D. BRUNO DA SILVA
O Ultimo Cartuxo
DA
SCALA CAELI
DE
EVORA
ROMANCE HISTORICO
(1808-1865)
LISBOA
EDITOR -- JOSÉ ANTONIO RODRIGUES
186 -- Rua Aurea -- 188
1891
«... Os livros até isso teem de filhos, honrarem uns e deshonrarem outros a quem os gerou.
D. Francisco Manoel de Mello, Cartas, cent. 5.a c. 83.
Os leitores illustrados e prudentes dirão, no fim da leitura, que tal saiu este.
Adolpho, Modesto & C.a -- Impr. -- R. Nova do Loureiro, 25 a 48
Ao Excellentissimo Senhor
VISCONDE DA ESPERANÇA
(José Bernardo de Barabona Fragoso Cordovil da Gama Lobo)
A vossa excellencia que, desde estudante em Coimbra, sempre amou os livros e o estudo proficuo, que lhe grangeou solida e variada instrucção; a vossa excellencia que possue a primeira livraria particular de Evora em numero e em preciosidades; a vossa excellencia que me incitou a concluir este livrinho quando o desanimo se apoderara de meu espirito ao perder-se parte do manuscripto; a vossa excellencia que é meu antigo e prestimoso amigo; a vossa excellencia este fugitivo trabalho, este passatempo necessário de minha existência no poente.
O. D. e C. Gratissimo
Em Évora, aos 31 de janeiro de 1891.
A. F. B.
A la merced es propria la gratitud.
D. Francisco Manoel de Mello, Cartas, cent. 2.a c. 20
BREVE PREFACIO
"Dos grandes mestres mais quero o castigo que a emenda. Digam depois do livro impresso o que quizerem, como não digam que me ajudaram antes... "
D. Francisco Manoel de Mello, Cartas, cent. 4.a c.99.
Nem é vangloria nem orgulho a citação que faço do meu querido D. Francisco Manoel. É o começo do que devo expor ao leitor d'este livro.
Escripto por mim, e só por mim, ao correr da penna sobre cadernos de papel almaço ; apenas retocado 'nesse único original, e depois nas provas typographicas, este livro leva muitos defeitos e mesmo erros.
Tem-me a experiência mostrado a verdade da epigraphe, como parece o mostrára áquelle vulto das nossas letras, e por isso é que sae a lume sem emendas estranhas.
Sei que muito lucrára elle com ellas e em ser de novo copiado após demorada obra de lima nas saliencias e asperezas que tem ; mas que ! se me foi sempre impossivel copiar o que escrevo ! Superior ás forças do meu espirito é semelhante trabalho ; não o posso fazer.
Não é por fugir ao castigo' que isto escrevo : acceito o dos entendidos, porque em nada o sou, e, como o mesmo sentencioso perseguido de um rei diz, que o erro dos entendidos tem menos desculpa, desculpado me julgo eu logo dos mestres da arte, dos sabedores da lingua vernacula, dos eruditos.
Não primando nem este livro nem outro escripto algum de minha penna pelo conceituoso da essencia, pelo attrahente da forma, por copia de conhecimentos, tenho, comtudo, para mim que algum me sobreviverá, salvo da destruição das tendas, das lojas de capella, dos estancos do simonte, por uma certa facilidade no dizer o que sinto, que, a não me illudir, existe em meus escriptos, e porque fujo sempre, quanto posso, de mascavar a lingua portugueza com estranhas phrases ou dicções abstrusas. A segunda parte da epigraphe é para uns certos que duvidam, que não creem de modo nenhum que seja meu o que só meu é, o que resulta naturalmente de uma vida passada a ler os nossos bons modelos, a estudal-os, a querer seguil-os.
Poderão esses taes acreditar que por graça do Espirito Santo escrevo o que escrevo; mas o que não poderão nunca é dizer que me ajudaram a escrever.
Vou sendo velho, não sei se mais escreverei e por isso é que me apraz deixar aqui ficar estas ideias, estas verdades aos que depois de mim possam querer ou negar ou conceder-me alguma.
D. Bruno da Silva.
DECLARAÇÃO PREVIA
Não pense o leitor da novella, que vae ler, que o ultimo cartuxo seja para ahi, com outra orthographia, o ultimo que se queime a favor ou contra alguém, alguma instituição, ou contra alguma ideia, escola ou seita. Nada d'isso. É a historia, muito historia, romantisada do derradeiro frade ou monge da Scala caeli d'Evora, ainda conhecido de muitos vivos 'nesta cidade.
Nasceu a ideia de escrever tal livro de ser o auctor, talvez o ultimo homem que na Cartuxa de Evora passou noites invernosas, escrevendo um livro prestes a sair a lume em Lisboa com o titulo de Beata de Evora, e, como succedeu aos professos em 1834, ser como elles expulso d'ali em 1889 por um decreto autocratico, um ukase d'um tzar pequenino.
O ultimo frade pintado escreve a vida do ultimo frade verdadeiro, realissimo, por não poder nem dever escrever a vida do novo mata frades.
Só isto previamente. Leia quem quizer.
I
In principio
No livro do registro de nascimentos para a eternidade do cemiterio publico de Evora lê-se um assento de baptismo do theor seguinte:
«Gertrudes de Jesus d' Amaral, viuva, de 72 annos de idade, filha de paes incognitos, moradora que foi na rua do Espirito Santo, falleceu em 28 de março de 1889.»
O appellido Amaral da fallecida Gertrudes de Jesus era o do marido que ella teve e que partiu antes, um empregado secundário da Camara.
Filha de paes incógnitos: um mysterio qualquer dos tantissimos que occultam paternidades. Os eixos sociaes sobre que gyra o mechanismo da republica não admittiram que Gertrudes tivesse paes. Nem ao menos mãe!
Costume é muito usado o de se occultar o progenitor, patenteando-se a mãe; isto, porém, succede muitas vezes quando esta é plebea e o pae nobre ; nobre, ou cousa parecida e desejada.
Ha perto de vinte annos que me passam pelas mãos certidões de edade de filhos de pães incognitos e ainda nenhuma chamou tanto a minha attenção como essa, que, não sendo de edade, se mistifica com a de morte.
Nascera em 1816 aquella Gertrudes: ponto de partida para averiguações e pesquizas.
Quer o leitor d'estas linhas acompanhar-me em passeio retrospectivo ao anno de 1816 e commigo indagar quem podesse ser aquella mulher e quem os paes d'ella? Façamos fardel para o caminho : Em principios d'abril d'este mesmo anno da graça de 1889 fui eu procurado por um homem que me propozera a compra de alguns livros velhos.
No intuito de salvar alguma raridade bibliographica, que o acaso me proporcionasse, pedi me trouxessem esses volumes. Vergando ao peso de um sacco enorme me apparecia, pouco depois, o homem.
Vinha repleto de Breviários e de esquecidos compendios de Cuniliatis e outros theólogos, conforme verifiquei. Nem um só livro de valor ou pela raridade ou pelo assumpto: não fiz nenhuma conquista para a sciencia bouquinista.
Aconselhei ao homem condemnação immediata d'aquelles velhuscos a serem decapitados nas tendas para embrulhos de cominhos, pimenta, canella e congéneres pulverulencias. Fiquei apenas com a lembrança de que taes livros haviam pertencido ao mosteiro da Cartuxa d'Evora, fundação do muy magnifico Arcebispo D. Theotonio de Bragança, no século XVI.
Já depois de 1834, anno da degolação dos innocentes monásticos pelo Herodes que se chamou no século (e chamará, porque taes homens não morrem), Joaquim António d' Aguiar, viveu em Évora no estado ecclesiastico um homem ainda hoje lembrado por conhecido de muitos vivos, D. Bruno, monge da Scala caeli, primeira casa da Ordem Carthusiana, que houve em Portugal, até que em Laveiras surgiu segunda e ultima.
Não chegou a ter chronista esta ordem, d'onde o não podermos colher noticias de quem fosse este D. Bruno antes de o ser. Também se não conhece o livro, ou livros das profissões d'aquelles monges, onde se podesse encontrar a geração e pátria do conhecido e lendário D. Bruno. Mas hemos de sabel-o.
Qando o decreto de 27 de Maio de 1834 foi lido na Cartuxa definhava na pasmosa, por medonha e homvel, cadeia do mosteiro, um frade ainda relativamente novo.
Muitos annos havia que o monge vivia 'nella, se viver se poderia chamar áquelle existir.
Haverá occasiâo, no decurso d'este livro, de bem a mostrar ao leitor, a horrível prisão dos austeros filhos do mui austero S, Bruno.
Vivia, pois, ali o homem desde 1817. Com estes poucos dados volvamos, alguns annos depois que nascera Gertudes, ao passado e vejamos se poderemos rasgar utn pouco o tenebroso manto que nos occulta o mysterioso nascimento de uma filha de paes incognitos.
Depois que D. João VI, o melhor dos monarchas, na phrasc dos demagogos de 1820, deixára Portugal, amedrontado de francezes, que lhe batiam á porta e lhe intimavam mandado de despejo em nome do corso feliz, começaram de avolumar no paiz as ideias de liberdade, involvidas na do grande descontentamento causado por sommas avultadas que de cá saiam para o Brasil, por se ver Beresford á frente do exercito portuguez, e á testa do governo da nação uma junta governativa sem as sympathias do povo.
A revolução franceza proscrevera reis absolutos do solo da Europa. Em todo o reino era grande a effervescencia revolucionaria: conspirava-se lentamente.
Sem talvez ter ainda cabeça visivel, a revolução bracejava por toda a parte: chegara, finalmente, a Evora. O clero e o exercito conspiravam e natural era o seu conspirar: este, não soffria com bom animo a tutela ingleza, aquelle, aborrecia o exercito e pugnava pelos inauferíveis direitos da realeza absoluta. Mas, nem todo o clero andava adstricto a taes ideias. Frades e sacerdotes seculares havia de mãos dadas com os militares e demais cidadãos liberaes na communhão de avançadas ideias.
A frei Fortunato de S. Boaventura, o iracundo bernardo, oppunha-se o notavel benedictino, frei Francisco de S. Luiz. Alcobaça e Tibães defrontavam-se. S. Luiz membro da Junta Providencial do Governo Supremo do Reino, em 1820; S. Boaventura, látego feroz de liberaes de 1828 a 1834. Bispo de Coimbra e Patríarcha de Lisboa o primeiro, Arcebispo de Evora, o segundo.
Se este livro fora um volume de historia patria muito se poderia espraiar a penna no desenvolvimento da these. Não passando de um romance histórico, limita-se apenas a traços largos, para mais se dar ao maravilhoso romantico, tão do agrado da maioria dos ledores do nosso tempo.
Em 1817 entrava já em ebulição a ideia revolucionaria, a incoercivel ideia inimiga de despotas, de propotentes, de tyrannos.
Por uma tarde de primavera saía de Evora, a pé, pela porta da Lagoa, o alferes de cavallaria cinco, Christovam da Costa. Tomará a direcção do convento de Santo António, torneára o baluarte em que fundado, efora seguindo, encostado ao muro da Cartuxa, o caminho que conduzia áquella casa religiosa, religiosa, áquelle quartel de outra milícia combatente de demonios, e de malignos espiritos com breviarios, e exorcismos, e camaldulas por armamento unico e invencivel.
Vamos nós, leitores curiosos, no encalço do alferes. Somos chegados á portaria externa do mosteiro, sobre a qual ainda hoje se lê :
EREMUS DEIPARE VIRGINIS MARIAE SCALAE COELI ORDINIS CARTHUSIANORUM, 1604.
Fundação d'este anno a portaria, o mosteiro começara a cdíficar-se em 1587 para receber os primeiros habitantes em 1598. A mão poderosa de um príncipe da casa de Bragança, D. Theotonio, Arcebispo de Évora, o mandára fundar e fizera construir com largueza singular e dispêndio superior a 200:000 cruzados.
Chegado á portaria, o alferes lança a mão á corrente de ferro de uma sineta e puxa por ella. Vibram tres sonoras badaladas lá dentro, abre a porta e a ella assoma um porteiro da Ordem.
-- Quem procura vossa mercê ? pergunta o cartuxo.
-- Desejo fallar a D. Bruno da Transfiguração. Será possível?
-- Irei sabel-o, respondeu o porteiro ; entretanto permitta vossa mercê que eu feche esta porta e consinta em ficar aqui.
-- Aqui ! Pois não poderei entrar e 'nesse pateo esperar por vossa vinda?
-- Prohibe-o nossa Ordem. É precisa especial licença do D. Prior.
-- Esperarei.
Fechou-se a porta e Chistovam da Costa ficou fóra a passeiar.
Dez minutos eram volvidos e a porta abria-se novamente.
-- Pode entrar, disse seccamente o porteiro. Christovam da Costa entrou e a porta de novo se fechou sobre ambos.
Atravessado o pateo espaçoso, subiram a escadaria de mármore e chegaram ao átrio da egreja e do mosteiro.
-- É preciso esperar mais aigum tempo aqui, até que chegue o sr. D. Bruno.
E fez soar dentro uma campa peio mesmo systema empregado do alferes na portaria exterior.
Ficou-se ali a passeiar o militar, e o leigo porteiro volveu á sua posição, indo assentar-se no poial de granito sob o alpendre interno da peitaria exterior.
Duas portas dão entrada para o interior do mosteiro, aos lados da nova egreja. Juncto da da direita ha uma pequena janella com grades de ferro. Foi a esta janella que, pouco depois, assomou a cabeça tonsurada de D. Bruno Maria da Transfiguração,
Apresentemol-o ao leitor...
Homem de vinte e seis annos então, tinha mais que mediana altura. Magestoso, rosto mais sobre o redondo do que comprido, olhar vivíssimo, corado, lábios delgados e vermelhos, annunciando um temperamento sanguíneo, e um génio irritável e sempre inquieto. Nâo tinha estampada no rosto a maceração das vigílias, das rezas, dos trabalhos manuaes no cultivar do seu horto e cerca. Ao contrario ; parecia um mimoso da sorte, do feliz destino de uns certos inúteis, que vêm ao mundo e 'nelle vivem vida regalada em perpetuo dolce far niente, sem cuidados, sem a mínima cogitação, só vivendo a vida vegetativa, a da matéria, a dos tecidos adipoposos, nacarados e luzidios. E não era assim, tal a naturesa d'elle. Exemplar no noviciado, no serviço do culto, no agricola, a que já pouco se davam os monges 'neste século, exceptuando o agricultar do respectivo hortejo, ou jardinsinho, D. Bruno, juntava aos trabalhos da obrigação monástica outros de devoção especial, a que o arrastavam sentimentos do seu modo de ser, da sua natural compleição. Em breve saberemos que trabalhos esses eram.
D. Bruno era uma vocação contrariada : para tudo servia seu natural pendor de genio, de vocação, de instinctos, menos para um austero cartuxo. E, comtudo, não havia deslisado um ápice ainda do pautado religioso, da austeridade monástica. Sacrificára-se com indomável vontade o novo monge a conveniências, que viremos a conhecer. Só assim poderemos explicar o antagonismo da Índole própria com a da Ordem cenobitica, em tão boa e ao menos ostensiva camaradagem.
Isto basta por agora: o completo retrato de D. Bruno fal-o-ha o leitor no decurso d'este livro.
-- Adeus Christovam, dissera o monge mal dera com a vista no militar. Não te esperava hoje. Temos cousa nova?
-- Temos, respondera o alferes.
-- Olá, olá !
-- Precisamos conversar a sós, em sitio onde não possamos ser ouvidos. Arranja isso, continuara Christovam da Costa.
-- Nao é fácil ; mas ... eu tambem tenho que te dizer . . . E permanecera alguns segundos a scismar. De repente, como quem lembra uma ideia e não hesita em sua execução:
-- Vamos para a minha cella.
-- Mas, não te é isso prohibido f perguntára Costa.
-- É; mas quero o eu, respondera o cartuxo. E sem dar tempo a que o amigo lhe fizesse mais perguntas e com ellas lhe creasse difficuIdades, acrescentou:
-- Afasta-te, passeia para ahi.
Christovam da Costa obedeceu ao tom imperioso do monge e foi indo pelo átrio adiante, debaixo da arcaria.
-- Psiu! Psiu! Ó Telmo, dissera seguidamente D. Bruno, em voz suffi cientemente audível do porteiro, ao mesmo tempo em que com a mão lhe acenava para que viesse,
O porteiro ergueu-se e correu ao chamamento. -- Aquelle meu amigo vae entrar na minha cella : ha de saír de noite, entendes?
-- Mas, senhor D. Bruno, olhe o que faz. Pois não se lembra de que já não está só?
-- Não tem duvida; occultarei o que sabes. Ficas entendendo?
-- Fico tremendo por nós ambos, é o que eu fico, respondeu o porteiro, assustado.
-- Vae, terminou D. Bruno, indicando a portaria ao guarda.
Telmo obedeceu, e D. Bruno internou-se no mosteiro, deixando a passeiar ao amigo.
Anoitecia. Christovam da Costa observou o chamamento do porteiro, a vinda e volta d'elle, foi passeiando até chegar á janella, onde deixára ao monge, e aU chegado, contando que elle estivesse, disse para dentro :
-- Então, que plano tens ? poderemos fallar a sós, sem receio de sermos ouvidos?
Não obteve resposta, conhecendo com estranhesa, que D, Bruno se afastava pelo corredor adiante sem lhe ter dito mais nada, pois que, !á no fundo d' elle, via sumir um vulto, que não poderia ser o de outra pessoa, pela escacez do tempo decorrido. Esperou, continuando a passeiar.
Cerrara-se a noite, e Christovam da Costa, sempre qne no passeiar chegava á janella, olhava para dentro, como esperando ver chegar ao monge. E ninguém! Admirado já, mas certo de que D. Bruno viria, tão bem o conhecia elle, resignou-se e esperou mais, continuando o seu passeiar, e olhando pela janella sempre que ali chegava.
E ninguém ! Ia para lá, e já defronte da porta da egreja, quando, de repente, aquella se abriu de mansinho e 'nella appareceu D. Bruno.
-- Entra depressa, dissera aquelle. Christovam da Costa entrou na egreja e a porta fechou-se sem ruído, sem o mais leve gemer de gonzos.
Mal se via no templo, apenas alumeado lá em cima, na capella mór, por unma lampada mortiça.
Uma teia alta de madeira de angelim, dividia a egreja em dois corpos, ladeados de assentos e cadeiras para os monges.
As cadeiras do primeiro corpo da egreja, logo a seguir à porta e antes da teia apainellada, eram baixas, mas fundas. Nem d'ellas se poderia vêr o segundo corpo da egreja, nem das cadeiras mais elevadas e melhormente emmolduradas em trabalhos de talha, do segundo corpo, se poderiam vêr as cadeiras baixas do primeiro.
D. Bruno tomou pela mão a Christovam da Costa, conduziu-o para uma destas cadeiras encostada á teia divisoria, e disse-lhe em voz baixa':
-- Assenta-te aqui e espera um pouco.
-- Mas, nota que me nâo posso demorar muito, observou o alferes ; e, pelos modos, queres que eu assista a alguma das rezas da Ordem.
-- Espera, repetiu o monge, subindo egreja acima e deixando ao amigo assentado e como escondido na funda cadeira.
Se Christovam da Costa não conhecesse bem a D. Bruno, e não contasse cem o rapido expediente do seu animo na execução de qualquer plano que concebesse, julgaria que fôra uma cilada aquelia entrada, para o colher no mosteiro com fim muito reservado. Tinha, porém, a certesa do contrario.
Emquanto o alferes se dava a este pensar, soava lá dentro uma campa tangida, chamando os monges a uma reza nocturna, e, seguidamente, presentiu a entrada d'elles no segundo corpo da egreja.
II
Dois mestres caldeireiros
Demora a rua dos Caldeireiros, em Evora, entre a rua de Alconchel e a da Ladeira na direcção noroeste. Estreita e escura, como as primitivas ruas da cidade ainda do tempo da dominação arabe, não arma hoje os caldeireiros, como no lempo exn que d'elles houve o nome, e como nos fins do século, passado em que lá viviam e tinham suas lojas alguns.
Ali vivia em 1790 o caldeireiro. Clemente José Candieiro, com sua familia. Diversos filhos tinha o homem.
Contra o sentir do arcebispo de Braga, D. Frei BarthoJomeu dos Martyres, aprendia um d'elles o mesmo officio do pae, e o mais velho era destinado aos estudos, para a vida monachal, enlevo da ta mi lia, aspiração suprema de ventura domestica.
O rapaz, porém, não tinha geito para ella, e nisto estava, exactamente, a opposição á doutrina do Arcebispo, demasiado sabida de quem o tem lido. Preparava o pae piedoso um mau frade, podendo dar á sociedade um valente militar, ou um habil caldeireiro, ou qualquer outro artífice.
Como em Coimbra, difficil não era a um pae pouco abastado o erguer um filho aos acumens das sciencias, que por então se estudavam em Évora : as Humanidades e a Theologia nos conventos.
Manoel se chamava o rapaz, o mais velho dos filhos do mestre caldeireiro, frade nas esperanças de uma familia, tardia realidade no chegar a tão desejada tneta de ambições devotas. Tinha apenas doze annos de cdade o moço; estava em meio da carreira fradesca, dado que aos vinte e quatro podesse já professar.
Regularmente intelligenle, era muito desinquieto e travesso; comtudo, ia estudando a gramtnatica latina em que estava quasi prompto para exame.
Relevaria descrevel-o mais se não tivéssemos de o encontrar por este livro adiante, como protogonista de sua acção, e delle tomar mais exacto conhecimento.
Até á edade de quinze annos esteve em casa dos paes. Mas, quinze annos sâo uma edade perigosa no rapaz.
É o abril da existência, edade do desabrochar d'affectos, dos primeiros rebates amorosos, de cogitações oppostas á quietação do estudo.
Defronte d'elle, na casa de esquina da rua MiIheira vivia outro caldeireiro, casado, que tinha uma filha única, um pouco mais nova do que o Manoel, mas muito formosa, de nome Bemvinda da Gloria.
Mal vinda fôra ella ao mundo para os sonhos de ventura ecclesiastica que sonhava o pae do estudante.
É um perigo imminente para o que se dá ao estudo o ter defronte a uma mulher. O desenvolvimento intellectual apressa o desenvolvimento physico; e, por nao fazermos longa dissertação sobre o caso, diremos a quem ler este livro, que Manoel já lia mais no coração de Bemvinda do que no compendio de rhetorica, fastidioso.
Descobriu-se aquelle estudo, e o pae do rapaz cuidou logo de apressar a entrada d'elle 'num convento, de áspero instituto. Foi lembrado o mosteiro da Cartuxa.
Sem consultar o moço, sem lhe espreitar a vocação, caso em que ha muito devera ter pensado, o pae do estudante procurou um dia ao D. Prior dos cartuxos, para com elle combinar a entrada do filho na Ordem. Não houve senão uma duvida
[...]
-- Então, va de assentar, dissera o dono da casa. E, offerecia uma tripeça ao visinho Clemente emquanto elle se assentava no dorso de volumoso caldeirão de cobre. Assentaram-se.
-- Pois, senhor, saiba o visinho que um negocio de muita importância me traz aqui, de interesse...
-- Seu, ou meu? perguntou atalliando a exposisão o pae de Gloria.
-- É de nós ambos, não é só meu, respondera Gemente Candieiro.
-- Então falle para ahi.
-- Sabe o visinho que eu tenho um filho, que...
-- Mais do que um vejo eu que tem : a que propósito me falla 'nisso?
-- Ó homem, não me interrompa, ouça, se quer ouvir e falle depois.
-- Bem, diga lá; mas olhe que eu tenho que fazer.
-- Sabe que tenho um filho, que distino á vida ecclesiastica ?
-- Sim, parece-me que sim.
-- Tem ido muito bem nos estudos até ha pouco tempo ; mas, agora anda-me estabanado com a sua pequena, o demónio do rapaz, e é preciso ...
-- O que diz vossê, homem do diabo !
-- Alto lá com isso, ó sô Raposo ; dobre essa lingua, se quer, e se não quer, vivai passe bem. E erguera-se o Clemente Candieiro.
-- Eu logo vi que o dotorselho havia de dar bom burro ao dizimo. Tal pae, tal filho. Querem vêr que o rapazola me dá cabo da pequena! Mas, isto não pode ser. A Bemvinda é uma creança, e seu filho um maroto, que m'a quer deitar a perder. Sabe que mais? Ponha-se lá fora e deixe o trastesinho por minha conta, que quem o desanca sou eu.
-- Vossê falla assim, porque está em sua casa, respondera o Candieiro aos inconvenientes do Raposo. Eu sáio já; não se incommode. Olhe que quem tem que perder mais não sou eu, é vossé ; e passe bem. E dava os primeiros passos para sair d 'ali o pae do estudante.
Fervia em pouca agua Joaquim Raposo, que tal era o nome do visinho de Clemente Candieiro. Tinha um génio assomado, como o leitor viu, e tanto que chegava offender a quem dizia cousa que lhe não quadrava. Incorrecções ou de temperamento ou de educação. Mas pouco ihe durava aquelle estado de exaltação.
Homens ha assim, emquanto não reflectem um pouco. A lembrança de que quem perderia mais seria elle, com que o ameaçara o visinho, accudioIhe á mente repentina, ao ver já ir pela porta fora ao visinho, e correu a tomar-lhe o passo :
-- Homem! venha cá. Vossê diz as cousas assim tão á queima roupa, que na verdade... Entre cá, entre. E tomava por um braço ao visinho, seguindo com elle para o cubculo. Desculpe estes meus modos...
-- Sim, está desculpado, mas que quer de mim ? perguntou o Candieiro.
-- Vossê disse que era preciso, mas não disse o quê. Diga para ahi.
-- Em poucas palavras : digo que é preciso tirar de casa a pequena quanto antes, para o rapaz estudar e para não termos por ali cousa peior. Veja se me entende, pense no caso, e sem mais...
De novo dava os primeiros passos para tornar a sair.
-- Que tire minha filha de casa! Tire vossê o seu filho! E esta!
-- Bom, bom! Tornamos á vacca fria ! Pense, e saúde.
Clemente José Candieiro d'esta vez sáíu, para não ter alguma turra grave com o irascivel e inconveniente Raposo.
Pouco depois dos dois visinhos terem entrado para a casa pequena, o aprendiz de caldeireiro, que martellava quando elles entraram, ao ouvir erguer a voz do mestre, parou de trabalhar, e poz se á escuta, disfarçando o espreitar com uma pancada ou outra na obra que tinha entre mãos. Não deram por tal cousa os dois visinhos, e o negocio que Clemente Candieiro só queria sabido de dois já o era de um terceiro. Outra inconveniência do génio exquisito de mestre Raposo.
Clemente Candieiro passou aquelle dia a scismar no modo de remediar as cousas, por modo que o filho não fosse perturbado e.n seus estudos, e o Raposo, almejando que chegasse a noite para tudo communicar á mulher e d'ella saber o que na revellação houvesse de verdade, suspeitando que a esposa devesse já ter descoberto aquelles amores de creanças, com a vigilancia e perspicácia proprias do sexo.
Deixemos que o Raposo indague da mulher o que pretende saber, e sem proseguir a historia, demos uns traços ao leitor d'aquelle manhoso aprendiz de caldeireiro, que se pozera a escutar a conversação dos mestres Raposo e Candieiro.
Contava ao tempo o aprendiz uns quinze annos de edade. Tinha sido exposto na roda d'elles, e tomado para casa do mestre. As más linguas diziam-no filho do mestre ; mas, nem todas, crendo algumas que o rapaz era filho de frade.
Esta asserção dos maldizentes d'aquella epocha, não agradava então aos que podiam apontar-se como pães delle, e ainda hoje sei eu que não agradará a muita gente a revelação.
Sempre a eterna mascara, a caraça collossal dos romanos cómicos a tentar occoltar a verdade.
Pois 'numa cidade, como Evora, em que os conventos se contavam por dezenas e os frades por centenas, era lá possível que alguns delles observassem o preceito da castidade, que juravam, ao tomar o habito f Era lá possível que muitos não fossem homens? Quem não crê 'nesta doutrina realista ignora a historia mesmo do paiz. De bispos descendem muitos fidalgos honrados: regias styrpes procedem de troncos tonsurados e adstrictos pelo voto á castidade monachal.
Não vem para aqui o desenvolvimento da these, aliás de fácil deíensa e de copiosa demonstração. Vejam os nobiliários, os curiosos, os descrentes, os sinceros de opinião contraria, e por lá acharão matéria de muita edificação e convencimento.
Mas, deixando o caso, fosse elle íilho de quem fosse, é certo que nao conhecia paes.
Era rude e astucioso, estúpido e velhaco, parvo e finório, contrastes não raras vezes associados, como todos nós sabemos por observações feitas.
Tinha-se creado sob o mesmo tecto com a Bemvinda: estimava-a muito, sem que aquella estima fosse diflerente da de um bom irmão.
A noticia que descobrio no seu espreitar incommodou-o. Elle já embirrava com o Manoel Candieiro, talvez por elle não seguir a vida de caldeireiro, a do pae, e a d'elle próprio, e ser estudante, sem lembrar, sem poder reflectir que tal vida lhe era imposta pelo pae, o mestre Clemente.
Escusado será dizer ao leitor que o aprendiz de Raposo tomara de ponta ao aprendiz de frade. Chufas, remoques, martelladas enoniies ensurdecedoras, para incommodar ao estudante nos seus estudos, foram uma tempestade d'ali por diante.
E era natural aquella antipathia; porque é vulgar não gostarem os artistas d'aquelles que se dão ao estudo, que procuram nos livros instrucção, ou por necessidade de occupação ou de seu espirito, mais propenso a letras do que aos exercícios manuaes e inglórios das artes mechanicas. De toda a parte è semelhante doutrina.
Trinta annos ha que muitos artistas de Coimbra apodavam de atistocrata a um, que, em vez de com elles se dar a passeios improficuos, a frequência de casas e passatempos próprios da sua educação litteraria delles, achava por melhores os do trato com velhos livros clássicos, mestres da nossa boa e genuina linguagem, com que veio a passar o melhor da sua vida de moço, velando noites e noites a lel-os, e consagrando-lhes quantas horas vagas de sua occupação necessaria tinha durante o dia.
Muitas gerações academicas o sabem, muitas, donde sairam theologos, mathematicos, medicos, juizes e ministros da corôa, hoje vivos, e muitos já no tumulo.
Não se lhes queira mal por isso; lamente-se antes a obcecação de seus espiritos, mal dirigidos e encaminhados.
Deixando, porém, a divagação, que dava para muito escrever o assumpto, desde aquella antipathia até á de uns Janinguens litterarios, arrumadores de palavras na alfandega das letras, que nSo perdoam, elles, que estudaram umas cousas nos Lyceus, de que por certificado possuem umas meias folhas de papel, que os dizem sábios, que não toleram aos que as não tem, os conhecimentos reaes e sólidos que possam ter adquirido á custa de longas fadigas, de meditação, de descernimento. Para estes pronunciou o Martyr divino expirante no lenho da redempção o famoso i Pater dimiite illis, quia nesciunt.
Volvendo, pois, ao aprendiz de caldeireiro, affirmaremos gue votara ao estudante desde aquelle dia mais do que aborrecimento, zanga, odlo até. Sabel-o-hemos lá para o diante com evidencia manifesta, bem como lhe conheceremos o nome, que por elle não perca já.
III
Conspiração de 1817
Como são sempre mais cubicadas as cousas de alcançar mais custoso, não diremos por emquanto mais nada ao leitor com respeito aos dois visinhos caldeireiros, aos filhos d'estes e ao aprendiz sem nome ainda, para que lhe seja mais cubicado o saber no futuro, que sequencia terão os acontecimentos, apenas enunciados na antipathia dos dois mestres e na afleiçSo dos filhos d' estes.
Voltemos antes á Cartuxa, onde deixámos Christovam da Costa na cella de D. Bruno Maria da Transfiguração, ou prestes a entrar 'nella.
De facto, termmada a reza nocturna foram os monges debandando em busca de suas cellas.
Pouco depois, novas badaladas de campa tangida prescreviam o silencio na vastidão do mosteiro. Minutos decorridos, pé ante pé, D. Bruno descia á egreja e vinha ter com o alferes.
-- Vem comigo, mas de mansinho.
-- Póde trahir-nos esta espada, objectou o militar, batendo por ahi ao acaso com ruido 'nalguma porta.
-- Mette-a debaixo do braço, e vem. Foram, e saíram da egreja por uma porta latteral, que dava para o corredor, onde, havia pouco tempo, Christovam da Costa tinha visto ir-se aflfastando um vulto, que suppoz ser o de D. Bruno. Andado este corredor, entraram na vastíssima claustra, e tomaram para a direita. Dobrado o angulo, e quando davam os primeiros passos no segundo corredor d'ella, em demanda da cella do monge, a terceira, pareceu-lhes distinguir lá no extremo, ao dobrar sobre a esquerda aquella claustra, sem egual na grandesa, um vulto que se escondia no terceiro corredor.
Poderia ter sido sombra de um lampeão que lá se avistava no angulo, vasquejando clarões no balouçar visivel, e poderia ser monge que recolhesse á cella. Por cautela, D. Bruno poz-se diante do alferes, encobrindo-o com as abas largas e compridas do habito, e ambos assim se dirigiram á terceira cella, onde habitava. Aberta a porta, D. Bruno fez entrar primeiro a Christovam da Costa e, seguidamente, o fez elle, fechando-se por dentro.
A cella de um cartuxo de Evora era uma morada de casas, capaz de abrigar a uma familia. Um corredor estreito, parallelo á parede da claustra terminava, á esquerda de quem entrava, 'numa escada que conduzia ao segundo pavimento, ao andar de cima, e á direita em cubiculo, cuja applicacão se não determina bem hoje, no estado ruinoso em que tudo ali está. Duas portas saíam d' elle: uma, para o^ jardimsinho quadrado, com fonte de mármore no meio e canteiros de flores em volta, outra para a casa da chaminé, donde havia uma porta para três casas mais internas: a do jantar, talvez, a de estudar e a de rezar e de escrever.
D. Bruno e o alferes entraram na casa da chaminé, onde tremebrilhavam labaredas de ascuas crepitantes.
-- Fogueira accesa neste tempo ! dissera Christovam da Costa, admirado. Se fosse no inverno, comprehendia-se ...
-- Que queres tu de um solitário ? Recreio-me de noite, assentado áquelle lume, a ouvir os estalidos da lenha e ao ver trisulcar as chammas e as faulhas por essa chaminé a cima. Não tenho outra companhia, dissera intencionalmente o monge na resposta ao seu amigo. Entra cá para dentro.
E os dois foram entrando na casa immediata. Era a de leitura, de estudo e reza. Mobilada com parcimonia, continha apenas uma mesa ordinaria e algumas cadeiras de couro, com espaldas apaineladas em relevos da renascença, nos desenhos de mulheres meiopeixes, de homens semi-capros, de cabazes de flores. Um armario aberto na parede mostrava Breviarios e mais alguns livros.
-- Assenta-te e falla para ahi, dissera D. Bruno a Christovam da Costa, puxando-lhe uma cadeira e assentando-se 'noutra.
-- Venho-te consultar, como a um amigo de infancia, cujo parecer me tem sido em muitos casos proveitoso ; mas, não me posso demorar, por causa de assistir ao recolher.
-- Qual recolher ! Illude a disciplina, como eu faço : deixa essa exactidão mechanica ao soldado, ao automato, ao manequim da ordenança. Vamos, dize lá; mas não tenhas pressa, mesmo porque não podes saír tão cedo.
-- Cheguei hontem de Lisboa e trago comigo um juramento, e a concessão de quinze dias para responder a uma proposta.
-- Não percebo nada; explicate mais,
-- Tu nunca foste a Lisboa? perguntára o alferes, como quem queria chamar ao monge a attenção para logar conhecido.
-- Não.
-- Bem. Suppõe tu que perto do Rocio ha o botequim de Santa Justa, onde se ajuntam muitos militares e paisanos.
-- Sim, sim ; mas ao final, que o caso de um juramento, tem-me curioso, como se mulher ou creança.
-- Seja como desejas. No botequim de Santa Justa fui convidado para entrar em conspiração contra o governo, e contra os inglezes.
-- Ólá! O caso é grave. E quem te convidou?
-- O coronel Manoel Monteiro de Carvalho e António Cabral Calheiros.
-- E quem é o chefe da conspiração ?
-- Affirmaram-me que era Gomes Freire de Andrade.
-- E trazes d'isso a certeza?
-- Não.
-- E que homens são esses? que conceito fazes d'elles?
-- Pelo que me disse o coronel Carvalho, entendi que a ambição de postos era o movei dos militares, expulsando para isso aos officiaes inglezes.
-- Tu juraste entrar na conspiração ?
-- Não jurei senão o segredo, e prometti pensar no caso durante quinze dias, para me decidir no fim d'elles.
-- Fizeste bem. E como pensas no assumpto?
-- Vacillo, hesito, não sei que partido tome, e para ouvir tua opinião te communico, só a ti, este negocio.
O cartuxo permaneceu algumt tempo silencioso, meditabundo, cogitativo, e logo :
-- Queres então o meu parecer, sobre se deves ou não entrar na conspiração ?
-- Quero, para isso venho.
-- Não entres.
-- Mas, 'nesta paz octaviana, 'nesta carreira de postos e de accéssos, em que entrei, arrisco-me a não passar de alferes : estão para ahi officiaes ingiezes aos montes a tomar-nos o passo...
-- Olha, meu amigo, altende-me : Essa paz de que falias não pode ser de grande duração. Tudo conspira para uma guerra formidável ahi mesmo no paiz, e 'nella, tu verás como nos deixarão inglezes, e como ou has de subir postos, ou perecer 'nalgum combate, já que segues uma vida de tanta contingência. Não entres na conspiração. Se a eventualidade da guerra, se o caprichoso dos combates, os precalços d'esse teu officio te podem prostrar, não entres na conspiração, que pode abortar, e levar-te a um fuzilamento, como a rebelde e a inimigo das instituições. Foi um mal o virem cá inglezes combater a nosso lado o inimigo commum, os francezes; porque depois da batalha do Bussaco se consideram senhores de Portugal, e se chegam a descobrir o plano, a colher os conspiradores, fuzilam-nos a todos, pódes crel-o. É como eu penso.
-- De modo que é teu parecer que ...
-- Que não entres na conspiração ; que escrevas a quem te convidou e lhe digas que não ; mas, vê lá como escreves : falia no caso por longes, de modo que entendam a tua recusa sem que digas o que regeitas. E fallo-te assim, porque temo, receio muito que se descubra o trama, que, uma vez descoberto, levará infallivelmeiite ás prisões e aos cadafalsos aos que forem colhidos na rede ingleza, sendo esses, quem sabe ! talvez os primeiros martyres das ideias liberaes, que ahi estão no paiz na maioria dos homens.
Espera, deixa que os acontecimentos se manifestem, e tomarás então, e só então, o caminho que houveres por melhor, e mais favorecer a teus interesses. Não luctes com sombras, não corras após o incerto : lembra-te que de milhares de victimas tragaram esses mares antes que Vasco da Gama mostrasse ao velho mundo um caminho para o oriente, e Alvares Cabral um mundo novo.
-- Mas, d'esse modo...
-- Sim, bem sei o que pretendes oppôr a esta doutrina fradesca, egoista, sim, porque o é ; colher alguém o fructo dos trabalho
[...]
dia já deve seguir os usos e costumes das mais, alimentando se como convém a homens enclausurados e adstrictos a mortificação e a silicios contra as carnes, a vigilias e rezas, dissera, com intenção especial, o alferes. E accrescentou : estava capaz de te acompanhar na ceia, visto que me não deixas saír por ora.
-- Pois sim, com muito boa vontade; o caso está em que tu queiras. Anda cá.
E assim fallando D. Bruno tomou-o por um braço e levou-o para a primeira casa, que tinha a chaminé.
-- Para onde me arrastas ?
-- Vem ver a lauta ceia que te espera. Entraram na cosinha, e D. Bruno foi-se a um armario, que abriu de par em par, dizendo:
-- Olha.
Era a provisão que recebera composta de feijões frades, laranjas, nozes e um pão grande de toda a farinha, tendo por complemento um mólho de couves noviças.
-- Pensei que te traziam feita a comida, dissera o Costa, e que outra fosse.
-- Não, outra não é : só nos dão o que vês, e de tempos a tempos alguns ovos e queijo : se adoecemos somos mimoseados com peixe, e, na falta do do mar, comemos kagados, que ahi creamos.
-- E nunca vos dão carne ou vinho ?
-- Nunca jamais comemos carne; vinho sim; provamol-o, muito aguado, raras vezes.
-- Pois, meu caro amigo, declaro-te não saber explicar o como te sujeitas a isto ; sim, tu, que eu conheço desde a infância, espirito revolto sempre contra prisões e rigores, creado na modesta mas abundante fartura de teus pães. Grande mudança se operou em ti.
-- Enganas-te; sou o mesmo.
-- O mesmo I aqui enclausurado ha já annos, ahmentado como o teu Patriarcha ou como esses monges dos ermos! como esses cenobitas da Thebaida, de que nos faliam os livros! Não comprehendo.
-- Em tudo isso o mesmo sou. Eu t'o explico. Se eu tivesse professado outra Ordem de menos austeridade, das muitas que por ahi temos em Evora, succederia o ter eu mais liberdade, melhor mesa em refeitório farto, cosinheiros e creados para me servirem, um bem estar relativo, não é assim f É. Eu seria, como os demais, um homem frade; mas um homem homem, não. Seria frade objectivo, sem poder ser frade subjectivo. E tu, que me conheces sabes quaes são minhas ideias a respeito de muita cousa. O que eu pretendesse como homem seria conhecido de todos, e d'ahi o descrédito pessoal e o da Ordem a que pertencesse. Na Cartuxa é outra cousa. Cilícios, jejuns, abstinência, silencio, clausura, alimento de friictos e legumes, tudo isso cambio na satisfação de meus gosos pessoaes em proveito do meu subjectivo, sem que ninguém o saiba. Quem o poderia suspeitar? Um austero cartuxo, que não mais saiu d'aqui, que se mortifica e mal alimenta pôde lá dar largas á sua naturesa ! Pois, meu amigo, chegámos ao ponto : fica sabendo que dou, conhece que me não cilicio, que como outras comidas e que saio do mosteiro.
-- Sim, creio; mas és tu então um péssimo cartuxo, observou o alferes.
-- E já te disse alguém que eu pretendesse ser optimo? Circumstancias me fizeram ser frade, como sabes: hei de ser um frade como o poder ser, e... mais nada. Mas, voltando ao ponto ; queres ceiar comigo? perguntou D. Bruno, sorrindo malicioso.
-- Quero, só para ter o gosto de te vêr feito cuque.
-- Muito bem. Como ainda não podes sair, temos tempo. Vae tu ahi lançando lenha no lume, que eu já volto.
E ao fallar assim D. Bruno entrou no corredor da habitação, tomou á direita, chegou á extremidade e subiu a escada, que vimos quando entrámos.
Cnristovam da Costa, distrahido com a conversação do amigo, scismante no colete de mulher que lhe viu sobre a cama, pasmado da confissão feita sobre o viver que vivia, que lhe disse viver ali, tão diverso do que lhe suppunha, já não pensava na conspiração, nem na hora de, recolher. Almejava por conhecer os processos empregados de D. Bruno, para conseguir o que lhe affirmára conseguia e gosava. Occupava-se em alimentar a fogueira, seriam volvidos dez minutos, quando sentio que D. Bruno voltava. Interrompeu o serviço, ou deu-o por concluido, e voltou-se para a porta, por onde entrara D. Bruno. De facto, o monge assomava ali, capuz sobre a cabeça, rosto vendado.
-- Essa não é má! vens mascarado ?
O vulto entrou; mas não respondeu.
IV
A ceia de um cartuxo
No entretecer da historia da vida do ultimo cartuxo da Scala caeli de Evora, ficava bem 'neste ponto uma suspensão da narrativa. Mas, o leitor, ao vêr entrar a D. Bruno mascarado, deseja, como é natural, conhecer a razão do estranho disfarce, e nâo é justo addiar-lhe esse conhecimento.
Continuemos pois a narrar.
Christovam da Costa notava, com assombro, que D. Bruno lhe parecesse de menores dimenções corporaes, e, sobre tudo, que não fallasse, que não tivesse respondido ás suas palavras.
D. Bruno silencioso, ou o diabo por elle, entrou, foi-se a um armário, que continha louça e utensilios de cosinha, começou de tirar alguns e a tudo preparar para fazer a ceia.
Composto o lume, a fogueira alimentada de um novo trasfugueiro e novas achas ; 'nella posta uma trempe de ferro e sobre ella uma caçoula de barro, a operação culinária começou.
-- Tu não fazes favor de me dizer alguma cousa, de me explicares o teu silencio, esse bioco? dissera Christovam da Costa, depois de ter contemplado silencioso a D. Bruno nos preparativos da
O mesmo silencio do monge ; nem uma resposta, uma paragem, um prestar sequer attençSo ás falias do militar.
-- Só se tu não és D. Bruno ; mas eu devo sabel-o, que para brincadeira e zombaria de sobejo me parece. Deixa vêr o rosto.
E Christovam da Costa fôra-se ao monge para lhe erguer um panno, que, a modo de dominó, lhe velava o rosto,
-- Alto! bradou D. Bruno, assomando 'naquelle instante á porta, por onde saíra.
-- Bravo! meu amigo! A situação vae de novella. Que diabo é isto?
-- Um leigo monachal que nos prepara a ceia, respondera D. Bruno, a rir, a rir.
-- Isso será, como dizes ; mas, porque nSo mostra o carão este leigo cosinheiro?
- Porque lh'o prohíbe a Ordem.
-- A Ordem ! Explica-me o caso e deixa-te de comedia.
-- Bem está ; mas não te zangues, acudira D. Bruno. Tudo saberás ; mas ajuda-me antes a depor esta carga.
A taes palavras, Christovam da Costa attentou no amigo. Vinha como um ouriço, D. Bruno. Uma garrafa debaixo de cada braço ; na mSo esquerda uma taça de marmcllada e na direita um presunto de Lamego, quasi inteiro!
-- Santa obediência aos estatutos de S. Bruno! Assim já comprehendo este viver. Dá cá.
E Christovam da Costa tomava a D. Bruno as duas garrafas lacradas, bojudas e mal feitas.
-- Leva para dentro, disse D. Bruno, tomando também a direcção da casa de jantar, aquella em que já estivemos, contigua á alcova de dormir.
E entretanto, o leigo carthusiano trabalhava na ceia. Rechinava a caçarola na trempe, esperando as grossas fatias de lacão que D. Bruno cortava com mestria sobre a mesa de jantar.
Christpvam da Costa estava maravilhado do que via, desconfiado do cosinheiro, arrebentando de curiosidade por vêr o final da scena culinaria.
Cortadas grossas lascas de presunto, sufficientes para a ceia de tres ou de mais individuos, o monge correu a levai as ao leigo mascarado, volvendo a Christovam da Costa, que, absorto, permanecia de pé.
-- Pareces estupefacto! defensor da pátria! dissera D. Bruno, risonho.
-- Não é para menos o que vejo.
-- Pois, meu amigo, em tudo isto só vês actos naturalissimos. Faz-se uma ceia para nós comermos. Non sole oratione vivit homo,
E assim fallando D. Bruno punha a mesa, sacando de baixo do habito de uma toalha alvissima, de talheres e guardanapos.
-- O teu habito parece-me inexgotavel como as garrafas dos saltimbancos ! dizia o alferes, ao contemplar tanta humildade e preparativos de mortificação.
-- Não te disse eu que era o mesmo, não obstante o aspérrimo da nossa regra?
-- Vou vendo isso mesmo ; mas, dize-me : como diabo te arranjas tu para fazeres o que fazes }
-- Ahi o meu segredo.
E acabava de pôr três talheres na mesa.
-- Três talheres ! Acaso ceiará comnosco o cosinheiro ?
-- Claro é que sim ; pois não quererás tu que o homem coma?
-- Isso quero eu ; mas em nossa companhia, acho menos próprio ; não porque não seja elle um homem como nós somos, mas...
-- Lá isso nâo é ; continúa, interrompeu D, Bruno.
-- Como, não é? Explica-te.
-- Não é, já t'o disse ; mas, continúa a desenvolveres o porquê.
-- Porque não poderennos estar tão á nossa vontade.
-- Estaremos, descança. E dize-me cá uma cousa : quando chegaste de Lisboa?
-- Hontem por noite.
-- E ha que tempo estavas tu para lá?
-- Havia quinze dias.
-- E quando chegaste, ou já hoje não te contaram nada de novo?
-- De novo? Não percebo nada, A que alludes?
-- Em breve o saberás.
'Nisto apparecia á porta o leigo mascarado, silencioso, sem lhe ultrapassar o limiar. Depois de fazer certo signal a D. Bruno, retirou para junto da cosinha.
-- Que diabo de automato é este que tu arranjaste ? E sempre mascarado! Se estiveramos na Inquisição explicado estava o caso : era um d' esses instrumentos conscienciosos de torturas horríveis, de tormentos espantosos, que, por vergonha da humanidade, ali mortificam a seus semelhantes. Aqui, porém, o caso é outro, e, francamente, tu vacs dizerme o que significa tal embiocado.
-- Vou, mas não já; ha de ser depois da ceia.
-- Mais aguças o meu desejo : explica-te já.
-- Não sejas apressado. Tu vieste a esta casa para me revelares um segredo e de mim ouvires um parecer. Pois bem, sabe agora que também eu tenho um segredo a revelar te e quero de ti un: parecer, ouvir tua opinião, . conhecer como pensas sobre um caso, que, pelos modos, não conheces.
-- É curioso! Pois sim, direi o que souber, observarei o que me occorrer, logo que conhecido seja.
-- Então vamos ceiar.
E D. Bruno ergueu-se da mesa, chegou -se á porta e disse para o silencioso cartuxo :
-- Vamos comer.
E retrocedeu á mesa e assentou-se. Seguidamente o leigo entrava e punha na mesa pratos e um pão alvo capaz de alimentar a seis e mais pessoas, volvendo a ir buscar uma fritada famosa de ovos com presunto.
-- Assenta-te aqui ao pé de mim, dissera para o Qosinheiro D. Bruno Maria da Transfiguração.
O encoberto e silencioso personagem, ao ouvir aquelle convite, retrahiu-se, encolheu-se, deu-se ares e modos tímidos, envergonhados, singulares. Reparou 'nelles Christovam da Costa.
-- Vamos, não tenhas vergonha de um amigo meu, particularissimo companheiro desde os brincos infantis, amigo, que, de mais a mais, deves conhecer. Não conheces ?
O cartuxo interrogado acenou com a cabeça, confirmando conhecer ao contubernal da ceia em perspectiva.
-- Cresce o meu espanto! Decididamente é uma noite maravilhosa esta, dissera o alferes.
-- Assenta-te, pois, terminou D. Bruno, ageitando-lhe uma cadeira:
Obedeceu o leigo singular e assentou-se. D. Bruno fez-lhe o prato, com maior assombro do amigo, serviu a Christovam da Costa, tirou comida para si e começou de comer, acrescentando :
-- Vamos, agora não se pensa em outra cousa. O alferes imitou ao cartuxo, mas o leigo não comia.
-- Então não comes ? perguntara D. Bruno.
-- Como diabo queres tu que elle possa comer assim, com aquella matamorra na cabeça? acudiu o Costa.
-- Ah! sim, que a tire, respondeu D. Bruno. E para o mascarado continuou : -- basta de rogativas : Christovam da Costa é outro eu ; tira esse panno e come, não tenhas vergonha.
Dispunha-se o leigo a tombar o capuz e tirar do rosto o panno que lh'o cobria, quando uma pancada na porta lá de fora, do corredor grande da claustra do laranjal, veio sobresaltar a todos, especialmente a Christovam da Costa e ao embuçado, que logo se poz em pé em attitude de sair d'ali.
-- Nada é, assentem-se, disse ò cartuxo: fallem baixo, que eu já volto.
E D. Bruno ergueu-se e saiu rápido para saber quem bateria, e porque, e com que fim.
-- Quem poderá bater agora áquella porta ? perguntou o alferes ao calado companheiro.
O vulto encolheu os hombros.
-- Singular silencio ! Respostas por mimica! Estranha scena é esta e bem parecida com as das Mil e uma noites, por lhe acrescentar mais uma. Com que, a respeito de fallar, nada de novo ?
Outro signal negativo do leigo ; mas acompanhado de um como fungar expellectivo ou brincalhão.
Christovam da Costa embatucou com o sorriso do cosinheiro, um leigo brutal que se propunha escarnecer d'elle. Ergueu-se de máu aspecto, e dispunha-se talvez a mandal-o sair, quando D. Bruno voltava risonho e entrando dizia :
-- Nem eu me lembrava de tal cousa : era o irmão que nos vem dar o pax tecum e perguntar se estamos com saúde. Mas, que tens tu, que estás de mudado aspecto ? perguntára ao alferes.
-- Nada tenho : ou tu mandas immediatamente
descobrir o rosto a esse leigo, ou eu vou sair d'aqui sem demora nenhuma. Cheira-me tudo isto a banquete de fantasmas. -- Tranquiliza-te, que vae ser feita a tua vontade.
Assentaram- se, e o leigo, sem esperar outro rogo de D. Bruno, descobriu o rosto e começou de comer.
Christovam da Costa, como sacudido por mola potentissima, erguera-se assombrado, boquiaberto, emquanto o cartuxo ria a bandeiras despregadas.
O cosinheiro monachal era uma formosa mulher!
V
Forçadas vocações
Deixemos ceiar bem aos tres companheiros na cella ou casa de um monge de S. Bruno, da Cartuxa de Evora, de austera recordação.
Retrocedamos na chronologia e entremos a portaria do convento de Santa Catharina de Senna, da Ordem de S. Domingos, ha pouco extincto, convento encravado no interior da cidade em bairro de construcções inferiores, pobres de architectura e de haveres. Fundado em 1547 sob a protecção da casa de Bragança, este convento está hoje quasi totalmente arruinado : abriga no dormitório grande uma ou duas companhias de infanteria da guarnição da cidade, e tem sepultada na casa do Capitulo a uma irmã do conde do Vimioso, D. Brites de Portugal, filha do bispo de Évora, D. Affonso, ordenado depois de viuvo.
Esta declaração é precisa aqui para que os linhagistas e historiadores apressados não apimentem de escândalo o viver do homem, que santa gloria haja.
É de manhã. Abre-se a portaria para receber a mais uma serva do Senhor, uma menina do coro, de formosura não vulgar, antes de peregrina belleza.
Duas alas de freiras de todas as edades se prolongam no corredor da claustra sombria : uma tia freira serve de madrinha á neophita. Entra, e a larga porta fecha-se a olhares curiosos e cubiçosos. As poucas pessoas que a acompanharam retiram silenciosas, sem attentarem 'num mancebo de poucos annos, que se occultára com uma columna de mármore da casa da entrada. Singelíssima entrada nos umbraes religiosos de uma rez innocente foi aquella.
Quando a sós, o mancebo e a rodeira, ou veleira do convento, aquelle correu á mulher banhado em lagrimas.
-- Ó tia Bernarda, ha de deixar-m'a vêr algumas vezes, sim ?
-- Não posso fazer tal cousa, filho, dissera a veleira. Aquella porta só se abre por ordem da senhora Abbadessa. Isso não se pede, não se póde pedir.
-- Pois então, tia Bernarda, vou matar-me.
-- Santo nome de Deus ! exclamára a velha. Isso não ; só para a veres tens ensejo sem se abrir aquella porta: basta entrar na egreja e vêl-a no côro, ouvil-a cantar e rezar.
O moço estava dominado por amorosa paixão violentissima, como se teem 'naquellas edades. Por visinho, o conhecia bem a mulher: tinha-o visto crear, como á menina, ha pouco entrada na clausura, abrigo que lhe buscavam os pães contra o bater das encapelladas ondas do mundo, contra as vicissitudes d'elle, contra seus perigos e seus baldões temerosos. Teve dó do moço apaixonado, aconselhou-o como poude, a veleira d'aquellas vestaes do senhor, e terminou por lhe pedir que saisse ; porque tinha de fechar a portaria áquella hora, para a reabrir mais tarde. Difficil foi á veleira Bernarda o vêr-se livre do importuno, por tresloucado mancebo.
Fechada a portaria, ficou-se a velha a pensar no caso, condoída do moço, e não menos da recementrada menina, colhida por mão violenta do jardim da vida, onde, como a rosa mal aberta ainda, começava a rescender amores, a haurir brisas aromáticas de ventura, a desabrochar ao sol vívido da mocidade, e do amor, e da bonança passageira da primavera da vida, para ir estiolar nas sombras d'aquella casa, perdidas roseas côres da juventude, a alegria, a felicidade.
Fôra nova e amorosa a veleira: viu passar por sua mente um drama de angustias, de soffrimentos muito intimos, cujos personagens conhecia, e teve, na verdade, sincero pezar.
Não é precisa muita perspicácia ao leitor para conhecer no moço apaixonado ao filho do caldeireiro e na menina do coro a Bemvinda da Gloria, filha do visinho official do mesmo officio, Claudio Raposo.
A confissão que llie fizera Clemente José Candieiro e o parecer que lhe dera de recolher a filha a um convento, levaram o homem, ao cabo de dias, a mettel-a, como vimos, em Santa Catharina, onde tinha uma tia freira, sua irmã d'elle.
Manoel, o estudante filho do Candieiro, entrou também no convento das Mercês, algum tempo depois, não como para seguir aquella Ordem, mas, para ali permanecer até attingir a precisa edade de entrar na Cartuxa, seu desejo d'elle rapaz, expresso ao pae, no dia em que Bemvinda se recolhera a Santa Catharina.
-- Mas, olha tu, Manoel, que se professares na Cartuxa, não te torno a ver, não tornas a sair d'ali, dizia o Candieiro ao filho, antes de ir para as Mercês.
-- Tenho cá o meu plano, meu pae, e visto que quer ter a um filho frade, deixe ao menos que eu escolha a Ordem. Bem vê que lhe obedeço e faço a vontade, quando podia seguir a vida militar, como o Christovam da Costa, respondia o rapaz ao pae.
O Candieiro não insistiu mais, crente que o filho mudasse de pensar ainda.
'Nesse dia, á noite, o estudante Manoel rondava o convento de Santa Catharina, sem duvida por ver se avistava a Bemvinda através das grades de alguma janella, persuadido de que o mesmo desejo lhe assistisse a ella, ave presa 'naquella gaiola enorme de arruinada construcção.
Escura era a noite e sem illuminação a cidade. Quando, depois de costear por mais de uma vez o convento, no baldado intento, o estudante dobrava a esquina da rua da Milheira para a de Soeiro Mendes esbarrou de súbito com um vuito, que a descia para subir a da Milheira.
Por modo se chocaram os dois corpos, que tanto um como outro individuo não conheceu ao contrario no primeiro momento.
Não decorreram segundos: de repente, o que descia a rua Soeiro Mendes desatou um tal chuveiro de murros no estudante, que, tão crebos e fortes, só os daria um inglez. No inopinado de tal assalto depois do subito encontro, Manoel Candieiro, o contrariado amante de Bemvinda, cujo sangue frio o abandonara por um instante, sem conhecer ao adversário, sem poder formar um ente de razão ; mas estimulado da pancadaria e cuidadoso da integridade de seu rosto, agacha-se instantâneo, mette, á força, a cabeça entre as pernas do contrario, agarra-lhe as extremidades d'ellas, levanta-se com empuxão violento para diante, desequilibra-o, e deixa-o cair inerte, estendido com o rosto sobre a calçada da rua. Tão violento foi o baque, tão perigoso mesmo, que Manoel Candieiro, ao notar que o corpo do adversário desconhecido ficara sem o mínimo movimento, concluiu que o matara, que, na queda de chapa d'aquelle corpo, a testa se abrira contra as pedras da rua, e horrorisou-se. Sem buscar conhecer ao contrario, sentiu que devia fugir d'ali. E fugio, correu pela rua de Soeiro Mendes e sumiu se na extremidade d'ella, deixando ficar ao outro resupino, na mal calçada e pouco frequentada rua.
Meia hora depois era o caído encontrado por mestre Raposo, que 'nelle tropeçara, virado, reconhecido e erguido. Não tinha fendido o craneo, como suspeitara o estudante, mas escalavrados o nariz e a testa : a pancada d' esta contra uma pedra fora tal que lhe tirara os sentidos, permanecendo 'naquelle estado, a escorrer sangue, durante o espaço decorrido.
-- Desgraçado! como caíste assim? perguntára o pae de Bemvinda ao aprendiz, que outro não era o caído.
-- Não caí, poude responder o rapaz, amparado do mestre.
-- Não caiste! então como te encontro eu assim?
-- Foi o Manoel Candieiro quem me botou ao chão.
-- O que?! Calte, maroto, que m'as vaes agora pagar todas juntas. Vamos para casa.
E assim fallando foi levando o rapaz rua acima.
-- Não lhe faça mal; o culpado fui eu.
-- Tu!
E pararam.
-- Eu dei-lhe, eu bati-lhe, respondeu o aprendiz.
-- Então bateste-lhe sem mais nem menos ?
-- Bati.
-- Não póde ser : has de ter alguma razão para o que fizeste; dize lá.
-- Não posso, sinto-me mal, vamos.
-- Pois sim ; mas logo fallarás quando estiveres melhor. Vamos, sim, para casa.
Foram indo ; o rapaz gemendo, ensanguentado, e mestre Raposo murmurando:
-- Leva o diabo ao pae e ao filho d'esta feita. Perto era a casa, entraram 'nella.
Mestre Raposo e a mulher cuidaram logo de la 'var o rosto ao aprendiz, e de lhe pôrem uns par ches molhados em vinagre na testa escoriada, no nariz machucado. Deitaram-no, alimentaram-no. O rapaz pegou no somno.
-- Conta-me o que foi isto, pedia a mãe de Bem vinda ao marido.
-- Foi o maroto do filho do Candieiro quem poz o rapaz 'naquelle estado.
-- Mas, porque? Sabes? Tu viste? Não seria elle.
-- Foi, foi que m'o disse o aprendiz, e eu vou já dar cabo do patife, que nos obrigou a metter a pequena no convento e que nos ia matando o rapaz.
E dispunha-se a sair.
-- Não vás, que t'o peço eu : que certeza tens tu d'isso ? São bulhas de rapazes, deixa-os lá uns com outros»
-- Pois não sairei ; mas amanhã fallaremos : hei de entregal-o á justiça, áquelle tratante ; com o pae é que eu me quero.
Em quanto isto se passava em casa do caldeireiro Raposo, defronte, em casa do Candieiro corria scena de cuidados com o filho Manoel, que havia entrado em casa, como fugitivo, pallido, sem poder fallar, amedrontado.
-- Que tens tu, rapaz ? lhe perguntou, finalmente, o pae.
Manoel não respondera, permanecendo cabisbaixo e triste.
-- Falia para ahi Manoel : que tens tu ? O que te aconteceu ?
O mesmo silencio, seguido de soluços e de choro. Devia traduzir aquelle estado o do espirito do moço apaixonado, que não podéra vêr a Bemvinda e que, para complemento de magoas, matara um homem, como julgava, ao tel-o visto ficar estendido na rua sem dar acordo de si. Ameigou-o a mãe, disse-lhe palavras consoladoras, das que só mães podem empregar em casos semelhantes, e conseguiu saber d'elle a causa da situação em que se achava.
A ideia de ter morto ao aprendiz do Raposo assustou deveras mãe e pae. Este correu logo á janella por vêr se descobria o que se passava na casa do visinho de fi-onte. Nada de ruidoso, de alarmante, na phrase franca de nossos dias, em que pouco se escrupulisa o introduzir a moda na linguagem, poude descobrir mestre Candieiro.
-- Não o saberão ainda, murmurou, voltando ao filho, entregue aos cuidados da mãe. Talvez lá esteja na rua caido sem vida, se é que o rapaz o matou.
E, sem dar conta dos seus intentos á mulher e ao filho, saiu de casa para, naturalmente, percorrer a rua e verificar o caso.
Foi, chegou ao sitio, e, não encontrando ninguém, folgou, desopprimiu o peito, nasceu-lhe uma alma nova. Correu a casa a dar parte á mulher e ao filho de que o rapaz já lá não estava, e que, portanto, ficara vivo e se fora para casa do mestre Raposo. A lembrança de que tivesse sido removido o cadáver appareceu-lhe, para logo se apagar, como impossível, visto não constar, não haver na visinhança borborinho algum.
O estudante Manoel reanimou-se, com a nova de não ter morto ao aprendiz de caldeireiro. Ergueuse da cadeira, em que permanecia assentado, e disse muito prompta e sacudidamente aos pães que queria entiar, sem demora, nas Mercês. Annuiram os pães, dominados da lembrança e conveniência de o pôr a bom recado no convento, livre de mais encontros, de represálias, em caminho de se esquecer da filha do Raposo.
Clemente José Candieiro já tinha o negocio tratado 'naquella casa religiosa, de modo que, no dia seguinte, o rapaz entrara no convento das Mercês, muito a seu contento.
Mestre Raposo dormira sobre o acontecimento ; e, pois não tinha certesa nem testimunhas da agressão, houve por melhor aparentar ignorância, não se dar por achado. Por outro lado, o aprendiz estava bom ; apenas com uma contusão formidável na testa, nascida da queda despedida, a que o leitor assistiu.
Não se fallou no caso, que passara despercebido do publico.
Temos aos dois amantes em conventos. Uma realidade das muitissimas de que rezam annaes monasticos, desde que se fundára a primeira casa religiosa no mundOy um facto sabido dos que sabem, dos lidos, dos conhecedores da historia monachal.
Vejamos agora ao neophito, se lhe podemos dar tal nome, visitemos ao estudantes nas Mercês, dias depois de sua entrada 'naquella casa.
É hora de recreio no convento. Passeiam na cerca os homens, divertem-se os rapazes na claustra, entregues a brinquedos proprios do estado, que pretendem tomar, e coadunáveis com suas edades.
Existia no convento um preto novo, rapaz de vinte e nove a trinta annos, que, pouco havia, tinha chegado de Moçambique. Era um creado dos frades, da cosinha, um moço de recados.
Muito feio e muito cerrado, era elle o divertimento dos conventuaes, maiormente dos novos.
Vae estando quasi perdido este gosto de possuir um preto. Nossos avós não prescendiam de os ter em numero, como escravos a principio, quando trouxeram os primeiros a D. João II esses aventurosos portuguezes que costearam Africa pelo Cabo da Boa Esperança, á mercê de Deus e das ondas encapelladas, esses macacos sublimes, como nos chamam 'neste momento os inglezes, estes pechelingues insulanos, que lhes foram no encalço, para se apoderarem de suas descobertas e conquistas. Vergonhas inglezas, iniquidades da nossa potente alliada, notoriamente desde o Mestre de Aviz, que lá foi buscar uma esposa.
Livres, depois da alforria, nossos avós tinham pretos como objecto de luxo, como se haviam tido anões por bobos, por truães anteriormente, nos primeiros reinados de nosso viver pacifico e autonomo.
Foi o preto, o negro africano um elemento forçado do theatro portuguez em Gil Vicente, Prestes, Chiado. Era elle, o pobre arrancado por força aos affectos dos seus, a parte cómica indispensável nos autos do século xvi, como em nossos dias o tem sido o gallego, ambos pelo mascavado da lingua, pela algaravia da falia, como se, pelo mesmo fundamento, o não podesse ser qualquer estrangeh-o, que não falle a nossa lingua, ou que a falle, como o brazileiro, já por vezes aproveitado de um ou de outro escriptor.
Chegámos em boa occasião para presenciar um divertimento dos conventuaes com o preto. É na claustra. Grandes surriadas de palmas festejam, de espaço a espaço, a queda de um donato, impellido de potente marrada do negro. Appareceram valentões ; mas, todos foram a terra. Crera-se que o mongol, contra a fama conhecida da dureza do craneo, não prostraria a todos, e assim foi que, por diversos modos, muitos lhe apararam as pancadas. Venceu a todos.
-- A braço, a braço! brada um. Ha de ir ao chão.
E de um grupo destaca um aprendiz fradesco, colloca-se-lhe em frente e exclama:
-- Vem para cá, se és capaz!
-- Mê siô, vae negro.
E foi, e caminhou para o adversario, que outro não era senão o nosso estudante Manoel Candieiro, que lhe parecia impossivel não haver quem resistisse ás forças de um negro cambaio.
Pegaram-se, arcaram, cambalearam e nenhum caiu.
-- Descancem, descancem, bradou um. O preto vae a terra.
E palmas e risadas acolheram a lembrança. Separam-se os dois. O preto suava, e o branco era offegante.
Seriam passados dois minutos e a mesma voz de gritar :
-- Vá! á terceira: um, dois, três!
Manoel Candieiro, aguçado dos monosyllabos, correu ao negro, que se não bulio, como quem se queria deixar tomar nos braços do que para elle ia.
Mal as mãos do estudante se erguiam, já proximo do negro, para o apertar em seus braços, ouve-se uma exclamação geral de espanto:
-- Bravo!
O preto, firme no logar em que estava, fazia uma feia careta a todos os noviços e apresentavaIhes o Candieiro, estendido em seus braços, estrebuxando vencido!
-- Como foi isso ? como foi isso ? bradaram diversos.
O negro pozera o estudante no chão, em pé, porque manifestamente o não quiz prostrar.
Tão rápido, tão instantâneo, tão inesperado foi aquelle acto, que mal tiveram tempo alguns de ver tombar de repente o corpo do estudante, erguer do chão os pés e ficar estirado nos braços do negro, peito para cima, cabeça e pernas pendentes, braços estrebuxantes!
Manoel Candieiro ficara fulo como o negro, de pura vergonha, e aquelle carantonhando alegre de triumpho.
Ninguém sabia explicar como se passara a scena, por mais tentativas feitas.
Sobre envergonhado, raivoso o estudante súbito arremete ao negro. No impeto vae a victoria : todos calam, todos olham e ... 'num instante, o mongol a rir, a caretear, a mostrar a todos o rapaz estendido em seus braços, como anteriormente!
Espanto geral!
-- Lá vou eu! exclama o que os incitara á lucta.
Era um rapagão foite, atarracado, moreno, musculoso.
Caminha, sem correr, para o negro, apenas com passo accelerado; chega perto, estende os braços para 'nelles apertar ao contrario, e, oh ! caso estupendo ! cae instantâneo nos braços do outro, como caíra o primeiro !
Uma salva de palmas acclamava vencedor ao negro, e uma de vaias de vencido ao valente noviço!
E nenhum sabia como o caso se passava!
Tentaram mais alguns vencer ao negro ; mas ò mesmo lhes succedia: caíam-lhe todos nos braços, mal d'elle se approximavam.
Era o caso que o negro conhecia um processo simples de desequilibrar ao contrario, usado dos indios da America e de alguns africanos : consistia em deixar chegar ao alcance da mão o corpo do contrario e da perna esquerda as pernas delle; assim, e nos casos que vimos, a mão direita do negro agarrava fortemente o hombro esquerdo do adversário, exactamente ao tempo em que a perna esquerda lhe desviava a direita. Simultâneos estes empuxões em contrario sentido, desequilibravam de súbito, a todo o que se approximava do Moçambiqueno,, e cairiam, infallivelmente, se o mesmo preto não fosse logo com o braço direito suster o corpo desiquilibrado e com ambos erguel-o 'nelles vencido, á mercê de sua generosidade. O perfeito do acto consistia em accommetter ao mesmo tempo, no momento preciso em que a perna do contrario vinha no ar, por dar mais um passo.
É processo infallivel para urn fraco prostrar a um forte: prevenido mesmo, cairá.
Formosa edade, a da juventude ! Dissipam-se paixões 'nella como se haviam formado, instantaneamente, como fogos fatuos.
O apaixonado Manoel, o amoroso amante de Bemvinda, parecia esquecel-a ; brincava com outros moços, não estranhava o convento.
VI
Outeiro de abbadessado
Manoel Candieiro ficou gostando muito do negro, que lhe ensinara um processo de vencer em luctas ao contrario, e que lhe poderia vir a ser preciso, attenta a sua qualidade de moço de recados.
Emquanto o estudante se diverte nas Mercês, como passará Bemvinda em Santa Catharina? .
Apenas sabemos, por emquanto, que é loucamente amada de um moço de sua edade, aproximadamente, sem termos conhecimento do quinhão de affecto que lhe retribuirá a elle, estudante de frade, tamanha paixão.
Como se não fecham para nós as portas de conventos, graças ao Breve especial que temos de nosso pensamento para 'nelks entrarmos, penetremos em Santa Catharina, convento extincto hoje, encravado 'numa baixa da cidade, húmida e fria.
Entremos de tarde. Na claustra passeiam algumas freiras novas, conversam.
De todos os tempos foi o convento um pequeno mundo, perfeitamente ao con-ente dos acontecimentos de toda a ordem do grande mundo externo. Sabia-se 'nelle de casos de politica geral ou local, de guerras entre nações, de discórdias domesticas, dos mais pequenos escândalos, em fim, da humanidade extra conventual.
Lá dentro de tudo aquillo havia. Ou fosse porque, naturalmente amigas de saber as mulheres, ou porque, sequestradas ao mundo de agitadas paixões em diversissimos casos, não haviam deixado á portaria, na entrada, desejos, affectos, curiosidade, é certissimo que, tanto frades como freiras, mas estas especialmente, andavam sempre ao facto de tudo quanto succedia cá fóra.
E porque mais real fosse, mais positivo esse conhecimento, não raro foi lavrar lá dentro a discórdia politica avassallando a todas, tanto nos bandos da sonhada governança da casa, como nas paixões amorosas, em tudo. Um perfeito simile do mundo externo.
A historia monastica ahi anda patente em livros : Lorvão, o notável mosteiro de S. Bento, encravado na raiz de altíssimas serras chegou a ter promiscuamente duas abbadessas, cada uma eleita por seu bando politico, que se chocavam por aquellas arcarias em luctas até corporaes, em escândalos de toda a ordem, em perfeita insubordinação de péssimos exemplos. Em Semide e 'noutros o mesmo succedia.
E talvez fosse natural aquelle desregramento. Privadas do contacto mundano, donde abruptamente arrancadas, aquellas mulheres sentiam a falta imperiosa da vida do espirito, que não bastava a contemplativa, quer exercida no estudo, na oração, quer nos desejos, na vingança, no amor, em todas as manifestações do coração humano, em todas as suas exigências.
Mas para que explanar a these?
Matéria corrente e de todos sabida é a exposta e tocada pela rama.
Ouçamos as freiras, que em grupos diversos passeiam na claustra.
-- Não está, uma dizia.
-- Está, que o sei eu, outra confirmava.
-- Não está, não está, não está! ápre, que és bem teimosa !
Eram duas mulheres novas as que assim fallavam. Uma terceira, destacou de outro grupo, ao ouvir aquella apostrophe, e achegou-se ás duas. Era mulher feita, experiente, sabedora, durasia mesmo.
-- Estás muito zangada, minha menina. Não está, não está, não está ! Mas não está o quê? perguntára.
-- Escusa de saber o quê, disse a que affirmava, não só como respondendo, como insinuando á companheira o silencio á indiscreta, que se intromettia.
-- Ai! que tanta gracia tienes ; respondeu a terceira, de origem hespanhola, natural de Montanches. Pensam as meninas que nâo sei de que falam! Ingénuas! Discutem se a menina Bemvinda está, ou não está na cella da abbadessa. Ora vejam lá o grande segredo !
-- É bem atrevida, em se metter onde não é chamada, disse a da confirmação.
-- Sim? menina ; pois é verdade que sou, e que lhe prometto uma derrota em seus planos.
-- Isso veremos, replicou a outra.
Prolongou-se a conversação, mirando alvo só bem visto das devotas enclausuradas.
Mais adiante conversava outro grupo de servas do Senhor, mais edosas. O mesmo assumpto da conversação d' estas era a nova enclausurada Bemvinda,
Era ella a mais formosa d'aquellas mulheres, se bem que imperfeita, por muito nova. A circumstãncia fazia com que as edosas a cubicassem para amiga e as raparigas tivessem d'ella ciúmes devotos. Umas queriam-na para 'nella ver a imagem da Virgem Maria, outras, apesar dos zelos, cobiçavam-na para que a bellesa própria durasse mais amparada na amisade d'ella. Todas a queriam, por causas diversas, só bem apreciadas de desejosos corações femininos,
-- Pois eu já sei que a senhora abbadessa a quer para sua companheira, parecia responder a outra, de contrario parecer, uma sóror quarentona,
-- Não me parece, menina, respondia outra : já lá tem duas meninas do côro ; não lhe cabem na cella.
-- Ora ! emprega-as no manjar branco, e divide a cella em beliches para todas accommodar, disse outra despeitada.
-- E porque não ? continuou a hespanhola, que se intrometera. Seria um feliz recuerdo das Bemaventuradas Onze Mil Virgens, de nossa devoção.
-- O que seria não sei ; mas o que é vejo eu : é que a menina anda muito apimentada, observou outra do grupo.
-- Por isso mais appetecida, respondeu a da lembrança das Onze Mil.
E a santa besbelhotice continuou em grupos, até que o tanger da campa claustral veiu lembrar a todas o findar do recreio. Dispersaram : cada qual
seguiu seu destino, que diversos eram, apesar de só um dever ser: -- o de rezas no côro, mortificações nos jejuns e na applicação de cilicios 'nalguns pontos do corpo, confissões diárias e outros exercicios, tendentes a libertar o espirito das impurezas da carne.
Para o côro foram muitas, outras para a cosinha, outras dirigir o trabalho do forno, onde, 'nesse dia, grande era a asafama em metter 'nelle variados doces, encommendados, não só 'neste convento como em todos os da cidade, para os annos do Arcebispo, D. Fr. Manuel do Cenáculo, que tinham logar no dia seguinte, 1 de março.
É notável esta industria do doce nos conventos não só de Évora como de todo o reino. Própria é ella de mulheres, de seus dedos delicados para ameigar e adoçar, apesar da unha que lhe poz o diabo, quando o Creador formou a mulher e lhe fez a mão. Duplamente própria, porque as freiras consagradas a preparar para as doçuras celestiaes as próprias almas e as da humanidade em suas orações, tinham por visco mui attractivo o de se adoçarem as carnes, adoçando-as aos invólucros das tresmalhadas pelo mundo. Bom raciocínio era aquelle : pois se das mãos d'ellas, das freiras, nos vinham famosos doces com nomes a lembrar o ceu, como o bolo celeste e o toucinho do ceu que taes seriam os promettidos, os propriamente feitos na mansão dos justos ? Era do cubicar de glutões, se era !
Pingos de tocha, melindres, bolos de amor e barrigas de freira (!) eram doces para homens.
Afamados eram em Évora o manjar branco de Santa Clara e o bolo real do Paraiso com que as freiras, impensadamente, nos mettiam el-rei na barriga, como por esse paiz fora o manjar branco de Cellas, em Coimbra, notável por sua forma de virgens peitos, as cavacas de Villa Real, morcellas de Arouca, pasteis de Tentúgal, nabada de Semide, e um infinito numero de especialidades, que vão acabando com os conventos, com magua o dizemos. Tudo o que é bom acaba.
Faziam, pois, as freiras doces para festejar os annos de Cenáculo em 1805 e commemorar a inauguração da Bibliotheca, thesouro de preciosidades diversas, que legou a Évora, e que no dia 24 de março anterior consagrara com voto perenne a Jesus Christo, Filho de Deus.
Deixemos, pois, as freiras no doce mister e saiamos, que já ficámos sabendo que Bemvinda é a menina bonita da casa, a querida e cobiçada de todas, a companheira da abbadessa.
Emquanto os dois amantes, engaiolados por conveniências de familias mais do que das da religião, lá se vão acostumando ao viver claustral, emquanto estes Paulo e Virgínia se lementam a ausência, e começam de cogitar meio de se approximarem, ao menos em espirito, que para tal conseguimento sobeja habilidade tem o Manoel Candieiro, Portutugal admira os triumphos, pasma, como a Europa, como todo o mundo, das victorias de Napoleão Bonaparte, sem prever que em breve trecho a formidavel aguia franceza esvoaçaria sobre este paiz, para lhe cravar as garras possantes.
Jounot em 1807 invade Portugal em nome da França, expulsa a familia real para o Brazil e apodera-se d'esta tira de terra, de glorioso passado, até que um exercito inglez j une to ás tropas portuguezas lhes ganha as batalhas da Roliça em 17 de Agosto e a do Vimeiro em 21, e os invasores evacuam Portugal.
Apesar d'esta invasão, que nus humilhou, que nos roubou, Napoleão, o génio potentíssimo, continuava a ter grandes admiradores no paiz, nos conventos até, em gentes moças, de fácil enthusiasmar. Em principios de 1808, o nosso estudante das Mercês concluirá os estudos theologicos e apromtavam-no para começar o noviciado preambular da profissão. Mas o filho do caldeireiro não sentira ainda o intimo rebate, o celestial aviso despertador de sua vocação religiosa, antes 'nelle avolumaram ideias bellicas, ardência de gloria marcial, desejos de combater pro pátria os invasores do seu paiz. Mas, a ninguém o revellára èlle, nem a Bemvinda, com quem se carteava desde pouco, depois da entrada d'ella em Santa Catharina.
Não fica mal aqui o saber o leitor d'esta historia, de que artes se serviu Manoel Candieiro para enviar uma primeira missiva á joven enclausurada, ou, antes, indicação do modo de futura correspondência.
Havia abbadessado em Santa Catharina. Os abbadessados em Evora eram frios, com pouca vida; não tinham a expansiva alegria dos de outras terras do reino, dos de Coimbra, por exemplo, onde o melhor da poética academia fazia retumbar de seus improvisos os pateos e arcarias de Santa Anna e de Cellas.
Ou fosse porque a Universidade de Evora mais estudantes tivesse de Theologia, propriamente dita, e de direito canónico, do que a de Coimbra, onde se ensinavam os dois direitos, a mathematica e a medicina, e onde, conseguintemente, mais eram os que não miravam a vida sacerdotal, a de pautados costumes ascéticos, imprópria da poesia lyrica e amorosa, ou porque Évora, assentada em meio de vasta campina, núa de arvoredos, de sombras, de rios, de harmonias suavissimas de rouxinoes, de balsamicos aromas de laranjaes florídos, d'esse conjuncto de naturaes bellesas que fazem poetas, que dão inspiração, é certo que nos princípios do século presente, como no passado, como em todos os tempos, em Evora não havia poetas. O Xarrama de Plinto, e de Pomponio Mella, e de Strabão, que no inverno tributa ao Sado uma ténue veia de agua de chuvas, e no verão, no ardentissimo estio do Alemtejo apenas cria laparos e coellios, nâo é o Mondego de viridentes margens,inem estes campos transtaganos são os deleitosos prados, hortos e vergeis do Tejo, do Mondego e do Lima, Era, pois, a poesia em Évora no primeiro quartel d'este seculo uma cousa deslavada, um reflexo pardacento de côr e de Iují da legitima e genuina poesia portugueza. Assim, o abbadessado em Evora. Mas havia-os; mas faziam-se por imitação. Davam motes as freiras, improvisavam canonicos poetas, sedentos e famintos de doce freiratico.
Manoel Candieiro quizera ir ao abbadessado mas, não lh'o consentiram, por ser acto indecoroso esse de quem prestes iria dar provas, no indispensável noviciado, de sua muita vocação para religioso. Não se desconcertou com a recusa o futuro fradk.'. Chamou o negro, que já conhecemos de radas tourinas e de cambapés singulares, e disse-lhe:
-- Negro, sabes improvisar ?
-- Mi, não saber que seja esso.
-- Improvisar é ser repentista, é fazer versos e fallar 'nelles.
-- Mê siô, não entender.
-- Tu nunca ouviste fallar em Bocage ?
-- Mê siô, sim, conhecer versos lindo, que fazer rir as gentes.
-- Bem, bem; pois esses versos que te fazem rir são quasi todos improvisos. Serás tu capaz de fazer um improviso ?
-- Qui diabo di cosa! Mi não saber.
-- Ora ouve bem, repara muito. Dá-se um mote e sobre esse mote se improvisa. Deram um a Bocage, que dizia assim :
Eu vi nos braços da auroraO sol tremendo com frio.
e Bocage improvisou logo, respondeu assim :
Se isto vae de foz em foraTambém com luz diamantinaVir raiando a matutinaEu vi nos braços da aurora ;Só me falta ver agoraO caranguejo de um rio ;Ver os efteiíos do cio,Cantar modas um macaco,A lua tomar tabaco,O sol tremendo com frio.
-- Lua cheira tabaco! Hi, hi, hi!...
-- Não rias : serás tu capaz de fazer uma cousa assim ?
-- Mi não ser, mê siô, respondera o negro pasmado de tal proposta.
-- És sim, és capaz. Ouve bem. Em Santa Catharina fazem hoje abbadessado ; dão motes as freiras e os estudantes improvisam ; os estudantes e quem quer. Depois come-se doce, bebe-se chá da índia e vinho fino.
-- Freiras dar marufo ás gentes? Oh! mi não saber !
-- Has de lá ir, que o quero eu, e has de fazer o que vires fazer a outros, entendes ? Elles, de fóra, batem as palmas e pedem mote, e tu farás o mesmo, percebes?
-- Mê siô, não saber fallar verso.
-- Eu te ensinarei.
Bem sabia o Manoel Candieiro que o negro era incapaz da commissão que lhe confiava ; mas tinha o seu plano, qual era o de chamar as attenções das freiras logo que o negro batesse as palmas e pedisse mote. Desejariam todas vel-o e saber quem e de onde era. Bemvinda não poderia faltar a uma festa daquellas, e, como toda a gente, ficaria sabendo que o negro era creado das Mercês. Isto lhe bastava ; o niais se faria depois. Tal o plano.
Como dissera ao negro que o ensinava a improvisar, o estudante fradesco entrou na cella e escreveu:
Preto sou ; mas assim pretoComo o branco tenho amor;Amo a toda a que for linda,Amo, sim, amo Bemvinda,A mais casta e gentil flôr.
Chamou o negro e começou de lhe fazer decorar o improviso. Trabalho teve para o africano decorar os cinco versos estropiados na fórma, que não poude conseguir d'elle uma dicção perfeita.
O negro foi para o outeiro. Lá estavam, de facto, na portaria alguns poetas, começando a funcção.
Haviam-se dado motes, que foram glosados em toantes chilras, continuaram a dar-se e a glosar-se muito a contento das virgens do Senhor, quando, em certa altura, o negro muito atabalhoadamente bateu as palmas carantonhando.
Enorme risada de poetas e de freiras acolhe o pedido do negro.
-- Mi querer mote, mote!
Riam muito as freiras; mas não se atreviam a a formular um mote para dar ao preto. Cruzavamse perguntas fora e dentro sobre a procedência de tal poeta escuro, até que o vate foi conhecido. Ao saber Bemvinda que o moço era de recados do convento das Mercês, animou-sç, formulou um mote, e disse, muito córada e vergonhosa:
-- Um mote para o negro:
Pois não querem ver um pretoFeito agora trovador!
Salva estrepitosa de palmas cobriu o mote da joven enclausurada. As freiras riam, murmuravam, commentavam a desenvoltura da joven menina do côro.
Realisára-se o que Manoel Candieiro previra, com tanta mais precisão quanto o mote parece haver sido adivinhado, tão de molde vinha para o improviso que escrevera.
O preto deitou a lingua de fora, trejeitou braços e olhos, quiz começar a resposta ; mas engasgou-se.
-- Vá, vá ! falla, preto, disse um poeta embatinado.
E o preto de começar e acabar em linguagem mascavada :
Spleto sou, mas sim spletoComo os blanco tem amor :Amar toda a mulher linda,Amar as freira Bemvinda,Amar casta gentil flôr.
-- Bravo! viva o preto ! bradaram bardos.
Lá dentro muitos risos, muita alegria muitas murmuraçõesinhas innocentes, e Bemvinda envergonhadíssima, mas muito satisfeita, por ter fallado 'nella o negro.
Era evidente que o preto trouxera aquella encommenda; mas, como os amores do Candieiro e de Bemvinda eram ignorados dos poetas e somente suspeitados de algumas freiras e meneninas do coro, um dos poetas, por se certificar de que o negro seria incapaz de improvisar, pediu mais improvisos ao collega fusco, dando-lhe o mote:
São muito iriadasAs vestes de amor,Não são mascavadasDe tão negra côr.
-- O spleto não saber mais, respondeu o vate africano.
Tal foi p meio de que se serviu o estudante de frade para começar a correspondencia com Bemvinda.
VII
Tomada de Badajoz
Expulsos de Portugal os francezes em 1808 e reorganisado o exercito para defeza nacional, Manoel Candieiro, que mais pruridos bellicos sentia do que arroubamentos religiosos, fugiu um dia do convento e foi assentar praça em infanteria n.º 22, em Serpa.
Apenas a Bemvinda fez a communicação do seu proposito, pedindo-lhe se mantivesse no convento fiel ao amor que lhe tinha, que se tinham, até que voltasse da guerra. Não lhe aconselhava a que se conservasse livre, provavelmente porque, para as ideias d'elle, o professar ella ou não professar o mesmo seria.
Evora havia sido entrada por força d'armas dos francezes, mandados de Loison e de Margarou. Manoel Candieiro não poderá bater-se nas muralhas ou no campo contra elles, porque formalmente lh'o prohibiram os frades das Mercês, caso que mais o exacerbou, deliberando-o, de vez, á fuga conventual.
Quasi presenceára a matança, que succedeu ao saque, depois da louca teimosia dos frades e povo por elles induzido á resistência: fugira com os seus frades para a Serra d'Ossa na madrugada do assalto. Lá soube, porém, do succedido a frades e a freiras... Mortandade grande, sacrilégios de toda a casta... da soldadesca desenfreiada.
Se lhe teriam morto Bemvinda, cogitava elle saudoso nas penedias de Monte Virgem, Se ... e desesperava. Voltou, e então foi que buscou aso de deixar frades e convento.
Ali, em Serpa, travou relações com outro fugitivo da Theologia, João de Figueiredo Maio e Lima, conventual d'Aviz, que de Coimbra fugira do Collegio dos Militares, donde cursava a Universidade.
Poetas, sonhadores de delicias, nem sempre realisaveis, Candieiro e Maio e Lima foram amigos sempre, até que a morte os retirou da scena do mundo, ao primeiro em Évora, cartuxo secularisado, ao segundo em Borba, prior suspenso da matriz, por ter escripto seu testamento em verso solto, elle, o velho poeta, que no fim da vida se despedia das musas, saudoso do tempo em que virgem espada lhe batia pelas calçadas d'Elvas.
Fôra seu crime aquelle, para ser suspenso de ofificio e beneficio, qucuido o boqueirão da eternidade se lhe escancarava medonho, por 'nelle ter escripto que não queria em seu enterro os
«Pingados gatarrões, gente da moda»
como escreveu Bocage, e pedia para lhe serem substituidos por formosas raparigas da villa, vestidas de branco, coroadas de capellas de flores e rescendentes de mocidade! Que crime aquelle, meu Deus! E tinha cegado, o bom do prior Maio e Lima !
Pobre velho! Espirito alegre e juvenil, cuidavas poder morrer cantando e foste salteado então, como outro poeta, infelizmente, também cego, e hoje morto, Camillo Castello Branco, por um bando de sacerdo-moralistas, que te apedrejaram qo occaso da vida !
Uns desembargadores da relação ecclesiastica de Évora assignaram o odioso accordam, quando na cathedra de Theotonio de Bragança se assentava nada menos que frei Fortunato de S. Boaventura ! o iracundo bernardo!...
E de tal jaez eram que, querendo, haverá dezoito annos, um conego da Sé de Évora ensinar a outro onde morava um d'aquelles desembargadores,
o fizera assim : (vae de versos, de um poema inedito)
«Vá o collega pela rua abaixoChamada de Alconchel, nada pergunte,E quando a um lado vir muitos coeiros,Fraldinhas e mantéos pelas janellasDe vasta casaria, ahi mora o homem.»
Comedia humana, tudo comedia e com seus laivos de tragedia !
Do celebre desembargador ningem falia hoje, e do desditoso Maio e Lima ainda ha pennas que lhe devotam estas palavras. A posteridade faz justiça a todos.
Mas, volvamos ao nosso transfuga das Mercês.
Os successos politicos da Península vão seguindo seu curso irregular: combates por toda a parte entre francezes e o exercito luso-anglo.
Entra o antto de 1812, talvez o mais notável nos fastos guerreiros d'aquella epopeia de assombros, que enumera Bussacos, Roliças, Vimeiros como prelúdios formidáveis da tomada de Badajoz, na noite de 6 para 7 de abril d'este anno.
Havendo mudado de corpp o heroe d'este livro, fazia parte do 23, que tanto se assignalou na entrada da cidade, 'naquella noite de gloria das nossas armas.
Batida a praça durante dias pela artilheria combinada ; abertas três brechas em seus muros, Wellington ordenara o assalto, tomado já o reducto Piqurifía.
Fillippon defendera-a com heroismo, dispozera habilmente grande numero de invenções mortiferas para vedar aos sitiantes a entrada 'nella.
O regimento de infanteria 23 accommette o baluarte S. Vicente sob um diluvio de fogo : a defesa tem a tenacidade do assalto ; caem feridos e mortos soldados e officiaes, vacilla-se, pensa-se no retroceder, quando um trompin francez toca a retirar, e logo a todos anima, e insufla bellicos ardores tocando a avançar. Investem ardorosos os nossos ou no escuro da noite, ou aos lampejos das descargas e dos fachos incendiados, e rastilhos ardentes.
Manoel Candieiro lá vae, possesso de embriaguez do fumo; accommette impetuoso, entra com outros a brecha enthusiasmado dos sons do trompim, que na diabólica linguagem conduz á morte ou á gloria. Vadeia o fosso, penetra a fendida muralha, entra na cidade ao tempo em que também o eram a luneta de S. Roque e o castello. Por outros lados Badajoz é presa do exercito anglo-luso.
O roubo succede á entrada! um horror ! um saque medonho!
Mas deixemos horrores da guerra, narremos, prosigamos a nossa historia, a do nosso heroe fugido ao convento, esquecido de Bemvinda.
Sobre um enorme bloco de muro, deslocado da nossa artilheria, viu elle, ao penetrar a brecha, um corneteiro novo com fardamento portuguez, assoprar enfurecido no diabólico instrumento. Não lhe attentou nas feições, que para isso não era asada a occasião ; porque se o tivera feito, quiçá o conhecera, e, ou lhe teria varado o corpo 'num momento de rancor, de antigo ódio, ali relembrado, ou d'elle ouviria não menos rancorosa exclamação :
-- Maldito ! que não morres ! ...
E continuára a tocar frenetico a avançar.
Singular exclamação foi aquella, em que um portuguez desejava a morte a outro!
É que o leitor ainda o não conheceu, ainda não poude saber o que se lhe vae contar.
A saída do Candieiro para a guerra fizera ruido em Évora, deixara os pães afflictos, Bemvinda entristecida, e ao aprendiz do Raposo sobre satisfeito, meditando, antegostando a chegada da noticia da morte d'elle 'nalguma batalha.
Mas, qual ! Soubéra, ao contrario, que o rival, porque o era quem lhe levára para um convento a sua companheira de infância, gosava optima saude, combatia valente contra os francezes, e começava de ser um bravo, um verdadeiro heroe.
Com semelhante noticia lhe entrou no espirito uma ideia tenebrosa, ciumenta, endiabrada: a de fugir também de Évora e de se ir alistar 'nalgum regimento portuguez, que perseguisse francezes, por modo que 'num ou 'noutro combate o podesse matar elle próprio, bem vingando a tunda que apanhara na rua de Soeiro Mendes, como recordará o leitor.
Tal pensamento avolumou na sua mente, cresceu por modo, que desappareceu de Evora tambem um dia, correndo sobre Elvas, em busca do exercito poituguez. Assentaram-lhe praça de corneta no regimento de caçadores 7, e lá se fora também, disfarçado, seguindo as eventualidades da guerra, buscando occasião apropriada para se desfazer do rival.
Não podia o Candieiro saber de tal resolução, tomada do aprendiz de caldeireiro. Nunca o vira, ou o conhecera no exercito alliado, quando por sua parte o corneteiro já tinha conhecimento exacto do regimento a que elle pertencia, já o seguia aforradamente, já buscava cauteloso ensejo ou de lhe tirar a vida, ou de o conduzir á morte. Opinando por este alvitre, como o mais seguro, foi que, ao saber que o 23 iria ao assalto, pelo escuro da noite correra, transfuga do seu corpo, a jogar aquella arma contra o rival amoroso. Arriscava-se também, é certo ; mas não o deixava bem ver o perigo a paixão que o dominava : uma bala o poderia matar como aos demais assaltantes.
Não succedeu, porém, assim ; ambos escaparam illesos, ambos se deixaram enebriar dos fumos da victoria, ambos se confundiram na multidão desvairada, que envergonhou a serenidade do triumpho.
Em Victoria, Nivelle e Toulouse obrou Candieiro proesas notaveis de valor.
Não se tornaram a encontrar os dois inimigos por disposição talvez providencial do destino, que os guardava a ambos para desempenharem papeis importantes no futuro.
O exercito de Napoleão, que tão audacioso entrara na Peninsula, retrocedia á França desbaratado por toda a parte, desanimadissimo, desfallecido.
Para o occaso de Santa Helena caminhava precipite o astro dos combates, e os dois soldados, que vimos ir junctos para a guerra, Maio e Lima e Candieiro voltavam a Portugal, vinham apresentarse aos primeiros corpos em que assentaram praça : o primeiro, tomou ordens e ordenou-se de presbytero em Aviz, e o segundo o mesmo fazia na Cartuxa de Evora, onde ao tempo lhe deram entrada.
Durante o tempo em que por lá andou na vida agitada dos combates carteou-se com Bemvinda algumas vezes, por intermedio do preto das Mercês, do -nosso conhecido Mongol, o fusco trovador, no abbadessado de Santa Catharina.
Raras cartas se trocaram os dois amantes, não só porque a distancia e os cuidados da guerra se mettiam de permeio, como porque o serviço dos correios andava, como natural é que andasse, irregularissimo.
Na gloria das armas pensara mais o nosso heroe, é certo, do que nas delicias de amorosa correspondencia, e Bemvinda vira passar aquelle período tenebroso entre as paredes do seu convento, estimada da abbadessa, querida de todas as conventuaes, apreciada de algumas.
Fizera-se mulher formosa a que para ali entrara menina, trocara a timidez da puericia- na entrada e saque de Évora em 1808, pelo desembaraço, pelo animo varonil na grande provação ...
Teria Bemvinda durante aquelles annos de guerra pensado sempre no Manoel Candieiro, exhortando ao Deus das victorias em suas preces a vida d'elle? Pergunta é çsta que mais de um leitor fará, especialmente se for entendido em cousas do coração humano, se lembrar o que dissera o Padre António Vieira, que o amor é como a lua, que ao metter-seIhe a terra de permeio se eclipsará infallivelmente, e se conhecer a naturesa da vida de muitas mulheres enclausuradas.
Se fôra que a morte da alma se apossasse d'essas mulheres ao cerrar se-lhes a portaria da clausura ; se fôra que seus corações não mais palpitassem movidos de affectos vários para somente bater impulsionados dos da religião, ninguém faria tal pergunta, ningem poria em duvida que Bemvinda se lembrasse do soldado amante. Ai ! mas o viver do convento nynca foi o viver das cryptas, dos túmulos, onde ha o da immortalidade para os que a têem, e onde repousa o nada dos que nada foram. No convento vive-se ou viveu-se, que bem poderemos fallar assim, no acabamento quasi completo d'essas casas religiosas.
Por hysterismo congénito 'numa ou 'noutra d'essas mulheres ; por essa doença do espirito provocada da educação, de broncas e mal aconselhadas confissões 'noutras, havia bIí, resilmente, sinceras crentes na religião da vida de eterna bemaventurança no empyreo, juncto ao throno de Deus e longe, bem longe das labaredas do reino escuro e fumoso de Plutão ou de Satan, o mesmo personagem nas duas religiões, por não dizer mythologias. Mas também havia, e maior era o numero d'estas, muitas mulheres, almas naturalmente apaixonadas d'outrás almas, paixões ardentíssimas com origens diversas na própria naturesa, incoercivel em seu expandir. Assim, natural era que Bemvinda recordasse saudosa o estudante de theologia e d'arte militar, nos devaneios de sua imaginação, na contemplação mystica das imagens dos santos pelos altares, em tudo quanto podesse impressionar sua mente exaltada, occupar seu pensamente amoroso.
Eu penso que Bocage escreveu grande verdade, e cada vez o creio mais, quando disse:
Aquelle primeiro amorQue no mundo tem a gente,Eu não sei que gosto tem,Sei que lembra eternamente.
Bemvinda, a formosa enclausurada pensou sempre no Manoel Candieiro, que, por sua parte, levara a imagem d'ella na mochila do coração por essa Peninsula até á França, como objecto de não diaria serventia; mas ao qual passava revista de tempo em tempo, ao escrever-lhe missivas apaixonadas, que por intermédio do negro das Mercês lhe iam parar ás mãos, a Santa Catharína.
Trocaram-se correspondência, alimentaram o fogo Scigrado do amor, da ardente necessidade do multiplicamini biblico.
Temos, pois, em Évora e na Cartuxa de S. Bruno a Manoel Candieiro, despidas para sempre as armas, que trocara pelo habito e cogula monasticas.
José Francisco, o corneteiro de Badajoz, não mais lhe apparecera até ao fim da lucta, até á sua entrada na capital transtagana.
Como o leitor viu era Badajoz, Manoel Candieiro não conheceu ao rival, que pretendia conduzil-o á morte.
Mas elle voltára tambem. Este rapaz tinha por Bemvinda uma paixão ardentíssima, desde a infancia de ambos, que deslisára quieta e socegada na rua dos Caldeireiros, apenas perturbada das martelladas no cobre ou latão de caldeiras e alambiques, até á explosão que lhe fortou a amada, de modo tão abrupto, da sua convivência para a prisão conventual das dominícas de Santa Catharina.
Nunca o aprendiz de caldeireiro revelara á sua companheira de lar a paixão que lá por dentro lhe ia tomando proporções agigantadas. Era, paixão mixto de adoração puríssima e de desejos, de sonhos de terreno manifestar um dia.
Nem elle sabia bem que affecto era aquelle seu; mas estremecia-a muito, mas queria-lhe como a si proprio. Ao ver-se sem ella, ao pensar que não lhe fallaria, que nunca mesmo a tornaria a vêr, operouse 'nelle mudança notável de desejos e de esperanças, nascidas de um pensamento occulto, reservado, medonho, o de fazer desapparccer do mundo a causa de sua infelicidade. Já vimos como lhe falhára a primeira tentativa na entrada de Badajoz, onde a bala que o matasse nunca sairia pela boca da sua corneta, nem sería dado a ninguém o prescrutar a causa da morte de um soldado na entrada de uma brecha: morria como lá morreram tantos, e no fim da campanha, se lograsse voltar á patria, talvez podesse vir a occupar o logar que tomara vasio no eden de venturas da imaginação de Bemvinda.
José Francisco não voltou logo ao reino : ferido em Toulouse lá se ficou alguns mezes 'num hospital a curar de ferimento grave, gravíssimo, que recebera. Ninguém mais pensara 'nelle cá no reino. E quem se lembraria do aprendiz de caldeireiro que não conhecia sua familia ? O mestre, o pae de Bemvinda ainda o lembrara nos primeiros tempos depois de seu desapparecimento, talvez pelo haver recebido em casa creança, ou por falta que lhe fizesse na officina : depois, sem saber, ao certo, que destino teria elle tomado, se seria morto, se vivo, não pensou mais no rapaz.
Façamos nós, leitores, o mesmo, por emquanto, até que ou elle nos seja preciso, ou elle se nos faça lembrar.
E continue a urdidura d'esta historia.
VIII
Novos Leandro e Hero
Ao anoitecer de um dia de setembro de 1815, pela grosseira estrada de mal feita calçada da via publica, que ligava Estremoz a Evora, entrava 'nesta cidade um carro toldado, o carro alemtejano puxado a mulas, que já fôra usado de romanos com o nome de Carpentum, e que por cá ficára como uma das muitas relquias d'esse povo conquistador.
Com outras pessoas, vinha 'nelle o ex-militar heroe d'esta historia, romance, novella ou como melhor haja de se chamar esta narração.
Dissemos que elle voltára ao reino e que professára no mosteiro da Scala Cali; mas não tivemos então ensejo de relatar episodios precisos ao leitor para cabal percepção do entrecho. Passamos a fazel-o, dando-o entrada 'nesta velhissima Evora, mãe de sabios, heroes, vicios e virtudes, como de Lisboa escreveu o auctor do D. Jayme, poema ou miscellanea poética de sublimes versos, que eu e o dr. Filippe do Quental primeiros, ou uns d' esses, lhe ouvimos recitar feiticeiramente 'numa penedia sobre o mar, na Figueira da Foz, muito antes do livro vir a lume em Lisboa.
O que ahi vão de annos volvidos sobre tal leitura!
O illustre poeta desceu do Helicon, onde bem, e muito bem estava, e subiu para as regiões nevadas da cousa publica, onde, pelo frio que lá faz o tempo, enrigela a memoria, a lembrança de cousaâ e de pessoas ... e quem aqui deixa esta lembrança subiu, para descer ao profundo fundo do Lethes, onde todos se olvidam e desconhecem.
Mas, deixe-se o devaneio, a que tão attreito sou.
Em vez de primeiro buscar a casa paterna, o exmilitar dirigiu-se ao convento das Mercês, procurando ao preto vehiculo de sua correspondência com Bemvinda.
Como era conhecido na portaria conventual, facil lhe foi o ver e fallar ao negro, que lhe certificou estar Bemvinda no convento. Era o fim d'elle, o de se certificar se alguma mudança se haveria operado no destino da amada.
Pedindo ao porteiro e ao preto que não annunciassem lá para dentro a sua chegada d'elle a Evora, Manoel Candieiro, sem procurar ainda a casa de seus pães, correu ao convento de Santa Catharina, torneou-o por mais de uma vez, na esperança fortuita de poder avistar a amada, e só, perdida esta esperança, se dirigiu ao lar domestico.
Bateu á porta : quem lh'a veiu abrir foi o pae, que não sabendo a quem o fazia, perguntou ao escancarada :
-- Quem procura?
O filho permaneceu alguns segundos sem responder, a fim de ver se o pae o conheceria; porque se não fizera annunciar de modo nenhum : preparava uma surpresa á familia.
Manoel Candieiro vinha completamente outro; não seria fácil ao pae o conhecel-o, a não ser pela voz, essa mesma encorpada e cheia: crescidas as barbas, ainda não bem povoadas, cabello curto, traje á paisana, mas ao modo hespanhol.
Ao notar a cara embasbacada do pae perante um hespanhol, que tal lhe pareceu o filho, e ver que o descontentamento se lhe pintava 'nella, não deu tempo a que o pae lhe fechasse a porta, abriu os braços, caminhou para elle exclamando :
-- De-me um abraço, meu pae!
-- O que! És tu ? Será possível ?
-- E certíssimo, respondeu o Manuel abraçando ao pae.
-- Venham cá! venham cá! gritou o velhote para cima.
De tal modo e tão alvoraçado chamara o homem pela família, que não só vieram todos a correr, suppondo cousa bem diversa a que o fizera gritar, mas sobresaltou a visinhança, que correu ás janellas, vendo-se defronte o visinho Raposo e a mulher, pasmados de tal vinda.
Balburdia grande na casa : abraços na mãe, nos irmãos, outros no pae, uma grande distribuição de affecto por todos.
A porta fechou-se e a visinhança, depois de com mentarios murmuradores, foi-se recolhendo a pouco e pouco.
Emquanto a felicidade reinava soberana em casa do Candieiro, á janella fronteira conversavam Raposo e a mulher.
-- E não ficou por lá, aquelle demonio !
-- Não falles assim, homem : para que desejas a morte do rapaz ?
-- Para quê! Essa é boa ! custa a crer que tal dissesses! Pois já esquecestes que por causa d' esse maroto ficámos sem a pequena?
-- Isso acabou tudo; os annos tudo acabam neste mundo.
-- Acabam! Ora queira Deus não tenhas tu de te arrependeres d'essas palavras.
-- Não posso saber como, nem porquê ; Bemvinda está bem guardada e já não pode pensar 'nelle...
-- Não? talvez . . sim... é possível; mas pensará elle 'nella, o que é muito peior. O diabo não é melhor do que aquelle tratante.
-- Rapazes, rapazes ; agora está um homem e bem castigado da guerra que elle virá ! Coitado ! vê tu, que serviço o d'elle! Deixar tudo para ir contra os francezes, contra esses malditos que tanto mal nos fizeram!
-- Olha agora a grande cousa! Se não fosse por vontade, obrigavam-no.
-- Sim, sim ; mas tu não foste !
-- Não fui ; mas tu bem sabes o que poi cá lhes fiz. Olha que um contra três já não é pouco ...
-- Calla-te, não te ouçam, que ainda me horroriso ...
-- Querem vêr que estás com pena dos malandros I Ora pensa 'noutra cousa e deixa-os dormir ao fresco. Parece que te não lembras do que te fizeram esses marotos.
-- Oh ! Calla-te ; não digas mais, exclamou a mulher sobre-excitada.
-- Pois está dito, não direi ; mas não defendas mais o patife do Candieiro, e os francezes que durmam no fundo poço até ao dia de juizo.
D'este breve dialogo se concluem duas cousas: que o Raposo e a mulher tinham atirado a um poço alguns francezes, e que estes a tinham offendido a ella.
Conclusões bem feitas são essas ; porque; em verdade, perante a historia inexoravel dos acontecimentos do tempo, não poucos francezes foram mortos de noite, quando dormiam, d'aquelle modo, lançados aos poços, e não poucas foram as mulheres desacatadas, offendidas, violadas da brutal soldadesca franceza.
É uma deplorável verdade ; mas é verdade, embora alguns escriptos do tempo fossem prudentemente cautos e optimistas ao referirem as consequências da tomada de Evora.
Contava-me Pedro. Paulo de Vasconcellos, que ao tempo já era homem e empregado na Camara ecclesiastica, que durante largo espaço d'annos procuravam os rapazes d'Evora fora d ella as que desejavam para esposas. Mais eloquente é só este facto do que tudo quanto por ahi se lêr em contrario.
Manda a critica, entretanto, ponderar bem as cousas e estabelecer as excepções, que bastas seriam no assumpto melindroso ...
Bellesas da guerra, horríveis consequências da resistência tresloucada dos frades e do povo, por elles induzido á resistência.
O que seria Évora 'naquellas duas noites depois da entrada dos francezes? Uma vingança, um desforço enormissimo, uma torpesa , . .
Cubra um véo essa chaga, que tanto tem de asquerosa.
Entremos na casa do mestre Candieiro, leitor curioso, que por lá deve haver scena de muito presenceiar.
Fechada aquella valvula de aflectos do ex-soldado, ja derramado sobre todos os Candieiros da casa, cuidou-se da ceia, ceia festiva, perfeitamente alegre para todos.
Em volta da mesa toda a familia: misturando as perguntas com grande fritada de carne ensacada, perguntava ao filho maior dos Candieiros, o Candieiro pae:
-- Conta-nos algumas cousas do que por lá te aconteceu, que muito desejo sabel-as.
-- É tanta cousa, meu pae! que nem me lembro d'ellas, respondeu o filho.
-- Deixa-o comer descançado, que nem sempre o poderia fazer por onde andou, acudiu a mãe. Come, filho, come, deixa essas cousas para outra vez, para as contares só ao pae, que eu por mim nâo se me dá de as nao saber. Horrores, horrores ! concluiu a mãe.
-- Pois eu bem gostarei de as ouvir, acudia um irmão do heroe de Nivelle.
-- Conta, conta lá algumas cousas, instava o pae. As mulheres não gostam d'isto ; mas gosto eu. Como foi isso de Badajoz ? contaram-se cá cousas espantosas ! E o cometeiro ? Tu vístel-o f Elle seria o José Francisco, do Raposo? Cá espalhou-se que sim. O rapaz desappareceu d'aqui também, como tu fizeste, e ninguém mais soube d'elle, até que se espalhou na cidade que o corneteiro era elle.
-- O que diz? meu pae! Será possível! Eu vi o cometeiro, vi, sim senhor ; passei por elle quando entrei na brecha; mas não lhe reparei nas feições.
-- Pois fica sabendo que em Evora todos o affirmam.
Manoel Candieiro ficou-se a scismar um instante no caso, como recordando cousas passadas, e depois perguntou :
-- Mas em casa do visinho Raposo não teriam noticia d'elle?
-- Não consta que ninguém as tivesse, respondera o pae.
E o filho volveu a breve meditar. Seguidamente isse ao pae :
-- Talvez seja elle esse corneteiro, talvez ; porque me lembro de modo muito imperfeito, ao recordar o passado, que quando eu na brecha entrava o vi sobre um pedaço de muralha caida, tocar a avançar, e vagamente me lembro de duas palavras, como um echo de voz desconhecida, que me chegaram aos ouvidos entre o estrondear da fuzilaria e o toque de muitas cornetas. Não lhes dei valor no momento, e tanto, que para logo as esqueci, e só agora, ao conhecer tal noticia, de novo me ferem o ouvido.
-- E que palavras foram essas? perguntou o pae curioso, sendo todos ouvidos os mais da familia.
-- Parece-me, s,e bem me lembro, que diziam : Maldito! que não morres!
-- Eu sei lá! dissera, o pae, ficando também a scismar no caso.
-- E tu nunca o viste por lá, por essas guerras ? perguntára a mãe.
-- Não sei, e nem sería facil vel-o, só se elle fosse do meu bravo 23.
-- Olha rapaz, disse o pae, depois de breve meditar : talvez fosse elle, sim, talvez. Vossês tiveram em tempo uma rixa ahi... e quem sabe lá! Ciumes ... são o demonio ! É verdade que tudo isso passou, não é assim ? perguntára o Candieiro pae á queima roupa.
-- Por certo que passou, meu pae, agora...
-- Agora, sim, agora que farás tu, Manoel? Que vida será a tua?
E entristeceu-se muito o velho pae, ao recordar o sonhado éden de venturas que perdera na saída do filho das Mercês para a guerra. Fora-se-lhe esse sonho de ventura intima, muito intima, o de ver frade ao filho, predestinado por elle para aquelle sacerdócio monachal.
As ideias de querer saber o que por lá se passara na campanha, cediam logar ao recordar saudoso da ventura perdida, e sem remédio nenhum, tal se lhe affigurava o caso. Como poderia um soldado acostumarse, ao cabo de três annos fóra do viver conventual, ao remançoso e tranquillo viver do espirito na contemplação do Creador, no aspirar á sempiterna vida bemaveiiturada na mansão dos justos e dos santos, elle, que chegava de matar francezes, que vinha rude de aspecto, grosseiro de voz, selvagem de instinctos f Assim pensava o pae, assim foi que lhe fez a pergunta sobre a vida que seguiria no futuro.
Se o filho podesse ainda ser frade! Que suprema felicidade seria a do pae Candieiro !
-- Que vida ha de ser a minha? me pergunta meu pae. A continuação da que era antes da guerra ; volto ao convento.
-- Ó filho da minha alma! dá-me um abraço!
E o Candieiro pae abraçára, com muita effusão ao Candieiro filho. Outro tanto faziam a mãe e os irmãos. Uma felicidade no lar dos Candieiros.
-- Mas olha lá, filho, que talvez te não recebam nas Mercês, observára o pae.
-- Nem eu lá quero entrar, respondeu o rapaz.
-- Em que convento queres tu então professar?
-- Na Cartuxa; já tenho edade sufficiente.
-- Bem, amanha trataremos d'isso, amanhã ou quando quizeres, que muito bem me parece termos-te aqui alguns dias.
-- Ainda me não contaste nada da guerra...
-- Da guerra! Que lhe heide eu contar d'ella? Desgraças, só desgraças, meu pae ; não as queira conhecer.
-- Não, ao menos dirás se cá não voltarão os francezes ?
-- Isso não posso eu dizer : elles já vieram tres vezes e são capazes de voltar quarta.
-- Mas vossês não os encurralaram na terra d'elles ? Cá tem-se dito que sim.
-- Lá ficaram, é verdade ; mas, eu sei cá ! Elles sâo muito poderosos, e apesar de Bonaparte ter agora levado, de ser desfeito em Waterloo, quem sabe, quem sabe se a França ainda se levantará contra nós, contra todos?
-- Mas ahi vem nos papeis que os inglezes o agarraram, a esse maldito, e se assim é, os francezes não tomam cá. Será isto verdade ?
-- É verdade : Napoleão deve a estas horas ir caminho de Santa Helena, se lá não estiver já: vae preso e desterrado.
-- Ora ainda bem ! que apanharam esse demonio ! exclamara Candieiro, satisfeitíssimo.
-- Sim, sim, atalhou a dona da casa, mas vossês estão para ahi a parolar e o rapaz ha de querer dormir. Nem o tens deixado ceiar bem, com tantas perguntas ! Deixem isso para amanhã, que também será dia.
Acharam razão á Candeia, áquella femea do Candieiro, mãe do heroe de Badajoz, e, concluida a ceia, todos se foram deitar : era tarde.
Manoel Candieiro fôra alojado no seu antigo quarto de estudo, com janella para a rua.
Repousavam na casa; na visinhança o mesmo succedia ; mas o nosso heroe não podia conciliar o somno. Deitára-se, de facto ; porém, a imagem de Bemvinda surgiu-lhe logo no pensamento, appareceu-lhe radiante de belleza, de formosura. PareciaIhe vel-a defronte, no escuro do quarto, como uma apparição angélica, como recompensa de seus trabalhos em defensa da pátria. Ergueu-se de mansinho, sem despertar a família, e foi-se á janella, que abriu.
Assombro, espanto !
Além, defronte de sua casa, era o angulo do convento de Santa Catharina, que lá no alto, superior á casa do Candieiro, tinha um dormitório vasto com janellas para sul, A da cella da esquina, a que mais perto quasi defrontava com as casas de Raposo e de Candieiro tinha farta luz dentro, e por entre as grades d'elia via-se um vulto branco, como fixado ás grades, a modo de uma estatua.
Era Bemvinda, a doce amada do ex-soldado.
Evidentemente estava ali de proposito, sabia da chegada do Candieiro, queria mostrar-se-lhe, queria vel-o.
Mas, quem lhe levaria a ella a noticia da chegada do seu primeiro amor?
Levou-lh'a o borburinho da visinhança, o desusado abrir de janellas áquella hora da noite, o assomar de pessoas ás mesmas, o conversar animado de todos, um não sei quê, emfim, que o coração da mulher amante adivinha, entende, explica.
Estamos defronte de um novo Leandro e Hero mythologicos : Hero accende em Sestos o facho amoroso para ser visto de Abydos pelo apaixonado amante: falta o mar helespontíno apenas, para Manoel Candieiro o atravessar a nado em demanda d'aquella luz bemdita, que lhe aponta o caminho e o chama para as aventuras do amor.
Era uma rua estreita, escura e pouca aceiada a que separava os dois amantes.
O que se passaria 'naquellas almas ! Bemvinda, illuminada a alta cella em que vivia, unida ás grades, como se d'ellas fizera parte, buscava ser vista do amante, e conseguira-o : dava-lhe o seu nome d'aquelle modo, festejando com luzes e vestes brancas a âem ou âoa vinda d'elle. Fizera-o feliz, mostrando-se-lhe ; mas, não o era ella, a triste reclusa de Santa Catharina! Nem abrir vira a janella do quarto d'elle no escuro da noite, que lhe ensombrava a casa...
Comprehendeu Candieiro o angustioso de Bemvinda em tal conjunctura, e pressuroso correu a accender-se, a accender um candieiro, que respondesse com sua luz á luz da amada, e lhe mostrasse, d'aquelle modo, como tudo ali ardia por ella, e para ella.
Foi de notar a que devemos suppôr alegria infinita de Bemvinda ao ver illuminado o quarto do seu Leandro, ao vel-o chegar á janella, acenar-lhe com um lenço, estender-lhe os braços, fallar-lhe falias que lá não podiam chegar, pela distancia a que os dois se achavam.
Destacada logo das grades, a que parecia soldada, Bemvinda correspondia-lhe no agitar de branco lenço, nos tregeitos, nos sorrisos, na mais ampla expansão de seu temo peito.
Que de anhelos de reciproca felicidade seriam os d'elles ! d'aquelle modo separados por uma rua e pelas grades de uma cella! E sem, como o Leandro da fabula, poder tranar aquella distancia, voar a se lhe lançar nos braços supplicantes d'ella.
Assim costuma ser no mundo a felicidade : imperfeita, sempre incompleta.
'Naquelle extasis, 'naquelle arroubamento d'alma
permaneceram os dois toda a noite, até que o dilúculo do dia, os primeiros clarões d'aurora vieram amortecer a luz artificial dos amantes, até que o primeiro visinho abrira a porta e começára de martellar nos tachos e alambiques. Era dia. Um derradeiro adeus se deram os dois, cada qual ardendo em desejos de se corresponderem, de se fallarem, de se aproximarem ambos.
Os muros e grades dos conventos foram uma invenção barbara, anti-natural, aniquilladora da huinanidade, se o amor, essa creança cega, não fôra um lynce e não tivera as forças de Hercules ou de Sansão para os arrazar e os desfazer.
IX
A profissão de um monge
Manoel Candieiro dormira até alto dia.
Na cidade soubera-se da chegada d'elle, e mais de uma pessoa, ou da sua amisade ou da do pae, o desejavam conversar, saber cousas da guerra, particularidades da tomada de Badajoz, que tão ruidosa fora.
Foi o preto das Mercês um dos primeiros que o procurou de manhã, seguindo-se outras muitas pessoas.
Manoel Candieiro só se mostrou ao negro amigo : aos demais curiosos despedira com desculpas varias.
Larga conversação tiveram ambos a respeito de Bemvinda. D'ella ficára sabendo que não saíra nunca do convento ; que 'nelle, com suas companheiras, receberam a invasão franceza, corajosas como vestaes devotadíssimas ; que Bemvinda nunca o esquecera, nunca, e que os padres da Mercês já sabiam de sua vinda, e por lá se dizia, pelo convento, que o tornariam a receber 'naquella casa, se elle a quizesse buscar.
Ao facto de tudo quanto desejava saber, Candieiro escreveu apaixonadíssima missiva a Bemvinda, para o negro lhe levar a Santa Catharina.
O preto foi e voltou de tarde com resposta da amada. Correspondiam-se os dois amantes.
Reatadas as distancias, que tanto os separaram, o ex-soldado principiava o cerco d'aquella segunda Badajoz, que antevia ter de tomar também de assalto.
Dois dias depois do heroe d'este livro estar em casa, preparadas as cousas pelo pae para o filho entrar na Cartuxa, casa religiosa que preferira á das Mercês, na qual esperava viver mais a seu contento, conforme a planos que tinha muito Íntimos de honesto e exemplar viver, os dois, pae e filho, feitas por este as despedidas derradeiras á família e a alguns poucos amigos d'ella, e d'elle pessoalmente, seguiram um dia de tarde para o convento da Cartuxa.
Annunciados, a portaria d'aquella grande casa abrira-se para receber ao neophíto. Estava a communidade numerosa em alas pela comprida claustra, e á frente d'ella o D. Prior.
Manoel Candieiro abraçára ao pae, que chorava, por ver entrar vivo na sepultura ao filho, e este, sereno e corajoso, como se entrára a brecha de Badajoz, despedia-se risonho.
A portaria fechára-se logo, e o pae do novo e futuro monge volvia triste á cidade, em quanto o filho era conduzido á casa do noviciado, onde o esperava o mestre d'elles.
A communidade debandou para suas cellas, e, pouco depois, só o silencio imperava por aquelles longos corredores.
Descrever particularidades do viver do novo monge no noviciado é uma cousa escusada : basta dizer ao leitor que o noviço foi exemplarissimo, e tanto que, excepcionalmente, lhe deram o anno por acabado antes de o estar, não só em attenção ás provas dadas, as de maior mortificação, como em attençâo a um certificado do convento das Mercês, onde elle chegara a cumprir alguns mezes também de exemplar noviciado, antes da fuga para a guerra, demónio que o fora tentar um dia.
Vae, pois, professar Manoel Candieiro, o amante de Bemvinda da Gloria, vae desapparecer-lhe este nome próprio e appellido de seus pães na substituição do claustral e nobiliarchico, como succede ahi aos titulares, que conhecíamos no mundo de um modo e de repente se nos mostram chrysmados em barão, visconde ou conde de tal.
Marcado o dia para a profissão, preparada pelo acolytho a egreja para tal fim, entremos 'nella em espirito, leitores, e vejamos, assistamos á ceremonia religiosa, vedada ao publico.
Está o altar mór preparado para missa solemne. Sobre a credença, 'num prato grande de prata estão a cogula, o escapulário, um cilicio e umas disciplinas. 'Noutro prato mais pequeno do mesmo metal um jarro, prato e toalha de agua ás mãos, e uma agulha e linha para coser o capello do professante.
No meio da egreja vê-se no chão estendida uma alcatifa d'Arraiollos, com quatro tocheiros nos augulos.
Começa a profissão pela missa, dita pelo D. Prior com insignias pontificaes, e acolytado por dois monges.
A communidade jaz assentada em suas cadeiras no coro.
Chega a missa ao offertorio: levanta-se a communidade, segue encorporada para o mosteiro, pela porta da direita, que dava para o grande claustro, e, pouco depois, entra processionalmente trazendo no couce d'ena ao noviço com cogula, ladeado pelo mestre e cantor-mór.
Manoel Candieiro, nome que por ultima vez se ' pronuncia, vae ao meio da egreja, entre os dois que o acompanham, a communidade abre em duas alas aos lados, e o noviço, com voz sonora e firm.e, voltado para o D. Prior, que se levanta com mitra e baculo, pronuncia a sua profissão :
Eu, Manoel Candieiro, d'ora avante D. Bruno Maria da Transfiguração, prometto a Deus e á Bemaventurada Virgem Maria, e ao Bemaventurado S. Bruno, nosso Padre, a todos os Santos e a vós, D. Prior, de viver todo o tempo de minha vida debaixo da regra de S. Bruno.
O orgam toca em seguida um hymno de egreja ; e, acabado, D. Bruno vae ao primeiro degráo do altar, ajoelha e põe a profissão, que leu, debaixo dos corporaes.
E os monges começam de cantar:
Suscipe me Domine secundum eloquium iuum... Gloria patri et filii et Spiritu Sancti.
D. Bruno levanta-se e vae deitar-se na alcatifa estendida no meio da egreja, emquanto o acolytho offerece ao D. Prior o escapulário e cogula, para elle benzer.
Nisto, entoa o diácono para o noviço prostado :
Surge qui dormis ...
Dois monges o levantam em seguida, e o conduzem perante o D. Prior, que entoa o veni creator spiritus, que a communidade canta até ao fim, ao som do orgam.
Os dois assistentes começam em seguida a despil-o, dizendo ambos :
Exuat te Dominus...
Despido, lhe vestem os dois outro habito, rezando o
Induat te Dominus ...
Vestido com as vestes bentas, o D. Prior lhe deu a pax, que, seguidamente, todos lhe deram, e D. Bruno, depois de a todos abraçar, caminhou para o D. Prior, ajoelhou, e curvou-se diante d'elle. Accipe, frater, arma militiae tuae.
D. Bruno ajoelhara no ultimo degrau do altar, e a missa acabou, e com ella a profissão do nosso valoroso defensor da patria.
Do mesmo modo que entrára com elle, a communidade foi saindo da egreja, levando-o, já professo, para o conduzir á habitação, que o esperava, a segunda na ala sul da vastíssima quadra, cujas paredes externas olhavam a cidade pelo noroeste.
Acabou, pois, o viver no século do filho do mestre Candieiro, para começar o seu viver d'elle na religião.
Deliberado, resoluto, corajoso o conhecemos rapaz; veremos agora o seu viver d'homem, de religioso, de morto para o mundo, que taes eram os Cartuxos.
Esqueceria elle Bemvinda, ou, entendido com ella, faria aquella profissão?
Nós sabemos que o preto vehiculo lhes aproximava as almas, nas missivas que levava e trazia, e mais nada por emquanto. Talvez que lá para o diante possamos saber mais. Prosigamos :
D. Bruno, ao entrar na cella, em sua nova casa, porque o era, ao fechar-se por dentro, conforme a regra, e ao ver-se sosinho, sentiu um breve calafrio, um mal estar geral, um como desanimo. Durou pouco ; porque o monge, erguendo a cabeça resoluto, e sorrindo, exclamou :
-- Ora esta ! Que inexplicável fraqueza ! vejamos esta casa.
Um corredor se lhe prolongava para os lados, tendo uma escada na extremidade do direito, que conduzia para um segundo andar. Caminhou para ali, sobiu, percorreu as casas de que composto, uma sala e duas alcovas : desceu, entrou uma porta cfue do corredor dava para o andar terreo, e viu uma cosinha com chaminé, da qual havia uma porta para uma alpendurada e para um jardimsinho formoso, cercado de canteiros de flores, com um repucho em taça de mármore no centro, sob viçosa laranjeira coberta de fructos ainda verdes.
Voltou d'ali e foi percorrer o resto da casa : três compartimentos ainda, não demasiado anchos, mas sufficientes para o destino que tinham: casa de jantar, de estudo e de dormir.
Ao ver-se senhor d'aquelles estados, d'aquella ilha deserta, D. Bruno assentou-se 'num banco de pinho e ficou-se a scismar. Depois de profundo meditar, ergueu repentinamente a cabeça, e exclamou deliberado :
-- Isto não é feio ; mas é muito só ! Veremos o que poderei fazer.
Ergueu-se, era uma hora da tarde.
-- São horas de jantar, disse; e foi-se a um almario que abriu. 'Nelle achou a provisão necessaria : um grande pão, legumes e peixe, por cozer, e uma pequena garrafa com vinho, que, por ser dia de profissão, lhe davam.
Acostumado na guerra a fazer a comida, quando a tinha e achava occasião para isso, D. Bruno era sabedor da arte : em pouco tempo cozinhou o jantar e o comeu. Isto feito, deitou-se sobre o enxergão, e permaneceu largo tempo cogitativo.
-- Isto não é viver para mim ! exclamou : preciso ser aqui o que não posso deixar de ser. Está feita a vontade de minha familia, e a minha : mas, para que esta o esteja completamente, careço de não viver só ...
E ficou-se a scismar, a formar castellos no ar, a ver Bem vinda no ceu de sua fantasia, a sonhar felicidades terrenas, a... rezar, emfim, as suas primeiras rezas de monge carthusiano.
Eram três horas da tarde e D. Bruno entregue a devaneios.
Uma campa tangida, no alto campanário do mosteiro, lhe veiu annunciar uma reza da Ordem. Ergueu-se, preparou-se para tomar parte 'neila : era a primeira a que ia assistir; foi, depois de bem composto o semblante, modos graves, breviário na mão.
No corredor encontrou a um visinho, que acabava de sair da cella : comprimentaramse e caminharam juntos.
Voltado o angulo sul da grande quadra, e mais dobrado aquclle vasto corredor, D. Bruno parou a olhar para uma cruz preta de pedra, posta na parede, sobre uma fresta rente do chão, que dava luz para baixe, para profunda casa escura.
-- Que significa esta cruz, aqui posta, e unica em toda a quadra, pois que não vejo outra ? perguntou ao collega.
- Indica o carcere do mosteiro, que é lá em baixo, respondera o interrogado,
-- É então uma sepultura?
-- Pouco menos, ou muito mais, dissera o outro. Olhae.
D. Bruno aproximou-se da fresta e olhou para baixo.
-- Ali nao se pode viver, exclamou.
-- Vive-se e morre-se, respondeu o outro. Aqui por baixo é tudo uma catacumba assim.
-- Para quê? Para cadeia ?
-- Não ; para cadeia é só esta parte ; o mais são subterraneos sobre que assenta o mosteiro, escuros, sem ar puro, só habitados de gatos bravos e de morcegos.
-- E sem entradas nem saidas? perguntou D. Bruno, com intenção muito reservada, mas do modo o mais natural, para o confrade ou commonastico não perceber na pergunta a intenção, que tinha.
-- Penso que sim; ninguém lh'as conhece: são vasios, talvez, para tirar a humidade ás celias, que todas são terreas.
-- É provável que sim, concluiu D. Bruno.
E entraram na egreja, c D. Bruno assistiu á primeira reza da Ordem, depois de professar, com tal compostura, que todos a notaram : era para modêlo.
Terminada aquella obrigação monastica, D. Bruno voltou á sua habitação, e foi passeiar para a aipendrada do jardimsinho.
-- Parece-me que não comecei mal, dizia, faltando comstgo proprio, -- Preciso adquirir creditos na casa : os do noviciado não foram máos ; mas são-me precisos mais, e muitos : eu preciso ser o Procurador d'esta casa, para ter liberdade de sair d'aqui. O actual está velho e eu devo substituil-o.
E sentia-se satisfeito com a esperança de vir a substituir ao velho. Porém, ao assaltar-ihe á mente a ideia de que só tarde, muito tarde, isso poderia acontecer, por teimar em viver o outro, sentiu-se contrariado, nervoso, inquieto. Não poder sair!
Diabolica lembrança !
E meditava. Repentinamente exclama :
-- Se todo este mosteiro está sobre catacumbas vasias, eu posso penetral-as e sair por ellas. Não tem entradas nem saídas, me disse o outro ; fazem-se-lhe.
Tinha aquelle feitio D. Bruno. Era como muitos religiosos, que já conheci e ainda conheço: pontuaes nas obrigações religiosas, graves, sisudos, só macerados é que não; mas beduinos fóra d'ellas, legitimos orientaes a gosos dados, como dissera Castilho.
Não era o temperamento d' este monge para concepções somente. Lera em Manoel Bernardes, ou não sei em que clássico, que a vontade sem deliberação gera o arrependimento, e lá para arrependimentos não se acreditava elle saido das mãos do Creador.
Veiu a noite, e D. Bruno entrou em casa, Accendeu o candieiro, e, com elle na mão, procedeu a miúda revista aos novos aposentos. O andar superior não lhe pareceu asado para operação nenhuma : muros altissimos se elevavam em volta ; desceu ao pavimento inferior.
Depois de minuciosa revista, notou bem audivelmente que no quarto de cama resoavam, como que que soturnamente, os passos que dava no pavimento d'elle.
-- Deve ser indicio do subterraneo este rouco echo soturno, este reboar de meus passos sobre um abysmo. Como hei- de eu penetral-o?
Deixando o desinvolvimento da these para ulterior ensejo, D. Bruno foi cuidar da ceia, que preparou, que se fez servir, e deitou-se vestido sobre o leito miserável, que só tinha a bondade de ser novo.
Deixemol-o entregue ao somno amigo, reparador dos trabalhos do corpo e do espirito, ou, talvez, aos de cogitações insomniosas sobre seu futuro viver monachal.
Já o leitor conhece bem a D. Bruno, já sabe o de que elle será capaz ; esperemos todos.
X
Viagem subterrânea
Um mez era passado sobre a profissão de D. Bruno.
Nunca o austero d'Ordens monasticas foi meio repressivo de mundaneidades. D. Bruno carteára-se com o preto das Mercês, o seu velho amigo, e, por intermédio d'este, com Bemvinda.
Ateiaram-se fogos amorosos nos dois peitos, adeantou se grandemente a obra de sapa de Santa Catharina.
Bemvinda não professára, apesar das diligencias da tia para esse conseguimento ; conservava-se addida, secular, menina do côro. Nunca se resolvera a ser esposa de Christo, quiçá esperançada de o ser d'alguem. Soubera da profissão do amante na Cartuxa, e 'nesse dia, em vez de andar triste e des gostosa com o caso, parece que folgara com elle.
Já no convento se sabia dos amores dos dois. depois do celebre abbadessado, em que Bemvindn dera um mote ao preto das Mercês.
Ha lá nada que possa escapar á penetração de freiras !
-- Ella agora deve professar, dizia uma freira para outra, no dia da profissão na Cartuxa, que foi sabida.
-- Talvez não, respondia outra. -- Anda hoje muito alegre, meu menino, e esta alegria d'ella leva agua no bico.
-- Não me parece ; porque o amante lhe professou na Cartuxa, donde se não sae ; se professasse 'noutra Ordem, tambem ella o fazia, como nós fizemos. Se nao chegasse a ter um esposo, viria a ter um confessor, como nós temos ; mas os da Car tuxa nem servem para confessores !
-- Ahi é que está ella, continuava a outra. Dá-me que pensar o seu contentamento. Ali anda cousa, se anda !
- Andará ; mas não se percebe que cousa seja. Pois o que poderá ella esperar de um Cartuxo ?
-- E o que poderemos nós esperar de nossos confessores ?
-- Mais uma razão em meu favor, dizia a primeira.
-- Terá escrúpulos ; eu sei lá !
-- Escrúpulos ! essa agora ! Olhem se ella os teve quando não fugiu do alferes francez ! Ninguem os teve, dissera, intencionalmente.
-- Ó meu menino, 'nessa parte é melhor não fallar...
Não gostou a primeira freira d'aquellas palavras da outra : pareceram-lhe allusão a cousa passada, e respondeu-lhe um tanto azeda :
-- Sim ? é melhor ? Pois é, sim : não lembremos aquella freirinha que chegou a ser vivandeira de um tenente algumas horas.
-- Não foi por minha vontade : todas o souberam. É bem tolla!
-- Sim! ora espera.
E, sem mais tir-te nem guar-te, a primeira das freiras foi-se á outra e começou entre ellas uma scena de pugilato, vulgar em mulheres assanhadas.
O dialogo que tão pacifico começara terminou em pancadaria, dando ao leitor noticias, que não conhecia, e de como no convento, de Santa Catharina se estava bem ao facto da profissão na Cartuxa do amante de Bemvinda.
Tivera logar esta scena, como o leitor verá, Uin mez antes dos acontecimentos que vão narrar-se, e que aqui se reproduz para inteira comprehensâo do romance.
Entremos na Cartuxa e na cella de D. Bruno.
Lá está elle sobre o leito, assentado como um othomano, entregue a um serviço exquisito, que bem alheio parece ao seu mister religioso, se com elle nâo tem alguma ligação, como veremos.
Entretece o homem uma espécie de cordão, com nós de espaço a espaço, feito de estreitas tiras de panno de linho. Já mede alguns metros de extensão, donde o não podermos crer que seja para lhe cingir o corpo, cordão esse costumadamente mais curto e tecido de esparto. Acaba a obra, salta do leito com ella na mão, e dirigerse ao quarto de estudo, onde havia, encostado á parede, um largo banco de pinho forrado de madeira até ao chão; uma espécie de comprida arca.
Pouza o cordão sobre o banco, e, com as mãos ambas, desvia de um lado o movei da parede.
Um buraco se patenteia no chão, quadrado, escuro. Tão forte lutada de vento saíra por elle, que D. Bruno desviou a cabeça por deixar explozir aquelle ar comprimido e, talvez, mal cheiroso.
Seguidamente, tomou o cordão e foi-o deixando descer pela abertura, d'ante mão preparada, para proceder á sondagem d'aquelle oceano de trevas.
Era de sobejo o cpmprimento da espécie de escada d'acrobatas para chegar ao fundo; pouzou 'nelle, deixando mais de metro de sobreexcedente.
Bem começavam os trabalhos do cartuxo. Era preciso descer ao abysmo tenebroso, que para tal fim entretecera elle aquelia corda.
Foi-se ao leito e delle tirou uma peça de ferro, a cujo centro atou a corda na extremidade superior, pouzando-a no pavimento, atravessada sobre a abertura, 'nelle praticada em seus primeiros trabalhos religiosos. Isto feito, caminhou para um almario, que abriu, e d'onde tirou um rolo escuro e fibroso, a modo de archote.
É a necessidade a mãe das artes : D. Bruno carecia duma escada, e fel-a ; precisava d'um archote, manufacturou-o. De escafandro não precisava elle ; bastava-lhe o capuz do habito para lhe cobrir a cabeça, e este para lhe abrigar o corpo. Se esta armadura monástica não fosse uma espécie de búzio, £ j por certo que D. Bruno o inventaria.
Feriu fogo, accendéu uma coiíiprida mecha, provocou a chamma e communicou esta ao improvisado archote. Enorme rolo de fumo escuro se produziu logo, com a chamma pardacenta. O monge seguiu para o buraco, afim de descer. Ao aproximar-se hesitou um tanto, não por medo ou susto, mas pela difficuldade de se agarrar á corda, aos nós d'ella, tendo na mão o archote acceso. Carecendo de ambas, não podia dispensar uma das mãos, o menos nos primeiros movimentos.
Não lhe faltava invenção; pouzou o archote na extremidade do banco de espalda, acocorou-se, enfiou pernas e corpo pelo buraco, apoiado nos braços, até que sentiu e bem conheceu ter os pés ja presos a um dos nós da corda.
Com a mão direita agarrou fortemente a corda e com a esquerda, estendido o braço para o archote, o tomou, dando principio á descida.
Se D. Bruno, em vez de archote fumegante, empunhara uma lyra, sei ia um novo Orpheu, que descia aos Infernos em demanda da sua Eurydice : assemelhava-sc, porém, ao mythologico em procurar a amada Bemvinda atravez de tenebrosos caminhos desconhecidos ; e, se 'naquelle momento lembrara a opera de Gluck, podéra ir cantando :
Mortel silence ! Vaine espérance ! Quelle souffrance Déchire mon coeur!
Mal o archote fluctuára sua chamma sobre o abysmo, de tal modo se incendiara fumoso, asfixiante, com a tiragem do ar por aquella espécie de chaminé, que o monge sentiu o maior dos incommodos, durante alguns instantes, ciii quanto não mergulhou totalmente no oceano tenebroso.
Desceu, pouzou no fundo brando de poeira e de detrictos de animaes mortos.
Um cheiro de singular bafio o incommodou a principio. Deu os primeiros passos no corredor subterraneo. De repente, uma enorme revoada, uma espantosa mianada o surprehende, o faz estacar, sem attingir, no inesperado da descarga, a causa de tal ruido. Era o despertar estonteado de milhares de corujas, e de morcegos, e de gatos bravos d'aquelle abysmo, acordados subitamente por aquelle facho, por aquella luz artificial nos seus ninhos, e buracos, em que diurnavam.
Ou fosse porque aquelles animaes se acostumassem a vêr a luz do archote ou por outra causa, todos elles se aquietaram pouco a pouco, de modo que, decorridos alguns minutos, imperava de novoali, 'naquelles enormes subterraneos, o silencio das. trevas.
D. Bruno foi indo, indo pelo corredor adiante,, prescrutando paredes, diligenciando descobrir uma abertura qualquer, fresta ou fenda, que lhe mostrasse o ceu, ou a claridade da noite. Nada: o morna silencio das cavernas, sem uma brisa, sem a mais leve aragem. Ao dobrar, porém, um angulo, sentiu na face um leve frescor, e parou, como para lhe descobrir a causa : nada via : mas aquella fresquidão que lhe beijava o rosto, annunciava-lhe, de facto, aragem de fora, leve brisa da noite externa. Procurou com a luz do archote achar uma fresta qualquer. Achou-a na verdade, alta, bastante alta, por fórma que por ella não chegava a vêr as estrellas do firmamento, o mundo extraconventual, extracavemoso, em que se achava. Observou o chão e topou 'nelle, aqui e além, grandes pedras, que por ali tinham ficado do tempo da construcção do mosteiro. Pouzado o archote, encostado a uma parede, D. Bruno arrojou algumas para o ponto sobrepujado da fresta, e, amontoando-as, poude, subido 'nellas, chegar com a cabeça á fresta, comprida e pouco larga, e viu o monge que seria capaz de dar passagem a um corpo humano. Um silveirão denso a occultava a olhares externos. Por ali era que penetrava o vento atravez da folhagem, que lhe quebrava a bravesa, e por ali poude ver que dava para a cerca, para aquella parte que os monges primitivos agricultavam, ficando rés vés com o solo aravel.
Tomado de grande contentamento, o monge desceu, e notou que o archote ia quasi consumido. Apressou se em tomal-o, em ir ao ponto da descida, antes que se apagasse de todo, e elle podesse ficar ali desnorteado, naquellelabyrintho, 'naquella enorme caverna de Caco. Por fortuna, tinha elle posto seu cuidado no observar a direcção que tomara na ida de poente para nascente, e verificado que o grande zimbório da sé se lhe mostrára a sueste, dominando com seu vulto coUosal a massa negra da cidade, dormente em trevas. A tempo voltou; porque mais alguns minutos, volvidos na exploração, lhe consumiriam o facho e o deixariam perdido no abysmo. Extincto, ao topar a corda, por ella subiu ás escuras o monge, e entrou na cella. Tateando-a, encontrou modo de fazer fogo, e accendeu o candieiro. Trazia, 'naquelle momento, o vento de levante o som de duas horas da madrugada. Deitou-se feliz : tocara Colchos aquelle argonauta; e, se não trouxera o vello de ouro o novo Jason, voltara com a risonha esperança de brevemente o conquistar.
Feiticeiros sonhos lhe embalaram o leito até ás seis horas da manhã, em que o campanário do mosteiro o chamou para as obrigações da Ordem.
Por dez horas do dia, de volta já dos religiosos deveres, almoçado, passeiava D. Bruno na alpendurada do seu jardimsinho, meditando risonho, não na celestial bemaventurança, na vida futura, no eterno goso conquistado a poder de mortificações, de obras evangélicas, de sacrificios da vontade, mas na vida da terra, na d'este mundo de miserias, de passageiros gosos, de felicidade palpavel. Não se achava completo o seu destino; para mais do que para enclausurado adorador do Omnipotente se julgava saído das mãos d'Elle. -- Pois o sacrificio da vontade, pensava, o não desempenhar no mundo o destino do homem, no amar e ser amado, no ver-se reproduzido 'noutro ser da sua espécie, poderão por ventura ser causas para conquistar o ceu e a santidade? -- Não, se respondia elle 'naquella conversação interna. Na contemplação da natureza, no anmor á mulher e aos filhos, a meu semelhante, sim, ahi vejo eu o complexo de meus deveres humanos e sociaes. No que aqui se faz dentro vejo uma blasfemia a Deus ! Quero e hei de ser homem, como os demais.
E a imagem seductora de Bemvinda a adejar-lhe na mente, formosa e linda, a brilhar resplendente de encantos no horisonte de seus desejos, como a Vésper tremeluzente no ceu dos infelizes.
Entrou na cella e assentou-se á mesa de estudo. Escreveu um aviso singelo ao seu preto amigo, para vir ter á Horta da Soeira no seguinte dia á meia noite, e ali, passeiando, esperar por elle. O maior segredo lhe recommendou.
Em seguida, escreveu a Bemvinda a derradeira missiva amorosa, depois de enclausurado. Este documento appareceu no original, por morte do monge, dentro de um Breviário :
«Formosa minha! Pasmada ficarás ao tomares este papel, bem sei; porque me suppões já morto para o mundo, e para ti.
«Um cartuxo é um cadáver, um Lazaro morto, terás tu pensado. É, sim ; mas, como áquelle dissera um. dia o Nazareno, surge et ambula, a mim o diz constantemente a tua imagem formosíssima! Oh! sim, creio que d'essa casa, em que presa, pobre pomba inculpada, me terás chamado á vida de teus desejos. Surgi, e caminharei para ti.
« Ámanhã, por uma hora da madrugada, serei em Santa Catharina*.
Foi Telmo, o porteiro comprado por elle, quem se encarregou de as fazer chegar a seu destino, aquellas palavras conspiradoras.
Não faltou o preto, no dia seguinte, ao que lhe pedira D. Bruno: foi á Horta da Soeira á meia noite, e por ali esperou a chegada do monge.
De facto, o cartuxo foi ao encontro do seu notavel amigo, sem receio de poder ser visto a tal hora.
A um ponto baixo do muro se chegou D. Bruno, mostrando-se em toda a evidencia. Viu-o logo o africano e para elle caminhou :
-- Mim ser, disse.
-- Bom, sobe cá, aqui, aqui 'nesta parte menos alta.
Subido o negro, foram os dois andando pela cêrca, até á abertura dos subterrâneos, que o monge queria mostrar ao amigo. Chegaram.
-- Vés ? Aqui virás todas as noites, depois das onze ou doze horas d'ella. Toma este papel, e toma dinheiro para comprares o que 'nelle digo. Espero-te amanhã.
O negro partiu só, e D. Bruno mergulhou no seu abysmo de sombras.
D'ali a uma hora, dava -se no mosteiro uma scena curiosa, que o leitor deve conhecer.
Á porta da cella do D. Prior batia, açodado, um monge. Ao estranho bater, a tal hora, accorreu o velho commandante, e abriu a porta.
-- Que vejo ! uma desobediência !
-- Senhor ! senhor D. Prior ! vi agora o demónio, entrou para cá ! exclamava um monge, que fôra condemnado a passeiar toda a noite na enorme varanda sobre a claustra.
-- Ide-vos, que estais sonhando,
-- Olhe vossa Paternidade que eu o vi! dizia, muito afflicto, o monge.
-- Basta ! Basta ! Ordeno que volteis para a varanda.
-- Misericórdia ! misericórdia ! Eu vi-o ; entrou para o mosteiro com um monge dos nossos : tenho medo. E ajoelhava aos pés do D. Prior o afflicto e tresloucado monge.
-- Está bem, erguei-vos, e ide para vossa habitação, e dê-se por expiada a culpa.
-- Mas, senhor D. Prior, o diabo está cá dentro !.. Exorcismos, exorcismos !
-- Ide, disse, por fim, solemnissimo o commandante d'aquella milicia monástica.
Foi-se o monge, e o D. Prior recolheu-se a scismar na grande insomnia, e desvairamento do subordinado, a quem se affigurára ter visto ao diabo em pessoa entrar para o mosteiro, com um monge d'aquella casa !
-- Coitado ! murmurava : bastava-lhe o susto para seu castigo.
XI
S. Catharina sitiada
Decorreu para o monge aquelle dia com grandissima lentidão. É que ha um phenomeno psychologico na essencia do homem, a que talvez dêem cabal explicação os estudiosos da alma humana : é o de que, quanto mais perto estamos do fim cubicado, mais nos parece elle distanciado de nós, maior o lapso de tempo para o possuirmos! E não devera ser assim. Pois se ao caminhante serve de allivio e consolo o ter a consciência de muito ter andado, e pouco lhe faltar para chegar a tocar a meta de sua aspiração, de chegar ao logar a que se destina, porque não succeder o mesmo no caso d'aquella aspiração da alma? que tambem não falta no caso do caminhante ?
Seja como fôr ; D. Bruno, torturado pela demora, soffreu miuto no resto do dia, na immediata noite e dia seguinte, até que chegára a meia noite d'elle.
'Naquelle vasto deserto de seus anhelos, apenas avistara e lograra tocar o ameno oásis consolador de receber resposta de sua amada Bemvinda.
Tinha terminado uma das horas canonicas na egreja nova : era meia tarde quando os monges se recolheram a suas cellas.
D. Bruno, ao perceber que todos se haviam recolhido, saiu da d'elle e demandou a portaria que o leitor já conhece, quando a uma janella proxima apparecêra em tempo, a fallar com o alferes Christovam da Costa.
Lá estava defronte o porteiro Telmo, assentado a lêr 'num livro. Interrompeu-lhe a leitura, chamando-o.
Atravessou o porteiro o vasto pateo, a grande quadra intra portaria externa e entrada da egreja, e foi-se, risonho, para o nosso heroe, a quem entregou a resposta trazida do negro José, d'aquelle notavel amigo, preto por fóra, candidissimo por dentro.
Tirou D. Bruno de um cinto muito occulto sob o habito, muito chegado ás carnes, cilicio que, se lhe não abria as portas do ceu, continha o necessário para lhe abrir as do mundo, algum dinheiro, que deu ao porteiro, e correu á cella para ler a resposta de Bemvinda.
E leu:
«Querido Manoel
«Não me assombra o que escreveste. Pois não temos nós sabido um do outro, não nos temos carteado? Temos.
«O meu pasmo é de satisfação, é de ventura prelibada no teu surgir da campa. Achaste meio de voltar á vida, de sair do tumulo, de viver para mim. Oh! vem, que aqui me tens, fiel aos teus desejos, fidelissima a meus juramentos de só tua ser. Teem querido que eu professe, depois que tu o fizeste ; mas, nada conseguirão.
«Para que pronunciar votos que seriam nullos? Mas, tu professaste, meu querido Manoel ! será que me esquecesses, que partisses os laços que te a mim prendiam ? Oh ! mas eu não o posso crer, não posso! antes lembro que alguma razão poderosa te levaria a dar esse passo, sem me olvidares. Dize-m'o, oh! dize-m'o, sem demora.»
D. Bruno lia e relia satisfeito aquella missiva de Bemvinda, a escrupulosa, que ainda pensava em nullidade de votos, e não conhecia, certamente, a Alcoforado de Beja para lhe dar exemplo de muito imitar, e de muito seguir.
-- Simples ! exclamou o monge, proseguindo : És uma innocente, Bemvinda! Pois os laços das conveniências sociaes podem lá nada contra os da natureza, contra suas leis inquebrantáveis ?
E foi escrever á amada ; foi-lhe responder áquella carta amorosa, que pedia resposta, para o preto das Mercês a levar, quando viesse no dia seguinte.
Por aquellas palavras do monge já o leitor deve presuppor o que lhe diria o cartuxo.
Chegou o dia em que viria o negro, caiu a noite, rompeu a lua. D. Bruno esperou ancioso pela meia noite, hora a que devia descer aos subterrâneos do mosteiro, em que devia mergulhar 'naquelle mar de sombras, para surgir além, á luz da lua, pela abertura conhecida do leitor. Chegou. Era já mais de meia quando o monge começou a descida, pelo processo já sabido.
Tudo ás mil maravilhas lhe correu.
Lembrando a historia do apparecimento do diabo, D. Bruno não surdiu fora senão o bastante para ver e ser visto do negro, receiando que alguém do mosteiro, o D. Prior, por exemplo, mettesse sentinella em averiguações.
Depois de uma hora avistara o, negro, que já transpozera o muro, e se encaminhara para a abertura do subterrâneo. Foi-lhe ao encontro a curta distancia.
Vinha o possante negro carregado de cousas varias, volumes grossos, de objectos encommendados, que o monge foi mettendo para dentro. Finda a descarga, deu o negro a D. Bruno outra missiva de Bemvinda, e tomou a escripta para lhe levar.
Assim foram continuando as cousas, até que o preto trouxera ao monge a mobilia completa de uma casa, cada vez mais ateiada a correspondência amorosa.
Entrou o outomno. Por noite escura de fins de outubro, D. Bruno despira o habito da Ordem, e vestira a roupa de um camponcz do Alemtejo, que dante mão lhe tinha comprado o preto, e que lá guardava no segundo andar da cella, deposito de mundaneidades, armazem de viveres carthusianos.
Preparava-se o monge para fazer sua primeira sortida d'aquella casa, e primeira incursão nas ruas de Evora, depois de professo.
Tudo preparado na cella, cautelas tomadas, bem combinado o disfarce, D. Bruno descera aos subterraneos, saíra fóra d'elles, e atravessára a cêrca sem ser visto de ninguém do mosteiro. Próximo da Horta da Soeira, onde o muro era baixo, viu elle um volume sobre o muro que só distinguiu ao aproximar-se. Era o negro das Mercês, que o esperava a elle. Quem tinha escallado Badajoz saltou lesto para a estrada externa, e lá se foi indo com o preto para a cidade.
Chegados á porta de Aviz, em vez de por ella entrarem, seguiram para o poente, ao longo da muralha, para irem entrar á da Lagoa.
Não deixavam os costumes, ainda patriarchaes de então, que pelas ruas de Evora áquella hora da noite vagueasse muita gente : raro seria o encontrar-se alguém. Entretanto, como podia encontrarse, D. Bruno, ao chegar ao largo de S. Domingos, despediu o preto, que era conhecido em toda a cidade, e sosinho tomou pela rua dos Lagares dos Dizimos, caminho do convento de Santa Catharina.
Era aquelle convento o oriente das cogitações do monge ; lá estava dentro a estrella rutilante que lhe apontava o dia, a manhã da ventura, a felicidade terrena, visto que para a bemaventurança celestial lá ia elle na Cartuxa caminhando com rezas, subindo, emfim, a scala caeli, que S. Bruno lhe deixára pousando em mosteiros, e topetando nas nuvens, já proximidades do ceu, conforme nossas crenças religiosas.
Chegado á rua da Ladeira, D. Bruno fitou logo uma janella com rotulas de madeira, no angulo do convento. Como as ruas próximas, como o convento, aquella janella estava immersa em profunda escuridão. Hero não accendera o facho ao tonsurado Leandro.
D. Bruno, que esperava ver brilhar ali uma luz, entristeceu-se com a contrariedade. Como esperava aquelle signal combinado e entendido, o monge cncostou-se á parede fronteira, e esperou.
Desespera quem espera. Impaciente, nervoso, percorreu o convento, as paredes e muros externos d'elle, e voltou ao ponto de partida. Escuridão por toda a parte: parecia-lhe um tumulo aquella casa. E, comtudo, havia lá quem pensava nelle, só nelle com exclusão de familia, de religião, de todos e de tudo, e, o que mais é, quem anhelante o aguardava no escuro da janella do angulo, que lhe ficava defronte.
Era que linha esquecido ao monge uma particularidade do convénio : a de que seria elle o primeiro que fizesse o signal luminoso, á amada, por cautela bem entendida. O brilhar de uma luz 'numa janella do convento a horas mortas da noite, despertava attenções de quem a visse; não convinha. Ao lembrar o combinado, D. Bruno, que trazia comsigo uma lanterna de furta fogo, para qualquer serviço que ella lhe podesse prestar, além do de dar o signal a Bemvinda, para logo a fez lançar um jacto de luz sobre o muro e janella.
Sem demora appareceu illuminada a janella. Funccionava oapparelho; os dois entendiam-se.
Desappareceram as luzes, depois de D. Bruno ter visto a formosa enclausurada, após ausencia de annos.
Ficou tresloucado o monge ao vêr a bella amada. A creança, que deixára, apresentou-se-lhe mulher feita, realmente admiravel.
Fallaram-se, fallaram-se muito, quanto o permittla a distancia, que não era considerável, como ainda hoje se pode vêr ; porque a janella lá está.
A uma pergunta de Bemvinda respondeu seguidamente o monge :
- Tudo prompto.
-- Oh ! então que termine o meu purgatório e me seja dada a ventura do ceu do teu amor!
-- Achaste meio de sair ? perguntara o religioso.
-- Ainda não. Só a compra da veleira...
-- Não, nada de terceiros.
-- Então ...
-- E preciso que de hoje a outo dias desappareça a chave da portaria exterior do convento, depois da porta fechada, decretara o monge.
-- Mas, a da portaria interna ? perguntara a enclausurada.
-- Não precisa desapparecer : basta que a porta se abra.
-- A que horas ?
-- As duas da madrugada na cathedral.
-- Depois ?
-- Depois ! Abrirei eu a outra, a da rua, e sairás por ambas.
'Neste comenos, parece que á esquina da rua de Soeiro Mendes assomara um vulto, ou que vinha para voltar para a da Ladeira, ou que espreitava o caso. D. Bruno avistara o, e pozera ponto na conversação, dizendo em voz baixa :
-- Adeus até de hoje a outo dias.
E cortou rua acima, voltou para a rua Ancha. Porta Nova e rua de Aviz, por onde saíu ao campo, e tomou para a Cartuxa.
Vinha perto a manhã. Sem inconveniente chegou o monge á sua habitação, terminada aquella reza nocturna.
XII
O rapto da nova Helena
Podera D. Bruno vir todos os dias á cidade, pois que para isso descobrira meio e disfarce, mas não o fizera. Todos dias podia ter vindo ver a amada a Santa Catharina, se não fora a cautela que convinha haver nas excursões nocturnas.
Como se fosse porém, elle, um vulto percorria externamente aquelle convento cada noite, mirando e remirando as janellas e adufas das freiras. 'Numa das noites, depois de duas vezes ter dado volta aos muros d'aquella fortaleza do ceu, defendida por anjos, parou á porta principal.
É para reparos aqui, pois chamamos fortaleza ao convento, a disposição que sempre tiveram as casas religiosas de um e outro sexo.
Muros grossos e altíssimos, gradaria de ferros empuados em janellas e frestas, rotulas meudas por dentro das grades, tudo quanto significasse defeza abrigo, segurança pessoal ali havia.
Porquê e para quê tantos cuidados, tanta segurança ?
Porquê ? porque a todos mostrára a experiencia, desde o comêço das ordens monásticas no mundo, que tanto homens como mulheres ali viviam contra natureza, presos como aves em gaiolas, que mui convinha guardar e segurar bem, pelo receio, não menos certo, de que procurassem a liberdade, a formosa liberdade, dadiva de Deus a todo o ser sensível .
O para quê, é sequencia da idéa : para não poderem sair.
Contra as leis naturaes, por consequência, foram os conventos.
Digam, porem, outros o contrario, e prosigamos a narrativa.
O vulto parára á porta principal da entrada do convento, e ali se demorara alguns segundos. Quem era e o que fazia i
Nem a uma nem a outra pergunta poderá responder, senão o futuro, o grande sabedor e avaliador do presente.
Durante a semana, o ataque á fortaleza de Santa Catharina foi mais activo e vigoroso nas missivas, que pelo preto mandara o monge a Bemvinda.
Chegou o dia aprasado para a fuga do convento.
Por uma hora da manhã saíra o tonsurado amante dos subterrâneos da Cartuxa, com o disfarce que vimos : na Horta da Soeira o esperava o amigo preto.
-- Toma, vae bebendo, mas não te embriagues, dissera D. Bruno, passando ás mãos do africano uma garrafa de aguardente.
-- Que fazer espreto?
-- Vigiarás se por aqui apparece alguém, ou pela cêrca. Emquanto não volto irás até lá em cima, â fresta do subterrâneo, e tudo observarás bem. D'aqui a hora e meia has de estar de volta.
E D. Bruno, que não esquecia o caso do diabo, narrado ao D. Prior, mandava metter sentinella, e partia para accommetter a brecha, com o denodo com que entrara a de Badajoz.
Um ficou, e o outro marchou para o combate.
Chegado pouco antes da hora combinada, D. Bruno dirigiu-se á portaria do convento, á qual se encostou, esperando as duas horas na cathedral.
Impaciente, receioso, alegre, triste como se está no caso em que se espera agarrar a felicidade, como a fortuna, pelos cabellos do monho entrançado do cucuruto, o monge applicou o ouvido ao buraco da fechadura, por verificar se ouvia dentro o abrir da porta interna. Nada ouviu.
Olhou : á luz esmorecida de lampeão semiapagado, pareceu-lhe, porém, vêr vultos, os de dois corpos, ou luctando, ou abraçados ! Pasmoso era aquillo !
O que em D. Bruno se operou é inexplicável. As duas horas soaram na Sé. Sem mais demora o monge metteu na porta uma chave falsa que trazia, e fez com ella ranger brandamente a lingueta da fechadura, que se abriu. D. Bruno entrou rápido, sem fazer ruido com os passos.
Qual não foi porém, o seu espanto ao notar que mal a porta era aberta, a luz se apagava, ficando tudo dentro ás escuras !
Parou um instante, pensou, attendeu, escutou. Silencio!
Ou aquillo era uma ciladada que alguém lhe armara, ou cousa que não podia explicar. Resoluto, corajoso, como soldado intemerato, chamou em voz baixa :
-- Bemvinda.
Um ruido leve respondeu á pergunta do monge, o ruido de lucta em silencio, sem uma palavra, um ai !
-- Aqui estou, ouviu elle, passados instantes, e quasi seguidamente sentiu que era abraçado por uns braços de mulher, que conhecera no roliço e delicado das mãos, e nas vestes que os cobriam. Era ella, a amada.
'Nisto, correhdo para a rua, passou por elle um vulto de homem, que não conheceu.
-- Que foi isto ? perguntou D. Bruno, entre assombrado e iracundo.
-- Partamos, respondeu Bemvinda, assustada e temerosa de que a porteira acordasse.
-- Que homem é aquelle, Bemvinda?
-- Partamos ! partamos ! respondeu a transfuga afflictissima.
De facto : o ruido do que parecia ter sido uma lucta corpo a corpo; o perguntar de um e o responder de outra ; o proprio ruido do abrir da portaria tinham despertado a guarda d'aquella casa, cujos passos já se ouviam em cima.
-- Porém...
-- Sem demora! E Bemvinda, arrastando ao monge para a porta aberta para a rua, saía com elle. D. Bruno deixou-se ir ; mas, quando próximos da porta, quando iam a transpol-a para sair d'aquella casa, fechou-se ella rapidamente e sentiu-se correr a lingueta da fechadura, e ouviu-se fora, na rua, o correr de alguém, que se afastava.
Estavam presos os dois amantes!
-- Estou perdida ! estamos perdidos ! exclamou, na maior das afflicções, Bemvinda da Gloria.
Não era a situação para perguntas do monge nem respostas da amada : isto comprehendeu D. Bruno, que, depois de breve reflexão, e quando já ao cimo da escada apparecia a porteira, disse apenas:
-- Escondo-me atrás d'aquella columna : corre á mulher e pede-lhe que te venha abrir a porta da rua, e já !
Dito e feito : o monge occultou-se atrás da columna, e Bemvinda foi-se apressada para a porteira, que lá se via já no alto da escada, com uma candeia na mão.
-- Jesus ! exclamou a mulher mal deu com a vista em Bemvinda.
-- Silencio ! silencio ! por piedade !
-- Mas...
-- Por Deus, minha amiga, calle-se, dê-me a chave da porta da rua, e salve-me !
-- Salvar ! mas de quê ?
-- Logo o saberá. A chave ! a chave !
E ao fallar assim foi entrando na casa da porteira, ou veleira, a qual, ao vel-a entrar afflicta, foi indo também sobre ella, com a luz na mão.
Casual e feliz retrocesso foi aquelle, que lhe alumeou a Bemvinda a casa, e deixou ver a chave dependurada de um prego. Sem demora, rapidíssima a tomou aquella serva de Deos, do deos Cupido;
e, sem dar tempo á veleira nem de perguntas fazer, tão attonita estava ella com o que presenceiava, Bemvinda galgou a escada e correu a abrir a portaria da rua, operação em que fôra feliz, apalpando e achando o buraco da fechadura, sem demora coitsideravel.
De candeia na mão viera sobre Bemvinda a velhota, que descia o ultimo degrau quando a porta se abrira.
Contrariada Bemvinda com aquella luz, que vinha dificultar a saida de D. Bruno, escondido detrás da grossa columna, que lá permanece ainda hoje, correu á velha, apagando-Ihe a luz, e precipitou-se em seguida pela portaria para a rua, acto immediatamente imitado pelo monge.
Terrificada a veleira de Santa Catharina, ainda poude notar a passagem de D. Bruno, como uma sombra nas sombras. Correu á porta ; já a ninguém viu.
Occorreu-lhe gritar, pedir soccorro ; mas, lembrando o escândalo que produziria, mais pensando no caso, deliberou fechar a porta, tirar a chave e metter-se em sua casa, fazendo que de nada sabia.
Assim o fez, e quem a ouvisse murmurar entenderia :
-- O que poderá isto ser ? o que poderá ?
-- Fugiu do convento a menina Bem vinda, não tem duvida nenhuma; mas, aquella sombra que a seguiu? Só se eu me illudi ; porém, eu creio ter visto alguma cousa. E depois de pensar : Eu lembro que ella foi cá mettida contra sua própria vontade, e que por causa de amores com o filho do Candieiro; mas, onde isto já vae ! O rapaz foi para a guerra, voltou, e fez-se Cartuxo ... Não sei, não sei entender isto ...
Mal ella terminára aquelle conjecturar, batia-lhe alguem á porta.
-- Abra, abra já; sou eu, a Abbadessa do convento.
A porta abriu-se para logo, e a dona abbadessa, de candieiro na mão, assustada, afflicta, perguntava áquella mulher :
-- Diga-me : sentiu abrir alguma porta ? viu a menina Bemvinda? Sabe d'ella?
Estava confirmada a suspeita : no convento já se dera pela fuga da menina do côro. A veleira tartamudeou-se com arte, por fingir espanto :
-- Eu ... não senti nada ; mas o que ha ? diga vossa reverendíssima...
-- Não ha nada, A portaria da rua ficou fechada esta noite ? perguntára a abbadessa.
-- Sim minha senhora, como sempre, e a chave ali, 'naquelle prego.
-- É singular! Pois saiba, veleira, que me parece velou bem mal esta noute.
-- Senhora, eu ...
-- Bem, bem : o que é preciso é que logo, em rompendo o dia, e em abrindo a portaria, se ouvir dizer a alguém que d'aqui saiu esta noute alguma menina o negue formalmente, entende bem isto ?
-- Jesus ! Santa Catharina de Senna me valha ! Pois saiu alguem?
-- Silencio absolutíssimo cá fóra, como lá dentro, onde eu o manterei.
E separaram-se as duas mulheres : uma enganada, outra tendo mentido.
Sempre a perspicacia feminil em achar saidas, viu o leitor 'nesta scena.
Bem dissera o Braz Garcia de Mascarenhas que
.....a mulher deliberadaSempre achou saida para dar entrada !
Bemvinda, sobre as outras, achára saida, não para dar entrada, mas saida a sua pessoa e á do amado cartuxo; e, como vimos, com desembaraço e presteza não vulgares.
O convento entrou no silencio : tudo ficou como se nada tivera havido.
Mas, aqui, 'neste ponto da narrativa vejo eu o leitor ancioso, por saber quem foi que fechou aos dois amantes, e que sorte seria a d'elles depois de sairem, depois de conseguirem libertar-se, sem demora, da prisão em que estiveram.
Como houvera alguma demora, maior do que a calculada por D. Bruno, era já tarde quando bateram as azas aquellas aves desengaioladas.
Apressando o passo, quanto poderam, os dois attingiram a porta de Aviz, sem serem vistos de ninguém, cuidavam ambos, sem suspeitarem que, a distancia, eram seguidos de um vulto de homem, ou de mulher.
Julgaram-se salvos, e foram andando apressados, quanto o permitia o uso de tal exercicio, em Bemvinda.
Chegaram á esquina do muro da Cartuxa : se para trás olhassem, avistariam ao vulto, que parecia seguil-os, a bastante grande distancia. Adiante mais estava o negro á espera : era a Horta da Soeira. Como a manhã não tardaria a romper, rapida foi a subida do muro, 'naquella parte baixa, e, pouco depois, chegaram ao buraco ou fresta dos subterraneos, onde D. Bruno entrou primeiro, e logo Bemvinda, auxiliada do negro.
Recebidas ordens do monge, o mongol retirou á cidade, e os dois lá se foram embrenhando nos subterrâneos para depois subirem ao céu da felicidade, da ventura de ha tanto cubiçada.
O vulto, que seguira aos fugitivos, entrára tambem na cêrca, sempre a conveniente distancia por vêr, sem duvida, que destino levavam. Ao ver este retroceder ao negro, que não distinguira até então, e que, pela distancia, não avaliava quem fosse, apressou o passo, galgou o muro adiante do africano e escondeu-se atrás de uma parede da Horta da Soeira, para conhecer ao que vinha vindo após de si.
Ninguem vira, ninguem esperava poder o negro encontrar em seu caminho, a tal hora da madrugada. Desceu o muro, e poz-se em marcha para a cidade.
Andados alguns passos, eis que lhe salta o vulto á frente, e diz:
-- Alto ! Quem é ? D'onde vem ? Para onde vae ?
Parou o africano ; mas, não respondeu ; pensou. Não convinha fallar, por se não dar a conhecer.
Quem é ? Responda, ou lhe tiro a vida, dissera o vulto, abrindo ruidosa uma navalha sevilhana.
Não se intimidou o africano com o perigo annunciado. O leitor já o conhece das Mercês, e sabe como elle debella aos adversarios; mas, se não se recorda, 'nesta parte do livro se lembrará.
Parecia ao africano extraordinário que alguém, não sendo para o roubar, mas só por lhe saber o nome, o quizesse atravessar com a lamina de uma navalha, e viu na exigencia do desconhecido um fim occulto, ou uma intimidação banal.
'Neste presupposto, e por desviar de seu caminho aquelle impecilho, sem mais reflexão, faz pé atrás e arremette vertiginoso, marrada feita, ao desconhecido.
Não esperava o estranho semelhante investida, de quem deveria estar com legitimo susto, e medo da folha aceira de Sevilha ou de Toledo, de que armado. Assim foi que tamanha marrada levou no peito, que para logo o tombou de costas, sentindose na queda, que da mão lhe saltara a navalha.
Ergueu-se o vulto, impellido de mola nervosa, e correu, cego de ira, ao negro vencedor até ali, para muscularmente o subjugar.
Escusado é dizer ao leitor que, no mesmo instante em que os dois se aproximavam, o desconhecido caía rapidamente de lado, e batia em cheio com o corpo no chão.
Terceira vez erguido e terceira prostrado, e estendido o vulto incognito, houve por bem desistir de mais assaltos, que, mesmo querendo, já não poderá continuar, tão contuso se achava elle !
Seguiu o preto o seu caminho, e o outro ficou estendido na estrada da Horta da Soeira.
Aclarava , o oriente, barrava-se de purpura o horisonte, fimbravam-se de ouro as primeiras nuvens: era dia.
D. Bruno e Bemvinda lá se ficaram junctos na Cartuxa, agora convertida em mosteiro duplex ; lá se ficaram na adoração do Ente Supremo, que por tantos modos se venera, prestando-lhe o culto do amor das almas, quiçá no famoso crescite et multiplicamini genesiaco, como poderemos vir a conhecer.
Ai ! mas, na estrada da Horta da Soeira, ficara um homem caído, prostado por violencia...
XIII
Fim da ceia de um cartuxo
No dia seguinte ao dos acontecimentos narrados, duas scenas importantes á comprehensão d'este livro houveram logar, que bom é sejam conhecidas.
Como o leitor viu e ouviu, a abbadessa de Santa Catharina recommendára segredo absoluto sobre o caso nocturno e fuga de Bemvinda, e negação, para estranhos, do facto sabido.
Havia, porém, um individuo qualquer qué devia estar ao facto do succedido: era o desconhecido vulto, que entrára a portaria do convento antes de D. Bruno, e que fora seguindo aos prefugos até á Cartuxa, Este bastava, pois, a divulgar o caso escandaloso em duplicado, visto que para duas casas religiosas o era elle. Não succedeu, porém, assim : a cidade não o soubera e somente o pae de Bemvinda tomára d'elle conhecimento. Quem lh'o iria dizer? A tia d'ella é provável que não fosse, por credito do convento.
O caso ha de vir a saber se. Entretanto entremos na Cartuxa, na cella ou casas de habitação de D. Bruno Maria da Transfiguração, no dia seguinte ao da entrada 'nella de mais um monge de outro sexo.
Se D. Bruno fora sempre um exemplar cartuxo, 'neste dia redobrára elle de ponctualidade no côro, de ares compunccivos, da maior austeridade carthusiana. Foi um outro Patriarcha da Ordem.
Terminada uma das rezas da manhã, voltára á cella D. Bruno.
Mal elle entrára, eis que dois braços o cingem amorosos.
-- Estamos perto da porta: entremos, disséra o monge.
-- Pois sim, respondeu Bemvinda.
E entraram mais no interior da habitação, por evitar que não fossem ouvidos d'alguem que fora passasse na grande claustra.
Como ali imperava absolutíssima a felicidade!
Que risos, que falias, que expansões de affectos !
Assentados um juncto de outro, como Adão e Eva no Paraíso, Bemvinda, terna, meiga, languida lançou os braços ao pescoço do monge, exclamando felicíssima:
-- Digam agora que não sou tua!
-- Minha, sim, e só minha. Porém . .
-- Porém ? perguntara Bemvinda, retirando os braços.
-- Porém, aquella sombra de hontem á noite... ainda me não disseste que homem foi aquelle que...
E D. Bruno erguera-se ferido pelo ciume. Bemvinda atalhou logo :
-- Não conheci quem era o homem que a mim correu, mal saíra do convento, para a casa da rodeira.
-- E não creste que fosse eu ? Quem poderias tu esperar ali que eu não fosse ?
-- Ninguém, é certo; mas, sem demora conheci que não eras, e as intenções que tinha...
-- E eram essas?... interrompeu D. Bruno.
-- As de saír com elle.
-- É singular!
-- O homem sabia do que tínhamos ajustado...
-- Sabia? Logo, seria um vulto que eu vira assomar á esquina da rua de Soeiro Mendes, 'naquella noite do ajuste.
-- Tudo ignoro.
-- E tu ...
-- Repelli-lhe a proposta.
-- Mas, depois houve lucta...
-- Repelli segundas intenções, e ...
-- Porém ...
-- Mais nada : tu abrias a porta da rua 'naquelle instante, e o homem fugia sem ser conhecido.
Bemvinda mentira 'naquellas palavras ao monge, mentira ; porque o vulto audaz lhe dissera seu nome ao propor-lhe a fuga com elle, que tambem lhe queria muito desde a infancia de ambos.
Permaneceu algum tempo a scismar o monge cartusiano no caso estranho.
Entre os pensamentos que lhe acudiram á mente, veio o de que podesse aquelle audaz ser o aprendiz de caldeireiro de mestre Raposo, o seu rival de ha muito. Esta ideia, porém, foi para logo repellida do cartuxo, por saber que o rapaz desapparecera d'Evora, não voltára, e ninguém sabia onde parasse. Taes eram os conhecimentos do monge.
Se bem que algum tanto tranquillo com os pensamentos expostos, não deixou, entretanto, de ficar cuidadoso, por não poder explicar tão extraordinario acontecimento.
Serenou aquella tempestadesinha, dissipou-se a nuvem que lhe toldara um instante a felicidade domestica.
No mesmo dia em que isto se passava ria Cartuxa, o immediato á fuga de Bemvinda, pouco antes de romper a manhã, batia á porta de mestre Raposo um homem.
-- Tu ! tu por aqui, José? Entra. Dissera Raposo, ao dar com o antigo aprendiz de caldeireiro. Entrou este, e a porta fechou-se.
-- D'onde vens ? Por onde tens andado ?
-- Venho da guerra, cheguei da França.
-- Então quando d'aqui fugiste foste assentar praça ?
-- Fui, sim, senhor.
-- E porque não me disseste nada ? Porque me não déste noticias tuas ?
-- Porque não me convinha saberem de mim.
-- Mas tu nunca tinhas mostrado inclinação para as armas.
-- Eu tinha um plano, que me falhou.
-- Não posso saber qual era?
E o antigo aprendiz de caldeireiro, antes de responder, permanecera silencioso como quem se delibera a dar resposta precisa, a patenteiar a verdade.
-- Não me podes responder ?
-- Posso, sim, senhor. Fui á guerra para ver se dava cabo do filho do Candieiro, que lá estava.
-- Para isso não era preciso ir lá.
-- É verdade ; mas lá nas batalhas, morreria sem ficarem vestigios do matador, e aqui ...
-- Sim, vejo que és cauto; mas, porque desejar-lhe a morte ?
-- Por vingança, por ciumes de Bemvinda...
-- Ciúmes de Bemvinda ?! Desgraçado ! Tu não podes ter ciúmes d ella.
-- Não posso? mas, porquê?
-- Porquê ... E callára-se o Raposo.
-- Sim, porquê?
-- Não te posso dizer porquê. Não penses mais 'nella, que bem está em Santa Catharina.
-- Na Cartuxa, quer o mestre dizer.
-- Na Cartuxa está o maroto do filho do Candieiro.
-- E ella com elle, respondera seccamente o ex-corneta.
-- Não percebo nada : que querem dizer essas palavras? Falla para ahi.
-- Querem dizer que Bemvinda fugiu esta noite, ha pouco tempo, do convento, onde estava, e foi com elle para a Cartuxa.
-- Impossivel ! Perfeitamente impossivel, respondera Raposo.
-- Certissimo, perfeitamente certo.
-- Mas, como sairam ambos de seus conventos ? Explica-te mais.
-- Pois não : já se vae convencer. E o aprendiz tudo contára ao mestre assombrado.
-- Então tu já estavas em Evora ha muito tempo ?
-- Tinha chegado havia oito dias.
-- Mas, porque me não appareceste ?
-- Porque não queria que soubessem da minha vinda. Se conseguisse o meu intento voltaria sem ninguém saber de mim. Hei de matal-o.
-- Ou elle te matará a ti. Mas, que hei-de çu fazer? o que hei-de eu fazer?
-- Não sei. Se ainda não está capacitado, mande sabel-o ao convento d'aqui a pouco, que já é manhã, e deixe-me aqui passar o dia, de modo que ninguem me veja. Á noite sairei.
-- Fica ; mas, sendo verdade o que contaste, que hei-de eu fazer ? Leva o diabo ao pae do tal patife, e a elle, ao cartuxo...
-- Esse fica por minha conta.
E mestre Raposo ficára-se a pensar no caso singular, que causaria ruido na cidade. De repente :
-- Mas que escandalo ! que vergonha ! Vae tudo com mil diabos !
-- Não deve ir, respondeu o aprendiz ao mestre. Acho melhor callar o acontecido : talvez as freiras façam o mesmo, por credito delias. Esperemos os acontecimentos; callemo-nos até ver em que tudo pára. Pouco ha-de viver quem não vir e souber. Entretanto, diga a razão porque eu não posso ter ciumes de Bemvinda.
-- Isso mais tarde. O que eu preciso saber já é como se verificou a fuga, e como soubeste do caso, e quem são os cumplices.
-- Só conheço um cúmplice: o preto das Mercês.
-- O preto ? Ah ! que dou cabo d'elle !
-- Só se fôr a fogo, se lhe atirar como a lobo, de outra sorte, não.
-- Deixa-o por minha conta.
-- Não se chegue a elle, mestre ; olhe que não levará as melhores.
-- Mas, porque tanta cautela? perguntára Raposo, desconfiado.
-- Cá por cousas. E callára-se, envergonhado de ter sido vencido do preto á marrada, e porque nem o mestre Raposo nem ninguém o soubessem.
Conhecendo-se, como se conhece, o génio assomado do mestre caldeireiro, bem podemos ajuizar do estado em que elle ficára, aturdido com aquella má nova.
Combinaram segredo, ajustaram vinganças, conspiraram mortes...
-- O frade fica a meu cuidado, dissera o aprendiz,
-- E o preto ao meu, concluira o mestre. Succedeu, entretanto, o que se antevira: a cidade não tomou conhecimento do caso nocturno; o segredo foi bem guardado das freiras.
Assim se explica o não, ter d'elle conhecimento Christovam da Costa, quando D. Bruno, no princpio desta historia, lhe perguntou tía, Cartuxa se nada sabia a seu respeito d'elle, depois que chegara de Lisboa, facto de que se lembrará o leitor.
E pois que lembrámos a Cartuxa e temos dado noticia ao leitor dos factos precisos á comprehensão do entrecho, voltemos áquelje mosteiro, onde» ha muito tempo, deixámos tres individues a ceiar.
-- Não te dizia eu que sou aqui o mesmo, que sempre fui? dissera D. Bruno para o embasbacado Christovam da Costa, quando este viu que o contubernal era uma mulher formosa.
-- Mas isto é pasmoso, Manuel ! Tu estarás perdido se descobrem ...
-- Não descobrirão, socega, respondera o monge.
-- Não descobrirão ? Engano o teu ! Ora dize-me: ninguém sabe, ninguém tem conhecimento d'isto ?
-- Sabe-o o porteiro e, talvez, um desconhecido.
-- Um desconhecido!
-- Sim, um desconhecido, e o porteiro d'este mosteiro, que não fallará, sei-o eu.
-- Quem sabe ?! E que pensas do desconhecido ?
-- Penso que me não conheceria, e não tenho a certeza de quem fosse. Já conheço, porém, que não filiou no caso na cidade, aliás teria feito ruido, e não te seria desconhecido, como era: sabel-o-hias quando chegaste de Lisboa. Emfim, meu amigo, chegadas as cousas onde chegaram, alea jacta est, ceiemos e ao futuro o resto. Entretanto, tambem quero ouvir o teu parecer sobre a conservação de Bemvinda 'nesta casa. Já me pediste um parecer; agora peço eu outro a ti. Achas que Bemvinda...
-- Pois dar-t'o-hei francamente : deves viver só, atalhou o alferes, alcançando o intento.
-- Mas, não sabendo ninguém ...
-- Sabem-se cousas d'estas, mais cedo ou tarde, e pasmado estou eu de que ainda o ignorem. Olha que te perdes se não mandares sair Bemvinda.
-- Mandar? Nunca!
-- Então pedir.
-- Não sairei d'aqui, acudiu Bemvinda, que se tinha ido affiigindo com as fallas de Christovam da Costa.
-- Não sairá ? Fala-hão sahir, Bemvinda, logo que saibam que aqui está, e D. Bruno será irremediavelmente encarcerado. Deixem-se de illusões e de devaneios. Desçam á terra, lá do ceu de ventura, em que se julgam, e vejam a realidade.
Foi a ceia entristecida por aquellas palavras de Christovam da Costa. D. Bruno, porém, homem de expedientes rápidos, tomou o de pôr ponto na conversação:
-- Só a Deus pertence o futuro: ceiemos.
E ceiaram, e beberam, e saudaram-se, não embargante a pouca alegria da monja de S. Bruno. Noite velha terminou a ceia.
-- Agora preciso sair, por não ficarmos dois comtigo, dissera o alferes. Poderás tu fazer com que se me abram as portas d'esta casa ?
-- Já o estão.
-- Já ? sem d'aqui saires a ordenal-o ?
-- Exactamente. Ora vem cá. E ambos se ergueram e foram ao ponto em que o monge fizera o buraco, nosso conhecido. Desviado o banco, patenteiouse o boqueirão.
-- O que é isto? perguntou, admirado, Christovam da Costa.
-- A porta por onde sairás.
-- Mas...
-- Não te assustes ; por onde entrou Bemvinda podes tu sair.
-- Porém, isso é medonho, ahi para baixo.
-- Irei comtigo até onde convier.
-- Na verdade, que és hoje o que foste sempre, Manuel !
-- -Não t'o tenho eu dito?
-- Bem se vê em ti um dos valentes de Badajoz!
-- É para que saibas : entro brechas e abro brechas.
XIV
Translatus ad tumulum
De pouca duração foi aquelle eden terreal de D. Bruno e de Bemvinda.
Tres dias depois de Christovam da Costa sair da Cartuxa pelo subterraneo, havia anoitecido ha pouco, estavam os dois religiosos amantes tranquillamente assentados no jardimsinho da casa, em perfeito e doce idyllio amoroso.
Altos, muito altos eram os muros, que separavam uns de outros os jardins dos monges.
Bemvinda recostára-se no collo do Cartuxo e fitava o ceu constellado de infinitas estrellas brilhantes. De súbito, ergueu-se d'aquella posição, assustadissima, exclamando afflicta:
-- Jesus!
-- Que tens ? O que te aconteceu ? perguntára D. Bruno, inquieto.
-- Vi agora...
-- O que viste ? falla, dize.
-- Vi assomar um vulto em cima d'aquelle muro, e apontava para o de poente. Era o muro divisório do jardim e cella do D. Prior da Ordem.
D. Bruno volveu logo para lá um olhar, e nada viu. Crendo fosse terror inlundado, nascido da posição especial de Bemvinda 'naquella casa, posição que lhe faria ver espias por toda a parte, o monge a tranquilisou.
-- Foi illusão tua, Bemvinda ; ali não está ninguém.
-- Não está? mas eu vi...
-- Não, não viste nada ; devia ter sido illusão a tua.
Bemvinda tranquilisou -se algum tanto, com a affirmativa do monge, e pediu para d'ali sairem ambos e se recolherem ao interior da habitação.
Retiraram. Dentro dizia Bemvinda:
-- Ai! Manuel da minha alma, que não sei o que me adivinha o coração ! ... Aqueilas palavras de Christovam da Costa...
-- Infundados terrores, Bemvinda ; porque não vejo possibilidade de se saber 'neste mosteiro que tu aqui estejas. A aspereza da Ordem não deixa presuppor, admittir aqui a uma mulher. Ninguém o pensará, sequer, concluira D. Bruno.
-- Mas, sabe-o o porteiro, sabe-o um preto, Christovam da Costa, e ...
-- E um desconhecido, que o mais que saberá é que saiste de Santa Catharina, sem saber para onde.
-- Quem sabe lá ?
-- Ninguém nos seguiu.
-- Oxalá, dissera, por fim, Bemvinda, e ficára-se ostensivamente tranquilla.
Cuidaram da ceia, fizeram-na e tomaram aquella refeição. No fim d'ella, tangia o sino monachal á reza de uma das horas da Ordem.
Saiu D. Bruno, fechando sobre si a porta da cella, que dava para a grande claustra. Bemvinda ficou só.
Haveriam decorrido dez minutos, quando a singular monja começou de ouvir umas pancadas soturnas, que lhe pareciam ser dadas nas paredes da cella, sem bem poder determinar o ponto.
Assustou-se muito a Cartuxa, especialmente por nâo estar ali D, Bruno, e por não poder explicaias. Redobraram de volume e de precipitação, a ponto de que Bemvinda conseguiu determinar a parte da cella em que eram dadas. Eram dadas no subterraneo, e perto, muito perto da abertura, que conhecemos, occulta pelo banco de espaldar.
Transida de medo, afificta a pobre moça não sabia o que fazer, o que pensar. E as pancadas a ouvirem-se mais fortes! Quem andaria nos subterraneos ? O que sería aquillo ? Assaltaram-na as ideias religiosas, e a de que podesse ser o demonio se apoderou de seu espirito. Tremeu em convulsão nervosa. Sosinha ! Assentou-se, exorando a Deus lhe trouxesse sem demora a D. Bruno. De repente, uma pancada no. fundo do banco, que tapava a entrada do subterrâneo, lhe mostrou que o perigo avolumava, que se conhecia aquella entrada da cella; desmaiou, caiu em deliquio, perdeu os sentidos, a consciência de tudo. E sosinha !
Acabára entretanto a reza, e D. Bruno entrava em casa, sem accidente notável, somente um pouco apprehensivo de não ter ido ao côro o D. Prior, que nunca faltava, senão quando doente.
Foi de notar o assombro do monge ao ver Bemvinda desmaiada ! Correu a ella, chamou-a, agitoulhe os braços, apalpou-lhe o coração. Vivia.
Afflictivamente alvoroçado, D. Bruno correu a buscar agua fria para a dar a beber á amada, para lhe borrifar com ella o rosto. Dados dois passos para tal íim, eis que nova pancada no fundo do banco ecoou soturna e lúgubre na cella. D. Bruno estacou, eriçados os cabellos, momentaneamente assustado. Serenou-se, pensou.
Achára a causa do desmaiar de Bemvinda.
Outra pancada, e d'esta vez enorme, se fez ouvir, e tão ruidosa que poderia despertar seus confrades mais próximos. Honriem de expedientes, D. Bruno, correu á luz de uma candeia, que apagou, e foi-se ao banco, que desviou rápido. Um jacto de luz afumada se lhe estampou logo no rosto, mal a entrada foi patente.
De baixo, ao ver-se afastar aquella tampa, ouviu D. Bruno a uma voz conhecida. Era a de Christovam da Costa !
-- A escada, já ! bradára aquelle, lá do fundo labyrintho.
Sem fazer perguntas inuteis, D. Bruno voou a lhe deitar para baixo a escada de corda, apenas dizendo :
-- Sobe como poderes.
E assim fallando, o monge correu ao pote da agua, d'onde sem demora alguma voltou a chegar aos lábios de Bemvinda um copo d'ella.
Apagára D. Bruno a candeia, como vimos; mas, tal foi o clarão saido do fundo abysmo, que, toda aquella casa ficára illuminada sufficientemente para D. Bruno ver o pote da agua, encher o copo e voltar com elle para a dar á desfallecida amada. Quando ia para o aproximar dos lábios d'ella, o facho de luz apagara- se lá em baixo, e tudo ficou ás escuras.
-- Não tens luz ! exclamára o ascensor.
-- Ahi vae, ahi vae ! respondera o monge, produzindo-a logo, como quem bem conhecia os cantos á casa.
Christovam da Costa chegava acima, exactamente quando a reaccesa candeia dardejava os primeiros clarões.
-- Que é isto ? Bemvinda morta !
-- Não, desmaiada unicamente.
-- Ajuda-me a chamal-a á vida.
E os dois amigos prestaram á moça os necessários soccorros, para ella voltar á vida da consciência.
-- O que é isto ? Porque vieste aqui ?
-- Venho salvar-te e salvar Bemvinda.
-- Como ?! Explica-te.
-- Estás denunciado, trahido; o D. Prior já sabe tudo.
-- Porém, como?
-- Não ha tempo para explicações : depois as saberás. E preciso que eu leve d'aqui Bemvinda, antes que a venham encontrar 'nesta cella.
Bemvinda acordara para a tremenda realidade : ao ouvir aquelle alvitre exclamou, corajosa :
-- Não sáio d'aqui, não vou.
-- Ha de ir, Bemvinda, se quer salvar a D. Bruno, e o quer livrar de prisão perpetua, da morte.
-- Não vou!
-- Ha de ir!
D. Bruno permanecia estupido, scismante, irresoluto. Não achava uma saida, [vergava, pela primeira vez, aquelle espirito altivo, prompto sempre em achar soluções a difificuldades. Christovam da Costa dirigiu-se-lhe :
-- Vamos! sem perda de tempo, salva-te !
-- Mas, que certeza tens tu?...
-- A maior de todas : a de que esta noite se dará busca a esta casa.
-- Ninguém entrará! bradou o monge, exaltado.
-- Arrombar-te-hão a porta.
-- Mato aos que entrarem !
-- Louco ! estás louco ! Vamos, sem perda de tempo, resolve Bemvinda !
-- Não saio d'aqui! repetia a moça.
-- Sim, não sairás ! reforçara o monge.
-- Perdeis-vos ambos, tresloucados ! que não sabeis o que fazem frades! Manuel, abre os olhos da alma á luz da verdade, entrega-me Bemvinda, que eu t'a restituirei um dia. Terás tu um melhor amigo?
-- Não ; mas ...
-- Nada de hesitações: resolve Bemvinda !
Esta desatara a chorar, e D. Bruno ficára-se como que absorto, sem ter forças para tomar uma deliberação qualquer.
Prolongou-se aquella lucta de instancias de Costa e de resistencias de ambos os amorosos. Era meia noite.
Uma forte pancada, na porta exterior da cella, viera mostrar a D. Bruno que alguma cousa grave, séria, muito séria, ia succeder ali. Confirmava-se, talvez, o que lhe annunciára o amigo.
-- Vés ? desgraçado cego! Dá-me Bemvinda !
D. Bruno não respondeu ao amigo : correu á porta a que batiam, e perguntou quem era, acreditando vainda que fosse o irmão do pax tecum, que viria mais tarde.
-- Abra o irmão D. Bruno, dissera de fóra a voz do D. Prior.
-- Um instante de demora, respondeu o monge.
-- Vês, dissera Christovam da Costa, que o seguira. E que fazer agora?
-- Nada.
-- Entrega-me Bemvinda, já !
-- Não entrego.
-- Matal-a-hão.
-- Primeiro a mim, ou eu a elles.
-- Que cegueira! que desgraça! respondera Costa, desanimado também.
D. Bruno fôra-se para junto da amada, e Christovam da Costa após elle.
-- Bemvinda! Por ultima vez attenda-me: venha ja, já comigo por este subterraneo; salve a D. Bruno, salve-se a si propria!
Os dois haviam-se abraçado, a chorar ambos, e Christovam da Costa, ao presenceiar tamanha prova de paixão terrena, resolveu, sem demora em seu espirito, não os desamparar emquanto podesse. Nada tinha que receiar dos Cartuxos, militar, armado de pistolas que trazia á cintura, se alguém intentasse aggredil-o.
Defenderia o amigo e explicaria a sua vinda: havia de ser attendido.
Outra pancada na porta da cella.
-- Manuel ! Escuta-me!
-- Deixa-me, deixa-me seguir ao meu destino, respondera, por fim, D. Bruno.
Ao presenceiar tamanha imbecilidade de D. Bruno, Christovam da Costa resolveu empregar todos os esforços de sua energia para salvar ao amigo e para salvar Bemvinda. Subordinando já ao íntimo pensamento seus actos, o alferes foi abrir a porta da cella. Aberta, deparou-se-lhe a figura austera do D. Prior, seguido da communidade, enfileirada em alas a dois e dois, ao longo da claustra.
Reciproco espanto foi o do D. Prior e o de Christovam da Costa : este, ao vêr a communidade com brandões apagados nas mãos, aquelle, ao encontrar um militar em logar de D. Bruno.
-- Vós ! aqui ! exclamára o D. Prior.
-- É certo, respondeu o alferes.
-- Quer isto significar que ...
-- Que sou o maior amigo de D. Bruno, e que estou aqui para o proteger.
-- Penso não haver protecção possivel para D. Bruno. Entretanto, preciso entrar.
E o D. Prior dava os primeiros passos para isso.
-- Perdão ! disse Christovam da Costa, interpondo-se. Vossa paternidade ha de me fazer um serviço.
-- Qual é ? perguntara o velho monge.
-- Ha de entrar só.
-- Só, não o posso fazer ; mas acompanhado do mais antigo, concedo.
-- Seja.
E Christovam da Costa deu entrada aos dois velhos, preparando-se para fechar a porta á communidade.
-- Não fecheis essa porta, mancebo.
-- Porém...
-- Ninguém entrará.
-- Ordenae-o.
-- Nas minhas ultimas palavras o fiz. Entraram os três, e a communidade ficou postada ao longo do corredor.
Que espectáculo! como dois imbecis se abraçavam os desvairados amantes, chorosos e soluçantes. Os dois velhos, pasmados de tão singular caso, commovidos mesmo, olharam-se assombrados. Era necessario, porém, pôr termo á scena singular que se presenceiava ali, e o D. Prior, erguendo a voz amoravel, chamou por D. Bruno, que parecia a nada attender.
-- D. Bruno, meu irmão, vinde a nós !
Não respondeu o desgraçado, antes redobrou de soluços e de lagrimas.
-- Senhor militar : não ha tempo para indagar como entrastes 'nesta casa, e como entrou essa creatura perdida, que para ahi se estorce afflicta. Fosse como fosse: o que urge sem a minima demora é que ella saia d'aqui, sem ser vista da communidade. Levae-a vós, que vos dizeis amigo d*este misero transviado. Elle... elle ficará comnosco.
-- Sim, senhor D. Prior; mas promettei-me, oh! promettei-me salval-o da morte.
-- Da morte ! Santo nome de Deus ! Aqui não se mata ninguém. Somente as penas dos estatutos da Ordem de S. Bruno se comminam aos deliquentes.
-- Mas sêde misericordioso, sim ?
-- Quanto poder o serei. D. Bruno vae já sair comnosco, e só ficará aqui este meu confrade, para vos mandar abrir a portaria, e sairdes quando convier.
E sem mais dialogos, sem mais delongas o velho Prior chegou-se a D. Bruno, que permanecia assentado estreitamente abraçado a Bemvinda, deulhe leve pancada no hombro, e disse-lhe :
-- Irmão! acompanhe a seu Prior.
Como automato, D. Bruno destacou da amada, ergueu-se imbecil e desalentado, e deu dois passos para o seu superior. Bemvinda desmaiou no momento da separação.
-- Senhor militar, peço-lhe segredo de tudo isto, em nome de nossas religiões, jura-m'o ?
-- Juro.
-- Obrigado, e eu vos juro não ir além do equitativo com este misero tresloucado.
E para D. Bruno :
-- D. Bruno, caminhe adiante de mim.
Como se tivera perdido a sensibilidade, a consciencia, a vida, D. Bruno começou de andar adiante do superior, sem ao menos volver um olhar para Bemvinda, que nem elle sabia ter perdido os sentidos.
Chegaram á porta da cella. A communidade lá estava em alas, mas já com as tochas accesas. Os dois entraram no centro e todos se pozeram em marcha, seguindo ao longo do corredor contra nascente, para onde maior era a extensão da claustra. E cantavam um cantochão plangente:
Terram miseria et tenebrarum ubi umbra mortis et nullus ordo; sed sempiternus horror in habitat.
O D. Prior, ao terminar aquelle psalmear dos monges, respondeu:
-- Ne intres in judicium cum servo tuo, Domine.
E a communidade :
-- Beati mortui qui in Domino moriuntur.
E D. Bruno, ao ouvir aquelle cantar funebre, instinctivamente começou :
-- Memento mei Deus guia ventus est vita mea.
E a communidade continuava :
-- Manus tuae. Domine, fecerunt me et plasmaverunt me totum in circuitu : Et sic repente precipitas me ?
E D. Bruno de continuar.
-- Quare de vulva eduxisti me ?
E a communidade de continuar :
-- Qui utinam consumptus essem : ne oculus me videret, Fuissem quasi non essem ; de utero translatus ad tumulum.
'Naquelle psalmodear tinham os monges percorrido o corredor, subido uma escada no extremo d'elle e andado, em cima na varanda, até se chegarem á entrada da estreita porta, que dá ingresso para e torre dos sinos. Ali, o D. Prior repetiu as palavras :
-- Beati mortui qui in Domino moriuntur.
Que procissão seja esta, assim funebre no cantar plangente, vejo eu que deseja conhecer o leitor; mas, tambem penso que desejará saber o que se passára na cella de D. Bruno, onde ficaram tres pessoas. Chamada á vida realisissima de infortunio, que a esperava, Bemvinda achou-se repentinamente caida do ceu de ventura, em que pouco vivera, no tremendo positivismo de perder o amado, e de ser expulsa d'ali 'naquelle instante.
-- Animo, e muita coragem, Bemvinda: dê-me o seu braço, lhe dissera Christovam da Costa.
-- Sim, peccadora filha, tenha resignação : acompanhe a este senhor, dissera o antiquor domus.
Bemvinda comprehendera a situação, tinha perfeito conhecimento do seu estado, ignorando sómente o destino que teria tido D. Bruno, depois que lh'o arrancaram dos braços.
Animou-se, deu o braço a Christovam da Costa e, corajosa, exclamou :
-- Vamos para onde quizerem.
Sairam os tres, demandando a portaria principal, que se abriu á voz do velho monge, para se fechar logo sobre os dois, que saíram.
-- Escusado é recommendar-vos o mais inviolavel segredo, dissera o monge ao porteiro da casa, e entrara no mosteiro.
O porteiro, que sabia da existência de Bemvinda na cella de D. Bruno, ficou attonito, ao ver que tudo era sabido e descoberto, e lá se ficou entristecido a pensar no destino do monge, de quem chegara a ser cúmplice, e o velho monge, entrando no mosteiro, demandou a communidade, que deixámos no terraço superior da vastissima claustra, e que o esperava. Chegado que foi, o D. Prior disse para D. Bruno :
-- Irmão desditoso, fostes por nós recebido com abraços de amor, e agora o ides ser com o da magua e dor profunda: pax tecum, e abraçou-o por toda a communidade.
Requietn eternam done ei Domine.
Aquelle espectaculo á uma hora da madrugada, sob um ceu estrellado em noite escura, tinha o seu quê de fantastico e de atterrador, por dar a lembrar um enterro.
Retirou a communidade, e somente ficaram dois monges com D. Bruno, alquebrado, sem animo algum, semi-morto.
O que significa tudo isto ? vejo eu perguntar a mais de um leitor?
O que quer dizer a entrada do monge na porta da escadaria do mosteiro, que conduz ao campanario altissimo?
Entre o leitor comigo e nós com elles, com os tres monges.
Dois lanços de escadas d'alvenaria se patenteiam dentro : um, que sobe para as sineiras, outro, que desce para algures.
Começa um dos cartuxos a descer cauteloso com a tocha accesa na mão, segue-o D. Bruno, vacillante, e após o terceiro. Descidos dois lanços, as tochas começam de dar uma luz tímida, mortiça, fumosa; faltava-lhes o ar para a combustão. D'ali para baixo, para obviar ao inconveniente, começam a estreitar os degráos, para darem logar a uma espécie de tubo ou chaminé de tiragem, que lá vinha de baixo, de muito fundo, e que no sitio dos patamares era interrompido, cortado quasi rés vés com os degráos, por modo a constituir um perigo para quem descia, por se poder desequilibrar e cair no abysmo. 'Nestes pontos a descida era morosa. Faltava cada vez mais o ar aos três monges ; as tochas iam quasi apagadas e elles agoniados.
Depois de dez minutos de descida perigosa, chegavam todos a uma casa profunda, d'abobadas sobre uma columna central, apenas arejada e alumeada por uma estreita fresta, que se nivelava com o pavimento terreo da grande claustra, e que tinha por cima, na parede, uma cruz preta, de pedra ou de madeira, que chamára a attenção de D. Bruno em tempos passados, quando um dia se dirigia ao côro com outro confrade, caso de que talvez ainda se lembre o leitor d'esta historia.
Era esta casa a prisão do mosteiro, uma sepultura de vivos.
XV
Santa Clara na Cartuxa
Chegou esta historia ao ponto mais interessante: D. Bruno preso e Bemvinda expulsa do mosteiro. Dos elementos componentes alguns temos de aproveitar para a sequencia da narração, visto que o heroe foi sepultado vivo, e já nos não pode servir.
Temos a Christovam da Costa, a Bemvinda, ao preto da Mercês e ao ex-cometeiro de Badajoz. Quem denunciaria ao D. Prior da Cartuxa a existência de uma mulher 'naquella casa ?
É natural, certissimo que fosse o ex-aprendiz de caldeireiro, desesperado, ciumento, malevolo porque fora elle quem prometteu ao mestre Raposo tomar a seu cuidado a D. Bruno, e aquelle Raposo dar cabo do preto, agente na perdição da filha. Conseguira seu fim o aprendiz : restava ao mestre o extinguir do negro.
Concebeu a ideia de o matar, crendo que o tirar a vida a um preto o mesmo seria que tiral-a a um irracional ; nem tinha escrúpulos nem teria remorsos em o mandar de presente ao diabo, cujo era, ao menos na côr.
Para esse fim se avistou um dia com o aprendiz, sem saber, ao tempo, que a filha já fora expulsa, da Cartuxa, e D. Bruno mettido na masmorra.
-- José, tenho um pensamento, o de fazer desapparecer ao negro das Mercês : quero matal-o. No fim de uma rua da cidade, onde está o convento das Mercês, fácil me será colhel-o uma noite e tirar-lhe a vida, saindo logo para fora das muralhas, sem ser visto de ninguém : que te parece o meu plano ?
-- Simples, facilmente concebido; mas de difficil execução, dissera o José.
-- Difficil ? porquê ? Não sae elle de noite em serviço do convento?
-- Sae, mas não se mata um bicho como elle se não a fogo.
-- E a punhal, ou ás facadas, porque não ?
-- Cá por coisas, repetia o aprendiz, como em tempo.
-- Mas, que coisas são essas ?
-- Não sabe o mestre que um preto é como um touro ? As marradas d'elles são como pancadas de vae-vem ? Teem cabeças de ferro, aquelies demonios.
-- Irei para elle prevenido,
-- De nada serve : atire-lhe de longe como a lobo damnado.
-- Um tiro faz muito bulha; denuncia-me.
-- Então faça o que lhe parecer melhor : mas eu bem o tenho avisado.
-- Bom, pensarei 'nisso ; mas eu vou-me a elle. E tu, o que fizeste ?
-- Tudo : a minha obra já está acabada.
-- Como ?! já ?
-- O Monuel Candieiro já está preso na Cartuxa.
-- E Bemvinda ? e minha filha ? perguntara, meio curioso meio afflicto, o mestre Raposo, levado a tanto por um resto de sentimento, de amor paterno, do que ficam tendo aquelies que não consideram mortos aos filhos perdidos.
-- Foi ....
-- Morta ? interrompera o Raposo, perguntando.
-- Foi expulsa do mosteiro.
-- E para onde ? o que é d'ella ?
-- Ainda não sei ; mas hei de sabel-o.
-- Vive ; pois que viva, onde quizer ; porém ...
-- Porém, o que?
-- Sairia sosinha .... expulsa como cão vadio e lazarento ... que desgraçada ! ...
-- Descance, mestre, que deve estar na cidade, e bem guardada : saiu de lá com o alferes Costa.
-- Com esse ! Como se achou elle lá 'nessa occasião ?
-- Não sei, não sei como; mas estava lá, na cella de D. Bruno. Provavelmente sabia da entrada que tinha o monge.
-- De qual entrada?
-- Da saida e da entrada particular, que tinha o Manuel no mosteiro.
-- Não posso acreditar que podesse alguém entrar ou sair d'aquelle mosteiro se não pela portaria.
-- E pela cerca também, subindo e descendo muros e indo entrar algures. Assim foi que elle para lá levou Bemvinda, e, 'neste caso, poderia o alferes saber o caminho.
-- Talvez, talvez, dissera Raposo, e ficára-se triste, muito triste e silencioso. Estranhou o aprendiz aquella mudança, e perguntou :
-- Que tem, mestre ? Ficou para ahi sem falla !
-- Maldita a hora em que combinámos desforras. Bemvinda está perdida de todo ...
-- Essa agora, é melhor! Pois não o estava ella já ?
-- Estava, mas agora ainda mais, depois d'essa denuncia.
-- Olhe, mestre, não me entendo com gente assim, sem firmesa : combinámos uma cousa, ajustámol-a, e eu não faltei, por minha parte : agora mestre Raposo mostra-se arrependido, e lamenta as consequencias de seus planos, e nem coragem tem de desempenhar a sua missão, a missão que se impoz! Farelorio e mais farelorio !
Incommodou se com aquellas palavras o mestre Raposo. Farelorio era uma offensa á sua coragem, a seus sentimentos pondunorosos. De proposito as dissera o aprendiz, que sabia o quanto era assomadiço o mestre, e tentava d'est'arte excital-o á vingança preconcebida. Impulsado da palavra excitante, mestre Raposo sentira uma commoção violenta e exclamára:
-- Farelorio ? Não, ha de leval-o o diabo, a esse preto infernal !
-- Isso, mestre ! e veja lá se quer auxilio ? . .
-- Não preciso ajudas : hei de esperal-o esta noite; hei de matal-o!
E ainda se ficaram algum tempo os dois 'naquellas combinações de vingança.
Como de outra vez, não podéra a cautela monachal occultar o escândalo da saida de uma mulher da Cartuxa : espalhou-se na cidade a noticia do acontecido, de um modo geral ; todos o sabiam.
Grandissimo escândalo para a religião ! Descrédito do monachismo ! Perda total do prestigio que os Cartuxos tinham ainda em Evora !
Continuava a vingança do aprendiz de caldeireiro.
Em casa do mestre Candieiro só havia lagrimas na mãe desolada, profundíssima dor no pae piedoso, descontentamento nos Candieiros menores, os irmãos de D. Bruno.
Dados estes esclarecirtientos para o leitor nada ignorar, vejamos se poderemos saber qual o destino de Christovam da Costa, e qual o de Bemvinda.
Expulsa por uma hora da madrugada, como é sabido, veio ella seguindo machinalmente ao militar pela antiga estrada da cidade, que conduzia a Lisboa por Montemor-novo.
Á porta da Lagoa pararam, para o alferes perguntar a Bemvinda :
-- Estamos na cidade: diga-me. Bemvinda, tem algum destino ?
Esta simples pergunta acordou a môça da especie de somnambulismo em que até ali viera, para desatar a chorar convulsa.
-- Socegue, e diga-me alguma cousa : quer ir para casa de seus pães?
-- Não, que me não quererão lá ...
-- Quem sabe?
-- Não, não, salve-me, senhor Costa, salve-me como poder, para que me não perca mais do que estou.
-- Bem, acompanhe-me : irá para casa de minha familia, que não tenho outro logar.
E seguiram rua acima. Christovam da Costa morava na rua das Amas do Cardeal, em companhia da mãe, senhora de sessenta annos, e de uma irmã, mais velha do que elle, solteira : não tinha pae, fallecido havia muito. Chegaram sem serem notados de ninguem, e o Costa bateu á porta, que se demorou em abrir, porque áquella hora o não esperavam as duas senhoras, acreditando que elle dormira no quartel. Veio abril-a a mãe, depois de conhecer a voz do filho.
-- Que é isto ? perguntára a mulher, vendo o filho acompanhado de outra, e disposto a entrar com ella.
-- Uma grande desgraça, minha mãe! Ajudeme a salvar esta senhora, e pratica uma boa obra.
-- Mas... quem...
-- Já digo tudo, minha mãe ; mas entremos, e fechemos a porta.
Entraram : Christovam da Costa contou á mãe o succedido, o que o leitor conhece, caso que ella não sabia, e disse que só a muita amisade que elle tinha a D. Bruno o levaram a dar tal passo. Pasmara a senhora com a narrativa, que ouvira, e compadecera-se, realmente, de Bemvinda, que se lhe apresentava formosa, e desgraçada. Conhecedora do mundo e de seus casos extraordinarios, aquelle era novo para ella ! E disse ao filho :
-- Pois sim, ajudar-te-hei; mas, que queres tu fazer ?
-- Rogar a minha mãe recolha nesta casa a esta senhora, até que...
-- Mas, tua irmã ? Que juizo ...
-- Tudo saberá também ; e por que não ? Estes casos devem ser conhecidos das mulheres, para seu ensinamento, e se precaverem dos perigos inherentes ao seu sexo.
-- Mas... a visinhança... o que dirá?
-- Nada dirá a visinhança; porque não saberá de nada, nem verá a esta senhora : temos devoluto aquelle quarto que dá para o quintal e não é devassado, e ...
-- Valha-me Deus! porém, só pouco tempo; porque...
-- Sim, minha mãe : eu penso que o pae de Bemvinda, e, sobretudo, a mãe...
-- Chama-se Bemvinda esta senhora ? dissera a mãe do militar. Pois que entre para bem ; mas, o que é preciso é que tu trates das cousas por modo que a familia a receba em sua casa ... por ...
E com reticencias cobrira seus pensamentos mais intimos.
-- A meu cuidado fica isso, minha mãe.
-- Ai! Deus lh'o pague, minha santa senhora, disse por fim Bemvinda, que se conservára cabisbaixa e tristissima.
A irmã de Christovam da Costa dormia em seu quarto, e não deu pelo que se passava. A mãe tomou Bemvinda pela mão, e conduziu-a a seus aposentos para ali a alojar, como podesse, durante o resto da noite. Christovam da Costa saiu para ir ao quartel, onde faltára ao recolher e onde devia ter ido. Dos mais personagens iremos sabendo por ahi adiante.
Acontecimentos d'esta ordem narrados, por mais cuidado posto em se occultarem, mais cedo ou tarde transpiram no publico. Podéra-se occultar a saidíi de Bemvinda de Santa Catharina, talvez porque o aprendiz de mestre Raposo não quizera fallar ; porém, ao caso da Cartuxa não succedeu o mesmo ; no dja seguinte, se não era sabido de toda a gente da cidade, muitas pessoas o conheciam, até mesmo a auctoridade superior ecciesiastica.
O monachismo estava já desacreditado no paiz, e cada vez resvalava mais no abysmo que se preparava para o sorver e subverter. Era a cegueira que se apodera dos que Deus quer perder: ainda que intelligentes, não vêem o perigo que correm, não conhecem a força da luz que os attrhae, para lhes queimar as axas, perfeitas borboletas perdidas.
E porque era verdade de todos conhecida, ao Ordinario em Evora corria o dever de zelar o credito e boa fama dos frades. Um escandalo na Cartuxa! Caso era novo nos fastos do monachismo eborense, e, por isso mesmo, pabulo ás maiores murmurações. Convinha fazer alguma cousa ao superior da egreja transtagana, por se mostrar zeloso da fé calholica, e defensor de seus ministros, não menos do que severo reprimidor das demasií«s e licenças d'elles, embora a Inquisição fosse o tribunal especialissimo para curar de taes assumptos.
Empunhava o timão da governança ecclesiastica do arcebispado transtagano, o notavel portuense e benedictino D. Fr. Joaquim de Santa Clara Brandão. Ao repercutirem em seus ouvidos crebros annuncios do caso estupendo, deliberou in mente sair do Paço e ir á Cartuxa, por se informar em fonte limpa do succedido.
Visitar aos Cartuxos, aos austeros fidalgos de S.Bruno não era o mesmo que visitar aos Capuxos, ou mendicantes de S. Francisco. Isto entendendo, e por dar mais solemnidade ao acto, ordenou se aprestasse o carro mais rico da mitra, que só poderia ser tirado por duas ou tres parelhas de valentes muares.
Existe ainda este carro famoso, que emparelha com os mais notáveis da côrte de D. João V, os formosos da casa real. Monta sobre quatro rodas de grandesas deseguaes, as traseiras das deanteiras : varaes e demais peças componentes com excellcntes lavores, e obras de talha dourada : pinturas mythologicas, allegorias, sedas e damascos em profusão. Tem as armas de D. Frei Patrício da Silva, que foi arcebispo de Evora até 1826. Puxado este carro por duas parelhas saiu da cidade para a Cartuxa, ás onze da manhã do dia seguinte ao da saída de Bemvinda da cella carthusiana, levando ao Arcebispo Santa Clara e a seu Vigario Geral, o Bispo de Bugia, António Mauricio Ribeiro.
Quiz Santa Clara visitar aos Cartuxos com o apparato devido a si e a elles, austeros religiosos, fidalgos sacerdotes, e por isso saiu no carro mais rico da mitra eborense.
Chamou as attenções de muitos a saída do Prelado no carro de galla, em dia que a não tinha.
maiormente vendo-o tomar a direcção da rua da Lagoa, e sair da cidade. Os que murmuravam, sabedores do caso conventual, explicavam-no, por isso, e os ignorantes d'elle ficavam-no então conhecendo.
Era escandalo e descredito religioso, sem duvida nenhuma.
Chegado á Cartuxa, para logo se lhe patenteou aberto o portão principal, que dava para o grande pateo, em que o carro entrou.
A grande sineta do mosteiro badalára seguidamente o annuncio do Arcebispo.
Decorridos poucos minutos, abria-se a portaria interna, a da esquerda, que dava para o claustro pequeno, rodeado de capellas, e que conduzia á egreja interna, á primitiva da casa. Açodada accor rera a communidade a receber ao seu Ordinario, postando-se em alas desde a portaria até á entrada da egreja, em que entraram Santa Clara com o bispo d'annel, Ribeiro, e seus caudatarios.
Feita a breve oração ao Santissimo, Santa Clara fez saber ao D. Prior dos Cartuxos, por seu coadjutor, que lhe queria fallar em sua cella. Isto sabido, debandou a communidade a um signal de seu chefe, e os dois Prelados e o Prior, entrando na grande claustra conhecida do leitor, tomaram para a cella prioral, lá no fundo, á parte direita. Entraram os três, ficando, fóra, a passeiar os dois caudatarios.
-- Sabeis, D. Prior, o que me trás a esta casa ? dissera o Arcebispo.
-- Não sei, excellentissimo senhor, e só vaga e muito indeterminadamente poderia achal-o em meu espirito, se fôra crivel ...
-- Não cogiteis; com muita simplicidade vol-o direi, ou diremos, eu, e o senhor Bispo de Bugia.
-- Escutarei respeitoso a vossa Excellencia Reverendíssima.
-- Terá, na verdade, algum fundamento o que nos tem chegado ao paço, de que 'neste mosteiro fora encontrada uma mulher? e preso um vosso monge?
Absorto ficára o D, Prior com tal pergunta, por ver como Christovam da Costa faltára ao que lhe promettera e jurara, divulgando o segredo, sem poder pensar que por outrem se espalhasse o caso ; mas, animou-se e respondeu :
-- Tem, e grande magua é a minha em haver este ensejo de o confessar a vossa excellencia, como não menor o meu espanto.
-- Espanto? perguntara o Bispo de Bugia,
-- Espanto, excellentissimos senhores, por ver quebrantada a palavra, que me dera o único homem sabedor do facto.
-- o unico ?! perguntára, admirado, o Arcebispo. Pois não o conhece a communidade toda?
-- Conhece, também o digo com magua; mas, não era ella quem o publicasse : o credito de nós todos ...
-- Quem sabe ! o delicto de um podia ter plural na denuncia de outro. Faz lastima vêr isto! D. Prior ! Acaso terá afrouxado a Regra no vosso governo ?
-- No apostolado houve um Judas, senhor Arcebispo, sem que o fossem os demais. A Regra carthusiana não tem mais frouxidão do que as restantantes, respondeu, offendido, o D. Prior ao Arcebispo.
-- Talvez ; mas de estranhar é o caso ; porque, 'nesta casa, é o primeiro, disse o Arcebispo.
-- Talvez, respondeu, tambem duvidosamente, o D. Prior. Homens, homens !...
-- Sim, sim, não fallemos nada mais sobre o caso. O que não posso, por ultimo, é deixar de vos estranhar o pouco cuidado posto em se occultar tamanho escandalo.
-- Já tive a honra de dizer a vossa excellencia que muito empreguei para se não saber : motivo superior á minha vontade o descobriu, sem me ser dado conhecer porque.
-- Mas, dissestes que uma só pessoa o sabia...
-- Assim é, Christovam da Costa, um alferes de cavallaria, que me prometteu guardar segredo, e que, pelos modos, faltou ao promettido.
-- Mas, esse homem...
-- Estava tambem na celia de D. Bruno, do frade deliquente, quando ali entrámos.
-- Ahi tendes, pois, a frouxidão da Regra, ou do governo : não só entrára a mulher, mas tambem um homem.
-- É esse ponto inexplicável, por emquanto, senhor Arcebispo, sem que o Prior d'esta casa, e sua communidade, vos mereçam censuras. Pela portaria não entraram, respondera o D. Prior, desgostoso.
-- Então, ha mysterio no caso. Sempre a serpente, sempre a mulher!
Não se prolongou a conversação. Santa Clara tomou conhecimento do facto, e nada poude remediar. Despediram-se, e sairam. Fóra, no corredor que os levava á egreja, ao passarem pela abertura da prisão do mosteiro, ouviu Santa Clara Brandão alguma cousa, que lhe pareceu voz humana.
-- Que é isto? perguntara o prelado.
-- A voz do preso monge culpado.
-- Mas, d'onde vem ?
-- D'ali, e apontára para o escuro e fundissimo antro, o D. Prior carthusiano.
O Arcebispo e o Bispo aproximaram-se um tanto, e deitaram a cabeça, ao tempo em que a voz de D. Bruno, lá do fundo tenebroso, exclamava:
-- Piedade ! piedade !
-- Jesus ! que horror ! dissera, desviando-se o Arcebispo, e seu coadjutor.
-- Ahi tem vossa excellencia a frouxidão da Ordem de S. Bruno em Evora.
XVI
O bom filho á casa torna
Deixámos Bemvinda, a formosa expulsa da Cartuxa, em casa da família de Christovam da Costa.
Temos, portanto, um homem novo em contacto diário de vistas e de falias com uma mulher formosa, em toda a perfeição de seu desenvolvimento physico. É um perigo, um caso destes ; é occasião próxima, como a de Adão e Eva no Éden terreal.
Uma tristesa profunda se apoderara, nos primeiros, dias, de Bemvinda.
Os acontecimentos da Cartuxa, por tal fórma lhe fulminaram o espirito que a desditosa ficara como estupida, insencivel a tudo, perfeita machina inconscinte, manequim a capricho de qualquer vontade. Não tinha podido avaliar bem o resultado da centelha que a lascára em plena vegetação, como o raio fende o cedro provocador, para lhe roubar a vida.
Mas, o tempo, o tempo, esse singular remedio posto pelo Creador no mundo, para conforto e cura de padecimentos íntimos, remittentes á therapeutica dos homens, esse anjo consolador de suave e tranquillo rosto, que se não palpa, que não vemos andar, que não falia, que tudo equilibra no globo, esse agente único começara a sua obra lentissima, de chamar á vida consciente a Bemvinda da Gloria.
Largas horas de choro substituiram 'nella as de estupidez sombria, de indififerentismo, de quietissimo permanecer.
Começou de conhecer a enormidade do erro, e não menos a da desgraça, que a ferira. Sem família, sem o seu convento de Santa Catharina, sem o amparo d'homem, apenas abrigada casualmente da caridade, a sua situação afigurava-se-lhe tristissima, desconsoladora, desesperada, mortal,
E depois, quando bem consciente de sua situação social, sentiu que adoecia, que nem a saude, o melhor dom do Creador á creatura, nem esse a favorecia a ella. As ideias de punição, de religiosa origem monachal, saltearam-lhe ó espirito. Aqui foi de a vêr desabar do pedestalsinho da conservação pessoal, em que ainda se mantinha ! Profundissima tristesa, abstenção de alimento, que o estomago lhe não acceitava, desalento perfeitissimo.
Christovam da Costa esmoreceu, ao ver aquelle estado de Bemvinda, aquem começava a estimar, de modo que nem elle apreciava bem. Tencionando e contando encontrar nos paes d'ella desculpa e perdão para a filha, dissera á mãe que por pouco tempo lhe pedia recolhesse a desgraçada ; mas a doença oppozera-se á saida de sua casa, para a dos paes d'ella.
Não tinha, por outro lado ainda, conseguido do Raposo a annuencia a seus rogos. Esperava demover a mãe de Bemvinda, cujo coração seria mais humano do que o do pae, que conhecemos assomadiço, e descaroavel.
Não a queria em casa a mãe de Christovam da Costa, por ter uma filha solteira, a quem não desejava fazer suspeitar mal da hospeda. Era mulher sisuda e honesta, que de modo algum pretendia que a despresada podesse parecer uma amante, ou manceba do filho, péssimo exemplo para a irmã d'elle.
-- Mas, minha querida senhora e mãe, dizia um dia Christovam á progenitora, em dialogo sobre o assumpto, nós não podemos lançar á rua a esta mulher. Minha mãe é boa e tem ahi uma filha.
-- Sim, sim, porém isto não pôde ter duração. Manda-se para o hospital do Espirito Santo, visto estar ella doente.
-- Não, minha mãe, deixe que eu tenha outra conferencia com a mãe de Bemvinda ; espero resolvei a a receber a filha.
-- Pois que seja brevemente, terminára a senhora.
Christovam da Costa começava a amar Bemvinda, que outra causa não havia para explicar o tanto instar elle com a mãe, para a detenção da expulsa da Cartuxa em sua casa.
Era natural o apparecimento d'aquelle affecto no coração do militar. Novo, com uma formosura em casa, attrahído de seus olhares fascinadores, e fallas, e triste sorte, o alferes viu -se captivo d'ella, sem cuidar que tal lhe podesse succeder.
Com repugnancia grande, com má vontade voltou elle a casa do caldeireiro Raposo, em occasião de lá não estar este iracundo cidadão.
Depois de combate grande e dilatado, em que seus argumentos mais eram da mãe do que d'elle próprio, conseguiu a annuencia da mãe de Bemvinda á entrada da filha na casa paterna.
Protector que tinha sido da infeliz, ajustou com a mãe d'ella o visital-a, e o continuar a prestar-lhe o auxilio de que podesse carecer, e dependesse do valimento de um homem. A conversação dos dois terminou assim :
-- Não tem então receio da opposição de seu marido ?
-- Não tenho, porque...
E callára-se.
-- Porque elle não terá forças para se oppôr...
-- Tem, sim, senhor; mas também eu tenho um plano de o vencer. A Egreja não despresou nunca a seus filhos, ainda aos mais peccadores, e então será possivel entrar ella outra vez em Santa Catharína...
-- Não é mau pensamento; mas, receio que o Arcebispo 'nisso consinta ... contrariara o alferes. É muito ruidoso o caso singular ...
-- Não importa ; eu cá tenho minhas ideias e razões para expor ao senhor Arcebispo ; e como ella não entrará na Cartuxa, mas 'num convento de mulheres, creio que se conseguirá o que desejo.
-- Quando deverá, pois, vir Bemvinda para casa de seus paes ? perguntára Costa.
-- Hoje ás oito horas da noite, occasião em que não estará em casa meu marido.
Ajustáram a ida de Bemvinda, e Christovam da Costa foi dar parte do succedido, á mãe, que o estimou muito, e muito.
O caso mais importante era o da communicação do resolvido á propria Bemvinda. Se bem que não tivesse tido tempo de tomar proporções avultadas o sentimento amoroso em seu peito, Christovam da Costa estava muito contrariado e desgostoso ; mas tinha sua mãe e uma irmã, a quem muito queria, e preciso era um sacrificio. Por outro lado não tinha certesa nenhuma da. reciproca affeição de Bemvinda, a quem não dissera ainda nem uma palavra revelladora do que sentia por ella. Apeiar um idolo do altar para nelle collocar outro, tão simplesmente, também lhe parecia trabalho difficil de realisar. E Christovam da Costa era amigo íntimo de D. Bruno ...
Estas considerações, que se lhe succediam na mente, e a frouxidão do sentimento, que estava longe de ser paixão, deliberaram-no, resoluto, a ir para Bemvinda com a nova de voltar para casa de seus paes.
Foi. Do dialogo havido apenas nos conservou a historia este fragmento:
-- Porém, meu pae tem um génio aspero ...
-- Abrandal-o-hão as razões de sua mãe. Bemvinda : nada receie.
-- Eu estava tâo bem aqui !...
-- Sentia-se bem? Oh! repita, repita, que se sentia bem!
Com tal ardor exclamou elle aquella pergunta que Bemvinda a notou mais.
-- Sim, sentia-me bem ; mas, porque tanta admiração na manifestação do meu sentir ?
-- Porquê ? Pergunta-m'o, Bem vinda? Porque sinto prazer íntimo 'nessa confissão ; porque vejo 'nella que não tem sido mal tratada de ninguém d'esta casa : porque, talvez, d'ella transpire algum outro sentimento ...
-- O de profunda e bem enraizada gratidão, esse quero eu que se manifeste bem claramente.
-- Pensei que outro podesse ser.. .
-- Outro ? ! respondera Bemvinda, e ficára-se a scismar.
-- Outro, sim, formosa Bemvinda.
Era aquelle breve silencio cogitativo o primeiro despertador, o primeiro annuncio da affeição amorosa que lhe manifestava o alferes, e tambem o primeiro rebate em seu peito do sentimento que dera a D. Bruno, perdido para ella, encarcerado até á morte na medonha prisão da Scala caeli,
O que somos ! o que é a fragilidade humana ! Bemvinda recebeu alegremente aquella declaração de Qiristovam da Costa, que lhe acordou o sentimento adormecido da affeição, do amor a outrem, a um ser da sua especie, mas de contrario sexo. Sempre a naturesa a se manifestar imponente em seu modo de ser e de obrar ; sempre esse fluido mysterioso de sequencia vital, da permanencia do homem na superfície do globo a brotar espontaneo de um olhar de mulher !
Sempre, como o vento a levar o pollen fecundante á palmeira do deserto, a nuvem a gotta d'agua germinadora á terra, o sol o almo raio a toda a creação ! O amor em tudo, e amor plural, que de contrario acabariam as especies no mundo. O que seria da pomba, perdido o companheiro, se não buscara outro ? Da rôla gemedora se o mesmo não fizera, em obediencia á lei eterna da reproducção ? Na humanidade o mesmo.
Percebeu o alferes no silencio de Bemvinda, no aspecto de seu rosto, mixto de tristeza, de alegre prazer íntimo, que ella lhe não repulsara a manifestação de seu sentimento. Julgou-se feliz ; porque 'naquella illusão dos sentidos, a que todo o ser sensível obedece, a que nenhum homem se furta, viu entreaberta a porta da ventura, na posse futura, no goso possivel d'aquella mulher formosa.
Combinaram a ida, ajustaram visitas, aproximaram-se corações.
Vestido á paisana o alferes, disfarçada Bemvinda, ambos sairam da casa de Christovam da Costa e seguiram ao largo de S. Domingos, e pela rua dos Lagares, menos concorrida, se foram demandando a dos Caldeireiros.
Sem incidente algum chegaram a porta da casa, reparando apenas o alferes 'num vulto de homem, que toparam ao arco de Santa Catharina, o qual fizera uma paragem significativa, como para reconhecer aos dois.
Não lhe deu importancia Christovam da Costa, pois que, a dar-lh'a, verificaria que era seguido do vulto, a distancia conveniente, e que, ao vel-os entrar em casa do Raposo, seguira, a passo accelerado, pela rua da Milheira, até ao arco de Santa Clara, atravessára a rua de Alconchel e lá se fora, caminho da Travessa Torta, com passo apressado sempre.
Á porta da casa de mestre Raposo, estava a mãe de Bemvânda esperando a filha. Defronte, a loja da casa do visinho Candieiro estava já fechada, bem como recolhida a demais visinhança, que não deu pela entrada dos dois rebuçados.
-- Ai! que sorte a minha, querida mãe, exclamara Bemvinda, lançando-se nos braços d'ella a chorar, a soluçar afflicta.
-- Animo ! e silencio, respondera a mãe á Magdalena, que vinha buscar o aprisco dos arrependidos.
Emquanto a scena domestica seguia seu curso de lagrimas das duas mulheres, Christovam da Costa fechára a porta sem ruido, e a ambas ellas pedia suffocassem exclamações, denunciadoras da chegada de Bemvinda.
Com a chegada d'esta tresloucada mulher a casa dos paes terminaria a sua aventurosa vida ?
A sequencia d'esta historia o dirá.
Espere o leitor; mas não esqueça os dois versos de Francisco I, por elle escriptos 'num vidro de janella de não sei que palacio :
Souvent femme varie Bien fol est qui s'y fie.
XVII
Mestre e Pae
É a Travessa Torta, em Évora, a mais propria e exacta designação que jamais se deu a uma rua, em opposição a tantas Direitas que ha no paiz, quasi todas tortas.
Demora ella entre a rua dos Mercadores e a do Raymundo, em continuação da Travessa do Sol, que vae da Rua do Tinhoso, hoje da Moeda, não porque se demonstre ter sido ali a officina monetária de D. João I ou de D. João IV, monarchas que 'nesta cidade bateram moeda, mas sim por mera recordação do facto historico.
Próximo do angulo da travessa, existia então, como hoje existe ainda, uma taverna do Carapia, que pelo nome próprio não perca. Parece que de longe vinha já, de avós do actual, o viver ali uma família de tal appellido.
Uma larga porta ogival dos seculos XII ou XIV, ali dava entrada em 1846 para comprida loja, ladeada de talhas ou potes de barro, com vinho. Talvez do tempo da dominação árabe seja este costume de guardar o vinho em vasilhas de barro, e não de madeira, quiçá por melhor se conservar 'nellas, durante o tempo dos grandes calores alemtejanos. Actualmente já se vae usando a pipa, o tonel de madeira, sem, comtudo, supplantar a talha antiquissima.
Afamada esta casa, já pela qualidade da pinga, já por que ali costumasse haver tavolagem, reuniam 'nella muitos homens de varias condições sociaes, desde o artífice ao creado de servir, sem exclusão do vadio, do parasita social, do rico empobrecido.
Encostados ás talhas, fumando, discutindo assumptos da Maria Fonte e bebendo de tempo em tempo, por alimentar o fogo sagrado da eloquência, estariam uns dez ou doze homens quando entrára outro.
- Boas noites, dissera, entrando, o sugeito.
-- Boas noites, responderam alguns, mais polidos.
-- Mestre Raposo não esta cá? perguntou ao Carapia d'então.
-- Só se estiver ahi para dentro, respondera o taberneiro.
O sugeito foi entrando, até que lá no fundo mal alumeado da loja, dividido das talhas por uma cortina de chita velha, estavam varios individuos, jogando as cartas, a pedida.
O que entrara chegou-se a mestre Raposo, um dos jogadores, e disse-lhe baixinho ao ouvido :
-- Precisamos fallar.
Voltou-se o Raposo, que não conhecera a voz, tão distrahido estava elle entregue ao jogo, e ao ver o aprendiz, respondeu sacudidamente :
-- Vae-te para o inferno ! Safa-te d'aqui !
É claro que perdia. O celebre corneteiro, que bem conhecia o genio do mestre, não se incommodou, antes, curvando-se de novo sobre elle, lhe pronunciou ao ouvido o nome de Bemvinda.
Mestre Raposo estremeceu, esperou que saísse uma carta, que pedira, ou para elle ou para o banqueiro, e levantou-se rápido, fulo, não só pela nova do aprendiz, como pelo azar da sorte, que lhe levara mais um tostão. Sairam ambos da taverna e da Travessa Torta, e seguiram para a rua do Raymundo. Ao voltarem o cotovello d'ella não repararam 'num volume escuro, posto ao canto da Travessa, como tronco de azinheira, ou cousa semelhante inanimada.
Foram indo rua do Raymundo abaixo, seguidos do volume escuro, que vimos, que lhes foi na pista a distancia conveniente. Sairam fóra da cidade e tomaram para o norte, ao longo da muralha.
-- Penso que já podes fallar sem receio de seres ouvido, dissera o Raposo. O que é isso de Bemvinda?
-- É que appareceu.
-- Aonde está?
-- Em casa.
-- Em qual casa ?
-- Na sua.
-- Na minha! Impossivel.
-- Via eu entrar acompanhada de um homem,
-- De um homem ! Quem era ?
-- Não o conheci; mas deve ser o alferes Christovam da Costa.
-- Esse ?
-- Sim, senhor, esse mesmo, que é amigo de D. Bruno, e que parece também la estava na Cartuxa, como se murmura.
-- Mas é que vae tudo com mil diabos! irrompeu mestre Raposo. -- Vou já pôl-a na rua mais a esse boneco.
-- Já, não, accudira o aprendiz : vamos de vagar, e por partes.
-- Que tens tu que dizer ?
-- Que se não põe assim na rua a uma filha, e que talvez tenha que agradecer ao militar.
-- Agradecer ! Agradecer o que ? Talvez tenha sido um cumplice.
-- Não pode ser. O que agora vou querendo crer é que em casa d'elle tem estado sua filha depois que saiu da Cartuxa. Cumplices não conheço senão o negro das Mercês ; esse sim, é quem merece castigo severo. É maroto de tal ordem que ainda será possivel conseguir libertar da prisão a D. Bruno. Se nos desfizermos d'elle, sim, senhor.
-- Eu já quiz dar cabo d'esse tratante; mas tu disseste-me taes cousas ... que ...
-- O que disse repito: que só a tiro ou á faca nos poderemos livrar d'elle.
-- Pois matemol-o ; mas, como ?
-- Attrahindo-o uma noite para fora das muralhas, matando-o e enterrando-o, dissera o ex-corneteiro ao irascivel Raposo.
Com esta conversação foram indo caminho da porta de Alconchel, da qual estavam perto. Raposo já se não lembrava tanto da filha e do alferes para só pensar no preto amigo de D. Bruno. Quando ouviu o alvitre de o chamar para fora da muralha, o Raposo, satisfeito, perguntou :
-- E quando, quando ?
-- Ámanhã : tenho cá uma ideia, um laço em que elle ha de cair.
Palavras não eram ditas ouve mestre Raposo uma pancada soturna ao pé de si, e vé cair de rosto no chão ao seu aprendiz ! Volta-se, pasmado, para conhecer a causa de tal queda e vê ... o que vê mestre Raposo? Vir para elle a correr um vulto negro, mais negro do que a noite. Tão perto vinha que nem tempo teve para fallar, mas para levar no peito tamanha marrada que o virou logo de pernas para o ar, e o estendeu de costas ao lado do aprendiz, caido de bruços ! Ao tempo da queda do mestre já se levantava apressado o aprendiz, com o rosto esmurrado, bradando :
-- A elle ! mestre ! Mate-se já !
Trás ! nova marrada apanha no peito o misero cometeiro de Badajoz, cambaleia, e vae de novo ao chão !
Ambos estatelados, poderam ouvir enorme risada e as palavras:
-- Toma Raposa : apanha esblanco !
Os dois ergueram-se, como poderam ; mestre Raposo, já de sevilhana em punho, e tão estonteado, que ia matando ao aprendiz, sem reparar 'nelle, sem o conhecer! Procurava alguém e achava o aprendiz, que seria esfaqueado se lhe não gritasse :
-- Alto lá mestre!
Serenaram ambos, reconheceram a causa e resolveram correr sobre o aggressor, que ainda ouviram ao longe, em risadas provocadoras. Isso tentaram fazer ; mas, debalde ! não só porque não podiam correr, como porque o negro das Mercês, que outro não fora o atrevido, já lá em baixo, entrava na cidade ao Buraco do Raymundo.
Dos acontecimentos narrados se deprehende que o ex-corneteiro, sabedor, como todos de Evora, do escandalo carthusiano por elle preparado em denuncia, andava procurando por toda a parte o paradeiro de. Bemvinda que o acaso lhe deparou. Já o teria sabido se publica se tornara a estada de Christovam da Costa no mosteiro e ceila de D. Bruno. Isto, porém, não era sabido.
Mais se colhe que o preto das Mercês, muito amigo de D. Bruno, tem andado escondidamente em busca do ex-corneteiro para d'elle colher, de algum modo indirecto, noticias dos acontecimentos e saber o que sería feito de Bemvinda.
Do que succedera a D. Bruno já elle tinha conhecimento pelo porteiro da Cartuxa, que, como sabemos, era do prisioneiro, por compra que lhe fizera da vontade a troco de boas moedas hespanholas e francezas, que trouxera da guerra.
Entrou no convento o preto satisfeitissimo, por ter sabido de Bemvinda e por ter podido dar uma sova de marradas no mestre e no aprendiz, que conspiravam contra sua vida. Bom aviso foi aquelle para o negro, que ao reconhecer a possibilidade de cair 'numa cilada se poz de sobreaviso d'ali em diante, e se fez acompanhar d'um punhal, de reforço a Murillo, cousa que até ali dispensára, confiante no craneo aríete e no processo de prostrar a qualquer individuo, que já lhe vimos executar com perfeição grande.
Raposo e Candieiro, equilibrados dos tombos, serenados quanto possivel, tomaram a direcção de casa, em conversação sobre o acontecimento :
-- Não lh'o tenho eu dito, mestre ? Só a tiro e de longe, cá bem de longe é que se póde dar cabo de tal demonio.
-- Tens razão, rapaz ; agora o conheço. Mas é preciso acabar com elle de vez, para não andarmos aqui expostos a marradas de tal patife, que tem contribuido muito para a desgraça da rapariga.
-- Pois bem: já fallámos no caso por vezes e ainda não resolvemos matar ao maroto. Diga-me, por ultimo, se quer ou não quer que se mate o preto.
-- Quero, sim.
-- Para fora da muralha o trarei eu, agora pergunto : quem lhe ha de atirar ?
-- Essa agora ! Atira-lhe tu, respondeu o Raposo.
-- Nada, eu não : ha de ser o mestre, que tem mais aggravos d'elle.
-- Já disse que has de ser tu, que tens apanhado mais d'elle do que eu.
-- Nãó senhor; ha de ser o mestre.
-- Has de ser tu, com mil demonios !
Dois poltrões, os dois caldeireiros. Ha d'esta gente : dão, ferem, matam com a lingua. Em Badajoz podéra o cometeiro de então, no fragor da entrada, atirar ao Candieiro, matal-o, que ninguém saberia do propósito : morreria como muitissimos que lá ficaram. Não o fez por fraqueza, talvez por medo, e preferiu aquelle modo indirecto de o sacrificar, que o leitor já conhece. Agora em Evora encarrega o mestre Raposo de um assassínio, reservando-se apenas o papel do agente, de preparador de uma cilada, de infame, por fim, que outro nome lhe não cabe a elle, e aos que procedem de egual modo.
Na duvida, na incerteza de quem mataria ao negro das Mercês os dois se foram chegando á rua dos Caldeireiros.
-- Amanhã ultimaremos o negocio, dissera o Raposo, continuando em mudança de assumpto:
-- Tens então certeza que Bemvinda está em casa?
-- Vi-a eu entrar, respondeu o ex-corneteiro.
-- Pois vou pôl-a no andar da rua.
-- Isso não fará o mestre : ninguém faria tal cousa. É sua filha.
-- Foi, já não é. Ha de ir para a rua.
-- Mestre, peço-lhe que tal não faça : olhe o que dirá a visinhança, o que dirá o publico. É melhor escondel a de modo que se não saiba d'ella. Julguei eu que o amor dos paes fosse outro. É verdade que penso mal ; porque eu tive um que me desprezou e lançou na roda dos expostos, como sapato velho no monturo. Tem razão, vá expulsal-a de casa, vá, como me fizeram, e já lhe podéra ter feito a ella quando nasceu.
Estas palavras eram punhaladas no irascivel Raposo, que depois de as ouvir, silencioso, respondeu apenas:
-- Tu não foste lançado á rua.
-- Pouco menos.
-- Tenho-te eu creado...
-- Como o faria qualquer pessoa mercenaria, accudiu ao mestre o aprendiz.
-- Não, como se fora teu pae é que tu foste creado em minha casa. Que te faltou ? Aprendeste a ler, ensinei-te o meu officio, foste estimado como a Bemvinda ... Não falles mais em teres sido despresado. Ha casos na vida... Tua mãe não podia dar-te o nome da familia d'ella ...
-- O quê !! exclamou, assombrado, o aprendiz. Logo, sabe o mestre quem foi, ou quem é minha mãe.
-- Verdadeiramente ... sim ... eu ...
-- Caso estranho ! O mestre sabe, conhece, por força, minha, mãe, e talvez tambem meu pae, e é preciso que falle. Eu quero saber quem são meus paes.
-- Ao certo não t'o posso dizer. Tua mãe penso ser uma senhora d'esta cidade de antiga e nobre familia, que teve a fraqueza de outras mulheres ; mas que é tão orgulhosa, tão fidalga, que te despresou, a ti e a teu pae. Não te digo quem sejja, porque ....
-- Mas já que não me diz o nome dessa mulher, diga-me o de meu pae : quem é?
-- Tambem não tenho certeza de quem seja.
-- Tem, deve ter a certeza que se tem em cousas d'estas, e eu quero saber do mestre quem seja esse pae provável, quem essa mãe que me gerou.
-- Olha, não apertes comigo, que eu nada te direi : a mãe que julgo ser tua é uma senhora casada : a falta d'ella não se conhece, e eu não te direi nada, nada a tal respeito. Teu pae foi um homem qualquer. E disse.
-- Bonita obra! accudio o aprendiz: nem pae, nem mãe, e apenas um sugeito, armado de punhal para m'o cravar no peito ! Malditos sejam esses que me deram o ser !
-- Que dizes tu? louco, que não lembras que tens tido em mim um pae, mãe em minha mulher e uma irmã em Bemvinda ! Deixa o mais, que como tu andam por ahi muitos no mundo. Entremos em casa. Bemvinda...
E callára-se.
-- Bemvinda... Prometta-me mestre que a não expulsará.
-- Que diabo de empenho é esse teu em que eu não lance fóra de casa a essa perdida?
-- Que empenho ? pergunta-m'o ! E não lembra que me criei com ella, e não recorda que me ia matando o homem que a perdeu, e não sabe que por causa d'ella fui para a guerra, e que tenho seguido por toda a parte a esse homem, movido do ódio e do ciume?
-- Do ciume ? perguntara, admirado, o Raposo.
-- Do ciume, sim senhor ; porque estimo muito Bemvinda : porque não sei se lhe tenho amor, ou que sentimento é o meu por ella.
-- Estás doido, rapaz ! Esse sentimento é o de bom e extremoso irmão ; porque outro é impossível.
-- Que diz? O que disse o mestre?
-- Que Bemvinda só pode ser tua irmã.
-- Oh! agora sim ! já comprehendo tudo ! Com que o mestre é pae também ! exclamára, exaltado, o ex-corneteiro de Badajoz.
-- Calla-te, que nos pódem ouvir : entremos em casa, atalhára o Raposo.
-- Pois entremos, dissera, de máo aspecto, o aprendiz.
-- Entremos, sim; mas, não digas palavra do que fallámos.
-- Sim, senhor, não direi; mas Bemvinda não sairá ?
-- Não sairá.
Batteu Raposo á porta, que logo se abriu; porque a mulher d'elle já havia tempo que ouvira a conversação dos dois, e tinha-se approximado da porta não só para a abrir sem demora, como por escutar o que diziam mestre e aprendiz. Ouvira tudo. Seu marido era pae do aprendiz, cousa d'ella ignorada. Folgou com a nova, em vez de se inquietar com ella ; porque sería mais uma arma contra o Raposo descaroavel de Bemvinda, da formosa infeliz.
Tem, pois, o leitor confirmada uma suspeita dos visinhos do mestre Raposo, a que já se alludiu 'neste livro, quando pela vez primeira nos appareceu o rapaz.
Deixemos agora a familia completa d'este inimigo do Candieiro; deixemos que a tempestade se desencadeie ali contra a linda moça, que a mãe d'ella serene a ventania, e que a paz domestica possa reinar 'naquella casa. Pensemos 'noutros.
O que será feito do pobre D, Bruno, encarcerado ?
Tem elle dois amigos em diias raças humanas, oppostas na côr : no alferes, Christovam da Costa e no preto das Mercês. Estes homens esquecel-o-hiam ?
Poderá a purissima amisade, esse nobilissimo dom celestial ter como opposto deploravel o esquecimento rápido e formal ? Teria sido uma loucura o proceder de Álvaro Vaz de Almada para com o tio de Affonso V, em Alfarrobeira ?
Sabel-o-hemos.
XVIII
O poder da amisade !
José se chamava o negro creado dos frades das Mercês. Se nasceu em Évora, ou se veio d'Africa não é ponto averiguado, se bem que elle se diga filho d'esta cidade.
Affeiçoára-se profundamente ao estudante das Mercês, e por tal modo que, como o leitor tem visto, nunca jamais o desamparou, a não ser quando se fora contra francezes, quiçá por sair sem lhe ter dito nada. Á côr externa responde opportunamente nos pretos uma alma de cândida alvura, que os faz amicissimos de quem os bem trata, e de uma fidelidade exemplar. Dois conheci eu já assim ; um, na Varzea de Goes, ha mais de 40 annos, outro em Coimbra, na casa do fallecido doutor Manuel dos Santos Pereira Jardim, que morreu visconde.
O preto José, que de ha muito servia briosamente a D. Bruno, ia entrar em nova campanha contra frades, contra os monges da Scala caeli que lá lhe tinham prisioneiro ao seu amigo. Empresa arriscada era a do negro, mais do que a do Candieiro contra francezes ; porque a Cartuxa de Evora não é tão fácil de penetrar como Badajoz, como a celebrada torre de Malakof, na Criméa, em 1854, nem mesmo com as forças alhadas de Christovam da Costa. São exorcismos ali as peças de bater demonios, muros altos, e subterraneos, defensa contra mundanos. O que lá for colhido não sae jámais, quer seja monge, quer inimigo da religião, que lá se professa.
Sabedor, pela conversação do mestre e do aprendiz, de que o alferes Costa estava ao corrente dos acontecimentos, o seu primeiro propósito foi procural-o, para d'elle saber novas e para juntos combinarem meio e traça de libertar ao prisioneiro.
No dia seguinte ao destes últimos acontecimentos o negro José procurara, no quartel de cavallaria cinco, a Christovam da Costa. Fizera-se annunciar por um soldado da guarda, que, pouco depois, voltava com ordem de lhe conduzir, a elle alferes, o preto das Mercês, bem conhecido na cidade.
Subiram, o soldado e o preto, aquelle escadorio de pedra, que conduz ao segundo andar do quartel, onde Costa tinha um quarto. Chegados, o soldado bateu á porta d'aquelle, que logo se abriu,
-- Olá ! negro, que temos de novo ? que queres de mim ? Tu conheces-me ?
-- Mim conhecer todos tropa.
-- Entra.
Entrado o negro, ido o soldado e fechada a porta, o alferes, muito distanciado do fim de tal visita, porque nem sequer lembrava a circumstancia de D. Bruno ter sido estudante nas Mercês, interrogou a visita escura :
-- Que queres de mim ?
-- Spreto querer saber D. Bruno.
-- Ah ! Tens razão : tu deves conhecer a D. Bruno. És amigo d'elle ?
-- Mê siô, sim ; ser amigo.
-- Sabes que está preso?
-- Mim saber.
-- E sabes porque ?
-- Mim saber,
-- Sabes então que Bemvinda foi achada na cella do nosso amigo, e expulsa d'ali ?
-- Mê siô, sim; saber tudo.
-- E do destino d'ella, saberás tu alguma coisa ? perguntou o alferes, como para inquirir se o publico tomaria conhecimento da estada de Bemvinda em sua casa d'elle, e do paradeiro que tinha.
-- Estar, no casa da mãe.
-- O que ? Quem t'o disse ?
E o negro José tudo contou a Christovam da Costa, da conversação ouvida aos dois caldeireiros.
-- De modo que a tua vida corre perigo?
-- Mim nao ter medo, e fazer assim. E o preto de tal modo fez menção de marrar que o alferes lhe bradou :
-- Alto lá! ao tempo em que botava a mão a uma cadeira.
Rio o preto, riram ambos do simulacro de uma tremenda marrada, que o africano engatilhára.
Convencido o Costa da verdadeira amisade do negro a D. Bruno, resolveu pôl-o ao facto de tudo, e com elie combinar uma primeira exploração sobre a Cartuxa, por intermédio do porteiro d'aqueila casa.
Ali deveria ir ainda 'naquelle dia o preto, por colher aiguma noticia do encarcerado, e Christovam da Costa, por sua parte, estudaria o modo de ambos conseguirem libertal-o da horrivel prisão.
Como o mosteiro assenta sobre subterraneos, facto de ambos sabido, por onde D. Bruno saira e Bemvinda entrára, 'nelles estava a esperança d'ambos, 'nelles a salvação do preso, por elles a liberdade.
Terminaram a conversação por ajustarem um encontro ás trindades, fora da Porta da Lagoa, a fim de um saber o que de novo lhe trouxesse o outro.
Despediram-se : o preto saiu e tomou a direcção das Mercês, e Christovam da Costa ficou-se a parafuzar planos, a combinar desejos...
Proporcionar a liberdade a D. Bruno era não ter de ser amado de Bemvinda; fazer o contrario, sobre ser um tredo amigo, era ter de se encontrar com o ex-corneteiro de Badajoz no caminho de suas aspirações á posse da formosa moça, requestada d'aquelle seu companheiro de infancia d'ella. Travou-se-lhe lucta no espirito, lucta de incertesas, de hesitações, de desanimo. Ora se inclinava a julgar D. Bruno totalmente perdido, morto para todos, e, 'neste caso, proseguir na conquista apenas iniciada, ora se decidia por banir do pensamento a ideia amorosa, a de poder vir occupar o logar vasio, que no coração d' ella deixara o amigo desditoso.
Depois de prolongado combate, Christovam da Costa, indiciso sobre seu porte ulterior, deliberou nada fazer de positivo, até que outras razões viessem actuar em seu animo, e esperou a noite para se encontrar com o preto José á Porta da Lagoa, quando voltasse da Cartuxa a dar noticias do que explorara.
Disfarçado no traje, para ali se encaminhou ás trindades. Fóra da Porta da cidade já o esperava o negro, que chegára primeiro.
-- Que novas trazes ? perguntára o militar.
-- Mim nada saber, respondeu o africano.
-- Então o porteiro nada te disse?
-- Não estar porteiro Telma; estar outra; não falla.
-- Olá ! Substituiram-no os Cartuxos, talvez por desconfiança d'elle. Bem ; temos de ir por outro lado. Anda comigo por fora da muralha, para irmos conversando, sem sermos ouvidos.
E Christovam da Costa tomava a direcção dos Remédios, dos Carmelitas Descalços. Fez o preto seus reparos a Costa e indicou-lhe outro caminho para passeio, o da Porta de Aviz. Annuio o alferes, por lhe ser indifferente ir por um lado ou por outro da muralha exterior da cidade.
Foram conversando até á referida Porta de Aviz. Ali chegados, o negro José convidou ao alferes a seguirem pela estrada que conduz aos muros da Cartuxa, já conhecida do leitor, por ser aquella por onde D. Bruno viera da Cartuxa á cidade, e por onde d'esta fora para aquelle mosteiro a formosa enclausurada, Bemvinda.
-- Tens algum plano occulto? perguntara o alferes a seu companheiro.
-- Sim ; mim ter plana, respondeu aquelle.
E lá lhe foi communicando pelo caminho da Horta da Soeira, que por ali fora que saíra do mosteiro D. Bruno, certificando-o da abertura por elle praticada no pavimento da cella, e da saída, occulta entre silvados, para a cerca.
Era plano arrojado do negro o tentar uma entrada no mosteiro, nos subterrâneos d'elle, pela abertura conhecida, e lá dentro, 'naquelle dedalo de escuros corredores sob o mosteiro, procurar approximação da cadeia, praticar-lhe um rombo na parede d'aquelle lado, e furtar aos monges o prisioneiro amigo. Ás observações cordatas do alferes sobre inconvenientes do plano, sobre o não se saber bem em que ponto jazia a prisão, respondia o negro que tanto procuraria, que tantas pancadas bateria por aquellas paredes que por íim D. Bruno as deveria ouvir, conhecer a causa, e dar signal com outras pancadas, indicadoras da prisão, em que se achava. Era, pois, seu primeiro intento do africano, não só mostrar ao alferes a abertura, escondida nas silvas, como verificar se lá estaria ainda, ou se os monges, havendo-a descoberto, a teriam mandado tapar a pedra e cal.
Chegados á Horta da Soeira, ao alferes indicou o negro o ponto mais baixo do muro, por onde elle tinha entrado, convidando-o a subir comsigo para ambos irem verificar se a entrada dos subterrâneos estava, ou não, aberta ainda.
Ponderou Christovam da Costa o ser cedo, o poderem ser vistos de algum monge, caso que, a dar-se, transtornaria os planos de ambos, e foi de parecer que fosse o negro somente, não só por bom conhecedor do terreno como, e melhor ainda, por sua cor escura e traje, que se não distinguiria do da noite. Não levaria muito tempo tal averiguação e elle, alferes, ficaria á espera 'naquelle sitio.
Foi o negro, que se não demorou, voltando com a nova de estar fechada a entrada do subterraneo.
Segundo golpe soffriam seus desejos e suas esperanças de libertar ao amigo.
Voltaram á cidade contrariados com esse contratempo, e cada um recolheu a sua casa.
No seguinte dia diligenciou Christovam da Costa colher informações da Cartuxa, e para isso procurou uma loja da Praça, onde todos os dias vinha o Procurador do mosteiro, o unico cartuxo a quem a Regra permittia saida d'aquelle mosteiro.
Encontrou-se com elle, e solicitou esclarecimentos. Debalde o fez; porque o monge se limitou a dizer que nada sabia, absolutamente nada.
Não havia, pois, meio de colher alguma noticia senão o de penetrar no mosteiro. Esta ideia foi bem recebida do raciocinio feito sobre a execução do plano pelo preto José. Este seria quem entrasse no mosteiro. Havia uma entrada tapada, é certo; mas essa poderia abrir-se de noite, o negro entrar por ella e taes voltas dar, lá por aquelles subterrâneos, qiie lograsse, na verdade, vir a fallar ao prisioneiro, ou, quando menos, a saber d'elle.
Firme 'nestas ideias, Christovam da Costa procurou nas Mercês ao negro, e com elle ajustou um encontro á noite, no chafariz das Bravas, logar já desviado um tanto da cidade, onde nâo seriam vistos de ninguém, que suspeitasse do que combinassem, ou no acto visse motivo para reparos.
Assim postas as cousas, e vinda a noite, o alferes saiu da. cidade e tomou a direcção d'aquelle ponto de reunião, na antiga estrada de Lisboa a Evora.
Já lá encontrou ao negro. Conversaram muito ; ajustaram plano, harmonisaram accessorios da empresa, em que tinham de entrar estranhos auxiliares, um ou dois pedreiros, para arrombarem a tapada abertura. Por conta do alferes ficou o procurar pedreiros sisudos, que nâo podessem trahir aos conspiradores da amisade.
Começavam-de voltar á cidade, quando, ao sitio da capella de S. Sebastião, notaram que uma liteira vinha caminho de Lisboa, mas não pela estrada ordinária, porém, atravessando uma carreteira em diagonal que, através de um ferragial. vinha dar ali, a S. Sebastião.
Era caso anormal aquelle, e para reparos, tanto mais quanto a carreteira, vinha do lado da Cartuxa, S. Bento, ou de outro ponto 'naquella direcção.
-- Tenho um presentimento, preto, dissera o alferes.
-- Que ser? perguntara o José.
-- Que devemos tentar saber quem vem 'naquella liteira.
-- P'ra que?
-- Logo o saberemos. Anda comigo, vamos occultar-nos no átrio de S. Sebastião, para d'ali observar-mos e poder-mos ouvir alguma voz.
Tem o coração humano presentimentos singulares, antevisões pasmosas, que a sciencia não póde explicar. Ha 'neste genero casos assombrosos, estupendos até.
Retiraram os dois, sem serem presentidos de quem vinha dentro da liteira, e de quem a acompanhava, que parecia serem dois homens, um, adiante, outro, atrás.
Tem o alpendre de S. Sebastião uns grossos pegões de cantaria: 'nelles se occultaram.
A liteira entrava ao tempo na estrada publica, dava 'nella alguns passos quem a guiava, e suspendia a marcha, parava.
No penumbroso da noite, não viram os dois escondidos que a portinhola da liteira se abrira, e que de dentro uma cabeça de homem assomava á janella ; ouviram, porém, dizer a voz estranha :
-- Já ahi estão os homens?
-- Ainda os não vejo.
-- Então vamos esperal-os ao chafariz das Bravas.
A liteira seguiu seu caminho.
-- Conheceste aquellas vozes, perguntou o alferes ao negro.
-- Mim não conhecer.
-- Pois hemos de conhecel-os ; vamos sobre elles a distancia.
E foram, a conveniente espaço de não serem vistos, nem presentidos.
Parou a liteira junto ao chafariz ; pararam os dois amigos do nosso heroe.
Seriam passados cinco minutos, quando a mesma voz, que já ouvimos, perguntou á janella :
-- Nada de novo ? Ainda se não ouvem ?
-- Ainda não, respondia a pessoa interrogada, que o alferes poude verificar ser o guia da liteira.
-- O que será isto ? dizia Christovam da Costa, como perguntando-se. Por quem esperarão elles ?
-- Escuta: estar callada, respondia o negro, deitando se ao comprido no chão.
-- Que fazes ? O que é isso ?
-- Estar callada, respondera o negro em voz baixa.
Callou o alferes, e o negro, estendido no solo, applicou o ouvido, como quem quer ouvir alguma cousa.
-- Que fazes?
-- Calla, diabo!
-- Estás doido ?
-- Não estar doida, respondia o negro, erguendo-se precipitado, e alegre.
-- Que tens?
-- Vir gentes a cavallo.
Christovam da Costa olhou, poz-se á escuta; mas nada ouviu.
-- Não vem ninguém, tonto.
-- Vir gentes, mê siô ; vir cavallos.
De facto, o alferes começou de sentir um ruido mui longiquo, que, pouco depois, percebeu claramente ser gente a cavallo, pelo tropel já distincto.
Vieram vindo: ao passarem pelos nossos occultos, mostraram-se a toda a evidencia : eram quatro soldados de cavallaria.
Reflectindo um instante, disse para o negro :
-- Cinge-te com o chão, que te não vejam.
E logo, adiantando-se para a beira da estrada :
-- Alto ! S. Roque !
Os cavallos pararam. O alferes dera o Santo do dia e voz de commando aos quatro soldados, que obedeceram, ao presentirem um ofíicial do seu corpo.
-- Companhia e numero ? perguntára, saindo á estrada.
-- Semos da quarta, meu alferes.
Estava conhecido pela voz. Eram da sua companhia.
-- Vão em diligencia?
-- Vamos, sim senhor.
-- Aonde vão?
-- Não sei, meu alferes.
-- Falla, patife ! dissera Costa com voz forte.
-- Não sei ainda : aqui ao chafariz das Bravas é que o saberemos.
-- Nem sabes a que vão?
-- Acompanhar e guardar um homem.
-- Quem é ?
-- Não sei também : disseram-nos vir da Cartuxa.
-- Como se uma pilha eléctrica se despejara sobre o alferes estremeceu elle de contentamento. Rasgára-se instantâneo um véo ; tudo via, percebia o fim da diligencia. Na liteira devia estar D. Bruno, devia ir o seu amigo, ou para a casa da Ordem, em Laveiras, ou para outra, fora do reino, da religião carthusiana. Não podia ser outra cousa. Caía por terra o plano de uma entrada na Cartuxa.
D. Bruno estava ali, perto d'elle, perto do preto das Mercês, do seu dedicadíssimo amigo, e era preciso salvalo, arrancal-o aos monges, pôl-o em plena liberdade, partidos para sempre os laços que o prendiam ao monachismo. Atropellavam-se-lhe na mente planos, sem fixar nenhum, até que poude colher uma ideia exequível !
-- Tomem cigarros, disse, passando ás mãos de um soldado uma porção d'elles. Não digam que me fallaram e demorem, o mais que possam, a saida do chafariz. Vão a passo, muito a passo. Vossês devem ir pela estrada de Montemor: ainda nos veremos esta noite. Nem uma palavra a ninguém ! Marcha!
Continuaram os soldados a marcha e Christovam da Costa correu rapido ao preto.
-- Acima, negro ! Está livre D. Bruno.
-- Que dizer mê siô ?
-- Que temos D. Bruno 'naquella liteira.
-- Bem. Preto vae marrar?
-- Não. Ouve : eu vou a cidade e voltarei, sem demora, a cavallo. Vae tu seguindo a liteira ; mas de modo que te não vejam. Devem ir na direcção de Montemor e eu conto estar de volta 'numa hora. Hei de apanhar-vos antes de Patalim, muito antes. Não te mostres, que ninguém te veja. Has-de-me ser preciso.
E, depois de assim failar, Christovam da Costa volveu rápido á cidade, ficando o negro José.
Chegaram á liteira os quatro soldados. O preto foi avançando, cauteloso, de modo que bem podesse ver e, se possivel, ouvir o que diriam os que estavam, e os que chegaram.
Acocorado 'numa valeta do caminho, o negro não podia ser visto, já pela cor própria, já porque com ella se confundia a da noite.
Da liteira saiu um monge da Cartuxa de Évora, que, dirigindose a um dos soldados, perguntou:
-- Sois a escolta que ha de ir a Lisboa ?
-- Onde iremos não sei: só nos foi dito que viéssemos aqui ter, e recebêssemos ordens.
-- Muito bem : vinde cá, dissera o monge ao soldado, que parecia commandar aos outros.
Afastaram se dos três e da liteira. Por acaso perfeito, o afastamento foi exactamente para o lado onde estava o negro, que, ao tal ver, se coseu com o solo, de modo a não poder ser descoberto. E ouviu elle :
-- Vae ali preso um meu confrade. Deve ser guardado e defendido até entrar em Lisboa. Com elle vae quem proverá a tudo o de que precisardes. O itinerário será o que leva o conductor. Se alguém perguntar a quem acompanhaes respondei não o saberdes.
-- E a verdade direi 'nessa resposta ; porque não sei quem seja.
-- Um monge da Cartuxa : mas, nem isto direis. Tomae, e adeus, dissera o monge dando ao soldado coisa sem grande volume, que ao negro pareceu ser dinheiro.
E voltaram ao ponto em que estava a liteira.
O cartuxo entrou dentro do vehiculo, e pouco se demorou 'nelle, saindo logo, e, acompanhado do homem que até ali tinha vindo atras da liteira, voltou para a cidade.
Parece que a escolta se poria tambem em marcha, seguidamente á despedida do Cartuxo, e uma voz disse lá de dentro d'aquelle traste, hoje posto de parte pela civilisação.
O soldado commandante, porém, que fôra intimado por um seu superior a demorar quanto podesse a saída d'ali. e a marcha depois, pretextou dar de beber aos cavallos, por ganhar tempo. Não havia que observarem contrario ? era natural o acto. Apearam se em seguida, fumaram, etc, etc, até que de novo c com império a mesma voz ordenava a marcha.
Preciso era partir: não podiam os soldados reter, por mais tempo, a sada. Partiram lentamente: a diante o conductor e aos lados os soldados, dois por banda.
'Neste ponto da narrativa d'esta historia occorreu ao negro a ideia de seguir ao monge, que voltara acompanhado de um homem, sair-lhes ao encontro e saber d elle com exactidão quem ia na liteira e que destino levava; não o fez, porém, porque poderia deitar a perder o plano do alferes, que não conhecia. De que o monge fallaria tinha elle certeza absoluta, nos argumentos das marradas de seu craneo durissimo. Desistiu da ideia e foi seguindo a escolta, na esperança de que o alferes se não demorasse.
Ao cabo de hora e meia de marcha, sem interrupção alguma, chegavam de fronte da egreja parochial de S. Mathias. A um signal dos que iam dentro do vehiculo, conforme parecera ao negro, fez-se uma pausa, a primeira paragem. Apearam-se os dois, que iam dentro, e afastaram-se um tanto da liteira, para voltarem brevemente; Debalde quiz o negro conhecer 'num delles a D. Bruno : não o permittia a distancia nem a claridade da noite. Debalde tambem volveu olhares para a estrada percorrida, a ver se avistava, se sentia a marcha de Christovam da Costa. Nada. A liteira seguia jornada.
Pouco tempo decorrido, depois de deixado aquelle sitio, notou o negro que o conductor da liteira, em vez de seguir caminho de Montemór-novo, cortava á esquerda sobre Pae-cão, Boa-fé e caminho de Santiago do Escoural. Era evidente para todos, que se desviavam, adrede e acinte da estrada real. Percebeu o negro o plano e ficou altamente contrariado, por não ter chegado o alferes. Que fazer? Esperar pela vinda de Christovam da Costa, era perder o fio da marcha d'aquella pequena caravana; seguil-a, era deixal-o a elle, quando ali chegasse, ignorante de qual dos caminhos deveria seguir. Em qualquer dos casos perdia-se o amigo d'ambos. Grandemente contrariado, o preto esperou, na persuasão plausivel de que não tardasse o alferes, e sem que a sua permanencia ali fosse tal que desse tempo a fugir-lhe a liteira, a perder o rasto aos caminhantes.
Esperou obra de meia hora : findo este lapso de tempo, deliberou, resolutamente, deitaf a correr estrada de Pae-cão, até avistar ao grupo viajante. Isto fez e o fim conseguiu. Foram indo caminho da Boa-fé.
E Christovam da Costa, que sé demorára mais do que tinha supposto, por ter de pedir licença ao commandante, vinha já perto, bem perto.
Deixemos canminhar aquelle grupo, que leva d'Evora a D. Bruno, e ponhamos, o leitor ao facto de tudo. Vamos ao encontro do alferes. Eil-o se approxima do ponto bifurcante das estradas. Ao notar a circumstancia, estaca, vacilla, medita.
'Naquelle silencio da noite no campo, o alferes escutou para um e outro caminho. Nem leve ruido. Estava perdido o fio da marcha da commitiva de D. Bruno. Antes de tomar pela estrada de Montemor occorreu-lhe um pensamento, que realisou : apeiou-se, fez fogo e investigou o solo, perscrutouIhe signaes de patas de cavallos, que revelassem passagem de ha pouco. Nada poude descobrir, pelo empoeirado do terreno. Decidiu-se; montou a cavallo e seguiu para o Alto da Abaneja, caminho de Montemor, persuadido de que, indo D. Bruno escondido na liteira, e guardado por quatro soldados de cavallaria, . não haveria motivo para caminhar por atalhos. Os quatro soldados o defenderiam de um assalto de bandoleiros, de ladrões, dos muitos que infestavam o Alemtejo por então, e obstariam a uma fuga do monge prisioneiro
Foi indo, indo sósinho até que chegou a Patalim, estalagem em sitio ermo. Aqui esperava o alferes encontrar ao grupo viajante, ou por dar algum descanço ao gado, ou por tomarem alimento os homens.
Chegou, apeiou-se, bateu á porta, que não promptamente se abriu, e pediu para lhe recolherem o cavallo e darem ração, e servirem alguma cousa a elle próprio. Era manilesto pretexto este pedir do alferes, que bem queria saber dos da litieira, Christovam da Costa ia á paisana, e por armas só levava no arção da sella as pistolas regimentaes. Isto o denunciou militar ao curador da estalagem.
-- Já sairam d'aqui ha muito tempo uns soldados do cinco, e uma liteira com passageiros ? perguntou, dando como certa a chegada, a demora e a saida do grupo.
-- É o senhor a primeira pessoa, que aqui entra esta noite, respondera o interrogado, o dono da estalagem.
-- Nem sentiram passar ninguem ?
-- Não dei fé; mas talvez alguém da casa sentisse. E perguntou a diversos familiares pelo caso. Ninguém ouvira.
-- Bem ; dê-me aguardente e uns bolos. Christovam da Costa tomou um calice d'aquella bebida, pagou a despeza feita, comsigo e com o cavallo, e preparou se para seguir viagem.
-- Então o senhor não tem medo de passar por estes sitios, de noite? perguntara o estalajadeiro, um sujeito de máo aspecto, com intenção especial.
-- Não vou só; levo um cavallo corredor e um bom par de pistolas.
-- Não é má companhia; mas tenha cautela: olhe que tem havido por aqui muitos casos...
-- Não tem duvida: mande-me pôr o cavallo á porta.
-- Então não pernoita?
-- Não posso.
O estalajadeiro saiu e demorou-se algum tempo. Christovam da Costa, entretanto, fumou e passeiou. Em quanto esperava, observou a casa. Ao lume meio apagado de uma chaminé velhissima, notou elle que estavam, como dormentes, dois homens: ninguem mais viu. Continuou a passeiar, notando, comtudo, já a grande demora. Foi á porta da rua, que o estalajadeiro cerrara, e abriu-a: o cavallo ainda o não esperava. Estranhou.
Voltando-se para tomar o chicote, que tinha pousado junto de uma cadeira, e para sair em procura do estalajadeiro e do curador, notou que os dois homens da chaminé já ali não estavam ! Teve um presentimento funesto. Saiu rapido e correu á cavallariça. Lá estavam os dois homens. O dono da estalagem e o curador.
-- Que demora é esta? perguntou, mal humorado.
-- A necessaria, respondera, seccamente, o estalajadeiro, accrescentando para o outro homem, para o curador : -- Leva o cavallo a este senhor.
'Nisto, ou fosse acaso ou combinação feita, a candeia de ferro que alumeava a cavallariça apagára-se. Saíram sem luz, apenas alumeados da que uma noite sem lua lhes offerecia.
Sabedor de roubos e até de mortes ali succedidas, desconfiado das palavras do dono da casa, do desapparecimento subito dos dois homens, o alferes montou rapido e rapido partiu, sem ao menos se lembrar de lhes dar as boas noites de despedida.
-- Tenha boa noite! lhe troou o estalajadeiro.
Não seriam decorridos cinco minutos de marcha, eis que dois vultos lhe saltam a um tempo á frente, cada um vindo de seu lado do caminho.
-- Alto! brada um.
-- Afasta ! canalha ! volve o alferes, lançando mão do par de pistolas do arção.
-- A pé ! e já ! brada o segundo.
E os dois avançaram para o çavallo, que estacara no súbito apparecimento dos homens. Christovam da Costa, ao conhecer-se roubado das pistolas, comprehendeu a situação: era presa de ladrões. Um rápido juizo formado o aconselhou a apeiar-se, por se deixar roubar somente, e poder salvar a vida.
-- Dinheiro ! dissera um, emquanto o outro tomava a redea do cavallo.
-- Dou o que tenho, que pouco é, respondera o alferes, procurando a bolsa e uma navalha.
-- Venha: o cavallo vale muito.
De repente, sem que de modo nenhum Christovam da Costa podesse conhecer a causa, vê que sobre elle desabava, impellido de força grande, o corpo do assaltante. Julgando um ataque violento, para o matar, o alferes, que ao tempo abrira a navalha, joga-lhe uma facada ao ventre, desvia-se, para o salteador cair, vae-se a elle, esfaqueia-o mais, e corre sobre o que tomára as redeas do cavallo, para o matar, antes que d'elle fosse victima.
No inopinado da queda sobre si, do primeiro homem, no rapidissimo de movimentos, o alferes não vira nada do que em volta de si se tinha passado.
Indo para o segundo homem, com rapidez facil de avaliar em tamanha anciedade, em tão critico instante de conservação pessoal, Christovam da Costa depara, assombradissimo, com o seu amigo negro das Mercês, rédeas em punho esquerdo, e uma pistola na mão direita ! !
-- Montar! partir! brada o negro. Sem responder, o alferes montou logo, e o negro correu a se curvar sobre o homem esfaqueado, donde rápido voltou ao cavallo e ao cavalleiro.
-- Toma pistola. Partir.
-- E tu!
-- Ahi ! E, de um pulo singular, o negro amigo estava escarranchado nas ancas.
-- Montemór ?
-- Não.
E o cavallo voltava sobre Evora com os dois amigos.
Lá ficaram dois salteadores estendidos, e talvez mortos.
XIX
Apagou-se o candieiro
É Pae-cão uma quinta de recreio da familia Villas Boas, das cidades de Evora e de Vianna. Passa por ser a cousa mais formosa no genero que tem as cercanias da cidade : massiços de formosa verdura, sombras deliciosas, aguas abundantes, frescura : um legitimo oásis 'neste deserto transtagano.
Ali foi que parára a caravana da liteira por camello, ou elefante, e de soldados por beduinos, e de um liteireiro pelo cornaca do deserto.
Seguira o preto José aquella gente, como sabemos.
Sempre distanciado, notou elle que já perto de Pae-cão a liteira parara, e havia alguma cousa de extraordinario ali. Foi-se approximando, cosido com os vallados do caminho, até poder descobrir a causa. E descobriu-a, na verdade.
De dentro da carruagem, se lhe cabe tambem este nome, ouvira-se uma voz gritar por soccorro, e esta foi a causa da paragem subita. D. Bruno fora acommettido de doença repentina, e o monge que o acompanhava, ao ver o prisioneiro, tombado sem sentidos, bradára que parassem.
-- Onde estamos ? perguntára.
-- Em Pae-cão, respondia o conductor.
-- Ha povoação aqui ? alguma casa ao menos ?
-- Ha, sim, senhor.
-- Bem; é preciso irmos lá pedir abrigo.
E o monge apeárase, deixando dentro a D. Bruno, doente. Chamando de parte o soldado commandante da escolta lhe recommendou vigilancia no preso, cuidado com elle, ao que o soldado respondeu:
-- Se o preso está doente, os cuidados de que precisa são os do medico.
-- Bem sei, e para isso partireis já, já para Evora, a buscar um.
-- Porém, eu vim para ir a Lisboa...
-- E para receber as minhas ordens.
-- Isso me disse o meu capitão.
-- 'Nesse caso, marchae já e procurae ao medico da Cartuxa.
-- Quem é ? onde mora ?
-- Chama-se o medico Silva, e mora na rua dos Infantes.
-- E virá elle só ao meu chamado ?
-- É verdade, lembraes muito bem.
E o cartuxo escreveu a lápis um bilhete, que entregou ao soldado, recommendando-lhe marcha rapida na ida e na volta.
O soldado, dadas ordens aos que ficavam, saiu para Évora, a galope, e D. Bernardo, que tal nome era o d'este monge, a pé, tomou para Pae-cão, recommendando que fossem indo com o doente, muito de vagar.
Tudo isto vira, tudo observára o negro. Pensou, pensou muito no caso. Lembrou -lhe o apresentarse, com qualquer pretexto, áquelles homens, por forma que D. Bruno o visse, que podessem fallar-se ; mas o alferes recommendára-lhe que não fosse visto, que tudo observasse somente. É que lá tinha o seu plano occulto de salvar ao amigo, de o furtar aos monges e á escolta, e então conveniente lhe pareceu o continuar o seu incpgnito, o seu occulto observar.
Ao notar, porém, que o doente fôra recebido na vivenda da linda propriedade; ao ver partir para Évora o soldado, uma ideia luminosa lhe esclareceu o cérebro: a de partir a correr em procura de Christovam da Costa, retrocedendo até á bifurcação das estradas, adiante de S. Mathias, e d'ali sobre a de Montemor, que conhecia bem, no presupposto plausivel de que o alferes tivesse seguido por ella, como mais natural era. Calculou o tempo dispendido na ida e volta do soldado, e nas suas próprias, e viu ser elle sufficiente para a empreza estafadora, que emprehendia. Dito e feito, pensado e realisado.
Correndo, com methodo, o negro se poz a caminho, e chegou a Patalim, á famigerada estalagem cm ermo infesto.
Approximára-se da porta principal para bater, quando á direita, sob um comprido telheiro, viu luz na estrebaria, e ouviu a conversação dos dois hojnens, que reproduzira mais tarde ao alferes :
-- O homem traz bastante dinheiro e tem aqui um bom cavallo, hein ?
-- Vamos a elle, dissera o outro.
-- Prompto : vae já acordar o Boi negro, e o Papa hóstias, que estão ao lume, e dize-lhes que vão para seu posto.
Vae, por ahi, pela porta detrás. Olha, não pesque o sugeito.
José, o negro das Mercês, percebeu o plano de roubo, e talvez de assassinio, e deu graças ao Pae celeste pelo haver trazido ali, tanto a tempo de servir para evitar o mal, imminente sobre o alferes. Esperou a volta do curador, por colher dados seguros da execução do tenebroso plano.
-- Já lá vão, dissera, entrando.
-- o homem não toscou ?
-- Nada.
-- E armas?
-- Levam sevilhanas.
-- Toma estas pistolas e corre a levar-lh'as.
-- São as do homem?
-- São : com o proprio sangue lhe faremos as murcellas.
O curador sairá á rua e correra para o lado de Montemor, d'onde voltára sem demora.
-- Deste-lh'as ?
-- Dei.
-- Onde estão ?
-- A um tiro de espingarda d'aqui.
Nada mais quiz ouvir o preto : apoderára-se do plano conspirador, e correra, agachado sempre junto ás piteiras dos vallados, a se esconder detrás de um silvedo, á distancia que ouvira da estalagem.
-- Mata-se? ouviu o negro a uma voz, a meia força.
-- Só se resistir: aquelle de outro dia tem-me incommodado ... respondera, no mesmo tom, o interrogado, ao que parecia remorsoso.
-- Falla baixo, que ouvi ramalhar nas silvas.
-- Algum bicho, dissera o dos remorsos.
Do succedido depois sabe o leitor : o negro, na garupa do cavallo de Christovam da Costa, com elle correu até S. Mathias, onde ambos pararam. Rompia a manhã.
Christovam da Costa levara no bornal de tiracoUo uma porção de bolacha, e aguardente 'num frasco para as eventualidades da jornada precipitada e boa medida foi, porque alimentou ao negro esfalfado, e o aqueceu com alcool. O dedicado amigo estava quasi exhausto de forças, e com razão de sobejo justificada. Alimentou-se, bebeu, animou-se.
Averiguado, por informação de um passageiro, que o soldado de cavallaria ainda não voltára d'Evora, ali se ficaram os dois, em casa do sacristão da freguesia, que pensou ao nobre cavallo, como o alferes fizera ao negro.
O que o leitor conhece tudo foi narrado do negro a Christovam da Costa.
Passeiando no alpendre da egreja, fumando e ajustando ambos o melhor modo de proceder, no caso de libertar a D. Bruno, o alferes, que não queria revellar ao negro o plano, que a tal respeito concebera, talvez por saber que pretos são desleaes, em geral, e voluveis, não obstante a prova notabilissima que, pouco havia, lhe dera aquelle, salvando-o da morte, ou porque a traça que tinha fosse das que a ninguem se devem descobrir, limitou-se a dizer-lhe que o negocio corria por conta d'elle, alferes, d'ali em diante ; que a missão do negro estava cumprida, descobrindo o paradeiro da liteira e, conseguintemente, o de D. Bruno. Terminara, aconseIhando-o a voltar á cidade.
-- Mim não voltar; mim D. Bruno.
-- Não, vae para Evora, que eu te prometto levar ao teu amigo, e meu.
-- Mim não ir; mim D. Bruno, teimara o negro. 'Neste ponto do dialogo, ouviram elles o rodar de uma sege e o galopar de um cavallo: não havia duvidar; era o soldado, que voltava com o medico Silva.
-- Mim vae Mercês e voltar Pae-cão ; e assim fallando o negro desandou, correndo sobre Evora.
Christovam da Costa montou rapido no cavallo e foi-se ao encontro do medico, que mandou parar a sege, ao conhecer o alferes, cujo era facultativo.
-- Bom dia, Costa: você por aqui?
-- Á espera do meu amigo. E assim, respondendo ao medico, mandou ao soldado que se adiantasse.
-- Quasi certo é o saber eu o que você por aqui faz.
-- Falle baixo.
-- Surprehendeu-me a noticia de um cartuxo doente em jornada para Lisboa, e disse-me um presentimento que esse sería o D. Bruno. Ao encontral-o a você tenho o facto como certo. Como o soube o Costa?
-- Por denuncia do acaso ; mas, eu tenho o maior interesse em o libertar, e para o conseguir licença de oito dias, e o meu plano traçado. O que desejo saber é o estado d'elle ; se a doença será grave ou leve, e de breve cura. O doutor vae partir, e eu por aqui o espero. Peço-lhe, se tiver ensejo para isso, lhe diga que dois amigos adejam em volta d'elle, eu, e o preto das Mercês.
-- O preto das Mercês ! Por isso o topei ali adiante a correr como um andarilho. Que diabo de amizade tão fusca!
-- Ah! meu caro doutor, busque-a também, busque a amizade d'aquelle negro, que não conheço branco algum mais devotado. A mim salvou elle a vida, haverá duas horas.
E contou ao medico o caso da estalagem de Patalim.
-- Eu já tinha ouvido fallar no preto como forte em marradas, e 'num processo de tombar homens.
-- Sim, tudo isso elle faz em favor dos amigos ; mas, não convém demorar.
-- Sim, sim parto já: oxalá não seja cousa séria. Se o pobre homem para ahi vae fallecer sem conhecimento de ser pae!
-- Que diz ? doutor !?
-- Que, segundo suas instrucções, tenho continuado a ver Bemvmda, e que, agora, é certíssima a doença d'ella: está gravida.
-- Gravida! Bemvinda! exclamara, pasmado, o alferes.
-- Que admiração essa ! Era natural.
-- Sim, diz bem, doutor. Parta, parta já: eu espero a sua volta.
Desfilou a parelha com a sege : era dia claro.
Christovam da Costa foi seguindo, a passo, a carruagem até á bifurcação da estrada, onde esperou uma hora, ao fim da qual o medico Silva voltava, já sem o soldado de cavallaria.
-- Então, doutor, é grave a doença ? Fallou-lhe em mim ?
-- Grave, grave não direi ; mas de cura um tanto demorada.
-- Que tempo calcúla o doutor preciso para ella ?
-- Duas semanas, pelo seguro; mas pode ser menos.
-- E não poderá voltar para Cartuxa, ou seguir para Lisboa antes d'esse período ?
-- Não será conveniente.
-- Tem, 'nesse caso, de ser tratado em Pae-cão ?
-- Tem.
-- E da noticia de tentarmos e querermos libertal-o, que disse elle? como a recebeu?
-- Bem ; com alegria ; mas recommenda a máxima cautela e prudencia, especialmente por você. Costa, que pode comprometter o seu futuro. O preto, sim, esse me disse elle quizera a seu lado.
-- E de Bemvinda ? fallaram ?
-- Fallei-lhe eu;, disse lhe o que era passado depois que ella fora expulsa da Cartuxa; contei-lhe que fui e sou medico d'ella, e lá lhe dei a nova da paternidade.
-- E como a recebeu elle ?
-- Alegre ; porém, notei no homem um quid de desanimo geral. Poderei enganar-me; mas, se não, ha no espirito d'elle alguma mudança.
-- Não pode havel-as, conheço-o bem. Esse estado deve ser devido á doença.
-- Sim, também poderá ser.
-- De modo que o doente tem de permanecer em Pae-cão algumas semanas?
-- Tem, e não sairá sem minha licença.
-- 'Nesse caso, voltarei á cidade, pela inconveniencia, para ambos, de eu lá ir apparecer.
-- Sim, sim dissera a medico, accrescentando : porque não aproveita o preto ? Pense 'nisto, e adeus.
-- Adeus, doutor; e continue o segredo.
A sege partiu para Évora com o medico, e Christovam da Costa foi indo atrás d'ella, de vagar, para esperar ao negro, que promettera voltar.
Chegado a S. Caetano, o. alferes viu na estrada o negro, em marcha accelerada, com um grande bornal cheio a tiracollo. Esperou-o; parou.
-- Voltaste rapido!
-- Mim fugir Mercês, ir Pae-cão,
-- Encontraste o medico Silva? Não te disse nada?
-- Encontrar chafariz Bravas; não dizer nada, e rir-se.
Apeou-se o alferes, e poz o preto ao facto de tudo. Combinaram ir elle, negro, apresentar-se em Pae-cão, e pedir 'naquella casa o tomassem para creado. Era de suppor que o acceitassem, por elle ter vindo do Brazil, como dizia, onde estivera dois annos somente, depois que arrancado, já adulto, á sua pátria, e ter ali sido empregado nos trabalhos das roças, sabendo, por tanto, trabalhar em trabalhos agricolas. Mais lhe recommendou que viesse de dois em dois dias á bifurcação do caminho de Montemor, depois do sol posto, trazer-lhe noticias, indo elle da cidade ter ali para esse fim. Terminou por lhe dar todo o dinheiro que levava, gratificação insufficiente de lhe ter salvado a vida.
-- Spreto não querer dinheiro, ser amigo.
-- Muito obrigado, dissera Costa, abraçando-o ; mas, acceita, acceita por que pode ser preciso ao nosso amigo D. Bruno.
Com tal argumento o negro tomou quatro moedas, que o alferes levava.
Separaram-se : Costa veiu para Evora, e o negro José para Pae-cão.
'Nesse dia á noite foi o militar saber de Bemvinda, e dar-lhe a noticia da saida da Cartuxa do prisioneiro, se o julgasse conveniente.
Costumava ir a casa d'ella depois das oito horas da noite, quando o pae lá não escava, não porque elle se oppozesse, mas por fallarem com mais liberdade a respeito do monge, sempre odiado de Raposo, e sempre do rival ex-cometeiro.
Deve-se dizer, 'neste ponto, ao leitor d'esta veridica historia que o aprendiz de caldeireiro não mais ali voltara, depois que soube que o mestre era o pae d'elle : abriu loja, estabeleceu-se na rua de Aviz, e notava-se 'nelle um certo fugir de toda a gente, uma tristeza, alguma cousa de selvagem.
Provável é que a causa fosse exactamente a conhecida. Não tinha pae, apparece-lhe um, que lhe não dá o nome : não conhecia mãe, e sabia que a tem em mulher que se esconde, que terá até vergonha de o ter gerado : ama desde creança a uma mulher, e vê-a fugir-lhe, conhece que não póde ser sua ! ... Azedou-se aquelle espirito mais, fugiu de homens, concentrou-se. O que meditará elle ?
-- Sabe alguma cousa de D. Bruno ? perguntára Bemvinda a Christovam da Costa, ou continua a ser impossvel o saber-se d'elle ? Matal-o-hiam ?
-- Não mataram, socegue.
-- Entáo sabe alguma cousa ?
-- Sei; mas, pouco.
-- Oh ! diga, diga o que sabe d'elle. Sabedor pelo medico Silva do estado interessante
de Bemvinda, estado que só ao cabo de mais de três mezes se manifestou indubitável, vindo aclarar a sciencia, que não assentava em diagnostico na doença que soffrera, o alferes entendeu não lhe dar de repente a nova da saida d'elle da Cartuxa, e, muito menos, da doença, receiando que a alegria ou a dor lhe fizessem grande mal. Assim, apenas lhe respondeu :
-- Tenho toda a bem fundada esperança de lhe restituir um dia o nosso amigo.
-- Livrai o da cadeia?
-- Sim, livral-o, dar-lhe a liberdade.
-- Mas como ? como?
-- Não sabe, Bemvinda, que Roma é uma enorme pharmacia ? Não sabe que os Cardeaes e o Santo Padre manipulam rem.edios para todos os males das almas, para todos os doentes da christandade ? É de lá, de Roma, d'onde espero alcançar o remédio para D. Bruno.
-- O que ? ! Annullar-lhe o voto ?
-- Não ; isso não se pode conseguir ; secularisal-o, sim. Roma, a Egreja de Jesus Christo na terra, tem poder para tudo. E depois, não será o primeiro exemplo em Évora : o Licenciado André de Rezende secularisou-se, deixando a Ordem de S. Domingos, para ser um simples padre, apenas adstricto ao Ordinario, liberto da clausura monastica. D. Bruno pode vir a ser isto.
-- Oxalá ! dissera Bemvinda, antegostando o seu viver d'ella, ama do padre, na doce intimidade começada na Cartuxa.
Não mais se aclarou o alferes : Bemvinda, por sua parte, ficou satisfeita com aquella ideia de liberdade do amado religioso, e assim terminou a visita 'naquella noite.
Como foi que o mestre Raposo, o assomadiço caldeireiro, tão contra a filha, a recebeu em sua casa ? perguntará o leitor. Foi a mulher quem obrou o prodigio de o amansar: de taes artes se serviu ella que o homem não mais ralhou nem hostilizou a linda filha : acceitou os factos consumados, fez-se stoico, sem saber, sem conhecer a doutrina d elles.
Ao sair, notou o alferes que em casa do pae de D. Bruno havia borborinho grande, gritos afflictivos'; entrou, como outras pessoas da visinhança. O que foi elle encontrar ali ? Uma familia desolada, em lagrimas: mestre Clemente José Candieiro jazia assentado á chaminé, cabeça pendida, morto ...
Desgostoso da vida, depois da catastrophe do filho, veio a apoplexia instantânea intervir em seus males e dar-Ihe a morte santa, quieta e tranquilla do justo, como a quem tanto se empenhara em fazer sacrificio da vontade de um filho á religião, que muito amára. Devia ter subido d'ali, escada acima do céu, onde lhe era reservado logar condigno de tanta piedade e amor de Deus.
Christovam da Costa, ditas palavras de consolação á familia do morto, saiu, e tomou a direcção do quartel de cavallaria.
Na casa de Raposo, d'onde saíra, ainda se não tinha dado pelo acontecimento lugubre.
Some-se-nos, leitor, no abysmo tenebroso o primeiro personagem d'esta historia. Concluíra a sua travessia de Africa vital.
Dá-nos a lembrar o repetir a pergunta do outro : Para onde iria a luz d'este candieiro, que se apagou ?
XX
Despedidas
Á formosa propriedade de Pae-cão, ao tempo de um fidalgo cujos appelidos desconheço, por não ter estudado os etígrimanços, de que falia Filinto Elyso, a heraldica, chegou o negro José ; e, como havia concertado com o alferes, dirigiu-se á casa nobre da quinta, com todo o desempeno de quem pretendia bem occultar seu designio.
Apresentou-se a um feitor, que, depois de perceber a proposta do negro, se dirigiu ao senhorio, espécie de feudal desbotado, que ali vivia com uma filha.
Emquanto o feitor foi dar parte ao castellão, da chegada do menestrel escuro do abbadessado de Santa Catharína, observou o africano o palacete, e casas contiguas.
Assenta a casa 'numa encosta elevada, abrindo portas e janellas para um terraço, que tem vistas sobre a formosa propriedade, e cuja parede serve de lado a um grande pateo, inferior em plano.
Depois de tudo observar, foi o preto mandado apresentar ao dono da casa, que sympathisou com elle e o tomou a seu serviço.
Destinou-se-lhe habitação no pateo, em casa do lado esquerdo, terrea, mas limpa, e ordenou-se-lhe o cuidar da creação, e ser elle quem fosse o recoveiro da cidade.
Agradou ao negro o genero de trabalho, que lhe deram, porque de molde vinha elle a seus intentos: ia ter meio natural de se avistar com Christovam da Costa, sem pedir licença para sair, sem faltar a seus deveres.
Fora o negro investido no cargo, na tarde d'esse dia, e alojado na casa do pateo.
D. Bruno lá estava em cima, doente, acompanhado de um monge da mesma Ordem, e o liteireiro fôra mandado esperar alguns dias, crendo-se que não seria longa a doença do nosso homem, do heroe d'este livro. Tinha elle a liteira no pateo e as mullas em cavallariça proxima. Os quatro soldados estavam tambem.
A primeira lembrança do africano foi a de travar relações com o liteireiro, para d'elle colher algumas noticias e poder estar ao facto da partida do monge, logo que podesse continuar jornada. A segunda, que mais era primeira, por ser todo seu cuidado, era a de se aproximar de D. Bruno, ou de, quando menos, lhe fazer saber que ali estava, perto d'elle.
Para este fim contava com o medico Silva, que ali viria, no dia seguinte, ver ao doente.
Veio a noite. Procedeu o negro ao recolher do gado meudo : gallinhas, patos etc, e logo que concluiu o serviço, sendo já escuro, já noite cerrada, encaminhou-se para a cavallariça, onde estava o liteireiro, que não sabia ser o preto mais um creado da casa, e que ficou admirado de vel-o ali, conhecendo-o de Évora, e de moço do convento das Mercês.
-- Por aqui Pae Zé! dissera o homem.
-- Sim, siô.
-- Já não estás com os frades ?
-- Não estar; estar Pae-cão.
-- És creado do fidalgo?
-- Sim, sio. Você ser criada ?
-- Não, não sou; vou de passagem.
-- De passage e estar aqui ?
-- Está doente o passageiro.
-- Ah ! quem ser ? Ser conhecida ?
-- Eu não o conheço : é um frade da Cartuxa.
-- Mim não conhecer. Vae Lisboa ?
-- Parece-me que sim, logo que melhore. Continuaram a conversar, tratando o preto de se insinuar no animo do liteireiro, para os fins que mirava.
Pouco depois, chegava o feitor a chamar o africano, por ordem do dono da casa, para d'elle receber ordens e nota do serviço, que teria de desempenhar em Evora, no dia seguinte.
Foi o preto acima e os dois ficaram.
-- Como demonio deixou este preto os frades das Mercês ! dizia o liteireiro.
-- Não sei, respondera o feitor: aprezentou-se pedindo trabalho e dizendo que sabia trabalhar nos campos. O patrão tomou-o para serviços domésticos e para ir á cidade ; poupa uma cavalgadura : estes diabos são mais rijos do que machos.
Pobres pretos ! como vos apreciam brancos ! Emquanto na cavallariça o dialogo se prolonga entre o feitor é o liteireiro, o negro era recebido do senhor da casa, que o ficara esperando, e o mandara entrar para um gabinete, proximo do quarto em que estava doente o monge.
-- Sabes ler ? perguntára o senhor do palacete alemtejano.
-- Não saber, mê siô.
-- É o mesmo ; levarás amanhã este papel a Evora, e lá o mostrarás a quem te diga o que has de comprar. Toma, arecada, e aqui tens dinheiro. E entregára-lhe uma moeda, em pintos.
-- O feitor te dará em que tragas o que peço, entendes bem?
-- Mê siô, tudo entender negro.
-- Melhor. Vae.
E despedira-o o senhor de Pae-cão.
Quando o preto ia para sair, assomou á porta do gabinete, ou escriptorio um monge de S. Bruno : era o companheiro do nosso heroe doente.
-- Alguma novidade? Peiorou o doente ? perguntara o dono da casa, admirado de ali ver ao monge.
-- Não peiorou, felizmente : ao contrario, sente-se melhor, e tanto que, ao ouvir a voz d'este negro, que parece conhecer de Evora, do seu tempo de secular, me pediu viesse eu dizer a vossa senhoria se lhe fazia a mercê de lh'o mandar ao quarto.
-- Pois não ! -- Vae, acompanha a este senhor, disse, para o preto, o dono da casa.
E os dois foram, rejubilando o negro com tão feliz acaso, que lhe aplanára difficuldades de se approximar de D. Bruno.
-- O meu exemplar amigo ! exclamára D. Bruno, assentando-se no leito. Tu aqui !
-- Singular affeição! dissera o outro monge. Olhae nâo vos faça mal tamanho contentamento.
-- Ao contrario, faz-me bem.
O negro não fallava : approximára-se do leito de D. Bruno e chorava de alegria.
-- Que fazes, José ? Deixaste o convento das Mercês ?
-- Sim, mê siô, deixar.
-- E que fazes tu aqui ?
-- Spreto servir.
-- Ah ! exclamara o monge, como tendo percebido tudo.
-- Bem, como este negro é cá da casa, mais vezes o podereis ver : agora basta de fallar.
-- Sim, sim, amanhã, obtemperara D. Bruno, por não gerar suspeitas.
O negro saiu, e o monge, que acompanhava a D, Bruno, estranhando tal conhecimento, perguntou :
-- Donde conhece este preto, D. Bruno ?
-- Das Mercês, onde estive antes de professar. É um bom amigo.
-- Pensei que taes creaturas o não podessem ser, dissera o outro.
-- Preconceitos, preconceitos... o que admiro...
-- Não falleis mais que podereis peiorar ; eu saio ; repouzai. E saiu.
Fez um grande bem moral a D. Bruno aquella visita fugitiva : deitou-se contente, a scismar no plano do negro e de Christovam da Costa, cuja direcção se lhe manifestava na vinda do preto a pedir trabalho ali. Tratavam de o libertar, era-lhe evidente ; mas como ? guardado de um companheiro, com quatro soldados de cavallaria ás ordens d'elle ? E libertal-o para que? se perguntava D. Bruno. Que faria, fugido á Ordem ?
Entregue á cogitações semelhantes, o monge adormeceu.
Ao romper do dia seguinte abria o negro as capoeiras ao gado, dava-lhes de comer e partia para Evora, com uma canastra vasia ás costas.
Como tinha combinado com o alferes o apparecer-lhe só á noite, e como antes d'ella voltaria da cidade, resolveu ir primeiro procurar ao militar, antes que se desse a compras e a negócios do amo. Caminhou rapido. Próximo de S. Mathias encontrou ao medico Silva, que ia para Pae-cão. Parou a sege á voz do facultativo, mal avistára ao negro.
-- Donde vens, Pae Zé ?
-- De Pae-cão, mê siô.
-- De fazer o que ?
-- Spreto servir lá.
-- Ah ! sim, sim ! Já viste a D. Bruno ?
-- Spreto não conhecer D. Bruno, respondeu o negro, receioso e admirado de tal pergunta.
-- E Christovam da Costa ? Também não ?
-- Mim não saber.
-- Sabes, sim, sabes tudo, e eu tambem. Ora vamos, que sou amigo do monge; como está elle, sabes ?
O negro hesitou.
-- Falla.
-- Spreto não saber.
-- Elle sabe que tu estás em Pae-cão?
-- Sim, mê siô : honte ver D. Bruno.
-- Bem, bem ; e como estava ?
-- Estar bem.
-- Adeus ! disse por fim o medico, muito risonho, mandando seguir jornada. O mesmo fez o negro, caminho d'Evora.
Chegado á cidade, procurou ao alferes, a quem queria contar o succedido : não o poude encontrar. Comprou o que lhe mandara o senhor de Pae-cão, e volveu á quinta, sem ter ido a casa de D. Bruno, e á de mestre Raposo dar noticias do monge, á familia d elle e á amada, como desejava, porque Christovam da Costa lhe recommendára segredo absoluto, até que outra vez se avistassem.
Depois da uma hora da tarde chegara o negro a seu destino. Já não encontrou no caminho ao medico.
Pasára D. Bruno bem a noite com o contentamento de ver ao amigo, e, tanto, que o facultativo estranhara tão rápidas melhoras, declarando que voltaria no dia seguinte, e que, se não remittissem os ataques do mal, um mal da familia das syncopes, lhe dana por completa a cura, julgando-o apto para seguir caminho. Isto dissera lá o medico, volvendo a communical-o ao alferes Costa.
Não o sabia o negro, que toda a tarde, depois de chegado, não pensára se não em achar meio de ver ao amigo, e de lhe fallar.
No fim da tarde, serena e tepida tarde de maio, estando o preto no pateo a conversar com um soldado dos da escolta, ouviu fallar na varanda, olhou para lá e viu que o seu amigo passeiava com o dono da casa, e com o companheiro. Folgou muito. E na varanda dialogavam os tres :
-- Vamos nós dar um passeiosinho até áquella rua de loureiros ? dizia o dono da casa. -- Talvez faça bem ao doente.
-- Vamos, sim senhor, devagarinho, respondera o companheiro do doente.
-- Vão os senhores : ainda me sinto fraco : eu fico aqui na varanda a conversar com aqueUe negro, que conheço desde muito, desde as Mercês.
Depois de breve silencio, o confrade annuiu, saindo com o proprietario.
De cima, notou D. Bruno que o monge chamára a um soldado, e lhe dissera alguma cousa, que não poude saber o que fosse ; mas que o suspeitou : era recommendação de vigilância a seu respeito ; não devia ser outra cousa.
D. Bruno não foi; porque queria failar ao preto ; era claro.
Logo que D. Bruno viu aos dois passeiantes embrenharem-se 'num mar de folhagem de uma rua, debruçou-se na varanda, e chamou ao negro Pae Zé. Correu o preto ao chamamento.
-- Sei que foste a Evora, e já sei que o meu amigo Christovam da Costa, e tu, que me és tão amigo como elle, cogitam meio de me livrar d'esta prisão.
-- Mim não saber cogitá.
-- Ouve bem, meu amigo : Confirma ao Costa o que já deve saber pelo medico Silva : não quero ser libertado ; quero ir para Laveiras ; eu me libertarei. Bemvinda está com seus paes, está bem. Os mais ...
-- Quê mais ? mê siô ?
-- Sim, talvez mais, porém, fallemos do presente. Quando estarás com Christovam da Costa?
-- Estar hoje.
-- Bem, muito bem; dize-lhe que amanhã deverei continuar jornada e que desejo, que quero vel-o antes de partir. Attende-me ainda : talvez não haja occasião de tornar a fallar-te, e por isso é que me quero entender bem comtigo. Dize-me, meu amigo, estás tu disposto a seguir-me?
-- Sim, mê siô.
-- Obrigado. Repara bem : eu devo seguir jornada amanhã de tarde : tu ficarás aqui alguns dias ou todo o mez; deves-te despedir do serviço, entrar em Lisboa e procurar Laveiras, onde deves pedir trabalho no mosteiro; é provavel que o D. Prior te receba ; se não receber, se te não tomar como creado do mosteiro, deverás permanecer por ali : eu te procurarei. Tens dinheiro?
-- Spreto ter dinheiro, que dar alferes p'ra mê siô.
-- Para mim ?! Não me é preciso, guarda-o para tuas necessidades, e toma lá mais algum.
E ao fallar assim D. Bruno desapertava aquelle cinto nosso conhecido, e d'elle tirava algumas moedas de ouro, que deu ao negro.
-- Mim ter, disse o africano
-- Guarda, respondeu, imperiosamente, o monge.
-- Oh ! mim ser amigo.
-- És, sim, és. Não podemos fallar mais : Procura Christovam da Costa e dize-lhe que busque meio de me ver e fallar; que procure ao dono d'esta quinta, com um pretexto qualquer, e que eu farei o mais. Entendes-me bem?
-- Sim, mê siô.
Separaram-se ; D. Bruno entrou na casa, e o negro desceu á d'elle, aguardando a noite e o adiantado d'ella para sair de Pae-cão, e ir ter com o alferes de cavallaria.
Como vê o leitor, são-lhe estes esclarecimentos precisos para cabal comprehensâo do entrecho d'esta verídica historia, na essencia. Assim é que lhe dizemos ter o negro partido de Pae-cão, para a estrada de Montemor e sitio aprasado, onde já encontrou ao alferes.
Como está o doente ? foi a primeira pergunta do militar.
-- Estar bem e sair manhã, respondeu o negro.
-- Amanhã? Não póde ser; não ha de sair.
-- Querer D. Bruno.
-- Não; é preciso que o libertemos : tenho traçado e combinado um plano infallivel de o furtar aos monges, e á prisão, e conto comtigo. Sei que elle não quer; mas ha de querer.
-- D. Bruno não querer, e diz quer ver siô. Communicou-lhe tudo, quanto lhe dissera para isso o monge, o negro amigo, accentuando bem a ideia de não querer deixar a Ordem de S. Bruno.
-- É singular! Que mudanças vão no pensar d'elle, dissera, desanimado, Christovam da Costa.
Convicto do propósito do amigo, cujo conhecia bem genio e firmesa de resoluções, o alferes acceitou aquelle ultimatum e mandou-lhe dizer pelo negro que iria a Pae-cão, que não saisse sem elle apparecer.
Despediram-se, e cada qual seguiu seu caminho. Era uma hora da madrugada.
No seguinte dia, por dez da manhã, saía para Pae-cão a cavallo o alferes de cavallaria. No sitio da Madeira encontrou ao Medico Silva, já de volta. Conversaram, e da conversação resultou para o alferes a certeza do propósito do monge, e a de que a doença passára, não concorrendo pouco para isso o bem moral Ja vista do negro, como lhe certificara o medico. Despediram-se, e cada um foi para seu lado.
Chegado a Pae-cão, por uma hora da tarde, o alferes mandou uma carta ao dono da casa, que para logo o mandou entrar no seu gabinete de trabalho. Depois dos comprimentos do estylo, dissera ao alferes:
-- Eu volto já ; queira ter a bondade de esperar. E saiu. Instantes depois voltava com D. Bruno.
-- Oh! meu querido Costa! que pensei não tornar a ver-te!
-- Amigo ! E abraçaram-se enternecidos. O dono da casa saiu.
-- Meu Costa, vou-te fallar com lealdade, e breve, antes que venha um monge que me guarda. Obrigado por tua intenção; não posso annuir; sigo o meu destino.
-- E Bemvinda ? E teu filho ?
-- Ainda os verei, diz-m'o o coração. Olha-me por elles, e leva a Bemvinda o que possuo 'neste momento. E D. Bruno entregava ao amigo o resto de suas economias, todo o dinheiro que tinha.
-- Mas como hei de eu saber de ti ?
-- Terás cartas minhas, e responder- me-has.
-- E o negro ?
-- Acompanha-me.
Entrava o senhor de Pae-cão.
-- Adeus ! meu nobilissimo amigo, dissera o monge, abraçando-o.
-- Adeus ! Até quando Deus quizer.
XXI
A morte congrassa imigos
Entrára para este paiz, em 1828, um periodo de calamidades e desgraças espantosas. No mais acceso da lucta ingente de poucos contra muitos, em 1833, outro mal, peior do que o da guerra fratricida, que dizimava a nação, veio juntar seus horrores aos horrores d'aquella. A cholera morbus açoitava o reino medonhamente, do Minho ao Algarve.
Entrára em Evora tambem, e 'nesta cidade alastrara de cadaveres o caminho que seguia.
Familias sem chefes, ou por mortos em combates, ou por prisioneiros nas masmorras do estado eram ceifadas totalmente do mal ... Já não bastavam as egrejas para os enterramentos ; valias fora da cidade se atulhavam de defunctos. E nem remedios da medicina, nem plegarias de centos de frades, e freiras, e recolhidas de toda a especie, das muitissimas casas religiosas, que tinha Evora, eram bastantes a embargar a passagem á terrivel epidemia. Os enterramentos já se não faziam durante o dia, por não mais aterrar aos vivos : eram feitos de noite, ás escuras, sem padres, quasi sem encommendações, sem preces de ninguem.
O heroe d'este livro está preso, longe de Evora, ao tempo em que a cidade é presa do contagio, como o leitor já sabe: não pode tomar parte no coro ao Altíssimo, entoado de Cartuxos, ex-tramuros da velha cidade de romanos.
Christovam da Costa anda por lá, por guerras, cqm o seu regimento.
O ex-corneteiro de Badajoz, afastado da casa em que fôra creado, por Evora vive uma vida solitaria, ou pouco menos.
Bemvinda tem continuado a estar com seus paes. Ninguem mais ali pensou na entrada d'ella em conventos, depois que o assanhadiço pae dera tregoas á filha, e pactuara com a neta.
Era a pequena Gertrudes todo o enlevo de Raposo, o seu cuidado de cada momento, a vida do seu viver
Estava uma mulhersinha feita 'neste calamitoso anno, em que contava perto de dezeseis annos de edade.
Bemvinda, a desditosa moça, mulher sem marido, creára com muito amor á filha sem pae. Acceitára resignada a sentença da sorte, que lhe levára o esposo de seu coração para sempre, para sempre, como acreditava. Nem já o negro das Mercês, aquelle portador de novas de D. Bruno, vinha a Evora havia mais de um anno. Cria-se viuva para todos os effeitos, andava triste havia tempos, muito triste.
Será a tristeza d'ella como a de muitos, que sem lhe conhecerem causa proxima, sem a poderem explicar, nos surprenendem com mortes subitas ?
Quem sabe ? ! Narremos factos, e o futuro se encarregará de tudo esclarecer.
Sabemos que D. Bruno está preso na Cartuxa de Laveiras, e sabemos que o negro José o acompanharia.
O que o leitor ignora é que este exemplarissimo amigo conseguira, em obediência ás recommendações do monge, chegar a Lisboa, apresentar-se na Cartuxa, antes da chegada do prisioneiro, e conseguir que o D. Prior d'aquella casa religiosa o tomasse para servente do mosteiro: contra a recommendação, fôra adiante.
Não era a prisão de D. Bruno, em Laveiras, como a que tivera em Évora.
O não ter elle delinquido ali, e ter já muitos annos de prisão rigorosa, fizeram com que a de Laveiras, fosse, nos ultimos tempos, circumscripta á cella, d'onde ainda lhe era permittido o sair para a cerca. Era na ida ou volta destes passeios que o negro lhe fallava e lhe dava noticias de Bemvinda e de Christovam da Costa. Com o maior cuidado e segredo vinha o preto a Évora, de tempos em tempos, trazer noticias e buscar outras, pedindo licença aos monges com falso pretexto de ir a Leiria, visitar a uma filha que ali dizia ter.
Como a guerra se ateiára medonha no reino; como a fome e a peste se lhe juntavam horriveis, por ordem de D. Bruno já não apparecia em Évora aquelle amigo de Bemvinda, havia muitos mezes. Temia, e com razão, o preso cartuxo que a cholera lhe matasse aquelle amparo : esperava que diminuisse o estrago d'ella.
Diminuindo de intensidade em Lisboa, em julho, aquelle mal, foi então que D. Bruno annuiu a deixar vir a Évora ao amigo, para saber da ausente amada, da filhinha e de Christovam da Costa.
Sabia, de ha muito, D. Bruno da existencia da menina, innocente fructo de seus amores, mas nunca a vira, nem esperança tinha de o lograr um dia. Os vagos rumores, que lá chegavam ao mosteiro, de fins da guerra e de triumphos liberaes; os de reformas radicaes, de decretos energicos contra velhos regimens eram para elle como se foram raios pallidos e frouxos de sol de inverno: em nada cria, se não em ter de viver o resto de seus dias em prisão, sem poder contemplar a fiiha, sem mais ver á mãe, Evora e aos amigos.
Saíra, pois, para a capital do Alemtejo o negro amigo, a pé. como costu.nava. Ao cabo de cinco Jias de marcha, ás trindades de vinte e nove de julho de 1833 chegava ao chafariz das Bravas o caminhante. Ali parou, ali mitigara a sede, ali descançou esperando que anoitecesse, para então entrar na cidade. Ouviu soar sete horas na cathedral, e poz-se a caminho. Ao chegar defronte da portaria do convento dos Remedios, de Carmelitas descalços, avistou elle uma fogueira grande no pequeno largo da rua de Aiconchel, e, seguidamente, notou que quatro fachos ardentes, a modo de porções da enorme fogueira, se destacavam delia e se moviam, na direcção em que elle estava parado, a contemplar aquelle fogo, sem atinar, sem poder saber o que aquillo significasse.
Era a fogueira uma das muitas indicações que a medicina aconselhava, desde remotas eras, como prophylaxia da cholera, e as porções moventes eram quatro archotes, que vinham rua abaixo, e que elle só poude distinguir depois de pela fogueira terem passado o.s homens que os traziam. Mais perto, já fóra da porta. percebeu o negro ser aquillo um enterro : mais uma victima da epidemia, que deixava o mundo.
Por não aterrar aos vivos, havia-se ordenado que os enterros tivessem logar de noite, e que, por não atravessarem a cidade, saissem pela porta mais próxima do logar da morte, costeassem a muralha e demandassem o furte, ou baluarte do Aça, a sueste da cidade, junto da porta da Mesquita, e do Hospital do Espirito Santo.
Tinha-se o negro avisinhado da estrada de circumvallação, em que o enterro devia passar. De facto, proximo d'elle passaram oito homens, quatro conduzindo á mão um ataúde fechado, e quatro acompanhando ao cadáver, que dentro ia. A distancia, atrás do pequeno prestito, em sitio em que a luz dos archotes- o não illuminava, ia indo cabisbaixo um homem, que, a principio o negro não conheceu, mas que ao passar por elle, sem o notar, tão meditabundo era, lhe chamou muito a attenção, por lhe parecer o conhecera.
Passaram, e o preto seguiu tambem aquelle funebre cortejo, attrahido da curiosidade de verificar se conhecia ao homem. Foram indo, parando de distancia em distancia até que, meia hora volvida, chegaram ao forte, ou baluarte nomeado, onde a auctoridade ordenara os enterramentos dos cholericos, por já não bastarem as egrejas.
Antes de transpor a entrada daquelle cemiterio accidental conduziram os homens o caixão para a egreja do Senhor da Pobreza, onde um sacerdote fazia aos mortos breve encominendaçSo fina!, antes que o coveiro se apoderasse d'elles.
Seguiu o nosso preto aquelle cortejo até entrar na egreja, e com elle o homem, que o seguia a distancia.
Quando pouzado o cadaver sobre a tarima singela, e quando o padre lhe rezava um breve responso, o negro entrou também.
Não se abrira o caixão, e não podera o nosso curioso saber quem ia desapparecer para sempre d'entre os vivos; mas notára que junto do ataúde ajoelhara o homem cabisbaixo, soluçando.
Aquelle espectaculo, severo na simplicidade, impressionara ao preto, e, sem saber porque, obedecendo a impulso desconhecido, ajoelhara também atrás do homem, ante um morto, uma victima qualquer de tantissimas que a epidemia prostrou. E rezou por alma de quem já não vivia, fôsse quem fôsse.
Terminou breve a encommendação, e o desconhecido do negro erguera-se, e voltára-se para sair da egreja. Tão embevecido estava o preto na devoção, que não atentara no erguer do homem, e no voltar-se.
Subitamente, este, que ia para dar o primeiro passo de saída, estaca, apruma-se, e retrocede. Fitara o nosso exemplarissimo amigo, de joelhos, mãos postas, reluzente o negro rosto nas lagrimas descidas por elle, e conhecera-o ! ... Ergue-se o mongol 'neste momento, encára com o homem, erecto diante de si, sem lhe poder fixar as feições contra a luz das velas do altar-mór, e a dos archotes mais internados, e apenas pode notar que o homem que pretendia conhecer, abrira os braços e correra para elle, a estreital-o contra o peito !
Destaca-se o negro dos braços do desconhecido, toma-o pelos hombros, volta-o a meia luz, conhece-o então, e é elle quem, por sua vez, corre a abraçai o exclamando :
-- Mim ser amigo !
-- Oh ! sim, tambem eu !
-- Quem morrer ? perguntou, com certa anciedade, o preto.
-- Bemvinda! desgraçado !...
E os dois homens ajoelharam de novo, e rezaram por alma da malograda amante de D. Bruno, da mãe desditosa de Gertrudes de Jesus.
Tal o poder da communidade das grandes dores, que, 'num dado momento, reconcilia os maiores inimigos! Tal o poder da pura amizade, que arrasta após o desconhecido, por um toque presentimentoso, por um não sei quê, que desconhecem homens !
XXII
Um carrasco monachal
O que são as epidemias! Como ceifam desapiedadas vidas ante tempo, em plena pujança de viço ! Sepultada é já aquella formosura, que tem feito a felicidade de um homem, que a fez de um convento e que a faria de uma filhinha
«Em tanto amor gerada e nascida»
se não fora bafejada do halito pestilente da temivel viandante egypciaca, ou transgangetica.
Como lhe foi cruel a sorte! Por amar a enclausuraram, por amor fugiu á clausura, por amor foi expulsa d'outra, e por amar, e muito amar morreu, talvez, prematuramente!...
Entrára o mal em casa de seus pães d'ella, e prostrára-lh'os ... áquelle homem assomadiço e raIhador, e á mulher boa e amorosa, que lhe fôra anjo da guarda domestico, desde a infância.
Aconselhára a sciencia medica a saida immediata de Bemvinda da casa em que entrára a cholera, e lhe matara os pães, e ella, corajosa, presa á casinha em que nascera, em que sentiu os primeiros rebates da paixão pelo visinho, achou tambem a morte ali; foi após seus progenitores, dois dias depois da mãe!
E bem pouco faltava no computo dos annos para esplendidissima lhe raiar a felicidade domestica ! Um anno mais de vida, e presenceiaria o desabar das Ordens monasticas, a liberdade do amante, por seu amor perdido !...
Que peccados desequilibrariam a sua ventura ! O amar? Não. O soffrer? Menos.
É o soffrimento bemquista virtude, e o amar a mais solemne e cabal demonstração da existencia de Deus, attributada na creatura.
O que sería então? Responda quem poder.
Defumada e fechada a casa do mestre Raposo, a menina Gertrudes, orphanada de paes e de avós maternos, foi recolhida pela caridade dos paternos na casa em que habitavam. Era filha do Candieiro Manuel aquella candeiasinha; sabiam-'no os paes de D. Bruno, e não hesitaram em a receber em sua casa.
E lá ficou uma casa fechada, um tumulo ...
Mas, não pensemos mais em mortos: cuidemos dos vivos, como dissera alguém, talvez o marquez d'Alorna, a D. José I, na calamitosa derrocada de Lisboa, em 1755.
Deixámos na egreja do Senhor da Pobreza a dois homens que se odeiavam, e a quem um infortúnio commum irmanara 'numa eflfusão de puro sentimento e grande dor.
O preto das Mercês era um d'esses homens, sendo o outro ... quem seria, senão o ex cometeiro de Badajoz, sem pae, que nunca tivera, sem amante, sem irmã?
Elle, sim, elle foi o que acompanhou o prestito lúgubre, elle, o que após si arrastara ao negro amigo de D. Bruno, elle, o que correu a abraçal-o no templo, ao velo de joelhos, ao reparar nas lagrimas brilhantes que lhe desciam pelas faces côr da noite, ao certificar-se de que Bemvinda era um cadaver.
Por nove horas do dia seguinte, entrava o negro a rua dos Caldeireiros, cabisbaixo, mais triste do que suas faces. Vinha do seu convento, onde tora pernoitar.
Chegado á loja de Clemente José Candieiro, entrou 'nella, e topou logo com o filho mais velho do caldeireiro, o irmão do seu amigo.
-- Oh ! meu caro pae-zé! exclamara, alegrissimo, o artista. -- Meu irmão ? que é feito d'elle ?
-- Viver, respondeu o africano.
-- Ai ! que desgraças por cá, que desgraças !
-- Mim saber, saber. E menina?
-- Temol-a cá, pois então !
-- Negro querer ver menina, e fugir.
-- Fugir! Fugir de quem ? E sem me dares noticias de meu irmão!
-- Spreto ir D. Bruno, e ver menina já.
Só a creança, a mulhersinha filha do seu amigo, o prendia á cidade, onde não achara ao alferes de cavallaria, nem Bemvinda, por quem viera ali. Vel-a, beijal-a e fugir a terra empestada, era o seu único desejo. Buscou-lhe a sobrinha o irmão do seu amigo.
Veio Gertrudes, vestida de lucto, dando a mão ao tio. Mal avistara ao pae zé, como lhe chamava, correu para elle, risonha, como quem não aprecia a perda de mãe.
Abraçou-a o negro, beijou-a muito, muito, para rápido se destacar d'ella, sair da loja e partir a correr, para o lado da rua da Milheira, sem mais despedida, sem mais nada.
Dez minutos depois seguia elle, com passo apressado, a estrada de Lisboa, por onde na vespera entrara na cidade.
Voava a levar a má nova ao seu amigo, a Laveiras, onde o deixara.
Entretanto que segue seu caminho, vamos nós também, leitores, para entrarmos em Lisboa primeiro do que elle.
Como no vasto oceano gazoso, que paira sobre nós, 'nesse mar immenso de ar atmospherico, em que envoltos, se desencadeiam tempestades enormes, sobre frequentes ondulações continuas, que produzem descidas e subidas barometricas, ventos e calmarias; assim, se delecterio e mephitico é esse ar, se um estado especial cósmico, ou uma origem d'alem Ganges, d'alem Nilo o viciou, aqui, passa matando, alem, deixa indemnes no torvelinhar continuo.
Na cartuxa de Laveiras passara uma d'essas columnas pestilenciaes, das que açoitavam o reino, depois que de lá sairá para o Alemtejo o negro José. De tal modo, com tal violência accommetteu vidas que os Cartuxos, ao verem mortos alguns de seus irmãos, e outros feridos do mal, resolveram em capitulo extraordinário, sair d'ali, e buscar cada qual ou a casa de sua família, ou outro logar, até que amainasse a tempestade mortifera.
Era a suprema necessidade a rasgar regras severas, era a precisão de viver.
Sairam todos, menos dois velhos obstinados, para quem já não havia esperanças de viver muito ; esses ficaram em seu posto, como quem já servira a Deus em longos annos, e se considerava sem obrigaçãode mais o servir.
D. Bruno, se bem que prisioneiro, teve ordem de buscar abrigo onde bem lhe parecesse, sob condição e sancta obediência religiosa de voltar a seu posto, mal a epidemia desapparecesse de Laveiras.
Sabia que o mal em Evora decrescera, e tantoque, dias antes, para lá mandara ao seu amigo : deliberou voltar á pátria, e á Cartuxa, por mostrar a seus confrades eborenses humildade e obediência,, e bem dispor a corporação a lhe perdoarem a antiga falta, que de expiação já tinha tantos annos.
Solto, podéra furtar-se á santa obediência, sair do reino, desmonachar-se, e ir viver, solto e livre, onde ninguém o conhecesse. Mas, Bemvinda e a filhinha? Era-lhe preciso estar perto d'ellas.
Christovam da Costa já tinha diligenciado por amigos seus a secularisação do monge; mas, Roma ainda não accedera, e a guerra, depois de 1828, desviara tão prestimoso amigo da empresa começada, e Deus sabia se a poderia continuar a emprehender...
Por mais raciocinios feitos, não achava outra solução senão a de viver perto de mãe e filha, a de conseguir perdão da culpa, e a de poder vir a ser o procurador do convento, unico monge que saía d'aquelle mosteiro, sonho que de ha muito lhe adejava risonho na mente fertil.
Assim foi que saindo de Laveiras sósinho, sem o negro amigo, que, a estar ali, o acompanharia infalivelmente, se dirigiu ao Terreiro do Paço, onde embarcou para Aldeia Gallega, e onde nós, leitores,, lhe vamos ao encontro, não para lhe noticiar desgraças, mas para o comprimentar, para o felicitar por sua liberdade ephemera.
Vem bem disposto o Cartuxo ; vigoroso ainda e corado ; parece que melhor vida, ou menos horrivel prisão tivera em Laveiras do que a medonha, a imprópria d'homens, da Cartuxa de Évora.
Estava para sair para o Alemtejo, d'aquella margem do Tejo, uma recova de machos com varias cargas, e alguns carros.
Ajustado com o conductor, D. Bruno entrou 'num, e aquella espécie de caravana poz-se a caminho dos Pegões.
Antes do caminho de ferro não era conveniente a ninguém o atravessar o Alemtejo mal acompanhado : corria-lhe risco a bolsa e perigo a vida, tão infestadas de ladrões eram aquellas charnecas.
-- Como está em Evora a epidemia ? perguntava o monge ao conductor de seu carro, um homem de quarenta annos, reforçado, barbeado, hespanholado.
-- No hay duda; já pocos mueren , respondeu o carreiro.
-- Mas ainda morrem alguns ?
-- Sim, mueren ; pero los mas miserables .
E foram conversando sobre o caso, perguntando o monge por diversas pessoas de sua amizade.
-- Quando saiste de Évora?
-- Miercules.
-- Ha então uma semana. Não encontraste no caminho, ido para lá, a um preto ?
-- No lo he visto.
-- Que caminho tomaste ?
-- Lo de Patalim.
-- Iria por outro, concluira o monge.
Foram indo: era dia calmoso aquelle. D. Bruno deitou-se ao comprido no carro, com a cabeça pouzada 'numa pequena mala de mão, sua bagagem unica, a fim de dormir um pouco.
Haveria duas horas que dormia quando, de repente, alem, 'numa vasta charneca, apenas povoada de raros pinheiros e de algumas azinheiras avistou o carreiro a um preto, que estava assentado no chão, á sombra de uma. Ao avistal-o, lembrou-se da pergunta que lhe fizera o cartuxo, e, sem mais ceremonia, mirando alguma espórtula d'elle, se lhe fizesse vontades, o acordou, e parou o carro.
-- Aquel será lo negro? perguntou o carreiro a D. Bruno, apontando-o á sombra da arvore.
--- É! exclamou, contentíssimo, o monge, saltando logo a terra e correndo ao preto.
É claro que topára ao Pae-Zé, ao seu intimo e prestantissimo amigo, que voltava para elle, com noticias de sua familia.
Parou a caravana e os passageiros admiraram a alegria, o contentamento com que um Cartuxo abraçava a um negro.
O preto chorava, ao sentir-se abraçado pelo religioso. Sería de alegria ? Não era, já o leitor o sabe. Era a recordação das más novas que trazia para D. Bruno, que lhe arrancava suspiros d'alma e lagrimas dos olhos.
-- Que tens tu ? lhe perguntara o monge, destacado d'elle?
-- Ter dor no coração.
-- Porque?
-- Muitas mortes...
-- Acaso me feriu alguma?
-- Sim, mê siô ...
Não fez mais perguntas o monge: depois de permanecer alguns segundos cabisbaixo, meditativo, ergueu resoluto a cabeça e voz, para dizer ao negro amigo :
-- Seja feita a vontade do Senhor : não digas mais ... anda comigo para este carro.
E D. Bruno e o Pae-Zè entraram no carro, continuando a marcha d'aquella caravana, pelas charnecas transtaganas, caminho de Vendas Novas.
No carro, D. Bruno, tristissiino, nenhuma pergunta fizera ao negro: este, por sua parte, não fallára também. Claro era ao monge que a cholera lhe arrebatara pessoa querida, pae, mãe, irmãos, ou Bemvinda, ou ainda a filhinha de seu amor, aquella metade de duas almas, gerada em peccado, como querem religião e sociedade, mas sem repugnância da natureza.
Sem incidente chegaram a Evora. Escurecera, havia meia hora, quando os carros chegavam ao convento dos Remedios.
Parou a caravana, e D. Bruno e o amigo apearamse, satisfeito o preço das conducções, e ambos seguiram a pé, por fora da muralha, caminho da Cartuxa, do mosteiro de S. Bruno, onde o monge tanto gozára e tanto soffirera.
A sós, os dois foram conversando. Da conversação resaltára a tremenda realidade ... Corajoso, esmagou D. Bruno a dor que o pungira, apenas deixada transluzir 'nalguns soluços.
Chegaram á porta da Lagoa. Ali dissera o monge ao negro, que o acompanhasse á Cartuxa, onde ia entrar.
-- Ohl não! mê siô, não entrar!
-- Entrar, sim, para poder sair, respondeu o monge.
-- Não, não entrar. E menina ? Não ver menina! familia !
As duas ultimas palavras do preto foram um despertador vehemente d'aquella alma amortecida da magua, e compenetrada da ideia fixa que o dominava, de não desobedecer, de se não desviar um ápice do pautado da Regra, para o conseguimento do perdão, e para a realisação do sonho constante de sua aspiração, o de vir a ser o procurador do Mosteiro, como filho de Évora, em quem mais cabiam conhecimentos especiaes para o bom desempenho da missão.
Estacou ao ouvir o negro : meditou, e, de repente, disse ao amigo:
-- Aqui fico, por aqui passeio : corre a casa de meus pães e tragam-me a menina.
-- Querer levar menina? exclama, broncamente, a negro.
-- Não : quero vel-a por primeira vez, e Deus dirá se pela ultima; vae já.
-- Mas ...
-- Vae! interrompera o monge, acenando-lhe para a Porta da Lagoa.
Conhecendo-lhe o genio imperioso, o negro José nada mais objectou, e partiu rápido.
O fallar de noite em voz alta, em sitio escuro e ermo, tem inconvenientes; pode alguem ouvir o fallado ...
Por ali se ficou D. Bruno á espera. Seriam decorridos três minutos, quando o monge viu vir um vulto para si, um vulto saido de junto do muro da chamada Horta da Porta, da familia Fernandes.
Sitio de roubos e de assassinatos era aquelle, e D. Bruno lembrou a possibilidade de vir para si algum audaz, ou para o roubar e matar, ou para, na melhor das hypotheses, lhe pedir esmola. Dal-a-hia, se pedida; mas se o aggressor lh'a quizesse extorquir?
Homem de expedientes, e corajoso, como sabemos, experimentado em casos da vida accidentada, que tinha tido, D. Bruno achou de prompto meio de se defender do assassino, se o fôsse. Pousou no chão a malasinha de mão, que trazia, e desapertou da cinta o cordão monástico, que preparou em forma de laço, para o que podesse acontecer. Transformou-se: o desanimo succedeu á resolução, a tristeza intima á risonha ideia da lucta, em defensa própria, pela conservação pessoal.
Ainda bem não terminára aquella medida preventiva, viu elle, distinctamente, correr o vulto para si, levemente arquejado o corpo. Attento, quando o vulto, sem fallar, se lhe approximava, D. Bruno deu rapido salto para o lado, lançando ao pescoço do arreoiettente o laço preparado no cordão, puxando, seguidamente, com fortissimo impulso.
A tempo, e com sorte feliz, procedera o monge! O desconhecido jogára-lhe uma navalhada na investida, que lhe houvera atravessado o corpo e o mataria infallivelmente, se não precavido.
Caiu o homem aos pés do monge, deixando saltar da mão, no momento, uma grandíssima navalha hespanhola. Puxando sempre pela corda, pelo laço, que o prendera pelo pescoço, D, Bruno saltou-lhe em cima, para lhe tornar difficil, pelo menos a tentativa de se erguer, redobrando de esforço no puxar do laço. Era evidente que o monge queria matar, por asphyxia, ao adversário, ladrão ou assassino, como parecia.
E ninguém por ali!... A cidade de noite estava como se fora abandonada, deserta: ninguém, ou pouca gente saía, com temor da cholera.
Sitio de mortes aquelle, iria enumerar mais uma, na cruz commemorativa que a devoção ali mandasse pôr, no outro dia, ao lado de outras...
O corpo caído estrebuxára, a principio ; mas, em breve se aquietara.
D. Bruno, como que acordado de um sonho, que pretendia reconhecer, curvou-se sobre o inimigo e observou-lhe as feições. Instantaneo soltou da mão o laço, recuando horrorisado ! ... Tinha morto a um homem, elle, o que nunca matára accintosamente, era um assassino ! um convicto matador!... convertera o cordão sagrado, bemzido em sua profissão, na corda de canhamo de um miseravel carrasco I Horrorisado de si, sem reflexão alguma, tomou, apressadamente, a malinha e desatou a fugir, estrada adiante, caminho da Cartuxa.
Pouco, muito pouco tempo depois, chegava ao local a mãe, o irmão mais velho, a filhinha e o preto das Mercês.
XXIII
O Anjo da Guarda negro
Como vimos, o monge carthusiano fugira do logar e da victima de sua defeza pessoal, sem pensar sequer na família, na amisade do negro das Mercês, que tantos serviços lhe ha prestado na vida. Fugia sem remorsos, é certo ; por que o adversário o mataria a elle.
Só parou á portaria externa do mosteiro, onde tocara a sineta, que conhecemos.
O tocar áquella hora, o haver alguém que demandasse, o mosteiro fora das costumadas, noite velha, fez ruido 'naquella casa, maiormente no D. Prior, o mesmo ainda de outro tempo, que emquanto o porteiro, por dever de seu officio caminhava para a portaria externa, atravessado o grande pateo, saía de sua habitação e demandava a interna, a que o leitor conhece, do tempo em que Christovam da Costa ali appareceu, em 1817.
-- Não é isto vulgar, não, murmurava pelo comprido corredor da grande claustra o D. Prior d'aquelle mosteiro. A não ser monge, que venha de fóra do reino, da Hespanha, não posso attingir quem seja.
Chegou, abriu a pequena janella, exactamente ao tempo em que o porteiro atravessava o pateo em companhia de D. Bruno, que o D, Prior não conhecera.
Não foi preciso tocar a segunda sineta; porque o commandante do batalhão sagrado abriu a portaria, mal os dois ali chegaram.
-- Um nosso irmão ! Donde vem, e quem é ? perguntára.
-- Vem de Laveiras o infeliz D. Bruno, respondera o nosso heroe.
-- E vem doente, ao que parece, accrescentára o D. Prior. Tão pallido, perdido o cordão monastico...
Uma lanterna do de dentro batia seu facho de luz em D. Bruno, que trazia no rosto o susto, o remorso, e que, na precipitação da fuga, se esquecera de tomar ao morto o cordão, de fazer desapparecer aquella prova de sua culpabilidade. Estremeceu D. Bruno ao ouvir aquellas palavras; mas, preciso era não denunciar nada e ser forte:
-- Fujo á cholera, e talvez com ella venha: o cordão perdeu-se-me na jornada.
-- Trazeis papel que vos acredite 'nesta casa?
-- Aqui o trago, respondera, tirando do bolso interno do habito um escripto do D. Prior de Laveiras, que logo passou á mão do interrogante.
-- Entrae, respondera, seccamente.
D. Bruno entrou, de facto, o porteiro buscou sua habitação fora, 'numa casa do lado esquerdo do pateo, e a portaria fechou-se.
-- Careceis de alimento?
-- Não, não preciso; mas de descançar este corpo alquebrado.
-- Acompanhae-me á vossa prisão.
-- O que! D. Prior ! Pois quereis ser mais austero do que o de Laveiras ? Sabei que eu tinha lá uma cella e...
-- E aqui a prisão. Não lembraes que o delicto aqui se praticara, e que ahi estão vivos quasi todos nossos irmãos, a quem preciso é continuar a dar o exemplo ?
-- Mas, note vossa Paternidade, que não sabe a congregação de minha vinda, e que posso viver, preso sim, mas 'numa cella qualquer. Apiedae-vos de mim, D. Prior ! ao menos por esta noite, ou tereis amanhã de me dar sepultura ... Venho doente, e a nossa Regra favorece-me ...
-- Pois ficareis nos meus aposentos, até de manhã, em que, forçoso é, forçoso será entrardes na prisão. Sabeis que de Cluni ainda não chegou vosso perdão, e que eu não posso ...
-- Vossa Paternidade tudo pode. São dezesete annos passados em prisão, senhor D. Prior! Só por um milagre de Deus vivo ainda! Oh! perdoae, perdoae !
-- Basta ! Vinde, e amanhã veremos o que se fará.
E foram indo até á habitação do D. Prior, ao fundo da ala esquerda da vasta quadra.
Entraram ambos, e o D. Prior ordenou-lhe subisse ao segundo andar da cella, onde acharia um leito.
Subiu satisfeito D. Bruno, por lhe parecer conseguira abrandar ao austero Prior d'aquella casa, e este, ao subir elle a escada, fechou-lhe a porta por fora.
Que noite passaria p. Bruno fácil será o imaginal-a ! ...
Sem ver mãe, sem ver a filhinha, e assassino ! ... Desviemos do quadro sombrio a vista, leitores, e volvamos á Porta da Lagoa, por ver se o negro José cumpriu bem a missão, que lhe confiaram.
Faz milagres o poder de nosso pensamento : chegámos a tempo.
Por fóra da muralha, por onde D. Bruno viera com o negro, vinham, realmente, quatro pessoas a pé: a mãe Candeia, um filho, a neta e o negro, sempre negro das Mercês Vinha este adeante. Ao chegar defronte da Porta da Lagoa, olhou em volta, procurando ao seu amigo. Não o vendo, attentou no vulto caído, no homem assassinado, e assaltando-lhe o espirito um pensamento horrível, o de ser D. Bruno aquelle caído, e talvez morto, deixando um pouco atrás aos três, correu pressuroso ao vulto,curvou-se sobre elle, para o reconhecer, e, como pouco antes, a D. Bruno, recuou espantado, exclamando para os três :
-- Alto! Não andar ! E ditas aquellas palavras, de novo correu ao morto, curvou-se sobre elle, tombou-o, ergueu-lhe a cabeça, que logo deixou cair despedida, e, 'num rápido andar, caminhou aos tres, que estavam parados, estupidos com o que presenceiavam sem lhe poderem rastrear sequer a causa!...
-- Voltar! D. Bruno ir Cartuxa.
Perfeitos automatos, os tres o seguiram, sem perguntas nenhum fazer. E tinham visto o que fizera o negro, e tinham reconhecido que na estrada estava um homem caido ... Era que a afflicção do negro se lhes communicára; era que o terror de cousa estranha se apoderara d'elles, era que não pensavam e, instinctivamente, seguiam ao africano...
Mas, já noto eu que o leitor me faz perguntas, e quer saber quem ali estava morto, defronte da Porta da Lagoa, e o que fizera o negro, curvandose sobre o cadaver, voltando-o, erguendo-lhe a cabeça, e fugindo-o seguida e rapidamente
Calcúlo que não vae satisfeito 'nesta parte da narrativa. Tantas mortes ! me observará.
E razão tem ; mas, que quer ? Não começou este livro pela leitura de um termo d'obito ? Certo foi ; pois imagine-se um instante 'num cemitério, na cidade dos mortos, e folgue, e bemdiga ao Creador, que o conserva para ler, como a mim para escrever, e tão tristes cousas phantasiar.
O morto ... o morto já o leitor perspicaz suppõe, sem duvida, quem possa ser.
Era o infeliz semi-engeitado, o aprendiz de Caldeireiro, o ex-corneteiro de Badajoz, aquelle inimigo de D. Bruno.
Era elle, o que vivia vida de desesperado, horrível, sem carinhos de ninguém, sem ao menos a esperança ! Esperar ! De quem podéra elle esperar, se não tinha pães, se ninguém lhe acceitára amores, se a própria amisade lhe refusavam homens !
De ha muito que se concentrára, que fugira de convivencias, que vivia o viver do reptil por cercanias da cidade, que salteava para roubar, para comer, o desgraçado, que o próprio trabalho fugira, e cuja vida nem a cholera morbus lhe acceitava! ...
Amara muito a Bemvinda, odiara muito ao rival venturoso, a quem, desesperado, vencido do cruel destino, biophobo pretendera matar violento, para lhe cair aos pés asphyxiado ! ...
O negro e os mais, que fugiam a Porta da Lagoa, entraram na casa da rua dos Caldeireiros, sem ser notada a saida d'aquella familia.
-- Que foi isto ? que foi isto ? perguntava a viuva do Candieiro, mal poderá socegar.
-- Não saber : homem morto ...
-- Quem era ? Quem era ? Seria meu filho ? ...
-- Não ; estar Cartuxa, respondera o negro á mãe afiflicta.
-- Mas, porque não esperou? porque?
-- Mim não saber, terminara, pedindo á viuva que saisse com a neta, para só ficar com o filho, já homem, irmão de D. Bruno.
Mal sairam, avó e neta, para o andar superior da casa, o preto correu á forja quasi apagada, tocouIheo folie, avivou o lume e lançou 'nelle um objecto, que trazia escondido, cobrindo-o com mais carvão, de modo que o irmão de D. Bruno nem bem soube o que o negro queimava. Quiz perguntar ao africano o que fazia elle 'naquelle auto de fé; mas a um aceno do improvisado ferreiro, ou caldeireiro a tal se não atreveu, limitando-se a contemplar a queima fosse do que fôsse.
Era o cordão do habito de D. Bruno, que matára ao desgraçado, e que na precipitação da fuga lá deixara ao pescoço do morto, como claro indicio do criminoso. Quem no dia seguinte encontrasse o cadáver já não acharia aquelle fio, para, no labyrintho de conjecturas, ir após o assassino. Mais um serviço do africano ao monge.
Como vimos, as duas mulheres tinham subido para cima e só ficára o irmão do monge. Com este conversou muito o Pae Zé, como já lhe chamavam, recommendando-lhe a elle e para a familia o mais rigoroso segredo de tudo, absolutamente de tudo quanto vira, e que a ninguém dissessem que D. Bruno entrára na Cartuxa.
Isto mui bem recommendado saío, e lá se foi demandar o seu convento das Mercês, onde sempre o recebiam, logo que apparecesse: era ali querido de todos, como sympathico á cidade. Ao romper o novo dia, foi o morto encontrado, por pessoas que vinham para a cidade, e trouxeram a noticia á auctoridade.
Averiguára-se que fora morto por asphyxia, não só pela cor do rosto, como pelo fundo vergão dó pescoço. A navalha lá estava ao pé, aberta, mas sem mancha de sangue. Nada se podéra descobrir com respeito ao assassino, ou assassinos: nem pegadas ficaram no chão; porque as sandálias do monge pouco se imprimiram no solo. Executadas as formalidades prescriptas da lei, o cadáver foi removido para o Baluarte do Aça, e lá sepultado em valia commum, com os cholericos fallecidos de noite.
Conseguira na morte, o misero, a companhia da mulher cadáver, que tanto amara desde a infância! Suprema desdita!... Irrisão de sorte funesta, de sorte avêssa ! ...
De ha muito penso eu que 'neste valle de lagrimas, chamado mundo, tem uma realisação pratica, realissima, a concepção mais extravagante, mais impossível até, de uma imaginação flórida e fertil.
Se o infeliz sonhara o matrimonio com Bemvinda, que nupcias as d'elle ! ...
Volvamos á Cartuxa, e desviemos o leitor de tão tristes cousas. Vão desapparecendo da scena romantica os vultos mais proeminentes, e justo é que saibamos dos restantes, que os acompanhemos em sua vida !
São nove horas da manhã. Na cella prioral da Cartuxa está reunida, extraordinariamente, parte da communidade, a mais edosa e de mais conta. Expozera-lhes o D. Prior o caso da chegada de Bruno, fugido á cholera e talvez delia iscado, e pedira o parecer douto a todos, sobre se devia entrar logo na prisão, ou se deviam abrandar de rigor para com elle, attendendo ao muito que já soffrera.
Se bem que se dividiram os pareceres, a maioria monachal, severa, opinou por ser elle observado do medico do mosteiro, e se o parecer do sábio fôsse o de que não tinha doença, immediatamente entrasse outra vez na prisão, ficando bem accentuada a ideia de que, logo que tivesse saude, a ella se recolhesse.
Humanidade de frades !
Decidido o ponto, os monges sairam.
Ás dez da manhã, chegava o medico do mosteiro, que já conhecemos da estrada de Montemór. Introduzido na cella do D. Prior, para este disse :
-- Sente-se doente, D. Prior?
-- Não sinto, felizmente; mas chegou ahi esta noite um monge de nossa Ordem, e filho d'esta casa, que, pelos modos, vem iscado da cholera.
-- Isso é caso grave ; porque, mercê de Deus! ainda ella aqui não entrou. Quem é ?
- É D. Bruno da Transfiguração.
-- O que fui ver a Pae-cão ?
-- Esse é.
-- Infeliz homem! Morre-lhe o pae, morre-lhe a amada, e vae elle seguil-os já!
-- Então essa mulher morreu ?
-- Sepultou-se ha dias.
-- Quanto o estimo!
-- Que diz, D. Prior? Espanto-me!
-- Não folgo com a morte da peccadora, mas com a ideia da completa regeneração de D. Bruno, uma vez que já 'nella não pode pensar, nem cuidar.
-- Mas tem de cuidar de uma filha.
-- Valha-me S. Bruno ! ...
-- Onde está o doente ?
-- Lá em cima: eu o chamo para o observar.
E o D. Prior abriu a porta, que tinha fechado, e cbamou-o. Não se demorou o monge. D. Bruno appareceu triste, mas sem a pallidez da vespera : trazia no rosto a estampa de uma insomnia.
-- Venha cá, D. Bruno : então como está?
-- Mal, senhor Silva: como hei de eu estar?
-- Sim, sim, bem sei ; mas, observemos.
E o medico Silva observou, perquiriu e convenceu-se de que D. Bruno vinha são.
-- Ora parabéns, D. Bruno e D, Prior, que ainda d'esta feita o mal aqui não entra.
-- Seja Deus louvado e S. Bruno ! 'Nesse caso vou já passar ordens, dissera o D. Prior, desviandose, como quem ia chamar a alguem.
-- Livre-me da prisão ! dissera, rapido em voz baixa, D. Bruno ao medico.
Percebeu este o alcance do afiflicto, e exclamou :
-- Passar ordens ! Para que ? D. Prior ?
-- Para a entrada d'este monge na prisão.
-- Opponho-me eu, em nome da sciencia. D. Bruno precisa estar de observação alguns dias, em casa isolada, quanto possivel, do mosteiro, e carece já, já de novo habito, para este lhe ser queimado, e a cella em que ficou, desinfectada sem demora.
-- Mas não temos essa casa.
-- Teem Valbom perto : pede-se aos Terceiros. Eis o que tenho a aconselhar, D. Prior. Amanhã voltarei a observar D. Bruno.
-- Porém...
-- Adeus, senhor D. Prior, que sou lá muito preciso na cidade.
E, sem mais conversações, o medico Silva despediu-se dambos e voltou á cidade.
-- Obrigado ! exclamara D. Bruno.
Ficára salvo da prisão, ao menos por alguns dias, o malaventurado monge.
Quando o medico Silva ia chegando á Porta da Lagoa, notou que alguém se collocára diante da sege, pedindo ao cocheiro para parar. Era o negro, sempre o negro amigo de D. Bruno, que vigiava, observava, perscrutava ancioso, tudo quanto podesse esclarecel-o ácerca de seu amigo.
-- Que é isso ? perguntára o medico.
-- Um preto que me pede para parar, respondeu o cocheiro. Quer fallar a vossa senhoria.
-- Deixa-o vir.
O preto José correu á sege e perguntou, agitado :
-- D. Bruno preso?
-- Não, bom homem; soltei-o eu.
-- Pae Celeste pague vossoria!
-- Sei que és bom, muito bom amigo : tens em mim mais um, dissera o medico.
-- Mim ser amigo vossoria.
E o Pae Zé tentava beijar-lhe a mão.
-- Deixa, deixa, e adeus.
E assim fallando, o facultativo dos Cartuxos seguiu para a cidade e o negro caminho da Cartuxa.
Apesar do que ouvira, e certo de que D. Bruno estaria solto, tentava o negro achar meio cie se communicar com o monge, e para tal fim se dirigia ao mosteiro.
Era o anjo da guarda negro de um monge de S. Bruno branco.
XXIV
Avé! Libertas!
Emquanto os passados acontecimentos se desdobravam naturalmente, como o leitor tem visto, outros, não menos importantes para o viver tranquillo de Portugal, seguiam seu curso natural, ruidosos conforme as vozes de milhares de espingardas e de peças de artilheria, que, na Asseiceira e 'noutros pontos, eram como descargas d'honra dadas na morte de um partido politico, o de D. Miguel, que foi rei de Portugal, em que pese a historiadores de compêndios para escolas, e aos liboraes, que não têm querido reconhecer tal reinado. Não sei, em boa verdade, porque se ha de considerar o dominio castelhano legitimo, e desdobral-o em três reinados, e não se ha de fazer o mesmo ao de D. Miguel, e de ... sim, e ao do Prior do Crato, ainda que mais ephemero ? Não os sanccionou a vontade do povo, em cortes até ? em Thomar ? a despeito das violencias, e das infamias e das perfidias empregadas ? Não foram seus actos governativos executados ? Não bateram moeda?
A historia de Portugal, 'nesta parte, ainda não está escripta, como deve estar: alguem o fará um dia.
Batidas as forças de D. Miguel em todo o norte, na margem direita do Tejo, buscaram o Alemtejo, descoroçoadas, senão corrompidas.
Acossadas de Saldanha e Terceira, entraram em Evora, no dia 22 de maio de 1834 essas forças, ainda no considerável numero de dezesete mil homens, quatrocentos cavallos e dezesete peças de artilheria.
Tinha que ver a cidade 'neste dia ! D. Miguel e sua commitiva aquartelaram-se no paço archiepiscopal, e as tropas por onde poude ser. Que azafama 1 que ruido ! que borborinho na velha cidade de romanos e de mouros!
Se o desanimo no exercito de D. Miguel não tocára as raias da desmoralisação, ainda podera, em campo raso, medir suas forças poderosas com as contrarias ; mas que ! se tudo aquillo já vinha desfeito, perdido, deshonrado ! Sim, que a honra das armas já lhes tinha ficado pelo caminho. Eram ainda uns fanaticos a seguir seu idolo.
A fradaria mesma já não recebeu ao monarcha, como era de esperar, com o enthusiasmo com que incitara os povos a tomar armas por elle, e como o com que o receberia annos antes. Era que já esperavam o golpe tremendo da espada do novo Alexandre, que era voz publica no paiz estar imminentissimo ! Desanimadas tambem as Ordens monasticas, preparavam-se para o que podesse succeder-lhes de peior.
De 22 a 30 de maio durou a longa agonia d'esse partido, que deu o ultimo suspiro, soltou o ultimo alento vital 'naquelle ultimo dia, assignada em Evora Monte a chamada capitulação, depondo armas no Seminario, na Casa Pia, no Rocio d'Evora. Sabido é o mais: D. Miguel saiu para Sines 'nesse dia, e os soldados foram dispersos por suas provincias.
Não, é este livro de historia patria, e por isso apenas a traceja mui fugitivamente.
Com rapidez grande chegára a Evora a noticia do Decreto do dia 27 do mez, que extinguia no reino as Ordens religiosas.
Estamos no dia vinte e nove. O preto das Mercês, o negro heroe d'este livro, saiu da cidade, por dez horas da manhã, para a Cartuxa, a fim de ver se achava meio de communicar lá para dentro a D. Bruno, ao tempo de novo preso, a festiva noticia já publica na cidade, da extincção das Ordens religiosas. Nada conseguira: voltou, desalentado, a procurar ao medico Silva, única pessoa que lá poderia entrar com a nova redemptora. Não o encontrou. Passou o dia em vadiagem pela cidade, admirando o espantoso movimento que 'nella ia.
Depois de escurecer, soube, em casa da viuva Candeia, que entrara um official vindo de Évora Monte com a concessão asssignada, e que no immediato dia terminaria totalmente a lucta fratricida . Folgou com a noticia, que lhe dera um irmão de D. Bruno, por antever que 'nesse mesmo dia seria intimada aos frades a ordem de despejo, visto ser notoria, perfeitamente publica a noticia da publicação do decreto audacissimo.
Sem querer assistir, no dia 30, ao espectáculo famoso do desarmamento de tantos homens e á saida de D. Miguel, o negro saiu do seu convento convencido do que antevia, do que se desejava, do que já nas Mercês era esperado. Os frades d'aquelle convento já cuidavam, apressadamente, de emmallar cada um o que podia, de arrecadar, de fazer sair do convento alguns objectos preciosos, que podessem trazer. Foi caminho da Cartuxa: ali e só ali estava o seu cuidado.
Fez bem o negro, muito bem, que o verter lagrimas a homens vencidos, não é dos melhores espectaculos da vida, para ser visto. E quantas verteram amaríssimas os convictos satellites do príncipe deposto ! E quantas regaram collos de mães afflictas, de esposas e de irmãs, por esse paiz ? ! ...
O quadro nas mãos d'habil pintor fôra para muito notar. Não é aqui logar para elle ; prosigamos :
Era meia tarde quando o negro andava em volta da portaria externa do real mosteiro, buscando meio de saber o que lá iria por dentro. Nada! Tudo fechado e bem fechado!
E entretanto notava elle a quantidade extraordinaria de pessoas de todas as edades e sexos que além, na estrada, iam e vinham da cidade : despovoaram-se os campos ! Era que tinha chegado ás quintas a noticia do fim da guerra; era que todos, perfeitamente todos corriam â cidade para ver o senhor D. Miguel, ou o famoso espectaculo de dezesete mil homens, vencidos.
E de dentro do convento nada ! A portaria fechada, como se já fôra uma casa deserta aquella !
Era quasi sol posto : de repente, começa a sineta interna do mosteiro, e logo a externa, a tocar a rebate, chamando o pessoal trabalhador da casa^e os creados de extramuros; mas quê! se nem estes ali estavam ! Ninguem apparecia. Abre-se a portaria exterior, a do grande pateo para a rua, e ali assoma, afflicto, o porteiro, bradando por soccorro. Deu com o negro, que para elle foi, rapido, e lhe perguntou:
-- Que ser? que ser?
-- Grande revolta no mosteiro! pancada, muita pancadaria ! respondeu o porteiro.
Fora o caso que meia duzia de monges de ideias liberaes, d'aquelles que na espécie de capitulo convocado do D. Prior na chegada de D. Bruno, opinaram pela liberdade delle, e lhe combateram a prisão, ao saberem dos acontecimentos de Evora, se colligaram e proclamaram o fim da Ordem carthusiana, pretendendo sair já 'naquella noite do mosteiro, quebrados, partidos os laços que os tinham vinculado á Regra do Santo Patriarcha. Ia lá dentro o inferno ! porque maior era o grupo dos contrários, dos ordeiros, dos que só sairiam quando o decreto de D. Pedro IV ali fosse chegado.
O preto das Mercês, ao tomar bem conhecimento do caso, ao ver o afflicto porteiro clamar no deserto, pois que nem trabalhadores nem creados apparececiam, lembrou a possibilidade natural de ser D. Bruno um dos revoltosos, e abalançou-se a perguntar alguma cousa:
-- Ser muitos?
-- Não são muitos: mas são os mais fortes e novos. Até o que estava preso anda á pancada aos outros ! E não haver quem acuda !
Ao tal ouvir, sentiu o negro que uma ideia luminosa, inspirada lhe brotára na mente, e disse ao porteiro :
-- Mim ir lá vencer tudo.
-- Isso sim ! Eram precisos muito homens.
-- Não ser precisa : mim vae.
E, sem mais considerações nem fallas inuteis, o negro José entra no pateo, sobe as escadas, penetra, correndo, no mosteiro, pela porta da direita, aberta ao tempo, desde que ali viera um monge tocar a rebate, e chega á vasta quadra.
Era de pasmar o que vira o mongol ! Por um lado e outro da vasta claustra, que dobrava nos extremos para as alas latteraes, vinham de rondão muitos monges, ao que parecia acossados, defendendo-se cada qual com sua arma : cadeiras, vassoras, bancos, tochas, tudo ! ...
Era já pouca a luz na claustra : o negro, ao vêr tal borborinho, ao ouvir a algazara, sem poder calcular por que lado viria D. Bruno, arremetteu ao acaso sobre a direira, em corrida e tiro feito ao monge que mais fugia, que vinha armado de um mocho do coro, e tal marrada lhe assentou nos peitos que o prostrou subitamente I A onda vinha vindo, aquella onda monachal batida de outra onda. Do primeiro avança a um segundo, o negro, e zás ! apanha-o pelas costas na occasião em que erguia uma cadeira ás mãos ambas, e precipita-o de rosto no chão. Corre a um terceiro e o mesmo resultado obtém : a terra com elle !
Foi notada dos contrários a queda do segundo e terceiro, sem poderem calcular a razão dos baques violentos! Estabeleceu-se logo confusão inexplicavel; porque sobre os caídos tombavam outros que retrocediam de rosto no inimigo, ao tropeçarem nos corpos d'elles ! Cómico e ridiculo espectaculo I
Acertára o preto: d'aquella banda era D. Bruno um dos combatentes victoriosos.
Já pouco se via; mas D. Bruno, ao ver cair o terceiro, tem rebate instantaneo da causa, tem o presentimento da origem, e avança mais sobre os prófugos, bradando :
-- A mim ! a mim ! velho amigo !
Trás! Nova pancada no costado de outro cartuxo o tomba, e os dois amigos defrontam-se, avistam-se, aberto caminho d'aquelle modo 1
O nosso heroe, arremeçado um cajado que brandira, corre ao preto, estreita-o em seus braços e diz-lhe, rápido, ao ouvido:
-- Fujamos !
-- Já!
-- Cobre a retirada!
E ao fallar assim, D. Bruno salta por sobre os caídos estonteados, corre á portaria e precipita-se no pateo, e seguidamente no campo, fora do mosteiro, caminho da cidade.
O escuro da noite, que se cerrava, já mal deixava distinguir os vultos no corredor da grande claustra. Entretanto fôra a causa descoberta, e já começava a resistencia contra o negro, quando elle, marrado um, tombado outro, que lhe pretendia tolher a retirada, desatou a correr para a porta, por onde entrára, e onde já estava um monge para a fechar. Foi este a ultima victima; porque o mongol correu a elle, puxou-lhe pelo hombro e catrapuz ! para o lagedo, e porta fóra!
A rapidez vertiginosa da scena descripta, deixára estonteados aggredidos e aggressores, como é natural, e fácil de imaginar ! Foi uma lucta phantastica ! ...
D. Bruno tomára para o lado dos arcos do aqueducto, e cosera-se com um, até ver sair do mosteiro ao negro Fae-Zé, que se não fez esperar.
-- Para aqui! lhe brada.
-- Mim vae! ...
-- Vamos por Santo António, que por ahi vem muita gente da cidade, dissera D. Bruno, apontando para a estrada principal, que ia para Arraiollos.
-- Como hei de eu agora entrar na cidade ? perguntara D. Bruno. Com este habito estou mal.
-- Mim vestir habito, respondeu o negro.
-- E eu vestir a tua roupa ? Está dito e bem lembrado, disse, risonho, o fugitivo e liberto.
Despidos e vestidos os dois, foram indo. D. Bruno ria, ria sempre que attentava no monge preto, a quem o habito era comprido e lhe fazia quasi uma cauda, e o preto, por sua vez, não ria menos ao ver D. Bruno mettido no seu fato. Chegaram á estrada de circumvalação da cidade, perto da Porta de Aviz.
-- Entrar aqui? perguntára o preto.
-- Entro eu só; tu vae por fóra ter a casa de minha mãe. Vê se podes entrar sem ser visto, e olha não te conheça alguem. Eu vou aqui pela rua do Muro e lá irei ter também. Cautela. Separaram-se ; cada qual por seu lado. D. Bruno, com a carapuça do negro encasquetada até ás orelhas, e aquelle, com o capuz caído sobre a cabeça e rosto.
Passada aquella confusão da claustra carthusiana ; fugido D. Bruno, o mais destemido combatente, a revolta fora dominada da maioria, fechadas as portas, encarcerados cinco monges.
O preto era, porém, o assumpto da conversação do D. Prior, do Antiquar domus, e de mais tres dos mais edosos monges, reunidos na cellà prioral. Chegou a aventar-se a ideia, que em tempo já tivera outro monge, de que não fosse um legitimo preto, mas o proprio diabo em pessoa, tão destemido e forte vencedor:
-- Aquellas marradas não eram de gente ! dizia o crédulo.
-- Eram, eram, sim, confirmava o D. Prior. O demonio não podia entrar aqui.
-- Mas d'onde viria, e como appareceria em tal occasião ?
-- Ámanhã o saberemos : o preto deve ser da cidade.
E lá se ficaram algum tempo ainda a fallar do caso estranho, e a planearem o modo de prender ao fugitivo, dando parte á auctoridade administrativa, com a nota de ser elle um delapidador de valores do mosteiro, um renegado, o próprio satanaz.
D. Bruno fôra indo para casa, sempre pelas ruas mais ermas e próximas da muralha, e o negro por fóra d'ellas, como vimos. Ao monge nenhum caso aconteceu de notar, foi bem; ao negro, porém, é que ao chegar defronte da Porta da Lagoa, tâo nossa conhecida, por onde ainda saía muito gente para as quintas, foi notado de uns rapazes.
-- É um frade !
-- Não pode ser, a esta hora !
-- Olhem ! mas elle é preto !
-- Então não é frade.
-- Quem será ?
E o negro ao ouvir fallar na sua cor, despediu em furiosa corrida, arregaçado o habito por não tropeçar 'nelle, e em obra de vinte minutos entrava na casa da familia de D. Bruno, primeiro do que elle.
Ainda bem o negro não acabára de contar o succedido, de annunciar a vinda do monge quando bateram á porta.
-- Ser elle ! exclama o negro, correndo a abril-a.
-- Que vejo ! dissera um homem fardado, de espada á cinta, entrando, apressado. És tu já, Manoel? Dá-me um abraço. E o militar fôra para o preto, cujas feições não via, por este estar de costas para a luz.
-- Mim não ser, mas abraça amigo.
-- Mas este habito ?
-- Ser d'elle.
-- E onde está o meu amigo ? Falla.
A porta, que fôra cerrada pela viuva do Candieiro, abre-se 'neste instante, e por ella entra o monge fugitivo, que ouvira a pergunta do militar.
-- Aqui ! exclama, precipitando-se nos braços de Christovam da Costa, 'naquelle dia chegado de tarde na divisão de Saldanha a Evora.
Sympathico, adoravel quadro ! Os dois amigos abraçavam-se e reabraçavam-se, e o preto apertava aos dois em seus braços, chorando como uma creança !
Seguiu-se a scena pathetica da mãe de D. Bruno, de dois irmãos, que estavam em casa, e, por fim, a da filha, que já estava recolhida e foi ser acordada para ver e conhecer seu pae. Enternecedor tudo aquillo !
Notável dia fôra aquelle 30 de maio de 1834! Ao dedicado amigo de D, Bruno, que a guerra por lá trazia, restitue sua familia, e patria ; ao negro das Mercês dá dois amigos ausentes, e ao monge da Cartuxa traz a liberdade pessoal nos braços da de Portugal, captivo da tyrannia, havia seis annos !
Este dia deve ser um dos mais assignalados nos fastos d'esta cidade, por ser em Evora que veiu expirar o monstro da guerra civil, que tamanhos estragos fizera no paiz.
XXV
Lembranças da mocidade
Natural sequencia dos narrados acontecimentos políticos, dias depois, tinha logar o espectaculo commovedor da saída dos frades de seus conventos e mosteiros. Doloroso era, na verdade, o ver tantos homens expulsos de suas casas, . apenas vestidos dos habitos de suas Ordens, e com um Breviário por única mobilia ! Paineis, livros, alfaias, quer particulares quer da Ordem, lá ficavam sequestrados da nação.
Não foi em Évora a expulsão repentina, durou muitos dias, donde o prolongamento da triste representação. De Santo António, Remedios, Cartuxa, Espinheiro, Santa Margarida e Valverde, durante mais de quinze dias, vinham chegando a pé os tristes banidos, válidos ainda, e em carros ou sobre burros os muito edosos e doentes. Conventos fora das muralhas de Evora, seus moradores buscavam a cidade para d'ella se conduzirem a suas terras e a suas familias, os que as tinham.
Tristes consequencias da leviandade e stulticia de alguns!
Ricos, sabios, respeitados os frades, de ha muito já tinham esquecido a regra de seu viver asceta, puramente espiritual, para cuidarem e se devotarem muito ao temporal, com manifesto esquecimento da máxima que lhes deixara Jesus: regnum meum non est de hoc mundo. Chegaram a ser um estado no estado, como os feudaes senhores de D. João II. As doações, desde o principio da monarchia, e mesmo antes já, feitas ás ordens monasticas não só por alguns reis como por fieis de ambos os sexos, especialmente pelo feminino, tinham vinculado enormes tratos de terra no paiz, com prejuizo da coroa e dos demais cidadãos, que as não podiam adquirir, as egrejas, e mosteiros, e conventos.
Era uma origem de pobreza esta agglomeração de propriedade nos frades ; mas, não haveria quem lhes vibrasse o tremendo golpe, se não fôra a interferência que pretendiam ter nos negocios politicos da republica, na marcha de seus governos. '
A guerra civil, de que fallámos, e que vimos acabar, deve grande parte de seu prolongamento ás manobras e protecção fradescas. Os pulpitos e os confessionarios foram os maiores inimigos da liberdade de Portugal.
Mataram-se, suicidaram-se os frades. A despeito do que a sciencia lhes ficou devendo, que não foi pouco, que durmam na paz de Deus, que o mundo ahi vae marchando sem elles, embora se não saiba ao certo para onde, como escreveu alguem, e embora esse onde possa ser o abysmo.
Volvamos á rua dos Caldeireiros, a casa da viuva de Clemente José Candieiro, onde deixámos tres amigos, tres notaveis vultos desta historia exactissima.
-- Bem, excellente; saiste antes de te despedirem e fizeste bem: ser-te-hia mais dolorosa a expulsão: o decreto já vem na folha official; porém, receio ainda que te incommodem, e, para que o não sejas, tu vens dahi comigo para minha casa, onde te conservarás o tempo preciso em homisio voluntario, até que possas livremente exercer teu ministerio sacerdotal, secularisado, como os mais, dizia Christovam da Costa.
-- Não me parece que já me possam incommodar, respondia o monge.
-- Olha que o decreto ainda não foi lido na Cartuxa. e que o Prior pode fazer-te prender, e claro é que te não buscarão 'noutra parte : o primeiro logar será este : vem comigo e deixa-te de facilidades e de optimismos.
-- Vou te ser um incommodo, um peso grande...
-- Vae, vae, meu filho : sou eu que t'o peço, eu que também receio por ti, acudiu a viuva Candeia.
-- Espreto amigo tambem pedir, disse o negro, passando-lhe pela mente uma ideia aterradora : a de que os Cartuxos soubessem da morte por elle perpetrada á Porta da Lagoa, e a fizessem valer agora, por desforço tomado contra quem tanto os zurzira, e provocára uma revolta, e fugira do mosteiro.
E attendivel era o conjecturar do negro. D. Bruno tinha entrado na Cartuxa, sem o cordão monastico, e o cadaver appareceu com evidentes signaes de ter sido morto por asphyxia, por estrangulação, e esta circumstancia podéra ter chegado lá... e como ás vezes basta unm leve dado, uma tenue circumstancia habilmente explorada, para descobrir segredos de tal ordem, bem fazia o negro amigo instando, por sua vez, para que D. Bruno fosse.
Deliberou-se, sairam ambos, tarde; o monge disfarçado nas vestes de um irmão, combinado que ali viria cada noite ver a familia. Seguiu -os o preto das Mercês, até os ver entrar em casa da familia de Christovam da Costa, d'onde retrocedeu ao seu convento, no qual, como sabemos, sempre era bem recebido.
Dias depois acabara o cuidado, o receio : os conventos de Evora e mosteiros do sexo masculino estavam despejados de homens, fechados pela auctoridade.
Appareceu em publico D. Bruno, cuja historia era conhecida na cidade, cujos amores fizeram o assumpto obrigado das conversações nos saraus da casa Mesquita, Cordovil, Torres e outras, durante annos. Soubera o publico da larga prisão do nosso heroe, e lastimára-o, de modo que, ao vel-o apparecer vivo e sadio, o recebera com geraes mostras de sympathia e de curiosidade, em querer saber d'elle a historia de sua prisão e de seus soffrimentos. Muitos o interrogavam; mas, D. Bruno, bastante cauto e experiente do mundo, a todos negava o caso dos amores, do apparecimento em sua cella de uma linda mulher, e da prisão d'elle, não só na Cartuxa de Evora como na de Laveiras.
Era prudente não confessar: D. Bruno era um padre; tinha de fazer vida por esse officio, e mal lhe iria se elle próprio confirmasse o delicto, da verdura da mocidade.
Viveu, nos primeiros annos de sua vida secular, na casa de seus pães, d'onde cada manhã ia á egreja de Santa Calharina dizer missa, e rezar por alma da desgraçada Bemvinda, que d'ali raptára, e que tão cedo o deixára no mundo.
Nos dias em que perfazia um mez sobre a morte da desditosa formosura, saía de casa, alta noite, e ia sósinho passeiar no baluarte ou forte do Aça, onde jazia a victima, como elle conscienciosamente acreditava de suas loucuras e devaneios da mocidade. Seria o remorso, ou a saudade ? o movei que o arrastava a dar taes passeios sobre centenas de ossadas? Elle o sabia.
Foram-se desdobrando os annos sobre o de 1834, até que o ex-monge comprou á Porta de Moura uma casa, onde foi vivendo até 1846. 'Neste periodo de quatorze annos viu elle ir indo da vida presente a familia que tinha, até que só ficou, apenas acompanhado da filha para seu coração, e afilhada para o mundo.
José, o preto das Mercês, o conhecidíssimo Fae-Zé desapparecera um dia da cidade, sem bem se saber porquê, no anno de 1845, e não mais appareceu em Evora, nem a D. Bruno, que o tivera sempre comsigo até áquelle anno, considerando-o e estimando-o muitissimo.
Chegou a crer-se que o tinham morto os da rostomanga, e lançado a um poço. A não ter sido por volubilidade de raça, D. Bruno jámais poude explicar a saída de sua casa d'aquelle amigo, e da cidade, se 'nella não tinha sido assassinado, como dissera uma das versões.
Christovam da Costa mudára de corpo e de terra, e fôra para Lisboa com a familia, d'onde se carteou sempre com o amigo, até que a morte o levou primeiro do que ao monge.
Capellão da Misericordia, foi D. Bruno vivendo até ao anno de 1846, em que Evora se manifestou toda, toda pela revolução do Minho,
'Neste largo período, viveu D. Bruno com a filha Gertrudes de Jesus, que se conservou solteira até tarde, quiçá por não ter herdado a formosura da mãe, dote dos mais cubicados dos platónicos amantes, para quem o dinheiro, os enormes haveres são cousa muito secundaria, em contraposição aos plutonicos, adoradores apaixonadissimos do louro metal, venha d'onde vier, e como vier, e trazido seja por quem for o bezerro d'ouro ! ...
Casou tarde e já não poude ser mãe; morreu, como sabemos, e não deixou successão. Adorára-a sempre o ex-cartuxo, áquella filha do peccado, gerada no mosteiro de S. Bruno, não só por lhe ter dado a existência, como em saudosa lembrança de Bemvinda da Gloria, a desditosa.
Posto o leitor d'este livro ao facto d'estas minudencias, ora lhe daremos um dos ultimos diálogos do nosso heroe.
É no mez de novembro de 1846, vespera de S. Martinho. D. Bruno, vindo do coro da tarde da Misericordia, e tendo jantado com a filha, deixou-se ficar á meza pensativo, e tanto, e tão triste que Gertrudes o estranhou.
-- Que tem, meu padrinho ? Está doente ?
-- Não, não estou, ou, antes, disse, risonho : tenho a doença dos velhos: senectus est morbus. Se tu souberas em que eu estava a pensar ! ...
-- Digam'o, padrinho, diga-me em quê.
-- Oh! não, não que nada entenderias do que te dissesse.
-- Nada! Estranha cousa deve ser ...
-- Não é estranha para homens; agora para mulheres, sim. Tu sabes lá o que é a guerra ! ...
-- Ella ahi está, bem sei : ouvi hoje dizer que amanhã arrazam a cidade ...
-- Tonta ! Não se arrasa assim uma cidade como Evora; não penses 'nisso, e vive socegada.
Nunca D. Bruno contara á filha a historia de sua mocidade bellicosa, e 'naquelle momento, recordavaa saudoso ! Via passar ante sua reminiscencia a tomada de Badajoz, o corneteiro, Maio e Lima, a volta a Evora, tudo, todo o seu passado viver, até ao presente, sem deixar de figurar na revista de saudades a morte do seu rival, o aprendiz de caldeireiro.
Não tinha remorsos, nunca os tivera ; porque em seu animo era ponto discutido, assente, que se não tivesse morto, morreria elle.
-- Sabes tu uma cousa? Hei de sair de casa hoje, á meia noite; mas a ninguem, a ninguem o digas.
-- Sair a essa hora ! Nunca tal fez o padrinho !... Anda por ahi tanto soldado ...
-- Não tem duvida, descança: quero esta noite ser mais um.
-- Não entendo...
-- Não entendes, não: o que tu me has de fazer é não te recolheres a teu quarto sem eu ter voltado, sim?
-- Forte duvida! esperarei toda a noite, se for preciso.
-- Isso sim! Até á uma ou duas da madrugada, não digo que não ... Has de me encher de aguardente o velho cantil.
-- Sim, senhor; mas, a tão feia hora da noite . , . sair de casa, . .
--Nada receies, já t'o disse : vou ver a uns amigos, que são da Maria da Fonte.
-- Os senhores Torres ? ...
-- Sim, esses e outros. Segredo é que é preciso.
E D. Bruno ergueu-se da mesa, preparou-se e saiu até ás lojas da Praça, por saber o que havia de novo na cidade, e que noticias de fora, do Porto e do reino.
Entrou na loja de Francisco Lopes, negociante de grandes creditos. Ali se reunia o melhor da cidade por causas conhecidas.
Entrou o administrador do concelho, João Raphael de Lemos, o notavel politico de Evora, que ainda hoje fora a mesma auctoridade, a não ter morrido.
-- Ora viva lá, D. Bruno, dissera.
-- Viva o senhor João Raphael, respondera o egresso.
-- Então, o que ha de novo ?
-- Essa não é má ! Quem deve saber pergunta ? Falle o senhor João Raphael, diga o que ha de novo.
-- Eu nada sei, nada, mesmo nada, accentuou bem nos três nadas proferidos, em que se não excluiam os noves politicos.
Ao facto de tudo estava elle, se estava!
-- Parece que se esperam graves acontecimentos no Alemtejo, dissera D. Bruno.
-- É possivel, sim, senhor; porque esta cidade pela Maria da Fonte é caso serio.
'Nisto entrava o governador civil, Agnelo Gazo.
-- Boas tardes, dissera, entrando.
Todos o comprimentaram, como ao chefe politico do districto.
-- Estimo encontral-o aqui, João Raphael, porque temos de fallar.
-- Quando V. Ex.ª quizer honrar-me ...
-- Ó Francisco Lopes, vossê dá licença que entremos ? dissera Agnelo.
-- Oh ! meu senhor! pois não! E abrira-lhes logo o balcão do mostrador, por onde os dois entraram, pedida venia aos circumstantes.
-- Veja esse papel, dizia, dentro, o governador civil para o administrador do concelho, mostrandoIhe uma confidencial.
-- Olá! exclamára Lemos, ao lel-a.
-- Temos de prender essa gente.
-- Impossivel, respondeu o administrador.
-- Impossivel! porque ?
-- Porque o unico meio, que para isso conheço, é mandar V. Ex.ª fechar de pedra e cal todas as portas da cidade; só assim os poderá prender.
-- João Raphael zomba !
-- Não zombo, por Deus que não ! É que, pelo que vejo, V. Ex.ª ainda não sabe que Evora é toda Patulea. Prender ! Prender a quem ?
-- Aos principaes.
-- Os principaes são os Torres, o Ramalho, o Sá, todos, emfim. Quem os ha de prender ? Os que brevemente serão presos, são outros: é o Pedro Paulo, o Duarte e ...
-- E talvez o Arcebispo, segundo o seu modo de ver as cousas.
-- Esse já cá não está, ha dias. Saíu, disfarçado, 'num carro do Luiz Cabreira.
-- Ora essa !
-- Bem disse eu a V. Ex.ª, aconselhando o fechar das portas da cidade a pedra e cal.
-- De modo que, o melhor é não pensar-mos no caso da prisão.
-- Sim, senhor; elles, os pouquíssimos, se prenderão a si proprios,
-- Não comprehendo ...
-- Farão o que fez o Annes de Carvalho.
-- Ah! sim, sim, comprehendo agora. Vossê é o demónio, João Raphael ! Prende-os soltando-os !
-- A minha força está 'nisto.
E sairam, vindo para a loja de fora, onde já estavam mais habitués, no termo francez de tantos empregado.
Conversou-se, sendo o thema unico as forças do Swalbach, que davam mostras de intentar algum golpe de mão sobre a cidade.
A tarde conservou-se chuvosa, e assim começou a noite, Agnelo saiu, D. Bruno o mesmo fez, indo para sua casa, e João Raphael de Lemos, saindo também, tomou a direcção da casa de Pedro Paulo de Vasconcellos, na rua dos Três Senhores, para o avisar e aconselhar a sair da cidade o mais depressa, que podesse.
Foi d'ali para casa do Duarte José da Assumpção, egresso sem ordens sacras de um convento de Montemór-o-Novo, secretario do Seminario, e assim prendeu um par de cabralistas 'naquella noite o mais popular, o mais querido cidadão de Evora, nos tempos modernos, como nos antigos o fora João Mendes Cicioso.
XXVI
A Patulea em Evora
É favorecido da soberana portugueza, D. Maria II, Antonio Bernardo da Costa Cabral : impera o cabralismo no paiz, o governo forte d'aquelle homem energico e intelligente ; domina o cacete, como em anteriores tempos o do conde de Basto.
A. Cesar de Vasconcellos e José Estevam Coelho de Magalhães, soltam o primeiro grito de rebellião em Torres Novas, em 4 de fevereiro de 1844. Aborta a tentativa.
Em 18 de setembro é assignado o decreto, organisando a repartição de saude publica : 'nelle se trata dos enterramentos fora das egrejas, nos cemitérios. Descontenta ao povo.
Vem o anno de 1845: Costa Cabral dirige uma eleição geral á força: cresce a onda revoltosa.
Em 14 de abril de 1846 nas freguezias de Garfe e, seguidamente, na de Fontarcada, no Minho e terras de Lanhoso ulula a hydra da revolução contra os Cabraes : um grupo de mulheres destemidas, mandadas de Maria da Fonte, tomam um cadaver com violencia e dão-lhe sepultura na egreja, a que põem sentinellas femininas. Queimam-se papeis fazendarios, grita-se contra as novas leis.
Tem magia o brado revolucionario das Amazonas minhotas ; propaga-se a revolta, faz-se revolução, divide-se o paiz em dois bandos,
Assusta-se a rainha, sente tremer a base de seu throno, demitte Costa Cabral, em 2 1 de maio, e toma o timão da náo do estado o Duque de Palmella. Mas a influencia dos Cabraes, especialmente a de António Bernardo, era grande desde 1842. Não podendo assumir de novo o mando, Cabral exerce poderosa influencia no animo da soberana, que em 6 de outubro, vibra um golpe em Palmella, derruba-o, e chama para o substituir ao Marquez de Saldanha, sem Cabraes.
'Neste homem confia a rainha; vê 'nelle o esteio de seu throno, e nomeia-o duque, em 4 de novembro, depois de o ter feito seu Logar Tenente nas provincias do norte.
Trava-se lucta formidavel no paiz : generaes são pela rainha e generaes a combatem, á frente do povo, armado em batalhões. O exercito é dividido, D. Maria II não tem forças para abater a hydra d'immensas cabeças : pede auxilio á Hespanha e á Inglaterra.
Antes que termine a lucta fratricida, retrocedamos, vejamos Évora em armas pelo povo, pela Patulea.
Desde annos que Evora era contraria ás tendências e pratica despótica de António Bernardo da Costa Cabral.
Havia 'nesta cidade muitos homens liberaes, que não tolleravam o despotismo nem pintado, nem em sombras. Com D. Pedro IV militára Marcos Torres, com elle vieram na famosa expedição os estudantes de então, Ignacio Fiel Gomes Ramalho e Thiago da Silva Monteiro, e outros.
D. Maria II viera a Évora, em 1843, acompanhada do esposo e dos filhos Pedro e Luiz, dois reis no tumulo já. Com ella viera Costa Cabral. Hospedaram-se nos paços do arcebispo, onde houve recepção. Foi a camará, a camará d'homens liberaes, instruidos e energicos. Ramalho, corajoso como quando se batia no cerco do Porto, tomara a palavra e pedira á Rainha nada menos do que a queda do valído ! O povo enchia o vasto largo de Diana, almejando saber que êxito teria a audacissima investida contra o poder. Como em 1637, ^ povo de Evora anciava na rua por ver que solução dariam ao seu pedir, como receberia a soberana a manifestação de seus desejos, de sua vontade, ou, antes e melhor: como trataria o ministro omnipotente aos representantes do povo eborense.
Não houve consequencia de gravidade immediata aquelle acto atrevido, e o povo não teve necessidade de lançar mão da ultima ratio populi.
D. Maria II saiu d'Evora o mais immediatamente que poude.
Havia, portanto, em Evora um partido popular, alimentado dos principaes homens de então da cidade.
O governo cabralista teimava de crescer em numero d'annos de existência, e o partido popular em numero de adeptos.
Grande era já a effervescencia revolucionaria no paiz, em 1845. Para não cair ante a vontade do povo saida da urna, Costa Cabral procede a uma eleição violenta, sanguinaria : vence, para cair e ser vencido.
Chega o dia 24 de maio de 1846. O povo de Evora, saído 'neste dia o Barão de Resende, commandante de cavallaria n.º 5, com o corpo de seu commando para o Barrocal, dirigido por chefes patriotas faz solemne manifestação contra o governo forte da Rainha, mas não contra ella. Põem em sua bandeira revoltosa o lemma: Rainha e Carta e brada aos seus:
Viva S. M. a Rainha !
Viva a Soberania da Nação ! e as Instituições !
Eleições livres e Guarda Nacional !
Abaixo os ladrões !
Abaixo os excessivos tributos !
Cinco membros constituem para logo uma Junta Governativa, presidida por António José da Cunha e Sá, medico e proprietario, organiza-se a Guarda Nacional, commandada por Marcos Torres Vaz Freire, e Evora fortifica-se, íecha suas portas a quem não vier pelo povo, pela causa da Maria da Fonte.
O conde de Mello vem por-se á frente das forças revoltadas, e estas começam de avolumar a olhos vistos : milhares de homens se vem abrigar dos muros de Évora, para defensa de suas ideias.
Concede-lhes a Junta, aos que veem chegando, os postos que tinham até 25 de abril de 1828, e dá outros.
Em 17 de janeiro de 1847 ha parada do Rocio: a ella concorreram as forças, que a cidade tinha ao tempo: Guarda Nacional; Cavallaria de linha; o Batalhão do Algarve ; o Batalhão Lisbonense ; o dos Cruzados de Cintra e o Movel de Evora.
A 2 de março intima rendição á cidade o visconde de Setubal, Swalbach, que tenta sitiar e bombardear seus muros e seus habitantes. Era o desforço da sortida feliz sobre Alcacer do Sal do Batalhão de Leaes Caçadores de Evora, ás ordens do tenente coronel Joaquim Mendes Noutel, e da cavallaria commandada de António Joaquim Pancada, o valente moço, assassinado, mais tarde, no Alto do Viso, que, depois de cinco horas de fogo, aprisiona o major Ilharco, dois tenentes, tres alferes e mais de cem praças.
Marcos Torres responde formalmente que não, e Swalback retira sobre Estremoz. Com todas as forças de Evora, vae o conde de Mello sobre aquella villa, de passagem para Portalegre, que estava pela Patulea. Como tentativa, ou de proposito accommette o conde de Mello as muralhas de Estremoz. Cae de uma bala morto o coronel Marteili, e Mello desanda sobre Portalegre, sem vingar aquella morte, como podéra; porque Estremoz lhe não resistiria, por pouco guarnecida, e por ter falta de viveres.
De Portalegre, diz o Marquez de Mello, ao titulo elevado pela Junta do Porto, em 22 de fevereiro, que já tem mais 200 baionetas e espera 300 do bravo Batalhão da Serra.
A. M. Soares Galamba, o valentissimo caudilho, derrota, junto a Campo Maior, com sua cavallaria a uma força inimiga, fazendo muitos prisioneiros, e retrocede com o conde de Mello sobre Setubal, ao saber-se que Sá da Bandeira aportara a Lagos, em 31 de março, e demandava aquelle porto de mar.
Aproxima-se o fim da lucta, que nunca ella tivesse começado ! No 1.° de Maio lere-se sangrento o conflicto do Alio do Viso, perto de Setubal. Dura cinco horas o fogo ; perecem muitos. Manuel d'0liveira da Silva Castello Branco, commandante da cavallaria da Rainha mata, deslealmente, ao famoso Pancada, para morrer em seguida, aberto o craneo pela espada fortissima de Galamba, que vira cair morto ao seu companheiro d'armas, e sobre Castello Branco voara, como um raio vingador. Como Alvaro Vaz de Almada em Alfarrobeira, Galamba prostra a quantos pretendem defrontal-o, e deixa bem vingada a perda do valente rapaz.
É sabido o final da guerra: D. Manoel de la Concha entra em Portugal, caminha sobre o Porto, e as forças inglezas bloqueiam o Douro, o Tejo e o Sado. Succumbe a Junta do Porto, expira a Maria da Fonte, a maior commoção dos tempos modernos no paiz!
Mas, agora noto que me desviei um tanto do romance, para tracejar historia contemporanea em Evora, e por concomitancia no paiz. Deixemos, leitores, o caso aos historiadores, e volvamos, um pouco antes, a Evora patulea, revolucionada.
Estamos na noite do dia onze de Novembro de 1846. A guarnição da cidade está em armas, a postos sobre a muralha do norte ; porque as forças da Rainha estão em S. Bento, e na Torralva, e em Santo António, quasi a tiro de baila da Porta da Lagoa.
No sitio chamado Barbacã, junto á cerca do convento do Calvario, tem-se collocado uma peça para bater os assaltantes em perspectiva. É meia noite, chove. A guarnição d'aquelle ponto vigia o campo, não por temer um assalto, que para o dar não vinha Swalback preparado, mas para afastar algum audaz, que se aproximasse em explorações e reconhecimentos.
Ninguem se avistava fora, no campo. De repente attenta a sentinella 'num vulto, que da cidade vinha para aquelle ponto, embuçado, silencioso.
-- Quem vem lá? lhe brada.
Nenhuma resposta: o vulto avançava.
-- Alto ! rebrada a mesma voz, apontando a espingarda ao silencioso caminhante.
-- Bravo Ignacio! valente militar! Com que já crês entrada Evora pelo Swalback?
Conheceu a voz do que se aproximava a sentinella: baixou o cano da espingarda, como envergonhado e corrido.
O que chegara, envolto na capa, era um homem de edade. Ao chegar á falla com o rapazote, que mettia sentinella, desembuçou-se, deu-lhe de fumar e uma vez de aguardente de um cantil, que trazia, como quem parecia entender da arte da guerra, e terminou por dizer-lhe :
-- Dá-me agora essa arma, e vae descançar, vae-te enxugar, que eu te faço o serviço.
-- O que ? Pois o senhor D. Bru ...
-- Silencio ! Aqui não ha nomes ; ha homens, atalhou, rapido, o recem- chegado.
-- Mas...
-- Alto ! nem mais palavra, cortou o estranho, em tom de quem manda, de quem sabe mandar.
Obedeceu o rápazote sentinella, e passou a espingarda raiuna ás mãos do que lh'a pedira, e foi-se juntar aos demais defensores da Barbacã, que, perto, passavam pelo somno.
A sentinella adventicia, sem largar a capa, mas traçando-a com certa arte, parou um instante, mirou a campina, quanto lh'opermittia a claridade da noite, e, seguidamente, poz-se em marcha de vae vem, no curto espaço que tinha 'naquelle ponto.
Seria uma hora da madrugada, quando lhe pareceu avistar um clarão no sitio da Torralva, onde havia forças do Swalback. Pouco depois, viu elle nos ares, em curva sobre a cidade, um como meteoro, ou estrella candente. Era a primeira granada, das que no dia seguinte cairiam sobre Evora.
-- Parvoice ! murmurou o homem, ao seguir com a vista a granada que levava a direcção da cathedral. Para que destruir monumentos? quando um assalto bem encaminhado dará entrada por qualquer porta ou ponto da muralha ? Nem brecha é precisa, tão velho é isto, e tão fracos, em numero, os defensores !
E continuou a passeiar, fumando um cigarro brejeiro, um milicio. O relogio de Santo Antão dava, 'neste momento, duas horas da madrugada.
Pareceu-lhe ser tempo de ser rendido e, para isso, chamou ás armas. Acordaram os defensores da Barbacã, incluindo o rapazote substituido.
Quando o desconhecido passava a espingarda a um carpinteiro da Guarda Nacional, chegava outro homem.
-- Quem vem lá? Ninguem respondeu.
-- Quem vive ? bradou a mesma voz.
-- A Junta do Porto, respondeu então o que perto estava já. Chegou: era Marcos Torres, que rondava a muralha.
-- Olá ! exclamou, admirado, ao conhecer a estranha sentinella, que acabava de ser rendida. Não sabia que era por nós, D. Bruno! Muito o estimo.
-- Sempre o fui, respondeu o nosso heroe. -- Deu-me hoje para vir recordar a mocidade, para verificar se ainda me lembrava isto. Peço, poirém, ao sr. Marcos Torres não dé publicidade ao caso, por causa do Pae dos Bestas, que é cabralista. Eu virei mais noites aqui, ou a outro ponto; mas, convem que se não saiba, attenta a minha posição.
-- Está dito, respondeu Marcos Torres.
-- Então, o que ha de novo ? perguntou D. Bruno.
-- Corre que o Swalback se não atreverá a um assalto, porque ha cá de dentro alguém que lhe diz o estado da cidade, as forças que temos, e de tudo o informa.
-- Sabem quem será ?
-- Não sabemos.
-- Será possivel ? ! exclama D. Bruno.
-- O que? diga, D. Bruno.
-- Nada posso dizer, senhor Marcos Torres, porque o não sei.
-- Mas, alguma cousa lhe pareceu possivel ...
-- Sim, observei, ha pouco, olhando para os lados da sé, que alguém dava signaes para o campo, com lanternas de cores.
-- Será na torre de Sertorio, será no telegrapho, que está lá estabelecido.
-- Nada: o telegrapho não trabalha de noite.
-- Então convém sabermos onde e quem seja o que as dá. Mostre-me, D. Bruno, o ponto.
-- Impossivel, na escuridão da noite. Os signaes desappareceram, e não ha meio se não o de esperar por outra noite, pôr balisas fixas na direcção, para por ellas, de dia, acertarmos com o sitio.
-- 'Nesse caso, virá? D. Bruno?
-- Talvez ; mas se eu não poder vir, já o senhor Marcos Torres sabe do caso estranho, e tem indicação para o descobrimento.
-- Na direcção da Sé ! realmente, que nada me lembra, dissera Torres, como quem muito deseja descobrir o caso. De ninguém se lembrou, D. Bruno ?
-- Só se for o Pae dos Bestas, que é todo do Costa Cabral.
-- Eu lhe digo : lá que elle escreva e tenha meio de mandar cartas, isso creio eu; agora dar signaes com lanternas, isso não me parece; por que seriam vistas, e se comprometteria, rnais do que está. Parece-me que é dos poucos que terá de sair da cidade.
-- Se ha de soffrer algum desacato do povo, melhor será sair, e favorecer-nos com sua ausencia, respondera o ex-cartuxo.
-- Não pensa mal, D. Bruno.
-- Bem, eu vou para casa: porque tenho côro de manhã, e na minha edade já é preciso descançar, O que peço, repito, é que o senhor Marcos Torres não falle em mim.
-- Vá socegado, D. Bruno ; mas veja se vem ámanhã. É verdade ; A que hora viu as lanternas ?
-- Tinha dado uma hora da manhã.
-- Bem, bem. Adeus!
Saiu d'ali D. Bruno, egresso, e tomou a direcção de casa, á Porta de Moura, onde chegou perto das tres da madrugada.
Marcos Torres seguiu para a Porta da Lagoa, fortificada com uma bocca de fogo, como ponto importante, por se defrontar com a Torralva e baluarte de Santo Antonio, em poder dos contrarios. Era uma rondagem extra-official, a delle.
Como vimos no dialogo de Torres e de D. Bruno, não sabiam elles da saida do Arcebispo, que já não podia ser o telegraphista das lanternas, mas alguem mandado delle, concedido e provado que o ponto caisse na sé, ou no paço archiepiscopal.
Na immediata noite, Marcos Torres estava na muralha á hora combinada com o ex-cartuxo, que foi pontual.
-- Não o esperava : o tempo vae chuvoso e péssimo.
-- E eu um tanto constipado ; mas, também tenho curiosidade no caso das lanternas.
Esperaram e conversaram :
-- Não sei ainda dos estragos na cidade, dissera D. Bruno.
-- Sem importância : as granadas não attingiram ninguem; a que estourou na cathedral é que fez algum estrago: O homem desistiu do plano e safou-se.
-- Fez bem, e melhor se não tivera atirado sobre a cidade.
-- Enganou-se ; cuidou isto á mercê de uma duzia de homens.
-- Agora ! Olhe, olhe! exclamára D. Bruno, que, na conversação, não perdia de vista e ponto.
-- Exacto: é um signal, evidentemente.
-- Ponhamos balisas, antes que termine a participação, dissera o ex-cartuxo, cravando no solo duas cannas, para isso cortadas 'num cannavial próximo. Direcção e altitude marcadas, as luzes desappareram logo.
-- A tempo andámos, dissera Torres.
-- É verdade; a participação hoje foi curta. Sairam d'ali os dois, cada um para sua casa. No dia seguinte, averiguava Marcos Torres que o local era uma janella, nos sotãos do palácio archiepiscopal, e soubera não ser já o Arcebispo ; mas algum familiar, instruido para isso, visto ter elle partido para Lisboa.
Continuou a defensa de Evora até Maio de 1847, em que, depois da acção do Alto do Viso, o partido da Maria da Fonte succumbiu no reino, e 'nesta cidade.
Dava um bello quadro a historia da Patulea em Evora, se este livro não fora um romance. Faça-o alguem.
Vae o entrecho d'este livro proximo do fim natural, mortos os personagens que lhe deram vida: resta D. Bruno.
Viveu envelhecendo até ao anno de 1865, em que Deus o chamou para si, e lhe pediria contas do seu viver de religioso.
Quer a prova o leitor? Leia, e veja como houve tanta vida entre dois tumulos:
«Bruno Maria da Transfiguração, Egresso Cartuxo, Padre, de edade de 73 annos, natural d'Evora, filho de Clemente José Candieiro, natural de Lisboa, e de Maria Joaquina, natural d'Evora. Morava á Porta de Moura e era capelão da Misericórdia. Falleceu ás 7 horas da manhã de 12 de Fevereiro de 1865 na casa n,º 22, na porta de Moura, Deixou testamento e foi sepultado no cemiterio dos Remedios.»
FIM
NOTAS
A ceia de um cartuxo... pag. 53
No capitulo VIII. Da regra que ordenou Sam Bruno, a paginas 56 do livro raro de D. Basilio de Faria : Vida do Patriarcha Sam Bruno, imp. em Lisboa em 1649, por Domingos Lopes Rosa, achará o leitor curioso de factos historicos in extenso a doutrina sobre trajar e alimentar de Cartuxos, e ali verá não ser de mais o que se escreveu 'neste capitulo. S. Bruno, o fundador da Ordem, poz todo o seu cuidado em que nem de dia, nem de noite tivesse o diabo postigo por onde pudesse entrar no corpo e alma de um cartuxo. Ao tempo em que redigio a Regra não tinha, porém, nascido o heroe d'este livro, aliás teria aperreado mais a vontade de seus filhos.
Existia no convento um preto... pag 73
Se no romance é um mytho este negro das Mercês, bem podia ser elle um que viveu em Evora larguissimos annos, empregado em misteres diversos, sendo, talvez, o ultimo o de moço de um forno. Ainda tem a cidade quem o conhecesse. Julga-se, segundo um parecer, que viera do Brazil, e segundo outro, de Africa : o d'elle, que ainda vive com mais de 120 annos, ou vivia ha mezes em Alter do Chão, ou no Crato, é diverso : nascera no reino e no Alemtejo. Parece, porém, haver já pouca firmeza o que diz o velhissimo Pae Zé, conforme indicações do Administrador do concelho de Alter do Cháo, que mandára para o Seminario o retrato d'aquelle monumento, pedindo, por pura curiosidade, a certidão de edade do homem negro. Não se achou em parte alguma.
«...0 negro conhecia um processo... pag. 77
Haverá perto de trinta annos, que eu vi em Coimbra empregar o processo do negro das Mercês, a um estudante brazileiro,de appellido Assis. Era elle um moço debil, trigueiro, de cor macilenta, dispondo de fracas forças physicas. Annunciara o moço o processo que tinha de vencer ao mais forte e corpulento adversario, sem, comtudo, dizer em que consistia. Sorriram varios estudantes dos muitos que então eram os Hercules da Academia, e quizeram experimentar. Foi o primeiro um, conhecido pelo Pilatos, de altissima estatura, que por ella pensou ser impossivel ao brazileiro não só chegar-Ihe aos hombros como muito menos prostra l-o. Foi para o Assis, e o tombou instantaneo, com tal rapidez que nem os outros perceberam como fôra o caso.
Seguiu-se Manoel..., morto já, um dos mais assignalados em forças, e foi a terra ! E outros mais, cujos nomes não posso já lembrar.
Assis contou que aprendera dos indios do Brazil o processo.
Tal a origem da scena descripta.
Laparos e coelhos.. . pag. 88
Com aquelle sorriso da maior bonhomia, da mais attrahente benevolencia que tinha o fallecido arcebispo de Évora, o senhor D. José António Perreira Bilhano, me disse um dia :
-- Venha cá ver um mappa curioso.
E mostrára-me um, em que certo parocho, não lembro já de que freguezia, nem seu nome, ao ter de responder a um quesito, que lhe propunham, qual o de enumerar rios, e ribeiras da sua freguezia, e que qualidades de peixe creavam, escrevera simplesmente o nome da ribeira e a palavra coelhos!
Expressiva pintura é aquella do que são as ribeiras do Alemtejo, apenas dignas do nome em parte do inverno, para no verão, na maior parte do anrio, apenas crearem coelhos nos arbustos marginaes.
E como lembrança de saudades do santo prelado, que me honrava com uma consideração que eu não merecia, recordo 'neste momento outro caso :
-- Ora veja este livro, me disse um dia.
Era o das contas do actual convento de Santa Clara, em que havia uma verba de uns trezentos mil reis de doce, comido no dia do Patriarcha da Ordem !
-- E temos de approvar as contas ; isto é d'ellas, terminára evangelicamente risonho, o santo velhinho.
Vate africano ... pag. 93
Acho que a alma de um negro náo é invulneravel aos delicados sentimentos da poesia, e não fora caso novo o poder ser poeta o preto das Mercês.
No século XVI não foi máo poeta um mulato, ou negro, Affonso Alvares, que travou rija peleja com o Antonio Ribeiro Chiado. Extrahida, ha pouco, de um codice da Bibliotneca de Evora a contenda poetico-insultuosa pode ella ler-se na edição das obras do Chiado, colligidas por Alberto Pimentel, Lisboa, 1889.
Da pugna se deprehende que o Alvares metrificava melhor do que o Chiado, e que aos mimos como este :
Quem de si mesmo é escuroinda que faça luar,ha mister de se apalparse quer por o pé seguro ...
respondia de muitos modos, sendo por amostra :
para frade mal te amanhas,porque com tuas más manhasdeixaste mil fanchonos.
Esta edição das obras de Chiado é digna de ser lida.
João de Figueiredo Maio e Lima... pag 96
Do desditoso poeta pode o leitor ver a enumeração de seus escriptos no Diccionario Bibliographico. São raros hoje, talvez por terem sido publicados no tempo da guerra e lá por fora do reino, muitos d'elles. Na Bibliotheca de Evora nao ha nenhuma de suas publicações ; mas na Bibliotheea municipal de Villa Viçosa guarda-se hoje grande numero não só de composições impressas, se nâo de manuscriptas e de ineditas, graças ao cuidado do fallecido Dr. Pousão, que as colleccionou.
Como se allude ao Testamento poetico no corpo d'este livro, e como da geração actual é desconhpcido, aqui se reproduz, bem como um formoso Memorial á condessa das Galvêas, inedito do infeliz prior da matriz de Borba.
Seguem por sua ordem natural : o Memorial depois do Testamento, pois que a este allude com fma graça aquelle :
ODE ou
Testamento poetico e anacreontico do prior DA Matriz de Borba João de Figueiredo Maio e Lima
Ant prodesse volant, aut delectare Poetae. Horat... A. P.
Na solitaria testa já branquejamOs desbotados louros,Que as Musas algum dia m'enramavamCom grinaldas de rosas,E em dourados anneis por estes hombros,Ao desdem espargidos,Eram do vento ategre o desenfado.D'onze lustros ao peso,Á carga enorme o corpo já succumbe,Carunchoso, e quebrado :Ruga senil as faces lavra, e cresta,Sinto estalar os ossos,Vergam as costas, não circula o sangueNa entumecida arteria ;Frio torpor occapa os membros todos,Vam-me caindo os dentesUm após outro, falta o lume aos olhos,Aos olhos perspicazes,Que nos d'outros amantos descobriamReconditos mysterios ;E sob o véo mais denso, e mais escuroDe travessas Nerinas,Os lacteos peitos, os limões de neve.Quando d'amor, e zelos,De susto ou de prazer lhes titillavam.Não, meus socios, e amigos,Não me custa não vêr o sol brilhante,A roxa, a fresca aurora,O iris de furta-côres, o d'estrellasAzul manto da noiteCá, e lá embutido, plantas, bosques,Loura seara ondeandoAo bafejo do norte ; um horisonteImmenso, e dilatado,Onde o pincel apura, esgota as tintas,Toda a arte e natureza ;Não vêr da meiga Lilia as tranças d'oiro,Da trefega CorinaOs gestos, os tregeitos, os acenos.Com que a um tempo enganaSagaz a dois, tres, quatro, e cinco amantes ;Não vêr da terna ElfiraOs nedios braços, os cabellos d'oiro ;Não vêr de Cloris, PhillisOs rubros lábios quando a furto beijamNo baile mãos alheias ;Emfim não vêr... não ver um ar, um riso,Uns meneios suaves,Uns olhos côr do céo, um alvo rosto,Eis o que mais me custa :O gaz celeste, o sacro enthusiasmo,Que me fervia 'nalma,Já se extinguiu de todo ; o arrebatadoGyro dos annos tudoLevou comsigo inexoravel ; tempoAquelle venturoso,Em que eu d 'Elvas as ruas descalçava,C'oa ferragem á ínglezaNa luzidia bota, e quasi sempreA passo accelerado :Quando do infausto Gallo negras pennas,Que outras inda mais negrasJá então m'augurava, o axaroadoMurrião meu compunham ;Quando aurea franja me pendia aos hombros,Purpúrea banda á cinta,Virgineo sabre ao lado, que impio abriaProfundas bréxas, regos,Em beccos e travessas da cidade,E a azul, airosa farda,Obra do insigne mestre, o Nigromante,Em Adonis ou Marte,Me transformava. E agora esta sotana.Da côr dos meus peccados,E azas que o sul a seu prazer meneiaQual ronceira falua,Ou barco d'agua acima com dois remos ;Um chapéu de tres ventas,Candieiro das trevas co'a pombinha,Que topeta com tudo,E diz a todos : -- Alto -- Vade retro : --Enorme horrenda aranha.De que o mesmo S Bento horror teria,Que aos nossos hebreus lusosO seu Moisés tricórnio me figura,Ou moinho gigantescoAo bravo heroe da Mancha. Então que vezesMusico Amphião canoro,Pedras, peitos cruéis tornei mais brandos,Mais doces que o mel d'Hybla,Mais que o assucar do Brasil em ponto.Quantas quantas vezes,Manhosas mães, rapozas sorrateiras,Finas abelhas mestras,Feros dragões, mil Argos de cem olhos,Que guardavam insomnes,D'ouro as bellas maçãs, d'Inacho as vaccas ;Outro Alcides valente,Amansei, enganei com a Ambrsia, o pastoDa mellica Poesia,E engenhoso Mercúrio ao som da flauta,Ao som da minha lyra,Dos Numes dom, adormeci cantando!Nem vós caros Doutores,Jocoso Valentim, sizudo Salles,Avicenas peritos,Da nossa edade Hippocrates famosos,Deoses da Medicina,Nem vós, co'as garatujas TubalensesInfalliveis, heróicosFiltros, venéreos, S. Migueis, balanças.Tudo e toda a PharmaciaPodiam revocar tão bellos temposDe saudosa memoria.Restituir ao pallido semblanteA côr de rosa, e neve,A luz perdida aos olhos, claros dentesAo deslocado queixo, A deserta cabeça povoar-meDe seus antigos louros,Tornar-me, finalmente, á juventude :Nestores de três seculos,Mathusalens de nove já caducos,E sem calor nem forças.Só banhos, e aguas do Jordão remoçam.Quando alta noite sintoBater na velha porta a ferrea aldraba.Cuido que a Parca horrendaJá vem buscar-me, e que me bate á portaC'oa fouce longa, e curva,Impune devassando, e então a que horas !Das leis em menos cabo,A casa, o lar, o asylo, o santo alcaçar,Os penetraes sagradosDo cidadão pacifico, e innocente,Que dorme a somno solto :Ah ! Quando eo Ihe cair nas impias garras.Sabei ternos amigos,Minha ultima vontade : não, não queroQue a triste campainhaPublique aos mais viventes minha morte.Pelos cantos das ruas ;Que em adro escuro, ou ermo cemiterioRepouzem minhas cinzas ;Nem que o irio cadáver seja envoltoEm vestimenta escura ;Nem com funebres cirios, negros vultos,A passo grave e lento,Mudos e cabisbaixos me acompanhem :Quero que a minha amadaC'os dedos de jasmim, piedosa, e meiga,Meus turvos olhos cerre,E co'o avarento véo que ao sol escondeGlobos de neve, e leite.Que o sol beijar deseja, a derradeiraLagrima então m'enxugue,Ao longo pela face escorregandoEm reluzente fio ;Item, que sobre o feretro me ponhamA Lyra, a Penna, a Espada :Que seis louros mancebos revestidosDe tunicas mui alvas,E ornados de odoríferas capellas.Aos hombros me conduzam ;Quero que oito donzellas das mais lindas.Que houver 'nestes contornos,(Tambem de branco, e flores adornadas)Ao tumulo precedam,E que, em vez de canções, tristes endeixas.Ou luctuosas nénias,Tangendo adufes, charamellas, flautas,Me cantem sempre alegresHymnos do meu Camões, versos do Lobo,De Bernardes, e d 'outros,Da nossa antiga, ilustre, douta, honrada,Mas pobre confraria;Que junto d'um loureiro e d'uma fonteO sepulchro me cavem :E não quero que o bárbaro coveiro,Homem sem dó, abutre.De carne morta nunca farto corvo,Co'a ferrugenta enchada,C'o maço funeral, rodeiro e horrendo,Qual d'Hercules a clava.Meus tristes, velhos, e cançados ossosMôa, desfaça, estrua,E a cabeça me quebre ainda em morto,Basta o que basta em vida.Item, mais que os mancebos, e as donzellas,Em tripudios, e dançasAo de redor da campa honrem meu nome,Porque estou livre e soltoJá do cárcer aa vida, tantos malesPerigos e cegueiras.Que a par, e par, despaço a espaço, todosVenham mui mansamenteLançar-me terra, e flores no jazigoE tres vezes batendoC'o esquerdo pé no chão, por FigueiredoBradem tres vezes todos,Dizendo em alta voz ; «em paz descança».A mesma ceremoniaSe fará em meu dia anniversario,Até ao fim do mundo.Que findas as exequias, findo tudo,A donzella mais tenra.Mais moça, mais galante, mais mimosa,D'entre as oito que forem,Á Mareia que, beijando-a,Pranto saudoso ha de verter sobr'ella,Pranto que dar podiaAo morto vida, se tocasse o morto :E, finalmente, queroQue no tranco do proximo loureiroEm caracteres grandes,Porque melhor o viajante o leia,S'escreva este Epitafio : --«Aqui jaz Figueiredo, que em manceboSeguiu armas e lettras ;Não imitou no genio a Homero, e Milton,Na cegueira imitou-os ;Foi das nynfas cantor, cantor d'amores,Cantou heroes e guerras ;Foi sempre ao Rei fiel, temente aos Deoses,Sempre amigo dos homens ;Sempre objecto da intriga, alvo da invejaEm todos os estados ;Quanto lhe foi pesada a vida, agoraLhe seja a terra leve.»
(O Ramalhete, n.º 24, de 28 de junho de 1838. -- Vol. I. p. 190)
MEMORIAL
Á Ex.ª Sr.ª Condessa das Galveias
Se o nome de FigueiredoAo vosso ouvido chegou,-- O vate que pela fardaLonga batina trocou ;E que ao depois conhecendoO pouco ou nenhum proveito,Do tal cambio arrependido,Desfez o que tinha feito ;Sim, condessa, FigueiredoSobre as azas da agoniaCá das margens do DjgebeÉ quem saude te envia ;Quai nas praias TumistanasDoce Ovidio desterrado,Por intrigas e calumnias,Pois assim o quiz seu fado!E se acaso nâo é crimeAnte vós a voz erguer,Um réo por verso, e em versoSua causa defender,Lêde sem medo nem susto,Que isto não é Testamento :Contem materia mais grave,Mas tem egual comprimento !Deixae que comvosco um poucoDesafogue a minha pena,Pois que a toda a parte que olheTodo o mundo me condemna.Qu'importa seja o talentoDo céo dom abençoado,Se o que faz ditosos tantos,Me torna a mim desgraçado ?!...Quanto mais feliz seriaQue heroe digno de memoria,Se nunca tivesse mestres,Nem beijasse a palmatoria !Sei que ha muitos que não sabemAs letras vogaes quaes são,Que dois e tres fazem cinco,Quantos dedos têm na mão ;E vejo-os sempre medrados.Sempre dos mais applaudidos.Sempre de todos honradosE não, como eu, perseguidos!Poucos, d'esta ingrata minaTiram solida riqueza.Está visto que a fortunaPode mais que a natureza.Tambem a arvore da ScienciaHe entre nós prohibida :Quem come d ella algum fructo,Colhe a morte e não a vida.Porque trazia a lanterna,Levou Malco pelas ventas ;Cortou-lhe Pedro as orelhas,Deu-lhe d'uma até duzentas...Eu te conjuro, ó Poesia,Negro demonio infernal,Que me vexas desde o berço :Tu és causa do meu mal !Para dar cabo do mundo,Males assas não havia ?Guerras, pestes, fomes, febresDeste mais, ó Poesia!Maldicto seja o primeiroQue o verso, a rima inventou !Para sempre arda no abysmoQuem tal legado deixou !Vinde, vinde em minha ajuda,Mai prestes, mui diligente,Condessa : a necessidadeNão pode ser mais urgente !Rogai por mim ao Prelado,Os sábios piedosos são ;Horácio teve um Mecenas,Augusto teve um Marão.Não queimei templos no PortoComo os Atheus, Erostratos ;Em Penafiel, Grijó, BragaNão commetti desacatos.Do timido caminhantePondo ao peito uma pistolla,Mais atrevido que humilde,Não pedi forçada esmola.Dizei-lhe quanto julgardesFôr a bem da causa minha,E que a pena diminúaQue sendo réo me convinha ;Que sempre ás minha ovelhasA sancta moral preguei ;O que um christão deve a Deus,E um bom vassallo a seu Rei ;Que malhava e remalhavaNos malhados noite e dia ;Mas só braço de Rei pódeExtinguir-lh'a casta impia!Que fui em todos os tempos(Ah ! Sirva-me isto de abono)Acerrimo, impertinenteDefensor do Altar e Throno;Que os meus crimes só são erros,E é verdade o que vos digo :Que os erros perdão merecem ;Crimes merecem castigo.Sim, fiz negro Testamento,Mas nunca foi approvado ;E o que não vai, o que é nullo,Pode alguem fazer culpado ?Metti em seara alheiaNoviça, inexperta mão ;Fez-me vate a natureza :Não me fez tabellião.Mais, Senhora, vos dissera ;Mas o pobre Figueiredo,Bem como gato escaldado,'Té d'agua fria tem medo !Se eu fôr, como espero ainda,A esses campos deleitosos,Agora, condessa illustre,Em vos gozar mais formosos :Onde passei 'noutra edadeHoras de prazer completas,Onde foram minhas minas(Se ha minas para os poetas) ;Se passando esta tormentaD'infortunios taes e tantos,Inda ahi fôr dar as cartasE também os dias sanctos :Então á banca assentado,Correndo a musa a favoriEm lyra d'ouro afinadaVos farei obra melhor ;Qoe esta que hoje vos offreço,Por mais que trabalhe e faça,Não tem cadencia nem modo,Nem gosto, nem ar, nem graça !Se eguaes o céo nos fez todosE uns crescem mais, outros menosOs fortes são para os fracos ;Os grandes sáo p'r'ós pequenos !D'esta lei da naturezaNunca os entes se desviam :Em suas necessidadesMutuamente se auxiliam.Ao freixo a vide se abraça...Qu'esposos! Que lindo par!D'uvas orna a vide ao freixo,O freixo a vide ergue ao ar !Nem vós para vós nascestes :Sois dos outros, sois de mim ;Sois dus que são desgraçadosComo eu sou e outros assim !Se vos fez o céu benigna,Meiga, gentil e formosa,Augmentai vossos encantos:Sêde, como o céo, piedosa !Quando á janella chegardesPela manhã, destoucada,Fazendo a Aurora vermelhaAnte Vós envergonhada,Ás avesinhas do campo,Que mais cêdo hão de acordar,P'ra Vos saudarem, Senhora,Vosso nome hei d'ensinar !E assim como o naufragante,Salvo da tormenta escura,Devoto, nas barraquinhasMolhadas vestes pendura:Nos portaes da vossa Quinta,D'um torto prego pendente,Emquanto o mundo for mundo,Para exemplo a toda a gente.Velho Clérigo de ceraEm honra, vossa vou pôr,'Num breviario rezandoPor quem é seu Bemfeitor !E na casca lisa e planaDo mais frondoso loureiro,Em letras grandes e grossasDeixarei este letreiro:Ad perpetuam rei memoriam ;Por lhe quebrar as cadeias,O Prior da matriz de BorbaÁ Condessa das Galveias !Assim vejam vossos filhosOutros Almeidas e CastrosLuzirem, resplandecerem,Como os paes, alem dos astros ;Heróes que as Quinas lançaramDo oceano aos reinos da aurora.De quem treme ainda o GangesPor quem ainda o Tejo chora !
N. B. -- Este memorial foi escripto nos fins de 1832 ou principios de 1833, quando o Padre Fr. João de Figueiredo Maio e Lima estava preso no convento de Rilhafolles d'Evora, hoje Seminario Diocesano, por denuncia que da Ode Anacreontiea, intitulada Testamento, dera o bispo do Exempto de Villa Viçosa, D. Fr. Manuel da Encarnação Sobrinho, ao Arcebispo D. Fr. Fortunato.
A Condessa estava em Borba na famosa Quinta do General, que pertencia e pertence ainda á casa das Galveias: era então ovelha sua e foi por sua intercessão que o arcebispo mandou soltar o aaensado.
Ha outro memorial dirigido ao Arcebispo com a data de 15 de março de 1883.
J. Espanca.
« ... O iracundo Bernardo, pag. 97
Parece certo que frei Fortunato de S. Boaventura só era iracundo na politica, e no pulpito, por causa della. Fóra disso, sobre ser homem de muita instrucçáo e de muito saber era extremamente caridoso. Ao que 'neste particular já escrevi nos Esboços chronologico-biogfraphicos dos Arcebispos da Egreja d'Evora mais podia agora accrescentar.
Saira de Evora para Extremoz em Novembro de 1833.
Antes de sair de Estremoz para Elvas, na noite de 23 para 24 de Maio de 1834, deixando para sempre a patria, mandára ir de Evora para aquella villa bastantes livros da Bibliotheca da mitra, hoje publica. Diz a tradição que foram muitos e valiosos: um documento diz apenas: «Venhâo os livros seguintes, que existião no gabinete onde eu costumava escrever :
-- Colleção Ecclesiastica da Espanha, 16 vol.
-- Esprit de S. Thérèse... dous volumes.
-- Annaes catolicos, que logo á entrada da Livraria estão, creio que na ultima estante à mão esquerda de quem entra, e julgo serem uns 18 volumes.
Fr. F. Arcebispo de Evora, Codice C1/1-87 da Bibl. de Evora.
Vá o collega pela rua abaixo... pag. 98
São de um poema heroe-comico inedito, que nos mostrou um amigo, os versos lidos. Intitula-se a Mitra, tem uns cinco ou mais cantos em verso solto. Disse-me o auctor que o não publicará e antes delle fará pasto de chammas. Pedi-lhe que tal não fizesse, porque ha 'nelle cousas que me pareceram originaes, sobre muito cómicas.
Do celebre Desembargador... pag. 98
Já não vive, ha bastantes annos, o notavel rabula, porque parece tel-o sido, mais do que habil advogado.
Um facto conheço eu que bem o demonstra : Ordenára seu testamento, já na vigancia do Codigo civil, por modo e com taes seguranças que os herdeiros, diversos sobrinhos, não podessem esbanjar o quinhão que lhes legava. Pois succedeu que, poucos mezes depois, alguns já não possuiam um metro quadrado de terra, legalmente vendida !
Na sentença contra Maio e Lima vê-se o nome d'elle a assignal-a ! elle, padre tambem ! ...
José Francisco, o corneteiro da Badajos pag. 105
José Francisco de Castro é averiguado que fora corneta de caçadores 7 e entrara em muitos combates na tremenda guerra contra Napoleão. É tambem certo que o governo portuguez lhe votou uma pensão em 1838 e o condecorou com a Torre Espada.
Havendo no facto um quid de duvida, de incerteza, não tanto em respeito ao personagem, como ao celebrado toque do irompin, e havendo outro pretensor a ser o primeiro que entrara a brecha, e não sendo este livro um livro de historia, não é muito que se aproveite o personagem José Francisco, e que se apresente solteiro, e tenha de morrer ás mãos do rival amoroso.
Veja Chaby -- Excerptos historicos tomo IV.
Devem ler se sobre o caso as Rectificações históricas do Marechal de campo reformado, Antonio de Oliva e Sousa Sequeira, impressas em 1860.
Contava-me Pedro Paulo.. . pag. 114
Pedro Paulo de Vasconcellos, por larguissimos annos secretario da camara ecclesiastica de Evora, acceito a muitos prelados, homem de letras gordas, gastronomo que podéra legar uma grande fortuna a uma filha, se a não consumira nos prazeres da mesa. Parece que chegara elle a ser, de facto, o egitimo arcebispo em materia de casamentos. Contam-se muitas anecdotas suas no assumpto, não sendo para esquecer esta:
-- Quanto lhe levaste ? perguntava elle a um sobrinho, de nome Tristão de Vasconcellos.
-- Quatro moedas, respondera o sobrinho.
-- Grandissimo pateta ! Pois não viste que o homem trazia esporas de prata ?
Tratavam de um noivo que viera a Évora cuidar de seu casamento.
Por morte de José Joaquim Ferreira Lobo até poude chamar a si parte do trabalho que o morto devia legar a seu successor, hoje escrivão de alguns casamentos...
Tinha talento, o homem ...
Cubra um veu essa chaga... pag. 115
Sobre os estragos causados dos francezes em Evora compendia tudo a Memoria descriptiva do assalto, entrada e saque da cidade de Evora... impressa por conta do Municipio de Evora 1887.
Alcatifa de Arraiollos... pag. 128
Sem se poder avançar muito na investigação histórica do começo e progressos da tapeçaria de Arraiollos, direi oue vem de longe; porque nos conventos de freiras d'esta cidade de Evora se teem encontrado tapetes muito antigos, sem duvida do século XVII, se não anteriores.
Rivara, o notável filho d'Arraiollos, apenas nos deixou em suas Memorias de Arraiollos estas allusões : Nos Caloiriados do Palito metrico, de Duarte Ferrão :
«Cum Rayollos intrant, dives terra tapetum.»
E fallando nas comedias, ou operas do judeu, Antonio José, diz 'numa d'ellas, que entre a mobilia de uma sala se cobria um caixão com um tapete de Arraiollos.
Da Tinturaria sim ; encontra-se em Rivara uma nota curiosa, que por extensa se não imprime, mas que dá as receitas para as tintas.
Azul, encarnada, côr de rosa e côr de carne, amarella, amarello torrado, vermelho, verde, roxo, côr de pulga, e que termina pelos preços de tal industria :
Um enxalmo bom ... 2$000
Carapuças grandes a duzia ...960
Meias ditas ... 600
Carapuças pequenas ... 480
Tapetes, coistumam medir-se pelas varas de calhamaço, que levam, custa a vara 1$000 a... : 1$200
Rivara, Memorias de Arraiollos, Ms. da Bibliotheca d'Evora.
Viagem subterranea... pag. 137
Comprovando a existência dos subterrâneos da Cartuxa e o quanto elles são alabyrinthados ha um facto, succedido em 1834, que aqui se deve expor:
Haviam-se reunido na egreja dos: Loyos as pratas dos diversos conventos e mosteiros extinctos, para d*ali sairem para Lisboa. Um grupo d'homens de varias camadas sociaes, dos muitos que pelo paiz constituiram então uma nova calamidade publica, exercendo o roubo com mão armada, intentaram praticar ura roubo nas pratas. Falhou a tentativa ; mas dois homens ficaram compromettidos: João Bonito e Joaquim Capateira, tio de um, ha pouco fallecido^ oíficial de dihgencias da Administração do concelho.
Refugiaram- se na Cartuxa e sabido era o facto: por mais tentativas empregadas da auctoridade para os colher á mão, chegando para isso a ir lá grande força de cavallaria 5, que cercava o mosteiro e apertava o cerco, nunca o poderam conseguir !
O Capateira foi mais tarde assassinado em Evora, e o Bonito passou-se a Elvas, onde lareos annos viveu estabelecido com uma loja de comidas e bebidas, até que, descoberto, veio, preso e já velho, sobre um burro, a ser julgado 'nesta cidade.
O que poderemos nós esperar dos nossos confessores ?... pag 138
É materia demasiado sabida esta a que allude o conversar das freiras.
Têm os moralistas antigos e modernos explicado na maxima perfeição tudo, tudo quanto humanamente se possa imaginar no assumpto. E notável é o estudo de taes doutrinas, pelo que em si contem de perverso : a titulo de mostrar para emendar ensinam cousas estupendas ! Desmoralisam !
Ha na livraria do sr. visconde da Esperança um ms., que se attribue ao Padre Antonio das Chadas : Tratado unico do peccado original, que nos cap. 11, 12, 13, 14 e 15, ao tratar da Luxuria 3.º peccado dos capitaes, diz cousas singularissimas!
Aqui, a propósito da conversação das freiras, vae ficar um trecho dos mais honestos em matéria tão porca e suja, como lhe chama o auctor : (cap. 13, n.º 13).
«No tempo do Gentilismo Idolatra tinha-se por coisa tam 'orrorosa q'uma Virgem Vestal cuja castidade estava dedicada ao Demónio, se facilitáse com amante sensual, q era isto tido em caso raro, e se imaginava por agoiro d'algua disgrasa, q estava para succeder. Era semelhante sacrilegio exemplarmente castigado: sem remédio a Vestal era polo Pent. descogulada publicamente com infamia, e despois enterrada viva. Assim pereceram Opia, Opimia, Floronia e outras muitas de q falam as historias. E sendo hoje as Religiosas dedicadas ao Numen verdadeiro ; estando na sua santa casa, sagrado collegio das Virgens, esposas do immaculado íilbo da Virgem, tantas com stimo descaro estam notoriamente tratando por costume obscenamente a amantes libidinosos, o que é sabido até polas recadeiras das portarias, até per Lipos et tonsores da cidade, ou vila onde está o mosteiro, e faz-se de enormidade tam feia tam pouco caso q houve tempo, em q sogeito o qual não tinha Freira, era reputado por vil, e nam 'omem nem de juiso, e a Freira q nunca tinha tido tratamento amatorio, era por isso ultrajada de suas carissimas Irmãs. Já é! »
«A phrase per Lippos et tonsores, que o moralista applicou, foi desentranhada da satyra, em que o mestre Horacio fustiga tremendamente a Rupilio Rei.
«Lippus é adjectivo, e significa o remeloso e doente de vista, e 'neste caso, com mais propriedade, o cego.
«Nas lojas dos barbeiros em Roma 'nesses longinquos tempos (e o costume chegou até nós) corriam mais adiantadas as noticias dos escandalos e defeitos louvaveis. São vulgares as causas, que dão a proeminencia ás lojas d'esses artistas.
«Com respeito aos cegos succede nutro tanto, quer sejam realmente faltos de vista, quer fingidos...»
Sr. F. de P. Santa Clara, em carta explicadora da phrase.
Os engrimanços... pag. 285
Se o meu appellido andára por Nobiliarios parece-me que teriaestudado a heraldica , assim, totalmente ignorado e desprezado de linhagistas, não me atiça a vaidade para ao menos conhecer o brasdo de um fídaljiro de Coimbra, que teve o mesmo appellido: contento-me em crer que será algum escudo enxaquetado de carochas.
Mas, fallando do senhor de Pae-cão, direi que ao tempo devia ser José de Mello de Carvalho, irmão de Alvaro Ferreira da Fonseca de Carvalho, assassinado peJos franceses em 1809, na sua casa desta cidade de Évora. Seria elle quem ali vivesse, ou com a filha ou com a sobrinha, D. Maria Saturnino, que casou com António Coelho de Vil las Boas, de Vianna do Minho, por cujo casamento Pae-câo veio aos Villas Boas. O brasão de armas sobre a porta da casa, no Largo de Santiago, desta cidade é, na verdade, dos Ferreiras e Carvalhos : escudo com uma quaderna de crescentes em volta de uma estrella, e por timbre a ema com uma ferradura no bico.
Parece que andava no morgado a sustentação de duas cegonhas, no pateo do palacete.
Era a fogueira... pag. 303
«Desde os primeiros tempos da medicina se conhece o fogo com muito emprego na medicina, como meio therapeutico.
«Empregou-o Hippocrates na cura de grave epidemia.
«Entre os sublimes aphorismos do referido Hippocrates encontra-se na secção 3.ª aphorismo 6.º o seguinte :
Quequmque non sanant medicamenta ea ferrum sanant: que ferrum non sanat, ea ignis sanat: que vero ignis non sanant, ea incurabilia existimare oportet.
«O que os remedios não curam, cura o ferro ; o que o ferro não cura, cura-o o fogo ; o que o fogo não cura deve reputar-se incuravel.
«Mais de dois mil annos se teem passado desde que Hippoerates escreveu os seus Aphorismos, e ainda hoje o fogo he reputado como o mais poderoso e certo de todos os disinfectantes, e o mais energico dos medicamentos, quando he necessario empregal-o.»
Sr. Luiz Maria Assumpção. Nota ao correr da penna. Codice C/3-20 n.º 9 da Bibl. de Evora.
Lançando ao pescoço do arremetente o laço ... pag. 319.
Por não parecer inverosimil o acto praticado por D. Bruno, saiba o leitor que assim foi que o celebre José Carlos, Cortador, matou em Villa Viçosa, depois de 1850, a um homem, dos varios a quem tal sugeito assassinou, como sabe toda Evora.
Sitio de mortes aquelle... pag. 319
Sitio de mortes, em verdade, o de fóra da Porta da Lagoa, ainda hoje por lá tem, peios muros, algumas cruzes commemorativas.
Ha pouco existia uma, de madeira, no pegão de um arco da Aqueaucto, lembrando o ultimo fusilado em Evora, Joaquim António, um soldado de cavaitaria 5, que ali foi morto em 26 de julho de 1839, sendo seu cadaver levado ao cemitério de S. Antonio no esquife particular do mesmo, pela Irmandade da Misericordia.
Assentos do esquife da Misericórdia folhas 139 v.
A Patulea em Evora ... pag. 363
Foi a traiçoeira morte do valente Pancada, na acção do Aito do Viso, muito lamentada 'naquelle tempo, e como lendaria ficou a morte de Castello Branco pela espada de Galamba.
Consagrou a poesia suas harmonias ao caso triste: como pouco sabido, aqui deve licar um de tres sonetos :
Avança afouto o intrepido Pancada,Do Galamba irmão d'armas tão querido,E morre assassinado, não vencido,Victima de traição, de vil cilada.Voa o Galamba, e c'oa tremenda espadaImmola o assassino, o fementido ;Volta o corcel e ataca destemidoUma força escolhida ali mandada.Os que têm d'esperaI-o a ousadiaD'um golpe os faz sumir na eternidade,E só deixa com vida a quem fugia.Marte pasrnou de tanta heroicidade,Desmaiou de terror a tyrannia,Suspirou e sorriu-se a Liberdade.
F. P. Celestino Soares,
O valente alferes, Antonio Joaquim Pancada, fôra, realmente, assassinado por Manuel de Oliveira da Silva Castelfú Branco, tenente coronel de cavallaria, que em vez de medir com o moço a sua espada, lhe desfechou á queima roupa uma pistola e o matou instantaneamente.
De tal modo foi o golpe vingador da espada de Antonio Manuel Soares Galamba, que ainda hoje os homens doesse tempo dizem que lhe abriu litteralmente o craneo, ao Gastello Branco.
Seguem-se agora documentos ineditos, que copiámos dos orighiaes existentes na livraria do sr. visconde da Esperança, e que 'neste ponto devem ficar, para servirem a quem um dia haja de escrever a historia de Portugal d'aquelle tempo :
« Sr: -- Para conhecimento de V. S.ª e dos Illustres Cavalheiros que a V. S.ª éncarregão de me patentear os sentimentos de que so achão animados, tenho a honra de remetter a V. S.ª a copia do officio qoe iromediatamente dirigi áo Coronel Barão de Rezende Commandante da Força aqui estacionada, e por ella verão V. S. que eu empreguei a lingoagem propria, e que sem reserva me expliquei para com aquelle Coronel, para conseguir o fim de ser conservada a ordem, a paz, e evitar a efusão de sangue que tão sensivel me seria ; pois de todo o meo coração amo o povo desta cidade, e pela sua segurança e bem estar me tenho sempre disvelado.
São passadas quasi duas horas depois que lhe officiei, e ainda não recebi resposta, mas creio que na madrugada do dia d'amanhã marcha com a força, e posso asseverar a V. S. que já requisitou transportes para conducção das bagagens; e mui prudente seria que este benemerito povo tivesse o sofrimento d 'esperar a sahida d'aquella Tropa antes do pronunciamento que tem resolvido fazer, o quai sendo dirigido por pessoas tâo beneméritas be de esperar que não seja acompanhado d'excessos para que propendem os menos prudentes, mas que me 11songeo de crer hão de ser sabiamente evitados.
Aproveito esta occasião para dirigir a V. S. os mais sinceros agradecimentos pela generosa e franca attenção que comigo tiverão nesta melindrosa crise ; Conducta própria de cavalheiros Eborenses a quem sempre serei reconhecido. Deos Guarde a V. S.*. Evora ás seis horas da tarde do dia 23 de Maio de 1846. 111. Sr. Dr. António José da Cunha e Sá. O governador civil, José Francisco Agnello Gazo
P. S. -- Depois deste feito recebi o officio constante da copia n.º 2.»
«Illustrissimo e Excellentissimo Senhor. O Povo desta cidade por via de seus representantes escolhidos dentre os cavalheiros, homens de letras e proprietários acaba de fazer- me saber qun está na firme resolução de unir os seus votos aos dos habitantes de grande numero dn terras d 'este Reino que se tem pronunciado contra o Ministério já por sua Magestade demittido: O Povo por via dos mesmos representantes me manifesta que elle não levanta um grito de rebellião que o possa envergonhar, por isso que a sua primeira voz he pela Carta e peia Bainha, manifestando ao mesmo tempo a sua desapprovação aos actos d'aquelle Ministério. Pede-me que eu leve á presença de V. E..* a manifestação destes seus sentimentos e que seja o medianeiro para que a Tropa do Commando de V. Ex.* o não aggrida, quando se declarar. Nestas circumstancias excepcionaes, eu náo duvido sei- o ; porque salus populi suprema lex «s^ e o derramamento de cangue nesta crise não seria mais do que uma calamidade de que se tornaria unicamente responsavel quem em pura perda o fizesse soltar. Não pretendo eu partilhai a, e estou certo que os Illustres Militares, que tem a fortuna de obedecer a V. Ex.* não quererão concorrer para que o vertão os Eborenses no mesmo monmento em que proclamação Rainha e Carta.
Espero, pois, que a resposta de V. Ex.* a este meu officio seja tal que a satisfaça aos desejos de que eu e V. Ex.* estamos animados para manter a tranquillidade publica.
Deus Guarde a V. Ex. Evora, 23 de Maio de 1846. 111.»* e Ex.mo Sr. Barão de Resende. O governador civil: José Francisco Agnello Gazo. Está conforme.
Secretaria do Governo Civil de Evora, 23 de Maio de 1846. O secretario geral João Procopio Tavares Clere.»
«III.mo e Ex.mo Sr. A expressão de Rainha e Carta manifestada no officio que V. Ex.a teve a bondade de neste momento me dirigir em nome dos benemeritos representantes escolhidos pelo Povo desta cidade, foi acceite por mim, bem como pela officlalidade das forças do meu Commando com a maior satisfação que pode imaginar, por ser essa a expressão dos nossos sentimentos. Tanto V. Ex." como, em geral, a população desta cidade, depois de muitos annos que tenho tido a honra de commandar o Hegimento quinto de cavallaria,tem observado a disciplina em que sempre o tenho conservado, e sua boa harmonia e comportamento para com estes habitantes.
O meu dever como Militar, e mesmo minhas intenções nunca forão nem são d'aggredir o Povo, e sim em sustentar a Ordem Publica, em beneficio dos mesmos habitantes, como mesmo na crise presente se tem conhecido. Creia, pois, V. Ex" que se o Povo desta cidade quizer por eâeito de manifestação publica unir o« seus votos aos d*outras Povoações dVste Reino, visto os dois objectos sagrados que invocão serem Rainha e Carta, que nenhuma oppqsição encontrarão na Tropa, a qual, como disse, partilha os mesmos sentimentos.
[...]
de esperar) nos forcem a combater, como pela vossa geneosidade e moderação na victoria.
Ás armas, cidadáos! Ás armas !
E vós, soldados, que também sois cidadãos !
Vós vedes de uma parte a Nação inteira, vedes com ella a rainha (pois onde na de estar a cabeça senão onde está o orpo?) e de outra parte que vedes? Uns, poucos de Ladrões, inimigos implacaveis da Patria e da liberdade.
Hesitareis ainda sobre o partido que deveis tomar? Por sustentar esses monstros voltareis vós contra a vossa Pátria as armas, que ella vos confiou para a defenderdes?
Levantareis sobre nós o braço parricida ?
Não; vós não sois capazes de tão execrando crime.
Uni-vos comnosco : todos somos irmãos, todos somos Portn lezes 1
Viva S. M. a Rainha !
Viva a Soberania da Nação ! e as Instituições !
Eleições livres e Guarda Nacional !
Abaixo os Ladrões!
Abaixo os excessivos tributos !
Membros da Junta
António José da Cunha e Sá. Ignacio Fiel Gomes Ramalho. Balthasar C L. de Abreu e Vasconcellos. José António de Oliveira Soares. Carios Miguel da Cunha Vieira.
Guarda Nacional
Commandante-- Marcos Torres Vaz Freire. Major -- João Pedro Carneiro. Ajudantes António Manuel Gançoso. Manuel Severino de Almeida.
l.a Comp.a -- capitão, Balthasar Peres Ramires.
» -- Tenente, Joaquim António de Calça e Pina.
» -- Alferes, António Feliciano Varella.
2.a Comp.a -- Capitfto, Joaquim Maria Torres.
» -- Tenente, Manuel da Silva Parada.
» -- Alferes, Francisco Cosme Varella.
3.a Comp.a -- Capitão, Joaquim Máximo Calça e Pina.
» -- Tenente, José Elias Varrella Ramalho.
» -- Alferes, Mattos.
4.a Comp.a -- Capitão, Joaquim José Vieira.
» -- Tenente, Manuel José Rodrigues Guimarães
» -- Alferes, Manuel José da Costa Braga.
5.a Comp.a -- Capitão, João de Centeno Mexia Lobo.
» -- Tenente, Thiago da Silva Monteiro.
» - Alferes, José Ramos.
6.a Comp.a -- Capitão, José António da Silva Leitão.
» -- Tenente, Jacintbo Maria Torres.
» -- Alferes, Francisco Costa.
Maria da Fonte... pag. 364
Existiu ou não existia esta mulher no Minho em 1846?
O grande litterato fallecido, ou antes, suicidado, Camillo Castello Branco, que publicára om livro sobre o caso, depois de grandes averiguações, parece acceitar a existência da mulher, uma das revoltosas, das que enterraram um cadáver em certa egreja.
Dá-nos elle a Maria da Fonte como uma mulher perdida, bêbeda e michela de soldados; mas, tem um tanto de poético o nascimento d'ella, e por isso me parece bem deixar aqui aos que não lessem o livro de Canmillo, a origem da mulher e do nome: foi uma exposta, achada junto a uma fonte, com esta letra:
Eis-me exposta junto a lymphaQue aoui mana d'este monte,Serei della a clara nympha.Serei Maria da Fonte.
Se isto não é pura phantasia, é, pelo menos, poetico.
Pae dos Bestas... pag. 373
Mal pensa o leitor quem seria o Pae dos Bestas. Era nada menos do que o arcebispo, D. Francisco da Mãe dos Homens Annes de Carvalho, a quem os patuleas, pelo facto do sobre nome d'elle se prestar ao trocadilho, chamavam em Lisboa e em Evora : Mãe dos Homens, pae dos bestas ! É histórico: foi-me certifícado pelo illustre auctor do Diccionario Bibliographico Portuguez, Innocencio Francisco da Silva.
D. Bruno ... pag. 373
Como vimos, D Bruno morreu sendo capellão da Misericórdia, desde 10 de Outubro de 1834.
Em 24 de Janeiro de 1836, tendo por fiador João de Santa Anna, morador á Porta Nova, passou a ser Thesoureiro da Egreja da Misericórdia.
Em 7 de Outubro de 1841 voltou a ser capellão do coro, logar de que a morte o demittiu em 1865.
Foram-me fornecidos estes esclarecimentos pelo sr. Reverendo Gabriel Maria Ferreira, actual e intelligente secretario da Misericordia.
Para terminar este trabalho litterario, deve-se aqui dizer ao leitor que a parte essencial d'este livro é perfeitamente historica : D. Bruno estava preso em 1834k, quando o decreto de D. Pedro IV extinguira as ordens religiosas em Portugal.
Fora seu crime o acharem-lhe na ceila uma mulher, com quem vivia.
Christovam da Costa é também historico.
LAUS DEO.
Appendix A
O sr. Ignacio de Brito Pardelha, felizmente vivo. Teria ao tempo 21 annos.
Delle, diz o Ramalhete selle, diz a copia da Ode no processo, que o condemnou. A segunda é mais sensata.
Já se foram muitos : vivem ainda os srs. : Ignacio Fiel Gomes Ramalho. Joaquim António de Calça e Pina. Manuel da Silva Parada. Alferes, Mattos (J. M. de Sousa).
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