v. ex.^a o modo de vêr da moderna eschola, que isto de nenhuma sorte escurece a grandeza, d'aquellas épochas de conquistas, e de independencia, em que nobres antepassados de v. ex.^a manejaram a espada, com proveito, e immortal honra d'estes reinos. Bem sabe, que sou liberal...
-- Sei que é homem de bem, snr. Arthur Soares, e não me repugna a liberdade de que V. S.^a é apostolo. Á licença, ao desenfreamento de paixões interesseiras, ao que promove a desunião da familia portugueza, é que um soldado da independencia, como eu fui, não dará em tempo algum o seu preito. É V. S.^a o mesmo que confessa, -- e dizem outro tanto todos os liberaes de boa fé -- que muito é para temer a desintelligencia que lavra entre os que tanto precisavam de união. Tambem eu partilho esse receio pelo meu paiz, sem que n'isto tome parte qualquer tendencia que possa haver em mim, para applaudir outra fórma de governo. O que eu desejo, antes das proprias conveniencias, é o bem geral, o engrandecimento d'este torrão abençoado, em que nasci, e onde queria morrer portuguez. Estas continuadas luctas intestinas, que nos trouxe a constituição, desdizem da felicidade por ella annunciada, e quem sabe o que poderão causar-nos!...
-- Talvez a perda da nossa autonomia... É possivel. Mas as grandes transformações sociaes, snr. Sebastião da Mesquita, não se operam sem abalos mais ou menos fortes. Consinta-me V. Exc.^a, que ainda confie no futuro. Entre os vultos liberaes, ha caracteres nobilissimos, completamente devotados á causa nacional. Se conseguirem aproximar d'elles, aos altos cargos da governação publica, todos os homens competentes sem distincções partidarias, póde a náo do estado tomar norte, e trazer-nos éras de paz e de prosperidade.
Foi n'esta altura interrompido o dialogo por um escudeiro de habito de Christo, que vinha dar parte a Sebastião da Mesquita de que se achava o terreiro coberto de povo, e á sua frente o Exc.^mo Leopoldo de Moraes Lencastre, do Marco de Canavezes, que pedia licença para entrar.
Antes de dizermos a ordem que Sebastião da Mesquita deu ao escudeiro, lembraremos de passagem duas cousas: primeira, que não sirva de prejuizo ao cofre nacional, pela falha de direitos de mercê, a noticia de haver "escudeiros" com habito de Christo, porque é facto averiguado que os houve, e não sabemos se ainda existem alguns. Eram homens de merecimento, a maioria d'elles soldados companheiros de seus amos, e de provado valor e lealdade.
Segunda: que na rapida descripção que fizermos da guerra civil contemporanea, seremos completamente isentos de sympathias pelos partidos ou grupos que dividem os politicos de Portugal. Respeitamos todos os homens, não temos odios nem invejas, e ajuizamos das cousas com o justo criterio da imparcialidade.
Sebastião da Mesquita, levantou-se e disse ao escudeiro, que mandasse entrar toda a gente. D. Isabel, veiu á sala um pouco perturbada, e perguntou ao esposo, para dizer alguma cousa, se queria que fosse servido o chá. Sebastião da Mesquita, respondeu placidamente, que era magnifica occasião de beber agua quando estivesse o povo na sala, porque se viesse com más tenções fugiria d'ella como de sua figadal inimiga... Via-se que Sebastião da Mesquita, estava ou queria mostrar-se tranquillo e jovial.
D. Isabel foi tomar logar no centro das tres donzellas, que ficaram mudas de espanto pela ordem que ouviram dar, e não de todo livres de receio, embora tivessem sempre observado no povo extrema consideração pelo velho fidalgo. Conservaram-se com tudo impassiveis, como estavam costumados a proceder todos os familiares do fidalgo, quando este manifestava a sua vontade.
Arthur Soares, collocou-se á esquerda do padrinho com tão natural aspecto, como se fôra a continuar a conversa interrompida.
O escudeiro, entrou de novo na sala com uma grande salva de prata e sobre ella uma espada antiga, com cinturão, que, sem dizer palavra, offereceu a Sebastião da Mesquita. O velho fez repentinamente um gesto de espanto, que o escudeiro presenceou sem pestanejar; em seguida sorriu-se, como se disséra -- lembraste bem, -- e pendurou a espada á cinta, com a pericia propria de um antigo official de cavallaria. Logo depois, era annunciado, e dava entrada na sala, o Exc.^mo Leopoldo de Moraes Lencastre, que foi recebido friamente: nas tres donzellas, é que se poderia notar a apparição d'um tal ou qual rubor intraduzivel para os circumstantes, ao conhecerem o fidalgo moço.
-- Sou o mais dedicado servo de V. Exc.^a meu presadissimo primo e senhor da Mesquita; -- principiou por dizer o fidalgo Leopoldo, acompanhando estas palavras de mesura palaciana, a que Sebastião da Mesquita correspondeu com um ligeiro curvar de cabeça.
-- Tenho a honra de me dirigir a V. Exc.^a em nome da soberania popular, para que se digne acceitar o commando dos bravos camponezes da comarca, que na cidade acabam de reduzir a cinzas os vexatorios papeis, que um ministerio obnoxio, pelos actos despoticos que pratíca, semeára pelo reino. A provincia do Minho, ao grito da heroina «"Maria da Fonte",» está toda revolucionada; e dentro em pouco chegarão os gritos do povo aos ouvidos da corôa, que deve fazer justiça immediata, como o requerem as anómalas condições em que se acha o systema constitucional. Ninguem mais competente do que V. Exc.^a, meu nobre primo e snr., para conduzir o povo até ao paço; logar em que os nossos nobilissimos antepassados já tiveram a honra de sustentar na presença da magestade os direitos da nação, com a coragem revelada n'aquellas memoraveis palavras, que a historia legou ás futuras gerações: -- «Se não, escolheremos outro rei que melhor saiba governar e dirigir a briosa nação portugueza!» -- Aguardo as determinações de V. Exc.^a, que fielmente serão communicadas aos que por ellas esperam nos proximos salões deste palacio; bons lavradores que me pediram fosse eu o interprete dos sentimentos d'elles perante V. Exc.^a Não consenti que entrassem n'esta sala, para deixar tranquillas as damas, primas e senhoras minhas, ás quaes só agora tenho occasião de tributar o mais respeitoso dos meus cultos e a mais submissa das minhas homenagens, pedindo-lhes humildemente, que se dignem perdoar o não ter eu praticado desde logo este dever, em attenção a que estava pouco senhor de mim com a delicada e obrigatoria missão de que fui encarregado.
Quando o fidalgo do Marco deu assim por terminado o aranzel, acenou Sebastião da Mesquita ao escudeiro, que comprehendendo seu nobre senhor, abriu de par em par as portas e reposteiros, dando livre accesso ao povo, que estava agrupado pelos immediatos aposentos. Foram pouco e pouco, como possuidos de acanhamento, entrando na sala os populares, activos e laboriosos lavradores, sempre cortezes como todos os habitantes do Minho, mas faceis de inflammar com perfidas insinuações, principalmente ácerca do perigo que possa correr a religião que professam, e o lar que possuem.
Eram variados os trajes d'aquelles homens amotinados, e variadissimas as armas de que cada um estava munido: ainda assim, predominavam os fatos domingueiros a que é obrigada a casaqueta de botões amarellos, e as espingardas de fechos com pederneira. Todos entravam desbarretados e convenientes. Sebastião da Mesquita ia provocando a entrada com as animadoras palavras: -- «Vinde, vinde, bons homens.» E assim que todos o podiam ouvir, virou-se para o mensageiro, e fallou n'estes termos:
-- Ouvi com a devida attenção e serenidade, o que teve a bondade de dizer-me meu primo e snr. de Lencastre. Respondendo ao povo, que me escuta, respondo tambem a v. ex.^a Esta espada, que já serviu a nossos avós, para emprezas importantes em prol d'estes reinos, e sempre em defeza do sagrado solo da patria, -- nunca será por mim empunhada contra portuguezes e irmãos. Fui soldado da independencia, e não quero outra gloria. Quem deseja conduzir o povo pelo caminho da revolta contra os poderes bem ou mal constituidos, póde ter ambições a saciar, mas falta-lhe bem dentro n'alma a nobreza de sentimentos, unica que póde distinguir da massa geral dos homens, os fidalgos e as pessoas illustradas.
«Porque os principes, ou aquelles que governam o reino, abusem do seu poder, não é rasão para que os povos abusem dos seus direitos. Os homens prudentes, devem conhecer os demais. Aos não poucos annos que tenho, devo eu o não poder ser facilmente enganado... Não se queria o meu braço, não, que já mal póde com a espada... O que se vinha aqui buscar era o bom nome do velho, para servir de joguete a pequenas ambições... Não precisa o snr. meu primo Leopoldo d'este fraco auxilio. As tendencias que manifesta para tribuno popular, devem leval-o rapidamente ao parlamento, que é o caminho aberto ás modernas glorias... Seja feliz, e deixe-me descer socegadamente á sepultura. E vós, homens do trabalho, recolhei-vos ao seio de vossas familias, que devem soffrer com os vossos desvarios, e desconfiai sempre dos pareceres que vos levam á porta os voluntarios zeladores dos vossos interesses... Lembrai-vos, que não se devem despresar as lições da velhice, que são as da experiencia. Minha prima e presada esposa, digne-se v. ex.^a mandar abrir a adega, para que esta boa gente mate a sêde. Maria, as tuas interessantes discipulas ficam esta noite a fazer-te companhia, para assim escaparem a algum "discurso" dos campeões de praça... Snr. Arthur Soares e meu bom amigo, queira ter a summa bondade de acompanhar este bom povo até ao terreiro, e vêr se póde com a sua eloquencia acabar de convencêl-o da verdade encerrada nas minhas trémulas palavras. Meu primo, querendo v. ex.^a dar-nos a honra da sua presença, logo que voltem minha mulher e o snr. Arthur Soares mando servir o chá.
-- Agradeço, mas não posso acceitar nem conservar-me aqui mais tempo depois do que v. ex.^a acaba de pronunciar...
-- N'esse caso, -- interrompeu Sebastião da Mesquita -- peço as ordens de v. ex.^a... João, acompanha meu primo até ao portal.
Ao receber a ordem do amo, o escudeiro foi postar-se atraz de Leopoldo. Este, fulo de cólera açamada, virou a espalda e sahiu com o povo, que escutára o fidalgo com todo o respeito e silenciosa attenção, e que foi tão rapido na sahida como morôso havia sido na entrada.
Logo que foi evacuada a sala segundo as ordens de Sebastião da Mesquita, caminhou este até ao pé das donzellas, pôz a mão direita sobre o hombro esquerdo da filha, encarou-a por longo tempo com visivel commoção, e disse-lhe com lagrimas na voz: Deos te dê melhor sorte, Maria!... Depois, cingiu Rosa e Anna com o braço esquerdo, e disse a todas com igual ternura: Deos vos proteja, minhas filhas!...
III
AO LUAR
«Na minha terra, uma aldeia,Por noites de lua cheia,É tão bella! é tão feliz!...»("João de Lemos" -- CANCIONEIRO.)
Leopoldo de Moraes Lencastre, filho segundo da nobre familia dos alcaides móres de Coruche, achava-se -- por fallecimento do primogenito -- na posse do morgadio.
Era importante a casa de seus maiores, dispersa por quasi todo o reino. Leopoldo administrava mal e esbanjava muito, sem gastar, ainda assim, mais que o rendimento.
Corriam differentes versões ácerca da morte inesperada do morgado, que todas formavam um pessimo conceito do herdeiro forçado d'aquella nobre casa. No entanto, Leopoldo mostrára-se angustiado com a morte do irmão, e parecia gosar a herança com a tranquilidade de espirito propria dos innocentes. Deixára Coimbra quando frequentava o quarto anno da faculdade de direito, para tomar conta da casa, e voltára mais tarde a concluir a formatura.
Dotado de um caracter ardente, Leopoldo, era ambicioso de glorias, que sonhava de um modo unico. Sacrificava todos os bons sentimentos, á satisfação do amor proprio. Na consciencia d'elle, havia só logar para a sua personalidade. Nunca encontrou espelho que lhe reflectisse outro objecto, além da sua figura.
O mundo era para o fidalgo doutor apenas um palco, destinado a receber-lhe as scenas comicas ou tragicas; e os espectadores estavam magnetisados, para só attentarem n'elle e nas suas acções. Não havia torpeza que lhe embargasse o caminho do Capitolio, nem falta que o fizesse exitar no trajecto. Mettia algumas vezes na gaveta das conveniencias a sua altivez, para de lá sahir depois mais furiosa, alcançados que fossem os premeditados fins. Era mais insaciavel com o seu orgulho, do que um miseravel com as suas necessidades: os cuidados, agitações e pesares communs a todo o homem quando se dilata a esphera dos prazeres, affeições e sentimentos, só accommettiam o moço doutor na hora em que se convencia de que o mundo desviava os olhos das suas façanhas.
Leopoldo era physicamente favorecido da natureza, e suppríra, com o estudo, o que lhe faltava em talentos. Foi-lhe facil estabelecer escóla sua, e rodear-se de manequins, que serviam magnificamente aos seus desejos. É crescido o numero de parasitas que, algumas vezes, se prestam para caudatarios, e que são sempre tubas, ainda que rouquenhas, de famas adrede. E não se verificava, com relação a Leopoldo, o preceito de ser a lisonja moeda falsa que empobrece quem a recebe; muito ao avêsso ia logrando insinuar-se na opinião publica, que foi, e é, e ha de sempre ser, a tonta filha das apparencias.
Quando Arthur Soares, encarregado pelo fidalgo Mesquita de fallar ao povo, estava desempenhando a commissão, foi interrompido por Leopoldo, que pretendeu ridiculisal-o. Deu isto causa a uma discussão entre os dous, algum tanto animada, que acabou pelo povo ir dispersando, e Arthur Soares deixar bruscamente o adversario fidalgo, entrando de novo no palacio de Sebastião da Mesquita, com o qual passou algumas horas mais.
Na sahida para a residencia de seu thio reitor, ao passar por baixo das janellas do quarto de D. Maria, teve Arthur Soares de prestar attenção ao chamado da fidalga senhora, que, com as suas discipulas, estava gosando o luar e a belleza da noite, e lhe perguntára como havia conseguido que o povo recolhesse a suas casas.
-- Tudo consegue a prudencia, minha senhora, quando não é capa de occultos interesses. O povo estava illudido por palavras pomposas que eu expliquei em linguagem chã, fazendo-lhe conhecer o sentido interesseiro de quem lh'as havia dito: convenceu-se e tranquillisou-se. O fidalgo, primo de V. Exc.^a, é que se não convenceu nem me agradece... Creio que adquiri n'elle um verdadeiro inimigo.
-- Pouco deve importar ao snr. Soares a inimisade do snr. Lencastre. V. S.^a tem a nobreza das suas acções, que não podem invejar cousa alguma ás do meu fidalgo primo.
-- Não me parece tanto assim, snr.^a D. Maria; -- arriscou-se a dizer a timida Anna -- O snr. Lencastre é pessoa muito estimavel e virtuosa, no meu humilde parecer...
-- Estimavel; virtuosa e "carinhosa", deves acerescentar, minha beatinha, porque o tal senhor teve artes para ganhar a tua affeição...
-- Valha-te Deus, Rosa, que vês tudo pelo mau lado... Eu sou muito amiga do snr. Lencastre, como o seria de qualquer outra pessoa que conhecesse, e que nunca me fizesse mal...
-- Parece-me, menina Anna, que a Rosinha foi mais verdadeira agora do que mordaz ou satyrica, como graciosamente lhe chamam; -- disse Arthur Soares. -- Se não, haja vista esse denunciativo rubôr que mais de palpite do que auxiliado pelo luar, d'aqui imagino vêr...
-- Peço desculpa de ser contra a sua opinião, snr. Arthur, mas entendo que o pejo, manifestado nas faces, póde ter variadas origens. A Rosinha tambem córou, e talvez eu córasse egualmente, quando meu primo entrou no salão; e, com tudo, não creio que em nós exista sentimento algum reservado.
-- Nunca dei entrada no meu espirito a qualquer suspeita prejudicial á inexcedivel virtude de V. Exc.^a, e á que adorna as suas interessantes discipulas, o que não obstou a que eu fizesse reparo -- confesso-o -- em certo embaraço que descobri em todas, na occasião a que V. Exc.^a se refere.
-- Eu explico ao snr. Arthur Soares a razão do nosso abalo; -- disse repentinamente Rosa. -- Annitas, córou, porque o fidalguinho lhe não é indiferente...
-- Tens cousas...
-- Não me interrompas, que ter coração não fica sul a pessoa alguma, O amor, é toda a historia da vida das mulheres, como diz um livro, que a snr.^a D. Maria me ensinou a lêr e entender. -- Eu córei, por que antipathiso solemnemente com uns certos modos do snr. Lencastre, que já me fez a honra de dizer que eu era bonita e espirituosa... A snr.^a D. Maria...
-- Eu, menina, não desejo n'este momento ter interpretes dos meus sentimentos... Subiu-me calor ás faces, porque... estava um tanto indisposta...
-- É já tarde, minhas senhoras, e eu vou até á residencia de meu thio, onde espero conciliar o sômno, vendo o soberbo luar d'esta lindissima noite, atravez dos vidros da janella do meu pequeno quarto. V. Exc.^a, snr.^a D. Maria, continue a gosar, em companhia das suas innocentes amigas, o arôma das flôres do jardim e do pomar, a fagueira brisa d'esta bellissima noite de primavera, o suave cantico da voadôra cotovia e da poetica philomella, o murmurio da agua nos proximos tanques, a magestosa pallidez da lua cheia, que tudo isto ajuda a nutrir a imaginação com illusões nascidas da candidez da alma, muito mais carecida de taes alimentos do que a fria razão.
-- Quer o snr. Arthur Soares dizer-me com esse trecho poetico, que não gostou de que eu interrompesse a Rosinha?... Apreciava bem mais ouvir a franqueza de que sabe usar, do que escutar-lhe um subterfugio, aliás lindissimo na fórma... Eu, digo-lhe abertamente, snr. Soares, porque não tenho motivos para occultal-o, que o meu pejo procedeu de haver ha muito reconhecido em meu primo Lencastre, qualidades e sentimentos improprios de um cavalheiro. Magôa-me bastante ter de fallar assim de um fidalgo, que é meu parente; mas não quero que os meus gestos sejam mal avaliados, principalmente por V. S.^a, que é um amigo d'esta casa, a quem meu pae devéras estima.
-- Não me accuso, snr.^a D. Maria, de ter provocado a irritabilidade nervosa, que me parece descobrir em V. Exc.^a, porque me diz a alma que eu era incapaz de lhe promover o mais leve desgosto. O dia em que eu me conhecesse origem de qualquer dissabor, para a familia do snr. Sebastião da Mesquita -- póde V. Exc.^a crêl-o -- seria o ultimo da minha vida.
-- O que disse, não foi queixa, snr. Arthur Soares. Quiz apenas "ser eu", a dizer a V. S.^a os meus sentimentos... Se perdeu com isto de ouvir a narrativa com a natural eloquencia e graça de que dispõe a minha amiga Rosa, deixo-os agora á vontade, para...
-- Sou eu que me devo retirar, snr.^a D. Maria... E retiro-me com a convicção bem formada de que "nunca mais" as minhas palavras, dirigidas ao snr. Arthur Soares, poderão melindrar a minha presada senhora, amiga e mestra, porque hei de medital-as muito...
-- Ficam ambas, com certeza, porque uma e outra se encontram empolgadas pelo gavião!... -- Disse uma voz sahida do pomar, que todos reconheceram ser a do snr. de Lencastre.
Facilmente se avalia a commoção em sentidos diversos, que soffreram todos os actores d'esta scena, ao conhecerem o novo e audacioso interlocutor, sahido de entre as arvores do pomar que o occultavam, e collocando-se sobranceiro á parede do jardim, em frente da janella occupada pelas tres donzellas, ficando alguns metros separado de Arthur Soares.
-- Não me surprehende, continuou a dizer o fidalgo moço, dirigindo-se para a janella, -- que a snr.^a Rosa concebesse um arranjinho de vida commodo, fazendo presente do seu coração e de seus volumosos espiritos ao snr. Arthur Soares; e que este eminente litterato tome posse de tudo, para cada vez dar maior brilho ao seu verniz de urbanidade e brios... Agora, o que devéras me faz descrêr de quantas virtudes podem honrar o coração humano, é o vêr que a snr.^a D. Maria da Gloria esqueceu rapidamente a distancia que a separa de um plebeu, embora um tanto polido, que nunca se atreveria a pensar sequer na honra de conseguir, á custa dos maiores sacrificios, o que V. Exc.^a tão de barato lhe concede!... Manifestar "ciumes" ao snr. Soares, minha nobre prima, é declarar-lhe que o ama!...
-- Eu já sabia, snr. de Lencastre, que uma certa grosseria de habitos formava a base do seu codigo cortezão; mas nunca me persuadi que V. Exc.^a quizesse lá escripta a villania de um procedimento como o que acaba de ter! Os nossos lacaios, se alguma vez são apanhados a devassar alheias causas, fogem espavoridos da feia acção que commetteram... O meu nobre primo "afidalga-se" com um manifesto de curioso, e delator das vidas alheias, abrindo com chave de mui duro e enferrujado ferro, o coração de uma senhora, que lhe não deu o direito de se tornar seu vigia, e muito menos seu mentor. Só a meu pae quero dar conta dos meus procedimentos, e nenhum receio me dominava se o santo velho fosse um dos espectadores d'esta scena, só pouco edificante desde que V. Exc.^a entrou n'ella... Peço ao snr. Arthur Soares, que seja completamente alheio ás palavras e acções do snr. meu primo; peço-lho pela amisade que tem á minha familia.
-- É esse o mais espinhoso dever, que V. Exc.^a me podia impôr...
-- Socegue o paladino da nobre castellã, que não tem de medir armas comigo, porque lhe não acceito o repto... E V. Exc.^a, nobilissima snr.^a D. Maria da Gloria, fique sabendo que a um perfeito acaso devi o ficar conhecendo dos adiantados, prósperos e sublimes amores de V. Exc.^a, com o sobrinho do senhor reitor... Se me interesso por alguem, não é de certo por V. Exc.^a... Ha talvez ao lado da minha nobre prima quem saiba nutrir aspirações mais fidalgas... Muitas vezes acontece haver discipulos, que podiam ensinar os mestres...
-- Das lições de V. Exc.^a é que ninguem aproveita... disse sacudidamente Rosa, que ha muito ardia por fallar, e que era contida pelo respeito devido á fidalga, e por se achar affectada com a inesperada direcção d'estes acontecimentos, que lhe descobriram o coração.
-- Já me tardavam as provas de seu despeito, menina... Apraz-me têl-a por inimiga: das mulheres formosas, só nos deve magoar a indifferença...
-- E o despreso, snr. meu primo?...
-- V. Exc.^a despresa-me, minha nobre prima?... Tanto melhor, que posso usar sem constrangimento dos meus direitos de fidalgo e de parente de V. Exc.^a para annunciar ao mundo do bom tom, que a snr.^a D. Maria da Gloria Mesquita Bandeira de Abendanho, está ligada pelos vinculos "do mais apertado amor, com dispensa de sacramentos", ao sobrinho do snr. reitor da freguezia...
Ainda o snr. Leopoldo não tinha acabado de pronunciar bem a ultima palavra do insulto, e já o som de uma estrondosa bofetada echoava nos ouvidos de todos.
As discipulas de D. Maria deram um abafado grito e retiraram-se da janella, a um pequeno impulso que lhes deu D. Maria. A fidalga, julgando ter sido Arthur Soares que déra o castigo ao insolente, ficou sobresaltada, e dirigiu-lhe, ainda que meigas, algumas censuras, a que o brioso mancebo respondeu, que outra mão, mais prompta que a sua, castigára o desaforado fidalgo.
Fôra o caso, que João Vidal, o escudeiro, andando na sua costumada ronda pelas cercanias do palacio, e ouvindo parte do dialogo, aproximou-se cautelosamente do sitio onde estava Leopoldo, e lá se conservou até ao momento em que o insulto feito á sua nobre ama, o levou a estender a mão na cara do petulante com força tal, que o snr. de Lencastre cahiu redondamente no chão do pomar. Logo que se levantou, ardendo em ira, partiu para o escudeiro de punhal na mão. João Vidal, suspendeu-lhe o braço homicida e arrancou-lhe da mão a arma cobarde, em menos tempo, tudo isto, do que se gasta a contal-o.
Vendo-se abatido, sem armas, e marcado pelo mais ignominoso ferrête que um homem póde imprimir n'outro homem, Leopoldo vociferou:
-- Por um escudeiro!... Vergonha eterna!... Juro que a vingança ha de ser superior á affronta... Não posso medir-me comtigo, villão, mas quero e hei-de vingar-me... Vingar-me de todos... Ouviram?! De todos!... E a ti, canalha... escudeiro infame... hei de afogar-te como se afoga um cão vadio!...
Proferidas aquellas selvagens ameaças, retirou-se o possesso, a passos accelerados, não dando assim logar a maior castigo.
João Vidal, com toda a submissão e respeito, pediu á sua joven senhora desculpa para o que fizera sem premeditação, e levado unicamente pela violencia do insulto. D. Maria agradeceu-lhe com palavras vehementes, e ordenou-lhe que entregasse o punhal ao snr. Arthur Soares, o que o escudeiro fez, sem exitação, pedindo depois licença para retirar-se.
Arthur, surprezo com a ordem e a entrega, perguntou a D. Maria, que uso devia fazer d'aquella arma.
-- Guarde-a -- lhe disse a fidalga -- até que eu lh'a peça.
-- É perigoso este instrumento na minha mão, senhora, desde que me vejo causa involuntaria das mágoas de V. Exc.^a... Esta noite foi para mim ao mesmo tempo a vida e a morte... Tive sempre horror ao crime, e vejo-me levado pelo destino a ser necessariamente criminoso! Acolhendo em meu peito sentimentos, que nem ao dominio dos meus sonhos quereria que pertencessem, terei de luctar e de punir, de caminhar para a incerta felicidade por cima do cadaver de um inimigo, vilissimo é verdade, mas bem nascido e poderoso... O que devo fazer em tão apertada como temivel conjunctura?!... Não devo escolher entre dous crimes, aquelle de que só eu venha a soffrer as fataes consequencias?!... Nunca me persuadi de que havia de chegar uma hora em que assim fosse abalada a minha austeridade em principios religiosos!... Nunca imaginei que seria forçado a praticar, o que sempre tenho rebatido com todas as forças de uma profunda convicção!... Adeus, snr.^a D. Maria da Gloria!... Amanhã será entregue a V. Exc.^a esta arma por pessoa de confiança.... Peço-lhe que ao recebel-a se lembre com alguma saudade do martyr de umas certas crenças, talvez irrisorias n'esta epocha de... progressos... Adeus!...
-- Ordeno-lhe que fique!... Disse D. Maria com um tal assento de voz, que obrigou Arthur a ficar como petrificado.
-- O snr. Arthur Soares, pensar em suicidar-se?!... Onde escondeu a fortaleza do seu espirito robustecido pelo estudo?! Como assim esqueceu os salutares conselhos de sua boa mãe, que o snr. Soares muitas vezes me tem repetido?! Que fez das arreigadas crenças na religião de nossos paes, que o snr. Arthur dizia ser a mais racional e acceitavel de todas as religiões, mesmo desprendida do que n'ella ha de mysterioso e divino?!... Ah! snr. Arthur Soares, que me parece imperdoavel essa allucinação!... Já não quero fallar-lhe no abandono em que deixava as pessoas amigas, só pelo egoismo de não soffrer na lucta! Isso prova que as melhores almas tambem têem suas fraquezas... Lembre-se, senhor, que á vida de V. S.^a póde estar presa alguma outra vida; e que, querendo fugir a matar um inimigo vil, quando seja absolutamente indispensavel o fazel-o, póde assassinar "alguem" com o seu suicidio...
-- Pois V. Exc.^a?!!...
-- Adeus, snr. Arthur Soares! Durma tranquillo e guarde bem essa arma que deve ser entregue por V. S.^a "em pessoa" a mim, ou, de minha ordem, á minha amiga e discipula Rosa...
Ditas estas palavras, retirou-se D. Maria da janella, que fechou de manso.
Arthur permaneceu no mesmo logar por largo espaço de tempo, immovel, com os olhos fitos na formosa lua cheia, e o pensamento entregue ao vago de estranhas e indecifraveis sensações. Accordou d'este delicioso e pungente lethargo, á voz amiga de João Vidal, o escudeiro, que o acompanhou á residencia do thio.
IV
MÃE E MADRE
«Espero que essas pedras, que em outras foram de escandalo, sejam em v. m. padrões de espirituaes exemplos.»
("Fr. Ant. das Chagas" -- CARTAS ESPIRIT.)
Pelos fins do mez de janeiro de 1807, um cavalleiro envolto em larga capa, acompanhado de seus lacaios e creados a pé, desmontou, seria meia noite, defronte da portaria do convento e mosteiro, da invocação de Nossa Senhora das Candêas, de freiras de S. Bento, que fundou, nas casas em que nascêra na villa de Moimenta da Beira, o doutor Fernão Mergulhão, filho de Vasco Mergulhão e de sua mulher D. Leonor de Lucena, pessoas nobres e de vastos rendimentos.
O cavalleiro, bateu tão de rijo com a aldrava do portão, que a communidade inteira accordou ao estrondo produzido pelos repetidos embates da massa de ferro.
Em quanto as noviças alvoroçadas perguntavam em voz baixa umas ás outras, o que poderia significar uma visita a taes deshoras, e que a muito respeitavel abbadessa se erguia com inquietação, foi repetidas vezes renovado o chamamento com furia egual, se não superior, á das primeiras pancadas, até que a soror rodeira, toda espavorida, tendo-se vestido precipitadamente e sem esperar as ordens da superiora, desceu até onde podésse ser ouvida e, com a maior força que podia dar á sua voz septuagenaria, perguntou:
-- Quem, a esta hora, vem assim perturbar o repouso da vida claustral?!
-- Muito digna soror rodeira, tende a bondade de annunciar á senhora abbadessa, a urgentissima necessidade de escutar, por um pouco, a um de seus mais proximos parentes e ao mais humilde de seus servos.
A este tempo, já a madre abbadessa estava ao lado da soror rodeira e, reconhecendo a voz que a invocara, mandou que abrissem a porta sem demora. Introduzido o cavalleiro no palratorio, depois de ter alcançado a benção da abbadessa, fallou assim:
-- Minha muito respeitavel e estimadissima thia e senhora! Venho aqui, a horas bem importunas, implorar de V. Exc.^a a minha tranquilidade domestica, porque ha já mezes que me é insupportavel a vida ao lado de minha esposa e prima D. Leocadia.
Não sei porque artes minha mulher descobriu a existencia do João, d'esse filho do peccado, que a minha boa thia e senhora quiz ter a caridade de recolher dentro d'estas sagradas paredes. E, desde que o sabe, ameaça-me de separar-se de mim e de levar todo o seu dote, que é, como V. Exc.^a sabe, a maior parte da minha casa, se eu não entregar o pequeno ao destino que ella lhe queira dar. Eu conheço o coração de Leocadia, e sei que ella é incapaz de maltratar o Joãosinho, e por isso...
-- Suspenda, snr. meu sobrinho, suspenda o seu desnaturado pedido, que lh'o roga esta velha, em nome do Nosso doce Salvador Jesus. Entregar a uma inimiga declarada, o meu querido filho adoptivo, o innocentinho a quem salvei a vida com desvélos e cuidados, que talvez custem -- quem sabe? -- indelevel mancha ao convento de que sou indigna superiora?!... Nunca, snr.! Nunca espere semelhante acção de sua thia... Deu-me ha tres annos, por uma hora igual a esta, seu filho recem-nascido. Considerei-me, quando me vi forçada a recebel-o para evitar escandalos, escolhida pelo Nosso bom Deus, para exercer uma de suas infinitas obras de misericordia. Vi-me attribulada para conseguir mitigar a sêde ao anginho, que dava gritos dolorosos!
Fui eu mesma aos curraes buscar o leite necessario, e apartar depois a mais formosa das nossas cabrinhas, para servir de ama ao innocentinho... Não me foi possivel occultar por muito tempo, ás virtuosas madres minhas santas companheiras, a existencia do menino n'este recinto protector. Todas ellas tem affecto egual áquelle que eu dedico ao nosso bello Joãosinho. O nome, que recebeu no sagrado baptismo, é o do milagroso santo padroeiro d'esta villa, que ha de abençoal-o e protegel-o... É o enlevo de todas a triste creancinha; é o cofre em que depositamos as joias das nossas affeições mundanas. Este nosso affecto, não póde offender nem diminuir o que votamos ao nosso doce esposo e bom Jesus, que é todo caridade, todo amor, todo misericordia, todo compaixão para as fracas creaturas de que é pae extremosissimo...... Assim que o meu querido filho adoptivo completar dez annos, hei de separar-me d'elle, ainda que um rio de lagrimas me custe a separação, porque não póde, nem deve, continuar a viver aqui; mas eu escolherei o destino do abandonado infante. Pedirei ao nosso bom Deus, que me inspire, e tenho fé em que hei de acertar... É esta, meu sobrinho, a minha irrevogavel resolução. Recorde-se de que lhe ouvi, n'aquella noite assignalada da entrega que me fez de seu innocente filho, a inaudita blasphemia de que, se eu o não recebesse, o deixaria a qualquer canto de uma estrada!... Um pae que profere taes palavras, perde, desde esse momento, os direitos da paternidade... Snr. meu sobrinho! Digne-se Deus esquecer os seus erros!...
Assim fallando, com um tom imperioso e sêcco, deixou a madre abbadessa interdicto o seu interlocutor, que teve de retirar-se, não sem protestar haver pela força e violencia, o que á boa paz não pudéra conseguir, ameaças que ainda foram ouvidas pela respeitavel abbadessa.
Era fama por todo o Portugal, fundada em apparencias mais ou menos falsas, que as noviças e senhoras religiosas do convento de Moimenta da Beira attrahiam ás suas grades a flôr da mocidade das provincias da Beira e Minho, não só pela notavel belleza de muitas d'ellas, mas, principalmente, pelo modo affavel com que recebiam as suas visitas.
Dos mais assiduos frequentadores d'aquelle claustro, era um mancebo elegante, distincto em acções e nascimento, que já havia sustentado bastantes galanteios, com donzellas de todas as classes sociaes. Logo ao principiar a juventude, creára compromissos de homem feito; e declarava a sua vida intima, a todas as pessoas que o escutavam, com a leviandade propria dos annos ainda verdes.
Fôra muitas vezes, sem elle o saber, espreitado pela respeitavel madre abbadessa, em occasiões que se tornava expansivo com uma das mais lindas noviças d'aquelle convento, que o attendia e mimoseava, ao palratorio, com golodices e innocentes amabilidades.
Certo dia, foi-lhe alli entregue uma carta urgente, que pediu licença para lêr. O contheúdo no escripto, fizera-o mudar o semblante tão salientemente, que a formosa noviça não resistiu á tentação de perguntar-lhe, que má novidade o pozéra assim.
-- Está muito doente, um filhinho que tenho...
-- Pois o snr., que é solteiro, tem um filho?!...
-- Tenho, e quero-lhe tanto como se elle houvesse nascido do mais legitimo matrimonio.
Amo as creanças em geral, e estremeço aquella a que dei a existencia. Todos os sacrificios seriam insignificantes para mim, quando se tratasse de salvar innocentes creancinhas. Sou novo, mas quer-me parecer que em tempo algum perderei os sentimentos de que já me orgulho. Só reconheço a legitimidade do sangue, que é perfeitamente igual nos bastardos como nos filhos do mais santo hymeneu.
-- Graças, meu doce Senhor Jesus, que já encontrei o que fervorosamente pedia á vossa infinita bondade!... Disse uma voz, sahida do interior das grades, que ambos reconheceram ser a da senhora abbadessa.
Appareceu á grade, acto seguido, a trémula e veneranda cabeça da respeitavel superiora d'aquelle sagrado recinto, resplandecente de uma auréola de luz divina, e pediu, com a mais terna affabilidade, á noviça, que a deixasse ter um segredo com aquelle bondoso e nobre cavalheiro.
Revelou a santa velhinha ao mancebo, como em seu poder cahira do céu o pequenino João, que alli escapára ao abandono de paes desnaturados.
Disse-lhe que muito receiava que o pae do innocente, movido por vil interesse, tentasse apossar-se do filho pela violencia, o que não seria difficil conseguir em uma terra certaneja, onde não havia segurança nem para o asylo sagrado das esposas de Jesus Salvador. Pediu-lhe pelas sagradas dôres de Maria Santissima, que tomasse a seu cargo o futuro d'aquelle infeliz, que ella, amando-o como carinhosa mãe, confiaria do seu cavalheirismo, porque uma voz occulta, que nunca lhe mentira, lhe dizia que podia confiar. E quando, em algum dia dos poucos que tinha para viver, podesse haver ás mãos documentos que aproveitassem ao seu querido filho adoptivo, lh'os faria entregar por modo seguro.
Logo que os soluços e as lagrimas da santa freira deram logar a ser ouvida do mancebo, a quem fizera tão estranha revelação e ponderoso pedido, disse-lhe, com uma solemnidade inesperada, que podia ficar tranquilla, em relação ao futuro da creança, que elle, desde aquelle momento, tambem adoptava por seu filho.
Ás onze horas da noite d'aquelle dia, quem penetrasse até á porta das cellas das religiosas benedictinas de Moimenta da Beira, sentiria lá dentro lagrimas abundantes, porque todas choravam a ausencia de Joãosinho, fragil e inoffensiva creatura, que aquellas bondosas senhoras amavam com maternal affecto.
Ha sempre, mórmente em terras de poucos e incultos habitantes, vigias nocturnas, homens morcêgos, que devassam os mais insignificantes acontecimentos da rua, e que levam a sua audacia até ao ponto de pretenderem sujar o sanctuario da familia com inducções calumniosas, tiradas dos incidentes presenceados, a que não sabem nem podem dar verdadeira interpretação.
O fallar-se dentro do convento a deshoras, o bulicio de homens e cavallos, por occasião da entrada e tambem da sahida da creança, alguns indicios da existencia do pequeno João junto das freiras, o bom gasalhado que as trataveis madres davam ás suas visitas, e os commentarios exageradissimos dos vadios indagadores, -- foram causas, tão indignas como infundadas, da extincção d'aquelle convento.
É assim, muitas e repetidas vezes, a justiça dos homens.
Ao leitor attento, escusado talvez seria declarar, que o mancebo a quem foi entregue o pequenino João, se chama, n'este conto, Sebastião da Mesquita. E a creancinha, salva da sanha de uma terrivel madrasta e da cobardia de um indigno pae, pela santa abbadessa, -- madre e mãe adoptiva -- tem aqui os nomes de João Vidal, o escudeiro.
V
UM LEVITA
«Apostolo é o pae que se afadigaSó para que descance o filho amado;Apostolo é a rocha em que se abrigaAve agoureira e pobre desgraçado;Apostolo é a lagrima que amigaCae pela face em peito amargurado;E esse monstro do Céu que solitarioCorreu o mundo á busca do Calvario.»
("J. de Deus" -- FLOR. DO CAMPO.)
Em Santiago de Esporões -- antiga vigairaria do arcebispado bracarense, onde Martim Ribeiro fundou uma capella chamada de Nossa Senhora da Caridade, e estabeleceu um celleiro para os pobres, com dinheiro por elle adquirido no Brazil -- residia, no anno de 1799, uma honesta familia de pequenos proprietarios lavradores, composta de marido, mulher e um filho de nome Alvaro, rapaz de cinco para seis annos de idade.
Os apoucados lavradores, por mais de uma vez em tempo de más colheitas, tiveram de recorrer ao celleiro dos pobres, restituindo o emprestimo, quando mais farto era o anno, com o "avanço" de seu alvitre, segundo o uso e lei do estabelecimento de Martim Ribeiro, que não marcou limite ao juro para os que o queriam e podiam dar.
É de mui antigas éras o costume portuguez, pronunciadissimo na provincia do Minho, dos paes imporem o destino aos filhos, quasi ao sahirem da pia baptismal. Este erro, -- que tem origem na falta de illustração do povo, e tambem, o que peior é, em calculadas conveniencias familiares, -- dá em resultado a troca de vocações, padrinho mal de muitas immoralidades e ruinas. Algumas vezes sem o quererem, na idêa até de evitarem imaginarios prejuizos, são os paes que forjam a completa desgraça de seus filhos, marcando-lhes, sem escrupoloso exame, a estrada a proseguir no transito da vida, trilho sempre difficil de aplanar, e impossivel de vencer sem desastres, para os que o percorrem violentados.
Os pobres lavradores de Esporões, convencionaram fazer do seu unico filho um vigario. Ter um padre na familia, ouvir-lhe a primeira missa e vêl-o cura d'almas, é a suprema ambição dos camponezes.
Alvaro, havia de ser padre, porque seus paes o queriam. Tinham feito todos os calculos; as propriedades que possuiam chegavam para o patrimonio; e para as despezas da ordenação, quando minguassem os rendimentos, passariam fome se tanto fosse necessario. As fortes e decididas vontades, não conhecem obstaculos.
Chegou a hora de Alvaro tomar logar nas aulas de Braga. Alcançara-lhe o pae alojamento na rua de S. João do Souto, em casas da morada de uma viuva bem reputada e muito moça ainda, que havia calculado augmentar o pequeno rendimento de seus poucos haveres com o lucro proveniente de apatroar um estudante.
É d'este modo que bastantes familias, nas populações onde ha lyceus e aulas publicas, diminuem as suas occultas necessidades.
Chamava-se Eugenia Soares a viuva, que o era de um alferes do exercito portuguez, e contava vinte e duas primaveras no anno em que acolheu ao seu lar o estudante Alvaro da Cunha. Este, havia completado 16 annos de idade, e preparava-se para fazer exame do latim, que principiara a estudar na sua aldeia, tendo por bom professor o parocho da freguezia.
Eugenia, não houvera filhos do seu matrimonio, nem conhecia parentes proximos que lhe fossem amparo. Vivia em companhia de uma creada, que já o fôra de seus paes antes d'ella nascer, que lhe queria como a filha, que todos os dias recordava as virtudes de seus velhos e fallecidos amos, e que era a sua unica conselheira e amiga. Antes de resolver a entrada de um estudante em sua casa, consultára Eugenia a sua Theresa, que apenas objectára dever ser o admittido ainda rapaz e não homem feito. N'aquelles felizes tempos, só depois dos trinta annos completos se gosava o nome de homem.
Quando a velha Thereza precisava de sahir ás compras, Eugenia e Alvaro prestavam-se mutuo auxilio nos afanos domesticos. Nasceu assim entre elles uma innocente intimidade, que os deleitava. Succedia repetidas vezes ter Alvaro a delicadeza de preceder a patrôa no amanho das iguarias, confundindo o seu trabalho com o de Eugenia, e dando isto logar a toques de mãos tão singelos como perigosos nas edades em que o calor do sangue traspassa a cuticula, e póde, pelo contacto, communicar as doenças physicas e os ardores moraes: d'aquellas, e d'estes, ha a temer, após a communicação, a reciprocidade de padecimentos, sendo o amor o mais fatal de todos, por ser incuravelmente nervoso.
A viuva e o estudante adoeceram da terrivel molestia, que se não cura tendo a séde na alma.
Decorreram cinco annos.
Faltava ao ordinando um exame, para completar o seu estudo e ficar preso á egreja. Mais alguns mezes passados, e acabaria o engano das almas de Eugenia e Alvaro, que já durava muito, livre de vicissitudes e de impurezas.
Chegou o menorista, de ter passado as férias grandes na sua aldeia, sem grande pesar de haver deixado a companhia dos paes, que trocava por outra havida por mais terna: é assim o coração humano.
O estudante deparou com Eugenia physicamente mudada, e sobresaltou-o tão rapida alteração. Viu pallida, magra, chorosa e pensativa, a mulher bella, como sempre nos parece a do amor, que deixara, quarenta dias antes, com todo o viço de uma feliz mocidade. Fez-lhe um montão de perguntas, e só teve lagrimas em resposta.
As gotas de humor aquoso que sáem a pares dos olhos da mulher estimada, transformam-se em ferros agudos, a rasgarem fundo na alma do homem que as sente.
Seccaram-se as lagrimas: como? Ao sol do amor, que o menorista fez nascer do soffrimento.
A mudez de Eugenia promoveu a de Alvaro. Em casos taes, o silencio é o requinte do sentimento.
A noite d'aquelle dia passou-a o estudante a scismar. Quando pelas fendas da janella do seu quarto conheceu o alvorecer, vestiu-se e sahiu. Não fez reparo em achar apenas cerrada a porta da rua, por que a sua preoccupação estava sobranceira aos factos materiaes. Caminhou sem direcção premeditada. Ao passar no largo da Sé, viu aberta uma porta lateral da egreja, e foi orar. Acabada a oração, reparou n'um vulto encostado a um confissionario, em posição de penitente, e estremeceu: não a vira, adivinhara Eugenia n'aquella confessada.
O que atravessou o espirito do ordinando por aquelle encontro?
Nem elle o saberia dizer. Só com grande esforço, conseguiu recolher-se a casa e deitar-se vestido sobre a cama. Passadas horas, e já quando se tornou reparada a falta de Alvaro á primeira refeição, entrou a velha Thereza no quarto do estudante e perguntou-lhe se estava doente.
-- Doente, e muito. Diga á snr.^a D. Eugenia, que estou vestido, como vê, e que lhe peço a mercê de vir fallar-me.
Eugenia, entrou no quarto de Alvaro, e aproximou-se do leito com sobresalto. O doente, levantou rapidamente a cabeça e, sem dar tempo a perguntas, disse:
-- A senhora tem a bondade de mandar a Thereza procurar um portador que vá já buscar meu pae?
-- Para quê?!
-- Para sahir d'esta casa e d'esta terra immediatamente, a vêr se posso curar-me do mal que me assaltou esta manhã, e passar o resto da vida como a passam meus paes... Já não quero ser... "padre"!
-- Foi "elle", foi, Alvaro, que me aconselhou a despedir-te!... Mas eu amo-te, ouves? e não quero que me fujas... Deus não póde ser tão severo como diz "aquelle" seu ministro; ora não?... E eu morria se tu me faltasses; tenho a certeza de que morria... Vês? Só agora, que deveria proceder de modo bem opposto, se attendesse aos dictames do meu confessor, é que rompo o véu do meu coração!...
A severidade, talvez egoista, de um padre indelicado, accelerou o natural desfecho d'aquellas relações.
A missão melindrosa do confissionario, mais ainda que a do pulpito, só devia ser confiada a cabeças muito sãs, e a purissimas almas.
Alvaro, ficou e sarou logo: bem dever era, que ficava e que sarava. Depois de scenas assim expansivas, é que nós não "ficamos" pela continuação da pureza no sentimento.
Na epocha propria, fez o estudante o exame que lhe faltava, e ficou habilitado a tomar ordens ecclesiasticas. Seguraram-lhe os paes o patrimonio em todos os seus bens, e vieram pernoitar á cidade, em companhia do filho, na vespora do dia em que elle devia ficar para sempre ligado á egreja, que houve por bem condemnar os seus ministros á mais terrivel das solidões, -- á solidão d'alma!
Chegada a hora da ceremonia, foram vêr o religioso e solemne apparato, os paes de Alvaro, acompanhados por Eugenia e pela creada Thereza. Quando o ordinando appareceu revestido do habito clerical, cahiu a desditosa Eugenia, com o sangue gelado, nos braços de Thereza. A boa da serva, ficou tambem semi-morta.
Estavam finalmente realisados os ambiciosos sonhos dos velhos lavradores de Esporões.
Alvaro, era presbytero!
VI
CELIBATO
«Deus me livre de discutir materia tantas vezes disputada, tantas vezes exhaurida pelos que sabem a sciencia do mundo, e pelos que sabem a sciencia do céu!»
"Alex. Herc." -- EURICO.
O padre Alvaro, foi residir, em companhia de seus paes, para a terra da sua naturalidade, onde cumpria rigorosamente todos os deveres de seu ministerio sagrado, procurando os infelizes para os consolar com a palavra e com a esmola, fazendo colheita de lagrimas, e escondendo de todos as que lhe vertia o coração. Vivia só para a caridade e para a dôr. Decorando, no Evangelho, a vida de Christo, identificou-se com Elle no amor da humanidade. Conseguiu augmentar ao casebre do seu patrimonio um novo e separado repartimento, na solidão do qual, fóra das horas obrigadas aos seus deveres, fechava cuidadosamente as suas mágoas.
O soffrimento de um filho, não póde ser, por muito tempo, estranho aos que lhe deram a vida. Os bondosos lavradores de Esporões, conheceram, mais por instincto do que por sagacidade, que seu filho padecia, e quizeram profundar a causa de suas tristezas. Espreitaram-no a horas mortas, e ficaram surprezos do que viram.
-- Que peregrinação será aquella do nosso querido Alvaro, em noites de tempestade, Maria?! -- Perguntava o velho a sua esposa, ambos de volta de suas pesquizas.
-- Eu sei-te lá, homem! Só te digo, que isto tudo me faz chorar... Elle come quasi nada, anda tanto por esses montes e outeiros, vae pelas cabanas á cata dos necessitados, passa o pouco tempo que lhe resta de dia a lêr e a escrever, e ainda sahe de noite e com um tempo assim!... Deus me perdôe, mas quer-me parecer que o nosso filho se fez padre de mais!
-- Não ha gosto perfeito n'esta vida, é certo. O prazer com que lhe ouvimos a primeira missa, farta recompensa de todos os nossos sacrificios, desandou, dentro em pouco, n'estas lagrimas! Mas deixa estar, que eu ainda tenho vigor, e não canço nas minhas pesquizas, que podem trazer-nos tranquillidade. D'aqui por deante, quero ser eu só a vigiar o nosso Alvaro, porque fico mais á minha vontade. Tu, entretanto, ficas na cama a pedir a Deus por nós, sim?
-- O que tu queres, quero eu sempre, Antonio.
Uma das noites em que Alvaro foi espreitado pelo pae, entrou este, após a sahida do filho, no repartimento da casa habitado pelo padre. Analysou, com olhos paternaes, os mais insignificantes indicios de soffrimento, physico e moral, que por alli estavam dispersos. Entre outros, pareceu-lhe descobrir signaes de que o seu Alvaro cuspia sangue, supposição que fez verter da testa, ao triste pae, esse humor rubro que nos circúla nas arterias e veias. Encontrou no chão um papel com letras, que não sabia lêr, e guardou-o. Na madrugada do seguinte dia, foi o lavrador á residencia do seu parocho e velho amigo pedir-lhe o favor de lêr o escripto. Resava assim:
«Não, disse S. Gregorio, que o laço do matrimonio era o nucleo do genero humano, o esteio da vida e o centro da piedade?
«Para quê, os concilios d'Elvira e de Trento?...
«Celibato puro!!...
«Para quê, decretar contra a natureza?!...
«Oh Christo? Não quizeste Tu nascer de Maria?... Se não tivesses por consorte a Cruz da Redempção humana, fugirias Tu a completar, quando homem, a Tua existencia no mundo?...
«Porque não ha de ser para todos os filhos do peccado, a mulher, resumo do bem possivel, a casta mensageira entre o céu e a terra?!...»
O parocho, que era um padre intelligente e bondoso, pediu á sua ovelha, que fosse depositar aquelle papel no mesmo sitio em que o achara, e passou, depois, largas horas em colloquio amigo com o pae do que fôra seu discipulo.
Quinze dias depois da conferencia do parocho com o velho Antonio, ao cahir da tarde, chegava o lavrador, na rua de S. João do Souto, á cabeceira do leito em que Eugenia, cadaverica, estava recostada. Houve um longo silencio: ambos temiam o rompimento. Animou-se finalmente o velho a dizer:
-- Então de que mal padece a snr.^a Eugenia, não me dirá? As mulheres sempre são muito fracas! Pois a molestia que tem, é lá cousa para estar com esses quebrantos?! Será isso mimo?...
-- Vou dizer-lhe tudo por uma vez, snr. Antonio, antes que as forças me faltem... Amo seu filho e sou amada por elle... Um padre e uma viuva!... Deus castiga-nos, e bem o tinha agourado o meu confessor... "Elle", está cavando a sepultura, bem o vejo; e eu quero, e hei de morrer antes...
-- Em quanto viverem os velhos como eu, não podem morrer assim depressa os novos como vossas mercês, descancem... Mas porque não fallaram a tempo?! Porque não confiaram de mim esses incuraveis amores, quando fossem ainda horas de os legitimar aos olhos do mundo?...
-- Não o quiz eu, snr. Antonio, porque tive mêdo de ajuntar ao meu crime o seu odio, ou de praticar novo crime, levando Alvaro á desobediencia.
-- Foram bons sentimentos esses, foram; mas fôra melhor que ambos tivessem mais alguma confiança nos corações dos outros... Em fim, isso lá vae, e o que não tem remedio remediado está. Agora, cumpre fazermos todos da nossa parte para se viver o melhor possivel, o que se hade conseguir com o favor de Deus...
A este tempo sentiu-se rumor á porta do quarto, e ouviu-se distinctamente a voz de Thereza dizer: «É seu pae!...»
-- Entra, Alvaro; -- disse em voz clara e de modo a ser ouvido de fóra, o sympathico e honrado velho. Entrou o padre, ajoelhou aos pés do pae, e titubeou a palavra: -- Perdão.
-- Levanta-te, que és mais infeliz do que culpado, e para os infelizes reservou Deus a sua divina misericordia. Sei tudo, e tambem o sabe tua mãe. Não te louvamos nem condemnamos; choramos as tuas dôres, que são as nossas, e procuramos-lhe allivio. É preciso que vivas, e que viva tambem a snr.^a Eugenia. Eu mando, pela voz da religião que tenho n'alma, pela do sangue e pela da honra, como a entendem os homens do campo. Se fôr condemnado pelos fanaticos, já tenho a absolvição do meu santo pastor, que mais vale. A um pobre, que sempre foi honrado, não falta a Providencia nas occasiões precisas. Tu, meu Alvaro, vaes ser nomeado reitor da freguezia de Santo Adrião de Penafiel, que assim m'o prometteu o snr. fidalgo de Porto Carreiro, que nunca faltou á sua palavra. É um presente que me faz, disse elle, por eu lhe ter pago com toda a pontualidade, ha quarenta e cinco annos, um fôro, de dois carros e meio de pão meiado, limpo e sêcco. É um fidalgo ás direitas, que sabe conhecer o que vale o suor da pobreza. Ora, a reitoria, fica lá para o valle de Sousa, nas proximidades de Penafiel, muito longe d'aqui. Eu e tua mãe de certo lá não poderemos ir; mas tu, que estás na força da vida, virás amiudadas vezes visitar-nos. O snr. padre reitor de Santo Adrião, tem na aldeia da sua naturalidade uma irmã viuva, que póde ter um filhinho que talvez precise do auxilio do thio padre... Repito, eu mando, e quero ser obedecido. Não sei o que dizem os livros sagrados nem os profanos, porque me não ensinaram a lêr: tenho só aprendido o que me diz a minha consciencia honrada. No tribunal do Deus justo, darei eu as contas por tudo isto. Do escandalo, é que as não hei-de dar, porque tenho toda a segurança nos bons sentimentos d'aquelles que preferiam a morte, á quebra publica dos seus deveres.
Quando Antonio acabou de insinuar as suas ordens, dadas n'um tom prophetico e inspirado, é que fez reparo no quadro que, havia já minutos, alli se via. Estavam a seus pés, ajoelhados, cada um de seu lado, regando-lh'os de lagrimas doces, os amnistiados da paternidade, que representa Deus na terra.
Era bello de vêr-se a mocidade cadaverica pelo mal d'amor, abraçando commovida até ás lagrimas, a honra envelhecida no rude trabalho do campo, fresca e vigorosa como a carvalheira secular liberta da podridão das cidades!...
No dia 27 de agosto de 1819, recebia o primeiro sacramento da egreja, na cidade de Braga, um recem-nascido do sexo masculino, a que foi posto o nome de Arthur. Os padrinhos, por procurações de Sebastião da Mesquita Bandeira de Mello e de D. Isabel de Abendanho e Sousa, foram Antonio da Cunha e Maria do Espirito Santo, os honestos lavradores de Esporões, que deram a existencia ao reitor de Santo Adrião de Penafiel.
Estava o padre Alvaro ha mais de tres annos de posse da reitoria, sendo acatado e tido na conta de exemplar pelo povo, quando recolheu na sua residencia uma irmã viuva com um filho. Cresceu o amor e o respeito do povo pelo padre reitor e pela familia, na razão directa do augmento de beneficios e de consolações que recebia. Eram seis mãos sempre abertas á pobreza, e duas santas boccas a semearem palavras animadoras aos dous sexos, o que o povo encontrava na residencia do reitor de Santo Adrião de Penafiel. Por isso, o reitor, irmã e sobrinho, ganharam a estima geral, ao ponto de fazerem dividir, nos corações de todos os habitantes do valle de Sousa, a antiga e bem fundada sympathia pela familia do fidalgo Sebastião da Mesquita.
Um dia, chegou ao conhecimento do publico, que havia luto na residencia do padre Alvaro. Foi lá toda a gente da povoação. O reitor, leu, commovidissimo, ao seu rebanho, uma carta que recebera do seu amigo e mestre, o parocho de S. Santiago de Esporões. Dizia assim:
«Dei hontem sepultura a dois cadaveres, Alvaro, e dou hoje cumprimento a uma triste imposição da amisade. Está devoluta a residencia do teu patrimonio. Teu pae morreu ás dez horas, e tua mãe á uma da tarde do mesmo dia. Presenciei a morte de dois justos. Disseram-me, para te communicar, que iam pedir a Deus por ti... Resignação.»
As lagrimas do padre confundiram-se com as de todos que o escutavam.
Arthur, que então teria sete annos, trepou aos joelhos do sagrado pastor, pousou-lhe os rosados e frescos labios nas faces crestadas pelo fogo das lagrimas, e disse-lhe:
-- Não chores, thio, que os avós estão no Céu. Sabes o que hasde fazer? Manda occupar as casas, que elles deixaram, pelos pobresinhos lá d'essa terra, sim?
-- Pois sim, querido amor, e hei de dizer-lhes que foste tu o da lembrança...
Arthur andou nos braços de todos, e foi devorado com beijos. N'esta occasião, deu entrada na sala o fidalgo Sebastião da Mesquita, acompanhado de uma creada, que trazia ao collo uma interessante menina de treze mezes de idade. O povo formou respeitosamente duas alas, e o reitor recebeu, com agrado, mais aquella visita.
-- Que fez o meu afilhado para merecer tantos affagos? -- perguntou o fidalgo, depois de ter saudado a todos.
-- O que havia de ser, snr. da Mesquita?... O rapaz parece não ter mau coração: destinou a habitação dos avós fallecidos para residencia das pessoas mais necessitadas da freguezia d'elles; e as boas almas d'estes meus filhos todos, pagaram-lhe a lembrança em fartas caricias.
-- Então já assim caminhamos para o Céu, snr. meu afilhado?! Muito bem, muito bem!... Vou dar-lhe a primeira paga da sua nobre acção...
-- E assim fallando tomou Arthur nos braços e, aproximando-o da filhinha, fez com que se beijassem os dous innocentes......
Treze annos depois d'estas scenas, em dia de trabalho, e por horas em que estão dezertas as egrejas das aldeias, entrava Sebastião da Mesquita no templo parochial de Santo Adrião, e batia de manso nas costas de um padre, que estava curvado sobre uma sepultura. Ao levantar-se o padre, tremeu involuntariamente o fidalgo, de encarar nas transtornadas feições do seu amigo.
-- Nem tanta penitencia nem tamanha dôr, padre Alvaro, que podem não ser do agrado de Deus. Não precisa, Arthur, agora mais que nunca dos seus cuidados?
-- Basta-lhe a protecção do nobre e honrado padrinho... A minha vida, está n'esta sepultura, onde talvez cahisse uma condemnada ás penas eternas!...
-- Não conta com a bondade do Pae para com seus filhos, e por uma culpa involuntaria, desvanecida por innumeras virtudes, só quer vêr o castigo, em vez do perdão?!
-- E as leis da egreja?!...
-- E as leis da natureza; a misericordia divina; os votos de seus honrados paes; a consideração, a estima, o respeito geral; as bençãos dos infelizes e a tranquillidade da consciencia, pelo que toca a todas as demais acções da sua vida?...
-- Viverei, snr. Sebastião da Mesquita, e o tempo que me sobrar da penitencia dal-o-hei á sua heroica amisade!
VII
RAPTOS
«Que póde valer á hebrêa
Sentir n'alma chamma infinda?
como a linda Ester ser linda,
e amada como Rachel?
Se o coração da judia
se entre-abre do amor aos lumes,
não lhe dá tempo aos perfumes
o seu destino cruel.»
("T. Ribeiro" -- SONS QUE PASSAM).
«O vicio está por tal fórma naturalisado que não ha razão para espantos nem sequer para censuras.»
("Camillo C. B." -- O CONDEMNADO.)
Foi ephemero o triumpho para a revolução do Minho, denominada -- Maria da Fonte. -- Cahiu o ministerio ao rugido popular, foi certo; mas a seis de outubro do mesmo anno, o governo constituido ao grito dos revoltosos, teve, por vontade régia, sorte igual á do seu predecessor. A esse facto, que se deu fóra das praxes constitucionaes, chamou-se -- "emboscada palaciana" -- e deveu-se a mais formidavel das guerras civis portuguezas.
A heroica cidade da Virgem foi o centro da resistencia ao chamado governo de facção, constituindo dentro de seus muros, a nove de outubro de mil oito centos quarenta e seis, uma "junta provisoria do governo supremo do reino", que ousou prodigios bem dignos de causa mais santa, como seria a defesa da patria contra estrangeiro dominador. Exaltaram-se os partidos, e de todos os angulos do paiz voava a mocidade portugueza a alistar-se sob as bandeiras hasteadas em guerra fratricida. O enthusiasmo guerreiro tocou o delirio. Raro, bem raro, seria encontrar-se um portuguez de braços cruzados ante o flagicio geral.
Além dos bandos constitucionaes, achou tambem ensejo de desfraldar bandeira o velho e respeitavel partido absolutista: respeitavel na sua quéda, e ostracismo sem limite, pela coragem da abnegação, e pelo inquebrantamento da sua fé. Este ultimo grito de revolta, chamou tambem os velhos ao campo da batalha. Acabaram então os indifferentes: todos os portuguezes, cada um a sabôr das suas paixões, ficaram empenhados na luta.
Sebastião da Mesquita foi convidado por um general estrangeiro -- Mac-Donnell -- , que se dizia commissionado do snr. D. Miguel de Bragança, a tomar parte activa no pronunciamento ante-dynastico. Recusou-se. Pediu-lhe o general que fizesse, ao menos, parte do seu estado maior, para lhe dar conselho e força moral, e apresentou-lhe um autographo do principe proscripto, que fez abalo na rigidez do velho fidalgo. Esta conferencia teve logar nos primeiros dias do mez de novembro de mil oitocentos quarenta e seis; e não se passaram muitas horas depois d'ella, sem que o aventureiro general visse caminhar ao seu lado, para Villa Real, o respeitavel pae de D. Maria da Gloria, tendo previamente recommendado ao seu afilhado, Arthur Soares, que auxiliasse a esposa na vigilancia do seu casal.
Quem podesse espancar as trevas da tempestuosa noite de dezoito do mez e anno referidos, e penetrar no terreiro da frente do palacio de Sebastião da Mesquita, veria alli tres liteiras e seus guias, um formidavel cortejo de lacaios, e cêrca de cem homens armados, todos recolhidos ao maior silencio. O capitão d'aquella força e apparato, era o fidalgo Leopoldo. Conseguira aquelle posto no exercito da rainha, em batalhão addido á brigada do commando de um general que, por aquella epocha, se aproximou da cidade do Porto, no intuito de lhe serem abertas pela traição, que se dizia combinada, as fortes linhas defensivas do baluarte da Liberdade.
Não podemos averiguar como o snr. de Lencastre conseguira desviar aquella força da sua direcção para as cercanias do Porto. O que sabemos é que aquella gente caminhara de noite, por verédas escusas, no manifesto intento de evitar encontros com os sublevados. O mais, ficou sendo um segredo do voluntario capitão, e do general commandante da brigada.
No interior do palacio, e no quarto reservado a D. Maria da Gloria, onde tambem estavam Rosa e Anna, que ficaram sendo constantes companheiras da fidalga desde a ausencia de Sebastião da Mesquita, á mesma hora da chegada ao terreiro do já descripto e bellicoso apparato, -- havia uma conversação, a que o leitor, ainda hoje, tem direito de assistir:
-- Conheço agora, minhas boas amigas, toda a verdade do rifão -- «diz-me com quem vives, saberei os fracos que tens.» -- Estou supersticiosa com a nossa Annitas! Não sei o que me adivinha o coração... A ausencia do meu illustre pae e do João Vidal, e o escrupulo do snr. Arthur Soares, em não querer pernoitar n'esta casa, são naturaes acontecimentos, bem o conheço, mas despertam-me uns certos receios que até hoje não conhecia em mim!...
-- Querem vêr que ainda lhe lembra a má catadura do irritado primo n'aquella noite de luar?!... Não pense em tal, minha querida snr.^a D. Maria, que a tempestade, se o foi, passou sem resultados fataes, e só deve restar d'ella, ao seu auctor, o pesar de a ter provocado.
-- É de certo pela minha natural timidez que eu, partilhando os sustos da snr.^a D. Maria, vejo cahir sobre nós a tempestade, como a Rosa lhe chama, e fazer-nos victimas do seu louco furor...
-- Por melhor o fará Deus, Anna... Comtudo, parece-me prudente não desprezar estes presentimentos, accordar a minha presada mãe e senhora, e pôr os criados de atalaia...
-- Credo! o que ahi vae!... E o mais é que são capazes de reunir em mim, ao pêso d'esta tenebrosa noite de inverno, o mêdo do terror de que as sinto possuidas...
E as tres donzellas, como se fossem tocadas por occultas molas, saltaram fóra dos leitos, e vestiram-se apressadamente.
Ao mesmo tempo que se manifestava nas tres donzellas o máu presentimento revelado no dialogo a que fizemos assistir o leitor, sentira igual panico a velha fidalga D. Isabel de Abendanho e Sousa. Não são virgens estes casos. Muitos exemplos attestam o ter sido uma familia atacada de funestas ideias, e de iguaes padecimentos physicos, em alguns de seus membros ao mesmo tempo, vivendo até distanciados uns dos outros. Não sabemos se ha sciencia que explique o phenomeno; mas é certo que se tem dado.
Fez a dona da casa levantar os criados, que collocou de sobre-aviso, indo em seguida escutar á porta do quarto da filha, para certificar-se de se havia por alli em que fundar os seus receios. Na mesma occasião era aberta a porta por D. Maria e, juntas as quatro habitadoras do palacio, confidenciaram os seus mysteriosos sustos. Teriam apenas tempo de trazer a lume a mais diminuta parte de suas apprehensões, quando sentiram tropel de criados, tomando a direcção do quarto, que procuravam a senhora fidalga, para, entre temerosos e espantados, lhe darem parte de que o palacio estava cercado de tropa.
Foi então que aquellas quatro mulheres, tímidas momentos antes por ideias de imaginarios perigos, mostraram que o sangue frio e a coragem, quando chegam as verdadeiras tempestades da vida, não são qualidades alheias ao sexo chamado fragil.
Era, com tudo, tarde para se tomarem acertadas providencias contra qualquer aggressão. Um dos serventes da casa, comprado pelo ouro de Leopoldo, abrira uma das portas do palacio. Foram, pois, surprehendidas as tristes senhoras pela multidão de homens armados, á testa dos quaes se via o imprudente auctor d'aquelle attentado, e impossibilitadas de resistir aos intentos de seus perseguidores.
Entre alguns dos criados do palacio, e a força violadora d'aquelle lar, houve uma pequena luta -- até aquelles serem subjugados pela vantagem numerica -- perecendo apenas n'ella o criado traidor, ás mãos dos assalariados por aquelle que lhe comprára a fidelidade.
As tres donzellas foram brutalmente amarradas e conduzidas ás liteiras.
A velha fidalga presenceou tudo com denodo varonil, sem fazer o mais leve rumor, representando, na sua mudez e aspecto sublimes, uma perfeita estatua de concentrado soffrimento. Era uma «Vilhena» a meditar vingança condigna de tão atroz delicto. Ao arrancarem-lhe as donzellas, disse-lhes D. Isabel com voz severa:
-- A infamia não vence a honra. Sabei morrer sem vergonha, que eu vos abençôo como Deus vos abençoará. Adeus, Maria!...
Retirados que foram os assaltantes com as suas presas, ficou o palacio occupado pelos fieis creados, agglomerados em volta de sua ama D. Isabel. Esta heroica matrona, teve força para recolher ao coração as lagrimas da saudade, o fel do desespero e do seu justificado odio ao malvado parente que a deshonrava, e para dizer com apparente tranquillidade aos que a cercavam:
«Quizera antes ter de vos lamentar mortos, e de vos mandar suffragar as almas, do que vêr-vos aqui sem aquellas em defesa das quaes deveriam todos acabar seus dias, porque eram vossas amas, vossas enfermeiras, e vossas amigas... Já agora não ha tempo para mais reflexões. Apparelhae todos os cavallos que estão nas cavallariças, -- um d'elles para que eu o possa montar -- soltae os animaes recolhidos nas lojas, colhei todos os retratos de familia que encontrardes, e deitae immediatamente fogo a este palacio. Não deve mais ser visto de meu marido, o logar onde um fidalgo villão insultou a mulher e a filha de um verdadeiro nobre. Reparae que eu "quero" caminhar para a residencia do snr. reitor, alumiada pelas chammas da casa que foi habitação de meus avós!...»
Foram rigorosamente cumpridas as ordens da fidalga, que effectivamente caminhara para casa do reitor ao clarão que despedia o fogo lançado de seu mando ao seu solar, e ao som do toque de sinos a rebate, que o incendio provocara.
A meio caminho da residencia encontrou D. Isabel Arthur Soares, que o toque dos sinos despertara, ao qual referiu o succedido.
Duas horas depois das scenas narradas, quem fosse á sala do oratorio da residencia, encontraria uma senhora e um homem -- dous velhos -- ajoelhados, a orarem ao Creador. Eram o reitor e a fidalga D. Isabel.
Á mesma hora, passeava Arthur Soares, como louco, no seu quarto, brandindo um punhal, aquella detestavel arma, já conhecida do leitor, que D. Maria lhe legára.
VIII
COMBATE
«O homem debatia-se ahi nas vascas da morte, e o sol passava involto na sua gloria sem corar das angustias d'aquelles, que em seu ridiculo orgulho se chamavam monarchas e conquistadores do mundo; sem lhe importar se os vermes vestidos de ferro, chamados guerreiros, se despedaçavam uns aos outros com o delirio insensato das viboras no momento dos seus amorosos ardores.»
("A. Herculano" -- EURICO.)
Em Porto Manso, logar situado pouco abaixo das Caldas de Arego, no dia 19 de Novembro de 1846 -- o seguinte áquelle das scenas descriptas no capitulo precedente -- estavam postados á margem do rio Douro, em fortes posições, uns quinhentos homens commandados pelo aventureiro general Mac-Donnell, espreitando a passagem rio abaixo de um bravo, mutilado e honradissimo militar do tempo do cêrco, que servia ás ordens da junta, e que recolhia, com a força de seu commando, á invicta cidade do Porto.
Desprevenido da cilada, soffreu o liberal guerreiro de muitas e bem feridas batalhas, um vivissimo fogo de fuzilaria, despejado sobre as suas tropas embarcadas, pela emboscada guerrilha.
Travou-se combate.
No mais vivo da peleja, dirige-o um cavalleiro o seu corcel a toda a brida em direcção onde se achava o general da guerrilha, e segredou-lhe:
-- General! Não é d'este modo que se batem os defensores de uma causa justa e sancta. Esta espera traiçoeira a uma força que nos não aggride nem mesmo podemos ter como inimiga declarada -- é procedimento condemnado pelos bons estimulos, por todas as regras, e pelo decoro da briosa carreira militar. Se não manda já cessar o fogo, e tocar a retirar, retiro-me eu immediatamente.
-- Faça o que lhe aprouver fazer, snr. Sebastião da Mesquita, que eu não desisto do meu empenho em aprisionar o "manêta".
-- Não o conseguirá. A Providencia, que muitas vezes parece dormir, é sempre protectora dos opprimidos. Recolho a minha casa, general, e não creio que nos tornemos a encontrar.
Verificou-se o vaticinio do nobre fidalgo.
Poucas horas depois d'aquelle curto dialogo, retirava a guerrilha de Mac-Donnell em completa debandada, deixando no campo do combate 17 mortos e 9 prisioneiros, escapando com difficuldade de ser tambem aprisionado o seu aventureiro commandante.
Quando Sebastião da Mesquita, acompanhado do seu fiel escudeiro João Vidal, seguia caminho de sua casa, viu ao largo, caminhando em direcção a elle, uma cavalgada que, sem atinar com o motivo, lhe fez profunda sensação. Ao aproximarem-se os dous grupos de cavalleiros, não pôde suster o velho fidalgo uma exclamação de espanto, reconhecendo sua mulher, o reitor, Arthur Soares e todos os seus criados. Apeiaram-se silenciosos. Era um descampado o sitio do encontro. D. Isabel abraçára seu marido, debulhada em lagrimas. Todos os rostos exprimiam a mais profunda tristeza. Houve um longo e doloroso silencio. Sebastião da Mesquita interrogou sua mulher com um olhar, que D. Isabel comprehendeu e revelou ao inquieto esposo o attentado do seu palacio, e as suas consequencias, sem esquecer a mais pequena circumstancia do occorrido. O velho ficára por instantes como fulminado. Quando pôde fallar, disse á esposa:
-- Isabel! Acabas de dar-me, com a má nova, mais uma prova do quanto és digna do meu affecto. Procedeste como honrada mulher que és. O que resta a fazer, compete-me a mim, e crê que Deus me ha-de conservar a vida para a desfórra. As nossas filhas -- chamo assim a todas -- se não morrerem, hão-de voltar com honra ao nosso poder. A educação e o sangue, são, n'estes casos, melhores guardas do que o mais poderoso exercito. Socega. -- Padre Alvaro, póde voltar a pastorear o seu rebanho. Não lhe agradeço o que fez, porque a verdadeira amisade vexa-se com agradecimentos. -- Arthur Soares, sei lêr nos seus olhos a sua vontade e por isso lhe digo que militará desde hoje ao lado de seu padrinho. Faço-me coronel ou general, e dou-lhe o posto de meu ajudante...
-- E para mim, snr. Sebastião da Mesquita, -- interrompeu o velho reitor -- reclamo o de padre capellão do seu regimento e, se fôr indeferida a minha pretenção, como estamos em tempos anormaes, despacho-me a mim mesmo, e sigo-o, ainda contra vontade de v. exc.^a. As minhas ovelhas ficaram entregues a um bom pastor, que eu previra a demora da snr.^a D. Isabel, e comprehendi que o meu dever era não me apartar um só instante da nobre senhora, que me honrara procurando o abrigo do meu tecto. Não tente demover-me d'este proposito, snr. Sebastião da Mesquita, que deve conhecer a mágua que a reluctancia de v. exc.^a me causava.
-- Obrigado, padre Alvaro. Seja como quer, que deve ser como Deus manda.
Durante o tempo que durou este encontro, explicações e pactos, foram-se agglomerando em volta do grupo os guerrilhas que vinham fugidos do combate, e que haviam reconhecido em Sebastião da Mesquita o ajudante do general "inglez", como elles chamavam a Mac-Donnell.
O velho fidalgo perguntou-lhes se queriam continuar a militar sob o commando d'elle, proposta que todos receberam com exclamações da mais expansiva alegria. Dentro em pouco reuniu o ex-ajudante, ou antes conselheiro, do aventureiro general, debaixo do seu commando, quasi toda a força de que Mac-Donnell dispunha antes do combate.
Dispoz Sebastião da Mesquita em acção de guerra toda a sua tropa, e proclamou-lhe a conveniencia de uma rigorosa disciplina, declarando-se-lhe intransigivel e inimiamente severo para qualquer infracção.
Estavam já em disposições de marcha, para pernoitarem na mais proxima povoação, quando o novo commandante viu aproximar-se-lhe um official a cavallo, que chegára alli á desfilada.
Déra a tropa caminho ao recem-vindo, por não haver que temer de um só homem, e pelo instincto de que havia utilidade n'aquella apparição. A um signal do esbaforido official, mandou Sebastião da Mesquita fazer campo, em que ficaram um tanto isolados da força o recem-chegado, elle e a familia.
Não cabe nas forças de um escriptor do nosso pulso, pintar satisfactoriamente as gratas impressões e o delirante contentamento de todos, ao reconhecerem, n'aquelle supposto mensageiro, a intrépida Rosa!
Fôra o caso, que chegando Leopoldo com as tres roubadas donzellas ao Bom Jesus do Monte, dos arrabaldes de Braga, e recolhendo-as á hospedaria, teve Rosa artes para communicar, por uma varanda, com o quarto immediato ao que em prisão lhe fôra dado, onde a sorte quiz que houvesse um completo fardamento de official ajustado ao corpo da nossa heroina. Conceber o seu plano, despojar-se dos feminis vestidos, substituil-os pela farda, descer á cavallariça, ordenar em tom positivo ao curador que apparelhasse o seu cavallo, montal-o e fugir -- foram tudo actos tão seguidos e repentinos, quanto vigorosa e ardida era a vontade da donzella!
Contou Rosa a historia da sua fuga com as variantes e variadas peripecias a que forçosamente havia de sujeital-a a sua inexperiencia, narrou os succedimentos que da liteira poude presencear após os raptos, e foi no fim abraçada por todos com frenetico enthusiasmo.
No rosto de Arthur Soares, ao reconhecer Rosa, havia transparecido um raio de alegria, que foi de novo sumido nas trevas da sua profunda tristeza, mal que terminára a narrativa.
-- Esta, já está salva! e hade ser o primeiro mobil da salvação das outras nossas filhas, Isabel! -- Disse Sebastião da Mesquita, cheio do jubilo que em taes circumstancias podia abrigar no peito.
IX
AMOR
AMOR é a palavra, o brado eterno
Solto por Deus ao vêr já feito o mundo,
Que fez tremer as abobodas do inferno
E o sol ficou da côr d'um moribundo:
A primavera, estio, outomno, inverno,
Terra, céu, alma pura, bicho immundo,
Tudo ahi cabe á larga de tal modo
Que n'essa concha Deus se fecha todo.»
("João de Deus" -- FLORES DO CAMPO.)
Á margem de uma estrada que serve de transito entre Vianna e a praça de Valença no alto Minho, em aprasivel e pittoresca posição, olhando as viçosas e celebradas cercanias do nosso poetico Lima, -- está situado um sumptuoso palacio com suas suberbas fachadas das ordens Toscana e Dorica, esta decorando a frente principal, e aquella a do primeiro jardim, como tambem as suas respectivas torres ou pavilhões.
A escada principal d'este edificio, rivalisa com a do palacio episcopal da cidade do Porto.
A capella ostenta um elegante zimborio e grande profuzão de maravilhosos ornatos. Os seus aprasiveis parques e bellissimos jardins, com magnificas e espaçosas ruas, tornam aquella vivenda verdadeiramente encantadora. O interior corresponde ao exterior, se não o excede, na vastidão, luxo, e boa ordem com que está decorado.
Fôra para aquelle paraiso, que o sr. Leopoldo de Lencastre fizera conduzir D. Maria e a sua discipula Anna, conservando-as separadas, ignorando a existencia ali uma da outra, e na maior vigilancia, para evitar outra fuga como a de Rosa.
Viviam as duas donzellas n'aquelle privado carcere rodeadas do mais asiatico luxo, e como feudaes princezas a que, no exilio, fosse concedido o eden por homenagem.
Anna facilmente se coadunára com a nova e extraordinaria existencia a que fôra levada pelo crime, por que -- já o sabe o leitor -- no seio de sua virginal pureza despontára um sentimento a ella desconhecido, de que o seu roubador fôra alvo, e que devia leval-a a debater-se na labareda que elle fórma, ou a consumir-se nas cinzas que essa mythologica chamma, denominada amor, conserva eternamente nos corações martyrisados pela voz do dever e da consciencia.
Outro era o estado de D. Maria da Gloria. A convivencia desde o berço com Arthur Soares, o cotejo que muitas vezes, e insensivelmente, fizera das qualidades moraes do sobrinho do reitor com os de mais frequentadores do seu solar -- o que sempre dava em resultado innumeras vantagens para aquelle -- e, sobre tudo, esse mysterioso aquecer do sangue ao girar perto de nós em natural fluido o de alguem que o bafeja, e essa constante e seductora visão da alma semelhante á nossa em corpo da nossa sympathia, -- haviam sido outros tantos estimulos a conduzirem a fidalga moça á posse de um reservado e verdadeiro affecto por Arthur Soares, que ella julgava poder sempre ter sepultado no fundo do coração, em respeito ao culto da nobreza que herdára e que lhe fôra inoculado ao entrar na vida pelos seus educadores, reserva esta já trahida n'outra crise, e que d'esta vez corria gravissimo risco de acabar completamente. N'este estado, fôra-lhe tyrannico, sobre ser infamissimo, o cobarde e violento procedimento do fidalgo primo.
Leopoldo, estava apanhado na sua propria rêde. Levado por maus instinctos, e por sêde de vingança, premeditou e levou á execução, sem ao menos preceder o circumspecto exame da maldade precavida, o arrojado e perigoso projecto de roubar as donzellas. A primeira contrariedade soffreu-a elle immediatamente com a fuga de Rosa, á qual votava entranhado rancor, e anciava humilhar cruelmente, e abortára-lhe esse prazer. A segunda quebra dos seus devaneios veiu-lhe com a nimia facilidade que encontrou em sujeitar a timida e docil Anna a todos os seus caprichos, desfazendo-se-lhe d'este modo, como fatua bolha de sabão, um mal definido e peior agasalhado sentimento que, por aquella rapariga, lhe parecia a elle ter no peito.
Muitas d'estas velleidades, cunha a sociedade com o pomposo nome de amor, confundindo o appetecido contacto das epidermes com esse sentimento moral que subjuga o homem, que é o principio creador de todos os seus heroismos, que é a razão, o genio, a harmonia, o acto supremo da alma, a inspiração de Deus!...
O terceiro e o mais fatal de todos os castigos de Leopoldo cahira sobre o coração do desgraçado em frecha envenenada, que já começava a tolher-lhe as funcções moraes e o vital respiro da sua vida physica: amava o infeliz, sem bem o saber ainda, e amava D. Maria da Gloria!
Que terrivel lucta!
Fascinado a seu pesar pela belleza da fidalga prima e pelo seu nobre orgulho, abatido pelo desprezo que sentia merecer á sua victima, dominado pelas rijas impressões a que vivem subordinadas as paixões humanas, louco de furor pela certeza de existir um rival, um miseravel peão, preferido no coração do seu idolo, e sem poder, pelo seu caracter, elevar-se, no infortunio e no martyrio, á sublime condição dos espiritos privilegiados que o idealismo purifica -- tormentos eram estes que a Providencia destinou a Leopoldo com o seu amor por Maria!
Achava-se o voluntario capitão das tropas da rainha fazendo parte de uma força militar que então occupava Vianna do Castello. Dispozéra tudo de modo a ter segurança na forçada posse das donzellas, que visitava sempre que podia, ignorando as encarceradas as repetidas ausencias a que era obrigado o seu fidalgo carcereiro.
Entremos com Leopoldo, chegado de Vianna, no palacio encantado, que elle escolhera deslumbrante no intento de maravilhar D. Maria da Gloria.
Acabava de anoitecer: penetrou o elegante fidalgo na parte da casa destinada aos seus cómmodos, e, sem descançar um só instante da fadiga da jornada, attendeu desde logo ao esmero e atavios da sua pessoa e vestuario, como se tivera de comparecer n'um baile de côrte. Assim disposto, tomou direcção dos aposentos de D. Maria da Gloria. Na ante-sala proxima d'aquella em que estava recolhida a fidalga moça, sentiu-se Leopoldo repentinamente assaltado de um mau-estar, d'uma fraqueza, d'uma indecisão e de uns receios taes, que o levaram a tomar assento n'uma poltrona que, do acaso, ficava fronteira de um riquissimo espelho. Ao vêr copiado no preparado vidro o seu transtornado aspecto, mudou Leopoldo de tenção, e dirigiu-se com paços ainda mal seguros para a parte do palacio, occupada pela docil Anna.
Deixemos sem testimunhas os faceis protestos do mentido amor, proferidos sobre-posse, áquella que já não podia nem sabia regeital-os, pelo homem que a seduzira e arrebatara, e entremos no salão em que D. Maria da Gloria gemia saudades e nutria, a par de sublimes affectos, esperança de proxima salvação: -- as paredes estavam forradas de setim verde; as janellas todas adornadas de custosas cortinas de côres branca e amarella; os reposteiros eram de damasco encarnado com os cordões e as borlas de fio de prata, e os moveis todos de pau preto almofadados de setim branco. Se uma dama de caprichosa imperatriz tivera sido a encarregada de dispôr, alli como em todas as salas do aposento de D. Maria, e collocar em ordem essas infindas e minuciosas commodidades de uma senhora de régia estirpe, -- não deslumbraria mais aquelle recinto. Lá dentro, era D. Maria senhora absoluta, obedecida por aias e criados ao mais leve aceno, sem que aquellas e estes deixassem de ser outros tantos vigias e guardas de seus movimentos e acções. Os grilhões, eram com effeito de ouro do mais subido quilate.
Estava a joven captiva a uma das janellas, olhando pela milesima vez os arrebatadores jardins d'aquelle palacio, quando sentiu cahir a seus pés um objecto arremessado de fóra, que se apressou a apanhar. Desfez o embrulho, e encontrou um punhal acompanhado de um papel escripto d'este modo:
«Ha mais de sessenta dias que apenas vivo para a vingança, cogitada de instante a instante no meio de torturas espirituaes que dementam!
«Descobri finalmente este infernal paraiso que a retem. Queria ser eu sósinho o salvador de v. exc.^a, mas as cautelas tomadas pelo infame obrigam-me a metter na melindrosa empresa o snr. Sebastião da Mesquita.
«Esse estylete é inutil nas minhas mãos e póde convir nas de v. exc.^a. Para a desaffronta dum homem, não deve servir a arma que se esconde em bolço falso como o sicario nas trevas da noite. A senhora D. Maria da Gloria comprehenderá melhor do que eu como póde fazer entrega do vil instrumento no malvado que o sabe usar.
«Está a soar a ultima hora do captiveiro. Creio em v. exc.^a como creio em Deus.
«"Arthur"».
Ao terminar a leitura do bilhete de Arthur Soares, que enchera de felicidade a D. Maria, correu-se um reposteiro e entrou na sala o fidalgo Leopoldo. Ao sentil-o, tomou a donzella, junto do fogão que ardia na sala, uma attitude de rainha quando concede audiencia aos seus subditos. Vira Leopoldo o papel nas mãos de sua prima, e a suspeita dera-lhe animo para fallar:
-- Vejo que a minha nobre prima tem por estes sitios correio amoroso!... Poderei ter a honra de saber o conteudo n'esse papel?
Por unica resposta lançou D. Maria o bilhete á chamma do fogão.
-- Continua a ser cruel, senhora, e eu submisso sempre! Vê como o amor torna os homens bons e generosos? Qual de nós é o captivo?...
-- Infame!...
-- Sempre esse burguez adjectivo! E porque sou eu infame?! Pois se o amor governa o mundo, podem-se por ventura impor deveres aos impulsos da alma?!... Solte a minha nobre prima uma palavra de esperança, e verá transtornado em manso cordeiro aquelle que imaginou ser um feroz tigre... O sentimento verdadeiramente moral que me domina, é sincero e augusto... Nasceu subitamente e nem por isso é possivel a sua cura... Conheço, desde que a avalio, toda a grandeza, todo o poder, toda a irresistivel força dos seus naturaes encantos, toda a magnitude da sua nobilissima alma... Amo-a e soffro muito, minha prima, tendo para mim este sofrimento na conta do maior prazer!... Adoro-a até no seu despreso por mim!...
-- Infame!...
-- É muito, senhora!... Não será prudencia abusar d'esse modo de uma paixão que deve conhecer verdadeira, e que é capaz das maiores virtudes como dos mais negros crimes... A par d'esta loucura que faz escorregar para o mais medonho precipicio, ou que nos salva d'elle, todas as differentes paixões da vida são uns simples brinquedos... Fechado na sua formosa mão, tem a minha nobre prima o meu destino e o de todos os seus... Até lá está tambem o esquecimento para dous homens que me fizeram ultrages, que só o amor tem o poder de perdoar... Abra essa mão, senhora, que em abril-a desponta-lhe a felicidade... Serei um escravo humilde da sua mais caprichosa opinião... Domarei todos os instinctos, todos os appetites, todas as tendencias que possam ir de encontro aos seus desejos... Somos ambos poderosos, somos fidalgos, somos parentes... A nossa união não póde ter obstaculos legaes e, que os tivéra, todos eu saberia dissipar pela força d'este amor que é a minha vida, ou que hade ser a minha morte... Quer sahir d'esta casa? Quer levar em sua companhia as suas discipulas? Quer um cortejo de princeza para acompanhal-a, em que eu serei o ultimo de seus servos?... Pois basta, para tudo isto se fazer immediatamente, que a minha nobre prima me dê uma simples palavra, uma singela esperança...
-- Infame!...
-- Oh! que é de mais!...
N'esta altura da entrevista, e quando talvez Leopoldo estivesse para ceder á violencia da sua paixão atrozmente insultada pelo sangue frio da nossa heroina, sentiram-se palmas cadenciadas, e tres vezes repetidas, na proxima ante-sala. Ao ouvir aquelle signal, de certo convencionado por elle, retirou-se precipitadamente o infeliz capitão, o senhor d'aquella casa, e por sem duvida o mais infeliz dos seus habitadores.
O chamamento fôra a communicar-lhe a urgencia de acudir a Vianna, para recolher com toda a força militar ao Castello, d'onde o commandante resolvera resistir a numerosas forças do exercito da junta do Porto, que se aproximavam, e do povo, que se reunia para as coadjuvar. Recebida a ordem, quasi com indifferença, voltou Leopoldo á presença de D. Maria, para lhe dizer com voz pausada e debil:
-- Senhora!... Retiro-me por algum tempo d'esta casa, na qual V. Exc.^a fica substituindo o meu poder. Conservo as ordens dadas aos meus criados, e servos de V. Exc.^a para a guardarem com profundo respeito, mas altero-as ordenando-lhes, que não resistam a qualquer força que tente libertar a minha nobre prima... É possivel que seja esta a ultima vez em que a minha presença lhe provoque esse invencivel tédio... Este "malvado", que podia ter colhido com novas violencias os fructos a que pareceu mirar pela primeira imprudencia, pede-lhe o seu perdão com "lagrimas" de sincero arrependimento...
-- Lave com ellas os pés de meu honrado e nobre pae, que deve ser o primeiro, senão o unico, a perdoar-lhe os desvarios... Agora que o considero inutil como defeza da minha honra, porque acredito nos seus remorsos, tome conta d'esse punhal, que lhe pertence, e que nunca deveria ter servido nas emprezas a que está vesado.
E com magestoso porte, atirou D. Maria ao meio da sala a arma villã.
Leopoldo, depois de alguns momentos de recolhimento, que lhe valeram seculos de indiscriptivel soffrimento, agitou o cordão de uma campainha e esperou o resultado d'esta sua acção. Appareceu um escudeiro, vestido na mais rigorosa etiqueta, que aguardou silencioso as ordens de seu amo.
-- Pegue n'aquelle punhal, vista-lhe o cabo com um panno preto, e pendure-o á cabeceira do meu leito... Quem de hora ávante dá ordens n'esta casa é minha prima e senhora D. Maria da Gloria. Faça-o saber a todos os seus companheiros. Póde retirar-se.
Sahiu o escudeiro e Leopoldo ficou immovel e calado por alguns minutos. Depois, como se após intima lucta se fizesse luz no seu espirito, levantou repentinamente a fronte, encarou a donzella, d'esta vez sem acanhamento, e disse-lhe:
-- Sou... serei um infame! mas um infame que a ama como V. Exc.^a nunca por outrem será amada, juro-lh'o!... Adeus, senhora D. Maria da Gloria!...
Ao retirar-se o attribulado mancebo, proferiu D. Maria, como para só d'ella serem ouvidas, estas significativas palavas: -- «Ao menos foi uma hora verdadeiro fidalgo...» D'aqui a levar a sua clemencia ao ponto de perdoar ao primo os insultos que d'elle recebera, havia só a transpôr a barreira de Arthur Soares, que ella não queria nem podia vencer!
X
RELIGIÃO
«O mundo que nos tira até o que Deus nos deu, que nos não póde dar o que Deus nos tirou, que não tem bem que dure nem cousa que permaneça, -- que cultos merece? que estimações se lhe devem?»
("Fr. A. das Chagas" -- C. ESPIRITUAES.)
Entreteve Sebastião da Mesquita a gente do seu commando, em marchas vagarosas, e por logares desoccupados de outras forças, porque era seu unico fito perseguir o insultador da sua familia, para libertar as donzellas raptadas; e não podéra seguir-lhe a pista com a ligeireza que requeria a sua anciedade paternal, por estar todo o Minho revolucionado, e pejado de tropas dos tres partidos em guerra. Em um dos seus forçados estacionamentos, teve Sebastião da Mesquita occasião de prestar um relevante serviço ao respeitavel ancião que por aquella epocha era arcebispo de Braga.
Depois da terrivel mortandade que um general das tropas da rainha, em ataque ás forças realistas, mandara fazer na manhã do memoravel dia vinte de dezembro de 1846 nas ruas da cidade de Braga, que ficaram juncadas com cerca de quatrocentos cadaveres! -- fizera o mesmo general, ingloria e tristemente vencedor, intimar o venerando prelado da diocese bracarense para o acompanhar na sua marcha. Aterrado o bondoso padre por aquella inqualificavel violencia, após o luctuoso espectaculo que a precedera, fugira em direcção a uma das suas quintas das cercanias de Coimbra, fuga em que fôra auxiliado pela pessoa de Sebastião da Mesquita, e pela sua gente, tendo antes os dois velhos passado algumas horas em secreta e intima conferencia.
Havia-se operado em Arthur Soares uma completa transformação: o seu physico, como reflexo do soffrimento moral, alterou-se ao ponto de não parecer o mesmo homem; para o que tambem muito concorrera a repentina mudança de habitos. Os raptos das donzellas, por elle moralisados sob as indeleveis impressões d'aquella noite de luar, em que D. Maria da Gloria levantara uma nêsga do véu que lhe cobria o coração, eram por elle vistos como offensas directas de um rival abjecto. A sua alma sempre aberta a todos os sentimentos generosos, estava quasi entregue ao odio e á vingança. Sabia elle, porque desde infante o escutara diariamente ao padre Alvaro, que a religião manda perdoar, e que a doutrina da egreja quer que se recebam as humilhações em justa expiação das faltas commettidas; mas tambem não ignorava que, algumas vezes, sob as proprias vestes sacerdotaes, se encobrem violentas e desapiedadas cóleras. A sua razão, um pouco obscurecida pelas dôres, fluctuava, pois, á mercê das paixões mundanas; e de pouco proveito lhe eram os prudentes conselhos que a todo o momento lhe estava dando o padre Alvaro, inquieto com os estragos do corpo, e da alma, que elle via estampados nas faces de Arthur Soares.
Eram constantes da parte do apaixonado mancebo as deserções do seu arraial, das quaes nenhum caso parecia fazer Sebastião da Mesquita, porque possuia a quasi certeza da razão que as promovia.
A intrepida Rosa, com permissão do velho fidalgo, continuava usando do seu uniforme salvador, e a ser tida pelos estranhos á familia por um elegante e joven official. Calculadamente se affastava o mais que podia de Arthur Soares, sem deixar de notar as suas desapparições, e de as commentar mentalmente.
Chegara Sebastião da Mesquita com a força de seu commando ás alturas de Vianna, e fôra alli obrigado, conjunctamente com o povo, e a tropa da junta, a sitiar o castello, onde estavam refugiados muitos empregados publicos do partido do paço, e os militares de que fazia parte Leopoldo de Lencastre. Não se viu grandemente contrariado Sebastião da Mesquita, em ser levado ao extremo de batalhar, porque já lhe era um tanto sympathica a causa popular, principalmente pelos factos de Leopoldo pertencer ao partido da rainha, e da maior parte dos chefes dos bandos realistas, depois da morte de Mac-Donnell, se terem reunido ao exercito da junta do Porto.
N'um dos intervallos do assédio, recebeu Sebastião da Mesquita da bocca de Arthur Soares a boa nova de ter descoberto o carcere das donzellas, que elle julgava ainda guardado pelo raptor em pessoa. Reuniu o velho fidalgo a toda a pressa o maior numero da sua gente em disponibilidade e, acompanhado tambem por toda a sua familia, voou a libertar as filhas.
Chegados que foram ás portas do palacio, e tudo disposto para n'elle entrarem á viva força, viu Sebastião da Mesquita, com espanto seu, ser-lhes a entrada franqueada. Tremeu o valente do receio de já não encontrar alli a quem buscava, e só recuperou o perdido animo quando susteve em seus braços a D. Maria da Gloria, e viu a seus pés banhada em pranto a seduzida Anna.
Foram expansivas, como natural era que o fossem, as demonstrações de regosijo intimo, em todos os membros d'aquella nobre familia, alfim de novo reunida.
Depois de ter dado o necessario tempo ás largas do contentamento de todos, dirigiu Sebastião da Mesquita a palavra a D. Maria da Gloria, n'estes termos:
-- Maria!... Podes continuar a viver na companhia de teus paes?...
-- Essa pergunta, meu presadissimo pae e senhor, devia V. Exc.^a fazel-a ao meu cadaver... -- respondeu com firmeza a nossa heroina.
-- Muito obrigado, Maria! Paguem-te estas lagrimas do mais puro amor, a nobreza e honradez da tua resposta!...
Ao passo que o pae assim fallava, cobria a moça fidalga de beijos e caricias maternaes, a respeitavel matrona D. Isabel de Abendanho.
-- E tu, Anna, foste da mesma sorte feliz?
A timida interrogada, ficou silenciosa e interdicta...
O velho fidalgo, tomado instantaneamente de uma pallidez assustadora, alçou assim a voz:
-- Padre Alvaro! Disponha immediatamente a capella d'esta casa, para uma solemne ceremonia religiosa. -- Snr. Arthur Soares, dê busca a todo o edificio e traga-me já aqui o infame possuidor d'este lupanar! -- Anna!.. Prepare-se para o mais serio acto da sua vida, com a coragem que lhe faltou para resistir á seducção!...
Apressaram-se todos a cumprirem as ordens dadas, que bem de conhecer era o não admittirem réplicas.
N'esta situação, fôra ouvido ao longe da estrada, que passava em frente do palacio, um extraordinario bulicio.
O pae de D. Maria da Gloria, mandou ao unico official de ordens que alli tinha -- a metamorphoseada Rosa -- que fosse reconhecer o barulho, e aguardou impaciente a chegada de Arthur Soares.
Caminhavam pela estrada de Vianna, cujo castello acabava de cahir em poder das forças populares, em direcção á praça de Valença, os prisioneiros de guerra, guardados por duzentas praças de linha e cercados de immenso povo, que pedia em altos gritos a morte dos empregados publicos, e de toda a guarnição prisioneira. Arduo trabalho havia tido a força conductora, para salvar até alli da sanha popular os que foram entregues ao seu brio e que, maneatados, só deviam pertencer ao poder das leis.
A custo se introduzira Rosa entre as fileiras da tropa, e conseguira, com a interferencia de um tenente que folgara de ter occasião de subtrair ao povo uma victima, soltar um dos officiaes prisioneiros, e trazel-o pelo braço fóra do alcance da furia popular: -- era Leopoldo de Lencastre.
-- Temos contas a saldar, snr. capitão, e será o seu formoso palacio o logar do ajuste.
-- Conheci-a logo no seu disfarce, snr.^a Rosa, e a minha cobardia, se m'o concede, não é de tal quilate que me leve a bater-me com... o snr. tenente...
-- Em sua casa será obrigado a entrar no repto.
E caminhando sempre, sem troca de mais palavras, deram entrada no salão, onde Sebastião da Mesquita acabava de ouvir, enfurecido, o ephemero resultado da busca a que procedera Arthur Soares.
-- A proposito chega e condignamente conduzido é o villão ao seu prostibulo... Ajoelhe immediatamente aos pés d'aquella mulher, e peça-lhe a honra de ser sua esposa...
-- Mas... snr. Sebastião da Mesquita... um fidalgo...
-- Que serodios e infames brios!... É fidalga, é bem mais nobre do que o canalha que lhe cuspiu a vergonha, aquella que eu o obrigo a receber por sua mulher legitima.
-- N'esse caso... se V. Exc.^a me affiança...
-- Sebastião da Mesquita, snr. Lencastre degenerado, poderia ser levado a transpor as fornalhas do inferno, mas nunca a manchar a sua honra com a mentira... Para a capella, senhores!...
O nosso velho heroe, não querendo consentir, em nenhum caso, no casamento do perverso Leopoldo com D. Maria, e prevendo com acertado raciocinio que a docil Anna teria a fraqueza de se deixar vencer pela seducção, alcançára, na conferencia com o arcebispo de Braga, licença, em fórma, de qualquer padre, e em qualquer sanctuario, poder realisar o sagrado enlace que ia ter logar na capella d'aquelle palacio.
Finda a religiosa ceremonia, durante a qual esteve a capella repleta de muitos curiosos e de alguns devotos, cresceu de ponto o tumulto da estrada. Sebastião da Mesquita, que já alli se julgava desnecessario, sahiu á rua, e tentou pôr um dique ao excesso do povo. Foi impotente, d'esta vez, a sua respeitavel palavra.
O leão popular, mostrava-se indomito, e cruel. A facilidade que via no triumpho, aguçava-lhe o appetite de sangue. Os infelizes prisioneiros estavam prestes a cahir-lhes nas garras, das quaes só em pedaços sahiriam!
De repente, principia a turba a desbarretar-se, atirando com os joelhos para o solo!... Ficaram só de pé os prisioneiros e a força que os guardava. Estava domado o leão!..
Por quem?...
Por um velho, de negras mas sagradas roupagens, do mais humilde aspecto, da mais inoffensiva attitude!... Pelo padre Alvaro, que se arrastara até ao cume de um penêdo -- d'onde era visto por todos -- e que trémulo e silencioso, por lhe embargar a voz a commoção, alçara ao alto da veneranda cabeça um crucifixo com a imagem do Redemptor do mundo...
Os presos foram recolhidos e agasalhados sem a menor resistencia popular, no palacio de Leopoldo.
O povo dispersou, a estas enthusiasticas vozes de Sebastião da Mesquita:
«Salvè! religioso e bom povo portuguez, salvè!...»
FIM DA PRIMEIRA PARTE
SEGUNDA PARTE
CRIME
«Eu pintarei o caso com côres bem crimes.»
("Chron. de Cister".)
I ABYSMO
«Ai do viandante que não vê caminho!ai do mesquinho sem a luz da fé!ai! que, na falta d'um amor sublime,triumfa o crime, do ludibrio ao pé!
("T. Ribeiro" -- SONS QUE PASSAM.)
Foi talvez pouco sensivel ao leitor a desapparição de João Vidal nos ultimos capitulos da primeira parte d'este livro, por que lhe traçou papel secundario no «Conto Portuguez.» A ser assim, foi-lhe infiel o trabalho de imaginação e, temos para nós que por mais vezes, no deslizar pela fiel narração do conto, hade o leitor errar seus calculos. -- «"Em romance ou folhetim, o verdadeiro é o menos verosímil":» -- escreveu com muita propriedade, em maré de chiste, um nosso festejado folhetinista.
João Vidal, o escudeiro, fôra mandado pelo amo reconstruir o solar, em parte presa das chammas, e tractar da administração da casa. Foi elle o escolhido por Sebastião da Mesquita, pela illimitada confiança que lhe devia, e tambem para o desviar dos logares da acção empregada no livramento das donzellas, onde a podia prejudicar o entranhado rancor do escudeiro a Leopoldo.
A resolução do velho fidalgo fazer sumir os vestigios do incendio mandado lançar pela esposa ao seu palacio, foi tomada d'accordo com D. Isabel. Louvára Sebastião da Mesquita aquella inopinada e fidalga acção, a que o desespêro da immerecida e violenta affronta condusira os brios de uma nobre senhora, que era mãe, mas facil lhe foi convencer sua mulher da sem razão de ficarem permanentes os signaes de um crime já reparado, que de mais os privava de viverem commodamente.
Não teve D. Isabel igual facilidade em destruir no seu esposo, o preconceito de que devia bater-se em duello de morte com Leopoldo: foi preciso o auxilio de D. Maria da Gloria, que teve a força de convencer seu illustre pae do respeito e das attenções com ella havidas durante o captiveiro, para conseguirem de Sebastião da Mesquita o esquecimento de tão absurda idêa, a que era levado pelo excesso da honra. E de presumir é que, mais ainda do que as boas razões dadas, imperasse no quietismo de seu animo, a certeza da partilha que tinha a esposa no que houvesse de soffrer seu marido: limitou-se, pois, o honrado velho, a varrer de si, e cortar com a sua familia, todas as relações com a mulher de Leopoldo, pelo desprêso a este votado.
Ao recolher-se com a familia á sua habitação, entregara Sebastião da Mesquita o commando da força popular a Arthur Soares, pedindo-lhe que se conservasse no alto Minho, e exercesse vigilancia sobre as acções intimas de Leopoldo, porque receiava haver feito uma victima da pobre "donzella", que tivera em vista honrar pelo casamento com o seductor.
Algum tempo volvido, era Arthur Soares forçado pelo seu dever, a narrar, em longa carta a seu padrinho, o que podera saber pelos seus exforços habilmente empregados. Daremos ao leitor conhecimento d'um periodo daquella carta:
«Colhi a fatal certeza de que a snr.^a D. Anna soffre a seu marido constantes doéstos, em alguns dos quaes é menos respeitada a boa intenção do meu nobre padrinho, e senhor, porque se atreve a dizer, que "occultas razões" determinaram a violencia do seu casamento com uma "rapariga pobre"! Não se queixa a paciente; mas traz escripto na face os signaes do seu pesar, e gradual definhamento.»
Esperou Arthur, com a ancia de um verdadeiro interesse, apenas producto de sua bem formada alma, que Sebastião da Mesquita, dando o pêso devido ao que lhe havia communicado, procedesse de modo a sanar aquellas rudes e vilãs provocações de um depravado senhor á sua escrava. Os dias, porém, succediam-se na sua marcha natural -- que é morosa para os que esperam e pensam, e rapida para os que gosam descuidados -- sem que o velho fidalgo désse accordo de si. Admirado Arthur de um tal silencio, que lhe deu margem a mil oppostas conjecturas, não podendo duvidar da entrega em mão da sua carta, porque o portador fôra seguro, resolveu empregar os seus proprios recursos para adoçar quanto possivel a situação amarga da infeliz Anna, que lhe fôra companheira e socia nos annos e nos brinquedos infantis. Tomada a resolução, seguiu-se o emprego de meios para chegar á falla com a mulher de Leopoldo.
Entremos pela segunda vez nas casas que serviram de forçado aposento a D. Maria da Gloria. Estamos na mesma sala onde tiveram logar as scenas descriptas no capitulo -- "Amor". Recostada em magnifico sofá, e vestida com singela elegancia, está uma sombra d'aquella Anna, que fôra discipula muito amada de D. Maria da Gloria: a seu lado, tomou assento Arthur Soares, em uma d'essas cadeiras cujo feitio se presta a todas as commodidades e posturas de phantastico confôrto. Escutêmol-os:
-- Consinta-me, snr.^a D. Anna...
-- Snr.^a D. Anna!...
-- Sim, minha senhora, é esse o tractamento que hoje se lhe deve, e não serei eu que o esqueça. V. exc.^a soffre. Deixe-me aproveitar estes momentos, para bem claramente lhe dizer o que me obrigou a pedir-lhe esta audiencia. Fui encarregado pelo snr. Sebastião da Mesquita de saber se v. exc.^a era feliz: Não é. Sei que o seu viver intimo não está em harmonia com as seductoras apparencias do fausto que a rodeia. Quererá v. exc.^a confiar de um leal amigo, de um companheiro de infancia, do mensageiro de seu nobre pae adoptivo, todos os pesares que a consomem?
-- Infeliz, eu?!... Pois não vê o senhor Arthur Soares, como estes aposentos estão repletos de esplendor e de magnificencia?!... Não vê esta mobilia, estes adereços, esta riqueza, este luxo, esta sumptuosidade régia de que partilho?!... Eu, a misera filha de um lavrador, apenas habituada ás palhas e ao fumo da cabana paterna!... Eu, que só por favor conhecia o palacio da minha querida mestra e senhora D. Maria da Gloria!... Podem por ventura ter entrada os dissabores, onde moram as preciosidades?!... Não, mil vezes não!... As estatuetas, os modelos em bronze e jaspe dos principaes monumentos da Europa, os bustos serios e caricatos de notaveis personagens do mundo civilisado, o ébano, a madre-perola, esses milhares de caprichos e de prodigios, as antiguidades, os "recocós", as reliquias de toda a arte misturadas com os feitios e labores de toda a imaginação, tudo isto que me "cérca", de que me chamam dona, que me obrigam a fitar, comprehender e decorar, e que me veiu conjunctamente com a posse de um esposo letrado e nobre, -- não será o gôso, a felicidade, a completa ventura?!...
-- E as lagrimas, que são o epilogo da formosa descripção que fez, o que significam, senhora D. Anna?...
-- Oh!... Estas lagrimas são... de alegria!...
-- E porque não diz de saudade?!... Saudade que ninguem tem o poder de condemnar na alma, que foge dos logares dourados, onde lhe fazem soffrer o peso de grandezas que não ambicionou, para se aninhar nas pacificas palhas da sua infancia e adolescencia, onde lhe fôra suave e salutar bafejo o contacto de outras almas lavadas, caridosas, verdadeiramente nobres em todas as suas acções... Por que não revela toda a verdade, que eu de sobra conheço na excitação que V. Exc.^a manifesta?...
-- Toda a verdade!... Sabel-a-ei eu, senhor Arthur Soares?... Amo Leopoldo, que é meu senhor, e... e devo ser feliz n'este paraiso, para onde fui atirada em completa nudez, e no qual achei, como nos contos de fadas, tudo que uma princeza póde ambicionar...
-- Disse o bastante, minha senhora. Agradeço a confiança que em mim depositou, e que lhe mereço, creia. Peço o favor de confiar-me tambem a cobrança de haveres que lhe pertencem. Ha um mysterio na vida de V. Exc.^a, de que eu estou senhor, que só mais tarde lhe póde ser revelado. Mysterio honroso, que a hade tornar respeitavel aos olhos de... de toda a gente. Os haveres de V. Exc.^a, se não podem equiparar-se aos de seu illustre esposo, são, com tudo, sufficientes para darem, em todo o tempo, a independencia necessaria a uma senhora. Concede-me, por escripto, a auctorisação que lhe peço?
-- Vou escrever o que quizer dictar-me, meu bom amigo.
Aproximaram-se de um riquissimo e formoso movel, que serviu de escrivaninha, onde Arthur, em pé, dictou, o que Anna escreveu com punho firme. Concluido e entregue o documento, tiveram logar os agradecimentos, as despedidas e as recommendações, em que por muito entraram os sentimentos de gratidão que a pobre senhora nutria por toda a familia de D. Maria da Gloria, e o affecto filial aos singelos caseiros, que ella julgava seus progenitores. Durante estas naturalissimas expansões, agitou-se um reposteiro e entrou Leopoldo na sala. Vinha pallido, mas os passos eram seguros, o aspecto risonho e o porte ceremonioso. Dirigiu-se a sua mulher com requintada delicadeza, dizendo-lhe que a esperavam as suas modistas, e dando-lhe o braço para a conduzir. Cumprimentou attenciosamente Arthur Soares, e pediu-lhe o favor de o aguardar alguns minutos, dirigindo-se em seguida com a esposa para o interior do palacio.
Arthur esperou de animo resoluto, como quem descança na paz da consciencia, a volta do seu pronunciado inimigo.
-- Creio que o não fiz esperar muito, senhor Arthur Soares?... Queira collocar-se á vontade, e dignar-se responder-me, caso me julgue com direito a fazer-lhe algumas breves e concisas perguntas.
-- Ouvirei, senhor Leopoldo.
-- Peço desculpa de não principiar pelos offerecimentos do estylo: julgo que minha mulher saberia fazer-lhe o que chamam as honras da casa?...
-- A senhora D. Anna recebeu-me como uma senhora distincta costuma agasalhar um companheiro de infancia, um como irmão respeitoso e lealmente affeiçoado.
-- Muito bem... Poderei saber o motivo porque se aproveitou a minha ausencia, para a visita com que V. S.^a quiz honrar esta casa?...
-- Porque não me sendo agradavel a presença de V. Exc.^a, devo suppor que a minha egualmente o não seja ao senhor Leopoldo.
-- Colhe alguma cousa essa franqueza... E o motivo da conferencia, é segredo para mim?...
-- Não guardo segredos de uma senhora casada. Vim visitar a senhora D. Anna, em nome de pessoas que a presam, e pedir-lhe esta auctorisação: -- «Dou a Arthur Soares os poderes necessarios, para receber toda a quantia ou valores a que eu tenho direito.»
-- Vejo que se faz procurador de minha mulher, sem outhorga minha!... É para intentar divorcio, e pedir-me alimentos?...
-- Pondo agora de parte as suas impertinentes ironias, assevero-lhe que S. Ex.^ma esposa "não é pobre", e que, para cobrar o que lhe pertence, é que eu vim pedir-lhe este escripto.
-- E que validade descobre V. S.^a n'esse papel, que não é authenticado por mim?... Pois não serei eu o competente para essa cobrança?...
-- A esposa de V. Exc.^a ignorou até hoje, que era senhora de fortuna, como ainda não sabe do seu illustre nascimento: este mysterio, não póde ser já aclarado. Não se fatigue com perguntas, que não colhe mais esclarecimentos. V. Exc.^a tem o direito de receber, querendo, o dote da snr.^a D. Anna, garantindo-lh'o em bens seus. Para a recepção actual, sou eu o unico competente. Não peço mais documentos, nem dou a pessoa alguma o direito de duvidar da pontual entrega, que hei de fazer, do liquidado e recebido por mim.
-- Por hoje, não quero demoral-o mais... Conto que V. S.^a não ha de recusar-se a dar-me, de futuro, quaesquer esclarecimentos...
-- Sempre ás ordens de V. Exc.^a, para o que fôr do meu brio.
Retirou-se Arthur Soares, e o mesmo foi que abrir-se um dique á torrente do odio represado no coração de Leopoldo. Ficou o leão rugindo no seu antro, prestes a cahir no abysmo cavado a seus pés pelo amor e pelo ciume.
II
FIDALGUIA
«É que ha uma fidalguia de alma que nem sempre falta ao que chegou por si á grandeza, assim como nem sempre vem aos que a herdaram de seus antepassados.»
("V. d'Almeida-Garrett" -- HELENA.)
A chamada nobreza de sangue tem origem respeitavel.
Os homens que defenderam e ajudaram a republica, consagrando-lhe todas as suas forças e haveres, quando o perigo era commum de todos, -- foram nobres. Os homens que souberam fazer valer os direitos da nação, sendo leaes guardadores das immunidades patrias, e em longinquas e perigosas paragens, exposeram as suas vidas, em quanto muitos outros gosavam as delicias caseiras, -- foram nobres. Os homens que, dados a serios estudos desde a mais tenra infancia, conseguiram nome e gloria para as nações a que pertenciam, -- foram nobres. Foram, e deviam sêl-o. Não lhes ficou barato o rôlo de papel -- titulo de nobreza, porque o da fidalguia estava nos seus feitos -- de que os descendentes, ainda hoje, e sempre, e com soberbas razões, se devem orgulhar.
Por milagre de esforço, de perseverança, de audacia mesmo, se deve aos nobres de Portugal, o termos algum dia sido o povo mais forte e mais respeitado da Europa. Um Affonso de Albuquerque, o fundador do imperio portuguez no Oriente, aquelle que os adversarios chamaram "leão dos mares", fôra bastante, por seus heroismos, a justificar entre nós o justissimo orgulho da nobreza de sangue; que, ainda assim, tem mais remotas e egualmente verdadeiras glorias a que soccorrer-se.
Do natural desvanecimento dos que se gloriam de seus nobres antepassados, só a mesquinha inveja póde desdenhar. E muitos, e tantos, e de tamanho valor foram os nobres portuguezes, que não cabe n'este logar enumeral-os. E nem por isso elles ficam ignorados, que, a par dos heroes da espada, viveram os nobres d'outros feitos, os Camões, os Barros, os Coutos, os gigantes eternisadores das memoraveis façanhas de seus coevos, meritorios como elles, e como elles dedicados á grandeza da patria.
Sabemos que á civilisação repugna a "conquista", embora tenha de conformar-se com os "factos consummados"; mas quem ha que duvide da boa fé com que pelejaram os nossos velhos portuguezes? Religião e patria, eram os seus estimulos; e á prodigiosa força de tão poderosas ideias, se devem attribuir as suas heroicidades.
Mas ser "nobre", nem sempre quer dizer ser "fidalgo illustre". A nobreza póde ser herdada, e a fidalguia, as acções briosas, não. Para ser nobre bastam os pergaminhos; para ser fidalgo illustre, não se dispensam as virtudes proprias, os actos insignes, os meritos individuaes, e até, e quasi sempre, os auxilios da caprichosa natureza.
Ha mais nobres do que fidalgos illustres, e ha illustres fidalgos, que não são nobres. É bom ser nobre; melhor é ser illustre fidalgo; e optimo, por sem duvida, é ser illustre e nobre fidalgo.
Arthur Soares, era illustre. Gentil de corpo e sem mácula na alma, reunia em si todas as qualidades physicas e moraes, que fazem o homem distincto. O encargo de vigiar pela vida intima da que lhe fôra companheira na infancia, tomára-o elle de boa vontade, porque entendeu que o fim de Sebastião da Mesquita era proteger a mulher que julgára infelicitar com o forçado casamento. Tardára-lhe porém, a protecção, e levado pelos seus brios a tomar iniciativa propria, teve de inventar para Anna um nascimento e um dote.
Ha mentiras salvadoras, que elevam tanto os que as sabem dizer, como os inventos tórpes malsinam os caracteres dos velhacos, que os engendram. Encobrir verdades que pódem fazer victimas, dar um sabor mysterioso a qualquer facto, determinar mesmo quaesquer circumstancias em sentido diverso do occorrido, para valer a infelizes sem prejuizo de terceiros, -- são culpas venturosas de que só podem accusar-se as almas boas, e os espiritos elevados.
Uma vez entrado no caminho de protector, resolveu Arthur Soares sahir d'elle pelo da dignidade, que não conhece obstaculos, porque os sacrificios alargam-lhe todas as verêdas. Estava obrigado voluntariamente, e só pela sua palavra, é certo, mas por isso mesmo com obrigação completa, a entregar um dote á mulher de Leopoldo. A evidencia de um nascimento fidalgo, que tambem asseverára, menos cuidado lhe dava, porque ouvira a Sebastião da Mesquita affirmar o que elle repetira, e tinha toda a confiança no desempenho, mais ou menos tardio, da palavra do honrado velho. Além de que, o esclarecimento d'esta circumstancia, podia demorar-se, visto já ter lançado á imaginação de Leopoldo a existencia do mysterio: o essencial, o urgente, era o dote.
Escreveu Arthur Soares outra carta a Sebastião da Mesquita, perguntando-lhe se recebera a primeira. Respondeu-lhe affirmativamente, e que havia tomado as suas importantes revelações na devida consideração. Esta resposta não aquietou o animo generoso do voluntario protector. Queria obras, e não palavras, que elle achou frias em caso de tanto brio. Resolveu proceder isoladamente, e com segredo.
Obtida uma licença de alguns dias, dirigiu-se Arthur Soares á residencia de seu thio. Recebido pelo padre com a natural expansão de um affecto puro e vivo, n'elle depositou o segredo da promessa que o impressionava, e queria cumprir, pedindo-lhe conselho e favor. No fim da confidencia, ficou o padre mais ébrio de prazer do que se fôra elle o favorecido com o generoso compromisso de Arthur. Conduziu o mancebo ao pé de um velho movel, e disse-lhe:
-- Estão aqui as nossas economias: são uns vinte e tantos mil cruzados. É dinheiro de muitos annos guardado por tua mãe sem prejuiso dos pobres. Trabalhava noite e dia, a pobre martyr... Quando eu brandamente lhe observava que podia adoecer com tão aturado labutar, respondia-me que Deus não havia de condemnar a ambição de mãe em converter as suas vigilias e o seu suor em dote para seu filho... Chegou á força de perseverança a poder commerciar em cereaes, principiando pelo mesquinho producto da roca... Como era boa a tua mãe, Arthur!... Já vês que não tenho parte n'essa accumulação de moedas, que te pertencem... Mas essa quantia, bastante notavel para nós, é ainda pequena para dotar a mulher de um rico nobre... Vamos já a Penafiel... Farei perante um tabellião o necessario documento, para que tu possas vender a raiz das propriedades, que foram de meus paes... A raiz só, porque o uso-fructo deve continuar a pertencer a uma infeliz familia, que lá está por disposição tua... De certo te não recordas já d'aquella tua "doação"... Eras muito criança ainda, mas com a indole que... que tu tens, meu Arthur!...
Velho e moço, sentiram a commoção de duas almas iguaes, quando são abaladas por acções celestes, e confundiram n'um longo abraço os soluços e as lagrimas. O respeitavel e sagrado nome de -- pae -- foi proferido por Arthur Soares, saltando-lhe do coração á bôcca. O padre Alvaro, ouvindo chamar-se por aquelle nome, fez-se d'uma pallidez mortal, e balbuciou:
-- Obrigado meu filho, por teres pela primeira vez esse nome para mim!... Sou eu só a ouvil-o, e Deus, que sabe os meus remorsos, de certo me consente este innocente prazer... Obrigado!... Vejo, sinto que te não repugna o sacrilego... És bom, Arthur, meu filho adorado!... Crê que tenho soffrido muito!... E o maior, o mais terrivel do meu padecer, era o não poder chamar-te -- filho -- nem ouvir de tua bôcca o dôce nome de -- pae... Diz-me, meu querido Arthur, diz que não desdenhas, que não amaldiçôas o teu nascimento... Perdoa-me o haver-te privado da paternidade legal...
-- Perdoar-lhe?!... O quê, meu sempre amado pae?!... O ter-me dado esta alma, que é sua, e que me faz grande aos meus proprios olhos?!... O ter coberto a minha infancia e mocidade dos maiores e dos mais carinhosos extremos?!... O haver-me dado uma educação de fazer inveja aos mais poderosos da terra?!... O tornar amênos e felizes os dias da vida de minha santa mãe?!... O ter vertido lagrimas de sangue pela chamada culpa que me deu vida e felicidade?!... É isto tudo que eu tenho a perdoar-lhe, não é assim?... Oh! mas não sabe que o meu maior orgulho é o de ser seu filho?!... Que pae mais heroe, mais santo, mais martyr me podia dar o céu?!...
-- Basta, Arthur, que me pódes matar de alegria!.. Bemdicto sejas, meu Deus e meu Salvador! Bemdicto e louvado pela tua Misericordia com este indigno padre!...
Deixemos o velho Alvaro nos braços de seu filho Arthur, nos momentos mais felizes da sua attribulada existencia, e vamos presenciar o que se passa no palacio de Sebastião da Mesquita.
Estamos no salão onde tiveram logar as primeiras scenas d'este verdadeiro conto. Estão lá outros moveis de mais recente data, mas ainda se alli sente o respeito devido ao que é antigo e bello, porque foram salvas do incendio as reliquias de familia: São ainda os mesmos os quadros, os retratos, e os brasões. Sebastião da Mesquita está fallando com muita solemnidade a João Vidal:
-- É tempo de te fazer mui sérias e importantes revelações, João, que devem mudar completamente a tua posição social. Dir-te-hei tudo em poucas palavras: sou avêsso ás phrases de estylo em materias graves. Recebi-te em criança das mãos de uma santa abbadessa, que te salvou a vida criando-te dentro do seu convento. Conservei-te sempre ao meu lado, e dei-te, quando homem, a qualidade de escudeiro d'esta casa, tendo-te o carinho de pae, porque era impossivel, e prejudicial para ti, a revelação do teu nascimento. És filho bastardo de um nobre desnaturado, que sacrificou os seus brios ao dote da mulher, nobre tambem de pergaminhos, e villã de sentimentos. Agora que todo o perigo é passado, aqui tens os papeis, que provam o teu nascimento, e com elles recebe igualmente este dinheiro, e estes titulos, que tudo te foi legado pela religiosa tua salvadora, e tua thia-avó paterna, e depositado em minhas mãos para te ser entregue quando já não corresses o risco de ser perseguido, e talvez assassinado, pelos assalariados da mulher de teu pae. Ficas sabendo que és nobre, e na posse de dinheiro, e valores que orçam por cincoenta mil crusados, com a accumulação da parte rendivel. Fui máu administrador, porque deixei quieto e improductivo o dinheiro, que hoje podia estar treplicado; mas bem sabes que abomino todas as especulações, e que não sei commerciar. Antes que te surprehenda, com a leitura dos documentos que te entrego, a noticia de que és irmão de Leopoldo...
-- Eu, irmão de semelhante malvado!... Snr. Sebastião da Mesquita, meu amo e unico pae que me apraz reconhecer.... Peço a v. exc.^a muito de mercê, que me continue a graça de o servir... Quero considerar-me sem parentes conhecidos... Quero ser o filho adoptivo de v. exc.^a, e o seu mais humilde criado...
-- É impossivel. Pódes, sim, continuar a viver na minha companhia, se o quizeres; mas na posse do que te pertence, e na qualidade de amigo, e não de criado da casa. Escusado é instares por outra solução, que esta é-me dictada pela honra. A ultima ordem que te dou é a de extinguires em ti o odio que tens a Leopoldo...
-- Mas, senhor...
-- Esqueceste, João, da inflexibilidade do meu caracter?... Terminou a nossa audiencia, que outros deveres não menos graves me chamam a attenção. Leva o que é teu, e faz-me o favor de dizer a minha mulher e a minha filha, que venham a esta sala... Manda tambem chamar Rosa.
-- V. exc.^a bem sabe que a menina Rosa ha tempo que não vem ao palacio, e que parece soffrer bastante...
-- Sei. Digam-lhe que sou eu que a chamo, e quero-a aqui.
Sebastião da Mesquita, logo que João Vidal se retirou, ficou entregue a uma desusada agitação nervosa, que n'elle era infallivel symptoma da gravidade do assumpto que o preoccupava. Durou-lhe a inquietação só até ao momento em que sentiu aproximar-se a familia que chamara. Logo que deram entrada na sala D. Isabel, D. Maria da Gloria, e Rosa, serenou o velho fidalgo, que as convidou a escutarem-n'o.
-- Dirijo-me a si em primeiro logar, Rosa, porque desejava saber os motivos da sua frieza com esta familia, que a estima devéras, e os que são causa de um soffrimento que a sua indiscreta face revela... Tem a queixar-se de alguem d'esta casa?
-- Que pergunta, senhor!... Pois a planta parasita e inutil póde por ventura queixar-se dos cultivadores, que a querem tornar mimosa á força de cuidados e attenções?!...
-- Se a sua elegante resposta não encobre nenhum resentimento, porque é então que não frequenta esta casa como costumava?
-- A minha doença...
-- E como se chama a sua doença?...
-- Ainda não consultei a sciencia, e...
-- Receia que a consulta seja inutil... Guarde, pois, os seus segredos, Rosa, que não quer depositar no coração de um velho, talvez por considerar a velhice incapaz de os comprehender, e preste toda a sua attenção ao que vou dizer a minha mulher e a minha filha... Minha prima e estimada esposa, e minha presada Maria: desde muito que sabeis o interesse e affeição que voto a esta donzella, e áquella infeliz que obriguei a casar com um homem que detesto... Consenti-me que ainda vos occulte os motivos de honra, que a tanto me obrigam, e que um dia vos serão patentes... É urgente, e indispensavel, que a mulher do "rico fidalgo" e snr. Leopoldo tenha um dote capaz de suffocar na alma villã do marido o desprêso pela que foi obrigado a receber por sua legitima esposa... Para lhe dar esse dote necessito empenhar muito o teu patrimonio Maria, e a casa de v. exc.^a, minha prima...
-- Para que me dá o primo parte das suas nobres acções?! Mereço-lhe que me suspeite capaz de ir de encontro a uma sua resolução, ainda que por ella fosse levada á extrema miséria?... É injusto, senhor...
-- Deixe-me beijar-lhe a mão, minha santa prima!... Nunca duvidei dos nobilissimos sentimentos de V. Exc.^a; mas cumpria-me consultal-a, e pedir-lhe auctorisação para o que tenho a fazer, e bem sabe que não sei faltar ao que devo a mim mesmo...
-- E eu, meu presado e respeitavel pae e senhor, tenho só a dizer a V. Exc.^a, que me é inutil um dote, porque estou resolvida a morrer solteira, e...
-- Criança!... Não é preciso tamanho sacrificio... Vejo que entregas nas minhas mãos o teu futuro, e pódes estar certa de que ninguem o velaria melhor do que eu o farei... Temos de fazer uma séria reducção nas despezas, porque nos vae diminuir muito o rendimento. Possuia dinheiro e valores que entregaram á minha honra, e que acabo de restituir. Tenho, portanto, de vender bastantes propriedades... É custoso vêr passar a mãos alheias o que era de nossos avós; mas o dever primeiro que tudo... O que me diria, Rosa, se estivesse no logar de minha filha Maria?
-- Desejaria saber dizer a V. Exc.^a as mesmas palavras que o coração dictou á minha querida mestra e senhora D. Maria da Gloria, porque são perfeitamente iguaes os meus sentimentos...
-- Agradeço a todas...
Entrou precipitadamente na sala João Vidal, e Sebastião da Mesquita, um pouco enfadado, perguntou-lhe:
-- O que quer, João?... Parece que vem como portador de novas importantes, a dar valor ao modo porque se aproxima de nós, ao que traz nas mãos, e ao demudado da sua côr?...
-- É que, senhor, por mais indifferente que o dinheiro nos pareça ser, sempre sentimos algum estremecimento ao achar inesperadamente uma quantia importante... Os trabalhadores que andavam no pomar a compôr o muro, encontraram esta panella de ferro com o dinheiro que ella contém... Apressei-me a vir participar o acontecimento a V. Exc.^a, e peço que me desculpe o interrompel-o?...
-- Deixe-me vêr a qualidade da moeda... Tenho visto, snr. João de Lencastre... Conheço este dinheiro, que passou do cofre em que lh'o dei, para a primeira panella que o João encontrou na cosinha... Foi pouco engenhoso na sua cavalheira mentira... Não sou facil de illudir; mas, em compensação, sou facilimo em perdoar acções como aquella que desejou praticar... Lembro-lhe, porém, João, que "só eu" tenho direito a regular as minhas generosidades, e que não posso acceitar favores d'essa ordem... nem mesmo do João... Minha esposa e minhas filhas: dou-lhes parte que João Vidal, o escudeiro, passou hoje á posse do seu verdadeiro nome, e da fortuna que lhe veiu por elle. É bastardo da casa dos Lencastres, irmão de Leopoldo, e o unico que ha de sustentar em todo o brilho a gloria de seus antepassados. É, pois, na qualidade de nosso parente, e intimo amigo, que occupa desde hoje o logar que n'esta casa está sempre vago para os homens de bem.
-- Agradeço de toda a alma a V. Exc.^a a immensa honra que me concede, e que só condicionalmente acceitarei... Perdôe-me a arrogancia da phrase... foi dictada por V. Exc.^a que me ensinou os deveres de cavalheiro...
-- Venham as condições!
-- É só uma: a de me consentir em ter parte na generosidade que vae praticar... Ouvi tudo... Quiz encobrir-lhe o meu desejo, e não pude, por que V. Exc.^a descobriu a mentira, que eu inventei para bom fim... Acabou o constrangimento, senhor, e não tenho já receio de affirmar ao snr. Sebastião da Mesquita, que se me não permittir o que rogo, fugirei para muito longe, para onde me não possa chegar...
-- E que direito -- disse Sebastião da Mesquita, interrompendo-o -- é o seu para fazer um beneficio á senhora D. Anna?...
-- É a mulher de meu irmão, senhor!...
João Vidal, pronunciou estas palavras com dignidade e consciencia tal, que as tres senhoras immediatamente estenderam as mãos ao ex-escudeiro.
Sebastião da Mesquita levantou-se com toda a soberania, e disse:
-- Está terminada a conferencia... Ácerca do que pede, eu darei parte ao "primo" João do que resolver.
III
CIUME
Invejo-te, Camões, o nome honroso,
Da Mente creadora o sacro lume,
Que exprime as furias de Liêo raivoso,
Os ais de Ignez, de Venus o queixume:
As pragas do Gigante procelloso,
O Céu de Amor, o Inferno do Ciume.»
("Manoel Maria de Barbosa du Bocage.")
O ciume é, por sem duvida, a mais feroz e violenta das paixões, porque participa do amor e do odio, os mais agudos e incuraveis padecimentos do coração humano.
Os modos de manifestar tão perigosa como prejudicial paixão, variam tanto quantos são os temperamentos, as indoles, e as educações das pessoas sujeitas ao ciume.
O homem rude, que é brutal em suas expansões, não magôa mais, com seus castigos materiaes, a mulher que lhe faz sentir ciume, do que o burguez indinheirado, que ensina a consorte a decorar uma infinita taboada de favores, que lhe minguaram a burra.
O homem educado, da boa sociedade e com escola das conveniencias sociaes, tambem não é o que menos faz sentir á pobre filha de Eva o castigo de sua egoista paixão. Com a mascara da mais requintada polidez, fere com gestos, com sorrisos gelados, com subtilesas, com allusões, com toda a sorte de estudadas torturas, que nem consentem á victima a desfórra de uma resposta.
Fazemos distincção do ciume, dividindo-o em espiritual e material. O primeiro, o que procede da alma, não é selvagem nas suas consequencias, não escandalisa, e, sendo injusto, quasi sempre é debelado pela resignação e carinho da mulher, succedendo, algumas vezes, quando verdadeiro, conseguir a emenda e o arrependimento da culpada. O segundo, o que só tem origem nos sentidos corporaes, é arrebatado, não raciocina nem perdôa, sendo, por isso, sempre ruinoso e fatal.
Leopoldo luctava com o ciume espiritual pelo verdadeiro amor a D. Maria da Gloria, e com o ciume material pela esposa, que não podia amar.
Arthur Soares, por ser estimado pela fidalga donzella e conservar com D. Anna relações suspeitosas ao parecer do marido, tinha em Leopoldo um terrivel inimigo.
Depois d'aquelle dia, em que foi encontrar a esposa conversando a sós com Arthur, o fidalgo militar soffria um verdadeiro tormento intimo, de que D. Anna era participante, por esses infinitos actos de calculada severidade, e de frieza, que fazem do homem polido um carrasco civilisado, e da mulher innocente, e que os atura, uma completa martyr.
D. Anna, como não tivesse a mais pequena mácula de que accusar-se, attribuia todos os maus tractos de seu marido, unicamente a ter elle sido forçado a recebel-a por esposa, sendo ella plebêa e pobre. A triste senhora procurava na leitura, quando as lagrimas a deixavam, lenitivo aos seus pesares, e dava preferencia á Biblia, esse formoso rei dos livros, e n'ella ás divinas parabulas, essas inimitaveis phrases do Christo, que alliviam a alma, e derramam o mais suave dos perfumes sobre os sentidos de quem lê, e sabe comprehender e crêr.
Lia a contristada esposa o seu livro favorito na pagina que diz:
«E chegavam-se a Jesus os fariseus tentando-o, e dizendo: É por ventura licito a um homem repudiar a sua mulher, por qualquer causa? Elle, respondendo-lhes disse: O que vos ordenou Moysés? Elles lhe responderam: Moysés mandou dar o homem a sua mulher carta de desquite, e repudial-a. Respondeu-lhes Jesus: Porque Moysés, pela dureza de vossos corações, vos permittiu repudiar a vossas mulheres; mas ao principio não foi assim. Não tendes lido, que quem creou o homem desde o principio, creou macho e femea, e que deixarão pae e mãe, e ajuntar-se-hão, e serão dois n'uma só carne, não sendo já dois, mas uma só carne? Não separe, logo o homem, o que Deus ajuntou.»
Esta lei do Evangelho sobre a indissolubilidade do casamento, tornou pensativa a chorosa esposa, que pousou sobre os joelhos o sagrado livro, aberto na pagina que lêra, pendendo-lhe a cabeça para o seio. Era tal a preoccupação em que se achava, meditando, que não deu pela entrada do marido no seu quarto, Leopoldo, que espiava todas as acções de sua mulher, vendo-a tão enleiada, aproximou-se-lhe mansamente, e leu, por cima do hombro da esposa, as palavras que deixamos transcriptas, e que finalisavam a pagina em que se liam: ensaiou um dos seus mais ironicos sorrisos, deu á voz um tom de tão meliflua quanto refalsada ternura, e, juntando a acção ás palavras, disse:
-- Virando esta pagina, minha cara esposa, talvez que encontre passagens de mais interesse... Não me enganei. Olhe, veja a continuação e conclusão das maximas, que tiveram o condão de a fazer ainda mais bella, levando-a a esse estado e posição elegante de heroina scismadora... «Eu, pois, vos declaro, que todo aquelle que repudiar a sua mulher, "se não é por causa de adultério", e casar com outra, commette adulterio: e o que se casar com a que outro repudiou, commette adulterio: "E se a mulher deixa o seu marido e casa com outro, ella é «adultera."»
De certo comprehende bem o sentido d'estas palavras, principalmente d'aquellas que eu, ao lêr-lhe, sublinhei?
-- O primo, quasi me assustava, pelo não esperar agora aqui!... Se comprehendo o sentido do que me leu?!... Não sei o que quer que eu comprehenda?!...
-- Em primeiro logar, minha senhora e cara esposa, tomo a liberdade de lhe dizer que não me consta que haja entre nós parentesco algum...
-- Foi o meu esposo, e snr. Leopoldo, que determinou este tratamento entre nós...
-- Aconselhei-o, minha senhora, para as salas sómente, onde os "nobres" teem obrigação de saber guardar todas as "conveniencias": mas, aqui, escusa a minha estimavel esposa de usar de taes "constrangimentos"... Pelo que toca á comprehensão do que eu li, parece-me facilima, mórmente para o seu talento. Julgo que Jesus-Christo, com aquellas palavras, nos quiz dizer, que se não pécca repudiando a mulher "adultera". Não lhe parece?...
-- Quem melhor do que o meu esposo, que é letrado, póde entender o que lê?... Mas quer-me parecer que n'outro logar d'este sagrado livro, o bom Jesus perdoou á adultera, que ia ser apedrejada, tendo antes provocado dos queixosos o que se considerasse sem culpas que fosse o primeiro a lançar a pedra... Não nos dirá tambem esta humanitaria e sublime parabula, que se Jesus-Christo não tinha como peccado o desprezo da adultera, via, comtudo, que os homens, mais fortes, e absolutos legisladores para os crimes do meu sexo, nem sempre procedem com justiça?
-- Imaginemos que é assim: apraz-me concordar com os seus "engenhosos" corollarios, minha senhora... Mas, como estamos em "amigavel" controversia, desejava ouvir a sua "esclarecida" opinião sobre a "igualdade" dos deveres... Parece-lhe que o "adulterio" é o "mesmo crime" da parte da mulher como da parte do homem?...
-- Não sei como responder-lhe, meu esposo e senhor... Nunca pensei detidamente na gravidade do crime de que fallamos; e, pesando agora a fealdade d'um tal delicto, julgo quasi impossivel que haja mulher voluntariamente adultera. Talvez que essas infelizes peccadoras sejam levadas a uma tal degradação pelo contínuo desprezo e ardua severidade dos maridos, pelos maus exemplos, e pelas aleivosas seducções dos homens, que as conduzem á quéda, para as enlamearem em seguida...
-- Para quem não tem "pensado" no assumpto, desenvolve-o admiravelmente!... Dou á minha cara esposa "sinceros" emboras pelo bem que falla da materia... Devo comtudo observar-lhe, como em descardo da "letradice" com que ha pouco quiz honrar-me, que os "maus exemplos" do homem nunca podem lançar no leito nupcial um "pequenino ladrão"... A minha "intelligente" esposa comprehende-me bem, não é assim?
-- Se o comprehendo, senhor, devo tambem "observar-lhe" que os "maus exemplos" podem igualmente introduzir o mesmo "roubo" em alheios lares... Feliz a esposa que sabe resistir a todas as tentações, embora tenha de ganhar a palma do martyrio; mas bem mais feliz aquella que encontra no marido um guia, e natural protector, em vez d'um tyranno egoista.
-- Dou lhe palmas, minha "cara" esposa! Isso é que se chama saber defender o terreno pollegada a pollegada... Proclamo-a rainha das defensoras da reciprocidade do crime de adulterio entre os conjuges...
N'esta altura do dialogo, que promettia mais serio azedume, foram interrompidos pela voz de uma criada, que annunciou a chegada, e a introducção, de Arthur Soares, na sala das visitas. A esta noticia foram differentes as sensações manifestadas pelos esposos. Leopoldo franziu a testa, e D. Anna mostrou na face o natural contentamento com que recebia a visita do seu companheiro de infancia, do seu protector e irmão adoptivo...
-- O seu rôsto, minha "boa" esposa, formosissimo, mesmo quando "v. exc.^a" se acha em perfeita tranquilidade de espirito, está agora explendido de brilhantismo, pelo contentamento que manifesta com a noticia que nos deu a criada... Muito "feliz" é esse snr. Arthur Soares!...
-- Se a profunda estima de uma irmã, que não sabe ser ingrata, póde dar a felicidade, de certo que é feliz o meu companheiro de infancia, porque o sei presar como elle merece.
-- Hei-de vêr se consigo haver d'elle, por "um sério estudo", o segredo de tanto se fazer "apreciar" das bellas... Vamos prestes ao seu encontro, que estou já ancioso por começar as minhas "experiencias"...
D. Anna continuava a não comprehender os remoques do marido. A boa fé, e a innocencia, são quasi sempre ingenuas.
Chegados á sala os dois esposos, foram cumprimentados por Arthur Soares, Leopoldo com polida frieza, e D. Anna com a expansão do "amor sem desejo", que assim é definida a verdadeira amisade, ao que ella soube gentilmente corresponder, mau grado de seu marido, que principiava a manifestar, por contorsões nervosas, o inferno que lhe ralava o peito.
-- Venho dar contas a v. exc.^a, e a seu illustre marido, do uso que fiz da auctorisação que me concedeu. Apenas consegui apurar trinta mil crusados, que entrego em papeis de bom credito, equivalentes a dinheiro de contado, e mais commodos no transporte. Com letigios, sempre impertinentes, incommodos e despendiosos, podia augmentar a cobrança; mas usando, e talvez que abusando um pouco, da auctorisação e da reconhecida bondade de v. exc.^a, passei quitação geral do seu dote pela quantia que recebi e apresento... Digne-se o snr. Leopoldo examinar e contar...
-- Desculpe-me interrompel-o, snr. Arthur Soares. Eu não posso, nem quero, entrar no mysterio d'esse "dote" da minha "prima" e "cara" esposa. Creio possuir o necessario para vivermos com algum allivio, e nunca "esperei" receber quantia alguma de tal proveniencia... Se minha mulher "julgar digno" o receber esse dinheiro, receba-o muito embora, que eu nunca procurarei saber qual seja a sua applicação.
-- Não só a considero digna, mas até me parece obrigatoria a recepção. Diz-me o snr. Arthur Soares, que tenho um "dote", que é meu, entrega-m'o, porque não hei-de recebel-o? Posso por ventura suspeitar que o meu companheiro de infancia, e bom irmão adoptivo, trouxesse a esta casa dinheiro meu de origem menos pura? Tambem não é de crer que haja quem se desaposse de "trinta mil crusados", para fazer um beneficio gratuito. Além do que, se o meu esposo e senhor póde dispensar este dote; se eu mesma, por estar no gôso da munificencia de meu marido, não tenho immediata precisão d'elle, pódem de futuro existir outros interessados, os filhos, que não temos o direito de prejudicar. Acceito, e agradeço ao snr. Arthur Soares, o trabalho que teve para haver o meu dote.
-- Estou mais que pago do que fiz, pela certeza de ter prestado a v. exc.^a um pequeno serviço.
-- «A snr.^a D. Maria da Gloria da Mesquita Bandeira e Abendanho!...»
A este annuncio, que um escudeiro fez em devida fórma, ficaram como interdictos todos os actores da scena que descrevemos. São faceis de comprehender os motivos da interdicção, se o leitor tem attendido o «Conto portuguez».
Sebastião da Mesquita resolveu enviar a D. Anna o seu dote por D. Maria da Gloria, e que esta fosse acompanhada por João de Lencastre: explicada a inopinada apparição, e deixando á capacidade do leitor o avaliar como seriam recebidos os recem-vindos, continuaremos a interrompida scena, em que figuram agora mais dous actores:
-- Antes de participar ao primo Leopoldo qual é a commissão de que venho encarregada por meu ex.^mo pae e senhor, peço-lhe licença para apresentar-lhe o snr. João de...
-- Conheço "bastante", minha querida prima e senhora, o seu escudeiro e fiel pagem, "que só poderia entrar n'esta casa, como entrou", acompanhando a sua dona...
-- Engana-se v. exc.^a, meu caro primo, quanto ao mister e aos direitos do meu apresentado. Este cavalheiro, que precisou de viver alguns annos sob o incognito, mais de amigo que de escudeiro da nossa casa, é bastardo da illustre progenie dos snrs. de Lencastre, reconhecido e dotado por uma sua thia avó paterna; é nosso primo e muito intimo amigo; é, finalmente, irmão de v. exc.^a...
-- Não posso crêr que a minha apreciavel prima e snr.^a D. Maria da Gloria, queira honrar-me com um gracejo d'essa ordem, e...
-- Quer provas? Aqui as tem... Depois de lêr ficam desterradas as suas duvidas, e atrevo-me a esperar do cavalheirismo de v. exc.^a, que dará todas as mostras de fraternal estima ao meu nobre apresentado...
-- Não desejo só dever a esses pergaminhos a amizade de meu irmão... Embora por motivos justificados, commetti um acto rude, e offereço-lhe a face, para applicar n'ella a pena de Talião...
-- Mais do que a essa humildade, que sei apreciar n'este momento, e tanto como aos laços de sangue que nos prendem, deve-se á vontade e nobreza de sentimentos da nossa querida prima e snr.^a D. Maria da Gloria, a espontaneidade com que o abraço, mano João!...
-- Agradeço ao primo Leopoldo a delicadeza e fidalguia do seu proceder. Agora, passo a remir-me da obrigação que recebi de meu exc.^mo pae: faço-o mesmo em presença do snr. Arthur Soares, que pela muita amisade e consideração que todos lhe devemos, é estimado como pessoa de familia. O primo João, entregará ao primo Leopoldo, e á minha boa amiga e antiga discipula, um movel que contém setenta mil crusados, que tanto importa o dote d'esta excellente esposa, de que meu respeitavel pae estava de posse. Não foi entregue ha mais tempo, porque só agora se acabou de liquidar e receber...
Um raio, que n'aquella occasião tivesse cahido na sala, não deixaria ficar mais assombrados Leopoldo, Arthur e D. Anna, do que ficaram ao ouvirem aquellas palavras de D. Maria da Gloria! Póde comprehender-se, mas não é descriptivel, a scena muda que entre elles teve logar. Arthur Soares, pelo auxilio de seu natural talento, e por um d'aquelles raros expedientes, que Deus concede repentinamente ás almas que o merecem, abrangeu a difficuldade da situação, e desembaraçou-a maravilhosamente:
-- É á snr.^a D. Maria da Gloria, que devo explicar o assombro em que ficaram estes felizes esposos, pela remessa que lhes faz meu illustre padrinho, e senhor Sebastião da Mesquita, logo em seguida a outra de igual genero de que eu fui portador... Tudo se aclara com a narração da verdade, ficando eu apenas com a macula de imprudente, por me precipitar na entrega... O snr. Sebastião da Mesquita, havia-me encarregado da cobrança de varios creditos e dividas, exigindo-me a maior actividade, porque pertenciam, me disse elle, ao dote da snr.^a D. Anna, que meu padrinho desejava entregar o mais breve possivel... O emprego do tempo n'essa cobrança, o desejo de prestar um serviço á minha companheira de infancia, e a necessidade de marchar immediatamente para a cidade do Porto, onde me chamam os deveres de voluntario da causa popular, tudo isto junto á irreflexão, que eu mesmo classifico de imprudencia, arrastou-me aqui, a fazer a entrega do por mim recebido, sem ter, como devia, uma prévia conferencia com o meu illustre mandatario, que, pelo que observo agora, desconfiou da minha actividade, e foi enviando o que já era em seu poder...
-- Deve ter sido assim, snr. Arthur Soares. E como meu excellente pae sabe guardar bem os seus segredos, não me confiou essa missão de que o encarregára... É grande a quantia pelo snr. Arthur recebida?
-- São, apenas, trinta mil cruzados.
-- Então, já a minha Annitas tem um dotesinho rasoavel... cem mil cruzados... É um pequeno regato, que pouco volume augmenta ao oceano que possue o marido, bem sei; mas que já chega para alfinetes, e para ter meia duzia de dias, cada anno, hospedada a sua mestra... Consente, primo Leopoldo, que eu seja, por algum tempo, hospeda de sua esposa?
-- A esse consentimento, é nossa prima D. Anna que hade responder. Da parte que eu tenho n'esta casa, dispõe V. Exc.^a como de cousa sua, que é... O que me parece descobrir na pergunta da minha querida prima D. Maria, é vontade de estar aqui só com a sua discipula; e eu sou obrigado, pelos meus deveres de militar da rainha, a senhora D. Maria II, a fazer-lhe a vontade, porque hoje mesmo devo retirar-me, para reunir-me ao exercito.
-- N'esse caso, mano Leopoldo, vamos todos até Guimarães, onde fiquei de encontrar-me com o snr. Sebastião da Mesquita... Acompanha-nos, snr. Arthur Soares?
-- Com todo o prazer, snr. João de Lencastre: não é grande a volta na jornada que tenho a fazer para a cidade do Porto, onde sou esperado na qualidade de soldado do governo supremo do reino...
Para melhor intelligencia da scena que se deu após as narradas, e com que vamos fechar este capitulo, é necessario descrever as posições que occupavam na sala os differentes actores.
D. Maria da Gloria e Arthur Soares, conversavam a meia voz no vão de uma das janellas de varanda, quasi no fim da sala, semi-occultos pelas cortinas, a bastante distancia das de mais pessoas. D. Anna, occupava, no meio da sala, um logar junto do precioso movel, onde movia maquinalmente alguns dos objectos que o adornavam. João Vidal, ou de Lencastre, estava sentado a um dos lados, folheando um album de pinturas; e Leopoldo, na extremidade da sala, opposta ao lado occupado por D. Maria e Arthur, conservava-se de pé, encostado ao pedestal de um magnifico relogio, com a cabeça levemente pousada sobre os dedos da mão esquerda.
D. Maria da Gloria e Arthur Soares, estavam muito interessados no seu confidencial dialogo. A joven senhora, não acreditára na explicação, dada por Arthur, ácerca dos seus trinta mil cruzados, e apertava-o com raciocinios, que deviam leval-o, inevitavelmente, á confissão da verdade.
D. Anna, reunia em sua mente as menores circumstancias de sua vida, avaliava os ultimos acontecimentos d'ella, e via, ainda que com pouca clareza, que estava sendo o alvo de generosidades extraordinarias.
Leopoldo, só era dominado pelo ciume: reconhecia, mau grado seu, as vantagens moraes do seu rival, e tremia de intima raiva.
João, o antigo escudeiro, e moderno fidalgo por bastardia, senhor de quasi todas as intrigas que agitavam os seus parentes e amigos, fingia prestar muita attenção ás paizagens que examinava, e não perdia um só dos movimentos dos que o cercavam.
D. Maria triumphara, em fim, do seu docil adversario: obrigara-o a confessar o que fizera, e a pedir-lhe segredo para o seu brioso procedimento. A gentil e fidalga donzella, vendo realisadas as suas suspeitas, e abysmada na grandeza d'alma do seu idolo, apertou-lhe as mãos meigamente, e saltaram-lhe dos olhos lagrimas alegres. D. Anna, vira aquelles movimentos, preadivinhára o que se havia passado, chegou-se a elles, e exclamou, entre lagrimas de reconhecimento: «Meus bons amigos!» deixando em seguida cahir a cabeça no seio de D. Maria da Gloria. -- Era bello aquelle grupo!
Leopoldo, acompanhára aquellas expansões de gratidão com olhos ferinos. De repente, perdeu a côr, sacudiu fortemente a cabeça, e dirigia-se, com passos mal seguros, ao grupo encantador. Não podemos calcular o que teria succedido, se aquella prêsa do ciume não fosse logo interrompida nos seus passos pelo irmão que, com o album aberto, lhe disse:
-- Tem bellissimas pinturas este album, mano Leopoldo... Esta, que parece ser o emblema do ciume, é realmente curiosa... Figura uma bella mulher com apparencia de inquietação, e ar de quem escuta... As suas roupas são da côr das ondas do mar: tem na mão direita um ramo de espinhos, e na esquerda um gallo... Mantém-se na attitude do desassocêgo e curiosidade, e a côr dos vestidos indica a perturbação da alma... O ramo de espinhos denota que os tormentos do ciume são acerbos e agudos, e o gallo é o symbolo da suspeita e vigilancia... É curioso, muito curioso!... O seu braço, mano Leopoldo, e vamos até á proxima saleta, onde quero fazer-lhe entrega do movel em que lhe fallou a snr.^a D. Maria da Gloria, e conversar em cousas de commum interesse...
E sem dar occasião a evasivas, foi arrastando Leopoldo, que se deixou conduzir sem resistencia, já mais ou menos conscio do ridiculo de que o irmão o salvava.
IV
O BERÇO DA MONARCHIA
«Querem alguns que seja esta villa o assento da cidade de Araduca, de que Ptolomeu faz menção; é porem incerta a conjectura, sendo certissima a sua veneranda antiguidade.»
(O PANORAMA DE 1867.)
«A antiga Guimarães foi fundada pelos gallo-celtas, quinhentos annos antes da éra christã.»
(PADRE CARVALHO)
«As fabricas de cortumes produzem annualmente um valor superior a cento e cincoenta contos de reis. O commercio das linhas pannos de linho e ferragens, é importante, apesar de ter decahido depois do tratado de 1810 e da independencia do Brazil: todavia ninguem ainda hoje negará o incontestavel merecimento dos tecidos de linho adamascados, fabricados em Guimarães, que em duração e primor d'obra por certo que não tem rival. Calcula-se que os tres ultimos productos industriaes que apontamos, não rendem menos de oitenta contos de reis por anno. Os doces de fructas confeitados n'esta villa, renderam, no anno de 1835, seis contos de reis.»
(GEOGRAPHIA DE URCULLU.)
Parece fóra de duvida, que esta bella povoação do Minho, elevada modernamente á cathegoria de cidade, teve, no seu começo, duas existencias distinctas, e muito separadas na ordem do tempo, ambas com o nome de -- Guimarães -- ; se é que não serviu tambem de local á antiquissima cidade de Araduca, como querem muitos e mui abalisados auctores.
É Guimarães uma das terras heroicas de Portugal, por titulos honrosissimos. Mais do que ao facto de ter sido o berço do primeiro rei portuguez, o snr. D. Affonso Henriques, que após a gloria de ter fundado e consolidado o reino e a monarchia portugueza, morreu em geral opinião de santo, como é affirmado na chronica dos conegos regrantes de Santo Agostinho, e na terceira parte da Monarchia Lusitana; mais do que á contestada, ainda que muito auctorisada, versão de ter sido a patria do famoso Papa S. Damaso, que mereceu, ao sexto concilio de Constantinopla, o dar-lhe os nomes de -- Diamante da Fé -- ; mais do que á justa fama de ser um povo notavelmente commercial e industrial; mais finalmente, do que á sua immensa riqueza, -- deve Guimarães, o seu bom nome, aos feitos emprehendedores e gloriosos de um grande numero de seus filhos, na guerra, nas artes, nas sciencias, em todos os ramos dos conhecimentos humanos, e á magnifica e incomparavel indole de todos elles, que sempre souberam reunir á bravura do leão a mansidão do cordeiro, á intrepidez a resignação, e ao uso da caridade a facilidade no perdão das injurias.
Nomearemos alguns dos mais antigos e gloriosos nomes dos heroicos filhos de Guimarães:
Gil Vicente, filho de Martim Vicente, o fundador do theatro portuguez, e distincto artista, que fez a Custodia de Belem.
Pedro Alves, artista de notavel merecimento, que, com mais outros contemporaneos seus, tornou florescente a ourivesaria de Guimarães, pelos annos de mil quatro centos e cincoenta a mil quatro centos e oitenta.
João Gonçalves, mais conhecido pelo nome de "Engenhoso", o introductor do serrilhado na moeda.
Payo Galvão, filho unico de Pedro Galvão e de sua mulher D. Maria Paes; entrou em tenra idade no convento de Santa Marinha da Costa, no anno de 1178; enviado á Universidade de Paris, recebeu lá o grao de mestre de theologia. Regressando ao seu convento e mosteiro da Costa, foi elevado á dignidade de mestre-escóla da real collegiada. El Rei D. Sancho I, o nomeou, em 1198, seu embaixador em Roma, onde foi muito estimado pelo Papa Innocencio III, que o fez seu vice-cancellario, poucos mezes depois da sua chegada: cardeal diacono, no anno de 1206; presbytero cardeal de Santa Cecilia, no anno de 1211; e bispo Albanense, no anno de 1215. Completou, este douto varão vimaranense, a sua gloriosa carreira, acompanhando, na qualidade de seu -- legado apostolico -- , o general João Breno, á conquista de Jerusalem, enviado pelo Pontifice Honorio III.
O doutor Gaspar de Carvalho, que foi chanceller mór do reino, do conselho de El-Rei D. João III, e tambem seu embaixador e testamenteiro.
O doutor Balthasar de Azevedo, que foi desembargador da supplicação.
O padre fr. Paulo do Valle, da ordem de S. Bento, que foi mestre de theologia na Universidade de Coimbra.
O doutor Diogo Lopes de Carvalho, senhor dos coutos de Abadim e Negrellos, que foi môço fidalgo da casa de El-Rei, e seu desembargador do Paço.
O doutor Gonçalo Dias de Carvalho, o primeiro legista portuguez, que começou a estudar em Guimarães, no Mosteiro de Santa Marinha da Costa, de frades Jeronymos. Foi o primeiro doutor que na Universidade de Coimbra tomou capêllo, e foi desembargador dos aggravos, e deputado da meza da consciencia.
O doutor Balthasar Vieira, môço fidalgo da casa d'El-Rei, que foi corregedor da côrte.
O licenciado Manoel Barbosa, que escreveu com muito conhecimento sobre a ordenação, que foi distincto antiquario e genealogista dos de mais credito.
O insigne doutor Agostinho Barbosa, filho do precedente, que foi bispo de Cisgento, e publicou obras utilissimas, apreciadas dentro e fóra do paiz.
O doutor Simão Vaz Barbosa, filho tambem do jurisconsulto Manoel Barbosa, que foi mestre em artes, e escreveu o seu livro do "Axioma".
O doutor Antonio Pereira Cardote, que teve a gloria de vêr adoptada, pela Universidade de Salamanca, a doutrina que ensinou na Universidade de Coimbra. Dizem os mais auctorisados, quanto imparciaes, chronistas, "que se a villa de Guimarães não tivera dado de si outro parto, bastava este sujeito para o seu maior credito".
O padre fr. Antonio da Luz, religioso de S. Bento, insigne theologo, e lente na Universidade de Coimbra.
O padre mestre, fr. José de Oliveira, religioso dos eremitas de Santo Agostinho, lente de theologia em Coimbra, e feito bispo de Angola, por El-Rei D. Pedro II.
O doutor Gaspar de Abreu de Freitas, commendador da Ordem de Christo, desembargador e conselheiro da fazenda, môço fidalgo da casa de El-Rei, e seu enviado a Hollanda, Inglaterra, e Roma.
O desembargador João de Guimarães, embaixador duas vezes á Suecia, Inglaterra, e Hollanda, moço fidalgo, commendador de capa-rosa, na ordem de Christo, e deputado da Mesa da consciencia.
O doutor João de Gouvêa da Rocha, desembargador na relação do Porto, na dos aggravos, em Lisboa, e no Paço, moço fidalgo, e cavalleiro professo de habito de Christo.
O doutor Pedro da Rocha de Gouvêa, irmão do precedente, desembargador do Brazil, e depois da supplicação, e cavalleiro da ordem de Christo.
O doutor José Peixoto de Azevedo, desembargador dos aggravos, em Lisboa.
O doutor Jeronymo Vaz Vieira, juiz das ordens militares, deputado da mesa da consciencia, desembargador dos aggravos, juiz da corôa, e desembargador do Paço.
D. Gabriel da Annunciação, conego de S. João Evangelista, que foi bispo de Annel, do arcebispado de Evora.
D. Manoel Affonso da Guerra, que foi bispo de Cabo-Verde.
O doutor Pedro de Sousa, que foi lente de Vespora.
O doutor Christovão de Azevedo, fisico-mór do reino.
O doutor Francisco Cibrão, medico notavel, e muito conhecido e apreciado em Lisboa.
Manoel Gonçalves, o trovador, morador no "burgo" da rua de Couros, que foi o primeiro homem que n'este reino fez trovas.
Manoel Thomaz, que compoz a noticia das guerras d'entre Douro e Minho, em "oitava rima".
Manoel de Faria e Sousa, homem que se fez conhecido e admirado, dentro e fóra do paiz, pelo acerto, erudição e credito de suas obras, em que se mostrou profundo conhecedor, não só das antiguidades de Portugal, como tambem da Africa, Asia, e America. Foi sepultado no Mosteiro de Pombeiro, ao pé do magestoso tumulo de D. João de Mello e Sampaio, antigo commendatario d'aquelle Mosteiro.
Martim Ferreira, que salvou Guimarães do sitio que tentava pôr-lhe o exercito castelhano, alojado na "veiga das favas"; e que, por uma cutilada que então recebeu no rôsto, ficou appellidado -- o Martim Narizes.
Manoel Machado de Miranda, senhor do "casal dos Cavalleiros", e residente no seu "palacio do arco", na rua de Santa Maria, poderoso fidalgo, que prestou assignalados serviços ao rei e ao reino, obrigando seus filhos a continual-os.
Manoel Machado, filho do precedente, que morreu em uma batalha naval pelejada com os turcos.
Francisco Machado, irmão d'aquelle, que morreu na India, no posto de capitão de infanteria, batalhando pela patria.
Fr. Gualter Machado, irmão dos precedentes, cavalleiro professo na religião de João de Rodes, que perdeu a vida em um assalto contra os turcos.
Fr. Martim Pereira d'Eça, irmão dos precedentes, cavalleiro professo na religião de João de Rodes, que, depois de ter batalhado com notavel valentia ao lado de seus irmãos, regressou ao reino, que encontrou em guerras contra Castella, e logo tomou as armas em defeza da patria, sendo mestre de campo de um "terço de volantes", e capitão duma "companhia de cavallos com o titulo de couraças". Celebradas as pazes entre os dous reinos, entrou o guerreiro em mais brandas, fadigas: foi occupado em visitador das commendas da sua religião, d'onde passou a recebedor d'ellas; e, estando n'esta occupação, foi, por algum tempo, governador do priorado do Crato. Foi tambem commendador de Torres Vedras, e de S. João da Carvoeira.
João Machado d'Eça, irmão dos precedentes, que serviu importantes cargos no Alemtejo.
Gregorio Ferreira d'Eça, irmão dos precedentes, que foi capitão-mór de Guimarães, e governador de sua comarca, militar valente, fidalgo da casa d'El-Rei, e cavalleiro professo do habito de Christo.
Pedro Alvares de Almada, cavalleiro valeroso, possuidor do morgado e cazas do "Rocio da Tulha", que, depois de ter batalhado n'este reino e no de Hespanha, passou a servir El-Rei Henrique de Inglaterra nas guerras contra os mouros; e taes valentias praticou, que mereceu a este rei um alvará, (datado de 2 de março de 1501) «"em que lhe entregou, e livremente doou, parte determinada de suas armas reaes, a saber: ametade de uma flôr de Lyrio de ouro, e ametade de uma rosa vermelha, em campo dividido em duas partes, e em duas côres, como é, de uma parte de verde, e da outra de prata; para que elle, e todos os seus descendentes, e parentes, assim conjunctos por sangue, ou affeniedade, possam usar das mesmas armas segura e livremente, aonde cada um quizer, assim como se forem suas proprias armas."»
Fernão da Mesquita, chamado -- o velho -- , possuidor da "casa da rua da Infesta, com sua capella de Nossa Senhora da Graça", que acompanhou, com grande dispendio de sua fazenda, ao duque de Bragança, D. Jaymes, na tomada de Azamôr, no anno de 1513, partindo depois para a India, onde fez as suas proezas, que se lêem na Chronica d'El-Rei D. Manoel, cap. 46.
Ruy Mendes da Mesquita, filho do precedente, que acompanhou o infante D. Luiz, filho d'El-Rei D. Manoel, á tomada de Tunes, passando depois tambem á India, onde, por seus valorosos feitos, honrou as cinzas de seu pae, honrando a patria.
Fernão da Mesquita e Lima, o Novo, filho do precedente, que, aos 18 annos de idade, ganhou na guerra de Tangere, uma commenda da ordem de Christo, e, dous annos depois, foi capitão mór da Costa.
Diogo Lopes da Mesquita, irmão do precedente, que foi intrepido capitão da fortaleza de Maluco, na India.
Miguel Lopes da Mesquita, filho do precedente, e digno imitador do valor e virtudes da familia dos Mesquitas de Guimarães, que teve a honra de hospedar, na sua casa da rua da Infesta, o infante D. Luiz, filho de El-Rei D. Manoel, em agosto de 1548.
Diogo da Mesquita, outro filho de Fernão da Mesquita, o velho, "que, melhor que todos, realçou e eternisou" seu nome. Foi mandado pelo viso-rei da India, Nuno da Cunha, por embaixador a um rei mouro; e, sendo captivo do rei de Cambaya, por não querer renegar a sua fé, e a sua patria, "foi posto na bocca d'uma peça de artilheria", sem que um tal apparato o amedrontasse; e, porque só o quizessem intimidar, e não matar, o pozeram a resgate, e resgatado foi, "por subido preço". Vingou suas affrontas, matando, em combate, o rei de Cambaya, "que era senhor de tres reinos"; e por este feito se accrescentaram ás suas armas "tres corôas e um alfange", como diz Diogo do Couto, na decada 4.^a, livro 4.º, capitulo 9.º
Manoel da Mesquita, filho do precedente, que foi capitão da fortaleza de Chacel, na India.
Fernão da Mesquita, irmão do precedente, que serviu nas Armadas, no tempo d'El-Rei D. Sebastião.
Antonio Pereira da Silva, fidalgo da casa d'El-Rei, "morgado rico, e possuidor de casas nobres na rua de Santa Maria", que acompanhou El-Rei D. Sebastião á batalha de Alcacer Quibir, onde foi captivo. Resgatado, embarcou para a India, e serviu como bom cavalleiro, na guerra contra os turcos.
Salvador Pereira da Silva, filho natural do precedente, que foi mestre de campo em Ceilão, sendo general D. Jeronymo d'Azevedo; e depois foi capitão mór da Armada, que foi ao cerco de Malaga.
Antonio Peixoto de Carvalho, moço fidalgo da casa d'El-Rei, morgado da Pousada, "com suas casas" "na rua do Val de Donas", que serviu na guerra da India, "contra os infiéis", onde acabou a vida.
João Vasques Peixoto, irmão do precedente, ao qual fez doação do morgado, que tomou o habito de S. João de Rodes, e mostrou seu valor nas guerras de Malta, sendo feito commendador da sua ordem.
João de Sousa Alcoforado, moço fidalgo da casa d'El-Rei, "que deixou mulher, e filhos, e o morgado e casa de Villa Pouca", para servir a patria, nas guerras da India, levando em sua companhia dous de seus filhos, Manoel de Sousa da Silva, e Francisco de Sousa Alcoforado.
Simão Rebello de Valadares, que embarcou para a India sem licença de seu pae, João Valadares, residente na rua de Santa Maria, e foi um dos mais valentes soldados do seu tempo. Morreu juncto da muralha de Ceilão, ficando-lhe, na escalada, os braços dentro da muralha.
João Martins, Annadel mór dos espingardeiros de Guimarães, senhor do morgado do Pinheiro, que deixou mulher e filhos, fretou uma náu á sua custa, e mettendo-se n'ella, "com gente e armas tambem suas", acompanhado de seu irmão Fernão Martins, se offereceu a El-Rei D. Affonso V, para o seguir na viagem que fazia a Azamôr. Por seus valerosos serviços, mereceram estes dois irmãos, "grandes mercês e honras".
Pedro Coelho, da rua de Santa Maria, que acompanhou El-rei D. Sebastião á Africa. Ficou captivo, e foi escravo "de dous senhores". Resgatado, "com muito trabalho e dispendio de sua fazenda", foi cavalleiro professo do habito de Christo.
Salvador da Costa e Almada, morador na "rua Nova do Muro", embarcou para a India, onde foi "cabo de" "tres fustas", que o governador, Mathias de Albuquerque, mandou á costa de Ceilão.
Gregorio da Costa do Valle, tambem da rua Nova do Muro, thio do precedente, que foi capitão da Costa, por El-Rei D. Manoel, e morreu na India, pelejando com grande valor contra os turcos.
Gaspar Leite Pereira, da rua do "Cano das Gasas", que embarcou para a India no anno de 1559, e, por seu valor, foi provido no cargo "de Tanaydar e Manorá, nas terras de Baçaim". Foi depois mandado, por El-Rei D. Sebastião, á costa de Guiné, por capitão do navio -- S. Nicolau -- .
Antonio Leite d'Azevedo, sobrinho do precedente, que tambem, na India, mostrou o seu valor, como diz "A vida do irmão Pedro de Basto", liv. 2.º cap. 13.º
Gonçalo Paes de Meira, da rua de Santa Barbara, que acompanhou Martim Ferreira na façanha da "Veiga das favas", onde foi desbaratado o exercito de D. Henrique 2.º, de Castella, que tentava pôr cêrco a Guimarães; causando, por outra vez, em 1371, ao mesmo rei, graves desgostos, porque elle, e seus dois filhos, Estevão Gonçalves de Meira, e Fernão Gonçalves de Meira, acompanhados de quarenta cavalleiros, obrigaram o rei de Castella a levantar o cêrco.
Affonso Lourenço de Carvalho, que, estando de posse de Guimarães o rei de Castella D. João 1.º, serviu, "por sua traça", de poderoso instrumento á conquista que d'ella fez El-Rei D. João I de Portugal. Foi o caso, que estando El-Rei de Portugal, com o seu exercito, "na ponte do Sueiro, juncto á ponte de Servas", Affonso Lourenço de Carvalho lhe deu parte, que conseguira do porteiro e guarda da "porta do postigo", que esta lhe abrisse, para elle metter em sua casa uma cuba em um carro; e, aproveitando El-Rei o aviso, entrou por alli, "com trezentos de cavallo", ficando senhor de Guimarães, depois de combate.
Manoel de Valadares Vieira, que foi dos primeiros soldados filhos de Guimarães, que, na provincia de entre Douro e Minho, assentou praça, deixando o interesse de seu morgado, de que era unico herdeiro, para servir na feliz acclamação de D. João 4.º. Foi capitão e sargento mór de infanteria, e governador da praça de Monte Alegre.
André Pinto Barboza, que militou n'este reino e no Brazil, chegando a mestre de campo e governador da praça de Miranda, e provedor mór de Pernambuco.
Francisco de Meira Peixoto, que serviu em duas armadas, occupando tambem o posto de capitão de infanteria.
João Leite de Oliveira, que deixou a agricultura, que exercitava na sua quinta "de Pombeiro", para se alistar "na milicia de Flandes", onde, por seu valor, mereceu o posto de capitão, morrendo, no de general de artilheria, com grande nome e fama.
Sebastião Salgado de Faria, que, "na guerra de Flandes" foi "um dos capitães de cavallo de couraças" com melhor nome no exercito.
Jeronymo de Figueiredo, que, nas guerras com os castelhanos, chegou ao posto de "tenente de mestre de campo general".
Dionisio da Cunha, que foi valente capitão de infanteria.
Pedro Coelho de Miranda, que foi capitão dos "privilegiados de Nossa Senhora da Oliveira".
João Botelho Leite, que foi capitão de infanteria, e um dos que promoveram a feliz acclamação de D. João IV.
João Rebello Leite, filho do precedente, que, no "primeiro rebate que em seguida á feliz acclamação, os gallegos deram" na fronteira do Minho, foi prisioneiro e levado, "com oito feridas", ao castello de Compostella, d'onde, após dezoito mezes de prisão, fez "uma fugida valorosa", chegando depois a mestre de campo, e, "com lastimosa desgraça, morreu de veneno".
João Machado de Miranda, que, deixando em serviço da patria os bens em que succedia, militou com grande valor, chegando ao posto de mestre de campo de infanteria, "e de cavallos"; e, indo a Santarem "reformar o seu terço, foi captivo da morte por um reparado manjar, que lhe serviu a sua mulata".
Fernão Ferreira da Maia; José Peixoto de Sousa; Francisco de Macedo; João Barroso de Azevedo; Jacintho Leite Pereira; André de Sousa Homem; José Machado Pinto, e Manoel Velho do Couto, que todos occuparam postos de "capitães volantes", no exercito da provincia do Minho.
Diogo de Freitas, que foi capitão de infanteria.
Antonio Paes do Amaral, cavalleiro do habito de Christo, e "ajudante de cavallaria".
Antonio de Andrade e Valle, que foi "ajudante de Infanteria".
João de Sousa e Lima, que foi "alferes do mestre" de campo de infanteria.
Paschoal da Costa, que foi capitão de infanteria.
Francisco Machado de Miranda, que foi capitão de infanteria; e Antonio de Barros, que foi "capitão de volantes".
Esta lista seria infinda, se continuassemos a esgravatar nas gloriosissimas antiguidades d'este nosso Portugal, e aproveitassemos tudo, que respeita a Guimarães.
E não é só ao sexo forte, que o berço da monarchia deve o seu nome famoso: foi distinctissima vimaranense, entre outras de menor fama, Joanna Michaella, filha de Pedro Machado e Dionizia de Macedo, e esposa do tenente coronel de cavallaria Antonio Mendes de Brito. Era perfeita no conhecimento e uso da lingua materna, e sabia latim, italiano, grego e chinez: estudou philosophia, theologia, mathematica, astrologia, e musica; chegando a ser classificada como uma das senhoras portuguezas mais eruditas do seu seculo.
Foram, pois, justificadamente merecidas as immensas honras, privilegios e isempções, que os senhores reis d'este reino concederam aos moradores de Guimarães, como não tiveram por certo, nenhuns outros do paiz; e da mesma fórma, de toda a razão é o nobre orgulho, que ainda hoje sustenta a briosa raça de tão heroico povo.
E não resistimos ao estimulo de notar aqui meia duzia de nomes, que, na actualidade, provam não ter degenerado aquelle sangue portuguez, tão admiravelmente fertil.
Contamos com a benevolencia dos cavalheiros, por nós apontados, para que nos relevem o não lhes respeitarmos a modestia em preito á verdade; como esperamos desculpa das capacidades, que, involuntariamente, esqueçamos de nomear.
É natural de Guimarães, o snr. José Arnaldo Nogueira Molarinho, residente hoje na cidade do Porto, notavel curioso de obras de prata e de marfim, e celebre artista gravador de medalhas, algumas das quaes teem sido admiradas dentro e fóra do paiz.
Nasceu tambem aqui o apreciavel rabequista, e maestro, Francisco de Sá Noronha, que, nas suas viagens, se tem feito admirar em quasi toda a Europa, recebendo honras, e condecorações de alguns monarchas.
É distincto, em equitação, e talvez se possa chamar o primeiro cavalleiro peninsular, o snr. José Martins Minotes.
São profundos jurisconsultos, e como taes conhecidos em todo o reino, os senhores doutores Bento Antonio d'Oliveira Cardoso, e Antonio Leite de Castro.
É mimoso poeta e dramaturgo, o senhor doutor Antonio d'Oliveira Cardoso.
Tem logar conhecido entre os amadores das boas Lettras, o snr. doutor Francisco de Moraes Sarmento, apreciado já, nas suas obras, pelo nosso bom e fecundo romancista, o snr. Camillo Castello Branco.
Os que hoje representam os antigos fidalgos do «Berço da Monarchia», são todos pessoas estimaveis, caritativas, e uteis. Não existe aqui, onde a nobreza é verdadeira, esses enfatuamentos condemnaveis, que só prejudicam seus donos. Na casa do mais distincto cidadão vimaranense, tem facil entrada, e bom acolhimento, toda a pessoa que lhe bate á porta por mais humilde que seja. É tambem por isto, que a nobreza vimaranense, hoje como sempre, é por todos respeitada.
Peza a louza do sepulchro sobre as cinzas de tres condes, que, por sua popularidade, e importantes cargos que exerceram, deixaram no seu paiz honrosa memoria.
Tudo que dizemos, e muito mais que, em verdade, poderiamos dizer de Guimarães, tem desafiado a critica mordaz "dos fortes espiritos" do seculo, que a chamam "terra retrógrada".
É certo, que o progresso material não tem entrado aqui, com a velocidade que fôra para desejar; mas nem por isso deixam de ser plenamente satisfeitas todas as necessidades da vida. E a cada passo vemos, para comprovar a bondade da terra, adoptarem Guimarães, por sua patria, muitos estrangeiros, que n'ella encontram estimação.
Conservam-se, é tambem certo, alguns costumes de velhas datas; mas n'estes uzos, que os modernistas condemnam, sem bem os avaliarem, ha um certo sabôr de patriotismo, que satisfaz, e deleita, aos que não trocam o que foi bom, no passado, pelo que é, muitas vezes, futil, e mau no presente.
O auctor d'estas Linhas, para que o não acoimem de suspeito, declara que nasceu na cidade do Porto.
Fugimos um pouco do principal fim do nosso «conto», chamando os leitores para o local da acção, em que elle vae continuar, nos seguintes capitulos; mas d'este desvio se podem esquivar os mais exigentes, passando em claro as noticias vimaranenses, que damos por concluidas.
V
BABEL DE SABIOS
«Alli se ajunta bando de casquilhos,A que o vulgo mordaz chama rafados;Altercam mil questões; promptos contendem,Promptos decidem no que nada entendem.
("Nicolao Tolentino de Almeida")
-- Antes queremos do de "Basto", snr.^a Anastacia Mendes, do de Basto, que é macio, e tem corpo... Diga-me... todos nós somos de segredo, e bisarros mancebos, bem sabe... ha na sua afamada locanda algum "peixe" fresco?...
-- Que o houvesse, não era para os senhores, que vão comer a melhor "carninha" do meu fumeiro... É dia de jejum, e n'esta casa, louvado Deus, ninguem "mistura"...
-- Não quer dizer isso, snr.^a Mendes... O que o Andrade pergunta é se deu entrada ha pouco, no seu estabelecimento, algum animal da especie dos "infusorios"...
-- Dos "rotarios", snr.^a Anastacia, dos rotarios... Este Abreu é da mesma força do Andrade... Não sabem classificar as differentes especies de viventes, que ha no mundo...
-- Pois o Ribeiro, nossa robicunda patrôa, é de egual ignorancia aos que censura... A fazenda, que procuravamos é da familia dos "zoophytos"...
-- "Medusas", snr.^a Anastacia, "são medusas"...
-- Não é tal, são "radiarios"...
-- São "enthelmentes"...
-- São "arachnides"...
-- São "crustaceos"...
-- São "annelides"...
-- São "molluscos"...
-- São "mammaes"...
-- São "amphibios"...
-- Só vos esqueceram tres especies, carissimos commensaes, e eximios falladores: a dos "insectos", a dos "peixes", e a das "aves"...
-- Para saber fallar é preciso saber ouvir... E quem és tu, ó mais "peixote" de todos os Peixotos do mundo?!...
-- Sou, com vossas licenças, talvez um cavallo, que é o unico animal que não sabe lisongear os principes do... talento... "Bias", um dos sete sabios da Grecia, dizia que dos animaes ferozes, o mais temivel, é um tyranno; e dos domesticos, o peior, um lisongeiro...
-- Que babel, senhora da Boa Hora, que babel!... Os "meninos" são engraçadinhos, mas eu não os entendo... Escutem todos, e "caluda"... Chegou hontem "cousa" de "arregalar" o olho... Parece, pelo menos, "varoneza"... Isso é que ella sabe fallar!... Aquella ha-de entendel-os, de certo... E que palminho de cara!... Parece mesmo a "Madanela" da procissão de passos..
-- Bravo!...
-- Bravissimo!...
-- Excellente!...
-- Soberbo!...
-- Magnifico!...
-- Surprehendente!...
-- Bom achado!...
-- Optima descoberta!...
-- Venha essa phenis!...
-- Appareça a bella!...
-- Surja a estrella polar!...
-- Dê entrada a feiticeira encantadora!...
-- Queremos ouvir a cantadeira!...
-- Venha a nós, a filha d'Eva!...
-- Aqui estou, senhores, para matar-lhes a curiosidade, e matar em mim o nôjo da vida... Deixe-me com os seus "eruditos" hospedes, snr.^a Anastacia, que eu farei por sustentar a fama dos seus elogios... Correspondo ao que de mim lhes disse a nossa "ingenua" patrôa, senhores curiosos!...
-- É arrebatadora!...
-- Explendida!...
-- Sublime!...
-- Não busquem outros synonimos, amaveis "sabios", que já consumiram palavras de mais em meu favor... Digam-me só, a que "especie de animaes" fico pertencendo agora?...
-- Á dos Anjos!...
-- Classifica, então, os anjos de animaes, senhor... não sei como deva chamar-lhe?...
-- Peixoto, o mais furioso dos seus admiradores... E como se chama... "V. Exc.^a"? Hade, ia apostar, ter algum nome de flôr, e patronimicos dos que entraram na peninsula com o exercito romano... Eu conheço a origem de todos os nobres appellidos: uns, procedem dos nomes das terras em que viveram os primeiros fidalgos, e n'ellas tiveram os seus solares; outros, de feitos assignalados na guerra; outros, finalmente, dos nomes de toda a casta de animaes, peixes, aves, e até de instrumentos... Como são os seus, minha formosa?
-- Quanto ao meu nome, acertou, que é de flôr, e das mais "espinhosas"... Appellidos... Diga-me, meu caro snr. "encyclopedista", os Bandeiras, e os Mesquitas, serão dignos da minha... "formosura"?...
-- Lê-se, em Severim de Faria, Not. de Port., Disc. III, que o illustre portuguez Gonçalo Pires Bandeira, vendo, na "batalha do Touro", que um cavalleiro castelhano levava preza a bandeira real de Portugal, investiu com elle, e lh'a tomou das mãos, e a libertou; e por este feito insigne, El-Rei D. João II, lhe deu por armas uma bandeira branca, com um leão n'ella, de prata; denotando, na bandeira, a real que libertára; e no leão, o valor e esforço que mostrára: e assim lhe deu tambem o appellido de Bandeira, com que hoje seus descendentes se nomeiam. Diz mais, o mesmo auctor, na mesma obra e disc. que quando El-Rei D. Affonso V passou á Africa, a tomar Arzilla, o acompanharam cinco irmãos da familia dos Pimenteis, naturaes de Villa Real; e como sendo entrada a cidade, os mouros se fizeram fortes na mesquita, d'onde faziam grande resistencia, sem poderem ser entrados; estes irmãos, tirando os cintos, e atados uns nos outros, os lançaram a uma ameia, e subindo por elles, levantaram uma bandeira, e por alli foi entrada a mesquita, e mortos os mouros. Por este feito tão honrado, lhes deu El-Rei D. Affonso V, por armas, em campo d'ouro, cinco cintos vermelhos, com fivelas de prata e tachões, e uma bordadura azul com sete flôres de liz; por timbre um meio mouro com uma azagaya na mão, e uma bandeira de prata; e por appellido o nome de Mesquita. São, pois, nomes bellicosos, que ficam perfeitamente bem a... uma leôa...
-- Acho-os "encarnados" de mais... A côr do "sangue", apesar das "garras" com que "V. Exc.^a" me honra, affecta-me a sensibilidade nervosa... Ficarei só com o nome do baptismo... Antes da sua "historica" dissertação, creio que estavamos na altura dos... "animaes anjos"?...
-- Distingo: existem anjos "animaes racionaes", desde que a cubiça, ou o amor, levou a nossa primeira mãe ao estado de completa nudez, pelo peccado commettido no Eden, onde vivia com o seu Adão; desde que um moço, das maiores esperanças, se precipitou no mais caudaloso rio da sua patria, levando as algibeiras carregadas de chumbo, porque a mulher a quem amava, querendo dar-lhe uma chicara de chá, teimou em laval-a primeiro, por se ter servido já d'ella para o mesmo effeito; e desde que eu, que recebi das Musas a chave de todos os seus segredos, de Minerva o cofre de todas as sciencias, e de Marte a "vazilha" da intrepidez, me declaro em ruinas d'um pavoroso affecto pela pessoa de... "V. Exc.^a"!...
-- O snr. faz-me recordar uma anecdota, que vou contar-lhe: O papa Adriano edificou um collegio em Lovaine, no qual mandou pôr a seguinte inscripção: -- Utrecht me alevantou, Lovaine me deu agua, Cesar me deu esplendor; -- um curioso accrescentou-lhe por baixo: Só Deus não fez aqui nada... Deixo a "moralidade", á perspicacia do snr... Peixoto... Pareceu-me ter-lhe ouvido que assim se appellidava?
-- Para em tudo lhe dar prazer, snr.^a... das anecdotas... Sem embargo do seu espirituoso apologo, minha bella, continuo a deixar sangrar a veia, dando-lhe parte, que os primeiros espelhos foram de metal; que Moysés faz d'elles menção; e que Cicero attribue o invento a Esculapio, deus da medicina. Foi no tempo de Pompeu, que se fabricaram em Roma os primeiros espelhos de prata. Plinio falla d'uma pedra brilhante, provavelmente o talco, susceptivel de dividir-se em laminas que, postas sobre um plano metallico, reflectem perfeitamente os objectos. Os primeiros espelhos de vidro appareceram na Europa no fim das cruzadas: Veneza, que primeiro soube fabrical-os, viu enriquecer os seus negociantes, e exportou estas manufacturas preciosas, para todos os estados do mundo, onde hoje tanto abundam... Só não tenho agora aqui, á mão, um d'esses primores da invenção humana!... Queria mostrar-lhe o quanto lhe fez realçar a peregrina formosura, a satyra com que tentou emmudecer-me, oh imperatriz das bellas!...
-- "Copia" admiravelmente de "memoria", snr. Peixoto... Sinto dizer-lhe que, para "v. exc.^a", só poderá servir de "espelho" o lago em que "Narcizo" se namorava da sua esbelta figura...
-- Ou o rio em que se reflectia o sabujo, que trocou a preza certa, que levava nos dentes, pela sombra que vira na corrente... Póde fallar-me com desassombro, que eu tudo sei affrontar pelo amor da mulher, que reune, á seducção material, a faisca do genio, com que me apraz emparelhar...
-- É "nimiamente modesto", o snr. Peixoto... Contou-me a origem dos espelhos, contar-lhe-hei a origem dos "orgãos"... São uns instrumentos de "vento", compostos de "folles", "teclado", e grande numero de "canudos"... Querem os "chins", que a invenção de tal instrumento seja devida ao seu imperador "Hoang-Ti", que existio, antes de Jesus Christo, 2:601 annos... Se estivessemos no seculo 12.º, atrevia-me a chamar a "v. exc.^a" um "magnifico órgão"...
-- E porque não, n'este seculo das luzes, e de todos os "instrumentos" possiveis?...
-- Porque desde o seculo 13.º usam-se orgãos nas egrejas, e os logares sagrados não pódem agradar aos... "materialistas"...
-- Não me assenta bem o nome, minha arisca formosura, porque o materialista não admitte no universo ente algum espiritual; e eu estou a reconhecel-o em Guimarães, aqui, n'este logar em que discorremos, na pessoa de minha... adversaria...
-- Tambem é "diccionarista"?... A definição que acaba de fazer parece-me "textualmente" lida n'um dos modernos diccionarios...
-- Serei tudo que quizer chamar-me, menos "plagiario". São exclusivamente minhas as ideias que expendo. Em mim realisa-se o phenomeno da sciencia innata. Não roubo alheios pensamentos, antes deixo que me roubem descaradamente as minhas famosas theorias sobre...
-- Sobre "principios elementares de mathematica", talvez, em que és fortissimo... Ora, acaba com a sécca, que nós tambem sômos gente, e sabemos que, duas vezes cinco, sommam dez...
-- Deixem-me, apenas, concluir por fazer um convite a esta feiticeira... Quer assistir a um baile de costumes, que hoje se dá na casa do "Arco"?
-- Como ha-de lograr introduzir-me lá?...
-- Acompanhando-a, e dando-lhe uma das senhas, que servem para esse fim; e como só se tiram as "caraças" na occasião da ceia, querendo conservar o incognito, retira-se antes d'ella... Serve-lhe?
-- Talvez aceite...
-- N'aquella, tão tolerante quanto illustre casa, consegues tu realisar todos os teus intentos... Se fosse em "Villa Pouca"...
-- O Arco é mais popular...
-- Será; mas Villa Pouca é mais escrupulosa... O que devéras nos espanta, é que tu não peças, "á tua Convidada", qualquer remuneração pelo favor que intentas fazer-lhe...
-- Eu não costumo sustentar "assedio" por muito tempo; costumo, sim, tomar as praças "d'assalto"...
E, como para provar a sua fanfarrice quiz o fallador espadachim abraçar a joven mulher, que lhe auguara a fôfa verbosidade; mas teve de moderar os malcriados impetos, ao simples e carregado aspecto da que assim queria ultrajar.
O seu tentamen, foi presenceado por um novo personagem, que, n'aquelle momento, déra alli entrada, e que se lhe dirigiu n'estes termos:
-- Se quizer, "senhor atrevido", eu substituo esta senhora, para a realisação da sua vontade; e prometto-lhe que, o "abraço" entre nós, ha-de ser dos mais apertados... Desculpem os restantes cavalheiros, que não tomaram parte no desejo do insulto, a minha linguagem com o que d'elle se queria fazer auctor...
A mulher assim inesperadamente defendida, exclamou, no auge da surpreza: -- O snr. João?!....
-- De Lencastre, accrescentarei, para que estes senhores fiquem sabendo que sou "filho d'alguem"...
A donzella Rosa, porque era ella, como o leitor terá adivinhado, após uma lucta instantanea, de que ella triumphou para o seu intento, disse, sacudidamente, a João Vidal, ou de Lencastre:
-- Prohibo-lhe, snr., que toque n'aquelle cavalheiro!... É... o meu amante...
-- Seu amante!!... Foi, esta ultima exclamação, sahida simultanea e admirativamente da bocca de todos os circumstantes; pronunciando-a, com indiscriptivel amargura, aquelle que fôra a causa de ella ter apenas brincado nos labios da donzella.
Depois de um silencio d'alguns instantes, pediu João de Lencastre, aos que alli estavam reunidos, com tão persuasiva eloquencia e vehementedor que o deixassem a sós com a donzella, que foi immediatamente por todos attendido.
O que disseram, e como se encontraram n'uma casa de libertinagem estes dous heroes do nosso «Conto», a seu tempo será explicado.
VI
UM BAILE EM COSTUMES
«David dançou diante da arca da alliança, e nos primeiros tempos da Egreja havia uma dança, que era a demonstração exterior da dependencia das creaturas, e uma expressão primitiva de reconhecimento.»
«O sabio e sisudo Socrates era summamente apaixonado pelas danças, que lhe ensinára Aspasia.»
«O grave e carrancudo Catão, aos 60 annos, tomou mestre de dança, para poder apparecer convenientemente nos bailes.»
(O PANORAMA DE 1837)
Abrira a nobilissima casa do "Arco" os seus salões ao publico: dizemos -- "ao publico" -- , porque, o cavalheiro titular seu dono, era prodigo nos seus convites, como em todas as suas nobres acções. Dentro do seu palacete, nenhum dos seus convidados gosava de superioridade: todos eram iguaes, pelo tracto que recebiam; e se alguem, estranho á terra e ás pessoas alli reunidas, houvesse de notar algum acanhamento, isto é, menos liberdade em todas as suas acções, apontaria o distincto fidalgo que recebia. Tal foi sempre o especial condão de toda aquella sympathica familia, para pôrem á vontade os seus convidados.
São tres os salões de baile, todos ao correr, havendo de cada lado do ultimo d'elles, e ao mesmo nivel, um lindo terraço ajardinado: para o do meio, dá entrada um soberbo salão de espera, com duas varandas, sobre o arco, que olham para a rua, assim como os terraços. Ao salão de entrada, e em sentido opposto aos do baile, seguem-se outros, parecendo todos, olhando-se do ultimo d'elles para os do baile, um -- T. -- De sorte que, a pessoa collocada no salão do meio defronte da porta da entrada, vê todos os salões e os terraços. A entrada do palacete é por uma larga e bem construida escadaria de pedra.
N'este baile, onde se vão dar algumas scenas do nosso «Conto», foram permittidas as "caraças", tendo-se distribuido bilhetes, para os que assim quizessem conservar o incognito, por algum tempo, e animar a reunião com freneticas danças, e brinquedos innocentes.
Desde a escada até ao ultimo salão, como nos terraços que, pela profusão de luzes, se não sentia a falta do dia.
O mais exigente dos convidados, deparava, no seu logar, com os objectos que lá devessem apparecer.
Antes de affluirem os encaretados, já se viam, no principal salão, as nobres senhoras intimas da casa; o respeitavel senhor d'ella; Sebastião da Mesquita; Arthur Soares; Leopoldo, e seu irmão João de Lencastre. Estes nossos personagens foram alli hospedes, como parentes.
Completo o ajuntamento, era bello de vêr-se.
Aqui, um grupo de senhoras vestidas de camponezas dos arrabaldes de Guimarães, com as saias de muita roda, os capotilhos de fina baêta encarnada com as pontas crusadas no peito, e atadas nas costas, os seus grossos cordões, e immensas arrecadas de ouro, -- offereciam confeitos, e raminhos de violetas.
Alli, os descuidados e jovens lavradores, com as suas fardetas azues de botões amarellos, camizas de linho bordado, e o inseparavel varapau, que lhes servia de encosto para contemplarem as suas namoradas, tendo cada um o braço esquerdo estendido sobre o pau, e a perna direita crusada sobre a esquerda.
Além, a irrequieta vivandeira, acompanhada de seu militar; o sevéro magistrado assestando a luneta; o antigo fidalgo portuguez de rabicho empoado, e de casaca e calções de setim bordado; matrônas respeitaveis, e jovens senhoras vestidas á época, no melhor gôsto, ostentando a antiga e bem merecida fama das formosas vimaranenses, e mostrando, pelas joias de subido preço, que as adornavam, o esplendor e nobreza de suas familias.
Rompeu o baile por uma scena campestre das que no Minho, a mais poetica provincia de Portugal, se notam com frequencia, e se apreciam sempre.
Dos grupos camponezes foi composta uma "tocata", de rebecas, clarinetes e banzas; havendo um cantador, e uma cantadeira que, depois d'outros improvisos do seu "desafio", concluiram assim:
«Foi o velho rei David,o primeiro dançador;vamos nós tambem dançar,cada um com o seu amor.«Fazes mal, linda Maria,convidar em lar alheio;do temôr e d'altiveza virtude jaz no meio.«Não te pedi o conselho,e vem tarde a correcção;quem á festa convidou,agradece a minha acção.«O fidalgo que dá festa,incapaz é de ralhar;mas o sabel-o não deve,ser motivo p'ra abusar.«Digam todos que me ouvem,se eu me quiz entremetter;seja a resposta o signal,para a gente s'entreter...»
E começou o baile, vivo, animado, delirante.
Nos pequenos intervallos do bulicio dançante, e em quanto eram servidos os convidados, tinham logar as "intrigas" ou, sem cheiro de gallicismo, as mystificações.
A "vivandeira", sempre pelo braço do "soldado", fôra a que mais valente se tornara em phrases de mystificar. Dirigindo-se a todos os grupos, simultaneamente, e procurando dar á voz esse tom desconhecido que, nos bailes d'esta ordem, faz parecer igual o metal de todas as vozes, conseguiu, em pouco tempo, chamar sobre si todas as attenções. Além da agudeza e propriedade dos seus dizeres, concorreram tambem, para um tal resultado, a notavel elegancia da vivandeira, e o porte pretencioso e audaz do militar seu companheiro.
A Leopoldo, fallou a vivandeira assim:
-- Porque não está aqui tua mulher?...
-- Porque está n'outra parte... Tu querias conhecêl-a?
-- Conheço-a, e conheço-te... Ella é uma creatura angelica, e tu és um marido ao qual assenta bem o adagio portuguez, que diz: «Horta sem agua, casa sem telhado, "marido sem cuidado, de graça é caro"...»
E finalisando com uma risadinha aquella allusão, foi dizer a Arthur Soares:
-- Conheço a origem da sua habitual tristeza, cavalheiro... Pensa... "na dôr de Maria"...
-- E não lhe parece motivo de grave meditação o soffrimento da Virgem?...
-- Ha dôres muito semelhantes, que não merecem ao cavalheiro o menor cuidado...
-- Porque talvez as desconheça...
-- Não: é porque se não póde dividir "o ""sentimento forte"...
-- E, quando seja assim, o culpado sou eu?...
-- Não é culpado, mas é "causa de culpas"... Quando as conhecer, saiba comprehendel-as e desculpal-as... Adeus!
Prepassou rapidamente por junto de João de Lencastre, e disse-lhe:
-- A palavra do homem de bem é sagrada: conto com o seu silencio...
Em seguida foi collocar-se, sempre pelo braço do soldado, em frente de uma distincta senhora, á qual dirigiu a palavra n'estes termos:
-- Por este meu companheiro, fui rogada, para dizer a v. exc.^a uma impertinencia: desejava "pagar-lhe o beneficio" de me trazer a este baile... Dá licença que eu falle, minha senhora?...
-- Dizia minha avó, que "triste da casa, onde a gallinha canta, e o gallo calla"... Mas como é para ser "pago" um favor, venha de lá a tua impertinencia...
-- Digo, fielmente, as palavras que me ensinaram: «"Queimou-se a fôrca, cahiu o tyranno"».
-- Pena foi que elle cahisse, e ella se queimasse, antes de ter lá subido o atrevido que te ensinou...
-- Eu, minha senhora, não tomo a mais pequena parte...
-- Acredito, dei-te licença, e não te quero mal. Aconselho-te, porém, que te desquites d'esse companheiro: os da sua laia, substituiram a "fôrca" pelo "punhal", que é mais leve, "traiçoeiro", e menos "apparatoso"...
O "careta" vestido de magistrado, que ouvira o dialogo precedente, disse ao "fidalgo antigo", que estava ao seu lado:
-- Conheces aquella senhora, que respondeu á vivandeira com tanta vivacidade?
-- Não é a viuva irmã do dono da casa?
-- É. Que juizo fórmas da sua alma?
-- Parece que não desgostaria de vêr continuar a "pernear" os "malhados"...
-- Como te enganas!... É a alma mais completa e mais sublime, que sahiu das mãos do Creador. As suas acções, são uma perfeita antithese das suas palavras...
A vivandeira, livre já do peso sob que parecia vergar com a commissão do companheiro, procurava alguem com anciedade. Percorridos todos os salões, sem encontrar quem desejava, foi a um dos terraços, onde Sebastião da Mesquita passeava, parecendo alheio á festa. A "vivandeira", mal que o vira, despediu bruscamente o soldado, e dirigiu-se ao velho fidalgo:
-- A tristeza de que v. exc.^a está possuido, procede do conhecimento da "fuga inesperada" de uma donzella, companheira de infancia de sua exc.^ma filha, não é verdade?...
-- Não conheço quem me interroga, nem sei quaes sejam os direitos que julga ter para me interrogar...
-- Queria... desejava dar cumprimento a uma vontade e pedido da pessoa a que me refiro... Se V. Exc.^a désse licença...
-- Tirando primeiro esse panno que lhe cobre a cara, póde fallar.
-- É que... para o que tenho a dizer e a fazer, posso conservar o meu incognito... É só pedir, em nome "d'ella", perdão a V. Exc.^a se algum desgosto lhe causou com o seu procedimento, e beijar-lhe a respeitavel e bemfeitora mão...
-- João, Arthur, meus amigos, venham cá!... É preciso obrigar esta mulher a descobrir a cara...
-- Senhor!... Uma tal violencia, sem auctorisação do cavalheiro dono da casa...
-- Quero-o eu!...
A estas vozes, demasiado vivas, acudiu gente das salas, que repentinamente conheceu a origem da altercação.
A senhora, que déra licença á vivandeira para lhe dizer "uma impertinência", foi a que primeiro a protegeu:
-- Estranho que o primo Sebastião, um consummado fidalgo e cavalheiro, tentasse fazer violencia a uma fraca mulher... Esta pequena, senhora ou burgueza, fica, desde este momento, considerada como se fôra minha filha!... Conserva o teu incognito, que ninguem agora se atreverá a descobril-o...
-- Se V. Exc.^a quer, snr.^a condessa, eu levo comigo essa menina para o convento...
-- Obrigado, Eulalinha, pelo teu bom desejo. És uma criança tão formosa do corpo como da alma: Deus ha de proteger-te.
-- Mas, minha boa irmã, V. Exc.^a bem sabe que devemos ao primo e snr. Sebastião da Mesquita, toda e qualquer satisfação que elle peça; não só pela qualidade da pessoa que é, como por ser nosso parente, e meu hospede... Talvez que essa creatura o offendesse, e...
-- Um homem, como nosso primo, nunca póde dar-se por offendido pelo que lhe faça, ou diga, uma infeliz mulher... É a primeira vez, que ouço fazer distincção ao meu excellente irmão das "qualidades" dos seus convidados... V. Exc.^a não se considerou, para assim fallar, o dono d'esta casa...
-- De certo que não, nem podia, estando V. Exc.^a aqui.
-- N'esse caso, eu já dei as minhas ordens.
-- V. Exc.^a minha respeitavel thia e senhora, concede-me a honra de ser, no resto da noite, o cavalheiro d'essa dama?
-- Agradeço-te a boa e fidalga intenção, meu presado sobrinho e snr. de Pindella. Has de vir a ser competentissimo para todas as nobres acções, assim o espero em Deus; mas és ainda muito novo para um protector.
-- E para mim, prima condessa, não serão estas cans fiança sufficiente para receber a honra, que lhe pediu seu illustre sobrinho?
-- A V. Exc.^a, meu presado primo e snr. de Villa Pouca, que reconheço habil para tudo que seja nobremente arrojado e distincto, peço até a especial graça de conduzir, quando ella quizer, esta minha protegida á sua habitação...
-- Nobres senhoras, e amaveis cavalheiros!... Penhorada em extremo pelos favores e attenções, que me dispensam, não posso deixar, comtudo, de pedir-lhes, que reformem completamente qualquer juizo menos favoravel, concebido pelo procedimento do snr. Sebastião da Mesquita... Só quem o não conheça, o poderá considerar capaz de uma acção menos nobre... Aquelle respeitavel ancião, que nem talvez ouvisse do que VV. Exc.^as o accusaram, está soffrendo intimas dores, como paga da sua generosa bondade para comigo... Adoptou-me, e tratou-me como sua filha, e eu fugi repentinamente da sua vigilancia e carinho!... Procurei vir aqui, a este baile, só para vêr aquelle venerando velho, e beijar-lhe a bemfeitora mão... Queria fazel-o sem me dar a conhecer, e foi a minha teimosia em conservar o incognito, que o fez alvo de injustiças, que não merece!... De joelhos, e com a cara descoberta, lhe pede perdão de tudo esta infeliz, snr. Sebastião da Mesquita!...
-- Rosa!!... Como póde conservar os sentimentos que acaba de manifestar, a mulher que... que eu não conheço!...
E Sebastião da Mesquita, assim fallando, virou as costas á donzella, retirando-se vagarosamente.
O baile continuou ainda por muito tempo, um pouco frio após estas scenas, e, para o fim, com a mesma animação do comêço.
As dôres alheias, não tolhem as festas dos felizes.
VII
TORMENTOS INTIMOS
«Correu-me a vida outr'ora delirante,Tive faceis amores, ledas glorias,Julguei-me um dia amado e outro amante,Sonhei promptas victorias,E vi, em limpo céu formoso e puro,Brilhante erguer-se o vulto do futuro.Tumulto, agitação, rumor, bulicioCompoz o meu viver. -- Mas eis que um diaParo e vejo o tremendo precipicio --A vida, que vivia,Era vida ficticia e descorada...Um pouco de sussurro -- e ao cabo... o nada!»
(SILVA LEAL JUNIOR. -- PRIMAVERA.)
Logo que João de Lencastre chegou á falla com Sebastião da Mesquita, depois de lhe dar a rasão por que Arthur e Leopoldo o acompanhavam, e de lhe dar conta da entrega do dinheiro e onde ficara D. Maria da Gloria, occultando-lhe a parte que dizia respeito a Arthur Soares, porque este muito lhe rogara que assim procedesse, -- noticiou-lhe Sebastião da Mesquita, com intimo pesar e viva inquietação, a fuga precipitada da donzella Rosa, encarregando-o de descubrir a sua paragem, e de saber os motivos que a determinaram a deixar a casa paterna, lançando sobre si indelevel estigma.
Não ficou o antigo escudeiro menos perturbado com a noticia, do que se mostrava o velho fidalgo ao dar-lh'a: preparava-se para ir procurar a donzella por toda a parte, quando um dos constantes visitadores da casa do Arco, muito fallador, e do numero de sujeitos que facilmente se relacionam com toda a gente que os quer ouvir, lhe deu, como novidade importante, a da chegada á terra de uma "rapariga de truz", que parecia ser de "facil accesso", pela pousada que escolhera, descrêvendo-a com toda a minuciosidade.
Agradeceu João a Deus, a veia falladora d'aquelle homem, que lhe poupára muitas fadigas; e não o enganou a sua esperança, porque era effectivamente Rosa a inculcada mulher, que elle foi encontrar na casa, e na occasiâo, descripta no capitulo -- «Babel de Sabios.»
Depois que João conseguira fazer retirar os "petisqueiros" adoradores de Rosa, e ficara só com a donzella, empregára, para a obrigar a fallar, persuasivos e sentimentaes discursos, orvalhados, por mais d'uma vez, com lagrimas de mal escondida affeição. Foi tão eloquentemente irresistivel, que a donzella confessou-lhe tudo: disse-lhe, que fugira do seu lar, e abandonára a protecção e carinho dos nobres fidalgos seus paes adoptivos, porque não podéra por mais tempo ter occulto no peito o seu affecto por Arthur Soares, affecto que d'ella se apoderára por tal arte, que só pela morte ou pela doudice podia terminar. Que sabia a existencia de um amor, igualmente invencivel, entre Arthur Soares e D. Maria da Gloria, senhora que ella amava como irmã; e que, para não prejudicar com algum irreflectido procedimento seu estes amores, resolvera fugir, e dar-se como "perdida", embora tambem estivesse resoluta na sustentação da sua virtude, mesmo no meio dos mais arriscados perigos.
João Vidal, ou de Lencastre, que a escutára com a maior attenção, depois de um longo silencio, significativo de intimas dores, disse á donzella, que não podendo deixar de ser já um facto conhecido do publico, a sua fuga e paragem n'um local de descredito, inuteis se tornavam todas as reflexões tendentes á demonstração do êrro de um tal passo; mas que elle via um meio seguro, e menos arriscado, de tudo se fazer como a donzella queria. Que pelo casamento d'ella Rosa, ficavam igualmente livres os amores de sua irmã adoptiva, não se expondo a donzella á lucta terrivel que começara; lucta que, mesmo victoriosa que d'ella sahisse, lhe havia de trazer necessariamente a perca da sua boa reputação: que elle possuia um nome, e uma pequena fortuna, e que, se podéssem esquecer os 40 annos da sua idade, no seu coração havia logar para a entrada de um sentimento sério.
Rosa, respondeu-lhe commovida, que não era digna de semelhante honra; que apreciava devidamente o seu brioso e caritativo proceder, e que lhe devia por elle o nome de irmã, com a santa amisade de um tal titulo.
Foram baldados todos os esforços, que João empregára para demover a donzella do seu proposito, e combinaram o guardar-se absoluto segredo ácerca do que entre elles se déra.
No dia seguinte ao do baile, alugou João de Lencastre uma casa, situada defronte d'aquella a que a donzella regressara; e despediu-se de Sebastião da Mesquita, dizendo-lhe que acompanhava Arthur Soares ás "linhas" do Porto, onde eram precisos braços leaes para a sustentação da causa do povo; sendo-lhe facil o convencer Arthur de que partisse sem elle, com promessa de lá ir ter, logo que podésse fazel-o; e recolheu-se secretamente á morada que alugára, para de lá espiar as acções de Rosa.
Arthur Soares, caminho do Porto, levava enluctado o coração. Sabia que era amado por D. Maria da Gloria; já se havia acostumado áquelle affecto, o unico da sua existencia; mas não podia desterrar de si o convencimento de que a fidalga lhe não podia ser dada por esposa. Era certa, e bem manifesta, a estima que lhe dava seu padrinho; mas essa estima, considerava elle mais como uma protecção das que usam conceder os nobres senhores aos que d'ella carecem, do que amisade verdadeira, que iguala e estreita os homens por laços fraternaes: possuia muitas provas do desapparecimento de affeições iguaes á que lhe concedia o fidalgo, logo que, pelo considerado e protegido, fosse ferido o orgulho de raça do protector. Pedia, pois, a Deus, que a sorte da guerra lhe désse occasião de elevar-se até poder chegar a D. Maria da Gloria, ou de fazel-o descer ao esquecimento eterno, com a gloria dos bravos por mortalha.
Leopoldo, cuja presença, na illustre casa da hospedagem commum, fôra tolerada por Sebastião da Mesquita em deferencia ás conveniencias sociaes, regressava tambem ao exercito da rainha, o grosso do qual se achava então em Coimbra, commandado pela primeira espada portugueza do nosso tempo.
Podia chamar-se um cadaver ambulante, o fidalgo militar, tal era o sombrio e estragado aspecto da sua pessoa. O soffrimento d'este desgraçado, que amava sem esperança, e que odiava por ciumes, era um severo castigo da Providencia. Caminhava para onde o chamava o dever, movido mais por um resto de brios, do que por empenho, e vontade, de servir a causa a que se devotára, depois de ter renegado a popular: n'elle só havia bem fixo, o sentimento do seu tormento intimo.
Sebastião da Mesquita, chorava com lagrimas paternaes a má sorte a que se entregára a donzella Rosa. Arrependera-se do seu arrebatamento no baile, desejára poder remedial-o, receber nos braços a donzella, perdoar-lhe a primeira leviandade, acolhel-a de novo, talvez ainda innocente e pura, e estorvar assim a quéda infallivel, e horrenda, da que elle considerára sempre como sua filha. Mas era já tarde; e o seu natural orgulho não lhe consentia desmentir, com um procedimento contradictorio, o severo porte de que usara publicamente.
Este facto, a par da violenta dôr que lhe entorpecera as forças physicas, fizera pensar Sebastião da Mesquita, com muita gravidade, no futuro de sua filha Maria da Gloria.
Por maior que seja a confiança que se deposite no caracter e virtudes de uma filha, quando vemos no caminho da perdição outra mulher, que nos é cara, lembra-nos logo a possibilidade de um desvio, e queremos remedial-o com prevenções, algumas vezes, e não poucas, com bem peiores resultados do que haveria no imaginado mal, que tentáramos evitar.
O velho fidalgo, depois de ter conferenciado com varios cavalheiros do berço da monarchia, onde se deteve pelo prostramento em que estava, escreveu a D. Maria da Gloria uma carta d'este theor:
«"Minha muito presada Maria":
«O meu paternal carinho, leva-me a pensar que seja tempo de escolher-te um esposo digno de ti, que possa, na minha falta, proteger-te socialmente contra as ciladas sempre preparadas para as donzellas do teu merecimento, e do teu dote. Aqui, n'esta antiga e gloriosa terra de Guimarães, presumo eu que existe o que nos convém. Convido-te, pois, a que venhas quanto antes ter comigo, para avaliares por ti a competencia da minha escolha.
«Ainda hoje recebi carta da tua santa e respeitavel mãe, que é sempre o bom anjo do nosso lar. De certo tambem sabes, que ella está de boa saude, por que não haverá dia em que te não escreva, como á pessoa que ella mais ama.
«Recebe a benção, e uma saudade, do teu extremoso pae,
"Sebastião."»
D. Maria da Gloria, embebida nos fagueiros sonhos de um futuro risonho, a que aspirava pelo seu amor a Arthur Soares, e entretida a desvanecer, com expansivas provas da sua amisade e bom juiso, os dissabores da sua discipula Anna, que todos eram a quasi certeza de não ser já amada por Leopoldo, nem por sombras podia prever a fatalidade de que estava ameaçada, com aquella ordem paterna.
O padre Alvaro, continuava a sua vida de oração e penitencia. Pastor exemplar, possuia o acrisolado amor das suas ovelhas, porque sabia praticar, para com todos, a caridade que aprendêra de Christo. Ainda assim, soffria constantemente, e muito. Havia uma campa na sua parochial egreja, ao pé da qual elle esquecia o filho idolatrado, as suas penitencias, o seu evangelico proceder, para tão sómente se recordar de que fôra peccador.
Feliz, quanto se póde ser n'este patrimonio de Eva, de todos os personagens do nosso «Conto», só era a respeitavel e bondosa matrona, D. Isabel de Abendanho, que tinha fechada a sua existencia em aldeia pacifica, e resumidas as suas ambições na direcção do seu casal, no respeito e amisade ao esposo, e no elevado amor a sua filha.
VIII
A MULHER CAHIDA
«A justiça de Deus lhe infundira no coração abundancia de remorsos, e a dos homens lhe entornava sobre a fronte amplo vaso farto de ignominia.»
("A. H." -- Fragmento de um livro inedito.)
Por mais que os homens doutamente célebres de todos os seculos tenham querido collocar essa formosa e apreciavel parte do genero humano -- a mulher -- na altura que lhe é devida, nunca a fonte sublime do amor, a mãe e o apoio da meninice, o esteio da vida, deixou de ser conduzida por nós a todos os sacrificios: raro é o homem que se aproxima da mulher sem que a macule; e feita escrava de seus caprichos, é a deshonra e o villipendio, que lhe dá em premio!
A mulher, na sua juventude, só ambiciona o nosso amor; alinda-se para agradar-nos, e nós damos-lhe, em vez do que nos pede, a paixão material que a enlameia: consome-se, para conservar-nos, em sua idade adulta, porque nos alimenta a seus peitos, arruinando a sua belleza; e nós córamos de um pejo infame, se a maternidade não teve logar dentro de umas certas condições sociaes, que nos imprimem a "legitimidade": levanta as mãos ao céu na velhice, porque a mulher é naturalmente religiosa, dedica os ultimos annos de sua vida a orar por seus paes, por seus filhos, por todos os desvalidos; e nós alcunhamol-a de impostôra e de bruxa!
Existiram sempre "philosophos", escassos de comprehensão, e mal avindos com a mulher, que attribuem a esta preciosa parte da nossa existencia o vicio do sensualismo, que nos provoca. Covarde mentira!
A perversão da moral, e o desenfreamento das vis paixões, tem sido, em todos os tempos, o resultado forçoso de infinitas circumstancias, em que a mulher não toma parte.
A corrupção da Grecia, como a romana sua filha, teve origem na philosophia de Epicuro, nos mancebos que a seguiam, e não nas vilipendiadas matrônas d'aquellas nações.
Antes das torpezas de Messalina, já Cesar tinha manchado o seu thálamo imperial.
Seriam as mulheres culpadas nos crimes, que abrazaram as duas cidades nefandas, de que nos falla o Génesis?!
Corteja-se a formosura da mulher; empregam-se aleives para seduzir a incauta; fazem-se promessas mentirosas; servem todas as villezas ao nosso proposito: um, é o dilecto de seus carinhos, e consegue o seu amor; aconselha-lhe a fuga da casa paterna; cerca-a de algumas commodidades passageiras; sacia-se; desampara-a; precipita-a na profundeza da desventura; deixa-a na miseria, e no desabrigo de toda a consolação humana!
A nudez e a fome, tomam então logar juncto ao umbral solitario da infeliz!... Que lhe resta?!... Vender-se!... Pedir ao primeiro que passa, que lhe estampe na fronte o ferrete do aviltamento pelo óbulo da infamia!...
Depois, as dissoluções, a velhice prematura, a miseria e a doença!...
Depois, a enxerga da caridade!...
Depois, a valla commum do cemiterio!...
Depois, nem uma só lagrima que lhe aqueça as cinzas; nem uma só flôr no seu jazigo; ninguem que ore por ella a Deus!...
E o "elegante seductor"?...
Passou a fazer novas "conquistas"; gastou o melhor do seu vigor e da sua fortuna, em atirar com muitas irmãs na desgraça ao lado da sua primeira victima; pensou mais tarde em casar-se; escolheu "convenientemente a esposa", fez-lhe a "mercê" do seu nome e, para vingar-se de uma "affronta", que "não podia" ter o seu perdão, assassinou a mulher adultera!...............................................................
Rosa, luctava com animo viril contra as tentações de todo o genero de que se via rodeada no bordel a que voluntariamente se acolhêra. Eram-lhe, porém, já muito pesadas essas luctas desiguaes. Mais ainda que os atrevimentos e ciladas dos vadios frequentadores d'aquella casa, causavam asco á virtuosa donzella as suggestões das infelizes do seu mesmo sexo, pervertidas até ao extremo de tentarem chamar ao seu grémio as que não tinham mácula.
Principiava a entrar na alma de Rosa o arrependimento do passo precipitado a que se abalançara. Conhecêra, ainda que tarde, a borda do precipicio em que estava, receiava pelas suas forças, e tremia de não saber como fugir-lhe.
Uma noite, foi a donzella mais atacada pelo terror: pareceu-lhe, a deshoras, ouvir estranhos rumores, fóra do seu pequeno e pessimo quarto. A pouca segurança da porta, e da fragil fechadura, augmentava o receio da donzella: apromptou luz, e vestiu-se.
O rumor aproximou-se, a porta foi violentada, e Rosa agarrada fortemente pelos pulsos:
-- Não esperava esta desfórra do seu "militar", amavel "vivandeira"?!...
-- Deixe-me... largue-me... acudam!...
-- Não espante as pulgas, menina... "Esta boa terra dorme toda ás nove horas", e já passa da meia noite... Só poderia esperar beneficio da minha generosidade, e eu, confesso, não tenho o fraco de generoso...
-- Não realisará a malvadez que intenta, em quanto eu tiver um sôpro de vida...
-- É o que vamos a vêr...
E o malvado homem empregava todas as suas forças, em dobrar a mulher, que não podéra seduzir.
Rosa, debatia-se com toda a furia e, mais que outra qualquer, resistira por muito tempo.
Quando estava proxima a matar-se ou a ser preza do infame, quebrou-se repentinamente um vidro da janella, e varanda, que dava para a rua, abriu-se a porta d'ella, e penetrou no quarto um homem, possesso da furia do leão, que descarregou sobre a cabeça do aggressor uma fortissima pancada, com o castão de um chicote de força, estendendo-o logo sem accordo de si.
-- O snr. João de Lencastre!!... Oh, leve-me d'aqui!... Salve- me!... A mais forte das mulheres, cercada d'estas infamias, é impotente e fraca!... Agora o conheço!... Mas... como appareceu tanto a proposito?!...
-- Habito aquella casa, alli defronte, e estava sempre de vigia, e preparado com uma taboa forte e larga, para lançar da minha janella á varanda d'esta casa, quando, como agora succedeu, lhe fosse necessaria a protecção de... seu irmão, senhora...
-- Que nobre alma a sua, João!... Vamos... deixemos este inferno, e em sua casa combinaremos o que deva fazer-se...
IX
O PERIGO DAS CARTAS
«......e bem se manifesta,Que são grandes as cousas, e excellentes,Que o mundo encobre aos homens imprudentes.
("Camões" -- LUSÍADAS.)
D. Anna e D. Maria da Gloria, passavam as horas em longos desafógos e amigaveis confidencias, suavisando assim as saudades e as mágoas que soffriam. Nas suas respectivas posições, não era aquella a epocha mais infeliz da vida das duas amigas. Quando podêmos depositar em peito amigo o que nos impressiona, quasi desapparece o pesar que sentimos, pelo allivio que nos dá a certeza da partilha na dôr.
Estava, porém, marcado pelo destino, que poucos deviam ser os momentos de quietação, para as heroinas do nosso «Conto».
A carta que Sebastião da Mesquita escrevera á filha, viera terminar o gôso das confidencias, e tornal-o em prantos amargos. Para D. Maria da Gloria, o ser forçada a casar-se com outro homem, que não fosse Arthur Soares, era peior do que a morte. Sabia-o D. Anna, que tomou uma deliberação arrojada, para salvar a sua amiga, sem lh'a communicar. Mandou um expresso a Arthur Soares, com uma carta d'este theor:
«"Meu presado irmão adoptivo":
«Confiada no seu cavalheirismo, de que já possuo bastantes provas, ouso pedir-lhe que venha a esta sua casa, logo após a recepção d'esta minha carta. Leopoldo está ausente, como sabe, e "nós" esperamos o snr. Arthur "com a maior anciedade".
"Anna".»
Isto feito, tratou de convencer a sua mestra, e amiga, de que devia accusar ao pae a recepção da carta, e dizer-lhe que estava doente, e que cumpriria as suas ordens, logo que o seu estado de saude lhe permittisse fazel-o; porque assim ganhava tempo, que podia muito bem mudar a face dos acontecimentos. D. Maria da Gloria, inhabil para o raciocinio, sujeitou-se a tudo quanto lhe ensinuou a sua amiga.
Por este tempo, marchava sobre as linhas do Porto, o general em chefe das tropas da rainha, com o grosso do seu exercito.
As tropas da junta provisoria do governo supremo do reino, haviam soffrido desastres, sendo, o mais notavel, a "incomprehensivel desgraça" de Torres Vedras; mas as activas e energicas providencias dos homens do governo, juntas á dedicação popular pela sua causa, tudo remediavam como por encanto. Em vez de diminuir, augmentava o numero de soldados, por cada batalha que se perdia!
E apesar dos desastres, do grande dispendio com as reorganisações do exercito, e de só pagarem tributos moderados os povos sujeitos ao poder da junta, poude esta exemplar quanto energica governação decretar, entre outras medidas de bom senso e muito alcance, e de algumas pensões avultadas, "que as mulheres dos officiaes prisioneiros na batalha de Torres Vedras recebessem uma prestação mensal de 12$000 reis, e as das praças de pret 60 reis diarios, em quanto seus maridos estivessem em poder do inimigo".
O quartel general do real exercito estava em Oliveira de Azemeis: foi escolhido um official para commandar uma força, que fosse em conhecimento junto das linhas do Porto, e recahiu essa escolha em Leopoldo. Ao saber-se da aproximação de forças inimigas, tocou a rebate dentro dos muros da cidade invicta, e as linhas foram immediatamente guarnecidas em fórma.
Arthur Soares, commandava uma companhia de voluntarios da guarnição, que occupava, casualmente, o lado da estrada de Lisboa. Conhecida a pequenez da força inimiga, os insoffridos populares saltaram as linhas, e foram atacal-a. Arthur quiz, mas não o conseguiu, conter os do seu commando. Havia recebido ha poucos instantes a carta de D. Anna, e não podia, nem queria, arriscar temerariamente a vida n'aquella occasião. Anciava que terminasse aquelle passageiro incidente da guerra, para correr ao chamamento da sua companheira de infancia. Batia-lhe apressado o coração, porque um presentimento lhe segredava, que D. Maria da Gloria não era estranha no conteúdo da carta; mas como não podéra refrear o impeto dos voluntarios, forçoso lhe foi acompanhal-os.
Empenhado o tiroteio entre as pequenas forças inimigas, cahiu ferido Arthur Soares, que ficára por morto no campo. Um soldado, d'aquelles a que os proprios camaradas dão o epitheto infamante de "pulhas", despojou logo o official inimigo de todos os objectos de algum valor, que elle tinha em si: entre os demais despojos, ficou tambem possuidor da carta de D. Anna, que teve a curiosidade de lêr; e como visse lá o nome de Leopoldo, e soubesse que assim se chamava o seu commandante, com a mira em qualquer recompensa, quando por ventura com elle se entendesse aquella carta, foi immediatamente entregal-a a Leopoldo, dizendo-lhe que a encontrára perdida no logar da refrega...
Aquella bala de papel, fôra mais fatal ao marido de D. Anna, do que a de chumbo ao amante de D. Maria da Gloria...
Leopoldo retirou precipitadamente com a força do seu commando; e o corpo de Arthur Soares foi recolhido pelos seus camaradas, que lamentavam com desespêro a sorte do bondoso e bravo official.
X
O CRIME
«O espirito não lhe dava coisa que vislumbrasse senso-commum. A carta era o seu maximo supplicio.»
("Camillo Castello Branco". MYSTERIOS DE FAFE.)
D. Isabel de Abendanho recebera carta do marido, communicativa da sua resolução de casar a filha com um cavalheiro vimaranense; e dizia-lhe que fosse, acompanhada do padre Alvaro, á residencia de D. Anna, e de lá viessem todos ter com elle a Guimarães.
A chegada de sua mãe, e do padre Alvaro, foi para D. Maria da Gloria novo motivo de abundantes lagrimas. A velha e nobre senhora preadivinhara a rasão d'aquelle pranto, e desde logo protestou dar á filha o seu maternal apoio. O padre Alvaro, senhor da causa que assim amofinava as tristes mulheres, deu-lhes a consolação das suas evangelicas palavras, e prometteu empregar, com Sebastião da Mesquita, os brandos meios da persuasão para o dissuadir da effectividade de um enlace repulsivo á noiva. Todos de accôrdo em demorar quanto possivel a ida a Guimarães, confirmaram a Sebastião da Mesquita a noticia do incommodo de D. Maria da Gloria, que afinal não era mentirosa, porque a donzella estava doente, e de molestia que podia matal-a, se não tivesse força para resistir á vontade paterna.
Rosa, salva da vergonha e da deshonra por João de Lencastre, resolveu aproveitar-se da protecção do seu salvador, e assentaram de viver, em Portugal, ou no estrangeiro, debaixo de rigoroso incognito, mostrando a donzella desejos de vêr as suas queridas companheiras antes da sua completa desapparição, embora lhes não podésse fallar; e o antigo escudeiro, que não tinha vontade alheia á da sua protegida, cogitava no modo de fazer-lhe a vontade.
Nenhum dos mais fortes inimigos do homem, empenhado em fulminal-o, e dispondo de todas as convulsões do mundo, teria conseguido produzir em Leopoldo uma sensação semelhante á que sentira com a leitura da carta, que o soldado lhe entregara. Por momentos, julgou-se victima de um sonho, e o seu olhar desvairado era terrivel de vêr-se. Depois, de subito, sahiu-lhe do peito um como rugido feroz, e todas as suas acções foram impetuosas e allucinadas. Mandou tocar á retirada, entregou o commando ao seu immediato, e precedeu muitas horas, tal foi a sua vertiginosa carreira, a chegada da força ao quartel general. Alli, fez, como lhe cumpria, o relatorio dos successos militares, de tal sorte contradictorio e obscuro, que lhe não foi difficil obter a licença, que febrilmente implorava, porque os superiores o suspeitaram victima do começo d'uma alienação mental.
Era alta noite, e dormiam todos os habitadores do seu palacio, quando Leopoldo chegou alli, vindo do acampamento. Quem o tivesse visto jornadear de noite, ora esporeando o ginete de modo a fazel-o saltar por todos os obstaculos, que lhe estavam defronte, ora deixando o caminhar em direcção incerta, e com as rédeas soltas, dizia que era um sêr phantastico dos que algumas vezes nos agitam o somno. Gastára algumas horas a percorrer os arredores da sua principesca habitação, para conseguir introduzir-se lá, sem que fosse apercebido.
Estava a romper a manhã, quando podéra obter entrada por uma janella baixa, que ficara mal fechada, e caminhar, tateando, e com passos incertos, até ao seu quarto de cama, onde se apossou do punhal que pendia da cabeceira do seu leito, abrindo em seguida as janellas, e expondo ao ar a sua abrazada cabeça.
Ao voltar a vista para o interior do quarto, já um pouco alumiado pela frouxa luz do crepusculo, pareceu-lhe que a sua cama não estava deserta, e foi ajuntar-se-lhe ás violentas commoções que o infernavam mais um mixto de curiosidade e de terror, como teria o bandido que deparasse inopinadamente, na casa que julgara dezerta, com uma testimunha de seus crimes.
No leito de Leopoldo dormia tranquillamente o somno da innocencia, a suspeitada esposa. Tivera que sahir dos seus aposentos, occupados até então por ella e por D. Maria da Gloria, á chegada alli de D. Isabel, para que esta ficasse junto da filha.
Reconhecida pelo marido a mulher da qual julgava possuir um incontestavel documento de adulterio, as feições do dementado assumiram as repugnantes proporções da mais repelente das mumias; e monologou terrivelmente:
«Estás no teu sepulchro, maldita!... O mesmo leito que manchaste com a infidelidade, será manchado pelo teu sangue villão!... Não mais acordarás d'esse ultimo somno, em que os sonhos de megéra te hão de trazer ainda junto dos labios o halito do canalha, que eu hei-de devorar após de ti!... Far-te-hei abrir os olhos, apenas para vêres a tua carta, que o diabo me levou ás mãos, e nem uma palavra te deixarei pronunciar, porque antes terá este punhal atravessado o teu infame coração!....»
E, fazendo o que disséra, sacudiu violentamente a infeliz D. Anna, apresentou-lhe diante dos olhos, mal abertos, a carta homicida, e enterrou-lhe em seguida o punhal no peito!...
A desgraçada senhora, teve apenas tempo para dar um grito revelador da suprema agonia, e cerrar os olhos.
Ao ouvir aquelle brado de morte, fitou o vingador de imaginaria affronta um olhar tresvairado em redor de si, e ficou, como se estivera pregado ao chão, sem forças nem deliberação para fugir. Estava assim havia já muito tempo, quando se abriu uma porta, e entraram por ella duas pessoas em traje de romeiros que andam em peregrinação. Os recem-chegados, ao tomarem conhecimento da tragedia que tinham á vista, ficaram por um pouco, como assombrados de raio: um d'elles, o que primeiro conseguiu mover-se, foi cahir com a cabeça sobre a da assassinada, lavando-lh'a com as lagrimas que vertia. O outro, com um sangue frio ainda mais terrivel que o desespêro, aproximou-se de Leopoldo, encarou-o longo tempo, como olharia para o maior dos monstros, e exclamou por fim:
-- Assassino!... Miseravel e cobarde assassino de mulheres!... Não posso eu ser o vingador d'aquella infeliz, porque -- desgraça! disseram-me que era teu irmão!... Mas Deus a vingará, malvado!... O teu futuro hade ser de cruel expiação, crê!... O maior castigo que te espera, é o prolongamento da vida que tens a viver!...
E deixando-o, sem lhe tocar, foi apalpar o seio da assassinada: -- «Ainda lhe pulsa o coração, e o padre Alvaro está aqui!...» E saiu rapidamente do quarto, voltando, minutos depois, acompanhado do pae de Arthur.
O ministro do altar, entrou no sagrado exercicio do seu alto e sublime ministerio: serviam-lhe os dous romeiros de ajudantes, e Leopoldo estava ainda, immovel, no mesmo logar, em que ficára de seguida ao crime.
O padre Alvaro foi tocar de manso no hombro do assassino, e disse-lhe com brandura:
-- Irmão! Ajoelhe, que está na presença de um Deus misericordioso e vingador!
Ao contacto d'aquella mão, e ao sussurro d'aquellas palavras, fez Leopoldo um movimento de cabeça, assomou-lhe aos labios um riso idiota, e tartamudeou:
-- Não acordem a minha segunda esposa... Com esta casei eu por amor... Não me hade trahir que é nobre... O punhal está guardado... Ella disse-me que era uma arma villã, e eu escondi-o no peito da Anna... Hade amar-me depois da batalha... Sou general, e hei de vencer... Terei um duello com o meu rival... Depois, a felicidade... E meu filho, que me não conhece!... Meu filho, que me chama assassino, que me cóspe injurias a todo o instante, que me espanca sem piedade!!... Perdão!... Perdão!...
-- A loucura e os remorsos na propria hora do crime!... Aquella que ajudo a bem morrer, é menos desgraçada do que o seu assassino!...
Haverá quem não trema da vossa justiça, meu Deus?!...
FIM DA SEGUNDA PARTE
TERCEIRA PARTE
REMORSO
«Para que venha sobre vós todo o sangue dos justos, que se tem derramado sobre a terra...
(S. Lucas, XI; vida de N. S. Jesu-Christo).
I
GRATIDÃO
Tira-me já do p'rigo, amigo honrado,Depois solta a prelenda.
("Filinto Elysio" -- APOLOGO)
É menos vulgar a existencia do homem grato do que a do homem sabio; mas a compensação do rigor d'este axioma, está na raridade com que se faz um favor desinteressado. Contam-se em pequenissima quantidade as pessoas reconhecidas; mas é grande o numero das que sabem calcular o provento, mais ou menos proximo, de suas generosidades.
O genero de maior consumo no mercado da vida humana, é o egoismo, a que chamaremos, por antonomasia, o "verme do coração".
Os factos, porém, de todos os tempos, levam-nos a exceptuar a mulher da regra geral do egoismo do homem, por que é d'ella, na maior parte das suas acções, a santa abnegação: a mulher perde-se pelo amor, o homem gloria-se com elle; a mulher serve á ambição do homem, e é por elle escravisada; a mulher morre sempre por seus filhos, e o homem renega-os muitas vezes........................................................... .......................................................................
Quasi á mesma hora em que tinham logar as tragicas scenas do final da segunda parte d'este livro, e quando ellas ainda eram ignoradas pelos restantes habitadores do palacio, recebia D. Maria da Gloria, recolhida nos seus aposentos, uma carta que abrira, sobresaltada, com prévio consentimento de sua mãe, e que dizia assim:
«"Exc.^ma e respeitavel senhora":
«O meu camarada Arthur Soares, retido no seu leito por virtude de um ferimento grave, mas não mortal, que recebeu em um ataque dado pelo inimigo ás linhas d'esta cidade, incumbe-me de escrever a V. Exc.^a em seu nome, para que termine o cuidado com que deve estar a Exc.^ma Snr.^a D. Anna, pelo silencio d'elle, depois de um formal chamamento. Só uma impossibilidade absoluta, como aquella que se deu logo em seguida á recepção da carta que o chamava, é que estorvaria o meu camarada e amigo, como elle affirma, de voar a cumprir as ordens de sua exc.^ma irmã adoptiva. Muito mais do que as consequencias do seu ferimento, tem o meu camarada sentido o vêr-se até impossibilitado de escrever; e eu, accedi aos seus rogos, para o tranquillisar, e abreviar a sua cura; podendo V. Exc.^a ficar certa -- pela cruz da minha espada o juro -- que, finda esta carta, esquecerei completamente o seu conteudo. Não vae dirigida á snr.^a D. Anna, porque tendo sido roubado, quando cahira no campo, o meu camarada Arthur, fez parte do roubo a carta que aquella respeitavel senhora lhe escrevera; e o ferido receia que ella fosse parar ás mãos "d'alguem", que, por má interpretação, tenha ficado com suspeitas, as quaes augmentariam, por certo, sendo mais esta interceptada.
«Não obstante estar o meu camarada livre de perigo, os homens da sciencia recommendam toda a cautela, e marcam ainda alguns dias de recolhimento ao ferido.
«É de V. Exc.^a m.^o att.^o v.^or e cr.^o
«"O tenente da 2.^a comp.^a de voluntarios do Minho".»
Desde o começo da leitura, que D. Maria da Gloria ficára excessivamente pallida e trémula; mas a sua dôr, por demasiado violenta, não deu accesso ás lagrimas. D. Isabel que sentira o estado da filha, perguntou-lhe o conteúdo da carta, que ella teve a coragem de lêr segunda vez, de modo que fosse ouvida por sua mãe.
-- Assustas-me, querida Maria, mais com essa dôr surda, do que se te vira coberta de pranto... É então incuravel o affecto que nutres por Arthur?
-- Só a morte o póde curar, minha respeitavel e muito presada mãe e senhora: se até agora o podesse duvidar, recebia n'este momento a mais solemne das provas... É a primeira vez que lastimo a minha condição de nobre, que me embarga o vehemente desejo de ir ser a enfermeira de Arthur... Dava ametade da minha existencia, para ser hoje uma camponeza, livre dos preconceitos e obrigações sociaes, que podesse seguir os impulsos do coração sem constrangimento nem temôr...
-- E conheces bem, filha, as qualidades do homem por quem assim queres sacrificar-te?!...
-- Conheço, e vai tambem avalial-as a minha querida e santa mãe: Arthur, sabe que é amado por mim, adora-me, e nunca da sua bôcca sahiu uma palavra, que meus paes não podessem ouvir. Podia estar ao meu lado, gosar a todo o instante d'esses prazeres innocentes e celestes, que só dá o verdadeiro amor, e fugiu-me, para não prejudicar a minha reputação, porque receia não poder desposar-me. Todas as acções de Arthur, são de uma fidalguia exemplar, unica, inimitavel. Encarregado por meu illustre pae de saber como a Annitas era tractada pelo marido, obteve a convicção de que ella era desprezada por ser plebêa e pobre: disse-o, por carta, a seu padrinho; esperou que o brioso fidalgo acudisse logo á sua protegida, á que adoptara por sua filha, á que obrigara a casar-se com o seu tyranno; demorou-se a protecção, e Arthur, que apenas fôra companheiro de infancia da nossa Anna, sem nenhuma obrigação legal ou moral, só porque ella não tivesse de soffrer mais alguns dias, alcançou do thio, o venerando padre Alvaro, todo o importe do futuro d'elle -- trinta mil crusados -- que veiu entregar a Leopoldo, dizendo que era o dote de sua mulher, enviado por meu respeitavel pae!...
-- É grande, muito grande, o que me contas, Maria!... Por isso tu o amas, filha, e creio agora comtigo na impossibilidade de venceres o teu amor... Meu primo já sabe d'esse facto?
-- Não sabe, minha senhora, porque Arthur rogou muito que se lhe occultasse.
-- Então, Maria, sou eu que te digo, que pódes ter esperança de casar com Arthur. Teu pae é um fidalgo excessivamente orgulhoso da sua raça, bem sei; mas é tambem pela sua excedente alma, bom apreciador de todas as acções que ennobrecem quem as pratica.
-- Não podêmos contar com este segredo, minha querida mãe, porque jurei a Arthur que o não revelaria, e não sei faltar aos meus juramentos.
-- Mau é isso: no entanto, confiemos em Deus.
-- Agora, minha boa mãe, deixe-me dizer-lhe mais, que outro sentimento, não menos forte do que o meu amor por Arthur, me obriga, e me domina: é a gratidão pelo generoso procedimento da nossa Anna. Escrever uma carta a chamar o homem que eu amo, por vér, talvez, na sua vinda aqui a minha salvação, arriscando-se a ser suspeitada pelo marido, e a soffrer-lhe as terriveis consequencias do seu ciume, -- é a mais irrefragavel prova de uma verdadeira dedicação... Estou inquieta com a perda da carta; bate-me o coração com uma violencia desusada, e presinto grande desgraça... Vamos já ao quarto da Anna...
-- Pois ajuda-me a terminar o meu vestuario... Vamos lá, filha, e socega, que Deus tudo fará por melhor.
Quando a mãe e a filha entraram no quarto mortuario, estava lá o cadaver só com os romeiros ajoelhados, porque o padre Alvaro fôra procurar o medico da localidade, ainda na vaga esperança de salvar a desditosa esposa.
As duas senhoras, consideraram-se por muito tempo victimas de um pesadêlo horrivel, ao depararem com aquelle funebre espectaculo. D. Maria da Gloria, sem bem saber o que fazia, acercou-se do leito, fitou-o com vistas desvairadas, apalpou-o automaticamente, fechou n'uma das mãos um papel manchado de sangue, curvou-se depois sobre o cadaver, pousou-lhe os labios na fronte, nos olhos, na bôcca, tudo feito como em delirio, levantou lentamente a cabeça, olhou para as mãos, abriu aquella que encontrara e fechara o papel, acompanhou a quéda natural d'elle com a incerta curiosidade de um innocente que deixa cahir o brinquedo, apanhou-o outra vez, examinou-o e, ao conhecer-lhe manchas de sangue, um tremor violento se apoderou d'ella...
D. Isabel, conservara-se immovel, como se fôra uma estatua, olhando, simultaneamente, e como louca, para o cadaver, para os romeiros e para a filha.
Os romeiros levantaram-se, e foram collocar-se, um ao lado de D. Maria da Gloria, e outro de D. Isabel; como para lhes servirem de amparo.
O que ficara juncto de D. Maria, tentou brandamente arrancar-lhe da mão o papel, ao que ella resistiu, com a reacção dos dementes contrariados, procurando em seguida lêr o seu conteúdo. Quando, após uma demorada leitura e indeciso exame, a fidalga donzella levantou a fronte, e fechou os punhos, o seu aspecto aterrava. Aquella feminil belleza, transformada pela dôr, afugentaria de si, n'aquelle momento, o seu mais apaixonado amante!
Demorou-se ainda alguns minutos silenciosa, e terrivel de vêr-se; até que, tomando uma deliberação repentina, curvou outra vez a cabeça, e disse ao ouvido do cadaver, n'um tom de voz indiscriptivel:
-- «Assassinaram-te por minha causa, irmã!... O teu assassino, o monstro que nos roubou e te seduziu, ama-me... entendes?!!... Oh!... como tu vaes ser vingada!... Ha-de o infame soffrer mil mortes em cada segundo, até ao seu ultimo sôpro de vida... Juro-t'o pela honra do meu nome!...»
Em seguida tirou o punhal do peito do cadaver, metteu-o no seio sem o limpar, guardou a carta fatal, e, agarrando nas mãos de sua mãe, sairam ambas repentinamente.
Tiveram apenas tempo de transpôr os umbraes da porta d'aquelle recinto, quando um grito unisono, dos dous romeiros, as teria feito retroceder, se o estado em que fugiam lhes podésse deixar ouvil-o.
Aquelle grito fôra occasionado por ter parecido aos romeiros, que o cadaver abrira os olhos: -- Ao tentarem verificar a sua illusão, estavam já acompanhados do padre Alvaro e do medico.
II
MYSTERIO
«Os conegos da sé de Evora, conduziram, sem pompa, á igreja de S. Domingos, entoando as orações dos finados, o cadaver truncado do duque de Bragança.»
(CHRONICA DO SECULO XV.)
Algumas horas depois que o padre Alvaro, os romeiros e o medico, tinham ficado no quarto mortuario, junto do cadaver, era publica a morte da infeliz D. Anna, que fôra attribuida a um ataque cerebral. Os creados e os visinhos do palacio, lamentavam sinceramente o funebre succedimento, e a fatal consequencia d'elle, que fôra a immediata loucura do "extremoso" marido.
Para que esta mentira fosse a versão publica da repentina morte de uma das nossas heroinas, fôra preciso que o padre Alvaro empregasse com D. Maria da Gloria e sua mãe, a sua auctorisada e respeitavel palavra, para as convencer da necessidade de, por aquelle modo, estorvarem a acção da justiça, e a deshonra que o facto, commentado pelos ociosos, traria a todos; e tambem o grave desgosto, que elle causaria ao velho fidalgo Sebastião da Mesquita.
Accordado em que assim se publicasse ficou o bom do padre incumbido de tudo remediar, e assim o fez.
O que se passou entre o medico, os romeiros e o padre, antes que este viesse pactuar a util e generosa mentira, é, por emquanto, vedado aos leitores.
Houve desde logo todo o cuidado de não deixar penetrar pessoa alguma no quarto da finada, e de fazer desapparecer todos os vestigios do crime. Aos que notaram ser o cadaver conduzido immediatamente, em caixão fechado, á capella do palacio, sem preceder a demora, e a exposição costumada, foi-lhes revelado, que a defuncta deixára disposta antecipadamente a condição de não ser visto do publico o seu cadaver, e de se evitarem, no enterro, todas as pompas.
Até ao momento do caixão descer ao jazigo de familia, foi constantemente guardado por um dos romeiros.
Concluida a funebre ceremonia, voltou o padre Alvaro para junto das consternadas senhoras. O tranquillo aspecto do ministro de Deus, as suas palavras persuasivas, e a força de seus concludentes raciocinios, deram ás fidalgas mulheres a coragem necessaria, para continuarem com firmeza a encobrir o crime.
D. Maria da Gloria, deixou transparecer a ideia da sua medonha vingança, que o padre rebateu com evangelicas razões: foi um combate de palavras, entre dous adversarios valentes e convictos, que só teve em resultado firmar-se mais cada um d'elles no seu proposito. A donzella tinha n'alma a gratidão, e o padre a caridosa doutrina de Christo: D. Maria queria vingar de um monstruoso crime, a companheira e amiga, que por sua causa fôra victima; o bom Alvaro queria o perdão do criminoso, e pedia-o, a exemplo do que o Christo implorára para os seus matadores.
No mais caloroso do debate, entrou Leopoldo vagarosamente no local d'elle. D. Isabel teve medo d'aquelle homem, e conchegou-se á filha; o padre Alvaro ficou impassivel, e D. Maria da Gloria teve força para concentrar a sua cólera.
Leopoldo, com todos os modos de completo idiotismo, disse a D. Maria:
-- Vá reconhecer o inimigo, snr. ajudante... Tenho um plano que nos dará infallivelmente a victoria... É um segredo que só direi a meu filho, por que vae commandar a emboscada... É verdade... peça a meu filho que me não bata... pede?... Eu sou tão amigo d'elle... Coitadinho!... está doido!... diz que lhe matei a mãe, e fustiga-me sem piedade!... Peça-lhe muito, sim?... Vá... vá, que eu espero a resposta no quartel general...
E sahiu com o mesmo vagar com que entrára, deixando as mulheres estupefactas, porque ainda ignoravam o facto da loucura de Leopoldo.
-- Este homem está effectivamente louco?!...
-- Está, sim, snr.^a D. Maria da Gloria...
-- Eu julguei, que o snr. padre Alvaro teria combinado com elle o fingir-se demente por algumas horas, para melhor encobrir o seu crime...
-- Não, minha senhora, era essa uma calúmnia desnecessaria, e pouco digna. O infeliz perdeu a razão, logo em seguida ao crime. Antes da sua vingança, senhora D. Maria, appareceu o castigo da Providencia...
-- É preciso curar-lhe a loucura, e hade curar-se... Empregarei, para conseguil-o, todos os carinhos que dispensaria ao homem idolatrado... Quero vingar a minha querida Anna...
-- Desconheço-a, snr.^a D. Maria da Gloria!... Pois, que vingança quer V. Exc.^a tirar, no estado d'aquelle infeliz?!...
-- O snr. padre Alvaro não sabe o que é o coração da mulher "de raça" quando ama ou quando odeia... O castigo que eu reservo áquelle malvado, se poder conseguir fazel-o recuperar a razão, a mim propria causaria terror, não me dominando a ideia de vingança...
-- E não receia, com o seu procedimento, descobrir o crime a seu exc.^mo pae?...
-- Socegue, que a dissimulação é a mais forte defeza das mulheres.
-- Mas, minha filha, o snr. padre Alvaro diz bem... Tu não deves querer o que Deus não quer...
-- Perdão, minha santa mãe.....Se não deseja vêr sua filha morta pela dôr, e pela saudade, deixe-a dar largas á sua gratidão...
Tres dias depois de ter logar o enterro, chegava áquelle formoso e triste domicilio, o velho fidalgo Sebastião da Mesquita, já sabedor pela voz publica, que se antecipára á parte dada pela familia, da morte de D. Anna e da loucura de Leopoldo.
III
BRIOS DE RAÇA
«Se de imitar meu nome te gloreias,As façanhas me imita,Ou na Patria Nação, ou nas alheias,O meu valor te incita:Ségue os meus passos, segue a meu exemplo,Se morar quéres, n'este honrado templo.»
(Filinto Elysio.)
Decorreu um mez, após a chegada do velho fidalgo ao palacio de Leopoldo.
Sebastião da Mesquita, já bastante alquebrado, e mal convalescido, cahira de novo na cama, muito magoado com a morte de D. Anna, e com a loucura do marido. Tornou-se grave o seu padecimento, que dava sérios cuidados ao seu assistente. Mais do que á sciencia, aos desvelos de sua esposa D. Isabel d'Abendanho, que passava dias e noites á cabeceira do enfermo, deveu o velho fidalgo as leves melhoras que sentia.
D. Maria da Gloria, toda entregue ao seu pensamento dominante, procurava fazer recuperar o juiso a Leopoldo. Consultara todos os medicos que visitaram seu pae, e ouvira d'elles opiniões de que os muitos cuidados e carinhos empregados com o louco e, mais tarde, algumas impressões violentas, poderiam, talvez, trazer-lhe a razão.
Quem presenciasse o cuidado permanente, que a fidalga donzella empregava com Leopoldo, diria que, a não ser uma sua extremosa amante, era uma filha dedicada ao triste dementado. E conseguira já muito: Leopoldo tinha alguns lucidos intervallos, em que parecia conhecer a sua gentil enfermeira, e em que vertia copiosas lagrimas. Succedia mesmo, nos curtos instantes em que a donzella se afastava, ser chamada pelo nome de filha, em altos gritos, e até procurada pelo infeliz, com a pertinacia da loucura.
Sebastião da Mesquita teve uma longa e religiosa conferencia com o padre Alvaro, despida de apparatos que, aos timidos, encurtam as horas de vida; conversação que augmentara as melhoras do velho fidalgo, e o predispozéra para este dialogo:
-- Agora, meu bom amigo, que as suas evangelicas palavras conseguiram fazer-me esperar mercê da Providencia para os meus êrros, consinta-me que lhe falle do nosso Arthur...
-- V. exc.^a assusta-me com esse modo solemne!.. Sabe alguma coisa má do seu afilhado?...
-- Sou eu que peço agora resignação e coragem, áquelle que ha pouco me fallava com desprendimento das cousas terrenas... Bem sabe que tenho soffrido muito: posso, pelas minhas, avaliar as dôres alheias; mas tambem sei que o padre Alvaro é um martyr a quem Deus concedeu forças superiores ao commum dos homens...
-- Acabe, senhor, se não quer vêr-me morrer de impaciencia!... Que desgraça pésa sobre meu filho?!...
-- Póde ser mentira... Os periodicos muitas vezes desmentem no dia seguinte, o que asseveraram na vespora... Comtudo, eu li, em Guimarães, uma gazeta, que noticiava ter sido... gravemente ferido o meu afilhado n'um recontro com as tropas da rainha...
Um grito de suprema angústia, foi a unica resposta que ouviu o fidalgo, vendo em seguida fugir-lhe o padre, com a rapidez e o vigor da mocidade!
Deus por certo se amerciou com a mágua de aquelle pae, porque logo deparou com D. Maria da Gloria, que o susteve, e lhe disse que Arthur Soares estava livre de perigo, mostrando-lhe as cartas que tinha em seu poder, e pondo-o ao facto de quanto succedera.
-- Obrigado, minha querida filha! O céu lhe compensará o bem que fez a este peccador... Não se póde vencer a natureza, e eu sou pae... De certo eram ficticias as forças que me deu o desespero, e eu não chegaria ao Porto com vida... não veria ainda uma vez o filho do... Perdôe-me v. exc.^a esta revelação do meu criminoso passado...
-- Já sabia o que me diz... adivinhou-o o meu coração...
-- É magnanimo o seu coração, minha senhora, e receio que d'essa extrema bondade lhe resultem sérios dissabôres... Arthur não é nobre, snr.^a D. Maria, nem sequer é um filho legal!... V. exc.^a fez mal em dar entrada ao sentimento que nutre por elle...
-- Seu filho possue a mais verdadeira e sólida das nobrezas -- a da alma -- e eu amo-o!...
-- E seu pae, minha senhora?!... Não sabe V. Exc.^a quanto elle é orgulhoso da sua raça?!...
-- Diligenciarei convencel-o e, se não o conseguir...
-- Por Deus, senhora D. Maria, não pense em desobedecer a seu illustre pae!... Desgraçados d'aquelles que na sua mocidade se deixam arrastar pelas paixões! Eu sei o que tenho soffrido, senhora!... Não queira augmentar os remorsos d'este pobre velho, com o mal causado por meu filho!... De joelhos lhe peço que me jure, que nunca procederá de encontro á vontade paterna...
-- Quer, então, a minha morte?...
-- Quero a sua salvação, senhora D. Maria da Gloria! Quero o cumprimento de um dever sagrado, que póde até tornar respeitavel o seu amor por meu filho. Se V. Exc.^a soffresse a maldição paterna, não haveria posição que lhe désse tranquillidade: infelicitava-se, e fazia seu cumplice aquelle que ama... Já não quero que attenda a este velho, que a implora, e que dentro em pouco será pasto dos vermes...
-- Basta, snr. padre Alvaro!... Juro-lhe que serei sempre filha obediente e respeitosa, ainda que isso me custe a vida!...
-- Obrigado, querido anjo!... Hade viver e ser muito feliz, porque Deus é justo... Deixe-me pedir-lhe perdão de ter estranhado a sua dureza, para com o desgraçado marido de D. Anna... Eu ignorava a causa do seu criminoso proceder e os motivos de gratidão que levavam V. Exc.^a á vingança... Ainda assim, peço-lhe que o deixe entregue ao castigo providencial que o pune...
-- A esse respeito, é inabalavel o meu proposito, e serei tanto mais cruel, quanto mais contrariado fôr o meu affecto por Arthur... Vae de certo ao Porto, snr. padre Alvaro, e eu atrevo-me a pedir-lhe noticias do doente... Concede-me este pedido?
-- Cumprirei essa obrigação, minha senhora.
Poucas horas depois de ter logar o encontro que acabamos de escrever, foi D. Maria da Gloria chamada por seu pae, que lhe dirigiu a palavra n'estes termos:
-- É tempo, querida Maria, de te explicar alguns dos meus actos, e de te dar a minha opinião sobre o teu futuro. Deus sabe se me tornarei a levantar d'este leito, e desejo que o meu passamento seja o mais tranquillo possivel...
-- O meu bom pae, e senhor, está livre de perigo, e ha de viver ainda muitos annos, para a nossa felicidade:
-- É para que sejas feliz, que eu vou remecher no meu passado, e despertar factos que me remordem na consciencia. Quero que a minha vida sirva de exemplo á tua, seguindo-a no bem, e fugindo ao mal que os seus erros me trouxeram... Escuta-me: tive na minha mocidade sérias ligações, que acabaram com a morte de filhinhos que estremeci; e, já depois de casado, vi uma encantadora menina, cheia de virtudes, vivendo na companhia de seus paes de quem era o unico enlevo. As demandas da nossa casa, fizeram-me travar relações com o pae, o melhor jurisconsulto que então existia em Penafiel. Abusei da confiança que me deram, para me insinuar no animo da gentil e innocente criança, que em breve sentiu por mim um d'esses affectos, que são a felicidade ou a completa desgraça dos que os nutrem, segundo o bem ou o mal empregado d'elles. Amei-a... amei-a levianamente!... Quando os meus brios me fizeram conhecer a infamia do meu procedimento, quiz fugir-lhe, mas já não era tempo!... Um dia, a vigilancia paterna, arrebatou a infeliz Laura ao meu amor, e fez encerral-a num recolhimento... Mais tarde, entrava eu furtivamente, e a deshoras, na casa sagrada, para receber nos meus braços duas gêmeas recem-nascidas... E sabes quem eram aquellas criancinhas, que a minha criminosa leviandade fez vir a este mundo?... Eram as tuas discipulas Rosa e Anna...
-- Minhas irmãs!!...
-- Sim, tuas irmãs... uma das quaes está morta, e a outra... perdida!...
-- Que diz, meu pae, perdida?!! A Rosa está perdida?!... Perdida, como?!...
-- Ha muito que eu andava suspeitando da profunda melancolia de Rosa, e dos seus modos inteiramente oppostos á indole viril e folgasã que sempre lhe conheci. Antes da minha partida para Guimarães, procurei-a em casa dos suppostos paes, quando estes choravam a sua inopinada e inexplicavel ausencia... Esquecia-me dizer-te, que aquellas infelizes crianças encontraram carinhosas mães, em duas das minhas caseiras, cujos maridos tiveram a bondade de consentir na alimentação de seus verdadeiros filhos a peitos estranhos, para que as minhas filhas podessem ser amamentadas por suas esposas, e tidas como filhas d'elles por toda a povoação... Foi assim que sempre as pude ter perto de mim, ignorando, ellas e o mundo, que eram gêmeas, e que eu era seu pae...
-- E é á simples "ausencia" de Rosa, que o meu bom pae e senhor chama "perdição"?!...
-- Encontrei-a em Guimarães, entregue a um homem desconhecido, talvez o seu amante, fazendo gala da sua liberdade... Soffri muito!... Os brios da minha raça, fizeram com que mais uma vez esmagasse o coração; mas tive forças para a desprezar publicamente... Já vês, que está perdida, e bem perdida!...
E uma torrente de lagrimas, serviram de epilogo á narração do velho fidalgo.
D. Maria da Gloria, estava cadaverica, mas não vertia uma só lagrima. Tinham sido tão violentos, e seguidos, os choques que soffrêra, havia n'aquella fidalga indole tamanha reacção contra a má sorte, que a donzella, imitando os que a adversidade torna heroes, reprimia todas as dôres, e concentrava todas as suas forças para a lucta.
-- Minha irmã não podia entregar-se voluntariamente a qualquer homem, pisando aos pés a sua dignidade... V. Exc.^a, meu respeitavel pae, deixou-se illudir por falsas apparencias, e o tempo hade esclarecer o mysterio, provando-lhe que uma filha de Sebastião da Mesquita, não sobrevivería uma hora á sua deshonra...
-- Como tu és boa, minha querida Maria!...
-- Sou apenas justa, meu bom pae. Espero, com plena confiança, vêr um dia resurgir minha irmã Rosa, tão digna como eu da sua benção, e do seu affecto... Agora, se V. Exc.^a o consente, dir-lhe-hei, que lamento o não se poder legitimar o nascimento de minhas irmãs, pelo enlace de V. Exc.^a com a senhora que foi mãe d'ellas...
-- Estamos chegados ao ponto principal d'esta solemne conferencia, minha querida filha... Peço-te que continues a escutar-me com a maior attenção, porque é de todo o melindre o que vou dizer-te... Para nós, os homens que na bruma de tempos immemoriaes temos escondida a nossa gloriosa origem, a nobreza não é o echo de pomposos nomes, nem o apparato de vaidosos titulos, nem a fama de notaveis feitos: é uma questão de "raça". O rei póde fazer nobres; mas os fidalgos só os faz a "casta"... Não ha memoria de existir na minha familia uma alliança inconveniente... Gira em nossas veias um sangue tão puro, como possuira o primeiro fidalgo d'esta raça: é uma herança, que só póde deixar de transmittir-se pela morte da ultima vergontea da nossa arvore gigante...
-- Meu Deus! que pesada herança!...
-- Dizes bem, Maria, muito pesada... Senti-lhe todo o rigor, quando tive de sacrificar-lhe o coração... Poupa-me a narrativa de alguns detalhes, que me fariam córar de pejo... Basta saberes, que não obstante a existencia de ligações graves, que tive de quebrar, conduzi aos altares minha prima e tua santa mãe... Cumpri o legado da minha casta á custa de permanentes remorsos, aggravados depois com a existencia de tuas irmãs!... Vou hoje exigir de ti, minha presada filha, e unica representante do meu nome, não um sacrificio igual ao meu, porque de certo tens livre o coração, mas sim a tua palavra de receberes por esposo o distincto fidalgo que te escolhi...
-- É impossivel, meu pae e senhor!... Eu tenho já o coração cheio de affecto por um homem dignissimo, e a nenhum outro posso entregar-me...
-- Custa-me isso, filha, porque dei a minha palavra, embora reservasse o ter de ouvir-te primeiramente... Comtudo, o cavalheiro por mim escolhido, hade acceitar-me as rasoaveis desculpas, e tudo poderá combinar-se, sendo o teu preferido, como é de crer, um fidalgo de verdadeira raça...
Felizmente para a enleiada donzella, ao soarem as ultimas palavras do velho fidalgo, entrou sua mãe no quarto, acompanhada por João de Lencastre, e foi a bondosa "fidalga das chaves" que respondeu ao marido:
-- Não sei a que raça pertence o homem que nossa filha ama, meu presado primo e senhor, mas conheço-lhe as acções, e posso affiançar-lhe sob a minha palavra de "verdadeira fidalga", que ninguem as tem mais illustres... Peço ao meu esposo, que desculpe a esta curiosa velha o ter escutado a sua conversação com a nossa filha... Sabia da sua bocca o que se havia de entre ambos passar, é certo; mas tinha maternaes razões, para não deixar só no campo esta sensivel criança...
-- Então, pelo que escuto, era uma conspiração!... Entrou tambem n'ella o senhor meu primo João de Lencastre?... Ora deixem estar, que lhes hei-de fazer pagar caro o segredinho... Vamos lá a saber o nome do feiticeiro, que assim me roubou a melhor parte do coração de minha filha, e que teve artes para chamar a minha sancta prima ao seu partido... Venha, venha esse nome magico...
-- Chama-se, simplesmente, Arthur Soares...
-- O meu afilhado?!!... Deus não quiz que V. Exc.^a, snr.^a D. Maria da Gloria, calcasse aos pés as venerandas cinzas de seus avós, e matasse seu pae já proximo do tumulo... O snr. Arthur Soares, não póde ser... "seu marido", porque... morreu!...
-- Engana-se, meu pae, e senhor!... Arthur vive, e sempre viverá na minha alma!... Foi gravemente ferido, mas está livre de perigo... Ha-de viver longos annos... Ha de ser muito feliz, porque o merece, porque tem uma alma, que vale por todas as nobrezas da terra... Ha-de chorar todas as infelicidades que talvez esperem a minha raça, conservando-se constantemente á altura dos seus nobilissimos sentimentos... Affirmo-lhe, senhor, que nunca partiu d'elle a minima palavra ou o mais insignificante gesto, que v. exc.^a não podesse presencear... Amei-o, e hei-de amal-o eternamente... Mas sou fidalga!... Sou a herdeira de um nome que deve passar "immaculado" á posteridade, continuando em mim uma infinda série de aristocraticas allianças!... Seja!!... V. exc.^a que diz de um Lencastre para meu esposo?...
-- São de boa casta os Lencastres, minha filha; mas...
-- Muito bem, meu pae e senhor!... Com quanto eu receba a cruz da minha herança, a escolha agora é minha... Findo o lucto pela morte de minha irmã Anna, serei esposa do snr. Leopoldo de Lencastre!...
Ficaram de tal sorte aturdidos os restantes personagens, com este inesperado desenlace, que nem uma palavra se ouviu mais, retirando-se a donzella cheia de magestade.
IV
VISÃO
«Um presentimento de terror, d'aquelles que batem no coração de repente, sem saber por quê nem d'onde vêem...
«Tem sempre fé em Deus, que hade querer o que fôr melhor para nós.
«E é trovoada isto, que se escurece tudo?... Não, são as sombras da Eternidade que vêem sobre mim.»
(VISCONDE DE ALMEIDA GARRETT -- FRAGMENTO DE UM ROMANCE INEDITO.)
Conseguido o quietismo dos animos pela retirada de D. Maria da Gloria, veiu a cada um a consciencia do que lhe ouvira affirmar, com uma invencivel força de pasmosa vontade.
Sebastião da Mesquita, embora tivesse triumphado no seu principal proposito, não ficára tranquillo, porque lhe era antipathico o genro; mas o seu orgulho de raça podia mais n'elle do que todos os bons sentimentos que possuia: conheceu que sua filha era mulher de não retrogradar, e resolveu conformar-se, guardando silencio.
D. Isabel de Abendanho, comprehendendo mal o que se passára, esperava os acontecimentos com a confiança das almas puras.
João de Lencastre, ficára engolfado nos seus pensamentos, e só usou da palavra, passado bastante tempo, para responder a algumas perguntas que lhe fez Sebastião da Mesquita, e despedir-se dos velhos fidalgos, dizendo-lhes que ia seguir a sorte da guerra.
D. Maria da Gloria, mais do que nunca, ficára toda entregue ao tractamento do demente.
Ao dar meia noite do quarto dia, posterior áquelle em que a fidalga donzella tão inesperadamente desenlaçára o temivel nó, que seu pae lhe lançára ao collo, gemia Sebastião da Mesquita no seu leito as dôres de sua teimosa enfermidade, e as que procediam de um pesadelo medonho. Via as suas filhas bastardas, uma levantar-se do tumulo, e outra surgir do meio de uma turba de mulheres hediondas pela miseria e pela devassidão, pedirem-lhe contas dos carinhos maternaes, a que elle as arrebatara; de um nome que podessem usar sem pejo, que elle não podia dar-lhes; e de um futuro igual ao que esperava a sua filha legitima, que já não podia ser o d'ellas... O mais terrivel da visão, era o espectro da mulher de Leopoldo... D. Anna apparecia a seu pae, em todo o vigor da sua mocidade, criminando-o pela forçada ligação a que elle a levára, e que fôra causa da morte prematura que tivéra... O velho fidalgo, implorava o perdão de sua filha, e a victima exigia-lhe, em troca, nada menos que o completo aniquilamento da sua raça... Queria que seu pae désse por escripto o seu consentimento para D. Maria da Gloria poder casar-se com Arthur Soares... Apresentava-lhe penna, tinta e papel, e dizia-lhe, pela voz da eternidade:
«Em nome de Laura, a virgem que deshonrastes, e á qual nem foi dado depositar um beijo maternal nas faces de suas filhas!... Em nome das cruciantes dôres e das lagrimas de sangue, que levastes ao seio de uma familia honesta!... Em nome do desespero da filha, que o teu despreso atirou ao lôdo social!... Em nome, finalmente, d'esta outra filha, que fizestes morrer na flôr da vida; e para que todos te perdoem, e Deus se amerceie da tua alma, -- escreve: «"Dou voluntariamente o meu consentimento para minha filha D. Maria da Gloria poder casar-se com o meu afilhado Arthur Soares. Ás portas da eternidade, prestes a comparecer perante o pae commum, reconheço que só é verdadeiramente nobre, aquelle que segue no mundo os preceitos de Jesus Christo==«Não faças a outrem o que não queres para ti, perdôa as injurias, e ama o teu proximo como a ti mesmo.»==Sebastião da Mesquita."»
E o torturado velho, banhado em frios suores, sem ter já forças para affastar de si a vingadora visão, que o aterrava, sem poder distinguir se tudo aquillo era sonho ou realidade, pareceu-lhe que cedia ás ordens da filha, e que estava escrevendo o que ella lhe dictava............... .......................................................................
Succedeu-se á visão um quebrantamento, que teve o velho fidalgo prostrado, por algumas horas, como se estivera morto.
Ao abrir os olhos, viu Sebastião da Mesquita junto da cabeceira a sollicita e carinhosa esposa. Diligenciou recordar-se, e communicou o acontecido a D. Isabel, em voz fraca, e cada vez mais duvidoso, se um sonho fôra, ou se tudo se passára na realidade. A bondosa senhora, aproveitou aquellas disposições do marido, para advogar a causa da filha. Pintou Arthur Soares com as mais bellas côres; revelou o que elle praticára em beneficio de D. Anna, porque entendeu que o juramento de guardar segredo, dado por D. Maria, a não obrigava a ella; descreveu com enthusiasmo o casto amor da donzella, e o que ella soffreria tendo de o sacrificar ao dever de esposa de um homem aborrecido; foi, finalmente, sublime de eloquencia maternal.
No fim das suas expansões, olhou D. Isabel para o marido, a vêr se lhe lia nos olhos o assentimento, que os labios não tinham proferido. Não conseguiu o seu intento, porque os olhos de Sebastião da Mesquita estavam completamente fechados... O remorso fôra um poderoso auxiliar da enfermidade...
Áquella hora, já o velho fidalgo sabia se lá nas alturas Deus permitte a distincção de "humanas raças"...
V
TRES SOLDADOS POR AMOR
«Tomai pensar mais solido e sizudo:O caminho segui que a honra indica;Trabalhai pela Patria, a Patria é tudo.»
(POESIAS DE ANTONIO JOAQUIM DE MESQUITA E MELLO).
Entremos na residencia do reitor de Santo Adrião de Penafiel.
Estamos na sala do oratorio, onde já vimos orar D. Isabel e o velho parocho, por occasião dos "raptos", e do incendio, da primeira parte d'esta obra.
Ajoelhado aos pés de Christo, está um vulto de mulher, nova e bella ainda apesar do seu definhamento.
Assentados em um movel de junco de dous logares unidos, com as costas oppostas uma a outra, ficando por isso as pessoas a olharem-se de frente, estão a um canto Rosa e João Vidal ou de Lencastre.
A um lado, escrevendo, está o bondoso reitor.
Trajam todos rigoroso lucto.
Ouviremos o que dizem João e Rosa:
-- Quando seccarão as lagrimas nos seus olhos, snr.^a D. Rosa?...
-- Não ha muito que chóro, meu amigo, e ainda bem que posso chorar... Sou muito mais forte do que me julgam, e do que eu mesma pensava ser... Tenho atravessado de olhos enchutos crises violentas, que nem todos os homens atravessariam de animo frio... Mas saber, na mesma hora, que era filha de um respeitavel cavalheiro, e que meu pae morrera considerando-me perdida... é de mais, bem o conhece!...
-- Não posso asseverar-lhe qual foi a convicção com que seu exc.^mo pae falleceu; mas ao despedir-me d'elle, julgando eu que ainda o veria muitas vezes, quando elle me pediu noticias suas, jurei-lhe, pelo meu nome, que v. exc.^a era em tudo sua digna e honrada filha. Este meu juramento, pelo conhecimento que elle tinha do meu caracter, e dado poucos momentos depois de sua exc.^ma irmã D. Maria lhe ter dicto, por uma sublime inspiração, que a snr.^a D. Rosa havia de resurgir pura de toda a mácula, -- devia ser bastante para o convencer de que fôra precipitado em julgar por apparencias. Não posso adiantar-lhe mais, porque me era impossivel mentir-lhe, mesmo para seu bem. Estive lá, como sabe, quando fui acompanhar aquella desventurada martyr, que implora a Deus o perdão dos que a sacrificaram, e desconheceram suas virtudes; -- mas não fallei com pessoa alguma da familia, porque assim era preciso... Poucas horas depois, já seu exc.^mo pae não era d'este mundo!
-- Querido pae, e boa irmã!... É preciso que terminado o lucto, meu bom amigo, D. Maria da Gloria seja feliz.
-- Sabe o que se fez, e o que se espera. O plano de v. exc.^a foi rigorosamente executado. Admiro-a, snr.^a D. Rosa!... Como Deus lhe dá forças para esmagar o coração!...
-- Não me julgue de leve, meu amigo, que póde enganar-se nos seus juizos a meu respeito. É muitas vezes insondavel o coração da mulher... Eu mesma não saberia, talvez, dizer em verdade quaes sejam os estimulos do meu actual proceder...
-- Quer a desgraça que os eu conheça, senhora, e que os sinta inabalaveis... São rarissimas as mulheres que sabem sacrificar o amor aos seus brios, á dedicação e amisade; mas ha exemplos, e v. exc.^a é das que póde praticar todos os extraordinarios...
-- E não tenho podido conseguir fazel-o feliz com a minha illimitada estima... Veja que apoucado poder é o d'esta "extraordinaria" mulher...
-- O que quer, senhora?!... O ambicioso soffre e caminha continuadamente, até chegar ao cumulo da sua ambição, ou succumbir sem vêr realisadas as suas loucas esperanças... Cheguei a meio caminho do meu paraiso, é certo; deveria contentar-me, por que fôra alcançar já muito mais do que merecia; mas esse mesmo exito augmentou a minha loucura, e não posso ficar parado... Antes morrer com a esperança no pensamento, do que arrastar a vida sem essa dôce consolação dos que padecem...
-- E como lhe ha de conceder "esperanças", a mulher que o senhor salvou da "perdição", onde ella se foi voluntariamente lançar por amor a "outro" homem?!...
-- Não lhe tenho eu jurado muitas vezes, que seria o mais extremoso e dedicado dos esposos?... Suspeita-me capaz, mil annos que vivessemos juntos, de lhe fazer a mais remota allusão a um seu passo impensado, que nem erro se póde chamar?...
-- E julga que me satisfaço com tão pouco?!... Avalia-me com a capacidade de o victimar, para salvar a minha virtude?!... Como é injusto, João!... Se fosse possivel ter entrada no meu peito, para lhe dar, um affecto ainda superior ao que me levou a affrontar os prejuizos sociaes, seria então sua esposa, creia-o... Mas posso eu sentil-o?... E sentindo-o, não deveria occultal-o a mim propria, para não ter de córar da minha versatilidade?...
-- Sou, pois, infallivelmente condemnado, não é verdade?!... Um pedido então, senhora, e será o ultimo... Deixe-me ir batalhar pela nação... V. Exc.^a já não carece dos meus serviços... tem a companhia d'aquella martyr, e d'aquelle respeitabilissimo ancião... Vou para junto do meu camarada Arthur... talvez que precise do meu auxilio, e juro-lhe que darei por elle a vida... Consente, não é assim?... Não me responde?!... Chora?!... Compadeça-se de mim, senhora, e deixe-me partir!...
Usando dos privilegios concedidos a todos os narradores, vamos agora lêr a carta, que o padre Alvaro acaba de escrever:
«"Exc.^ma Snr.^a D. Maria da Gloria, escolhida filha do bondoso Deus":
«Não ha flôres por mais mimosas que a natureza as produzisse, que estejam ao abrigo das tempestades da terra; e por muito açoitadas e pendidas que ellas fiquem, o sopro de um Deus, mais poderoso do que o furacão da tormenta, em breve as alevanta e reanima. A minha linda flôr da Gloria, está sendo abalada pelos ventos do infortunio, com que o pae celeste costuma experimentar os seus escolhidos; mas, se como eu espero e creio, a christã resignação fôr uma das muitas virtudes de V. Exc.^a, não virá longe o dia em que hade ser compensada dos seus dolorosos soffrimentos. Tambem eu sei carpir saudades do meu unico e verdadeiro amigo, que nunca julguei que me houvesse de preceder na viagem da eternidade!... Ora, pois, enchuguemos o justificado pranto, e fallemos um pouco de nós outros, interinos habitadores d'este valle de lagrimas.
«Venho da cabeceira do leito de Arthur, que está livre de todo o perigo: mais alguns dias de repouso, e a seiva da vida apparecerá de novo. Foram muito graves os ferimentos, perigosos mesmo: deixaram vestigios permanentes, que mudaram immenso a physionomia do meu caro Arthur. Perdôe a este velho padre o dizer-lhe, que o rapaz me pareceu assim mais formoso ainda!... Eu, que devo impugnar os ardores guerreiros, como indignos da caridade e da misericordia do Senhor, achei bello aquelle aspecto marcial!... Na hora das despedidas, sahiu-lhe espontaneamente da bocca o nome de V. Exc.^a, proferido com igual respeito áquelle com que por vezes invocára o da sua querida mãe. Quizera responder-lhe com poucas palavras, mas foi impossivel. A despedida, durou mais tempo do que o resto da visita!... O padre, teve de ceder o seu logar ao homem, que, apesar de criminoso, é pae!... Que lhe direi mais, senhora D. Maria da Gloria?!... Arthur está preparado para todos os acontecimentos... Resignar-se-ha com tudo, afóra a ideia de que V. Exc.^a possa ser menos feliz do que merece.
«Peço a transmissão dos meus profundissimos respeitos á exc.^ma snr.^a D. Isabel, á qual me atrevo a rogar o seu regresso a estes sitios, onde me será mais facil a realisação do desejo de as vêr todos os dias, e acompanhal-as nas orações pelo eterno descanço do nosso chorado esposo, pae e amigo.
"Padre Alvaro."»
N'este mesmo dia, existiam só, além dos serventes, duas pessoas na residencia do padre Alvaro: elle, e a senhora que vimos orar, em quanto o padre escrevera e João e Rosa conversavam.
João de Lencastre, fôra o primeiro a retirar-se, com a morte no coração, porque de todo lhe fugira a esperança de ser correspondido no seu immenso amor.
Rosa, que o não prevenira da sua resolução, seguira-o pouco depois.
Quarenta e oito horas eram apenas passadas, quando, no Porto, a companhia de que era capitão Arthur Soares, contava mais dous voluntarios, que eram o tenente João de Lencastre, e um elegante sargento, que dizia chamar-se Paulo Virginio.
Arthur Soares, estava já completamente restabelecido.
VI
DENODO FEMININO
«Descavalgando, os dous guerreiros tomaram nos braços a irmã de Pelagio, e foram reclinál-a sobre um monticulo cuberto de relva e musgos.....
«O unico signal que n'ella revelava vida era o tremor convulso que violentamente a agitava.»
("A. Herculano" -- EURICO.)
A guerra civil havia chegado ao seu maximo desenvolvimento. Não existia em Portugal uma aldêa livre dos vexames da revolução. Os exercitos belligerantes entretinham-se em operações de pouca importancia, em conservarem para os seus governos os territorios occupados pela força, e não chegavam a travar uma lucta decisiva.
Um estado de coisas assim violento, não podia prolongar-se sem grave prejuiso da nossa nacionalidade.
O governo de Lisboa, fundado nas acclamações feitas a favor do snr. D. Miguel de Bragança, pedira a interferencia das nações signatarias do tractado da quadrupla alliança, por se achar em perigo a pessoa e dynastia da rainha.
Foi muito condemnada n'aquella epocha a medida extraordinaria da intervenção estrangeira, que é sempre um desaire para as nações a ella sujeita; mas é forçoso confessar, que lhe devemos immensos beneficios; e que, se não foi um bem absoluto a interferencia da França, Inglaterra e Hespanha, poupou comtudo a Portugal o derramamento de muito sangue, e os milhares de calamidades a que a duração da guerra nos tinha entregues.
No caso mesmo do vencimento provavel da causa popular havia a receiar que, após elle, a ambição do partido ante-dynastico, que se achava em força consideravel, désse muito que entender aos liberaes de boa fé, que apenas pelejavam pela prática genuina do systema constitucional, e que amavam de toda a alma a Liberdade, e a respeitabilissima pessoa da snr.^a D. Maria II.
A excelsa filha do rei soldado, a mais exemplar senhora da Europa, como esposa e mãe educadora, foi inconsideradamente arguida de facciosa, pela exaltação partidaria, que se esqueceu de levar-lhe em conta dos seus actos politicos as constantes suggestões dos conselheiros que a cercavam, aos quaes não se fartava de fornecer terriveis documentos para a catechese, a imprensa licenciosa da opposição, cuja linguagem desenvolta e ameaçadora bastaria a resolver qualquer monarcha, por mais resoluto que elle fosse, a entregar-se nos braços dos que se lhe mostrassem dedicados e leaes.
O certo é, que alguns dos officiaes superiores da junta do Porto, não viram com máus olhos a conclusão da guerra, pelo modo que ella teve logar, como por sem duvida, a maioria sensata do paiz, a recebeu com jubilo.
O batalhão a que pertenciam Arthur Soares, João de Lencastre e o sargento Paulo Virginio, achava-se em Setubal, fazendo parte da brigada do commando do honrado e mutilado general, que servia ás ordens da junta do Porto. Succedeu haverem sido interceptados a bordo de um vaso de guerra alguns objectos, que do estrangeiro vinham dirigidos á rainha, e entregues áquelle general, que immediatamente os enviou ao Paço por um dos seus officiaes; e foi Arthur Soares, elevado por seus serviços ao posto de major, o escolhido para os ir apresentar, commissão que desempenhou galhardamente.
A snr.^a D. Maria II, commovida por um tão delicado quanto conveniente procedimento, acolheu o mensageiro com inequivocas demonstrações de estima. Não lhe fez graça nem mercê régia, porque, senhora como era de elevadissimos sentimentos e notavel intelligencia, não queria de nenhuma fórma melindrar o caracter de um soldado, que militava em campo que lhe era opposto; mas significou-lhe, em phrases insinuantes, o quanto estava reconhecida áquella fineza do bravo general, e o muito que desejava poder em dias mais felizes distinguir e galardoar o porte e delicadeza do attencioso mensageiro.
Dias depois, tivera logar a batalha de Setubal, que matou cerca de 600 homens de ambos os lados, em quatro horas que durou o fogo, e a que poz termo um armisticio, por uma especie de intervenção do coronel Wilde, que se achava n'aquellas paragens, a bordo do navio de S. M. Britanica "Polyphemus".
N'esta batalha, achou-se o regimento de Arthur Soares fazendo parte da força que atacara a direita do inimigo, e que foi tomada de improviso pela cavallaria, que a fez debandar desordenadamente. O major Arthur Soares, o tenente João de Lencastre, e o sargento Paulo Virginio, fizeram desesperados esforços por conter os soldados, e tiveram de sustentar uma lucta desigual com a cavallaria inimiga. Na occasião em que o peito de João de Lencastre ia ser varado por uma bala sahida da pistola que lhe apontava um soldado, collocou-se de permeio o sargento Paulo Virginio, que recebeu o ferimento destinado ao seu superior. N'esta altura, ouvia-se por todo o campo da batalha o toque de retirada, e foi a elle que os dous officiaes deveram a conservação de suas vidas, e o poderem soccorrer o ferido, que tão denodadamente havia salvado um d'elles.
Imagine-se qual seria o espanto dos nossos heroes, ao reconhecerem, sob as vestes militares do sargento moribundo, o corpo mimoso da donzella Rosa!...
VII
OS ESPINHOS DA FLOR
«Peço ao meu anjo da guarda,Se hei-de aqui ficar perdida,Que vá levar-te por sonhosEsta minha despedida.»
("V. de Castilho" -- O ACALENTAR DA NETA.)
Leopoldo havia recuperado a razão, graças aos cuidados da sua gentil enfermeira. Mal sabia o desgraçado, que novo supplicio lhe destinava a mulher que o salvára da demencia!...
Ouçamol-os:
-- Diga-me muitas vezes que não sonho, querida prima, e que não é encantamento, ou uma nova crise da minha loucura, este celeste deslisar da existencia ao seu lado...
-- É um facto muito real e verdadeiro, "caro primo", que hade ter por desenlace o nosso casamento...
-- Não posso crêr em tamanha ventura!...
-- Duvída?!... Pois não sabe, que protestei a meu pae de sustentar o seguimento das "nobres" allianças da minha raça?... Não vê como já me abandono ao seu dominio, separada de minha mãe, que foi para o nosso solar chorar a perda do marido estremecido, e longe de todos que no mundo me são caros?... Duvída?!... Alguma razão tem para duvidar, porque não é com premios taes que se costumam castigar os assassinos...
-- Tenha piedade, senhora!...
-- Piedade?!... De quem, e porquê?!...
-- De mim, que só fui criminoso por amor e por ciume... A ferida que fiz n'um peito desleal, causou-me estragos, que só a prima teve o poder de reparar... e bem conhece que não são de "assassino" estes soffrimentos...
-- ""A "ferida que fez n'um peito desleal", diz o primo?!... Illude-se, e é chegada a hora de lhe tirar a venda... V. Exc.^a cravou ás punhaladas, com este villão instrumento que guardei para o sangue que o tinge me animar á vingança, o unico peito em que batia um coração que lhe era affecto... Minha irmã Anna amava-o, como ao seu unico e verdadeiro amor...
-- Não brinque, prima, que me tortura!...
-- Quer as provas?... Vá ouvindo... Passavamos aqui uma existencia relativamente feliz, eu a crear sonhos de ventura com o meu "idolatrado" Arthur, e minha irmã Anna a lamentar-se de não ser comprehendida por V. Exc.^a no seu immenso affecto, quando veiu enluctar-nos uma carta de nosso pae, que me participava a resolução de casar-me em Guimarães... Soffri horrivelmente!... Fiquei em estado de não poder empregar sequer um raciocinio... A minha querida irmã, que era o symbolo da dedicação, imaginou conjurar a tempestade que ameaçava o meu futuro, chamando aqui o meu "muito amado" Arthur... Comprehende?... Foi essa carta fatal, roubada no campo da gloria ao "meu idolo" por um soldado do seu commando, que o tornou um assassino cobarde... Veja o sangue innocente, tornado ferrugem no seu punhal!...
-- Misericordia, senhora, que me mata!...
-- Não hade morrer, "senhor meu noivo", em quanto não tiver bem esgotado o calix de amargura, que outros já tragaram por sua causa...
-- É então o demonio vingador, em vez do anjo adorado?!... Mas como é que deseja unir-se ao homem que detesta, ao assassino de sua innocente irmã?!... Eu torno a enlouquecer, de certo!...
-- Tambem não hade enlouquecer, porque me tem amor, e vae ser meu esposo... Socegue, que o aguarda uma existencia "singular"...
-- Atterra-me o seu sangue frio, senhora! Não me dirá o logar que occupo no seu coração?...
-- O meu coração está cheio, hade estal-o sempre, do "unico" homem que eu amo, e do qual me separa a fatalidade... Não hade passar um minuto da minha existencia, sem que eu pague um tributo de lagrimas ardentes e saudosas á memoria de "Arthur Soares", do amor da minha infancia, da alma mais nobre que existe na terra, e que só no céu me será concedido unir á minha... Que importa isto ao "meu futuro esposo", ao viuvo de "minha irmã assassinada"!...
-- Cale-se, demonio!...
-- Hei de entreter os ouvidos de meu caro primo, e "feliz noivo", com a fiel narração do estado da minha alma, que todos os dias voará em busca da que lhe é igual... Hei-de fazer-lhe conhecidas muitas particularidades do nobilissimo caracter de Arthur... Quer saber?... Foi elle que deu um dote á sua primeira mulher, ajuntando e vendendo para esse fim, todos os seus haveres...
-- Que tormentos do inferno me quer fazer passar, senhora?!!... Peço-lhe antes a morte como o supremo beneficio...
-- Quer saber mais?... Lembra-se da musica que eu lhe tocava todos os dias ao pianno durante a sua convalescença?... É uma composição minha... Fiz-lhe tambem uma letra, que lhe não cantava, porque não estava ainda em estado de comprehendel-a... Vou dizer-lh'a agora, para que fique sabendo que só o amor é verdadeiro poeta... Oiça:
«LAGRIMAS D'ALMA
«Vida ditosa da infancia amena,tornada pena, que me traz delirio!...Meu terno amante, meu poderoso rei,por amor fiquei n'um atroz martyrio!...Ignora o mundo que cruel mysterio,ao cemiterio casta virgem leva!...Nem "Elle" sabe quanto hei penado,Arthur amado, que minha alma enleva!Aqui defronte do feroz tyranno,que deshumano duas vidas sóme,a irmã eu vingo, o amor vingando,Arthur amando com ardor sem nome!...Ai! que saudade dos meus sonhos bellos,puros anhelos, que gostosa tinha!Ai! que tormentos o presente encerra,na crua guerra da vingança minha!...Vida ditosa da infancia amêna,tornada pena, que me traz delirio!...Meu terno amante, meu querido d'alma,recebe a palma d'este cru martyrio!...»
O todo de Leopoldo revelava um tal soffrimento, que o mais desalmado executor de alta justiça se compadeceria ao vêl-o! E D. Maria da Gloria estava impiedosa! Chegara a um estado de exaltação, em que a mulher "senhora", se torna a mais temivel das féras. Havia por muito tempo concentrado o seu rancor ao homem que lhe matara a irmã, e fôra causa, ainda que indirecta, de se lhe sumir o delicioso porvir que sonhara, e por isso era terrivel n'aquelle seu primeiro manifesto do odio que lhe enchia o peito.
Um escudeiro veiu entregar uma carta á vingadora que, reconhecendo n'ella a letra de Arthur, a recebeu com transportes da mais intima alegria, praticados febrilmente em face de Leopoldo.
O conteúdo na carta, que D. Maria lêu em voz alta, era este:
«Depois que o meu velho Alvaro lançou n'este pobre coração o desespero, com a noticia da resolução que v. exc.^a tomara de ser fiel á vontade de seu exc.^mo pae, tenho procurado a morte no campo da batalha, porque só ella me libertaria dos tormentos, que me esperam ao saber que outro homem é o seu esposo... Mas superior á minha vontade está o dedo de um Deus todo poderoso, que me afasta os perigos, e me cérca de espectaculos insinuantes!... Poderei vêr n'isto uma esperança?...
«Na ultima batalha a que assisti, e na qual ganhei a patente de coronel, deu-se um acontecimento, que vou narrar-lhe, porque tambem lhe interessa. Alistara-se ultimamente no regimento do meu commando um joven sargento, sobrio de palavras, que dizia chamar-se Paulo Virginio, e que era a sombra do meu camarada, o seu bondoso parente João de Lencastre. Não fizemos caso da assiduidade com que o sargento seguia de perto o seu tenente, porque ambos nós tinhamos sérias preoccupações, que nos não davam tempo a reparos curiosos. Quasi no fim da batalha, e quando já se ouviam por todo o campo os toques de cessar fogo, e de retirada das forças combatentes, estavamos todos tres cercados por soldados da cavallaria inimiga, um dos quaes apontou a sua pistola ao peito de João de Lencastre. Rapido, porém, como se fôra uma frecha, o intrépido sargento, colloca o seu corpo em defesa do tenente, e recebe no peito o ferimento que lhe era destinado! Dentro em pouco, apenas restavam no campo os mortos e feridos de ambos os lados. Fomos em soccorro do sargento: quem imagina v. exc.^a que descobrimos debaixo de um tal disfarce?... A heroica senhora D. Rosa, sua exc.^ma irmã!...
«De certo que avalia o nosso espanto e viva sensação, ao reconhecermos a nossa companheira de infancia, a minha quasi irmã, a querida de todos nós!...
«Apresso-me a dizer-lhe que sua exc.^ma irmã não morreu; mas antes de participar-lhe o desfecho d'esta tragica scena, preciso oriental-a de succedimentos anteriores.
«A snr.^a D. Rosa, chegou a persuadir-se que sentia por este seu indigno criado, um affecto irresistivel; e como sabia d'aquelle que occupa a minha alma, e que ella considerava correspondido, entendeu dever oppôr entre mim e ella a barreira da perdição simulada, fugindo, n'este intuito, do seu lar domestico, e dando entrada em Guimarães n'uma casa de perdição!... Foi alli surprehendida por João de Lencastre que, após porfiadas luctas, conseguiu arrancar-lhe o segredo do seu procedimento. Este meu brioso camarada, e digno parente de v. exc.^a, offereceu o seu nome, e a sua fortuna, á snr.^a D. Rosa, indicando-lhe este meio como o melhor para o conseguimento dos seus fins; isto é, para que entre mim o v. exc.^a nunca podésse haver suspeita do amor que ella julgava consagrar-me. Sua exc.^ma irmã regeitou, e conservou-se na mesma casa, até que João de Lencastre, que a occultas alugara uma sala proxima, teve occasião de a salvar de uma affronta, que um infame tentava fazer-lhe. Desde um tal dia, que a snr.^a D. Rosa abandonou completamente o seu arrojado e perigoso projecto, entregando-se á protecção do nobre salvador da sua virtude.
«O meu camarada, e honrado parente de v. exc.^a, ha muito tempo, como elle me confidenciou, que déra entrada a um sentimento sério pela senhora D. Rosa; sentimento que todas estas peripecias tiveram o poder de augmentar, por conhecer em sua exc.^ma irmã, a par de um genio viril, um nobilissimo caracter, e pouco vulgar talento. Ultimamente, em casa do meu prosado velho, tentou o meu camarada obter da senhora D. Rosa uma resposta decisiva aos seus vehementes desejos, que lhe foi negada.
«Dadas estas explicações indispensaveis, para a boa intelligencia do mais que tenho a narrar-lhe, vou dizer o que se deu em seguida ao ferimento do supposto sargento.
«A dôr e a desesperação que se apoderaram de João de Lencastre ao reconhecer na pessoa ferida a mulher que adorava, e que lhe parecia estar sem vida, sentí-as, mas não me é dado descrevel-as. Conduzimos o corpo inerte para a nossa residencia no quartel militar, e foram alli chamados os mais habeis facultativos da nossa brigada, que estiveram tres dias indecisos sobre o diagnostico que deviam dar. Ao quarto dia, o primeiro em que sua exc.^ma irmã recobrou o uso da falla, consideraram-n'a os medicos livre de perigo, ainda que mui gravemente ferida. Durante o periodo de prostração da snr.^a D. Rosa, não pude conseguir desviar o meu camarada da cabeceira do seu leito um só instante. Estava mais cadaverico ainda que a doente, e n'um quietismo idiota, que muito me assustou. Só deu accordo de si, quando sua exc.^ma irmã abriu os olhos, e os fitou ternamente n'elle, levando-lhe a mão aos labios... Então, arrebentaram-lhe as lagrimas com espantosa força, e tive de o tirar arrebatadamente de ao pé do leito, para evitar damno á doente.
«Horas depois, fui testimunha da mais commovedora scena que tenho presenceado: a snr.^a D. Rosa chamou-nos para junto de si, e fallou n'estes termos: «Não podia ser feliz n'este mundo, e louvo a Deus a sorte que me permittiu conservar a vida do homem que amo, a troco da minha... Agora, que vou morrer, hei de ser acreditada, por mais incomprehensivel que seja a minha confissão... Considerei-me presa de um amor invencivel pelo snr. Arthur Soares, que eu sabia cheio de um sublime affecto por minha irmã... Quiz pôr entre nós o impossivel, para conter-me, e fingi entregar-me ao vicio... Fui salva da minha temeridade, por uma affeição das que raramente os homens sabem ter... Esta dedicação, a que não tinha o menor direito, fez-me descobrir um novo rumo no sentimento que eu havia considerado immutavel!... Mas como fazer semelhante confissão?!... Segui o homem que amava, e ao qual devo a conservação da minha honra, na intenção de lhe dar a vida, como lhe havia dado o coração... Deus concedeu-me a ventura desejada... Crês agora em mim, Lencastre?...»
«O meu camarada, snr.^a D. Maria, praticou as maiores loucuras, a que póde levar-nos uma alegria sem limites!... Eu... pensava em v. exc.^a...
«Tenho dentro em pouco de ser padrinho da união d'aquellas almas angelicas perante o altar do Eterno... Partilho, por amizade, da ventura dos nossos amigos; mas que dôres não hei-de ter ao lembrar-me que igual ceremonia póde qualquer dia unir eternamente a snr.^a D. Maria da Gloria a...
«Cahe a penna da mão ao fiel servo de v. exc.^a
"Arthur."»
A leitura da carta, que produzira em Leopoldo o effeito de um choque electrico, augmentou o mau humor da vingadora, que redobrou as pungentes ironias e os crueis sarcasmos, com que torturava o seu futuro noivo...
Quando o desgraçado estava de todo succumbido, appareceram alli, sem se fazerem annunciar, dois importantes personagens: eram o padre Alvaro, e uma senhora com o rosto coberto por expêsso véu.
O bondoso levita, dirigiu-se a Leopoldo n'estes termos:
-- Nunca se deve descrêr da misericordia divina, snr. Leopoldo!... Se na sua alma entrou o remorso e o arrependimento do mal que tem causado, posso dar-lhe uma esperança de que será perdoado por Deus... O seu crime, não teve o resultado fatal, que o fizera enlouquecer... Sua esposa escapou do ferimento que o senhor lhe fez, e vive ainda para lhe perdoar, e amal-o como sempre o amou... Eu, seu irmão e a senhora D. Rosa occultos em trajes de romeiros, e o honrado medico d'esta localidade, que logo asseverou não ser mortal o ferimento, combinamos deixal-a passar por morta, na caridosa intenção de pouparmos toda a familia aos escandalos de um processo crime; fizemos convencer a todos de que v. exc.^a enlouquecera com o desgosto; simulamos o enterro de um cadaver, e conduzimos secretamente a snr.^a D. Anna á habitação do medico, onde se conservou até se achar completamente curada, passando depois para a residencia d'este humilde servo do senhor...
Leopoldo, forcejou por levantar-se e ir ter com o vulto de mulher, que elle adivinhara ser a sua, mas não pôde conseguil-o, porque a violencia d'estas scenas o fizera cahir sem sentidos nos braços do bondoso padre.
As duas irmãs, ternamente abraçadas, confundiam as lagrimas e os soluços.
VIII
A CONVENÇÃO DE GRAMIDO
«O partido popular fica livre da deshonra. Cedemos desde que nos era impossivel combater; cedemos á força de tres poderosas nações. Perdemos tudo, mas salvamos a honra.»
Leopoldo ficára prostrado no leito, acariciado por sua esposa, e assistido da medicina, que procurava prevenir a volta da loucura.
D. Maria da Gloria, antes de sahir, na companhia do padre Alvaro, para a casa materna, tivera com sua irmã largas conferencias, e recebeu d'ella um escripto do punho paterno, em que lhe era concedida licença para unir-se com Arthur Soares. Este documento, fôra aquelle que Sebastião da Mesquita lhe "parecera" ter escripto, e que effectivamente escrevera, durante a "visão" de que tracta o capitulo assim chamado. Alcançara-o D. Anna, entrando a deshoras no quarto de seu pae, em cumprimento de um plano concebido por sua irmã Rosa, e auxiliado por João de Lencastre. Levava de prevenção o necessario para aquelle escripto, que humildemente rogára a seu pae lhe fizesse, e que o velho fidalgo, aterrado pela apparição da filha que elle julgava morta, e considerando ordem o que era rogativa, escreveu com mão trémula.
Arthur Soares, e os noivos João de Lencastre e Rosa, estavam na cidade do Porto, onde a revolução agonisava.
Arthur acompanhara os representantes da junta provisoria do governo supremo do reino a Gramido, onde tivéra logar a convenção, que poz termo á guerra civil, e que foi resumido nestes artigos:
1.º O fiel e exacto cumprimento dos quatro artigos da medeação, incluidos no protocollo de 21 de maio d'este anno, é garantido pelos governos alliados.
2.º As tropas de sua magestade catholica exclusivamente occuparão desde o dia 30 de junho a cidade do Porto, Villa Nova de Gaya, e todos os fortes e reductos d'um e outro lado do rio em quanto a tranquillidade não estiver completamente estabelecida sem receio de que possa ser alterada pela sua ausencia, ficando na cidade do Porto uma forte guarnição das forças alliadas em quanto estas se conservarem em Portugal. No mesmo tempo o castello da Foz será occupado por tropas inglezas, e no Douro estacionarão alguns vasos de guerra das potencias alliadas.
3.º A epocha da entrada das tropas portuguezas na cidade do Porto será marcada pelas potencias alliadas.
4.º A propriedade e segurança dos habitantes do Porto, e de todos os portuguezes em geral, ficam confiados á honra, protecção e garantia das potencias alliadas.
5.º As forças do exercito de sua magestade catholica receberão as armas dos corpos de linha, e voluntarios que obedecem á junta, entregando-se guia ou passaporte gratuito ás pessoas que tiverem de sahir do Porto para as terras da sua residencia, e dando-se baixa aos soldados de linha que tiverem completado o tempo de serviço, e aos quaes se alistaram durante esta lucta para servirem só até á sua conclusão.
6.º O exercito da junta será tractado com todas as honras de guerra, sendo conservadas aos officiaes as espadas, e cavallos de propriedade sua.
7.º Conceder-se-hão passaportes a qualquer pessoa, que deseje sahir do reino, podendo voltar a elle quando lhe convier.
8.º As tres potencias alliadas empregarão os seus esforços para com o governo de sua magestade fidelissima afim de melhorar a condição dos officiaes do antigo exercito realista.
Esta convenção foi publicada por um decreto e proclamação da junta, que termina assim:
«A junta felicitando-se a si propria, e á nação, por vêr terminada uma tão longa, e tão dolorosa guerra civil, espera que nenhum portuguez que seguisse a sua bandeira conserve a lembrança de qualquer aggravo que, durante a mesma guerra, possa ter recebido.
«A junta lisongeia-se de que o seu comportamento, durante os difficeis tempos em que foi chamada a reger estes reinos, em nome da nação e de sua magestade a rainha, lhe tenha grangeado a estimação do povo portuguez e do mundo civilisado.
«A junta considera terminada a sua missão de uma maneira nobre, e honrosa. A junta vai dissolver-se.
«Seus membros, voltando de novo ao seio da vida particular, levam comsigo a convicção de que sempre desejaram o bem, a liberdade e a gloria do povo portuguez.
«Não querem maior galardão do que a lisongeira recordação de que por tanto tempo presidiram aos destinos do povo mais benigno, mais virtuoso, mais heroico, e mais nobre da terra.
«E farão sempre os mais sinceros votos pela gloria de Sua Magestade a rainha, pela sincera reconciliação de seus subditos, e pela liberdade, e felicidade do povo portuguez.»
Assim acabou a mais notavel das guerras civis portuguezas.
Arthur Soares, antes de seguir jornada, com os noivos, para Penafiel, escreveu a D. Maria da Gloria estas palavras:
«Acabou a guerra e com ella a esperança d'uma morte gloriosa para mim. Recolho-me á residencia do meu santo velho, onde tudo me recordará o tempo feliz da minha mocidade, passado ao lado de v. exc.^a... Qual será o meu futuro?!...
«Acompanham-me os noivos, que tencionam pedir á snr.^a D. Isabel e a v. exc.^a um aposento no seu palacio.
"Arthur"».
Havia sido expedida esta carta ha poucos momentos, quanto Arthur Soares recebera outra d'este theor:
«Venha quanto antes abraçar a sua esposa. As barreiras que se oppunham á nossa ventura, quiz Deus sumil-as pela sua infinita bondade!
"Maria".»
Avalie o contentamento de Arthur, aquelle dos nossos leitores, que tiver sinceramente amado.
IX
BRIOS DE PLEBEU
«Uns homens ha, que, na paixão ardente,Immolam tudo seu,Menos a propria estima; e, felizmente,D'esses homens sou eu:Sou, que de tudo o que no mundo prézo,Prézo mais não mer'cer o meu desprezo.»
[João de Lemos -- CANCIONEIRO]
Uma d'estas revoluções moraes, que as grandes crises produzem no espirito humano, se operou em Arthur Soares. O filho do bom Alvaro era uma destas almas privilegiadas, ricas de sublime poesia, a que o mundo chama imaginações prodigas, porque lhe é vedado o entendel-as. Amara D. Maria da Gloria, que era rica e nobre, como se ella fôra a mais desprotegida camponeza. Prenderam-n'o os dotes moraes e physicos da fidalga moça, e nem por sombras o deslumbrara a fortuna e nobreza de sangue da sua amada. Tão prudente como gentil e cavalheiro, nunca d'elle partiria a iniciativa de uma declaração: era d'estes poucos homens, que sabem morrer com um segredo na alma, para não se exporem aos falsos juizos do vulgo, nem serem menos presados pelo alvo da sua estima. D. Maria da Gloria, possuidora d'uma alma semelhante á de Arthur, amando-o como era amada e manifestando o seu amor, seguira seus naturaes impulsos com feminil precipitação.
Sabendo que era amado pela filha do seu orgulhoso e fidalgo padrinho, a par do naturalissimo contentamento que uma tal certeza lhe deu, principiou Arthur Soares a comprehender o melindre em que o collocavam estes amores. Os acontecimentos, porém, precipitaram-se com tal velocidade, que, até ao momento do desenlace, não teve o nosso heroe o tempo material preciso para cogitar n'um procedimento digno de si.
Agora, que só da sua vontade estava dependente a sua ventura, Arthur hesitava, e sustentava uma lucta mortificadora, porque os seus brios de homem de bem lhe patenteavam, que no seu enlace com D. Maria não podia elle entrar com uma porção, se não igual, aproximada das conveniencias sociaes que ia receber. Se ao menos podésse apresentar as dragonas e condecorações ganhas no campo da batalha, seria já alguma coisa, e fôra provavel que acabasse a sua hesitação; mas o governo interino que lh'as concedera deixara de existir, e o de sua magestade não lh'as garantia.
Este brioso luctar contra o sentimento, se collocava Arthur Soares bem longe do bafo empestado das paixões mesquinhas e torpes, que são o apanagio de villões interesses, trazia-lhe a par a recordação dos tempos em que lhe soavam os alegres hymnos do amor e da saudade; em que era sustentado o seu affecto pela esperança de se tornar distincto no campo da honra, e poder assim encurtar a distancia que o separava de Maria; e o seu intimo soffrer tomava proporções assustadoras, que ameaçavam queimar-lhe ao fogo do coração os brilhantes sonhos de amor que o tinham embalado.
Ao passo que tudo respirava tranquillidade no palacio de D. Maria da Gloria, e que a vida prasenteira dos noivos se tornava communicativa aos demais habitadores d'aquelle nobre solar, existiam a dois passos d'alli, na residencia do padre Alvaro, duas almas consumidas pela melancolia; pae e filho eram victimas dos mesmos pensamentos, que nutriam sem os communicarem, e que nenhum d'elles sabia como destruil-os para o bem commum.
As forças physicas de Arthur tiveram de ceder ao prolongado e doloroso debate moral que elle sustentara, e cahiu em perigosa enfermidade. O triste pae, teve de envidar um resto de energia, para animar o filho querido, e chamou em seu auxilio aquella que era a involuntaria causa do soffrimento de Arthur.
D. Maria da Gloria, com a perspicacia inherente ás pessoas do seu sexo, educação e talentos, quasi que lia claramente na alma do seu amante e, por um fidalgo tacto, que só ensina o amor verdadeiro, desviara sempre as conversações do terreno em que poderiam declinar para expansões perigosas, esperando assim corajosamente o resultado da lucta, sem dar o menor indicio de querer accelerar o desfecho que tão grato era ao seu coração.
Assidua enfermeira do seu amante, pondo de parte as etiquetas e convenções do seu mundo, D. Maria não largava a cabeceira do seu querido enfermo. Nas crises mais perigosas da enfermidade, tinha a gentil e fidalga moça a coragem de mostrar-se risonha na presença do seu idolo, para dar, ás occultas, largas ao pranto, e á dôr que a definhava.
Os desvélos do pae e da amante, auxiliados pela constituição vigorosa de Arthur, arrancaram-n'o das bordas do tumulo. Já convalescente, tomou um dia as mãos do pae e de D. Maria, beijou-as religiosamente, e disse-lhes, com lagrimas na voz, e nos olhos:
-- Porque me não deixaram morrer?!... Acabava tudo, e não os faria soffrer mais...
-- Quer-me parecer, Arthur, que vão muito longe os teus brios, e que talvez degenerem em orgulho condemnavel... Ambos nós lêmos no teu intimo; eu, porque sou teu pae; e este incomparavel anjo, porque te ama, ainda além do que é permittido amar-se na terra... Querias morrer?!... E não será a manifestação de um tal desejo grave offensa á Divina Providencia, que tão prodiga tem sido em beneficiar-te?... Ou quererás tu tornar-me mais pungentes os remorsos, por te haver dado uma existencia a que chamas infeliz?... Mas fica certo, filho, que a tua ultima hora seria a minha, e que tu, deixando a vida, fugias á possivel felicidade n'este mundo, em quanto que eu, se um Deus misericordioso perdoar os meus peccados, encontro na morte o supremo bem!...
-- Como são sevéras as suas palavras, meu querido pae!... E diz-me o coração, que os seus sentimentos são os meus, e que, no meu caso, seria em tudo semelhante o seu procedimento... A prova d'esta minha convicção, está no silencio que tem guardado, quando muito bem conhece que o simples enunciado da sua vontade seria para mim uma ordem terminante... Porque me não ordena o que devo fazer?...
-- Chega-me a minha vez de fallar, e principio por usar da minha auctoridade de enfermeira, lembrando ao impertinente doentinho, que não póde ainda entrar em conversações animadas... Sim, agora o mais bonito é isso!... Chorem, chorem ambos, mortifiquem-se bem, e não tenham pena de mim, que os heide aturar doentinhos!...
-- És o melhor dos anjos, minha querida Maria!...
-- Nem sou "anjo", nem sou ainda "sua", seu mau... Isso hade acontecer, quando se realisar um sonho que eu tive uma d'estas noites......O snr. Arthur Soares, figurava no meu sonho como um grande personagem, cercado de attenções e de respeitos, podendo dispensar protecção, e não tendo já que receiar dos maus juizos que o mundo fórma quando vê ligações entre duas pessoas que não pesam do mesmo modo na balança das conveniencias... Eu era sempre a mesma rapariga aldeã, que "V. Exc.^a se dignava elevar" até á sua altura, e que caminhava para a capella tão contente por o meu esposo ser um "potentado", como o estaria se elle fosse um simples "operario"...
-- Basta, minha adorada Maria!... Fixa tu a epocha do nosso casamento...
-- Está fixada, já lhe disse... Esperemos a realisação do meu sonho, que me diz o coração, que não havemos de envelhecer esperando... Quero que fiquem bem satisfeitos todos os seus caprichinhos... E agora, nem mais uma palavra, que te faz mal fallar...
X
VIAGEM DA RAINHA
«Foi então que se apossou da corôa.»
(A. HERCULANO -- EURICO.)
«Crer e amar -- é a unica religião verdadeira; crer e amar -- a unica poesia verdadeira: uma não está sem a outra.»
(V. DE ALMEIDA GARRETT -- HELENA.)
A guerra civil gastou a nossa energia, e converteu a dissenção armada em vinganças mesquinhas, em baixos enrêdos e ambiciosas abjecções. O povo, esmagado com o peso dos tributos e dilacerado pelas inglorias luctas dos bandos politicos, tinha perdido as crenças, e o amor ao systema liberal: o throno, á força de lh'o pintarem de ferro, figurava-se-lhe tyrannico. Foi então que uma feliz revolta militar levou ao poder os primeiros homens que pozeram em pratica a constituição.
Ferindo no ámago a roedora agiotagem por medidas energicas; apagando os odios politicos; equilibrando quanto possivel a receita com a despeza do estado; pagando em dia aos empregados da nação; garantindo as patentes aos officiaes do exercito, e fazendo este alheio aos baldões politicos; dotando o paiz de estradas e outros melhoramentos materiaes; dando accesso nos empregos aos homens de todas as côres politicas; segurando os direitos individuaes; e pondo, finalmente, em acção todo o machinismo de uma verdadeira monarchia constitucional, -- o primeiro ministerio chamado "regenerador", não desmentiu este nome redemptivo.
Não contentes de haverem grangeado a estima publica pelos seus actos, aquelles vultos politicos do memoravel ministerio "regenerador", quizeram dar ao povo portuguez um conhecimento perfeito das altas virtudes da familia real, e aconselharam-na a viajar pelo reino. Este passo teve o alcance meditado: o nobre povo portuguez ficou amando, como ella merecia, a senhora D. Maria II, e a sua dynastia.
Pouco tempo depois, a digna filha do rei soldado, foi chorada, na sua prematura morte, por todos os partidos; sendo para notar-se a parte distincta que tomou no lucto, o partido que era affeiçoado ao infeliz principe proscripto.
Continuou, sob a regencia do sympathico e bondoso monarcha, o snr. D. Fernando, a sua bem assignalada gerencia, o ministerio regenerador.
Era tudo rumor e gala no antigo solar dos Bandeiras, Mesquitas e Abendanhos. A respeitavel snr.a D. Isabel, parecia ter voltado aos seus vinte annos, pela rapidez com que dava ordens e movia as chaves que lhe pendiam do cinto. Era justificado o regosijo e o afan, porque a velha fidalga esperava a honra de hospedar a familia real em seu palacio. D. Maria da Gloria acompanhava a mãe nos precisos trabalhos com vivo contentamento. D. Rosa deixara de ter questões com o marido, -- para resolverem qual d'elles devia ter mais tempo no collo um robusto rapaz, fructo do seu amor, que era afilhado de D. Maria da Gloria e de Arthur Soares, -- e tambem dava o seu contingente para os preparativos do palacio. João de Lencastre fôra encarregado por D. Maria de uma commissão diplomatica: era forçoso conseguir que Arthur apparecesse, fardado, á rainha!... Innocente capricho, chamou o ex-coronel á exigencia da sua Maria e, embora estivesse sempre em projecto o seu casamento, folgava de obedecer á vontade d'aquella que era tudo para elle. O capricho, porém, não era tão innocente como parecia. João de Lencastre tornara-se fallador, como todas as pessoas felizes, e havia contado a D. Maria, que Arthur fôra o official escolhido em Setubal, para levar a Sua Magestade os objectos que lhe eram destinados, e que foram tomados com um navio de guerra. Ora, esta revelação, fez conceber um plano á fidalga moça, que devia tornar realidade o sonho precursor do seu casamento.
Chegou a familia real, e foi recebida alli, da mesma fórma que em todo o seu transito, com as mais festivas demonstrações de leal affecto da parte do povo apinhado na estrada, que entoava freneticos vivas aos reaes viajantes, e os cobria de flôres.
N'um intervallo das enfadonhas etiquetas, a que mesmo em viagem está sujeito o primeiro magistrado de uma nação, conseguiu D. Maria da Gloria fazer-se ouvir da rainha. Pouco depois, foi apresentado Arthur Soares a sua magestade, que logo o reconheceu:
-- Felicito-me, snr. official, por ter chegado o "tempo mais feliz", a que me referi em palacio quando tive de agradecer-lhe o modo nobre e attencioso com que se houve n'uma commissão delicada. Dizem que os reis constitucionaes não podem fazer mercês a seu bel-prazer; mas se isso é regra, soffre excepção quando os ministros responsaveis possuem as qualidades d'aquelles que ora me cercam... Fica o snr. official com as honras de coronel do exercito portuguez, cujo uniforme veste; pertence, desde hoje, aos fidalgos da minha casa, e póde desde já assignar-se conde de Setubal... Agora, consinta á sua rainha, que lhe manifeste a vontade de ser testimunha e protectora do seu casamento... Sei que as formalidades indispensaveis ha muito esperam por a sua resolução, está a dous passos a capella do palacio, e eu tenho aqui o meu padre esmoller-mór...
-- Senhora! Toda a minha vida será dedicada a vossa magestade e á sua real familia, como ha-de ser transmittida por mim a meus filhos, a obrigação de darem todo o seu sangue em defeza do throno e dynastia da minha muito amada rainha a senhora D. Maria II!
-- Obrigada, conde... Ame muito a sua esposa, que as "Marias" são dignas de um leal affecto... Levante-se condessa! É nos meus braços que eu costumo apertar as pessoas que têem a sua alma... Finda a ceremonia do casamento, quiz a rainha vêr, antes de retirar-se, o padre Alvaro, que foram chamar á residencia a toda a pressa. Logo que chegou, dirigiu-lhe sua magestade a palavra n'estes termos:
-- Foi me descripto o seu caracter, por quem conhece as suas virtudes. Não lhe faço mercês porque sei que as regeitaria com evangelica abnegação; mas peço-lhe que distribua pelos seus pobres o dinheiro que lhe ha-de entregar o meu esmoller-mór... Peço-lhe ainda algumas orações para esta mulher corôada, que dentro em pouco tempo ha-de ser pó... Os medicos desenganaram-me... Queriam "remediar o mal infallivel" não sei com que "medicinas preventivas", que eu recusei formalmente, porque não tremo de morrer no meu officio de mulher, que é tão nobre, pelo menos, como o de rainha...
-- De que preces póde carecer uma santa como vossa magestade?!...
-- Sempre rese, padre Alvaro; bem sabe que o maior justo pecca muitas vezes...
-- Resarei, real senhora! e será meu o proveito das orações, como ha-de ser de vossa magestade o reino do céu!...
EPILOGO
EPILOGO
São decorridos cinco annos, depois do casamento de Arthur com D. Maria da Gloria, e estamos no dia do 4.º anniversario natalicio de uma interessante menina, que é a filha estremecida de tão venturoso par.
O filho de Rosa e de João de Lencastre, dous annos mais velho, dá-se ares de protector da priminha, que cérca de brinquedos e caricias infantis. D. Isabel prepara toda jubilosa a festa dos annos da sua netinha. João de Lencastre está narrando á mulher o que presenceára em casa do irmão, d'onde recolhia de o haver visitado, triste pelo definhamento em que vira Leopoldo. D. Maria e Arthur estão de mãos dadas contemplando as crianças, e trocando phrases embalsemadas de felicidade.
É de bem diverso effeito, a scena que vamos presencear na egreja parochial da freguezia. O padre Alvaro, envelhecido e quebrantado em extremo, está ajoelhado sobre a campa, que encerra os restos mortaes da mãe de Arthur, e lê esta passagem da Biblia:
«Disseram-lhe seus discipulos: Se tal é a condição de um homem a respeito de sua mulher, não convém casar-se. Ao que elle respondeu: Nem todos são capazes d'esta resolução, mas sómente aquelles, a quem isto foi dado. Porque ha uns castrados que já assim nasceram; ha outros castrados a quem outros homens fizeram taes; e ha outros castrados, que a si mesmos se castraram por amor do Reino dos Céus. O que é capaz de comprehender isto, comprehenda-o.»
A leitura d'estas palavras, que são, para a egreja catholica, a desculpa do padre celibatario, fez cahir o livro das mãos de Alvaro, e obrigou-o a dizer, em consternadora exclamação:
-- Oh meu bom Deus! quando terão fim os meus remorsos?!... Quando poderei deixar a vida esperançado no vosso perdão, oh Senhor Misericordioso?!...
Lançou em seguida os olhos á Biblia, que no chão ficára aberta, e passados poucos momentos, empregados em lêr o que a Providencia lhe deparou com a queda do livro santo, estava o padre Alvaro radiante de alegria, erguendo as mãos e os olhos ao Céu em acção de graça!... As palavras que causaram a repentina mudança no attribulado espirito do bondoso padre, foram estas:
«Digo-vos que assim haverá maior jubilo no Céu, sobre um peccador que fizer penitencia, que sobre noventa e nove justos, que não hão de mister penitencia.»
Entrou n'aquella occasião na egreja toda a nova familia de Arthur, incluindo as creancinhas e a velha fidalga D. Isabel, que vinha buscar o padre para a festa dos annos.
Findo o alegre jantar, desceram todos ao jardim, á excepção de D. Isabel. Este local, é o mesmo em que se deram os acontecimentos descriptos no capitulo -- Ao luar -- da primeira parte d'esta obra, apenas melhorado com mais algumas plantações de arvores e flores, e commodos assentos.
Estava toda a familia assentada em frente das janellas do palacio; o padre Alvaro no centro com as crianças sobre os joelhos; D. Maria á direita d'elle, e junto d'esta João de Lencastre; e D. Rosa á esquerda, e junto d'ella Arthur. Umas pombas domesticas, saltavam do chão ao collo das criancinhas a depenicarem-lhes os dôces que tinham nas mãos.
As alegres expansões d'esta feliz familia, foram interrompidas pela presença de um escudeiro, que a apresentava, n'uma salva, a D. Maria uma carta tarjada de preto.
Todos se olharam receiosos e contristados, sem que nenhum d'elles se resolvesse a lançar mão da agoureira carta. Tomou-a o padre Alvaro, e pediu licença a D. Maria para abril-a, e lêr o seu conteúdo em voz alta, o que todos estimaram de ouvir, porque assim eram poupados ao desgosto da primeira impressão. A carta era do punho de D. Anna, e resava assim:
«"Minha boa Maria e presada irmã":
«Estou viuva!... Nem os carinhos da minha profunda e constante adoração; nem a linguagem caridosa das tuas cartas, em que chegaste a pedir indulto para culpas que não eram tuas; nem os esforços, em fim, dos homens da sciencia medica, poderam roubar á morte o meu desditoso Leopoldo!... Mataram n'o os remorsos de não ter conhecido e compensado a tempo o meu immenso affecto!... Vê, por isto, quanto eu soffro, Maria!... Ha cerca de seis annos que todos os meus cuidados se resumiam na conservação da vida do unico homem que amei!... Perdi-o!... perdi-o para sempre, minha querida irmã!... E elle era bom, Maria!... Os arrebatamentos do seu genio terminavam por um terrivel soffrimento, com o qual sobejamente se castigava do mal causado aos outros!... Era tão bom, que o mataram uns mal entendidos remorsos!... E eu vivo ainda, minha irmã!...
«D'aqui a poucas horas, fechar-se-hão sobre mim as portas de um austero convento,[19] onde possa chorar e orar por meu marido, e onde quero repousar eternamente, quando Deus fôr servido livrar-me do fardo da vida...
«Teu marido que venha tomar conta d'esta casa, que tudo lhe pertence por minha disposição, como eu tambem a herdei pela de Leopoldo.
«Abraça a Rosa por mim; lembra-me a todos; sede felizes, e diligenciae evitar a vossos filhos, que de toda a alma abençôo, o remorso de qualquer falta, porque o remorso mata!...
«Adeus!
Tua infeliz irmã,
"Anna".»
Finda a leitura, que o padre fez commovidissimo, assomou a uma das varandas do palacio o respeitavel vulto de D. Isabel de Abendanho, trazendo atraz de si meia duzia de pessoas das mais necessitadas da freguezia, todas uniformemente vestidas de novo, e, rindo com a tranquillidade de uma santa, disse para a familia:
-- Não esperavam, que a "velha" fosse capaz de preparar-lhes uma surpreza, no dia da festa da minha neta?... Pois saberão, meus "crianças", que tive segundo jantar na companhia d'estes bons filhos adoptivos, que aqui lhes apresento todos pimpões, com os fatos novos de que a minha netinha lhes fez presente... Perdão, senhor reitor... O nome de "criança" foi uma brincadeira minha, que nunca podia entender-se com o respeitavel senhor padre Alvaro...
O pae de Arthur, havia-se repentinamente tornado cadaverico! Apertara nas suas as mãos dos pequeninos que tinha no collo, inclinara a cabeça sobre o encôsto do assento, erguera os olhos ao céu, e balbuciara estas palavras:
-- "O remorso mata"... mas Deus perdôa aos que morrem penitentes... Arthur... meus filhos... até logo!......
N'aquelle momento sombrio, uma das pombas saltou á cabeça do moribundo, o que lhe fez entreabrir o seu ultimo sorriso.
Um despedaçador grito de Arthur, fizera prostrar todos de joelhos.
Chegava alli, da proxima campina, a melancolica toada d'este cantar:
«Vou chorar e cortar fêno,quem trabalha tambem sente:as paixões trazem venenoencoberto na semente.O nosso reitor, um santo,reza sempre, e tambem chora!N'um sepulchro verte o prantosempre, sempre á mesma hora!...Ninguem foge ao sentimento,ninguem foge ao seu destino...Quem d'amor soffre o tormento,no Céu tem Amor Divino.»
[19] É motivo de odios para os liberalões de má casta, o sustentar hoje a conveniencia da vida claustral!
Por verdadeiro affecto á liberdade, por sabermos seguir e presar o progresso do bem, é que entendemos absurda e tyrannica a extincção dos conventos. O claustro, em casos analogos ao d'aquella heroina do nosso «conto», era um refugio celeste: como suppril-o? Que liberdade é essa que tolhe as mais innocentes acções da criatura? Existiam abusos? E onde deixariam elles de existir, sem a vigilancia e o castigo dos poderes constituidos? Porque no parlamento se discutem questões impertinentes, porque no sanctuario das leis havemos presenceado scenas vergonhosas, já alguem se lembrou de extinguir a camara popular?
Consola-nos vêr sustentar a nossa opinião abalisados e insuspeitos escriptores liberaes de toda a Europa.
Dizemos desassombradamente o que sentimos: não sabemos comprehender o "celibato forçado" e somos desaffectos á "extincção das ordens religiosas" e a todas as medidas violentas oppostas á bem entendida Liberdade.
FIM DA TERCEIRA PARTE E ULTIMA
Appendix A
Na "Historia da casa de Lara", e n'um manuscripto, de 1676, do padre Manoel da Purificação Magalhães, vê-se escripto=="Avendanho"==; mas os modernos senhores do nome, assignam-se -- "Abendanho". A nobre familia dos Abendanhos, veiu para Portugal no tempo de El-Rei D. Diniz. O seu brasão compõe-se de cotta d'armas de prata, em campo azul, trespassada por tres setas manchadas de sangue, com a legenda: "Sine sanguine non est victoria".
Verdadeiro ou imitado, mostrava Mac-Donnell ás pessoas mais importantes do partido realista, um escripto do punho do snr. D. Miguel de Bragança.
É notavel a linguagem d'esta proclamação: «Portuenses! -- O general *** volta de novo com a força de seu commando a aproximar-se das linhas do Porto. Elle não confia em si. Confia na traição. Mas engana-se. A junta está prevenida. Ninguem ousará dentro dos muros do Porto levantar um grito criminoso, fazer uma tentativa culpada. Ninguem o ousará. E ai d'aquelle que o ousasse! As medidas convenientes estão tomadas. Porto! A Europa nos contempla! Com a ajuda de Deus, pela intercessão da Virgem, protectora de nossas armas e de nossa gloria, o Porto será sempre vencedor -- nunca vencido. A liberdade nos inspira! Os escravos que vem trazer os ferros, e a assolação a esta cidade ficarão petrificados deante de nossas bayonetas. O Porto é a cabeça de Medusa deante da qual os tyrannos estremecem e gelam de terror.
«Confiemos na protecção do eterno, e no esforço de nossos braços. Transmittamos á posteridade uma nova pagina de heroismo -- a nossos netos uma rica herança de gloria, e um grande e novo exemplo de valor. Ás armas cidadãos! Ás armas! por Deus, e pela liberdade: e -- Viva o Porto! -- O Porto sempre grande, sempre intrepido, sempre heroico, indomito, invencivel! -- Viva a Nação! -- Viva a Liberdade! -- E ás armas! -- Palacio da junta provisoria do supremo governo do reino, em 8 de Dezembro de 1846.»
(Omittimos tudo que podesse recordar odios pessoaes.)
Existe com effeito, dous kilometros e meio ao sul da villa de Monção no alto Minho, o edificio de que tiramos alguns traços, fundado em 1806 pelo commendador Luiz Pereira Velho de Moscoso. Diz o snr. A. A. Teixeira de Vasconcellos, nas notas do seu bello romance -- «A Ermida de Castromino» -- que aquella casa, chamada da Berjoeira, é de risco semelhante ao do palacio da Ajuda. N'esta, como n'outras descripções e nomes proprios d'este nosso "conto", na parte romantica, não ha allusões a logares certos ou pessoas determinadas.
O periodico «Estrella do Norte» publicou a noticia da "intimação" e da retirada do exc.^mo arcebispo primaz.
Temos á vista vários jornaes d'aquella epocha calamitosa, que fazem, pela desenvoltura da linguagem e calúmnias que semearam, corar de pejo todos aquelles que saibam presar a dignidade da imprensa, e comprehender a sua nobre missão. Um dos mais repugnantes por certo, foi aquelle que se denominou -- «Popular». -- O melhor correctivo que, em seguida, podiam ter as suas atrevidas e mentirosas apostrophes, foi-lhe dado pelo primeiro jornalista portuguez n'estas honrosas verdades: «O jornalista é o sacerdote d'uma religião, d'uma crença social -- expõe a sua doutrina, discute, convence ou é convencido. A sua alma deve respirar sempre amor, o seu apostolado é um apostolado de paz. Se o seu irmão pecca, deve dizer-lhe como o sacerdote do Evangelho -- "Fili, peccasti; non adjicias iterum".
«Para que é incitar o povo a que entre no palacio dos nossos reis e pratique ahi acções de canibaes? Que civilisaçâo é esta que injuría as victimas para as immolar?
«Não ha rainha mais virtuosa do que a nossa como esposa, nem como mãe de familias. A sua casa póde servir de exemplo a todas da Europa.
«Apraz-nos fazer esta justiça. Assim podessemos achar que louvar no funccionario como achamos no individuo.
«Por isso é que a nossa voz se levanta contra uma imputação injuriosa e falsa. -- A moral respeita-se no adversario como no amigo.» («O Espectro» de 26 de Fevereiro de 1847.)
Aquelle infeliz aventureiro, abandonado pelo partido que levara á rebellião, e apenas seguido de uns cem homens, foi morto por um sargento de cavallaria das forças da rainha. O «Diario do Governo» de 5 de Fevereiro de 1847, noticiando a morte de Mac-Donnell, diz assim: «A identidade da pessoa de Mac-Donnell foi reconhecida por diversas pessoas, e d'esta circumstancia se lavrou auto judicial.»
Este facto, teve effectivamente logar quando foi tomado pelo povo o castello de Vianna.
Portugal deu á cadeira de S. Pedro dois naturaes seus: S. Damaso, de Guimarães, e Pedro Hispano, natural de Lisboa, freguezia de S. Julião, que por pouco tempo gosou as honras do pontificado, por morrer de um desastre no sumptuoso palacio, que mandou construir em Viterbo. S. Damaso foi o 39.º na serie dos pontifices romanos: foi-lhe disputada a eleição por Ursino, que as auctoridades civis desterraram, sendo confirmada a legitima eleição de S. Damaso; tambem o inculparam de adultero, mas foi absolvido por um concilio de 44 bispos, reunido em Roma. Entre outras obras de sua iniciativa, contam-se as basilicas de S. Lourenço, e a da Ardeativa, fóra de Roma, mandando concluir outras. Combateu valorosamente as seitas dissidentes, congregando varios concilios, e o ecumenico, em Constantinopla, no anno de 381, ao qual assistiram 150 bispos.
Em um moderno artigo das «Artes e letras», que tem por epigraphe: «Gil Vicente e a custodia de Belem» -- lê-se: «Contemplada a Custodia de Belem e confrontada com a Custodia de prata dourada que se guarda na collegiada da Oliveira em Guimarães, saltava ao espirito a existencia de uma mesma tradicção artistica, de uma mesma escóla. Seria Guimarães que teria influido sobre o gosto da ourivesaria em Lisboa? É certo que a tradição recolhida por Barbosa Machado, dizia que disputavam o nascimento a Gil Vicente, Lisboa e Guimarães. Este criterio nos dirigiu nas investigações, e no manuscripto de Christovão Alão de Moraes, datado de 1667, que tem o titulo de "Sedatura Lusitana" encontramos estes factos preciosos: «"Martim Vicente, foi um homem natural de Guimarães; dizem que era ourives de prata; não podemos saber com quem casou; só se sabe de certo que teve a Gil Vicente."» Isto já bastava para acreditarmos que o auctor da Custodia de Belem era natural de Guimarães; mas o manuscripto genealogico é mais explicito, e declara-nos que esse Gil Vicente, filho do ourives de Guimarães, é o afamado poeta da côrte de D. João II, D. Manoel e D. João III «"Gil Vicente, filho unico d'este Martim Vicente, foi homem mui discreto e galante", e por tal foi sempre muito "estimado dos Principes e senhores de seu tempo. Foi o que fez os autos, que em seu nome se imprimiram, e por sua muita graça foram sempre celebrados pelos melhores que se fizeram n'aquelle genero. Está sepultado em Evora."» O gráo de authenticidade que nos merece este manuscripto é irrefragavel; por que Christovão Alão de Moraes datou a Sedatura de 1667, e elle segue esta genealogia até 1668, em que figurava o seu trisneto Manoel Barreto de Pina, que viveu em Torres Vedras, e n'esse anno foi procurador em côrtes.»
O mesmo artigo a que nos referimos em a nota que falla de Gil Vicente, diz: «... e mesmo em nossos dias o grande gravador de medalhas, José Arnaldo Nogueira Molarinho, representa para nós essa antiga seiva artistica de Guimarães.»
O sr. Noronha é auctor da musica da «Beatriz de Portugal», drama lyrico em 4 actos, vertido em italiano pelo sr. Luigi Bianchi, e representado com applauso geral nos reaes theatros de S. Carlos, em Lisboa, e de S. João, no Porto. A letra do drama, é do sr. R. C. M.
Quando a snr.^a D. Maria II visitou o Minho, o sr. duque de Saldanha, que fazia parte do séquito da rainha, foi hospedar-se em casa do fallecido snr. do "Arco". Constou ao povo, que o palacete estava custosamente adornado, e agglomerou-se á porta, para o vêr: os criados, não deixavam entrar; mas o illustre, e sempre chorado, titular, deu-lhe entrada franca, não consentindo que se despojasse dos seus "tamancos", embora lhe inutilizasse riquissimos tapetes.
Em proclamação do primeiro general da junta do Porto, datada de Coimbra de 29 de Dezembro de 1846, lê-se: «Soldados! -- Nem a desgraça da nossa valente segunda columna vencedora em Torres Vedras, e depois anniquilada por uma "incomprehensivel desgraça"; nem a conspiração dos elementos, que tornaram perigosa e terrivel a nossa marcha, na qual centenares de individuos ficaram em poucas horas descalços, e muitos em risco de morrerem, tem podido abater vossa coragem!»
Decreto da junta de 11 de Janeiro de 1847.
Este facto foi publicado em alguns periodicos d'aquelle tempo.
Referimo-nos por vezes ao "Espectro", não só por ter sido o papel mais conhecido na epocha da revolta, mas tambem, e principalmente, para darmos ao seu redactor, e nosso primeiro jornalista, a honra, e a justiça, que se lhe devem. As más paixões teem querido desfigurar os factos, attribuindo a odio pessoal o que só fôra desharmonia politica; mas a verdade é -- como já provamos -- que o "Espectro" foi o "unico" periodico da opposição d'aquelle tempo, que teve a gloria de castigar os aleives da imprensa desenvolta, tributando o respeito devido á "pessoa" e "virtudes" da snr.^a D. Maria II.
Quando revemos as provas d'este capitulo, annunciam os periodicos a realisação de um emprestimo nacional, nas mais vantajosas condições para o thesouro, de reis quarenta e tres mil oito centos e oito contos -- tres mil oito centos e oito a maior do que o governo solicitava para a consolidação da divida fluctuante! É geral o contentamento, esperançosa, e proxima, a organisação das nossas finanças, e notavel o credito que o emprestimo nos faz ter nas principaes bolças da Europa. Outros factos, igualmente importantes, em bem do paiz, estão succedendo sob a gerencia de um governo composto das reliquias d'aquelle que louvamos.
O snr. João de Lemos, publicou, por occasião da morte da snr.^a D. Maria II, a conhecida poesia -- O FUNERAL E A POMBA -- da qual consignaremos aqui estes edificantes versos:
Soldados, que ha vinte annosCom esforços sobre humanosBatalhaes por vossa fé,Soldados, eia, de pé!Respeitem-se aquellas mágoas,E do nosso pranto as agoasLavem d'odio o coração;Não ha odios d'este lado,Nem se deshonra um soldado,Quando abraça seu irmão.Ponham-se treguas á guerra,E ninguém manche esta terraAo pé de funérea luz;Soldados, olhai a cruz!Demos pranto a quem prantêa,Demos dôr á dôr alheia,Nos dois campos lucto egual!Nenhum, nenhum se envilece,Unidos na mesma prece,Junto á loisa sepulchral.Solemne melancolia,Seja n'hora da agoniaNosso tributo cortez;Que o tomem, que é portuguez!Portuguez d'aquelles peitos,Por tantos annos affeitosNa lealdade a soffrer;Portuguez que vem das eras,D'aquellas crenças sinceras"D'antes quebrar que torcer".Que o tomem; e nós, soldados,Ao vêl-os tão consternados,Respeitemos-lhe a sua fé;Amigos, eia, de pé!Era o seu chefe, e bandeira,Diziam-n'a companheiraDe infortunio e proscripção;Comprehendemos, pois, seu grito,Nós, soldados do Proscripto,Vinte annos gemendo em vão!A cada um sua crença e dôres,Cada qual estreme as côresDo pendão que traz por si;Todo branco, é o nosso aqui.Mas, se d'elle voz sagradaNos manda, por gloria herdada,Ou morrer ou triumphar,Tambem no alto do CalvarioOutro estandarte, um sudario,Manda os tristes consolar.Porque é de arraial opposto,Não córa o tributo o rôsto,A quem o toma ou quem dá;Soldados, lucto de cá!É tributo á monarchia,Por dois campos n'um só dia,Cada qual por sua lei;Um faz honras á Rainha,Outro á Princesa, sobrinhaD'aquelle que jurou Rei!»
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