OBRAS COMPLETAS DE A. F. DE CASTILHO
Revistas, annotadas, e prefaciadas por um de seus filhos
2.º
A CHAVE DO ENIGMA
NOVA EDIÇÃO
LISBOA
Empreza da Historia de Portugal
Sociedade editora
LIVRARIA MODERNA
R. Augusta 95
TYPOGRAPHIA
45, R. Ivens, 47
1903
A chave do enigma
"Áquella que já não sente, pendura com mão tremula n'um ramo do seu cipreste esta pequena corôa"
"O Autor."
A CHAVE DO ENIGMA
Dezembro de 1861
Digam embora que me biographei; vou escrever uma pagina da minha vida.
Se mais ninguem a lêr, lêl-a-hão os meus amigos. Ella tambem, êrma de interesses grandes, desenfeitada de estilo, e só attendivel, se o fôr, por verdade e affecto, aspira unicamente a captivar a attenção dos poucos para quem um murmurio de folhas n'um retiro de estio, e de vez em quando uns gorgeios ou pios de duas aves que se entrereclamam emboscadas, supprem conversações, leituras, e até pensar.
Emfim, se nem para os meus intimos valer o que eu tenho de bosquejar, muito saudoso de tempos que lá vão, ficará sendo só para mim, e para quem m'o inspirou; ¡ah! quem m'o inspirou já m'o não póde lêr, mas por ventura o ouve. Será um devaneio, e um solilóquio; será uma folha sôlta de uma deliciosa arvore longinqua, hospedeira minha ha muitos dias; folha que uma viração despegou, volveu nos ares, me atirou á fronte, e me lançou aos pés, para ahi fenecer esquecida.
Não vale a pena de mais prologo. Nem tanto me está parecendo agora que fosse necessario.
I
Antes de tudo, releva conhecer o individuo. Não é empenho muito facil; mas tentemos.
Levanta-se logo a primeira difficuldade d'este capitulo na averiguação da identidade:
Reflicta cada um comsigo mesmo n'este grave ponto: ¿a repetição de nome, a similhança das feições, a conservação, com mais ou menos mudanças, da indole primitiva, dos gostos, e das relações activas e passivas com as pessoas e coisas do mundo externo, bastarão para que, em boa philosophia, um homem qualquer se repute unidade consoante, e unico indestructivel no meio da metamorphose universal? ¡Embaraçoso problema!
O espirito immaterial e immorredoiro quer, por instincto, por egoismo, por fé, acredital-o; mas o estudo da Natureza, e a propria experiencia quotidiana, desmentem em boa parte essa presumpção.
O individuo não é só a alma; o corpo que a reveste, a serve, e tantas vezes a domina, é mais que sujeito a continuas e espantosas variações; renova-se incessantemente, perecendo e renascendo a cada instante; a sua carne de hoje era ainda hontem vegetaes, ruminantes, aves, peixes, agua nas fontes, gazes na atmosphera, calorico no sol, terra debaixo dos pés, e electricidade sabe Deus por onde; congregaram-se essas myriadas de particulas... existiu; ámanhan partirão, todas ellas destacadas para novas combinações e destinos, sem que o espirito lhes haja sentido a fuga, porque outras particulas, accorridas do universo, terão vindo rendel-as sem estrondo nem abalo.
N'este sentido cada individuo é simultaneamente filho, irmão, e pae, influidor e influido, conservador, destruidor, modificador, herdeiro, usufructuario, e testador, de quantos entes sensitivos, vegetativos, inorganicos, imperceptiveis, imponderaveis, são, como elle, parcellas componentes do planeta em que elle se proclama senhor e potentado.
Mas se esta desidentificação incessante do corpo escapa ás nossas percepções, por não apresentar de hora para hora mudanças apreciaveis no ser, no sentir, e no pensar, já assim não é quando nos outros, e em nós mesmos, confrontâmos a infancia com a puericia, a puericia com a adolescencia, a adolescencia com a virilidade, a virilidade com a velhice, a velhice com a decrepidez; ou, supprimindo os graus intermedios para maior evidencia, a caducidade com a madureza, a madureza com o desabrochar no berço.
¿Que ha ahi de commum?!
Unicamente o nome, accidente impessoal, insignificativo, nullo.
O corpo é manifestamente diversissimo, e em tudo outro; e com o corpo outro e tão diverso, outras e diversas egualmente são as faculdades intimas, outro e diverso o sentir, o querer, o recordar, o ambicionar.
Não são épocas de uma vida; são vidas verdadeiramente distinctas, talvez contrarias, que se encadeiaram por um trabalho simultaneo e occulto da Natureza e da fortuna, dos successos e de nós mesmos.
É por isso que o louvor ou vituperio, a recompensa ou o castigo, conferidos tarde, conteem sempre mais ou menos, uma injustiça distributiva; e talvez duas: preteriram aquelle que fez, e já não existe, e vão-se dar ao que existe mas não fez. ¡Que de vezes se não haverá suppliciado um justo pelo malfeitor que annos atraz o precedêra, e nada mais lhe legára que o seu nome e umas parecenças no semblante!
A solidariedade do homem comsigo, em remotos prasos da existencia, é pois tão infundada, como a de um individuo com outros, com quem nenhuns vinculos o prendem, e que operam, independente cada um na sua esphera, como elle na sua propria.
D'aqui vem que, sendo altamente suspeita de romance toda e qualquer historia que se escreva de um personagem, ou de um povo (ás vezes remotissimos em logar e tempo), sobre tudo quando o narrador pretenda assignar como causas aos successos o que se passou sem testemunha em tal ou tal coração, em tal ou tal espirito, pouco menos se eximirá de similhantes suspeições a noticia que o homem mais sincero pretenda transmittir-nos de si mesmo. «Escreve o seu preterito» -- dirão os benevolos; mas escrever o seu preterito ¿não é escrever já de outrem?
Demais: ¡quantas perplexidades! ¡quantas conjecturas temerarias! ¡quantas supposições de boa fé, mas erroneas, quando ao clarão interrupto de reminiscencias enfraquecidas pretender levantar do pó as flôres, e os espinhos que n'elle se converteram, reedificar edificios, sobre os quaes se levantaram edificios novos, insuflar vida a sombras, resuscitar o coração de outr'ora, e achar a harpa interior com todas as suas cordas e a mesmissima afinação!
São estas, para quem bem o pensar, umas difficuldades, e tambem uns desenganos, e umas tristezas muito grandes. Nunca tão claro o senti, como ao reler agora este pobre livro. Forcejarei todavia por trazer á vossa intimidade, meus amigos, o autor d'elle, se ainda me fôr possivel, depois de tão apartados um do outro.
Um bem que ha n'esta desidentificação, n'este apartamento dos dois "eus", é que, se algum bem me fôr necessario dizer do que foi, já ao que é se não poderá carregar em conta de vaidade.
II
Presupposto, como bem é de razão, que a Providencia fada para um destino especial a cada um dos que vimos a este mundo, ¿para que nasceria eleito, ou precito, um menino que ha hoje sessenta e um annos desabrochava em plena luz, e recebia um nome que havia de ser meu? Cuido não me enganar muito affirmando, que simples e exclusivamente para haver ahi lá para o diante mais um cantor de affectos.
¿Que aproveita ao Pae da Natureza que haja mais um amante, mais um cantor? Nada sem duvida, pois lá tem em roda de si, para o amarem e cantarem, os seus Anjos; mas no seu systema de harmonias, entraram tambem os gorgeios dos passaros cá em baixo, musica das florestas e do oceano, a voz suavissima da mulher, e os canticos do poeta.
Assim como nem tudo na terra são seáras e frutos, nem tudo na humanidade lhe prouve a Elle que fosse laborioso e productivo no sentido grosseiro e restricto da palavra, como presumem economistas.
Emquanto o cavallo peleja, o boi lavra, a ovelha elabora o leite e a lan, um insecto o mel, outro a seda, plantas a saude, minas os metaes, ha boninas que só alegram e perfumam; ha murmurios no ar, e visões coloridas no ceo, que só recreiam: ha pedrarias scintillantes, que só adornam; ha balsamos, que só rescendem; ha o rouxinol para idealisar os mysterios da noite; ha no eremita a oração muda que se exhala para as alturas como aroma; ha na alma que sonha, miragens estereis, mas voluptuosas; e ha, no sonhar perenne do poeta, com que pague de sobra a seus irmãos as poucas espigas que rebusca das ceifas, os quatro palmos de solo em que se alberga, a agua da fonte commum em que se dessedenta, e o ar de que aspira reclinado o seu quinhão, para o exhalar convertido em melodias.
Fadada vinha pois, segundo cuido, aquella creança só para poeta, e poeta unicamente de branduras. Para a realisação do horóscopo se entendeu a Fortuna com a Natureza, como para o diante vim a reconhecer, quando, passadas as angustias da preparação, que assaz foram desabridas, e porventura insólitas, pude, chegado ao alto, abranger com um relance todos os pontos percorridos, vel-os, por effeito da distancia, aproximados, e descobrir-lhes então finalmente o systema e a harmonia.
III
Foi a infancia do innocente, que eu ainda me recordo bem de ter conhecido, rosada, doirada, chilreada, alegrissima, como quasi todas as auroras. Mas os penates do seu berço haviam sido na cidade; e os passaros cantores não se criam e educam bem senão pelas amenidades tranquillas e scismadoras desses campos.
A ser verdade que a sciencia, com a imposição das suas mãos escrutadoras sobre uma cabeça, pode prognosticar o que a organisação interior contem de germes intellectuaes e moraes, capazes de grande producção, se as circumstancias lhes favorecem o desenvolvimento, parece-me que, desde que essa previdente fada humana, -- a sciencia -- annunciasse uma indole poetica, a sociedade mesma deveria tomar á sua conta essa nova indole privilegiada; e a fim de a pôr no mais seguro caminho para os seus destinos, fazel-a crear, o mais que possivel fosse, no seio da Natureza, sobre a terra larga que produz, ri, e canta, e debaixo do ceo que inspira, brilha, enamora, e enleva.
As forças do camponez, as graças de saude da camponeza, envergonham os enxames de frivolos e ephemeros dos grandes focos de população, ¿E porquê? A causa não deve ser outra senão, que das barreiras a fóra, longe do alcance do immenso carcere, se vive mais conchegado com a Natureza, mais debaixo da Mão invisivel, mas tepida e suave, do Creador.
Tudo na cidade é artificial (¡e de quão ruim e desentoada artificialidade as mais das vezes!). São prosaicas as occupações; prosaicos e arriscados os projectos e os desejos; apertadas, escuras, doentias, as vivendas; tolhidos os trajos; acanhadas as perspectivas. Se se escuta uma ave, é mais a queixar-se do captiveiro em que definha, do que a chamar pela companheira, que não tem, para fabricar berço a filhos, que nunca ha-de ter. Se se vê uma planta, uma d'estas mudas filhas de Deus que tanto sabem e dizem, tão bem florescem e medram na sua pacifica republica, é enfézada e triste na prisão de um vaso, debruçada para uma encruzilhada immunda lá em baixo, ou alando-se n'um saguão á espreita do sol quando elle atravessar fugindo lá por cima pela estreita fita do céo, do céo immenso em toda a parte, e aqui só aos retalhos e sumiticamente repartido, ¿Que é da viração balsamica por estas ruas? ¿Que é da madrugada com os seus descantes? ¿o meio dia com os seus guardasóes verdes e movediços de trinta braças? ¿o crepusculo com as suas despedidas saudosas? ¿a noite com a sua orchestra suave tão grata ao amor, e com que se dão tão bem os somnos, os sonhos, as vigilias? Tudo isto, e infinitamente mais, tudo quanto era Natureza, desterrou-o a mão do homem quando desarraigou as arvores para plantar os seus estirados colmeiaes de pedra; desterrou as relvas, e as seáras, para assentar as praças; calçou as ruas, que não despontasse olhinho verde; multiplicou as fabricas, o commercio, o estrondo, para que os harmoniosos filhos do ar só muito por alto, e fugindo, se aventurassem a atravessar tão desmedida e nevoenta cratéra de prosa, de cuidados, de fadigas, e de desgostos.
Longe de mim negar puerilmente ás cidades suas vantagens sociaes; digo só que para a poesia se não fizeram ellas, e que, se n'essa frágoa algum engenho poetico resiste, se ahi canta, nunca ha-de ser tanto, nem tão bom, nem tão innocente, nem tão perfumado, como seria sem duvida nos campos; e apostaria eu uma hora de vida aldean, e até casaleira, contra dez annos bem medidos de um vegetar em côrte (apostaria e ganhava), que tudo quanto mais deliciosamente cantaram poetas em cidades, se elles nol-o quizessem ou soubessem declarar, das suas reminiscencias ruraes, porventura remotas e meio apagadas, lhes proveio.
De Virgilio só tiraria eu provas sobejas, irrefragaveis, se para coisa tão intuitiva fôssem ellas necessarias. Aquelle Virgilio, que florescia em Roma para coroar de gloria Cesares e deuses, tinha as mais vivazes raizes do seu genio, tão suavemente melancolico, longe e bem longe, onde ninguem lh'as enxergava: pelos cômoros, de murtas da aldeia de Andes, pelas margens do Mincio ciciadas de cannaviaes.
Redescendâmos de tamanho homem ao pequenino de quem iamos... historiar não, que lhe não sabemos historia, mas simplesmente conversar.
IV
Importava que lhe chegasse com cedo a iniciação campestre. Com as impressões iniciaes se cunha a feição caracteristica de muita alma, se não fôr de quasi todas. Bem estreado aquelle, a quem as primeiras ideias do mundo exterior, puras e amoraveis, advieram afinadas pelo instrumento que a Providencia lhe armára dentro. Isso ao menos teve elle em seu favor.
Uma queda, que por pouco lhe não destruiu a vida logo no começo, foi seguida de resultados assustadores: pallido, descarnado, abatido, pareceu que poucos passos mediria do berço á sepultura. Uma noite acorda suffocado; golfa sangue em torrentes; sobresalta-se a casa; acredita-se que já não tornará a amanhecer-lhe; acodem os medicos; resolve-se como ultimo e unico regresso fuga precipitada para o campo.
Ao rasgar do dia já transpunha as portas da Capital, reclinado no regaço materno, rodando a carruagem tão vagarosa e precatada, que facil se adivinhava ir depositaria de uma existencia que ao minimo abalo se esvahiria.
Tanta coisa proxima e de vulto se me tem desluzido da lembrança, e ainda aquella noite angustiosa, e aquella manhan suavissima, aquella morte pranteada, e aquella resurreição de alleluia atravez de fragrancias, sombras verdes bordadas de oiro pelo sol, e emboras dos passarinhos, me estão impressionando como presentes. Não sei, nem ha já quem me diga, a quantos, nem em que mez, nem em que anno, fôra aquillo; o que sei é que todas as copas estão folhudas, e muitas floridas; que tudo quanto vem vindo para nós por um e outro lado do caminho ri contente, como em domingo de festa: as casas de quinta com as suas varandas e vidraças illuminadas do sol novo; bosques ociosos debruçando a cabeça por cima de um muro amarello para nos espreitarem; a porta vermelha entreaberta de uma horta viçosissima; aqui piteiras esguias e silvas recortadas nos cômoros; adiante estatuas, e vasos de marmore lavrados; um oiteiro com o seu rebanho a fluctuar, e lá no cimo um moinho bracejando e cantando no trabalho, emquanto o dono á janellinha escuta ocioso a viração de Deus que lhe está chovendo pão lá dentro.
Notava eu, em meio d'este paraizo, lagrimas nos olhos de minha mãe, e não as comprehendia; deviam ser de commoção.
Minha mãe tinha alma poetica; (lá coração poetico todas as mães o teem). Se a tivessem apparelhado com educação e instrucção apropriadas, poderia ter escripto deliciosamente; florejou sem cultura, e sem saber que florejava. Nos festins de familia, quando a saude dos seus, a presença de quantos lhe eram caros, e a prosperidade da casa, a exaltavam, improvisava versos faceis e melodiosos, em que scintillavam faiscas de talento, e certa graça natural; pareciam aquelles uns meros reflexos involuntarios do seu contentamento intimo; e eram; mas o contentamento intimo só tem resplendores taes n'um espirito de eleição.
Meu pae, a quem a severidade da sciencia e a supremacia da razão não deixavam logar para ser poeta, que não tinha sequer nascido com a organisação propria para isso, mas que, pelo complexo de outras suas qualidades eminentes, era uma das pessoas mais proprias que eu nunca vi para reconhecer, aquilatar, criticar, e dirigir poetas; meu pae, costumava repetir que, se minha mãe não tivera sido obrigada a repartir todas as suas horas pelas occupações domesticas, e toda a sua poesia nativa pela educação dos filhos, se fôsse uma cenobita, por exemplo, com poucos livros, muito remanso, e a Natureza, por certo deixaria de si boa memoria para entre as escriptoras portuguezas.
Deviam ser logo aquellas preciosas lagrimas, com que minha mãe me rebaptisava renascido, menos causadas do manso alvoroço festival de terra e céo em primavera, que da lucta em que lhe iam, no coração, o temor e a esperança.
A immensa viagem, que não passou de uma legua, deveu lançar-me no espirito delicado e absorvente, os primeiros germes dos meus, já agora indestructiveis, amores, para com as lindezas do universo.
V
¿Conheceis, para além do arvoredo do Campo Grande, no retirado sitio do Paço do Lumiar, aquelle edificio, nobre sem fausto, que faz frente ao pequeno Largo do Poço, e que talvez communicou á povoação o seu nome aristocratico? Eis ahi o termo da piedosa peregrinação de minha mãe; eis ahi onde a reflorescencia me aguardava, e com ella novas e abundantes sensações, das que a minha indole ia absorver com avidez, e assimilar, para fructificar alguma poesia em vindo a quadra.
Recebeu-nos com alvoroço, e com affecto patriarchal nos hospedou, a familia, ainda nossa parenta, a quem a vivenda pertencia, familia ainda mais ligada comnosco por laços de amisade, e de leal e não interrompida convivencia. Compunha-se de mãe, uma filha entre doze e treze annos, e seu irmão pouco mais idoso.
Amalia (era o nome da minha pequena prima) possuia, com o semblante mais vivo e sympathico, a indole mais expansiva e carinhosa; os seus olhos, cujo extraordinario brilho eu estou ainda admirando, eram dotados de um magnetismo precoce; é tal, que até os de uma creancinha, como eu, se pasciam n'elles com delicias; mas não era ainda assim nos olhos que estava o seu maior feitiço; a sua voz tão suave, como nunca depois ouvi outra alguma, sahia por uma bocca tão singularmente pequenina, que podéra quasi quasi haver tentação de a extranhar á primeira vista, se não parecesse, com o seu sorriso habitual, uma rosinha das mais pudibundas a entreabrir-se; era um ósculo perpetuo da innocencia.
Amalia, com a superioridade que lhe conferia sobre mim a differença dos annos, quiz tomar-me desde logo maternalmente sob a sua protecção, prohibindo-me, por interesse na minha saude, o participar dos brincos tumultuosos, para os quaes seu irmão me provocava. Meu primo era já então militar por genio; a barretina empennachada, o boldrié lustroso, a espada de madeira, as dragonas, e a banda de official, com que a si mesmo se despachára, faziam-n-o preferir aos passatempos sedentarios, mais conformes aos gostos de sua irman, e á minha fraqueza, o estrondo e o movimento.
D'ahi provinha que as mais das vezes, emquanto elle marchava a passo dobrado ao som de um tambor imaginario, esgrimia contra uma estatua, ou degolava alguma papoila trémula, Amalia e eu, pacificamente sentados muito mão por mão a uma sombra do jardim, toucavamos de minhonetes e amores-perfeitos as suas bonecas, emmolhavamos ramalhetinhos para nossas mães, e interrompiamos a cada momento a esmerada tarefa, logo que uma abelha doirada, uma borboleta branca ou azul, ou um pio de ave escondida, como que por malicia, entre as folhas, vinham suscitar a minha curiosidade, e accender-me exclamações de maravilha e contentamento. Minha prima gosava-se da minha alegria, e tinha vaidositamente o ar de ser ella quem me estava fazendo as honras da primavera.
Dissereis, se reparasseis, como eu, na complacencia com que ella contemplava, ora o seu jardim tão formoso, ora o seu priminho tão attento, que era uma poetisa desvanecida com o effeito do seu ultimo poema n'um ouvinte encantadissimo; e que tudo aquillo que eu amava no seu jardim, os arbustos enfeitados, os ninhos palreiros, os insectos volteantes, as aguas harmoniosas, tudo ella tinha feito, ou pelo menos aconselhado e pedido a um Anjo feiticeiro, feiticeiro como ella. Eu quasi que assim o acreditava; se me tivessem dito que ao seu mando podiam rebentar das pedras lyrios e rosas, ia pedir-lhe esse prodigio como a coisa mais natural de todo o mundo.
Creio que nos amavamos; mais que no sentido da amisade; mais até que no sentido do amor; ¡no sentido do paraizo terreal, quando a humanidade vinha despontando resplandecente de innocencia!
Amavamos de certo; posso affirmal-o pela viveza e saudade com que estou, agora mesmo, sonhando tudo aquillo.
Não sei se o coração me latejava; sei que me palpita agora com a maior força; sei que dera eu hoje o throno do Celeste Imperio, e todos os thronos ao mundo, e até a gloria de Homero, e de, todos os poetas, pelo revivimento para mim de tal primavera com todas suas circumstancias, embora com a certeza de vir eu proprio a murchar, e destruir-me com a sua ultima flôr.
VI
Todos os ridentes allegorisadores da antiguidade falaram de um Cupido filho de Venus, armado de fogo e settas, cruel e suave ao mesmo tempo, incoercivel e fugitivo como os sonhos. Existe esse, não ha duvida; mas ha outro amor, podéra eu affirmar-lhes, que nasceu do casamento de uma açucena com o zephyro; que mesmo suspirando está a rir; que sóbe em espiraes melodiosas para o ceo até se perder de vista, mas não foge; reapparece, e redescende fiel ás mesmas amenidades d'onde levantára o vôo. Não fere, nem envenena; encanta. Não accende fogo para deixar cinzas; brilha na alma como sol. Não se rodeia de aves de agoiro, nem de sonhos temerosos. Não desvela as noites, já com prazeres instantaneos, já com delirios, e arrependimentos contumazes, mas se imbebe na andorinha do beirado para nos acordar cada ante-manhan com as alegrias puras que ella sabe. Não cura de ciumes; quizera que todos amassem como elle. Não é um amor concentrado, exclusivo, incompleto, que só põe a mira n'um objecto caduco; é outro amor profundo e infinito como a Creação, com cujas maravilhas, maravilha elle proprio, se renova; a sua venda, se a tem, não escurece; é toda de brilhantes diaphanos e prismaticos, que redobram os prestigios do Universo. É o primogenito de todos os amores, e o que a todos sobrevive. É o que serviram, adoraram, e nos ensinaram a adorar, sem nome, todos os grandes poetas, desde Orpheu até o "Thomaz dos passarinhos". É o que a virgem mais ingenua está sonhando voluptuosa, quando absorta suspira, e parece triste. É o que á mente do religioso levanta escadas floridas para o Empyrio. É o que annuncia, como boa nova, ao caduco, uma arregaçada de saudades, um chorão, um gorgeio estivo, e prateados raios da lua para cima da cova. É, em summa, o que aos impotentes da infancia segreda tantas coisas ineffaveis que os alvoroçam, e de que o outro amor, em chegando, ha-de receber porventura muita herança. Tal era a mysteriosa divindade que presidia aos nossos passatempos, sem que eu então a adivinhasse.
Amavamos pois decididamente.
VII
Vigiava-nos inquieta, suspeitosa, sollicita, a mãe de Amalia... Não riais: o seu coração materno tinha razão; um coração materno tem razão sempre. Não era um impossivel o que ella temia; apavorava-a um perigo real; e quanto a ella, segundo todas as mostras, muito provavel, ¿Que perigo? o da communicação da minha doença a um ente a quem ella sentia vinculada a sua existencia, e sem o qual, ainda que o quizesse, não saberia já viver.
O sangue que eu perdêra, a minha debilidade, todo o meu exterior, induziam a crer que a enfermidade que trabalhava tão activa por dentro em me destruir, ¡era.... nada menos que a tysica! mal ainda então rarissimo, com que hoje pela generalidade se vive familiarisado, mas do qual no começo d'este seculo nem quasi se ousava proferir o nome senão em baixa voz.
A familia, em cujo seio despontava tal phenomeno, forcejava pelo encobrir a todo o custo aos de fóra, como um castigo divino e uma ignominia; e abria ella mesma uma area de respeitoso terror, em cujo centro languescia, soccorrida, mas desamparada, a pobre victima. A roupa, os moveis, até a loiça do seu serviço, tinham marca, para que ninguem lhes tocasse. O confessor, o medico, o amigo, os filhos, a esposa, não chegavam ao alcance do seu halito; era o leproso; era quasi o damnado aquelle triste esqueleto vivo, envolto na sua pelle livida e ardente, e a quem, para luxo de desgraça, a Natureza subtilisava a vista e o ouvido, conservando-lhe inteiras a memoria e a intelligencia até á ultima. Emfim, logo que o espelho apresentado aos labios por um braço estendido de longe, e tremente, testemunhava com o seu cristal não empanado, que o ultimo bafo se esvaecera, ainda a terra o não tinha recebido, quando já os seus vestidos, o seu leito, a sua cadeira de martyrio, o livro das suas derradeiras orações, tudo era entregue ás chammas, e as mais prolixas ceremonias de lustração, tanto religiosas como physicas, acudiam á poisada; acontecendo, muitas vezes, que nem depois de picadas e renovadas as paredes, havia temerario que se aventurasse a occupal-a.
Deus louvado, o tempo não tardou em mostrar, pelas mais irrefragaveis provas, que a minha enfermidade, com toda a sua carranca de profunda e fatal, era passageira, e que d'aquella frágoa poderia sahir, como de feito sahiu, uma constituição vigorosa e duradoira.
Aos nossos amores, tão bem correspondidos de parte a parte, nem sequer faltou pois o estimulo de uma quasi prohibição, e o sainete de terem de se andar recatando, sobresaltados ao minimo rumor, como verdadeiros criminosos. Se não fosse a presença de minha mãe, e o affecto e delicadeza com que sua prima a tratava, ter-nos-hiam, provavelmente, separado, enclausurando na casa a amante, e deixando livres, mas desertos, para mim, o jardim e a quinta, largo e formoso banho dos ares balsamicos, de que eu então sobre tudo necessitava. Quem havia de lucrar com isso era João, meu primo; o que sua irman perdia, ganhava-o elle; era um namorado de menos, e um soldado de mais para o seu regimento, em que até então era elle só a força e o commando, o porta-bandeira e o tambor.
Havia muitas horas, entretanto, em que a mãe de Amalia, com a razão, ou com o pretexto do estudo ou dos bordados de sua filha, a retinha no gyneceu da casa; essas horas (bem o sabem todos os que amaram) deviam-me parecer eternidades; para as abbreviar, ora ia sentar-me n'um banquinho ao pé do seu bastidor, enlevado em vêr rebentar flôres debaixo dos seus dedos, e ouvindo os contos, que ainda hoje me lembram, da velha e gorda cosinheira Escholastica; ora me detinha encostado ao grande portão de grade de ferro no lado fronteiro do pateo, com os olhos pregados na janella do quarto de lavor; feliz quando de traz da vidraça me alvorecia a miude, saudando-me com um sorriso, aquella pequena rosa que eu esperava, e que já de lá como que me estava ensaiando os beijos que eu d'ali a pouco havia de colher ás escondidas no caramanchão, especial asylo, e o mais seguro, dos nossos furtos.
VIII
É uma grande pena que não saibam as creanças escrever, e não registem, para depois as lerem, as suas memorias, e que a torrente caudalosa dos successos ulteriores lh'as desgaste e confunda quasi todas; a sua historia poderia ser muito mais gentil, muito mais elegante, muito mais instructiva, que as historias e novellas de outras idades.
Á mingoa de taes documentos, que bem preciosos me seriam agora, fui hontem 19 de Dezembro d'este 1861 visitar, ao cabo de tantos annos, logares tão queridos, e evocar n'elles os phantasmas verdes dos arbustos do meu tempo, o phantasma candido d'aquella que eu tantas vezes arraiei, como gentil Maia, á custa d'elles, e o meu proprio phantasma pequenino, alegre, buliçoso, tão puro, tão amante, e diante do qual, como diante d'ella, eu me ajoelharia, se o encontrasse. Palpitava devéras ao approximar-me, como sem falta deve acontecer a quem se acerca de um logar de mysterios, ou a quem excava um solo, de que espera enthesoirar reliquias santas da antiguidade. Parecia-me que o mal transparente veo, que, tanto ha, me collocou o mundo n'uma penumbra, de repente se levantaria por um milagre da vontade e do affecto, e que eu ia rever tudo tal como o levava no coração e na saudade.
¡Ai ninho de tantas delicias! ¡quem se atreveu a desfazer-te! De tudo que ali havia, e que era tantissimo, ¡quasi que só eu resto! Não importa: profanados, perdidos mesmo, esses logares conservam, indelevel ainda para a minha alma, a sua primitiva sagração. Tornarei a visital-os na proxima primavera; talvez se me recordem então do que hontem só confusamente lhes lembrava; encontrarei porventura valverdes florídos, rainunculos matizados, quinquagesimos descendentes, e mais, dos que tão suavemente brilhavam no meu tempo; e esses alguma coisa saberão relatar-me de tão antiga historia. O portico viçoso, estrellado de jasmins, que bordava de sombras graciosas o vestido branco de Amalia, quando, abrigados ali n'um meio dia de verão, escutavamos as cigarras emboscadas, ha-de por força com a sua fragrancia falar-me d'ella, e avivar-me no espirito um cardume de sensações lyricas ineffaveis.
Por agora, que estou dictando a uma legua de distancia estas paginas, talvez indifferentes a todo o mundo, e frias como a estação em que nascem, que me acho diante de outras arvores nuas, que aguardam, saudosas como eu, dias de festa, o mais que posso dizer é que a primeira impressão photographica da bella Natureza, toda esplendida e de uma admiravel nitidez, foi ali que a minha mente a recebeu. Um tal quadro, que tinha de me ficar no sanctuario intimo para todo sempre inspirativo, fecundo, milagroso, e contendo a synthese da galeria do Universo real e imaginario, mal podéra haver tido tal perpetuidade e tal virtude, se lá m'o não collocassem uma fada e um genio, uma mulher e um amor; mulher recem-cahida das estrellas e ainda ignorante da sua destinação; amor puro como o dos Anjos encarregados de enfeitar a Natureza, e que, terminada a tarefa, dormitam entre os obeliscos que levantaram, e sonham céo.
Assim, ao mesmo tempo que as minhas forças medravam a olhos vistos de dia para dia, e que os diversos receios das duas mães diminuiam de manhan para manhan ao alegre florir do meu aspecto, se foi a minha indole compondo com duas religiões, que a final se reduzem a uma só: o culto das gemeas e eternas amantes universaes, -- a Natureza e a Mulher.
IX
De tão ameno passeio na alva da vida chego de repente á escarpa de um precipicio, d'onde é inevitavel o despenho para um abysmo.
Encetava eu apenas a carreira do estudo, tão menino, tão menino, que o ouvirem-me já ler, e verem-me formar caractéres, era (nunca a minha vaidade o esqueceu) um thema de admirações e de felizes prognosticos para os parentes e amigos da familia. De repente outra doença, mais terrivel que a primeira, e menos esconjuravel do que ella, não paga com martyrisar-me, não contente de balançar-me por um fio largos mezes entre a vida e a morte, me atira vivo para um sepulcro! Eu respirava; mas os bellos olhos, idolatras das flores e de Amalia, e vangloria de minha mãe, não sabiam se havia ainda no ceo o sol de Deus! É impossivel recordar-me d'esse prazo, prazo de não sei quantas eternidades, sem que ainda agora o coração se me confranja.
Imaginae um homem á hora em que se fosse embarcar n'um bergantim doirado, por um mar de prata, com virações balsamicas dos vergeis da terra, cuidando já velejar horizonte em fóra para um mundo de delicias... e lançado de improviso no mais fundo subterraneo de uma torre. Esse homem tão desafortunado, e desafortunado tão sem culpa, que nem ainda era homem, fui-o eu; e tanto mais sem-ventura, quanto ninguem então, nem eu por conseguinte, me julgava possivel a ressurreição, e a soltura.
Convalesci; d'esta vez sem os soccorros do campo. Tinha as forças e a edade para folgar, tinha o desejo e a precisão do movimento, da convivencia, da fraternisação geral, da conquista, emfim, que pelos olhos se opera de continuo nos inexhauriveis dominios da Natureza e da sociedade; não podia permanecer immovel; mas o meu carcere sem lanterna me seguia por toda a parte. A ave da poesia, que me pipilava dentro, debatia-se contra as grades, quando ouvia lá de fóra estrondear a vida festival, e pelo ecco deshumano das suas vozes se lhe revelava o sem numero de bellas coisas, que até os insectos e vermes senhoreavam pela vista.
X
Dera-me a Providencia, entre meus irmãos, um, dois annos mais novo do que eu, cuja indole sympathica inteiramente com a minha, cujos gostos em admiravel harmonia com os meus, nos constituiam mais que irmãos, -- duas metades inseparaveis do mesmo todo. Ardia tambem n'elle a faisca sagrada. Não era tudo o palpitar o coração de cada um dentro no peito do outro; os nossos espiritos se adivinhavam de parte a parte; a nossa conversação tinha... (¿como hei-de dizer isto?) o que quer que fosse de um solilóquio, ou de um cantar ao ecco. Levava-lhe eu a vantagem de vinte e quatro mezes mais, elle me levava a de mais um sentido. Havia equilibrio, e compensação; cada um dava, e cada um recebia. Este mesmo interesse mutuo contribuia para a espontaneidade da nossa fuzão necessaria e suavissima.
Chegou a edade dos estudos. Era tempo de aparelhar com as chamadas humanidades para as sciencias. ¡Que inveja e que tristeza, quando meus irmãos, ambos mais novos do que eu, sahiram pela primeira vez deixando-me só para se irem inscrever na classe de latim! Permittiu-se-me accompanhal-os; attendi; devorei; li pelos ouvidos; corri aposta com os mais applicados.
O preceptor, bom e honrado velho, que, trinta annos havia, professava com devoção o idioma de Cicero e Virgilio, observa a minha attenção; interroga-me curioso; reconhece e declara não ter discipulo que mais em cheio haja absorvido as suas doutrinas.
D'essa hora em deante fui eu o filho adoptivo, o predilecto, o mimoso, do seu enthusiastico romanismo. Não só erudito de amplos cabedaes, mas poeta, poeta elle mesmo, poeta "utriusque linguæ", julgou reconhecer em mim, pelo modo como lhe eu traduzia as paginas inspiradas que elle me lia com fogo, e pela promptidão, sobre tudo, com que eu lhe restituia nos versos originaes os trechos que elle para isso me recitava das Musas cesáreas reduzidos a proza portugueza, julgou, digo, reconhecer uma indole fadada para a poesia; e pôz com generoso exforço peito a cultival-a.
Tratar as Musas, e em particular as latinas, é desenvover a um tempo phantasia e sensibilidade:
"......lecto carmine doctus amet."
O poeta que assim cantára, logo ali se apossou de mim para toda a vida. O seu estudo, que eu nunca mais interrompi, que depois alarguei, e que ainda agora me é delicias, entrou pois como elemento energico, tanto como as amenidades do Paço do Lumiar, e os amores infantis de minha prima, na composição mysteriosa e providencial do meu verdadeiro destino, que nunca foi desde o principio, nem já agora póde ser outro até ao fim, senão, repito, a poesia.
Meus irmãos passaram-me dentro em pouco de condiscipulos a discipulos; e o mais novo, Augusto, de discipulo a inseparavel. ¡Que annos! ¡Que annos esses! ¿Quem, tendo-os uma vez desfructado, os esqueceria em nenhum tempo, em nenhuma fortuna?!
Augusto e eu, que afinal já éramos um só, fanatisados deveras com as grandiosidades heroicas, com as fabulas ridentes e floridas que nos surdiam de continuo ao excavarmos por aquelle mundo fossil e classico, pode-se dizer que nos naturalisámos Romanos antes de sermos Portugueses; fomos antiquarios enthusiastas na puericia; os cobres, que os d'aquella edade desbaratam em doces e brinquedos, convertiamol-os nós em qualquer "alfarrabio", que no frontispicio nos trouxesse um dos nomes Romanos immortaes, cuja ladainha sabiamos de cór, e recitavamos com veneração, desde o principio da "edade aurea" até ao cabo da "edade ferrea" e "lutea", desde Livio Andronico até aos escriptores já christãos, ultimas reliquias do Imperio e da lingua a desfazerem-se. Devoravamos tudo aquillo sem guia, sem escolha, temerariamente, mas com uma perseverança, com um affecto, com um encantamento, inexplicaveis. Excusavamos, repelliamos qualquer outro passatempo; visitas, passeios, tudo nos era enfadonho, comparado com a delicia de vaguearmos pela Italia velha, de ouvirmos os seus heroes pela bocca de Tito Livio, de entrarmos com Virgilio familiarmente no palacio rustico d'el-Rei Evandro, de nos espairecermos com elle, Calpurnio, e Nemesiano, por entre as amenidades campestres, e ouvirmos cantar Horacio n'um pomar da sua Tibur:
"...... ad aquæ lene caput sacræ"
coroando-nos como elle
"...flore, terræ quem ferunt solutæ"
ou de escutarmos suspiros e galanteios de Tibullo, Propercio, Gallo, Catullo e Ovidio. Ovidio mais que todos nos levava traz si as vontades. (Não prégo moral; historío).
A poder de lidarmos com aquella gente, aformosentada pela distancia, e tão ideal vista de cá; tudo gue não era ella, o seu viver, o seu pensar, o seu idioma, as suas festas, nos parecia mesquinho, insipido, repugnante; sonhavamos acordados.
D'isso me adveio, cuido eu, e não podia deixar de ser em edade tão branda para receber cunho, uma confirmação não pouco efficaz para a poesia.
XI
E na verdade, já que estamos conversando desenfadados, sinceros, e sem armar a vanglorias, ou, por outra, já que me estou confessando dos meus peccados de poesia pratica, direi aqui (embora quebre o fio da narração, depois o atarei) que, estendendo a consideração por todo o longo e variado decurso da minha vida até hoje, não descortino em toda ella senão... (como direi isto que me não afronte em demasia?) senão um predominio constante da phantasia sobre a realidade; uma extranheza activa e passiva dos homens, successos e coisas do mundo, em que vivo como que emprestado, semi-pagão, semi-classico, semi-republicano dos Gracchos, semi-conviva de Mecenas, semi-Tityro, semi-captivo das Corinnas e Delias, e, com tudo isto, a esvoaçar-me sempre da poesia que foi, ou que se nos figura lá traz, para outra que lá adiante ri aos santos amigos da humanidade, aos utopistas.
Sempre que o individuo, de quem falo, entrou, ou cuidou entrar, na politica (n'esta parte, Deus louvado, já escrevo o necrológio) foi sempre levado do enthusiasmo, ignorante da historia contemporanea, e da mesma politica, não ajuramentado a bandeira de côr alguma, não adstricto a tal ou tal plano de estadista, curando pouco de nomes, e menos ainda de interesses proprios; foi campeão sem divisa de uma causa apenas prophetisada, vaga, confusa, remotissima. -- a civilisação pela moral, pelo amor, pelo trabalho, e pelo saber. Pueril e incorrigivelmente seduzido por miragens humanitarias e poeticas, nunca passou entre os politicos positivos de alvitrista chimerico, e homem para nada; pugnou com o ardor de quem reivindicasse algum morgado pingue, pugnou até vencer (¡vêde isto!) para que se fechasse aos tentados de suicidio a paragem vertiginosa que mais por seu contagio os attrahia; empenhou sabios em procurarem remedio, se o houvesse, que diminuisse as duas pestes: -- duello, e infanticidio; incitou para o cultivo serio das Lettras quantos talentos esperançosos descobriu; foi de todos amigo sem inveja, pregoeiro sem restricções; propoz para os veteranos dos estudos e da poesia uma Runa gloriosa, abundante, e aprazivel, em vez do hospital que ainda não mandou queimar a enxerga de Camões, á espera dos que poderão vir; pediu, e tambem debalde (¡debalde até isto!) um Campo Elysio terrestre para os mortos memoraveis; suas effigies postas pelo publico agradecido nos passeios, e uma lamina commemorativa pregada pelo Municipio na frontaria de cada casa, testemunha do nascimento, dos trabalhos, ou do obito, de um benemerito; procurou e descobriu as reliquias do Cantor dos "Lusiadas", para que as desagravassem; forcejou com a persuasão para que se desse á agricultura o seu apreço, á imprensa o mais amplo favor, premios reaes aos talentos operosos e productivos, subsistencia e honra aos educadores, ensino liberal, christão e ameno á puericia; pela puericia, que é a nação de amanhan, fez mais, muito mais, quanto poude e mais do que podia: invocou por ella ceo e terra, throno e plebe, sabios e ignorantes, ricos e miseraveis, o clero e as mulheres; foi na vanguarda dos consociados para se promover a educação popular; fez-se, a expensas de tudo seu, mestre-escola de plebeus e descalços; evangelisou de terra em terra o novo ensino, o ensino racional, a centenares de professores honestos; pelejou na imprensa, com o amor e com o odio, desde a supplica até á verrina, em prol dos calcados direitos da infancia, da maternidade, e da Patria; e convencido, pela evidencia dos factos, resposta eloquente e peremptoria aos negadores das vantagens da reforma, que riem, que riem da caridade, que riem da philosophia, que riem do progresso, que riem de seus filhos, que riem de si mesmos, deixou pendente a envelhecer por dez annos, desenfeitada e esquecida, a sua lyra (¡oh! ¡milagre summo de uma fé verdadeira!), para andar sollicitando a redempção e o baptismo de luz dos captivosinhos de sete e menos annos; foi levar o beneficio espontanea e gratuitamente ao Brazil; ambicionou que lh'o acceitassem do mesmo modo na Hespanha e na Italia. Se n'estes dois lustros de lidas obscuras, só pagas com desgostos, alguma hora se recordou de poetar, foi só para convidar com o exemplo e com o discurso talentos melhores que o seu a encetarem cantares de civilisação, a enxertarem nos loireiros estereis alguns ramos fructuosos; e não se levantou da cadeira de um ensino quasi ignobil aos olhos do mundo, senão para escrever livros sem vulto, mas necessarios ou uteis: -- "Noções rudimentaes"; -- "Guia pratica de mestres"; -- "Tratado de Metrificação"; -- "Tratado de Mnemonica"; -- "Felicidade pela instrucção"; -- "Felicidade pela agricultura"; -- "Tentativas grammaticaes" -- um "Curso de lingua latina"; -- e, de envolta com tudo isso, requerimentos reiterados e instantes aos poderosos, ás sociedades, ás academias, aos principes, aos tribunaes de instrucção, para que o ajudassem.
Quando um Rei "amigo dos que trabalhavam", e cheio elle mesmo de nobres ambições, convidava ao poeta de outr'ora para ir colher fructos de oiro num ensino altamente litterario, ousou o poeta pedir-lhe commutação no serviço, offerecendo-se-lhe operario para a trasladação dos monumentos classicos romanos á lingua patria, por entender que ia n'isso muito maior vantagem aos estudos e á poesia, ainda que para elle menos lucro e menos brilho.
Todos estes rasgos de loucura se provam e documentam d'aquelle pobre sonhador, a quem, deneguem tudo mais, coração e muitissimo não lh'o podem contestar.
XII
¡Que digo! Esta mesma digressão aqui não é porventura uma sobreprova de quanto o amor, na sua mais vasta accepção, o amor que não suppre assim a poesia senão porque o é, constitue o caracter do pobre homem? Nem os desenganos o desenganam; nasceu affectivo; affectivo tem vindo caminhando pela vida fóra, da primavera para o estio, do estio para o outomno, que já se lhe desverdece, e nem os gêlos do inverno lograrão provavelmente resfrial-o.
Na festa da Primavera, n'esses dias do amor só sensual e egoista, bem que innocente, que pedia elle aos amigos para quando já não existisse?
Deixae-me escutar n'um ecco d'alma aquelles versos:
Depois que entre os abraços delirantesde todos os que amei findar meus dias,sepultae-me n'um valle ignoto e fertil.Para marcar da sepultura o sitio,sobre o cadaver que vos foi tão caromangeronas plantae, cuja verduraem roda fecham variados lirios.Na raiz funda da soberba olaiapoise a minha cabeça, e o tronco amigosobre mim curve a copa florescente.Mil piteiras unidas, ostentandona hastea vaidosa as flores amarellas,em quadrado não grande me defendamdas incursões das cabras roedoras.Em meu tronco se escreva este epitaphio:"Foi poeta amador da Natureza:""d'entre as sombras ancioso a procurava,""qual terno amante a bella fugitiva."Sobre isto pendurae sonora flauta,que se revolva á discreção do vento.Não cerque os ossos meus, não m'os ensombre,nem teixo nem cipreste; arvores quatroquizera só no meu jardim de morte.N'um canto a laranjeira graciosa,que mescla util e doce, a flor e o fructo;n'outro a figueira sob as amplas folhasmodesta occulte seus nectáreos mimos;defronte um pecegueiro em fructos mostreque amavel é pudor, quando enche facesde penugem subtil inda cobertas;no ultimo canto... (a escolha me confunde)plantae no ultimo canto uma ginjeira;é a arvore da infancia, até na altura;d'esta por sua mão colhe um meninoa mui ridente baga, e ri de ufano.Alguns tempos depois que a fria terrameus restos encerrar, á minha olaiavós, meus amigos, vós dareis meu nome,pois de mim se nutriu, e eu serei n'ella.Dos guerreiros nos tumulos afiemfaminta espada os barbaros guerreiros;no sepulcro do sabio o sabio estude;e dos Reis nos marmoreos monumentosvá sonhar a ambição grandeza e pompas;vós soltos de freneticas loucurasaqui vireis mil vezes visitar-me,na amizade pensar que nos unira,e unir-nos deverá transposto o Lethes.Por que me interrompeis com taes suspiros?¡ah! deixae-me acabar. Quando sentadosem torno a mim na flórida alcatifa,guardardes meditando alto silencio,se d'entre as mangeronas que me cobremsahir acaso a borboleta errante,não vereis n'ella o espirito do amigoque vem gozar do sol a claridade?Quando o suave rouxinol de noiteda minha olaia gorgear nos ramos,não pensareis, de santo horror tranzidos,que feito rouxinol, meus cantos sólto?Sim, pensareis, e erguendo-se inspiradoalgum lhe ha-de bradar: «¡Oh! ¡meu amigo!»Responderão: «Oh meu amigo» os bosques;e vós direis que o meu phantasma errante,da argentea lua á muda claridade,á conhecida voz d'alem responde,e em tudo encontrareis a imagem minha.Se inda então meus costumes vos lembrarem,se vos lembrar meu coração piedoso,velae que em meu retiro as bellas avesde caçador cruel cantem seguras;Amor, o leve Amor, com arco d'oiro,só elle, e mais ninguem logre atirar-lhes;careço de amorosa melodiaque me poetize o somno derradeiro;morto que nada tem, preciza d'estaspobres delicias rusticas, se folgaque a namorada moça, o terno amante,juntos, ou sós, a visitál-o acudam.Então ao som de languidos suspiros,de alegres cantos, de amorosos versos,de ternas queixas, de perdões suaves,muitas vezes contente a minha sombra,formando ao pôr do sol vermelha nuvem,girará n'estes ares revolvendoda passada existencia almas lembranças.
Andaram tempos. Amores mais serios, mais vastos, mais duradoiros, mais uteis, ainda que menos entendidos das turbas a quem se referiam, inspiraram já outros desejos:
Ó terra de Colombo, um navio de esmolado abysmo te evocou, e aurea brotaste á luz.Por outra regia Heroina esmolada uma escolavai transformar-te em ceos, terra de Santa Cruz.E eu, que já uma vez, largando o patrio ninho,romeiro do progresso em balde te busquei,retomarei de novo o undívago caminho,e irei juntar meu hymno ao seu triumpho; ireipender na escola-templo os festões da poesia,e, novo Simeão, findar a vida em paz.Onde o homem que se humana affoito invoca o diadirei: -- «A patria é esta; aqui viver me apraz;«apraz-me aqui morrer, onde as mães porventuraco'os filhos pela mão me hão-de vir visitar;saudades esparzir na minha sepultura,e dizer: "Este sim, que soube o que era amar."»
Passaram tempos ainda, e até essa esperança consolativa se desfloriu. Ouvi o esmorecimento não já cantar, mas gemer, no seio da amizade:
«Depois vem a reparação, a rehabilitação, não ha duvida. Do sepulcro brota o loiro, e a posteridade amarra a elle os inimigos dos amigos dos homens, os areopagitas idolatras envenenadores dos Socrates crentes. Mas as cinzas não sentem; as estatuas não vêem nem ouvem.
«O premio que eu devaneava a principio, quando via tão ás claras a bondade da obra que estava fazendo, era que os filhinhos, e as mães, me acompanhariam, chorando, ao cemiterio. A esse côro de amor imaginava que até o cadaver se me alegraria. Não dava aquelle triumpho posthumo pelas torrentes de carroagens e salvas funebres dos magnates. Pois nem já com isso conto. Conseguiu esta gente, não sei se invejosa, se quê, diffundir tão copiosamente os seus preconceitos, escurecer em tanta maneira a luz do beneficio, que nem já espero aquillo. As mães ver-me-hão passar, sem saberem quão grande amigo de seus filhos e netos ali vai; e d'estes só porventura me irão dar despedida os que n'esta hora estão cantando e amando por essa meia duzia de escolas regeneradas».
XIII
Saiamos d'aqui a toda a pressa, leitores amigos, antes que nos degenere em paginas de santa mas feia indignação, um escripto que eu vos prometti e destinei todo pacifico e amoravel. Torno-me pois á minha Arcadia da mocidade, como o soldado mal ferido das guerras, e ainda mais dos menoscabos que dos golpes, se acolhe á quieta poisada em que se creou.
Apóz algumas tentativas incertas e incoherentes de lavor poetico, de que o publico se esqueceu, e eu quizera esquecer-me tambem, foi a fabula selvatica de Narciso e Ecco a primeira producção que me rebentou nativa, e verdadeiramente congénita áquella indole campestre e amoravel, que os successos e os estudos me tinham andado a preparar desde o principio. Nunca jámais essas singelas "Heroides", impetuosamente e quasi de improviso brotadas (posso hoje dizer isto sem jactancia, e sem que os entendidos m'o descreiam) ousaram esperar o extraordinario, o excessivo favor com que foram recebidas, multiplicadas em edições sobre edições em Portugal e no Brazil.
¡Ora, quem poderia jámais lembrar-se de que um livrinho assim, todo vão, todo fabuloso, uma especie de globo de espuma, nascido de um sopro para boiar nas virações por alguns instantes, espelhando os verdes da terra e o azul de cima, e apagar-se para sempre, filho do nada restituido ao nada, conteria o germen de uma historia muito real!
Pois foi assim: Das "Cartas d'Ecco e Narciso", sahiu, como de flôr ephemera um fructo, o "Amor e Melancolia", este "Amor e Melancolia", que já não era um devaneio e um canto, mas sim registo disfarçado de uma historia do coração: "lacrimæ rerum".
XIV
Tres annos havia que tinham apparecido pela primeira vez as "Cartas d'Ecco"; e dois os poemetos da "Primavera".
Residia então o autor de ambas estas bagatellas nos sitios mesmos, que, em harmonia com os vinte e quatro annos d'elle, lh'as haviam inspirado. Repoisava, já fóra do estádio academico, nos ocios tão poeticos do seu Mondego. A casa da vivenda conheceil-a vós, desde que o mais poeta dos nossos prosadores pela magia da sua penna, que é ao mesmo tempo varinha de condão, vol-a descobriu, vol-a franqueou, vos fez, queridos leitores meus, entrar n'ella a visitar-me.
Pois bem: Era ali, n'aquella casa, ainda hoje lembrada do nosso nome, n'aquelle espaçoso e singular edificio, encostado, de uma parte á vertente de Subripas, de outra ao Arco moirisco de Almedina; dominando o rio convisinho e a margem ulterior, e dominado pelo castello de templarios, theatro do tragico fim de Maria Telles; era ali, n'aquella estancia, de aspecto meio senhoril, meio claustral, com seu pateo espaçoso, e escadarias de pedra, suas enormes laranjeiras enclausuradas, suas varandas ajardinadas, seus erguidos miradoiros; era ali, ali, para onde eu tantas vezes me recolho em espirito, ainda agora, a escutar os descendentes dos rouxinoes que festejavam, como nós, a "Lapa dos poetas"; ali, ali era, que os dias e as noites se nos devolviam, ao meu inseparavel e a mim, nas leituras amenas, nas conversações mais amenas ainda, com os bons engenhos juvenis, que a tão hospedeiro retiro nos acudiam de boa mente.
Era o Setembro de 1824; um donoso Setembro na verdade: estio em cheio e sombras á farta. Liamos os dois, isto é o um; por outra: recitavamos de cór pela centesima vez as elegias de Tibullo, á sombra de uma laranjeira merecedora de as ouvir, e muito bem capaz de as ter ditado, se fôra em Italia, e para tanto lhe desse a velhice, que todavia não era pouca. (Nenhuma circumstancia d'aquelle tempo se me desbotou ainda da memoria).
¡Chega uma carta! ¡lettra desconhecida!... Abre-se, reza assim:
«Azurara, pelo correio de Villa do Conde, 27 de «Setembro de 1824. --
"«Amar o mais perfeito é um dever:" "«Virtudes tantas devem ser amadas:"
«Se vos apparecesse uma Ecco, imitarieis vós o vosso Narciso?
«A desconhecida
«"Maria da Expectação Silva e Carvalho."»
Que significava, que podia significar aquillo? Era uma pergunta candida? era um brinco malicioso? era masculina, era feminina, a mão que tal escrevêra? como responder? a quem responder? O coração, ou presago, ou desejoso, dizia uma coisa; a prudencia, outra. O Tibullo era do parecer do coração; todos os mais poetas votariam como o Tibullo. O sol, que observa ha tantos mil annos coisas de todas as castas, e de certo não ignorava o segredo d'aquella, espreitava-nos, e ria. A laranjeira, scismava calada; como aia e enfeitadeira de noivas, lá se inclinava para o sim; mas tambem, como velha, desconfiava. O Samsão de marmore do angulo do terrado, esse continuava a escachar pacificamente o seu leão, e não se intromettia na contenda.
Por muitas vezes se releu a carta á espera sempre de algum subito reflexo revelador; ¡e o enigma cada vez mais fechado!
Era caso para pesquizas, pois de qualquer dos oppostos lados que a verdade estivesse, não faltava que fazer, e tinha-se de lhe acudir com resposta.
Armou-se uma verdadeira caçada; empenharam-se n'ella quantos visinhos e praticos de Villa do Conde e Azurara se puderam desencantar; ¡e o mysterio a cerrar-se cada vez mais! ¡e a curiosidade, o interesse, a recrescerem-me na mesma proporção!
Respondi emfim ao meu phantasma: -- «Que não ousava eu muito acreditar em apparições de Eccos para quem não fosse Narciso; mas que, se por milagre houvesse uma, nunca eu seria tão insensato como o filho de Liríope.» --
Até aqui podia eu chegar com a resposta sem me comprometter; para diante fôra já arriscar-me. Partiu. Fiquei aguardando com certo dessocego pela réplica. Chegou, correio por correio.
Era a mesma lettra sem disfarce, e a mesma assignatura supposta. Mas d'esta vez, em logar de linhas contrafeitas, paginas com todo o desartificio amavel e persuasivo, com toda aquella graça nativa feminil, que se não imita. Quasi com certeza andava ali mão e espirito de mulher. Era ella porém interprete solitaria de sentimentos proprios?; ou consocia e agente de uma conjuraçãosinha zombeteira? Como descriminál-o? Não havia melhores razões para uma, que para outra supposição.
A substancia d'aquella carta, que eu não devo nem quero tirar do sacrario em que a enthesoiro como reliquia, reduzia-se a querer-me convencer de quanto eu era injusto para comigo, e de quão mal conhecia o sexo amoravel, se o julgava todo unicamente sensivel aos encantos dos "Narcisos"; emfim: que o poeta, que tão verdadeiros affectos suspirára por uma deusa ideal, -- a Primavera, merecia bem que uma mulher o procurasse para compôr a felicidade d'elle, e pela d'elle a sua propria.
Isto, e muito mais a este modo, expunha a carta; mas por uns termos tão obsequiosos, tão lisonjeiros, e ao mesmo tempo tão naturaes, como os eu não saberia expor aqui em traducção.
O inverosimil principiou ali a figurar-se-me provavel. Nas regiões imaginarias em que vivem os poetas, não ha extranhezas senão para o que é natural e corrente; o ordinario são os prodigios.
XV
Sem me atrever a confessar a minha nascente, ou já nascida, persuasão, senti ir-se-me levantando n'um recanto do animo um altarzinho todo verde e florido para uma divindade ainda invisivel, mas cuja aproximação já por um certo calor suave se me denunciava.
Diz que muitas leguas ao largo de Ceylão já o gajeiro, embalado lá em cima no sol doirado do Mar Indico, percebe na fragrancia das virações tepidas as selvas de canelleiras da ilha, ainda occulta pela convexidade marinha, mas que vem correndo a encontrál-o. Assim me sentia eu levado para uma ilheta de amores, que, já aspirada, e ainda não descoberta, vinha por cima do seu mar de aljofares offertar-me, toda donosa e festiva, a hospedagem das suas sombras inebriativas. Um côro de sereias a meio caminho nos revelava, nos annunciava de parte a parte; e, assim como se vê tantas vezes no mar um navio pela acertada disposição das velas demandar a terra, com o mesmo vento que de lá sopra, a aura que me falava do meu porto, a mesma era que para lá me conduzia.
«Não ha cubiça do que se não conhece,» dizia um antigo poeta; extranha sentença; e para de poeta, muito mais extranha. A mui veridica historia que vos narro, duas vezes a desmentiu: nem a que me buscava me conhecia, nem eu conhecia a que buscava.
E nem por isso é a coisa tão para espantos como de fóra e á primeira vista se representa. ¡Que de consorcios se não teem celebrado, até com amor, entre ausentes, pela simples troca de retratos! Que mancebo se poderá gabar de não ter sonhado muitas vezes, dormindo e acordado, com a heroina de um romance, ou com o invento prestigioso de um pintor? Quem ha que não saiba o caso d'aquella moça franceza, que se finou de paixão pelo seu Telemaco? Ninguem o prediria a Fénelon, quando, accezo no santo amor do genero humano, compunha para a eternidade o seu homerico poema social. Temperae de um pouco de poesia a qualquer coração (o nosso era temperado de muitissima) e vel-o-heis palpitar todo credulo por um phantasma. Para uma Virginia, este phantasma será Paulo; para um Paulo, Virginia; para um astronomo, um planeta, que elle, em nome do seu calculo, intima aos abysmos celestes lhe apresentem; os phantasmas das religiosas, são os anjos; os dos cenobitas, virgens do Empyrio; o dos artistas inspirados, a gloria na posteridade; o meu, tinha sido com effeito a Primavera, continuava a sel-o, mas agora humanada em figura feminil.
XVI
Se eu me não temesse da gente em prosa, que só acredita no que se palpa, havia de dizer que a aspiração para o bello desconhecido, para a perfeição ideal, entresonhada onde quer que seja, e com qualquer dos milhões de fórmas em que ella se póde metamorphosear, tanto não é extranha á Natureza, que não são unicamente os individuos privilegiados da nossa especie, os que a experimentam.
A rôla, a pomba, o rouxinol, a gemerem de saudade, a arrulharem de ternura, a gorgearem de immenso affecto, por que enlevam tanto, e tantas coisas inefaveis dizem aos animos devaneadores, senão porque os seus gemidos, suspiros, e canticos, almejam coisa diversa dos deleites faceis que os rodeiam, e que já possuem?
E depois: o Pae Commum não é avaro de seus dons, e ha-de folgar quando cada uma de suas minimas creaturas, alando-se quanto póde e sabe pela esphera dos gosos puros, se aproxima cada vez mais a Elle, que é a Summa Belleza, o Summo Bem, de que todos os bens são emanações ou reflexos.
¡O rouxinol, a pomba, e a rôla!... mas os insectos mesmos, quem affirmará que não se pascem, como nós, ainda que muito longe de nós, á meza infinita, perenne, e perennemente renovada, do amor ideal?
Quem sabe até o que irá de mysterios nas flores e nas arvores!? ¡que idyllios, que elegias, que divinos poemas não correrão nas florestas com o murmurinho dos ventos em estrophes de aromas, intelligiveis ás arvores congeneres, e ás flores da mesma especie!...
A carta, que de algures levantára vôo para algum fim, a carta que eu tinha nas mãos, tão candida, tão vivida, tão palpitante e amoravel, tão segura e tão certa, podia ser portanto, e, se o podia ser, era-o, uma especie de borboleta, que sahira das flores de uma alma solitaria e longinqua, para vir fecundar as da minha com um polen ardente e inesperado. Os effeitos que ella em mim produzia (logica ordinaria dos desejos) eram, á mingua de outras provas, uma vehemente presumpção de que o bom do papel vinha mensageiro leal, e não explorador perfido da minha credulidade; e entretanto mal sabia eu como lhe respondesse.
Deixar-me ir de vôo rasgado ao reclamo fôra temeridade indesculpavel; mas fôra tambem excesso de prudencia, repugnante a um sentir delicado, aventurar offensas, embora leves e disfarçadas, para rebater um aggravo só possivel; queria-se o meio termo; e esse era difficillimo; e difficillimo sobretudo como eu o desejava, que era propendendo mais para o coração, que para o espirito; para abraço, que para duello.
Meditei todo o dia.
O que eu nas falas gracejava por cautella, já no fôro intimo se me discutia como negocio.
Empenhei todas as potencias da alma, como poderia fazer o Edipo deante da Esphinge. Levei o serão e a noite a sós, no laranjal, a interrogar a lua, antiga confidente de namorados.
A lua, ou nada sabia no caso, ou, se o sabia, não o quiz dizer.
Mas a noite, grande terceira e fautora n'isto de amores, segredava-me ao sabor do appetite, com umas taes razões, tão cheias de poesia, isto é de verdade, que o genio fogoso dos meus vinte e quatro annos fez sahir, sem grandes evocações, não sei se de algum tronco, se das nuvens, se d'entre as pedras e heras da varanda de D. Maria Telles, uma Sombra de mulher, uma Fada, uma Sylphide, com quem eu tive ali horas ineffaveis de colloquio, desabroxando e enramalhetando futuros em commum.
Tenho pena de não poder já copiar aquellas praticas, nem as achar mesmo para mim bem inteiras na memoria.
Se o leitor, ou leitora, tem a edade que eu tinha então, e é poeta, mas poeta verdadeiro, d'estes que não só lêem e escrevem a poesia, mas a vivem, lá rastreará por si aquella scena tão cheia, tão real, tão animada. Se bem a concebem, tenho-lhes inveja eu; digo como a Santa da lenda: -- «Ai! ¡que saudades me não comem do tempo em que eu era tão infeliz!» -- ou, como a outra, toda delirante de ternura: -- «Tenho dó dos demónios; ¡pois se elles não amam!» -- O meu Virgilio, tão poeta na voz, na alma, e no coração, exclamava saudoso: -- «¡Oh! ¡quem me dera nos campos, lá pelas ribas do Sperchio; pelos cumes do Taygéte, bacchanalmente retoiçado das virgens lacedemonias! ¡Ai! ¡quem me pozera hoje nos valles, tão frescos, do Hemo, e com a sombra grande de suas ramarias me protegera!» --
¡Que melhores Sperchio, Taygéte, e Hemo, que melhores campos, delicias, e feitiços, que a adolescencia com o amor, e o amor com os seus extasis e raptos!
¡Que de coisas se não descortinam e ouvem então, que depois se calam e desvanecem!... engano-me: não se desvanecem, nem se calam; são vivazes e immortaes no seio da Natureza; mas nós, é que transpomos a paragem bemdita de reconcavos e eminencias, onde se recebem em eccos augmentativos todas aquellas vozes, d'onde se descortinam em cheio todas aquellas vistas maravilhosas.
¡Oh! detende-vos ahi; detende-vos; abraçae-vos aos troncos floridos o mais pertinazmente que poderdes, que em principiando a descida... ¡adeus primavera! ¡adeus amores! ¡adeus sabedoria das loucuras! ¡adeus miragens e musicas da vida! ¡adeus de vós a vós mesmos! ¡e adeus esperanças de reascenderdes nunca mais! Os leitos de rosas e as corôas de violetas, já lá estão hospedando a outros viajantes que vos expulsaram. Resignae-vos, se podeis, á peregrinação, por sobre espinhos, e por entre saudades, cada vez mais espessas.
¡Ah! ¡de quantas, e quantas não vou eu já carregado para o ciprestal que lá ao fundo me negreja! Tiremos d'elle os olhos, e deixemol-os ir ao que lá nos fica perdido, ¡perdido para todo sempre!...
XVII
Passeava eu pois com a minha apparição candida; sentava-a ao pé de mim; apertava-a nos meus braços; mostrava-a com ufania ao astro das noites, que não era mais puro, nem mais limpido; pedia-lhe, promettia-lhe uma ventura ainda não experimentada na terra; unificavamos pelas nossas confidencias o nosso passado; o nosso porvir entretecia-se n'um ser unico. O existir eu, era para mim, n'aquelles momentos extraordinarios, a mais solemne e convincente demonstração da existencia, da realidade, da indispensabilidade d'ella: ella existia, visto que eu existia.
Não riais: eu amava perfeitamente. «¡A um espectro!» não: a uma mulher, a uma mulher, de quem só o corpo, talvez, ali faltava, e cuja entidade moral e espiritual me pertencia me acompanhava, me velava.
Não me sentia eu repassado do calor das suas azas invisiveis? não tirava a cada momento de cima do coração palpitante, para a rebeijar, a carta por onde tinham girado os seus olhos, em que poisára a sua mão, que aspirára tão de perto as exhalações do seu seio, do seu coração e da sua alma?
Aquella carta exercia incontestavelmente em mim um influxo magnetico, dominador, prestigioso; eu não sabia, nem tentava, explicál-o; mas negál-o, por um scepticismo ingrato e mal philosophico, muito menos o podia, muito menos ainda o desejava.
Sentia-me tão bem sob aquella dominação absoluta, era tão bom permanecer assim, que o meu voto summo seria que nunca mais amanhecesse, se as falsas alegrias da madrugada me haviam de dissipar tão afortunado Elysio.
Mysterios intimos da grande Isis, religião do amor, ¡infeliz quem vos não conhece! ¡mais infeliz quem chegou a conhecer-vos e vos perdeu! Esse é como o tronco sêcco: vicejou, florejou cem annos, cantou com todas as aves debaixo do céo, mimoso da terra, familiar com o sol, confidente das estrellas, abrigo aos amantes, depositário dos seus nomes e votos, suspirando suave com elles, inebriando-os com suas exhalações, promettendo-lhes, e promettendo-se, primaveras sem numero e sem fim; depois, murchou; cortaram-n-o, cahiu; fizeram d'elle, se o não deixaram apodrecer, ou o não queimaram, um instrumento grosseiro para revolver o solo, um barco para transportar mercadorias; ou, quando mais bem livrado, um Satyro tosco, de quem riem os passageiros, ou uma apparencia de Bemaventurado para um altar. ¡Oh! ¡como aquelle arado, se podesse pensar, trocaria com alvoroço o seu prestimo, aquelle barco os seus serviços, aquelle Satyro o seu arremedo de riso, aquelle Santo a sua alampada e os incensos, por uma só das horas frivolas e sem historia, da arvore, que vivia, que amava, e que era amada!
A minha visão, a minha mulher sem nome, nem fórma determinada, prestes para receber qualquer fórma, e qualquer nome, era, se me podem bem entender isto, uma cifra, um symbolo, e o ideal da feminidade. No seu ser se epilogavam para mim todas as perfeições, todos os encantos dispartidos por quantas existem, existiram, ou poderão jámais existir; por isso a minha ternura para com ella era sem limites; era um amor, que n'aquellas horas de enthusiasmo abrangia todos os amores, presentes e futuros.
¡Oh! ¡O amor! ¡o amor! se ha n'este mundo coisa que nos possa dar ideia da grandeza da alma, da profundeza da adoração, do infinito da bemaventurança, é o amor.
Contam que uma só noite de terror e angustia já cobrira de cans e rugas a um mancebo; uma só noite como esta no meu pomar de estio, abraçado, confundido com a minha invisivel, remoçaria a um Nestor.
Que seriam todos os gosos materiaes comparados com aquella religiosa voluptuosidade?
Onde ha ahi alcova de noivos, estreada apoz dez annos de suspiros, onde ha ahi harém de hurís circassianas sobre rosas, ao som dos epithalamios dos rouxinoes do Bósphoro, que se não trocasse por este noivado mystico, tão sem rumor, tão puramente celebrado debaixo do céo e no seio da Natureza estiva pela poesia e pelo amor?
XVIII
Em quanto assim me corriam ali horas de feitiço, onde estava e que fazia realmente ella?
Só muito depois o vim a saber: pela sympathia inexplicavel que nos attrahia mutuamente, sentia-me tambem comsigo na sua soledade. Eu era lá o seu phantasma carinhoso, como ella cá o meu; a lua que de cá e de lá contemplavamos em commum, observava lá e cá as mesmas scenas tão parecidas, tão eguaes, que a duplicidade lhes não tirava a identidade. Supprimam os accidentes de logar; era no mesmo ponto do oceano dos tempos um só ninho de duas alcyones, que, embaladas mollemente no seu bemquerer, ignoravam que houvesse mundo para fóra da esphera dos seus affectos. Assim, não eram já imaginarios os abraços que dava, os abraços que recebia cada um de nós; as nossas declarações, juras, e protestos, entravam nos ouvidos, desciam ao coração a que se dirigiam.
O amor, a quem os milagres são naturalissimos, triumphava já da distancia, como havia de triumphar do tempo e da fortuna.
O sol e o movimento mundano e prosaico do dia seguinte, enfraqueceram seu tanto as impressões do drama nocturno e intimo. Encerrei-me no meu quarto; fechei as janellas para revocar no remanso de trevas artificiaes a sombra magica; reappareceu-me, porém não já a mesma; faltava-lhe a animação que a vehemencia da minha fé lhe prestára; de tão real que tinha sido, tornava-se de novo problematica. As objecções da razão gelada e desabrida, oppunham-se outra vez á prophecia da vontade. A linguagem nativa e sincera da carta, era um protesto eloquente e energico da innocencia e do amor contra as suspeitas; mas as suspeitas murmuravam sempre; a vaidade (quem a não tem?) a vaidade, similhante áquelles rhetoricos subtis das escolas antigas, sustentava alternativamente o pró e o contra: ora pretendia se acreditasse n'um affecto, que enobreceria a quem lhe servia de objecto; ora repulsava uma crença, que, a sahir burlada, redundaria em vergonha muito grande e muito certa.
N'estas alternativas passaram dias e noites; dias penosos, estirados, e ermos; noites acompanhadas, festivas, instantaneas. Só quando repoisava tudo, velava e vivia eu. Os meus pensamentos e as minhas alegrias, com as flores nocturnas se abriam, com as flores nocturnas se fechavam. Só as estrellas se podiam mirar n'elles, n'elles que tanto se lhes assimilhavam no brilho e na pureza.
Quando, apagadas em casa as ultimas luzes, e reinando já profundo silencio ao longe por toda a cidade, cerca de meia noite, eu entrava com pé furtivo e o coração pulando, no aprazado arvoredo dos meus amores, já ali encontrava á minha espera a figura branca. Com mil beijos soffregos nos saudavamos, vingando-nos em minutos da eternidade do sol. Pedia-lhe de joelhos perdão de a ter renegado, de ter duvidado da sua existencia, durante as horas insipidamente allumiadas. Com um abraço restauravamos as pazes.
Sentava-a ao meu lado, n'um banco rustico, afoufado para ella por minha mão com mangeronas, que as havia em grande espessura á sombra da laranjeira mais alta. Reclinava ella a sua cabeça languida para cima do meu hombro, ou eu a minha face ardente sobre o seu seio, a escutar-lhe e a interrogar-lhe o coração. Repetiamos os nossos incendidos dialogos da vespera, como novos. Misturavamos lagrimas de ternura e felicidade. Reviviamos antecipados os mais bellos futuros. A qualquer tenue rumor, d'estes com que a noite, maliciosa amiga dos namorados, se diverte a assustál-os, estremeciamos como dois culpados colhidos em flagrante; ella, forcejava por fugir; eu, escondia-a, rindo, com os meus braços contra o meu peito; guardava-a ali muito tempo como filha; embalava-a, adormecia-a, inspirava-lhe com beijos os sonhos que havia de sonhar, insinuava-me n'elles, e lhe repetia em voz baixinha as mais suaves coisas d'este mundo. Se um grillo cantava então, se um ramo ciciava lá por cima, impacientava-me de que m'a acordassem. Perguntava-lhe ao ouvido pelo seu nome, pela sua familia, pela terra da sua vivenda; não respondia. Inquiria-lhe, em tom ainda mais leve, se já porventura em algum tempo outro amor lhe sobresaltára o coração; levantava-se de repente, grande, sublime, aggravada da suspeita, prestes a desaparecer para sempre; e fal-o-hia, se ambos os meus braços a não retivessem pela cintura: -- «Se eu não tivesse um coração ainda virgem, ¡como ousaria offerecer-t'o! ¡offerecer-t'o espontanea! ¡a ti! ¡ao meu poeta!» -- dizia ella com uma voz que não saberia mentir por mais que fizesse. Pedia-lhe outra vez perdão, agradecendo-lhe a ineffavel certeza que me dava da minha felicidade tambem no passado; outorgava-m'o generosa; mas impunha-me, como penitencia, que lhe improvisasse poesia. Era a poesia o que a fascinára? o que a attrahira para junto de mim; e eu (¡bemditos os vinte e quatro annos!) derramava, inspirado só por ella, poesia nova e fervente, por entre aquelles troncos mudos, como as Philomelas no seu enthusiasmo a esperdiçam pelos choupaes do seu Mondego.
Como a das aves, se perdeu a minha; mas nunca a exhalei tão de dentro, nem tão para a alma, como então.
XIX
Agora caio eu de repente em mim, e me envergonho de tudo que tenho estado doidejando. Tinha eu direito, ou necessidade, de fazer em publico similhantes confissões? Não deixarei ahi violados dois pudores: um meu, outro alheio e mais que meu? Haverá indulgencia que baste para devaneios tão frivolos e pueris? Não me desdenharão até, como ficções inverosimeis, absurdas, impertinentes, estes idyllios elegiacos, tão verdadeiros todavia? São verdadeiros, e eu prometti historiar; eis aqui a minha unica defensa.
De mais, eu confio em que os leitores, aliás benevolos, se não esqueceram do que se ponderou no principio d'este escripto; a saber: -- que, nem em bem nem em mal, se póde carregar á minha conta o que fazia ha trinta e oito annos um que tinha o nome que eu hoje tenho; e que esse nascêra e se creára, unica, simples, e exclusivamente, para poeta, poeta de amores e delicias.
Pressupposto isso, continuemos o pobre romancinho, que nunca o houve mais historico; e tornemo-nos á carta, que, tantos dias ha, espera uma resposta.
Ignorava eu pois, e de nenhum modo podia conjecturar, d'onde procedêra, e que mão a havia escripto; mas propendia, por não sei que vaga revelação, para crêr que não era senão mulher, poetisa, enthusiasta, e muito superior ao vulgar pelo talento, quem assim me desafiava o coração, enamorando-me o espirito.
Reflectistes alguma vez no que seja aquelle bichinho de Deus, que pelas noites de verão está scintillando do fundo de um relvado, sua immensa floresta? Pois aquillo é uma namorada. O seu resplendor, que allumia as hervas até á enorme distancia de um palmo em redondo, é a manifestação esplendida do vago e poetico amor em que ali se consome solitaria; é uma Hero, mais sublime, chamando e attrahindo com o seu facho um individuo da sua especie, que ella nunca viu, mas que adivinha ter-lhe sido predestinado pela Natureza. Deixae-o andar a elle saltitando inconstantemente pelo labyrinto dos silvados, nas chorêas aereas e loucas dos seus eguaes, como um cardume de pequenas faiscas intermittentes; deixae-o volitar tão altivo da sua liberdade, que a energia do luzeiro lá em baixo, tão formoso e mais vivido que o seu, o arrebatará em vindo a hora, e no leito de seda de uma florinha, sob o docel de uma folha verde, o amor e o hymeneu accenderão os seus fachos áquella duplice chamma confundida n'uma só.
Tal se me affigurava a minha ingenua correspondente, irradiando d'aquelle modo até a mim, lá do interior do seu pacifico retiro, o poetico brilho dos seus affectos innocentes.
Na carta refulgia, com effeito, um amor. Era como um carbunculo, que, trazido para o escuro, continua a expedir os raios de que o impregnou o sol.
Respondi finalmente. Foi heroica a determinação; foi o salto fatal de Leucade; foi dar de cabeça para baixo na voragem, que, ou me havia de atirar arrogado e desconhecivel para cima do lodo, ou restituir-me ao dia, feliz, glorioso, coroado dos myrthos de Paphos pelas sereias.
XX
Entretanto, no meio da minha allucinação vaidosa, nunca me desamparou de todo o previdente instincto da dignidade; as minhas paginas confessavam, sim, o amor; amor profundo, amor immenso; mas este amor immenso e profundo, qual eu o emprestára á Nympha aerea dos montes, qual eu proprio o tributára á deidade phantastica da Primavera, e qual mulher nenhuma deixaria de o colher com avidez, se o encontrasse, apparecia aqui como um rico fructo do paraizo, ainda pendente no ramo, já maduro, já proximo a despegar-se, baloiçando-se a um lado e a outro, indeciso para onde haveria de cahir; era, na realidade, como fôra na fabula o ramo de oiro, passaporte para os campos ditosos de além mundo, mysterioso ramo que ninguem por força, nem por fraude, esgalharia da arvore, mas que por si se deixava tomar da mão chamada pelos destinos para o haver.
Tal foi, mas em phrase chan, e sem atavios de estylo, a substancia da minha resposta: enigma contra enigma, oraculo contra oraculo.
N'este vago, de que um e outro, por motivos differentes, mas com egual cautella, evitavamos deslisar para o positivo, se foi continuando, cada vez mais frequente, mais ampla, mais amigavel, mais sincera, e mais interessante, a nossa correspondencia.
Se quem escrevia era aquillo que eu desejava, devia estar contente de mim; se era outro, e mal benevolo, o empenho que dirigia aquella penna, esquivava-lhe eu escrupulosamente os azos para triumphos. Eu por minha parte estava satisfeito de mim, e encantado com tudo quanto se me ia de novo de dia a dia descobrindo de perfeições na minha Galatéa, que, ao exemplo da de Virgilio, me atirára a maçan refugiando-se para os salgueiros; entrevia-a eu por entre as ramas; não a chegava ainda a conhecer de todo, mas differençava já com evidencia, que não era satyro travesso, mas sim nympha, namorada e negaceadora como os passaros:
"lasciva puella".
Não descontinuavam, no emtanto, diligencias para se descobrir o esconderijo, em que se homisiava sempre que se presumia ir-lhe já lançar a mão á ponta do veo. Com a obstinação do mysterio, recrescia o affinco das pesquizas.
Apparece um fio no labyrinto: as minhas cartas vão por Villa do Conde para Azurara; mas quem as toma em Azurara? Espia-se, colheu-se: é uma servente do proximo convento de Vairão. Está pois a caçada circumscripta a um pequeno recinto, d'onde já não ha fuga possivel para a pobre corça: agora é deixar-se tomar ás mãos rendida e envergonhada.
XXI
É Vairão um nobre mosteiro de Donas da Ordem Benedictina. Está situado quatro leguas ao norte do Porto, na terra da Maia (Palencia dos antigos) entre Douro e Minho; corre-lhe perto o formoso rio Ave, que, por entre as villas do Conde e de Azurara, entra, grosso de caudaes, e já senhoril, no mar. As convisinhanças do edificio o tornam grave e meditabundo: a uma parte, serranias altas e solitarias; a outra, o Oceano, que rumoreja resguardado da vista por immensidade de pinheiraes.
É tão fidalga a antiguidade de Vairão, que ninguem, ha já muito, nem elle proprio, lhe conhece a origem. Fundal-o-hia, segundo uns, em 1148, D. Touris; segundo outros, na muito mais apartada era de 485, certa senhora nobre, Marispala, de quem se delettreia ainda o nome n'uma incompleta loisa grande, como campa de sepultura. Fôra, resam memorias, convento duplex de monjes e monjas da regra de S. Bento, que debaixo dos mesmos tectos tinham extremadas as clausuras, e communs no templo os exercicios religiosos. Exhala-se ainda agora d'aquellas paredes um grande e bonissimo cheiro poetico de seculos e santidade.
Ali pois vivia desde a meninice, secular e educanda, a minha desconhecida. Não foi difficil adivinhál-a d'entre as companheiras; de sobejo a denunciavam a notoria superioridade da sua instrucção e talento, e as suas tendencias todas litterarias e poeticas, herdadas no sangue e nos exemplos domesticos.
Constava por tradição ter sido uma das illustrações longinquas da familia o classico Doutor Antonio Ferreira, autor da primeira tragedia de Ignez de Castro, e particular amigo de Antonio de Castilho. O não menos classico Nicolau Tolentino de Almeida fôra irmão da avó da nossa educanda, senhora de virtudes tão iguaes aos seus altos espiritos, que o grande satyrico usava dizer que só se casaria, se o casamento com irman fôra permittido.
Desappareceu a mascara: Maria da Expectação Silva e Carvalho é já, descoberta e confessa, D. Maria Isabel de Baêna Coimbra Portugal.
O meu romancinho devia terminar n'aquelle ponto, ou proseguir transformado em historia; estava escripto que proseguiria.
Tal era tambem, e fôra desde a primeira hora, a tenção resoluta e inabalavel da que viera despertar-me para a festa do coração.
Assenti; deixei-me por ella conduzir, indifferente a calculos, adverso por natureza a previdencias; tão poeta no real, como no imaginario o tinha sido, e como o hei-de já agora ser até ao fim; em summa: verdadeiro crente na Providencia.
XXII
Parecia que eu e Maria tinhamos ouvido da propria bocca do Salvador o admiravel sermão da montanha; ¡tanto nos estava profundamente impressa dentro a sua doutrina! Eram com effeito evangelicas, ou de boa nova, estas palavras de Christo:
-- «Não hajais cuidado do vosso viver, d'onde comereis, d'onde bebereis, ou d'onde vos heis-de vestir.
«Olhae-me para as avesinhas do céo; vêde lá se ellas semeiam, ou ceifam, ou encelleiram coisa alguma; quem as mantém é o vosso Pae Celeste. Pois vós sois para elle muito mais que as avesinhas do céo.
«¡Vestido!... A que vem o dessocegar-se por elle? Reparae no como crescem os lyrios dos valles: não trabalham, nem fiam.
«E mais vos digo, em verdade, que o proprio Salomão nunca trajou galas como qualquer d'elles.
«Ora: se Deus assim reveste umas hervas do campo, hoje viçosas, amanhan queimadas no forno, não vos revestirá de muito melhor grado a vós, creaturas de apoucada fé?
«Portanto, nada de vos inquietardes dizendo: -- Que havemos de comer, que havemos de beber, que havemos de vestir?
«Que se desvelem com isso os pagãos; o vosso Pae Celeste bem sabe que todas essas coisas vos são mistér.
«Não vos atormenteis pelo amanhan; o amanhan lá curará do que lhe pertence: bem bastam a cada dia as suas penas.» --
Não sei, nem nos importava saber, se Thomaz Roberto Malthus, o economista algoz dos casamentos pobres, approvaria, ou não, esta nossa fé tão commoda, e que a mesma Providencia tomou depois a si o justificar.
Se quereis verdade ainda mais em cheio, e sem disfarces, nenhum de nós ambos se lembrava de pensar no futuro por esse lado; entre nós e o porvir material, mettia-se uma seve de affectos tão espessa, tão alta, e tão florída, que não nol-o deixava perceber. Era como o pinhal a cortinar o Oceano revolto de ante a vista do conventinho descançado.
Olhae que eu não vos prégo ó sermão da montanha para que nos imiteis, mancebos e donzellas na febre aguda do amor, vós para quem uma cabana, uma fontinha, quatro raizes do monte, e para postre amoras de silva, e as glandes do filho prodigo assadas n'uma fogueirinha de gravetos, se figuram banquete em palacio, sobrando-lhe para salsas o bemquerer; não, Robinsons do affecto e da adolescencia descuidosa e credula; o que só faço é relatar-vos, sem apologias nem recommendações, o que por nós passou n'uns tempos de loucura, que (¡ainda mal!) não podem já voltar. Lêde muito nas boas horas, como nós a reliamos, a consolativa prégação dos passarinhos e dos lyrios; mas, se vos parecer, não deixeis de folhear tambem um poucochinho os economistas; não será mau. Os corvos da Thebaida acudiam, verdade seja, aos santos eremitas á hora do jantar com pães tomados sabe Deus d'onde; mas não ha muitos d'esses hoje em dia, cá pelas cidades. Corvos que vos empolguem o vosso pão da mesa, e até da mão, isso mais depressa.
XXIII
Maria conhecia-me pelos meus livros e pelas minhas cartas; alguma coisa era; mas os meus escrupulos melindrosos pediam mais: enviei-lhe o meu retrato, uma expressiva miniatura em marfim. A mão engenhosa do pintor, não paga de me reproduzir, enchera de um rosal florescente o fundo do seu painelinho; era o poeta da "Primavera", rodeado dos seus preteritos amores. Guardo-o como preciosidade e reliquia; ¡se andou tanto tempo occulto no seio com que eu sonhava!... A carta em que ella me agradecia este pequeno penhor, repoisa, outra reliquia, no mesmo cofre junto d'elle; seria profanação o publicál-a. Fique ali a sonhar eternamente a immensa ternura de que a repassou a melhor, a mais carinhosa mão de quantas jamais pegaram na penna para revelar a uma alma a formosura de outra.
É a este segundo periodo das nossas relações, começado ao desfazer-se a nuvem da divindade, deixando apparecer a mais sympathica das mulheres, que pertence inteiro o livro sobre que emprehendi derramar agora alguma luz.
XXIV
Lêstes sem duvida a historia de Pygmalião; então sabeis como aquelle phantasioso escultor, com a arte no coração, e a fé na alma, lavrou uma estatua, se ennamorou e endoideceu por ella.
O sol da Grecia, que tantos portentos allumiou, nunca vira coisa assim formosa.
O Real estatuario, pois era Soberano, esqueceu por ella mais que o seu throno de oiro, e os seus estados que o adoravam; esqueceu todas as beldades de umas regiões como aquellas, digno berço de Venus e das Graças, e onde os lacteos marmores e as ceras coloradas, para copiarem aos olhos as formosas do Olympo, e povoarem os templos com Hebes e Junos, Dianas e Minervas, de mais não precisavam que retratar os bandos vivos e buliçosos das filhas da terra. A todas offuscava para elle, para elle Jupiter do cinzel, a Pallas brotada da sua cabeça poetica e fogosa; assim a lua cheia, ao levantar-se de traz dos cumes selvaticos dos Dáctyles, desterra o scintillante cardume das estrellas.
Não contente de a vêr todo o dia, vinte vezes se levantava cada noite para tornar a vêl-a, e de cada vez lhe descobria gentilezas novas. Com a alampada trémula na mão, erguendo-a, abaixando-a, ora de longe, ora de perto, a rodeava, scismando, palpitando, sorrindo, figurando-se-lhe vêl-a corresponder com a expressão do aspecto ás blandicias com que elle, mais poeta que Anacreonte, a affagava. ¡Oh! ¡que não daria elle por ter a lyra de Orpheu e de Amphião, cujos sons escutados pelas pedras as animavam!
Ás plantas nuas da sua Galatéa, mil vezes rebeijadas, tomava as suas refeições, offerecendo-lhe sempre com suave convite as primicias de Baccho e Ceres, os mais perfeitos favos de Hybla e do Hymetto, e os mais delicados dons de Pomona, que em canistreis de vimes de prata lhe vinham pôr deante virgens, por quem o Pae dos numes se metamorphosearia vinte vezes.
Cochichavam ellas entre si, e riam doidinhas á socapa os mais tentadores risos que sabiam, sem nunca lograrem que os olhos fitos nos da estatua se abaixassem, nem por descuido, para os d'ellas. Retirada a mesa, fechava o Principe as portas eburneas do aposento, incendia-se com segundas libações rituaes de Naxos e Chios; exhalava o seu fogo tresdobrado em abraços e beijos; cingia de perolas e diamantes o collo e os pulsos da effigie; banhava-a com essencias de nardo e dictamo; engrinaldava-lhe a fronte com as rosas mais frescas das emmolhadas em vasos aureos esculpidos, coroando-se com as restantes a si mesmo; tornava a encaral-a; e o reflexo das flôres de Amathunta, que Sapho algum dia havia de proclamar rainhas de todas as flôres, e a que a Mãe de Cupido fadára as mais extranhas seducções, quando as viu retintas com sangue do seu Adonis, aquelle reflexo purpurino no alvor das faces lhe parecia, no seu estatico enlevo, uns assomos do pudor virginal sobresaltado com a desnudez propria, com a solidão e voluptuoso desamparo do sitio, com o olhar a um tempo supplicante e audaz do adorador.
Era então que, delirante, perdido de desejos impossiveis, elle se lhe pendia amorosamente ao pescoço, forcejava por animal-a com ósculos; e reconhecendo quanto eram baldados os seus desejos, imbebia o rosto ardente entre os arfantes seios, frios, de marmore, e os áljofrava com um chuveiro de lagrimas. Nestas porfias, sem victoria nem derrota, se lhe exhauriam as forças; deixava-se cahir esmorecido para cima do tapete de purpura de Tyro, cerrava os olhos, e um somno transparente, um meio-sonho, dando-lhe por momentos a posse da sua beldade, ouvindo-a, sentindo-lhe palpitar o coração, repassando-se do seu calor, o restaurava, para se tornar com mais vehemencia, em acordando, á sua adoração perpétua, ás suas cubiças insensatas.
A deusa dos mil amores, que perscruta até ao intimo os corações dos mancebos, podia bem ter ciumes d'aquella pobre e insensivel beldade tão amada; mas foi generosa; generosa... não: antes muito justa. Não era aquelle o mais solemne culto, o culto mais sincero e desinteressado que jámais se rendêra á sua divindade?
Não odiou a Galatéa; sorriu-lhe como para uma irman mais nova; mirou-se n'ella complacente como n'um espelho. A filha das ondas do Egeu foi benigna para a filha dos marmores de Paros.
-- «O amor que nasceu de mim -- dizia ella -- não me tem a mim propria ferido e felicitado, tantas vezes? Por que não farei eu que esse amor, não menos maravilhoso, que nasceu d'aquella, lhe dê tambem um quinhão nos céos que eu disfructo sem limite?» --
Pygmalião, o Rei artista, havia afeiçoado para muitos altares os mais perfeitos, os mais adoraveis simulacros da Immortal; e se não se inflammára por elles, como agora por este de Galatéa, era só por que a santa majestade do ser divino lh'o prohibira; mas os templos, em que os milagres d'essa arte crente e inspirada resplandeciam alvejantes, eram sempre os mais frequentados, os mais servidos com offertas, sacrificios, e grinaldas. A officina mesma, em que avultava entre um povo de outras estatuas e grupos a estatua da sua rival em fascinações, era sympathica aos olhos da Omnipotente, e sollicitava o seu favor. As pombas, que a ella lhe vogam o carro aereo, jungidas com festões de murta, tinham ali entrada livre. Dos loireiros rosiflores, e das grutas dos jardins do palacio, esvoaçavam-se familiares até aos peitoris das janellas, sempre francas ás inspirações dos ceos diáphanos, do cicío das auras pela folhagem, e do estrépito das fontes, melodias como de nautas migdóneas. D'ali observavam, conversando umas com outras, a profusão que lá dentro ia, de coisas tão brancas, tão suaves: ¡tanta nympha! ¡umas, trajadas como para chorêas! ¡outras, despidas como para o banho! ¡e entre todas, e sobresahindo a todas, o vulto da propria deusa, tão sua conhecida, e o de Galatéa, não menos celeste, candida como ellas, e, a julgar pelo sorriso, como ellas affectuosa! Alguma das espreitadeiras aladas dizia então lá pela sua lingua ás companheiras: -- «¡Olhae, olhae como está em ambas enlevado! os escravos chamam-lhe Rei, mas não é tal: é, como nós, um captivo do amor; ¡e de quão benigna condição!... é reparar-lhe no ar, nos movimentos. Não vêdes como olha para nós, tão benevolo, e quasi invejoso, quando nos beijâmos? entremos sem medo, que nos não ha-de fazer mal. ¡Mal aquelle!... Apostaria eu que já foi pomba, antes de ser gente. Chôva-lhe a nossa rainha, como sobre nós, amores sem espinhos, e delicias renovadas de hora a hora.» --
A estancia era então invadida pelo bando festivo. Pygmalião exultava, tomando por feliz agoiro ver as conductoras do coche de Dióne arraiarem-lhe a casa toda com os reflexos argenteos das suas azas irrequietas, e cobrirem de ternura, de voluptuosidade, de poesia, como um veo alvo, roto, e esvoaçado, as estatuas dos dois idolos do seu coração.
Não era tudo isto mais que bastante para merecer á mãe do amor um prodigio sem exemplo, e que a ficasse glorificando nas lyras namoradas de todo o mundo?...
Acabava um dia o Principe de queimar aos pés de Venus, segundo o seu costume de todas as manhans, uma copiosa oblação do mais puro incenso. Tinha regado o fogo, em que elle fumava n'uma amphora de bronze, com vinho amadurecido havia cem annos pelos oiteiros pampinosos de Chypre, e reservado em talhas de barro para sacrificios aos deuses maximos. Tomada respeitosamente venia da Immortal, transporta por suas mãos o vaso depositario do fogo para deante de Galatéa. Quer offerecer-lhe, ainda que em segundo logar, porção igual, tanto da rescendente massa, orgulho da Arabia, como do liquido generoso. Enganou-se-lhe a mão no incenso, e lançou nas brazas porção avantajada. Venus sorriu, e não se agastou. As distracções do amor, ninguem melhor do que ella as conhece por experiencia.
Emquanto o veo alvacento do innebriante fumo, elevando-se d'ante o pedestal da nympha, a envolvia toda, e tornava a sua presença mais celestial, Pygmalião, acompanhando-se com a lyra de sete cordas, cantava de joelhos um hymno, que as pombas escutavam n'um silencio religioso; pareciam querer decorál-o para o repetirem á sua rainha, quando ella se jazesse em amoroso ocio, reclinada sobre as violetas em algum secreto pavilhão de rosaes da sua Paphos:
-- Tu que exhalas de ti, qual vérte a rosa aromas,effluvios de prazer, universal ternura,Mãe das Graças e Amor, deusa da formosura,que envolves a nudez co'o veo das aureas comas,Venus; pois que são teus os ceos, a terra, os mares,e até ás sombras do Orço abrange o teu poder,lança um propício olhar, Venus, aos meus pezares;do teu jugo me solta, ou dá-me emfim morrer.Com tão cruel supplicio, ignoto á humanidade,ria teu filho em vão, tu, deusa, és mais piedosa.Ardo por uma pedra em chamma vergonhosa,perdi a paz e a gloria, o siso e a liberdade.Qualquer ente alardeia ufano os seus amores:a ave, piando; o peixe, aos pulos pelo mar;o rebanho, mugindo; em cantos os pastores;e eu, Venus, só a ti ouso este ardor mostrar.¡Quão menos insensato o moço do Cephysose finou por si mesmo ao pé do espelho aquoso!Suppoz a sombra nympha; espera ser ditoso;cai no engano; perece; apiadas-te, é Narciso.E eu, eu sei que a beldade, iman d'est'alma ardente,só a mim deve o ser; nasceu de minha mão;não me ouve, não me vê, não se condoe, não sente;não lhe pude formar lá dentro um coração.¡Ó Venus! se ha mulher que eu possa crer retratodo immenso que sonhei compondo a Galatéa,revela-me onde habita a amavel Semidéa;assim teu filho Amor jamais te offenda ingrato.Seja embora pastora, obscura, humilde, escrava;terá por choça um throno, e por captivo um Rei;e eu, já salvo da insania, eu, que a teus pés chorava,a ti uma hecatomba alegre immolarei.» --
Ainda bem não findára a prece, quando lhe pareceu notar nos labios da Immortal um sorriso auspicioso. O Cupido, que junto d'ella estava em pé, e que era tambem obra de suas mãos, agitou as azas de marmore, soprou as labaredas petrificadas do facho, que instantaneamente coruscaram, e rompendo por entre a cortina do incenso, que ainda envolvia a nympha, lhe lustrou com o milagroso calor a fronte, os olhos, as faces, a bocca, o seio, o coração. Ao fogo d'este segundo e divino Prometheu, a estatua estremece; a pallida brancura se tinge da côr da vida; o peito palpita; os olhos se voltam para o céo da Grecia, que logo os embebe do seu mais brilhante azul; baixam sobre Venus; ¡parecem attonitos! descem; ¡encontram-se com os de Pygmalião! duas rosas subitas se abrem nas faces; o sorriso, aurora de uma existencia de amores, alvorece em labios nacarados.
-- «¡Filha dos meus sonhos!» «¡Galatéa! -- » exclama o artista delirante, correndo a tomál-a em braços, ao vel-a descer do pedestal. «Galatéa, ¡filha dos meus sonhos! ¡se é esta uma nova illusão que Morpheu me envia, compassivo, mas cruel, possa eu não acordar jámais!»
Vistes vós alguma vez rasgar um dia magnifico depois de uma noite profunda? Notastes como então sahiam do nada as amenidades das terras e dos rios, a animação e o movimento dos campos e das cidades, as côres, os cantares e as esperanças? assim, repassada a subitas de calor e luz pelo sol dos espiritos, pelo amor, a alma recemnascida de Galatéa adivinhou para logo a adoração de que era alvo. Comprehendeu a turbação que inspirava, pela que sentia. Viu nas profundezas interiores do seu ser, diaphanas como um lago limpido, a sua pureza virginal, a sua magica-branca, a sua suavidade irresistivel, o seu destino de ser feliz felicitando.
A turbação instinctiva de um pudor que a si proprio se ignorava, cobriu o rosto de Galatéa do mais amavel escarlata; abaixou a vista sobre si mesma, e não sabendo para onde se refugiar, mariposa attrahida da luz, voou para os braços do amante, escondendo o seio no peito d'elle, fechando os olhos para não ser vista.
N'este momento a Philoméla, occulta na folhagem de um platano visinho, entoou um brilhante epithalamio, e o hymeneu fechou as cortinas purpureas do aposento.
XXV
Despidos os accessorios esplendidos e sobrenaturaes, a fabula de Pygmalião reproduziu-se na minha historia; o simulacro que eu incensára e servira, o simulacro filho da minha imaginação, era emfim mulher; mulher amante, capaz de bemaventurar-me, e desejosa de o fazer. Só a Philoméla do platano, e o hymeneu, andavam ainda tão longe e tão emboscados nas brenhas do futuro, que eu mesmo não ousava crer-lhes bem deveras na existencia.
Entretanto, como a encarnação e os sentimentos do meu idolo para commigo eram innegaveis, começou logo a haver entre nós uma especie de semi-consorcio tacito; era já a communidade dos corações, se não era ainda a dos somnos, visto que o bom Ducis, chamou ao casamento
"Douce communauté de coeurs et de sommeils."
As nossas mutuas confidencias passaram a ser, por minha parte, o que por parte d'ella desde o principio tinham sido: reservadas inteiramente de ouvidos extranhos e curiosos. Com isso lucraram muito maior affoiteza, e um novo encanto, que nos concitou a ampliál-as de dia a dia.
Quanto é dado a ausentes conhecerem-se, conhecemo-nos. Pelas mutuas e circumstanciadas descripções que trocámos das nossas vivendas, dos nossos gostos, do emprego das nossas horas, e de todos os nossos pensamentos, podemos, como sylpho e sylphide, visitar-nos de continuo. Estavamos simultaneamente: eu junto d'ella, no seu mosteiro; ella commigo, no meu castello. Já não havia lá nem cá, ladrilho de pavimento, nem abobada, accidentes de luz ou sombra, movel ou planta, que nos não fosse familiar. Via ella gostosa ao meu lado, o irmão inseparavel que me excitava a querer-lhe, a amál-a, com a mesma espontaneidade com que me acompanhava nas outras excursões poeticas; eu, achava ao pé d'ella a Religiosa sua intima, que a vira crescer, que a estremecia como a filha e irman, que a ajudava com os seus conselhos, a protegia como Anjo da guarda, se revia na sua bondade e no seu talento, e que, apesar de não saber como viveria se a perdesse, nem por isso apressava menos com os seus votos o momento de m'a entregar.
Assim mesmo, ¡grande era na verdade a minha solidão! mas tenho que a de Maria era ainda mais profunda, poetica, e enamorada.
Ha uma natural propensão que nos leva sempre o desejo do que possuimos, para o que não temos, para o que muitas vezes não poderemos alcançar; a imagem de um ermo attrai o mundano; a do mundo dessocega ao eremita. São palpitações e adejos da alma captiva para o ideal. Somos assim. Se o não fôramos, onde estariam os horizontes luminosos da alma? Onde, como, e de quê, podéra crear-se poesia?
Eu, que tinha em redor de mim uma cidade, e a liberdade de me expandir para toda a parte, punha as minhas mais cordeaes delicias em me ir encerrar não pressentido, nem presumivel, n'aquella remota clausura. Maria, costumada a ella, sem quasi conhecer outra coisa, e devendo estremecer só ao pensamento de trocar o seu pacifico viveiro pelas extranhezas e perigos do ar pleno e sem limites, Maria, compunha agora lá os seus melhores devaneios no phantasiar outro viver, outro sentir, outros deleites, e de todos os deleites o maior, dizia ella, o de gastar a sua existencia em amenisar outra; ambição verdadeiramente feminil: ¡a abnegação absoluta!
Se viessem no futuro a citál-a como a socia, a guia, a auxiliar, a afinadora da lyra do poeta, e a serva ministra das suas festas, seria isso para ella um triumpho (mil vezes m'o repetiu). Mas, embora o seu nome viesse a esquecer de todo (acrescentava com uma effuzão de ternura encantadora), a certeza de haver obscuramente cumprido todo esse encargo, já lhe bastava para não trocar a sua dita pela de outra alguma.
XXVI
As abobadas de um claustro encobrem thesoiros de sensibilidade inapreciaveis, inexhauriveis, e bem mal avaliados dos profanos.
Cada um considera aquelles encerros mysticos á luz dos seus proprios preconceitos. Um espiritual, vê ali um alfobre de plantas para o Céo; uma terra de Gessen allumiada de cima pelo sol, no meio de um Egypto ennoitecido; um paraizo passageiro sotoposto ao Paraiso perennal, com a mais curta e directa serventia de um para outro. Ao incredulo, figura-se um pantano antigo de fanatismo e superstições. Um economista, lhe chama desperdicio anachronico de riquezas, de forças productivas, e de população. Um naturalista, execra, em nome da Natureza, que se ousem e se permittam votos de a renunciar; e, propheta de infortunio, commina, em nome d'ella, como infalliveis penas do desacato, as tristezas, as enfermidades moraes e physicas, as allucinações, os delirios, o definhamento, o envelhecimento no incompleto dos annos, a morte prematura. Finalmente, um romancista licencioso sonha, e se arroja a escrever os seus sonhos como historia, que o amor, bannido em vão d'aquelles recintos, em parte nenhuma é tão despota, tão insensato e monstruoso como lá. Segundo esses moralistas de abominação, os mysterios vergonhosos da deusa Bona, ter-se-hiam perpetuado ao abrigo e no seguro inviolavel dos nossos asylos religiosos.
Desprêso a tantos exageradores systematicos. Se um mosteiro não é Céo, porque o não ha nem cabe na terra, é um santo e bemdito refugio, onde muitas penas se atalham, e muitas se adormentam.
O caracter de contranatural, que acintosamente se exprobra ao mosteiro, existirá porventura, como se comprazem de declamar os seus antagonistas? Não de certo; no mosteiro feminil principalmente.
Se a felicidade terrestre, por outra, o contentamento, é o unico alvo racional, a que tendem por diversas vias todos os exforços humanos, quem affirmará com a mão na consciencia, que a mulher do nobre no seu solar, a do burguez na sua casa, a do artifice no seu sótão, a do rustico na sua cabana, a do pescador na sua choça, para não falarmos de tantas outras mulheres sem poisada certa, sem familia, e sem sociedade, disfructam maior quinhão de ventura que as Religiosas? Será tudo, será mesmo o essencial para a felicidade, o ter um esposo e ter filhos, esses dois bens, essas duas ufanias tantas vezes descontadas pelos mais pungentes cuidados, pelos mais amargos desgostos, e não raro pelo encurtamento da existencia?
«Possuem a liberdade,» dirão elles. ¡A liberdade!... que liberdade? interrogae-as a uma e uma; não ousarão responder-vos; mas um involuntario sorriso triste vos responderá por ellas. Quantas são das forçadas que remam n'esta galé mundana, as que não terão muita vez pensado com inveja no viver manso e sem estrondo d'aquellas solitarias, sem os cuidados do amanhan, sem as fadigas improbas do hoje, sem os arrependimentos e os pesares do hontem?...
Cada uma d'estas diversas operarias do futuro, colhe, é verdade, aqui ou além, mais ou menos abundante, mais ou menos imperfeito, algum deleite que o mundo nega ás cenobitas; ¡mas quanto não compra ella caro esses deleites, essas escaças compensações dos seus pobres destinos, que vós, philosophos exclusivos da população e da riqueza publica, chamarieis naturaes, se vos atrevêsseis!
A eremita, pelo contrário, privada d'estes gosos passageiros, está livre das sollicitudes que tantas vezes os precedem, os envolvem, os seguem, os descontam, os aniquilam.
As faculdades amantes de que se compõe essencialmente o ser feminino, não se anihilaram entrando para o ermo; exaltar-se-hiam porventura; e, se lhes faltasse emprêgo e alimento, devorariam afinal miseravelmente, e com medonha rapidez, as miseras depositarias d'esses dons celestes. Felizmente não succede assim. Ellas amam tambem. -- «Amam?!» ¡Oh! ¡e quanto! ¡e quão bem! ¡e quão satisfeitas! «Ellas?!!» Sem nenhuma dúvida. Os seus amores são melhores que paixões: são simplices affectos.
Uma cultura especial, e o influxo dos ares que respiram, operaram n'ellas, sem as destruir, uma curiosa transformação: tinham nascido flores singelas para fructificarem vulgarmente; uma jardinagem milagrosa as converteu a pouco e pouco em flores dobradas, mais fragrantes, mais para cubiças. Do que originariamente havia de servir para a reproducção, fez petalas; fez viço; fez flor de flor: monstruosidade embora para o botanico e para o naturalista, mas ufania para a terra, e orgulho para a arte, que, sem destruir a natureza, logrou apresental-a com aspecto mais formoso. D'estas flores viventes póde coroar-se a Religião, que são dignas d'ella; póde inspirar-se a Poesia, que em nenhuma outra parte as encontrará tão celestiaes; e póde a Moral mesma comprazer-se, que tem n'ellas modelos perfeitos de virtudes, sempre raras, e cada vez mais recommendaveis.
Mas teimais em perguntar que é o que realmente amam estas mulheres? Tenho medo de que não chegueis a entendêl-o bem, porque eu mesmo, grosseiro, carnal, mundano como vós, não cheguei ainda bem a explicar-m'o. Para isto, falta-nos a nós todos um sentido, sentido sem nome, que descobre mil coisas subtis no mundo moral; a metade mais delicada da nossa especie é que o possue; as mulheres é que o saberiam explanar.
Se em espirito devassâmos a furto uma clausura, que é com effeito o que descobrimos n'aquelle mundo tepido, tão suave, melodioso, e perfumado por dentro, como triste, áspero e mudo parece cá de fóra? A alteza dos muros, e as grades de ferro, têem razão: não estão ali para evitar a fuga; estão porventura para disfarçar a seducção do retiro, que, a ser conhecido, fascinava excessivamente; estão sobre tudo para rebater audacias de desejos impuros, qua a pureza mesma attrahiria, como o balir manso das ovelhas no aprisco está innocentemente chamando os lobos em seu damno.
Por traz d'aquellas gradarias severas, d'aquellas muralhas ameaçadoras, está uma cidadinha toda feminina, sempre em paz e em festa; paz talvez com leves quebras, para melhor se apreciar; festa sem tumulto nem estrondo, sem custosos preparos, nem recordações afflictivas.
Os dormitorios são bellas ruas direitas, calçadas de lageas polidas, e onde o silencio, amigo da meditação, se casa harmoniosamente com a sombra fresca, e deixa perceber o som dos proprios passos que vêem da extremidade opposta, como se até o andar tivesse ali a sua reflexão.
Por ambos os lados d'estas ruas, abobadadas como hoje as de Herculanum, e condecoradas cada uma com o gracioso nome de uma Santa, se enfileiram os modestos palacios das habitantes. As portas sem chave, á primeira saudação affectiva, ao minimo toque, se descerram. Descobre-se no interior a riqueza da desambição; um sorriso hospedeiro, que illumina tudo como sol; o leito alvo para os alvos sonhos; os paineis meditabundos, que a musa da lenda explica, ora em idyllios, ora em phantasticos romances, ora em tragedias gloriosas. Sobre a mesa sem espelho, a jarra de flores entre duas velas de cera alvissima, e alguns livros, d'estes cuja leitura se interrompe a scismar, e se continua mentalmente por uns mundos nunca vistos, em que tudo são maravilhas. Um pintasilgo saltitando e scismando tambem n'alguma coisa do passado, do futuro, ou do possivel, alterna suspiros e cantares, pendente do tecto na sua thebaidasinha de arames, enfeitada de ramos frescos; vê de um lado a arqueta do seu pão sempre cheia, do outro a sua cisterna de vidro, em que se mira como Narciso, em que bebe como a Samaritana, ou se banha na sésta como odalisca; em baixo, vê a sua providencia, que em fórma de boa amiga o considera, lhe fala, e interrompe os seus lavores, ou orações, para lhe atirar beijos. Emfim: a janella completa as magnificencias do palacete, juntando-lhe, como dominios contiguos, o vergel proximo, e o ceo, que pouco mais distante se figura.
Nas casas d'esta singular cidade, que o mundo não vê, e muito d'elle não quer ver, para mais a seu salvo a poder negar, ajuntam-se frequentemente assembléas, em que se não gosa por certo á moda de nós outros, mas se gosa não menos, e talvez mais, á moda do ermo: são conversações entre espiritos. Se as paixões vehementes as quizessem invadir, resvalavam-lhes pela superficie. Os affectos sim que as povoam, e constituem a sua essencia; é um papear como dos passarinhos n'um bosque ao principio e ao fim do dia; porque n'aquellas vozes meigas, ora transpiram os influxos de um crepusculo, que apoz as trevas se abre para um dia grande, ora os de outro crepusculo, que se vai a pouco e pouco fechando sobre as alegrias, para acabar na escuridão; mas, quer um, quer outro, todo o crepusculo tem rosas, todas as rosas teem amores.
Não se discutem ali, nem as novidades do periodico, jornal das modas dos politicos, nem os caprichos dos enfeites, politica das mulheres. Os eccos dos espectaculos, dos motins, dos escandalos, das heroicidades, das demolições e das edificações das outras cidades, das grandes, das Babylonias, ou não chegam até esta povoação, ou lhe entram tão amortecidos e como de coisa tão extranha, que nada ou pouco desconcertam a immutabilidade do pensar, e nada absolutamente a do viver.
O amor sensual é da Natureza, não ha duvida, e não entra ali; afugentam-n-o, exorcizam-n-o, como o demonio do meio dia e da meia noite; debalde o pobresinho se faz Protheu para as captar: agora cantando-lhes convites d'entre a copa de uma arvore, agora passando como viração que vem de ver namorados, e vai correndo por cima das hervas trémulas a espreitar outros; uma vez é som de flauta longinqua, que desperta suspiros por onde passa; outras, um nome de homem proferido ao acaso, palavra sem virtude onde elles abundam, mas ali occasionadora de devaneios; reveste a fórma de alguma coisa, de alguma pessoa, de algum sitio, de alguma scena, que se viu em quanto se andava lá por fóra, em que se ficou pensando, e que ainda na memoria do coração se não apagou.
Sim, sim; não ha negál-o: o Amor, ladeado das Graças, deve espreitar bem a miude, trepado nas grades exteriores, para o que vai lá dentro, como os passeantes n'um jardim devoram com os olhos as flores e moveis de uma estufa, ou como as pombas de Pygmalião lhe consideravam as frias e ridentes estatuas da officina.
Mas que mal faz isso? tambem as Amazonas haviam de ser salteadas, não raro, por vagas tentações voluptuosas. Todavia, a gloria de lhes resistirem, junto ás occupações que lhes enchiam a vida, as mantinha satisfeitas umas das outras, e ufanas do seu forçado celibato.
Toda a differença é: que as heroinas do Thermodonte, cortando o seio direito para melhor pelejarem, como que despediam de si metade da sua feminidade, e, endurecidas com a prática das guerras, se indemnisavam com a alegria de vencer a inimigos, dos deleites de serem vencidas por amantes; ao mesmo passo que estas amazonas pacificas da Religião, conservando inteira toda a sua sensibilidade, a enganam, dispartindo-a, furtada aos impetos da natureza carnal, por um cardume de objectos qual a qual mais consentaneo á sua indole delicada: é o trato das flores, que são suas irmans; é a creação dos passarinhos, que são, voadores do ceo, os irmãos de suas almas; o canto, exercicio de Anjos; é a caridade, enlevo do Creador; são as miragens infinitas da esperança; são as perdoaveis altivezes de um estoicismo temperado; são tambem os entretenimentos manuaes: ora de vestir e ataviar a santa Imagem predilecta, que para o coração suppre uma filha, ora de coser o enxoval branco para a creança que está para nascer na cabana visinha, ora tambem de seroar na grinalda de flores de laranja, com que se ha-de enfeitar no seu dia grande uma noiva muito amiga.
Que são os presentes que saem continuos d'aquelas portas, se não coisas todas formosas e suaves como a cera e o mel das colmeias? laminas devotas e scintillantes; doces de mil gostos, de mil côres, de mil fórmas; flores e fructos artificiaes, com que as abelhas se enganariam; aromas para toucadores e festas; cartas, mensagens, e convites quasi pueris na simpleza, e sempre rescendendo á innocencia mais sympathica e mais alegre.
O segredo de tantas e tamanhas branduras, por si mesmo se descobre: a mulher no trafego do mundo, se infiltra suavidade para o sexo forte, com quem convive, recebe d'elle em troca o que quer que seja de mais grave, que não quero dizer de menos extremoso; e uma beneficiação mutua e perenne, que a Providencia ideou quando partiu em duas metades a nossa especie; mas a mulher na convivencia exclusiva do seu sexo, mantem inteiras, completas, e no mais perfeito estado de graça original, todas as suas disposições nativas; é como a violeta, que emboscadinha á sombra conserva o cheiro subtil e o frescor virginal, que as mãos e o sol lhe estragariam.
A mulher aqui não é esposa nem mãe, porém não deixa de ser mulher, se não que o é em muito maior auge.
Não vos basta? deplorais a encantada cidadinha por estar carecente de praças, de passeios, de espectaculos? Outro engano; outro engano manifesto: pois não são donosas praças aquellas crastas arborisadas, com suas sonorosas fontes de repuxo no centro, e á volta majestosas arcarias á romana? claustros guarnecidos de baixo a cima com azulejos de biblica erudição, não recordam os Porticos, em que os antigos senhores do mundo se espaireciam das calmas por entre estatuas e pinturas de suas fabulas? não são passeios publicos, e mais apraziveis por libertos de constrangimentos, os jardins, os pomares, as frescas hortas da cerca? theatro de espectaculos augustos, não o será o templo aos olhos da fé e da piedade? não se representam ali em seus dias prefixos todos os lances da vida do Salvador, desde o Presepio até ao Calvario, desde o Calvario até á Ascensão? todos os passos da Rainha das Virgens, desde a sua Natividade até á sua Assumpção? todas as glorias dos principaes Bemaventurados? Não é ali, no magnifico santuario, que entre a profusão de marmore, luzes, oiros, sedas, flores, incenso, resoam em musicas solemnes, que só o orgam é digno de acompanhar, os mais graves e poeticos pensamentos dos Prophetas, dos Apostolos e dos Doutores, e que, inspirando-se de todos elles, a eloquencia sagrada derrama a doutrina para a ignorancia, a esperança para os afflictos, os desenganos para os vaidosos? aos pobres annuncia thesoiros, thronos aos conculcados, festins eternos aos famintos, sobrecorôa aos Santos, invoca luz perpetua para os finados, e vôa, como o Dante, por uma espiral infinita, do fundo dos abysmos até ao cume do firmamento.
Cada festividade é precedida de longe pela ancia de a ver chegar, e deixa apoz si recordações para muitos dias.
As donzellas dos salões, que revolvam e troquem entre si memorias das contradanças, do valsador infatigavel, do discreto que as entreteve, dos trajos e penteados que se distinguiram, do novo duetto que se executou, do romance ou das poesias que se annunciaram de autor querido, de uma inclinação encoberta de que já todos segredavam, do baile estrondoso que se ia ter, de uma regata, de um duello, de um passeio a Cintra, de uma lua de mel, ou de uma exposição de bellas-artes. As virgens do que se cuida solidão, não acham para si menor nem menos attractivo assumpto, o revolverem na conversação, o repastarem no espirito, as circumstancias, os minimos accidentes, de que se acompanhou o dia festivo do seu templo; os enfeites e a elegancia de cada altar, o inesperado primor d'esta ou d'aquella cantora, a maviosidade com que o orgão gemeu na Adoração, o como a ponto acudiram de fóra o repique e a girandola, o rasgo de pintura, ou de affecto, com que o orador maravilhou o auditorio, a multidão e a variedade de vestidos que affluiram á egreja, as largas distancias d'onde accorreu povo a ella, a satisfação com que todos sahiram, e o bello e saudoso effeito que fazia aquella torrente ondeante de cabeças, ao engolfar-se e desapparecer da nave para o terreiro, por baixo do côro, como um rio fugaz por baixo de uma ponte inabalavel.
Direis que ha um travo particular de tristeza em tudo isto. E quaes são os prazeres do seculo em que esse resaibo se não mistura? denunciae-me um unico, se o descobristes.
Murmurais que em tudo isto é sempre mais ou menos a contemplação inerte e passiva, e que a vida fraudada de todo o movimento proprio e espontaneo não é vida.
¡Mas então não sabeis que n'aquelle povoado ha tambem, a seu modo, uma Paschoa de flores, estreias de anno bom, fogueiras de S. João, dias duplices para regosijos, banquetes e alegrias de abbadessados, visitas ao locutorio, quanto mais raras tanto mais bem vindas, e em que o ermo e o mundo se confrontam de perto! e não é por certo o ermo o que mais se póde queixar do seu quinhão.
Que dirieis vós da monja, que negasse existirem passatempos nas nossas cidades, só porque os não via, e descriptos os não imaginava? Pois outro tanto podia ella dizer, se o não diz, de vós outros, que descredes da bemaventurança da sua cidadinha.
O cenobio, tal como o esboçamos aqui, existe em realidade; e contra os d'esta especie não aventamos que séria objecção possa pôr a philosophia humanitaria. São refugios para corações feridos, que em nenhuma outra parte o encontrariam; são asylos para muito desamparo da fortuna; são taboa de salvação para muito naufragio; repoiso para muito cançaço; gruta mysteriosa para muito animo poetico; seguro para muita innocencia; e se a Liberdade os não pode proscrever sem contradicção, sem a si propria se annullar, a philosophia, mãe, filha, e socia, da mesma Liberdade, o que só pode contra taes mosteiros, ou antes em favor d'elles, é exigir que os severos votos, aliás licitos em si mesmos, sejam soluveis, e se desatem apenas finde a vontade que os dictou; e que a prepotencia, a ambição barbara, calculos ou vinganças, não atirem para os pés do altar victimas consternadas, em vez de sacerdotisas radiosas.
Franca a entrada, franca a sahida, o mosteiro não ficará sendo senão a séde do contentamento, da virtude, da perfeição, e até da Liberdade mais ampla, mais inoffensiva, mais formosa, mais completa.
Apressemo-nos em confessar, que nem todas as clausuras se assimelham a esta que entrevimos, de que já existe metade, e de que a outra metade hade vir por certo, quando ressentimentos politicos emmudecerem, e a razão dos povos, desassombrada de todo o genero de preconceitos, for adulta e governar.
Não; nem todas as clausuras são assim; e contra as que assim não são, pouco nos magôa que a Philosophia troveje, e que a Liberdade se levante. O convento que amamos e defendemos, o convento que o bom senso applaude, que a natureza approva, que a cidade deve acarinhar, e o Céo cobrir com benção de prosperidades, está equidistante do convento fanatico, suicida, e assassino, e do convento relaxado, vicioso, onde impera, em odio aos ceos e á terra, o monstro execrado sob o titulo de "crasta" na linguagem mesma das chronicas monasticas.
Estes ultimos (¡ainda bem!) dissolve-os a podridão interna; passam, e a sua memoria só fica subsistindo nos contos asquerosos da escola de Bocaccio e La-Fontaine; mas a vida d'aquelles, mais dura, mais resequida, mais resguardada, não se gasta senão muito lentamente.
A Religião e a Humanidade caminham sorrindo uma para a outra; logo que se encontrem n'um abraço estreito de irmans, para nunca mais se dividirem, aquelles institutos, que nem uma nem outra reconhecem por seus, ou hão-de desapparecer com todas as suas sevicias, como desappareceu a Inquisição, ou se hão-de converter á Natureza, cujas branduras licitas e bonissimas rejeitavam. Nunca mais uma triste mãe sentirá estalar-se-lhe o coração a fibra e fibra, vendo sumir-se-lhe para a catacumba de um claustro a filha mimosa das suas entranhas, creada com o seu leite, crescida entre os afagos, ufania dos seus olhos, bordão florido para a sua velhice. ¡Velhice! Que mãe, verdadeira mãe, poderia chegar até lá, dizendo-se a cada hora do dia: -- «¡Nunca mais a posso ver!, ¡nunca mais a hei-de ouvir, se não fôr por sonhos! quando eu acabar de morrer, dir-se-ha no meio da communidade, silenciosa como espectros pallidos, e tremulos todos: "Resemos pela alma da mãe de uma de nossas irmans"; e nada mais, senão chorarem todas, suppondo-se todas orphans na orphandade que só é de uma.» -- Á mesa, onde não vê sua filha, salgará com lagrimas o pão, porque a sua innocente, defecada da penitencia e dos jejuns, não terá, para matar a fome, no seu canto escuro e solitario, senão um pedaço de pão negro e duro, que o mendigo e o cão esfaimado de tres dias recusariam. Não poderá encarar com donzella alheia coberta de galas, e trocando risos de alma com toda a Natureza, sem logo se atirar de mãos postas, e debulhada em lagrimas, aos pés da imagem da sua ingrata, coberta de burel sêcco e mordente nas calmas do estio, descalça, apertada n'um cilicio, cortada das disciplinas, entregue aos mistéres mais trabalhosos e obscuros, definhando-se de semana para semana, com o coração já morto, com a alma já meio morta a pezar dentro na fronte pendida e despojada, ¡que não ha reconhecel-a! ¡e os olhos sempre no chão, á procura do sepulcro, que assim tarda! ¡Como dormirá e mãe, quando, encarnada pelo amor na pessoa da filha, cogitar (e cogita sempre) que a pobresinha nem tem, como a ovelha, um feno em que descance, mas pernoita vestida, ora n'uma taboa nua com uma pedra por cabeceira, ora prostrada em oração sobre as lageas regeladas do pavimento!
Arredemos d'ali os olhos; mas isto existe. O proprio Martyr Sublime, não n-o póde ver sem pena do alto da sua Cruz, Elle que proclamou que o seu jugo era suave, e que fez do amar a pae e mãe o primeiro dos seus mandamentos em relação ao proximo.
XXVII
Vairão era de antigos tempos uma das casas religiosas da especie média entre os dois extremos, uma das poucas em que as familias piedosas e discretas punham confiadamente suas filhas a educar, para depois as reconduzirem ao mundo, graves sem fanatismo, puras sem mingua na sensibilidade, mulheres emfim, quanto mulheres o podem sêr, anjos perfumados em paraizo.
Havia em Vairão outras educandas e seculares. Todas ellas, assim como as religiosas, davam a Maria a preferencia do seu affecto, sem que uma unica pensasse em lh'o invejar. É porque a doçura da sua indole fazia esquecer a superioridade do seu espirito.
Ás prendas manuaes, em que primava, reunia o gôsto da leitura, até algum tanto o do estudo, e a meditação reflexiva, que extrema em cada escripto, como em cada conversação, o verdadeiro do supposto, e o proficuo do prejudicial:
"Florigeros ut apes per saltus......"
Entretanto, dotada de um tacto verdadeiramente feminino, possuia a grande e difficil arte de se mostrar ao nivel do commum do seu sexo, quando mesmo as ideias que expunha desciam o vôo de mais alta esfera. Um veo de modestia, que ás vezes chegava a parecer timidez e acanhamento, temperava, por assim dizer, o brilho do seu saber, da sua imaginação, e do seu juizo, para não offender a miopía dos espiritos vulgares. Era-lhe até facil e usual o calar-se, simulando ignorar as coisas que melhor sabia, quando se arreceiava de humilhar a vaidade de quem quer que fosse; o que não tolhia que até as mais edosas a tomassem por conselheira, convencidas, pela experiencia, de que ninguem calculava com mais acerto do que ella, de que ninguem poderia guiar por mais seguro caminho a um alvo honesto e proveitoso.
O melhor da herança de sua avó e de seu tio, o poeta, reduzira-se a uma boa porção de livros, francezes, hespanhoes, e italianos, quasi todos escolhidos e de substancia, e classicos portuguezes. Devorára, relêra tudo, comparando, assignalando o que tinha por mais ou menos bom, e enthesoirando o optimo em volumosos cadernos de excerptos, que, folheados por um litterato de lei, para logo lhe revelariam o apurado gôsto da collectora. O francez, o italiano e o hespanhol, se lhe tornaram d'esta sorte familiares. Quanto á lingua patria, essa, tradição e gloria de sua familia, foi a que sempre lhe attrahiu particulares desvelos; e em verdade, que ninguem a conhecia mais por dentro; ninguem a tratava com mais acerto, graça, e facilidade. Não é louvor pequeno este, mesmo para dama, e dama em provincia; em nossos dias sobre tudo.
Sem pejo declararia eu aqui, se tal noticia podesse a alguem interessar, que do meu trato com ella é que principalmente se originou o meu empenho, não digo de classicismo, mas de vernaculidade em todo o caso. Não ha estudo, nem mais apetitoso, nem mais aproveitado, que o da fala da nossa terra, quando se tem por mestra uma mulher a quem se ama.
Ahi me ia eu agora desviando por um atalho que não convém. Tornemo-nos á educanda de Vairão.
XXVIII
Cuido que não haverá ledor que não tenha lá o seu livro predilecto, para o qual de todos os outros se aparte por natural tendencia. O escriptor mais do nosso peito pode variar, e varia, com as transformações da edade, da saude, da fortuna, das circumstancias; mas ha sempre um, com quem melhor nos entendemos; com quem nos parece conversarmos; com quem permutâmos o nosso espirito, porque nos entende, e o entendemos, porque nos parece vivo e presente, e o qual por derradeiro chega a encarnar-se em nós, e a influir nos nossos actos e na nossa vida.
A preferencia de Maria para as suas leituras, começadas n'uma pagina, e continuadas quasi sempre nos espaços imaginarios, não acertava porém n'uma só obra: pendia indecisa entre Petrarcha e Santa Theresa de Jesus. Eram dois caudaes brilhantes, ainda que tristes, que iam, patentes ao Céo um e outro, parar ambos n'um mar de affecto.
Que alma houve jámais tão namorada como a da formosa de Burgos, a não ter sido a do cysne de Arezzo? ou que espirito sé haveria de equiparar, na doce melancolia da adoração, ao segundo Dante, mais sympathico, se menos colossal, ao poeta, não já do "Inferno", mas do "Purgatorio" e do "Céo" do amor, ao bom Petrarcha emfim, se a Hespanha, est'outra Italia das graças e das paixões, se esquecesse de procrear a Matriarcha das Carmelitas?
¡Que espantosa similhança entre ella e elle!
São dois corações desmedidamente grandes, a quem não basta para os encher qualquer affeição terrestre e vulgar, e que só em flôres e fructos de paraizo poderão achar confôrto.
"Fulcite me floribus, stipate me malis, quia amore langueo. Loeva ejus sub capite meo, et dextera illius amplexabitur me."
O Cantor tão religioso, e a Religiosa tão cantora, como que só teem de corpo e sentidos quanto baste para os reter na terra dos deleites ephemeros, e retardar a sua fuga para regiões de affectos sem limite.
Um e outro amam no intimo, pela delicia do amar, pela necessidade de amar, e sem pedirem mercê nem recompensa.
Um e outro fabricam da sua ternura, religiões attractivas, dominadoras, perduraveis: elle, a dos trovadores mysticos e fervorosos; ella, a das noivas para a eternidade.
Petrarcha tinha-se criado com as poesias voluptuarias da Roma classica: mas, de amavel pagão, que o estudo o podéra ter feito, se converteu em eremita namorado.
Theresa, segundo ella mesma se nos historía, seduzida nos primeiros annos pelos feitiços do mundo, dominada da turbulencia da phantasia, e escandecida pelos fogos da juventude, só muito a poder de exforços, só depois de muito bafejada pela Graça, logrou desenlear-se das vaidades, pegar e lançar raizes no retiro.
Ella e elle podem exclamar como S. Bernardo: -- "¡O beata solitudo! ¡o sola beatitudo!" -- porque para um e para a outra o ermo é egualmente povoado por um phantasma luminoso: lá, pela imagem de Laura; cá, pela de Jesus; dois verdadeiros ideaes dos amores ao mesmo tempo mais ferventes e mais castos.
Petrarcha, sabe que não ha-de gosar Laura em toda a vida; espera e anceia, como Theresa, pelas bodas celestes.
Theresa, desafoga a sua impaciencia, como Petrarcha, em jaculatorias tão mimosas, que a Esposa dos cantares se deteria para lh'as ouvir.
O POETA Tennemi Amor anni ventuno ardendo Lieto nel foco, e nel duol pien di speme, Poi che Madonna, e'l mio cor seco insieme Saliro al Ciel, dieci altri anni piangendo. Ornai son stanco, e mia vita riprendo Di tanto error; che di virtute il seme Ha quasi spento; e le mie parti estreme, Alto Dio, a te divotamente rendo. Pentito e tristo de' miei si spesi anni, Che spender si doveano in miglior uso, In cercar pace, ed in fuggir affanni, Signor, che 'n questo carcer m' hai rinchiuso, Trammene salvo dagli eterni danni, Ch'i 'conosco 'l mio fallo, e non lo scuso.
A RELIGIOSA ¡Ay! ¡que larga es esta vida! ¡que duros estos destierros, esta carcel, y estos hierros, en que está el alma metida! solo esperar la salida me causa un dolor tan fiero, que muero porque no muero. Acaba yà de dexarme, vida, no me seas molesta; porque muriendo, que resta, sino vivir, y gozarme? No dexes de consolarme, muerte, que assi te requiero, que muero porque no muero.
O POETA Io vo piangendo i miei passati tempi, I quai posi in amar cosa mortale, Senza levarmi a volo, avend' io l' ale, Per dar forse di me non bassi esempi. Tu, che vedi i miei mali indegni, ed empi, Rè del Cielo invisibile, immortale, Soccorri all'alma disviata, e frale, Él suo difetto di tua grazia adempi. Sicchè, s' io vissi in guerra, ed in tempesta, Mora in pace, ed in porto; e se la stanza Fu vana, almen sia la partita onesta. A quel poço di viver che m' avanza, Ed al morir, degni esser tua man presta: Tu sai ben, che 'n altrui non ho speranza.
A RELIGIOSA Ay! que vida tan amarga dò no se goza el Señor! Y si es dulce el amor, no lo es la esperanza larga. Quiteme Dios esta carga, mas pesada que de azero, que muero porque no muero. Solo con la confianza vivo de que he de morir: porque muriendo el vivir me assegura mi esperanza. Muerte, dó el vivir se alcanza, no te tardes, que te espero, que muero porque no muero.
Não parecem duas rôlas melancolicas respondendo-se lá do fundo de suas apartadas espessuras? E ainda n'este momento foi mais o cançaço da vida que lhes escutastes, do que verdadeiramente o impeto dos seus amores; esse é tal, que a muitos periodos da prosa da Hespanhola só falta mudar-se o nome de Jesus no de Saint-Preux, por exemplo, para se imaginar que se está ouvindo Julia de Wolmar; ao mesmo passo que muitos sonetos e canções do Italiano, trocado o nome de Laura no da Rainha dos Anjos, e encorporando-se n'um horario, muitos olhos devotos os regariam com lagrimas.
"Valchiusa" ou, como dizem, "Voclusa", onde Petrarcha passa tantos annos sonhando com o espectro, primeiro de uma viva, que não vive para elle, e depois, de uma defuncta que nunca para elle morrerá, Valchiusa é para todos brenha alpestre, cavernosa, brava, despovoada, mas é vergel e universo para elle, e o casebre do seu refugio, palacio oriental.
Outro tanto se figuram aos olhos de Theresa o escuro, o desconforto, a austeridade do seu mosteiro, e da sua cella.
Aos eccos da voz italiana sahida d'aquelle esconderijo, como de um vaso rustico um perfume precioso, todos os espiritos poeticos se innebriam, e lhe respondem, imitando-a; o Camões cá no Tejo é um d'elles. Ás melodias da Castelhana, cardumes de almas suspiram de toda a parte, e vão procurar nos cenobios as voluptuosidades da penitencia.
Ambos ficam sendo mythos: um, da perfeita idolatria tributada á mulher; a outra, da adoração perfeita, offerecida ao Salvador.
Petrarcha, emfim, apparece á nossa imaginação, qual Roma o applaudiu em realidade, cingido no Capitolio com triplice coroa; "ter geminis honoribus"; a corôa de hera, como poeta; a de loiro, como triumphador; a de murta, como amante.
Santa Theresa tambem a não concebemos senão tres vezes coroada: como escriptora e poetisa, pelos estudiosos; como virgem, pela Rainha das Virgens; como Santa, pela Egreja Romana.
Não maravilha que a leitura assidua de taes obras, e então n'uns sitios e edificios tão moldados para as fazerem resoar em cheio, elevasse a alma poetica de Maria até ao enthusiasmo. Não admiraria mesmo se tivesse feito d'ella uma fanatica. Felizmente não succedeu assim, porque a absorpção ascetica da Bem-aventurada diluiu o que tinha de excessivo e perigoso, nas tendencias mais suaves e humanas do Visionario de "Laureta".
XXIX
A secular amava o convento pacifico onde se criára, e que era, por que assim o digâmos, a sua patria, e o seu mundo; amava-o sim, mas nem por isso deixava de se inclinar insensivelmente para outro viver mais liberto e amplo, sobretudo mais natural, mais completo para o coração, mais conforme aos instinctos femininos. De tudo isto é que resultou o ennamorar-se, sem saber como, de um phantasma de poeta, que se lhe revelára como dotado de uma grande faculdade de amar, e cujos gostos amenos, e facillimos de preencher, tanto com os seus se harmonisavam.
D. Anna Lucinda, a sua inseparavel e confidente (repisemos embora isto que ha pouco tocáramos) não se animou a contrariar-lhe a inclinação. Era freira, mas de grande juizo casado com grande virtude; não se assimilhava ás que parecem querer vingar-se do seu captiveiro, retendo n'elle, e attrahindo para elle com seducções de todo o genero, a incautas; portanto secundava, se não com exhortações, ao menos com o benevolo sorriso de amiga desinteressada, as visões mundanas de Maria. Autorisara-lhe a primeira carta; felicitara-a pelo exito que lhe ella surtira; deixara-a progredir; e fôra vendo com satisfação, ainda que não sem alguns longes de cuidado pelas incertezas do futuro, os progressos de um primeiro affecto, que de dia para dia se foi activando, até que chegou a verdadeiro amor, apaixonado e invencivel.
Ora, em quanto Maria, de quem eu por então ignorava quasi todos estes pormenores, vivia, sem que as outras lh'a suspeitassem, vida tão romantica no seu mosteiro, outro tanto, pouco mais ou menos, acontecia ao que tinha a gloria de lhe occupar os pensamentos. Se ella se havia comprazido de crear nos dominios da phantasia uma especie de Ossian, sem cans na fronte nem rugas no coração, e disfructava o nobre prazer de ser apontada como a sua companheira, a sua guia até aos cumes de Morven, a aurora da sua alma, a interprete da Natureza para com elle, e d'elle para com os homens; eu da minha parte queria-lhe como á minha Malvina, e não dava já um passo na existencia sem me acompanhar do meu phantasma candido.
Nunca então pensei em que d'esses meus sonhos acordados se podesse jámais fazer um livro, e muito menos que o houvesse eu em tempo algum de explicar, como agora estou fazendo.
XXX
Onde, quando, e como o compuz? ao acaso; por toda a parte; e sem me sentir. Não o poetei, trovei-o; menos ainda que isso: trovou-se-me elle, e eu colhi-o.
Em realidade, e em mais de um sentido, reconheço eu ao presente que estes versos se aparentam muito menos com obra de poeta, que de trovador.
Que eram com effeito, e que faziam, esses filhos prodigos do undecimo, duodecimo e decimo terceiro seculo, a que chamamos trovadores?
Era o trovador pelo commum um moço de phantasia e arrojados espiritos, nascido as mais das vezes n'uma choupana entre a floresta e o castello feudal. Ainda no berço uma cigana lhe lêra a "buena-dicha", em que ninguem creu.
O unico livro em que solettrou foi a Natureza. O rouxinol, veio de proposito, mandado por Deus, um mez em cada anno, para lhe ensinar o canto; e quando elle repetia mais ou menos imperfeitamente essas lições selvaticas, a andorinha do seu beirado debruçava a cabeça fóra do ninho para o ouvir, e o animava a ir por diante; de cantigas de ternura, entende a andorinha como ninguem. Depois, a fonte prateada nas noites de luar o instruia nas sonatas argentinas da mandora; e as virações, depois de se terem detido no cimo dos carvalhos a escutar-lh'as, proseguiam o seu caminho aereo, comprazendo-se de as diffundir. Isto nos annos a crescer, mas ainda mancebinho, e ainda não trovador.
Trovador, sagrava-o de repente um dia a dama do castello, sem attentar n'elle nem lhe saber da existencia. Foi elle, que do fundo da sua humildade a enxergou na capella á Missa por manhan cedo, ou na caça, montada no seu palafrem branco, ou á tardinha, entre as aias, no vergel. Desde essa hora perdeu liberdade e alegria; fez voto de não querer a alguma outra; pediu á fortuna, a todos os Santos e a Virgem, não que lhe obtivessem mercê de correspondencia, que fôra temeridade e loucura o esperál-a, mas unicamente o fazer-se d'ella conhecido por seus cantares nas "côrtes de amor", quando já não fosse por seu denodo contra inimigos. Este voto secreto, sem testemunhas na terra, ignorado d'aquella mesma a quem se referia, improvisava algumas vezes um heroe; mas quasi sempre um poeta, em quem o fogo da paixão suppria a sciencia e a arte, duas coisas que faltavam ambas n'aquelles Orpheus da Provença, obscuros fundadores da poesia de toda a Europa.
O ecco dos applausos, que lá em baixo no burgo animavam a nova musa elegiaca, pouco tardava que penetrasse até ao salão onde cavalleiros e damas se reuniam.
O castellão desejava conhecer o talento seu vassallo, que algum dia porventura lhe immortalisaria as proezas; o villão, não sem pasmo seu e inveja dos visinhos, era chamado para vir com a sua mandora entreter uma hora do serão de inverno. Na enorme chaminé, estralava a fogueira; de seus espaldares lavrados, as nobres o consideravam curiosas; quem poderia dizer a cada uma d'ellas se lhe não estava destinado um papel na historia, ainda sem titulo, que por acaso se ia abrir?
O mancebo, em pé, de olhos baixos, na postura de um peregrino devoto perante um mausoleo de esculturas nobiliarias sob uma abobada de cathedral, começava a sua primeira recitação; se o effeito correspondia nos ouvintes á espectativa, o serão seguinte já lhe dava assento n'um escabello; tão insigne favor, redobrava-lhe posses ao talento; excedia os prestigios da vespera.
Ao terceiro dia abria-se-lhe inesperadamente o Capitolio; era proclamado pelo marido, pagem, ou escudeiro da senhora, que muitas vezes era ella propria trovadora tambem, como Azalais Porcairagues.
D'ahi ávante progrediam as coisas pelo seu álveo natural. A senhora era sensivel; a proximidade, tentadora; a poesia e uma gloria a nascer, mais tentadoras ainda que a proximidade. O pagem, a principio, contemplára com terror o abysmo que separava as duas situações. Voar da profundeza do seu valle natal até á altura vertiginosa em que se via, fôra um milagre; mas para se despenhar, sobrava a minima imprudencia. Era-lhe mister cantar o amor, sem denunciar a amada, nem a ella mesma. Mais e peior: era-lhe forçoso dizer muito, calando tudo; desconcertar ou prevenir suspeitas de rivaes, de invejosos, de cortezãos, e de soberbos; arrastar cadeias de bronze; como quem passeasse sôlto e alegre pelo relvado de um parque; ter a mira interior n'um ponto fixo, e a pontaria da bésta sempre n'outro.
Tão desinteressado, tão heroico servir, não escapava á perspicacia de quem o inspirára. É a gratidão uma ternura, que sem custo fermenta e se faz amor.
Um dia, não sei em que estação... talvez no estio, que é fogo; talvez no inverno, que é frio; no outono, que é melancolia; ou na primavera, que é amores; n'uma certa hora, d'aquellas em que uma estrella cai do ceo sem se entender como, um olhar da castellan baixava sobre o pagem, e lhe revelava a sua dita. D'ahi avante, eram dois segredos para esconder, em logar de um; eram dois infortunios occultos, fundidos n'uma felicidade ainda mais occulta. ¡Occulta! Nem sempre. ¡Que de tragedias, como a de Faiel, se não misturam com as festivas delicias na historia dos trovadores! ¡laudas de sangue por entre paginas doiradas!
Alguma vez, ainda que rara, era a dama que tomava n'estas difficeis declarações a iniciativa: Margarida, mulher de Raymundo, senhor do Castello de Roussillon, fez a primeira proposta ao trovador, seu pagem Guilherme de Cabestaing.
A que veem sorrisos de estranheza? a dama era tanto, e o servo tão pouco, na estimativa da sociedade de então, e a Natureza tendia tanto por todos os modos, pela magia do amor sobretudo, para a realisação do seu bemdito sonho da igualdade humana, que onde ao villão falleciam azas de atrevimento para se remontar até á esphera da castellan, emprestava o amor as suas á castellan, para ella baixar até á cabana do trovador. D'ali subiam juntos á felicidade. A abelha rainha da colmeia, e o insecto que ella escolhe d'entre os seus adoradores, vão, dizem os naturalistas, consummar nos ares, longe do alcance d'olhos, o mysterio por onde o enxame se regenera.
Assim se ajudava com estas mui frequentes descidas das aristocratas a fusão das castas, e a restauração da dignidade humana. Talvez se possa presumir sem temeridade, que as fraquezas das grandes senhoras para com os seus subditos mais distinctos por gentileza, valentia ou talentos, não concorreriam menos para a demolição do feudalismo, que os monstruosos direitos dos senhores, ás primicias nos casamentos das villans suas vassallas.
Deixemos porém philosophias tamanhas, que não cabem em tão pequena historia, e tornemo-nos a ella. Só digo que a humilde consciencia que eu tinha de mim, nunca me haveria permittido abalançar vôo até á eminencia moral onde habitava Maria; e que, se a minha alma era, como talvez fosse, a que Deus talhara para a sua, muito bem fez ella em vir provocar o seu trovador.
Trovador, repito, e não cuido haver presumpção, nem modestia, se não verdade muito chan e muito clara, em appellidar assim o autor d'esta collecção; quando não, consideremol-a, se vale a pena, e comparemos.
Que era com effeito o nativo e desartificioso trovar da edade média? falo do trovar namorado, e não do guerreiro, nem do satyrico; falo do que se comprehendia sob a denominação de "gaia sciencia", e que dava assumpto ás discussões e sentenças das famigeradas "côrtes de amor": era um verdadeiro trovar; uma caçada á ventura, sem guia nem itinerario, pelos campos da phantasia e do sentimento.
A elegia dos Gregos e dos Romanos, começára chorosa, e passára, sem mudar de nome, a interpretar igualmente os desejos bem succedidos; e as festas do coração. A "gaia", ou folgasan, "sciencia", pelo contrario, tendo devido começar, como o seu nome o inculca, por celebrar as boas fortunas, foi por natural pendor descahindo a pouco e pouco para a tristeza, para a saudade, para a desesperança, que vieram por derradeiro a constituir o habito e principal caracter da poesia da edade média.
O cantor apaixonado era o proprio heroe dos seus cantos. A historia que celebrava, em termos vagos, mysteriosos, sem referencia a nomes certos de pessoas nem logares, não era d'estas que podem ser vistas em quanto se operam; não se compunha de actos exteriores; corria toda no mundo dos espiritos; entrevia-se apenas sob um veo de mysticismo, muito similhante áquelle com que a linguagem theologica obumbrava os mysterios da Religião; percebia-se sempre pelo fundo da scena ir e vir uma figura de mulher, encarregada de algum papel singular. Mas quem era ella? Ninguem o affirmaria. Amava? sabia-se que era adorada; sabia-se que o merecia; nada mais.
O espirito do adorador attrahido, mas ao mesmo tempo intimidado, pela auréola, esvoaçava-se-lhe em roda, ora mais perto, ora mais longe, esperando e desesperando, impondo silencio aos sentidos, e cilicio aos appetites, sem de todo os poder domar; feliz como um anjo, infeliz como um demonio; invejando toda a especie de glorias para merecer, invejando a paz dos mortos para descançar; maldizendo e apertando os laços; misturando, como as creanças, o riso com as lagrimas; e não admittindo para confidente senão as arvores e o vento, os rios, as flores, e as estrellas.
Tal foi o trovar nas eras juvenis dos enthusiasmos, quando os homens que não eram cavalleiros eram poetas, os que não eram poetas eram menestreis; quando a mulher na Europa tinha um altar, e Christo na Asia um sepulcro, e a devoção d'aquelle sepulcro e a d'este altar traziam em fluxo e refluxo contínuo as povoações. ¡Extraordinarios tempos, em que a heroicidade era lyrica, e as fraquezas heroicas! tempos extraordinarios, resumidos em dois versos pelo seu chronista epico, o Ariosto:
"Le donne, i cavalier, l'arme, gl'amori," "Le cortesie, l'audaci imprese io canto."
Abstrahi do que se referia ás guerras dos Logares santos; recordae só os cantares de galanteio ascetico, e, sincera paixão do fim do seculo undecimo, do duodecimo, e do principio do decimo terceiro, se porventura os lestes; sentireis isto mesmo que eu vos confesso: que toda a presente poesia não parece senão um ecco tardio do cantar nativo e ainda inculto dos Provençaes. Não os conhecia eu ainda quando a compuz, nem me parece que se os conhecesse os tomaria para exemplares; mas o certo é que os meus amores se assimilhavam aos de muitos d'elles em mais de um ponto; e portanto, sendo eu sincero, como elles o tinham sido, era impossivel que a lyra em que eu improvisava, não gemesse, sem o cuidar, no estylo da mandora, da mandora pendurada ha mais de seiscentos annos no cemiterio das litteraturas.
Maria continuava a ser portanto para mim, ainda depois de convencida de existir, a minha nobre dama encantada no seu solar remoto e inaccessivel; e eu, o servo seu poeta, cantando-a só pelo gosto e pela necessidade de a cantar.
XXXI
A maior parte dos meus versos não lhe chegava ás mãos, nem mesmo apparecia ao publico, ou se revelava aos amigos. Recatava-os a ella, parte, porque os sentia inferiores ás continuas, tão gentis e tão admiraveis paginas das suas cartas; parte, porque aqui ou acolá desdiziam d'aquella virginal e santa pureza, de que a minha imaginação e a sombra do mosteiro m'a revestiam, e que realmente era, e foi sempre, um dos seus maiores attractivos; então aos olhos extranhos sonegava-os, e mesmo aos ouvidos dos intimos, porque me repugnava poder outrem espreitar para dentro do ninho das nossas almas. Amava só para mim; poetava só para mim; e poetava como amava: sem premeditação, sem esforço, sem reconsiderações, e sem emendas.
Bons tempos, que tão verdadeiros fostes, como vos desvanecestes? como passastes vós, eternidades voluptuosas?
Compunha eu tudo isto como as arvores ora murmuram, ora rugem, ora gemem varrendo o pó com as ramas, segundo passam por ellas os zephyros ou os furacões. Toda a differença era: que a mim, as bonanças e as tempestades não me vinham de fóra; formavam-se umas e outras inesperadamente na phantasia.
XXXII
Aqui uma voz imperiosa da consciencia me intíma que não demore por mais tempo uma solemne reparação. Faço-a de joelhos abraçado a um cipreste. Concluida ella, espero que me levantarei da terra alliviado.
Os ciumes que obscurecem a ultima parte d'estes cantos, existiram sim;
"........quis enim securus amavit?"
mas causa, mas pretexto, mas sombra de pretexto para as suspeitas, nunca jámais a encontrei no pobre Anjo que eu flagellava. Mentia eu pois? Calumniava para ser algoz? ¡Longe tão infame supposição!
Houve delirios na minha alma, e reproduziram-se nos meus versos. Eis ahi tudo.
O meu amor era verdadeiro; e todo o verdadeiro amor é visionario, é supersticioso, é pessimista; e, similhante áquelles enfermos que preferem aos alimentos sãos e agradaveis, substancias amargas e nocivas, procura por uma tendencia irresistivel, desencanta, cria para si tormentos reaes, e com aquillo mesmo que o devêra destruir se vai cevando.
Se eu ouvia o caso de uma infiel, de uma enganadora qualquer, de que tantas se nos deparam nas historias, nos romances, nos poemas, nos dramas, e na vida contemporanea, perguntava-me logo, com terror, quem me affiançava a lealdade de Maria? ninguem, senão as suas cartas. Então, esquecendo que a assiduidade, e sobretudo o estylo d'ellas, excluiam toda a razão de desconfiança, a poder de meditar no possivel, convertia-o em provavel, e do provavel me abortava o certo. A paixão com que eu me lisonjeára nas horas desanuveadas e alegres, merecia-a eu porventura? Sabia que não. ¡Logo, que insensatez no contar com ella! ¡depois, a distancia! ¡depois, as suggestões da solidão, mais tentadora ás vezes que o povoado! ¡depois, annos preteritos que podiam ter semeado tanta coisa! por ultimo, ¡uma indole tão manifestamente inflammavel! Tudo, até as suas cartas mais ardentes, até a sua insolita deliberação de se me offerecer, tudo então depunha conteste contra ella no tribunal tumultuoso da minha alma. Os sonhos se me tingiam na cor dos pensamentos lugubres de todo o dia; e eu, carecente de noticias reaes e positivas com que os rebater, acceitava os seus embustes como revelações vindas, fosse d'onde fosse, mandadas não sabia por quem nem para quê, mas nem por isso menos attendiveis.
Sonhos, acceitos como prophecias, e meditações extravagantes como os sonhos, ahi tendes as unicas fontes d'onde rebentaram essas elegias tormentosas, que eu haveria queimado quando acordei e volvi a mim, se já então se não tivessem derramado por esse mundo.
Desabafei-me de um peccado horrendo; levanto-me, e prosigo.
XXXIII
O mais do volume dimanou puro e sereno do coração namorado, mas em paz. A essa procedencia é que eu lhe attribuo, conforme toquei no prologo, a boa fortuna que logrou; que outros merecimentos não lh'os posso descobrir, por mais que lh'os procure. Como eram taes affectos os que n'elle predominavam, por isso levou, e conserva, o titulo de "Amor e Melancolia"; "Melancolia" não ha separal-a do "Amor".
Affirma a Baroneza de Staël, com razão, que amor verdadeiro e alegre não cabe n'este mundo. Aos que levianamente a contradissessem, responderiamos com palavras tambem d'ella: -- que ha mais gente habilitada para entender Newton, que para tratar a fundo d'esta paixão.
Eu por mim cuido ter sido do escaço numero: o amor pareceu-me sempre um prado florescente de primavera, mas coberto de um ceo triste. O mesmo se representava a Maria, e isso explica a variante do titulo da obra "Novissima Heloisa", designação que n'estas alturas já dispensa outros commentarios.
O mais d'esta poesia, e muita outra a este modo, que depois se desaproveitou, ("trovas", "tenções", "solaus", ou como melhor se lhe possa chamar) germinou com intervallos, ás vezes largos: que não foram tão poucos os annos que duraram estas relações. Ao longo d'elles, confesso que a intensidade do meu fogo não foi sempre a mesma. Não pode haver amor platonico sem um certo exforço da vontade; e exforços teem sempre isso comsigo: que o fragil da nossa natureza os obriga a remittirem a sua energia de vez em quando. Confessarei até que, se a minha vestal invisivel não fosse tão assidua em me velar a chamma, e alimental-a quando a pressentia enfraquecer-se, já póde ser que tivesse alguma vez chegado a apagar-se-me.
Emquanto o coração estava em férias, emmudecia a Musa; mal que elle a um suave toque despertava em sobresalto, recomeçava ella os seus cantares; e o amor n'estas ressurreições não era menos vehemente do que a principio o tinha sido. Quem não dissimulou aquelle vicio, adquiriu algum jus a gloriar-se d'este pequeno merito.
XXXIV
¡Os arredores tão poeticos da minha Coimbra conspiraram com o amor para se me florirem estes improvisos! O Penedo da Saudade, a Lapa dos Poetas, a Fonte das Lagrimas, o Ó da Ponte, os sinceiraes do Mondego, tudo sabia dos meus segredos; tudo, em me vendo chegar, me perguntava por ella e m'a pedia. Mas era especialmente o Real cenobio de Santa Cruz o meu grande manancial.
¡Quantos domingos de verão não voava eu sosinho para ali, a gosar curtas horas, mas tantas, que ás vezes se mettiam pela noite, tendo começado antes do meio dia! parecia-me que era para mim que D. Affonso, o Conquistador, e D. Sancho, o Povoador, que lá dormem como em casa sua, tinham edificado aquelle refugio; para mim só, e não para os Conegos regrantes, que D. Manuel e D. João III o engrandeceram e aformosentaram com tão regia, com tão prodiga bizarria.
Ainda hoje, como no meu tempo (ainda no meu tempo, como em seculos atraz), pombas, pardaes, e outros passarinhos, se aninham, contubernaes e familiares com os carcomidos Santos de pedra, pelos nichos da alterosa frontaria exterior, como em poisadas tambem proprias e muito suas, e amollecem com a sua presença amante e festiva a austeridade do monumento; emquanto os orgãos gemiam lá dentro, cantavam elles cá por fóra. Quando as rezas matutinas começavam a espertar eccos pelos desvãos das abobadas sobre as campas de marmore brunido, já elles tinham dado as alvoradas ás virações do Mondego seu visinho. O rebentar estrondoso das horas na torre proxima, não os assustava; os sinos eram para elles aves de outra especie, inoffensivas tambem, só com a differença de se estarem captivas n'uma gaiola alta, e cantarem mais elevadas coisas, e para mais longe, pela terra fóra e pelos ares acima, caminho do Ceo.
Na lyrica dos antigos poetas mesclava-se commummente com o folgar de festins e amores, quanto bastava do pensamento da brevidade da vida para mais avidamente se colherem as rosas ephemereas das voluptuosidades; aqui o fundo do poema era pelo contrario a melancolia saudavel, e as delicias mimosas da Natureza o seu accessorio.
Isto, que em breve sigla se lia no rosto do convento dos quatro Reis, ia depois encontrar-se em copiosissima profusão no interior e nos vastos dominios campestres da vivenda. É assim que n'um esmerado volume biblico, paciente lavor de algum obscuro Raphael da edade media, o frontispicio floreteado e doirado annuncia logo as maravilhosas paginas, em que o texto devoto irá manando todo por entre um perpetuo paraizo de primaveras, animaes, sonhos, e devaneios. É assim tambem, que no sorrir de um bom velho se resumem os castos alvoroços que lhe abundam pelo animo.
N'um festim opiparo toma cada um d'entre as iguarias e licores o que mais lhe desafia o paladar; a mim não me chamavam para Santa Cruz nem o templo, que deu brado em S. Pedro de Roma, e que Paulo III cubiçou conhecer; nem o santuario, orgulhoso museu de reliquias; nem a bibliotheca, assoberbada de sciencias sacras e profanas: ia girar á toa, e inebriar-me, sem ninguem saber, no dormitorio do "Silencio"; depois no da "Manga", aviventado do estrépito de cascatas, que um sultão de Granada cubiçaria para os pateos da Alhambra. D'ali, escadarias de marmore, bem minhas conhecidas, me subiam para o meu passeio de predilecção: era o dormitorio de Nossa Senhora do Pilar.
Pintae na ideia um corredor immenso, largo, alto, abobadado, pavimento de lagedo, paredes alvas, luz copiosa por zimborios no tecto, e janellas amplas ao comprido de um dos lados; do lado fronteiro, enfileirae portas de cellas; ponde n'um dos extremos uma grandiosa sala vaga; no outro, rasgae um portão bipatente que dê sem subida nem descida para um terreiro ajardinado; postae á direita do portão, como porteira obsequiosa, uma agigantada magnólia a emborcar das suas enormes urnas de prata reviradas, olores americanos, que Marco Antonio pagaria por um milhão de sestercios para a sua Cleópatra; moldae todo o terreiro, á direita com arvores, á esquerda com um extenso e levantado viveiro gradeado, compartido em republicas de aves de toda a especie. Ahi tendes o passeio amores dos meus amores; ahi tendes o foco mais activo das minhas inspirações.
Eram as cellas habitadas; mas o corredor permanecia quasi sempre deserto e mudo, o que deixava as minhas phantasias em completa liberdade. Por mais de uma vez se me deu occasião de travar conhecimento com alguns dos religiosos; esquivei-a sempre. Que tinha eu com elles, ou elles comigo? pelo contrario: necessitava de que nada me recordasse que elles existiam. Todos os seus cubiculos os tinha eu melhor empregado n'outras tantas virgens do Senhor. N'um dos mais centraes, fronteiro a uma janella de assentos, habitava Maria; D. Anna Lucinda á direita, no immediato. Voltado de costas para a janella, ou passeando por diante d'aquellas portas, distinguia, ora n'uma ora n'outra cella, as praticas de ambas; ouvia as suas conversações em voz baixa; deliciava-me com a doçura das suas falas, que eu não conhecia.
[Ilustração]
QUINTA DOS AZULEJOS (no Paço do Lumiar) Tal como era ainda em 1862
Das innumeraveis cartas de ambas, que eu sabia de cór, me raiavam para dentro da alma as intuições de tudo que estavam de parte a parte pensando, sentindo, dizendo. Era o meu nome o centro fixo, em torno do qual volteavam todas as suas ideias, como um turbilhão de planetas de Venus, scintillantes, mas celestialmente immaculados. Tinham-me comsigo, como eu as tinha commigo. Maria e a sua satellite se animavam com meu fogo, e m'o reflectiam virginisado; irradiação argentina e mysteriosa, de que se formam sonhos candidos, transpirações de um coração que se coagulam em rosas, sobre as quaes logo outro se reclina.
Eram estas visões tão claras, e estes extasis tão reaes, que bem provavam haver no mundo, como diz Shakspeare, alguma coisa mais do que os philosophos presumem; havia por força uma corrente e contra corrente de affectos sympathicos e harmonicos d'ella para mim, e de mim para ella; fluidos ethereos e celestes, que a Sciencia ainda não descobriu, mas que pelos effeitos se manifestam.
Dizem que entre o Mediterraneo e o Atlantico, por baixo das aguas que passam contínuas pelo estreito, repassam encobertas outras tantas; são oppostas as direcções; mas os impetos caudalosos são eguaes, e não se contrariam. Cada mar toma quanto enviára, e restitue quanto recebêra. As columnas do "non plus ultra" ficam desmentidas. Os dois mares, graças a esta corrente e subcorrente, não são mais do que um só com dois álveos e duas denominações.
Estava Maria n'aquelle quarto? ou n'outro, bem, bem longe? Que importava esse accidente fortuito e impessoal? Longe ou perto, ali ou n'outra parte, estavamos, e sentiamos estar, em communicação directa. A corrente superior e clara, era para ella a dos meus transportes; para mim, a dos transportes -- d'ella; mas ella e eu percebiamos não menos que enviavamos affagos, e que elles chegavam aonde se dirigiam.
¡Ai, hora incendida e imperiosa de um meio dia de verão! ¡hora em que os passaros se calam a dormitar a sesta debaixo das folhas mais espêssas, e as cortinas das alcovas se fecham! via-a eu estar-se recreando n'um crystallino banho de affectos, que eu mesmo lhe andára enchendo, que a sua amiga lhe toldára de confidentes sombras, e onde a vigilancia de ambas não deixava penetrar olhos extranhos. Aquelle deleite, de que eu era tambem autor, me endeusava.
Estava fóra de mim, sem saber onde. Por uma d'essas incoherencias que tão frequentes são nos sonhos, o logar era muitos logares ao mesmo tempo: era Vairão; era a Capital; agora, uma sala entre uma bibliotheca e um jardim; logo, um refugio campestre; e os moradores de cada um d'estes paraizos, sempre os mesmos dois, e mais ninguem. O phantasma das primeiras noites do laranjal de Almedina, era agora uma verdadeira donzella, vivente como eu, incontestavel como eu, que me falava, que me respondia em voz humana, a quem eu apertava e beijava com fogo a mão elastica e macia.
Se algum som inesperado me quebrava a allucinação, e eu, reconhecendo o dormitorio, advertia na imprudencia de permanecer tão pertinazmente no mesmo pequeno espaço, retomava triste o meu passeio longo e solitario da porta do terreiro até a da sala vaga, e d'esta até á magnolia.
A pouco e pouco me revertiam as fugidas illusões; as duas cellas tornavam a ser o meu sacrario, o meu palacio, a minha Cythéra. Mais cauteloso então o somnambulo, em vez de parar, afrouxava e emmudecia, quanto lhe era possivel, o passo por diante do asylo dos seus mysterios; applicava o ouvido da alma, e tornava a perceber, em termos sempre novos, e com circumstancias sempre diversas, as mesmas confidencias que o enlevavam.
Mais de uma vez aconteceu abrir-se inopinadamente uma porta no corredor, e sair... ¡um Religioso! Áquella apparição mal agoirada, dissipava-se todo o mundo phantastico; ¡era como se um abutre se tivesse precipitado sobre um bando de pombas! As sombras de Maria e Anna recebiam um suspiro saudoso já a vinte leguas de distancia; e eu sahía pelo terrado dos viveiros, subia o arvoredo da quinta, e ia procurar junto ao Lago dos Cedros refrigerio contra os ardores da febre, que indubitavelmente me abrazava.
XXXV
O Lago dos Cedros de Santa Cruz de Coimbra era (não sei se o será ainda hoje) uma das mais donosas curiosidades de Portugal. Parece impossivel que o riscassem assim para Conegos regrantes de Santo Agostinho, para successores de S. Theotonio. Que o traçasse D. João V para uma cêrca de freiras de Odivellas, ou Luiz o grande, de França, para se estar com Racine ou Molière, ou com as gentis collaboradoras dos seus romances, nada mais natural.
Era no cimo de um suave oiteiro, uma esplanada espaçosa, toda em derredor cerrada de uma alta muralha de cedros, tão a prumo, tão massiça e de tão renteada superficie, que não parecia senão muro solido pintado de verdenegro por algum Cinatti. Portas arqueadas, rotas na muralha a distancias eguaes, mettiam para alamedas seculares, que, descendo, e dispartindo-se, todas ennoitecidas, murmurantes, gorgeadas, cheirosas e ermas, iam buscar por outros pontos da cêrca novas amenidades, ou taboleiros de flores, ou fontes e repuxos, ou obeliscos de murta, ou estatuas devotas, ou inscripções meditabundas. Aos pés da muralha dos cedros corre um canapé rustico de porta a porta. O chão, atapetado de fina relva, abre-se no meio em um lago amplo e redondo, com sua ilheta ao centro, toucada de laranjeiras viçosissimas, a namorarem-se com toda a razão, verdes e doiradas, como o ceo azul, nas aguas crystalinas. Duas bateiras sem dono, mas que o amor e o prazer podiam com iguaes direitos reivindicar, são a flotilha d'este pequeno mediterraneo, d'onde, por mais que faça a circumfusa mystica do ermo, não logra desterrar umas não sei que lembranças e saudades da ilha de Chypre, e das nymphas que a imaginação grega enxergava por entre as ondas do Egeu. Ali ao menos é que eu ideára o "Banho das Graças", descripto por Narciso n'uma das suas cartas; e ali é que eu devaneei o "Barquinho do lago encantado", que vós lestes n'este livro.
Nos assentos de cortiça, ou no velludo do relvado, folgava de me estirar a sós com o coração ainda agitado das scenas do dormitorio do Pilar. ¡A taciturnidade do sitio, todavia tão melodiosa, vinha tão de molde aos soliloquios da Musa interior! Eu não pensava: borboleteava: deixava-me boiar na viração pelos dominios infinitos da alma, ora tocando n'um espinho e fugindo, ora poisando n'um jasmim e adormecendo.
Ha horas d'estas em que a gente senhoreia o planeta, e não é d'elle; em que tudo quanto é solido, isto é, duro, -- fixo, isto é, estorvo, -- temido, isto é, tirannia, -- elementos de que se nos compõe a vida real a todos quantos somos, se afunde a pouco e pouco e desapparece, e um relampago de bemaventurança nos envolve com a sua luz visionaria. N'estas horas, em que nos vingamos dos positivistas, recambiando-lhes o titulo de doidos com que elles nos calumniam, forçamos nós o destino a servir-nos, como escravo docil aos nossos minimos desejos.
Fundia eu o possivel e o impossivel; corporificava-os; disfructava-os. Dos raios do sol fabricava palacios de oiro para Maria; das balsamicas exhalações dos cedros, mocidade perpetua para ambos nós. Conversávamos com os nossos irmãos passaros, perguntando-lhes se os seus ninhos continham tanta ternura como os nossos berços.
¡E haver quem deplore a vida como breve, guando n'ella cabem d'estas immensidades! ¡Grande ingratidão! ¡profundissimo desconhecimento!
«¡Delicias são, mas delicias que passam!» vocifera um incontentado. ¡Oh, que não passam! quando se cuidam idas, nol-as vem restituir a saudade. As proprias lagrimas, com que então as acolhemos, nol-as reverdecem; outra vez as gozamos, porventura mais formosas que no seu primeiro ser; e mais formosas e mais queridas sempre, de apparição em reapparição. Negue-o quem quizer; não se lhe inveja a philosophia. Eu por mim sei que tudo isto é muito verdade.
N'esta propria hora, já tão remota, me estou eu ainda saboreando, como presente, nos feitiços do meu Lago dos Cedros; sou um espelho que embebeu a visão, e já não a perde.
¡"O meu Lago", disse eu! e por que não? ¡se eu possui a pleno tudo aquillo, o possuo, e não ha força nem jurisprudencia que de tal me possam despojar! ¡Imaginavam os bons dos Conegos regrantes que eram elles os senhores d'aquelles dominios, "mea regna"!... e um sopro, que se levantou da parte do seculo, lhes sumiu todos os titulos de propriedade. Os meus não se escreveram em pergaminhos, e existem; e estão-se rindo de revoluções do mundo: "mea regnas". Sabeis porquê? porque a mim foi a Natureza, e seu filho o Amor, quem me fez a doação; e a elles, tinha-lh'a feito um chimerico direito regio sobre todo o solo, bens, e futuros, de nossa terra.
No dia em que os despediram, como illegitimos detentores de uma propriedade commum, perderem um gozo material; e nada mais perderam, porque posse espiritual, comparavel á minha, nunca elles a chegaram a tomar. Não era para elles que as aves cantavam contentamentos, que as arvores vicejavam esperanças, que as fontes murmuravam nomes de ausentes, que as virações calidas exhalavam phyltros, que os effluvios das flores namoravam, e que a solidão era povoada; tudo isto, quem o disfructava era o poeta, que o está ainda disfructando.
XXXVI
¡Que grande erro social, que nefando peccado de prosa, não foi: que na hora audaz, em que se arrancaram do solo os troncos seculares carcomidos e sêccos das Ordens religiosas, se não mettessem logo para o logar d'elles plantações novas, de optima qualidade, que tão bem haveriam pegado! Extirpavam um preterito que ensombrava e assombrava; bem era; ¡mas quantos queixumes e clamores se não teriam afogado á nascença, se logo semeassem, ali mesmo, futuros apropriados ás necessidades já conhecidas da presente edade, e das edades ulteriores!
Estes conventos-palacios, estas cêrcas-principados e paraizos, estas grossas rendas, por que se não applicaram a abrigar e manter, isto é, a salvar, recompensar, e aproveitar, poetas, artistas, e sabios, que são, cada um a seu modo, outros tantos solitarios por vocação, e que do fundo dos seus ermos encantam o mundo com prodigios? Não ha Religiosos que mais deveras honrem e manifestem a Potencia Creadora. ¡Como a convivencia quotidiana, de todas as horas, diurna e nocturna, com tantos engenhos e talentos variadissimos, fecundaria a cada um com o polen de todos! ¡Como o pintor influiria no poeta, o poeta no musico, o musico no estatuario, o estatuario no historiador, o historiador no philosopho, o philosopho no moralista! ¡Como os bisonhos reaqueceriam com o seu fogo aos veteranos! ¡e os invalidos, se os lá houvesse, encaminhariam com a sua experiencia ás aguias no seu primeiro adejar á borda do ninho!
Então sim, que todo este maravilhoso poema de Deus, chamado Creação, no qual todas as artes se travam e permutam em harmoniosa competencia, seria lido se traduzido em voz alta ás multidões; e em quanto o mundo physico se dilatasse em riquezas e commodidades palpaveis, haveria, aqui e acolá, grupos seriamente religiosos, que lhe estariam elaborando ares mais respiraveis para o espirito.
Não é, não é utopia; que o digam, e infinitamente "a fortiori", os caudaes litterarios e scientificos, de que foi matriz a ordem Benedictina.
Depois de cahido o colosso monacal, sepultado no desprêso, quasi no esquecimento, e recoberto com montanhas de odios como o Typheu sob os promontorios da Sicilia, fôra valentia covarde hoje em dia, zêlo superfluo, e actividade ociosa e ridicula, restaurar o processo condemnatorio das Ordens religiosas, já trancado. Permitta-se-nos entretanto ponderar em proveito da ideia que aventavamos: ¡quão inuteis, comparados com estas congregações de sabios, de artistas, de poetas, não eram, por exemplo, aquelles reclusos de Santa Cruz de Coimbra! Que beneficios lhes deveu o mundo em tantos seculos? que vestigio deixaram da sua existencia? que tradição, ao menos, de santidade? Alcançámos nós ali algum successor de S. Theotonio, ou de Santo Antonio, d'este sympathico e popular Santo Antonio, que experimentou Santa Cruz e a refugiu por mal conforme ao seu espirito humilde e penitente? De todo em todo, nada.
Estava sendo um feixe de homens absolutamente negativos: -- nem illustrados, nem ignaros; nem aristocratas, nem democratas; nem beneficos, nem maleficos; nem do povoado, nem do ermo; nem desconsolados, nem contentes; nem escandalosos, nem edificativos. Apenas tinham de vida quanto bastava para não serem enterrados. O seu Prior subia uma vez por anno á Universidade, a abrir como Cancellario a sala dos exames privados, e voltava para a hybernação. Mostravam a sua livraria, como os tumulos dos dois Monarchas: sem tomarem d'elles, nem d'ella, coisa alguma; mostravam o seu santuario, como a espada de D. Affonso I: tudo reliquias sem virtude excitativa; mostravam as suas quintas com desvanecimento, mas bocejando. As Imagens de pedra, lá fóra, na frontaria da egreja, geladas e immoveis entre ninhos e hervinhas floridas, não eram menos insensiveis do que elles n'este banho da Natureza tão viva e voluptuosa. Tanto lhes diziam já a elles as harpas eólias das ramadas, como os vultos de marmore dos quatro Evangelistas, ou das tres Virtudes theologaes, o do seu Patriarcha Santo Agostinho, ou os conceitos mysticos estampados pelos azulejos. Indifferença para o Céo, indifferença para a terra. -- Viver tal não valia a pena.
Quando o anjo da espada de fogo os pôz fóra do eden, só poderam levar saudades do ocio descuidoso e farto que se lhes acabava; mas que deixasse nenhum vacuo a sua ausencia.... não deixou de certo. Não houve perda; mas podéra ter havido lucro, se, como vinhamos conversando, áquelle solipsismo de todo o ponto esteril, tivera succedido uma congregação nova: -- a dos crentes no bello, a dos devotos das artes, das sciencias, da poesia; e dos que tecem coroas de luz para a civilisação.
Mas que digo eu "não houve perda"? assim mesmo a houve, e, se bem se considerar, não tão pequena.
Estes dominios arrancados ás Ordens religiosas, que lhes mantinham o seu cunho de perpetuidade, e os facultavam ao usofruto de toda a gente, passaram, pelo engôdo de quatro cobres, com que nem a pedra dos alicerces se pagaria, para a mão de um particular qualquer: um Silva, um Guimarães, ou um Vianna, que apeteceu palacio, hortas, e parque para a sua familia. Desde logo, trancados os portões a poetas, a amantes, a meditativos, dispersos os livros e os quadros, o espirito burguez começou por dentro a desfigurar tudo, a compartir, a amesquinhar, á sua imagem e similhança. Os Evangelistas, que escreviam tão attentos os seus livros havia tantos seculos, no estio á sombra das copas, no inverno á dos troncos, foram talvez dormir para algum recanto. O arvoredo, que só produzia meditações, produziu taboado ou carvão, e deixou livre a terra para crear mais algum moio de milho; o Maio levou tambem d'ali os seus ermitães, os rouxinoes, para onde houvesse menos especuladores e mais sombras, menos estrondo e mais Natureza, menos mundanidades e mais ninho.
Inuteis por inuteis, excusados por excusados, antes aquelles semimortos, a quem acabámos de matar, do que estes taes vivos; e antes mil vezes que todos elles, a nossa ideal republica de talentos e de genios.
¡Dá gosto a quem sabe dizer, como Christo ao Diabo, que o homem não vive só de pão, phantasiar o que haviam de dar de si estas novas colmeias, estes mixtos de gymnasios de exercitação, e Runas de repoiso! ¡os favos que ali se espessariam de poemas, de operas, de musicas populares, de romances, de historias, de philosophia, de sciencias, de tudo quanto ha de mais saboroso e nutritivo para a alma! ¡Como o soldado dos "Lusiadas" seria feliz, e quão mais copioso testamento de versos de oiro houvera deixado, a ter existido no seu tempo um tal refugio! Poupava-se ao amigo Jáu o trabalho de mendigar para elle, e á velha Barbara o vexame de lhe esmolar da sua pobreza
¡E de Camões para cá, quantos até hoje, da sua familia poetica, que morreram á nascença ou se extraviaram e perderam, não estariam agora por cima das nossas cabeças a resplandecer!
¡A terra e o ar a criarem-nos sempre n'esta região de benção, e nós sempre n'esta plaga de maldição a desperdiçarmos! Só tres seculos depois de mortos advertimos em que ainda não morreram, e nos lembramos de lhes ir buscar uma pedra para monumento. A honra aos ossos, essa que espere mais dois seculos; não tem pressa; agora descança-se.
¡Pobre Camões! se a tua Santa Cruz, esse torrão inspirativo, onde tu mesmo havias poetado tambem nos dias da tua mocidade, fosse já então isto que lhe eu cubiçava nos meus entresonhos á beira do Lago dos Cedros, e te hospedasse com orgulho nas suas sombras, abastado, seguro, escutado, e applaudido de outros cysnes, não saberias ter suspirado no teu ultimo canto aquelle triste verso
"o gôsto de escrever que vou perdendo;"
nem aquella estancia, que ainda nos faz córar por nossos bisavós:
Vão os annos descendo, e já do estiohá pouco que passar até o outono;a fortuna me faz o engenho frio,do qual já me não jacto, nem me abono;os desgostos me vão levando ao riodo negro esquecimento, e eterno sono;mas tu me dá que cumpra, ó grão Rainhadas Musas, co'o que quero á Nação minha.
O que tu pedias á Rainha fabulosa das Musas, haver-t'o-hia liberalisado, sem rogos, a esclarecida previdencia da Nação, então devéras tua, e de todos os que, como tu, se desvelam pela engrandecer.
XXXVII
Assaz e de sobra tenho sonhado; levantemo-nos, que são horas de nos irmos chegando ao fim da nossa jornada.
Além de Santa Cruz, outros muitos sitios, onde o acaso me levou pelos arredores de Coimbra, e mais longe, vieram entretecer na tela do meu permanente affecto os bordados das suas peculiares inspirações.
As "Ruinas do Mosteiro", por exemplo, nasceram da contemplação melancolica dos restos do convento de Santa Clara, á beira do Mondego, e de uma visita de passagem aos destroços de um cenobio de monjas, não sei já de que Ordem, em Moimenta da Beira.
As "Duas Palmeiras", colhi-as n'uma excursão á magnifica matta do Bussaco.
A "Rega dos pomares", deu-m'a ao descahir de um dia de verão a quinta suburbana das Setes Fontes.
A "Noite do estio", passou-se me tal em realidade na quinta de Santa Margarida, n'um cedral que lá havia n'esse tempo, e já não ha, bem ao rés do Mondego. Era a noite (¡se podiam esquecer coisas d'estas!) era a classica noite da romaria annual do Senhor da Serra, quando bandos de peregrinos e peregrinas de longe, de muito longe, trajados de gala á moda de suas terras, enramados de verde, seguindo as violas, e alternando nas cantigas a devoção e os amores, veem pernoitar na cidade, pelas varzeas, pela ponte, pelas quintas, para seguirem juntos para a serra em começando o primeiro desmaiar de estrella na antemanhan.
Até a "Feiticeira" (¡quem o crêra! crel-o-hão agora, porque de vergonhas ficticias ninguem se jacta) a "Feiticeira" mesma teve, sob os enfeitos ou disfarces da poesia, o seu fundo de realidade. Morava a boa da velha n'um casebre escuro da rua da Figueirinha; tinha fama, n'esse tempo, de ser uma das sibyllas que melhor atinavam com os futuros, e com mais certeira mão pescavam o perdido nos abysmos do passado. Rira-me eu sempre de gente d'esse lote, e espanto-me hoje de quem se não ri d'ella; mas poeta, criado com os supersticiosos Romanos, amante e com tão poucas certezas fixas a que me apegar, disse um dia entre mim:
"................... quid tentasse nocebit?"
e dirigi-me para a nova Cumas, como podéra ter ido á tôa para outro qualquer passeio. Colhi prognosticos ruins; não lhes dei fé, mas sahi triste. O tempo (bem haja elle) os desmentiu de todo o ponto.
XXXVIII
Abraçára meu irmão, por muito livre e muito reflectida escolha sua, o estado ecclesiastico. Pelos meus gostos imaginais os seus; o parochiar nos campos, bem vedes se lhe não seria incentivo de ambições.
Não ha viver mais poetico para um espirito amante do remanso e do estudo, e avido de bemquerenças, nem mais talhado para dar largas a uma actividade bemfazeja; diziam-lhe que era enterrar o seu talento e saber; respondia que antes era pôl-os, se porventura os possuia, onde, embora entre humildes, melhor poderiam resplandecer; e que, assim como uma egreja entre mattos e casaes era mais egreja, que cercada de ruas e tráfego, tambem a eloquencia podia ser impunemente mais viva, mais caudalosa, mais remontada e mais pathetica, e sobre mais formosa mais efficaz, e mais eloquencia em todo o caso, entre os singelos filhos dos campos, do que entre os zombeteiros moradores das cidades.
A todas estas razões lhe acrescia outra, que elle não declarava, mas que eu bem sabia ser-lhe a principal: n'um presbyterio rustico, se o conseguisse, se nos devolveriam em commum dias, á feição d'aquelles que a leitura dos nossos poetas nos havia costumado a cubiçar.
Cumpriram-se-lhe os votos. A senhora Infanta Regente D. Isabel Maria o proveu no Priorado de S. Mamede da Castanheira do Vouga.
XXXIX
A 23 de Outubro de 1826 entravamos, com o alvoroço da novidade, e cheios de vagos projectos não pequenos, pela alpestre região ás abas da serra do Caramulo.
¡Nada mais avêsso ás amenidades que nos ficavam em Coimbra! ¡solo magro, ondado, mattagoso, ermo, roto de quebradas e algares, selvoso por intervallos, salpicado a longe e longe de alguma escassa póvoa recoberta de loisas ou de feno, e retalhado de rios e ribeiros profundos e pedregosos! ¡No descampado um passal, antiga quinta das Limeiras dos Condes da Feira, que ali se iam pelos verões montear javardos! ¡Ao centro do passal, e á beira da via publica, o templo de S. Mamede com seu adro arrelvado cingido de cerejeiras, platanos e nogueiras! ¡Por detraz do templo, emboscada, a residencia parochial! ¡Por detraz d'ella despenhadeiros até um rio, que o sol não avista em cada dia por mais de uma hora!
Repicavam os sinos dando as boas vindas ao novo Pastor.
-- «Onde está a freguezia?» perguntavamos nós maravilhados:
"Qui teneant (nam inculta videt) hominesne, feræne?"
-- «Dispersa, escondida pelos oiteiros, a uma parte e a outra, distancias muito largas.» O unico visinho proximo da egreja e do presbyterio era, lá para a orla do passal, S. Sebastião na capellinha branca, como que posto de guarda á sua profusa e rumorosa matta de sobreiros.
Solidão silvestre mais caracterisada, não quero que a haja. A poesia e as festas da serra (que nada ha tão desamparado que não tenha suas festas e poesia) só depois e com o tempo é que tinham de nos vir apparecendo.
Entrança tão desabrida infundiu-me tristeza; e o alvoroço em que o movimento e variedade da jornada nos trouxera, breve me degenerou em esmorecimento. ¡Se me vinham tão frescas e presentes as memorias, não só da cidade do Mondego, senão tambem da minha Lisboa natal, d'onde tão poucas semanas havia que eu sahira! ¡Vermo-nos agora de improviso sequestrados de todo o trato humano, em paragem na qual não havia porquê nem para quê numerar as horas, e onde a carranca dos sitios tinha um cunho tão profundo de immutabilidade, que o espirito se confrangia, e se gelava o coração!
Pela primeira vez ali o namorado da Natureza se amuou, e teve com ella os seus arrufos.
Se o permittis, ouvir-lhe-heis versos em que procurou desabafar:
A PRIMEIRA NOITE NA SERRA".................ibi hæc incondita solus""Montibus et silvis studio jactabat inani."Vélo? Sonho? Deliro?! Em solitario monte,que se espanta de ver-me, e cuja austéra frontenada avistou jamais no amplissimo horizontedo mundo a tumultuar, de cidades a rir...n'este ermo ignaro, frio? mudo...aqui... (deliro? ou sonho?) aqui meu lar, meu tudo,¡o meu presente e o meu porvir!Genio invisivel da montanha,de astros, de sol, o ceo te banha;o mar de longe te acompanhano livre cantico sem fim.Escada de Jacob da terra ao firmamento,a mansão tua é monumentoda potencia, do amor, das glorias d'Eloïm.Emquanto, em derredor do solio teu sublime,a baixa terra vil que a instavel sorte opprime,se volve, se transforma, e sua angustia exprimen'um continuo anhelar, n'um confuso clamor,a variedades sobranceiromantens-te qual surgiste, e do cahos primeiro,e do diluvio assolador.Silencio e paz comtigo habita;o ermo é como o eremita;loucas vaidades não cogita;ama o seu rustico trajar;em apparente inercia ama que ferva occultode seus affectos o tumulto,seus extasis, seus ais, seus gostos, seu orar.Sim, Genio da montanha, Archanjo de poesia:eu creio em ti; eu creio em que alma ingenua, pia,póde ouvir de tua harpa a casta melodia,e abrazar-se de amor e endoidecer por ti;sim; mas eu, frivolo, profano,á solidão extranho, affeito ao mundo insano,que hei de esperar? que tenho aqui?Toda a minh'alma se entristece,e se confrange, e se ennoitece,ao ver que a sorte lhe destecede um sopro os aureos sonhos seus.Sonhava applausos, gloria... ¡em desterro desperto!sonhava mundo... ¡acho um deserto!sonhava inda illusões... ¡e escuto-lhes o adeus!Náufrago, perco a lyra em meio da viagem.¡Desço vivo ao sepulcro! ¡Em ti, fatal paragem,quem me resurgirá! Dos montes a linguagem...oiço... escuto... medito... e em vão quero entender;é como uns sons d'ignota fala;qual ás penhas o mar, me inunda e me resvala,sem me abalar, nem me embeber.¡Oh! á minh'alma taciturnaque importa, ó montanha soturna,que de perfumes sejas urnada terra erguida sobre o altar?que o ceo te ria azul, mais amplo e mais de perto,que o sol doirado, ao teu desertomais cedo suba, e á tarde o desça com pesar?Vir mais tardia a noite, a aurora vir mais cedo,que me aproveita? Inerte entre o immovel fraguedo,só ouvindo os tufões e os corvos no arvoredo,bramirei: -- «¡Cresce o tempo! ¡oh! ¡supplicio cruel!¡são mais pesares, mais saudades,mais estro a arder em vão, mais visões de cidades,mais tentações a dar-me fel!...» --¡Ai! ¡mundo! ¡ai! ¡eccos seductores!¡Tanto vate a ceifar louvores!...¡Tanto moço a colher amores!...¡Tantos loireiros e rosaes...E eu n'esta solidão a torcer-me arraigado,qual roble que geme indignado,vendo ao longe no Oceano os lenhos triumphaes!Assim ruge, baldão de vingativo nume,esse que a argilla outr'ora encheu de ethereo lume;assim nos gelos sua, agrilhoado ao cumedo caucáseo alcantil, seu cadafalso atroz.Só o abutre de eterna fome,que o grande coração algoz sem fim lhe come,responde em ais á sua voz.Fenece o dia. ¡Hora jocunda,que eu tanto amava! ¡hora fecundados cantos meus! porque me inundanova amargura o coração?Sino crepuscular, tôas funéreo dobre?a serra em luto se me encobre;a nocturna mudez duplica a solidão.Nenhuma luz scintilla; humana voz não sôa.De estrellas a accender-se o Empyrio se povôa;tal a fada Coimbra, a senhoril Lisboa,nest'hora a quem as olha, entram no escuro a abrirde luzeiros um labyrinto.¡Ceos! ¡Não oiço eu troar... seus coches!... O que sintoé vento em selvas a rugir.Calae, fugi, ventos agrestes;sumi-vos, lampadas celestes;n'um seio a delirios já prestesnão susciteis mais tentações.Ou antes... aturdi-me, Euros bravos; ou antes...vós, astros, cifras de diamantes,O arcano me aclarae lá d'essas regiões.¡Oh! se á minha razão, contradictoria, altiva,que ás trevas sente horror, e á clara Fé se esquiva,de vós, faroes do Geo, baixasse a crença viva,que aos moradores do ermo inspira a vossa luz!...¡se me volvesseis as ditosasesp'ranças que hei perdido, alvas, ethereas rosas,com que se enfeita e esconde a Cruz!...Tornar-se-me-hiam de improvisoa solidão, em paraizo;a magua, em perenne sorriso;em alto cantico, a mudez;a mallograda lyra, o não colhido loiro,em harpa augusta, em palmas d'oiro;e o monte, solio então, veria o mundo aos pés.Delirios sempre vãos, fugi d'um peito enfermo;tu, só tu, negra morte, has-de ao meu mal pôr termo;ermo para ambições, e inferno, e não ermo;para a humilde piedade é que elle espelha o Ceo.Gentis phantasmas de cidades,vinde, escondei-me o ermo em vossas claridades,como um esquife em aureo veo.¡Vinde, cercae-me, endoidecei-me,(embora em saudades me eu queime)!O somno, as vigilias enchei-meda vossa esplendida vizão.Val o riso choroso as festas da loucura?vinde, guiae-me á sepultura,crente no amor, na gloria, e rindo á solidão.¡Eu blasphemo, eu desvairo! Aos encontrados votos,nem ecco respondeu n'estes covões ignotos.Não, cumes glaciaes, tão outros, tão remotosdos sitios que eu amava, e em que esperei morrer;não, no silvestre seio vosso,nem de amenas ficções apascentar-me posso,nem menos as posso esquecer.¡Valor! ¡valor! Quem do futurosondou jamais o abysmo escuro?¡Apenas chego e já murmuro!O de que tremo acaso sei?Esperemos: talvez que inglorios, mas doirados,aqui me aguardem, recatados,dias de estro e de paz, quaes nunca disfructei.Se além, no presbyterio, humillima choupana,(Vaticano, e Queluz da pobre grei serrana)mais que fraterno amor sollicito se afanaem me afofar o ninho, a vida em me inflorar;se n'um retiro verde e mudo,por elle tenho o leito, a mesa, o doce estudo,sombras no estio, o inverno ao lar;se a solidão que me apavora,sómente o fôr vista de fóra;se em seus recôncavos demoragente feliz, povo de irmãos;se do antigo viver, das crenças de outra edade,vestigios guarda a soledade;se poesia se vive entre estes aldeãos;se a alegria, serena, isenta de pesares,como a fresca saude, habita os puros ares;se em toda a parte ha Deus, em ceos, em terra, e mares,se Deus em toda a parte a Natureza ri...coração meu, não desanimes,gozos que não prevês, e cantos mais sublimesencontrarás talvez aqui.¡Ah! sendo assim, que importa a fama!Tambem philomela derramasua harmonia ás selvas que amalonge de ouvintes e do sol.Cantarei. Meu cantar mais ambições teriaque a viva, a lustrosa poesiade perolas que a flux borbóta o rouxinol?
Sete annos se nos gastaram por ali, menos estranhos em verdade, menos difficeis e arrastados, do que o eu temêra, ao trocar, tão a subitas, cidades e amenidades por brenhas alpestres, tão desconversaveis á primeira vista. Tivemos tempo de sobra para nos irmos aclimando e afazendo, e haurindo poesia mesmo dos penedos, e estillas de mel mesmo dos urzaes. Mas tudo isso pertence a outro livro, onde algum dia folgarei de hospedar os meus leitores; chama-se por signal "O Presbyterio da Montanha".
XL
Tem a solidão isto de commum com o silencio e a escuridade: espanta e aturde a quem n'ella cái; mas logo que o ouvido, desadormentado dos sons fortes, aprende a conversar com a mudez; tanto que os olhos, desoffuscados dos luzeiros intensos, se exercitam em caçar espectros de raios, phosphorescencias indecisas, que são como que os infusorios das trevas, descerrou-se o negrume em brilhantismo; a calada aviventou-se de dialogos; a solidão, que parecia o nada, é o theatro com o seu drama; é um mundo novo com um systema completo de existencias imprevistas e apropriadas.
¡Que admira! A solidão medita, e a meditação cria.
Os sentidos pastam só no que lhes offerecem a Natureza, a fortuna, o acaso; a divindade interior, a alma, tem commercios ineffaveis com o intimo e ignorado. S. João, entre os nevoeiros de Pathmos, divisa uma Jerusalem celeste; nas cogitações de Socrates, apparece o Omnipotente: nos extasis de Platão, reflexos da Trindade; nos calculos taciturnos de Galileu, firma-se o sol, volteiam os planetas; Colombo faz surgir do fundo dos mares a America; Leverrier, mais globos no espaço; Fulton, o hypogripho, o pégaso do vapor, magia, poesia, potencia escrava do homem, e dominadora, primeiro dos oceanos, depois dos continentes, e amanhan talvez dos ares; a solidão cismadora, dá a Eneida a Virgilio; mostra a Linneu os amores e o somno das plantas; a Dante, o inferno; a Fourier, o paraizo terrestre; a Newton e a Laplace, o codigo dos astros; a Daguerre, os talentos artisticos do sol; ao Gama, o caminho do Oriente; ao soldado Camões, o da immortalidade; põe na mão de Guttemberg a chave do cofre das sciencias; na de Vicente de Paulo, a da caridade; na de Say, a da riqueza publica; na de Pestalozi e Froebel, a da escola séria e fecunda.
Assim como na associação está a potencia do effectuar, está na solidão a potencia ao descobrir, e a ideia germen do facto. Na solidão, a meditação; a acção, na sociedade. O progresso e a vida do mundo dependem da cooperação d'estes dois elementos antagonistas, como da attracção e repulsão a marcha das espheras; e tão fanatico é o fanatico do ermo, Brahmane, Esseno, ou Monje, que cifra tudo no espirito, como o fanatico da actividade material, que tudo cifra na materia. Este ultimo é elemento visivel e palpavel; aquelle, elemento imponderavel dos destinos humanos; e tão imponderavel e subtil, que muitos lhe contestam de boa fé a existencia, os influxos, a importancia.
Archimedes, a sós com a Natureza e com o seu genio, descobre os meios de destruir e incendiar a frota romana. Absorto em suas reflexões criadoras, no seu gabinete, como n'um antro, não sente o estrondo da cidade, já senhoreada dos inimigos; não acorda á voz do soldado de Marcello, que, de espada em punho, lhe ordena que o siga; sem o sentir é degolado. Cai a grande cabeça, irman entre irmans, no meio das espheras celestes que está architectando. Só de tão extraordinaria concentração podiam brotar os seus tão extraordinarios inventos e descobrimentos.
Lavoisier, outro dos martyrisados pelo materialismo descrente e brutal, depois de haver testado ao mundo a mais opulenta herança scientifica, condemnado ingrata e cegamente á guilhotina, que é o que pede aos verdugos revolucionarios seus juizes? uma dilação de quinze dias. ¡Só uma dilação! ¡só de quinze dias! para quê? para concluir trabalhos uteis á humanidade, que n'este momento o desconhece; rematados elles, já não terá pena de morrer. Recusam-lh'a; então caminha sereno a depôr no cadafalso uma cabeça maior talvez que a de Archimedes, e ainda na vespera coroada de loiros pelo Lyceu.
Tanto a actividade fecundante, recolhida por instincto para os penetraes mais sagrados do animo, d'onde se conversa em extasis com Deus e com a Natureza, com e Pae Omnipotente e com a Filha Formosissima, nossa irman, fica inaccessivel aos maiores cataclysmos externos, ás catastrophes das Syracusas, ao cahos, providencial porém medonho, de uma revolução franceza.
O homem que nasce pertencente á escassa familia d'este naturalista pae da Chimica, e d'aquelle geómetra pae da Mechanica, mesmo com os braços cruzados sobre o peito, mesmo com os olhos fechados, mesmo dormindo e sonhando, está servindo como operario; mas abaixo d'elle ha ainda, não menos veneraveis, os prestigiosos scismadores do mundo da Arte, mundo não menor, nem talvez, em ultima analyse, menos util que o da Sciencia.
André Chénier, especie de Lavoisier da Poesia, convocado tambem para o festim da morte, não é dos prazeres ephemeros da existencia que leva saudades; -- bate apaixonadamente raivoso na fronte, porque sente se lhe estava ali dentro formando, como em cerebro olympico, uma nova Musa gentilissima. Quem lh'a revelára? A meditação solitaria, que sabe tudo, e tudo prophetisa.
¡Bonissima solidão! Tu és para a sociedade o que as tuas montanhas são para os valles: nas tuas entranhas se filtram, dos teus reconcavos rebentam, os genios possantes e profundos que vão derramar por longe a fertilidade. Mas tu não és só mãe ás torrentes caudaes; uma fontinha entre lapas, desconhecida, não se goza menos do teu favor. Sobre o pouco liberalisas dons, como sobre o muito; próvida para o immenso, próvida para o limitado. ¡Solidão, Egeria das almas eleitas! ¡solidão, buscada por Christo, abraçada por Jocelyn, adorada por Petrarcha, explorada em tuas minas de oiro por Zimmermann, inspiradora de Volney, de Rousseau, do Infante de Sagres, de todos os videntes, de todos os descobridores, de todos os inventores, de todos os Baptistas! ¡Solidão, ninho das rolas como das aguias, perdôa, se eu não sabia ainda apreciar-te.
Só agora, depois de arrancado d'ella ha tantos annos que já a podéra ter esquecido, só agora é que decifro (se porventura não é miragem do amor proprio), que a seriedade austera e o sorrir melancolico da montanha vieram tão de proposito entremear-se na minha vida poetica e amoravel, como a primavera do Paço do Lumiar e as do Mondego.
XLI
Os meus sete annos da serra, só de longe a longe interrompidos por algumas breves excursões a Coimbra, e uma a Lisboa, contiveram forçados e sobejos ocios para eu pensar em alguma coisa mais duradoira e menos egoista que as rosas e os amores; direi melhor: -- iniciaram-me um tanto nos segredos de outra esphera menos baixa, na qual ha flores tambem, mas que não murcham; ha tambem ternuras, mas que abraçam o genero humano.
O presbyterio, com a nossa bibliotheca semi-pagan, homiziava-se á sombra do templo do pastorinho S. Mamede. O campanario só chamava para a oração e para festas um povo que se não via, e que aos eccos d'aquelles repiques parecia rebentar da terra. Relogio, não o tinha; contentava-se de pregoar a saudação angelica nos dois crepusculos e ao meio dia. As horas, que são do tempo, desdenhava-as como alheias ao pensamento da immortalidade. O silencio era profundo e geral; seria sem quebra, se o não interrompessem as musicas da Natureza no ermo: os passarinhos por fóra das duas portas abertas da egreja, as cigarras nas oliveiras do passal regaladas no seu banho de sol, as rolas e os cucos no sobreiral de S. Sebastião, as aves domesticas no nosso pateo espaçoso, os grillos pelos silvados, os álertas dos gallos, os uivos dos lobos, os pios dos mochos pelas noites, o frémito do vento pelos pincaros do pomar, enclausurado e protegido com o tugurio no recinto de muros altos, e ás vezes tambem nos temporaes, pela montanha de heras de que se toucava entre platanos o portão hospitaleiro da vivenda.
N'este intermundio o que passava lá ao longe pelo Reino era quasi tão desconhecido como as occupações dos moradores dos outros planetas. Das raias da serra a fóra só tres nomes nos constavam ao certo, porque nol-os dava a collecta da Missa: de um Papa, de um Bispo, de um Rei; os parochianos que não sabiam o latim, nem a tanto chegavam, cuido eu; o que lhes não vedava serem muito boa gente, muito bons christãos e amigos da Patria, em que lhes constava achar-se encravada a sua montanha.
Povos de tão benigna condição, facil era, e gostoso, pastoreál-os. Homens tão montesinhos e sáfaros, mas ao mesmo tempo doceis, intelligentes e activos, grande obrigação era, além de dever civico, humano, e religioso, arroteál-os para um pouco de civilisação, ou para muito, se possivel fosse.
Agras e agerrimas são de si as entreprêzas d'este genero; mas por isso mesmo é que alliciam almas generosas.
¡Grande era, e excellente, a alma do mancebo Parocho!
Novas leituras, novos estudos, em razão de seu officio, se houveram de enxertar nos nossos anteriores conhecimentos, só poeticos pelo de mais. Pegaram ás mil maravilhas; ganharam extraordinaria força em razão da seiva que já encontraram prevenida.
Pelas suavidades da Litteratura vai bom caminho e muito direito para a Philosophia e para a Moral; por isso não sem razão lhe chamaram estudos humanos, ou humanidades. Devorámos com avidez de poetas as eloquencias de Bossuet, de Bourdaloue, e de Massillon; as obras dos Santos Padres, e á mistura as de quantos escriptores sociaes, civilisadores, iniciadores, e alvitristas sinceros, nos occorreram.
Uma vez lançado o espirito por este caminho, não pára; nascem-lhe as cubiças umas de outras; ambiciona e parece-lhe que ha-de abarcar infinitos:
"Jam modo non possum contentus vivere parvo."
XLII
¡Que poesia deliciosa não ha-de ser a que referve na cabeça e no peito de um colonisador humano: Cadmo, Amphião, Dido, Romulo, ou Cabet! ¡Que sonhos magnificos não havia de sonhar toda essa gente!
¡Pois um Fénelon a planejar Salentos!
¡Pois um Voltaire a fazer homens dos seus serranos do Jurá!
¡Pois um Goldsmith a conviver com o seu vigario de Wakefield!
¡Pois um Daniel de Foë a trabalhar com o seu "Robinson Crusoé", e um Wyss com o seu ainda mais util "Robinson suisso"!
¡Pois o "Medico da aldeia", o "Vigario das Ardennas" e o "Cura campestre" de Balzac!
¡Pois Bernardin de Saint Pierre com a sua "Arcadia" e a sua républica de felizes!
¡Pois os Jesuitas domesticando os selvagens do Paraguay!
¡Pois um Henrique IV a scismar com a gallinha na panella de todos os seus subditos!
¡Pois Olivier de Serres a transformar com as amoreiras a selvajaria do Vivaret em vergel de afortunados!
¡Pois a parochia de Jocelyn!
¡E muito mais e melhor que a parochia de Jocelyn, o Bispado do nosso D. Francisco Gomes do Avellar!
Meu irmão sonhou tambem, e eu com elle por conseguinte, na procura da felicidade alheia; e parece-me que o nosso affinco perseverado em certos projectos competentemente amadurecidos, e de prestimo indubitavel, alguns effeitos plausiveis haveria dado de si; porque lá n'aquellas terras ainda hoje é grande a autoridade moral e a força persuasiva de um Parocho, sobretudo quando sabem e sentem que é bom homem; ser bom homem é em seu conceito a primeira das sabedorias.
Entraram-se porém dentro em pouco os tempos a cerrar; cresceram desconfianças no futuro; vieram-se avisinhando temporaes, que por derradeiro nos arrancaram tambem a nós, depois de dispersas pelos ares as nossas utopias.
Uma d'ellas, que de certo se teria realizado, sem contradicções nem bulha, era: que nenhum morador da serra, menino, nem velho, nem adulto, nem lavradora, nem ovelheira, deixaria de aprender as primeiras lettras; para o que, lh'as iriamos levar ás suas proprias aldeias em cursos nómadas e temporarios, concertados com as estações, e em harmonia com as lidas agrarias. Instruida a primeira camada, facil era, ou facil nos parecia a nós que seria, colhêr de entre ella mestres e mestras que pela modica recompensa de alguns punhados de grãos, uns arméos de linho, ou um tudo-nada de cobres, continuassem o ensino em suas terras.
O saber ler de que serviria, faltando que se lesse, e que valesse a pena de ser lido? Tinha-se assentado portanto em escolhermos, resumirmos, traduzirmos, simplificarmos, humanarmos, e, se tanto fosse necessario, compôrmos, opusculos destinados a darem aos nossos neophytos da religião da luz noções claras e exactas das coisas mais importantes da natureza physica, da religião, da moral e deveres mutuos; quanto bastasse de historia, e o mais que possivel fosse de carta de guia para cada uma das culturas, para cada um dos mistéres, já por ali empyricamente costumados, ou dos que se podessem com a boa vontade introduzir.
Uma typographia modesta, de um só prelo, bastava, e com um só compositor, que podia até ser um clerigo, para se não distrahirem os trabalhadores, facilitaria esta sementeira de industria e civilisação. Os pisões dos bureis, as mós dos moinhos, as galgas do azeite, e os fusos dos lagares do vinho, lá poderiam extranhar nos primeiros dias, verem levantar-se por entre elles um engenho que não deitava nem comida, nem bebida, nem vestido; mas não tardaria que descobrissem como tudo isso, e muito mais, dimanava milagrosamente da bemdita machina, a mais serviçal amiga de todas as machinas, de todas as artes, de todas as sciencias, de todos os melhoramentos, de todos os progressos, de todas as alegrias, de todas as verdades, de todas as consolações, de todas as glorias, de todos os arroteamentos, de todos os aperfeiçoamentos, de todas as conquistas.
A imprensa no ermo, a imprensa na Residencia parochial, especie de cabana disfarçada com limeiras e rosas, não podia deixar de ser uma imprensa util, séria, e dadivosa; e ¡lembrasse-se ella de o não ser! Gostava eu de ver como se avinha para isso com o pastorinho S. Mamede, seu visinho paredes meias, com a pia dos baptisados tão limpida, com a matta além tão inoffensiva, com as sepulturas aos pés a exhalarem paz e bom conselho, com os passarinhos a cantarem festa, com o sol franco por cima da cabeça a proclamar: «Vivei e amae: vede o mundo que eu vos mostro como é formoso; aproveitae-o, e glorificae ao nosso Creador.»
Os livrinhos de tal officina talvez não alongassem vôo até ás cidades (flôres de urze e amoras de silva não se levam ao mercado); mas abundariam gratuitos, inspirativos, e bemquistos, por todas as casinhas da parochia: por baixo dos tectos de palha ou lageas, como por baixo da riqueza das telhas rubras de valladío, ou da opulencia fabulosa dos tres ou quatro telhados moiriscados.
A estante do Ecclesiastico hospedaria fraternalmente entre os breviarios, o "Flos Sanctorum", e as folhinhas de reza, estes opusculos do seculo. Os paes de familias os depositariam, depois de lidos, para se tornarem muitas vezes a reler, na papeleira por baixo do seu oratorio. O pastor os folhearia, ruminando elle tambem nos campos do espirito, no meio do rebanho mais bem tratado. O operario na sua officina mostraria com satisfação, entre a sua ferramenta, estes instrumentos novos, aperfeiçoadores dos artefactos e do artifice. As séstas de verão, os serões do inverno, ganhariam encantos com as leituras em commum; nos testamentos figurariam como verba, a par com maiores haveres, os volumes, que assim se iriam accumulando multiplicados pelos filhos e netos pelos tempos fóra.
Depois, os domingos, os dias santos, e os tempos mortos para a lavoira, ¡quão bem se não empregariam na cosinha, na sala da Residencia, ou na sacristia por mais espaçosa, explicando á boa gente, já avida de saber, e que affluiria a esses passatempos como ás romarias, o que elles não tivessem podido por si mesmos explicar! que para isso ali estava á mão como auxiliar, ao pé do prelo uma livraria copiosa, e continuamente acrescentada.
Aos ambiciosos do latim, do francez, da historia, das viagens, das noticias do mundo, ou mesmo da poesia, ali se dariam tambem com a melhor vontade licções, livros, conselhos.
¡Quem sabe o que em trinta, quarenta ou cincoenta annos, se não crearia por ali, onde tão pouco em tantos seculos se adiantára! ¡Que novos e prosperrimas culturas pelos valles e cabeços escalvados! ¡que fabricas, talvez, servidas por aquelles rios, por emquanto ociosos! ¡que augmento nos haveres, na população, na civilidade, na convivencia! ¡que festas novas entre estes montanhezes! ¡Quantas á imitação d'aquell'outras da Suissa em honra da velhice, da virtude e dos serviços prestados á communidade pelos corações bons, pelos espiritos eleitos!
O nosso amor proprio, tanto como a nossa consciencia, aspirava a peito cheio virações de Eden, calculando e preparando tantas venturas, e tão faceis de si, quando deveras se desejam.
Até já previamos, como consequencia summamente provavel de toda esta excitação, que umas terras assim, de que nunca se ouvira soar um unico nome distincto para além do seu ultimo tojal, viriam a contribuir como as outras para o lustre futuro da Patria, com talentos aproveitados em sciencias, em artes, em litteratura, em poesia.
Dilatei-me agora n'isto, porque me pareceu que não fazia mal ficar para ahi este pequeno rebate aos curas d'almas, que para a civilisação podem mais e muito mais do que se imagina, e do que presumem elles proprios. Assim se tratasse de os criar bem, de os instruir muito, de os escolher com escrupulo, e distribuil-os com acerto pelas parochias fóra de mão, em que tudo, ou quasi tudo, jaz ainda por tentar.
XLIII
Ora pois : estas meditações sociaes, a que só falleceu o tempo indispensavel para frutificarem em obras exteriores, que, ainda que não viessem a ser muitas, sempre seriam algumas, produziram todavia seu effeito benefico em nós mesmos. Tão boa coisa é de si a caridade, que, mesmo não aproveitando para fóra, unge e fortalece a alma em que se hospéda.
Aqui está como a brenha contribuiu tambem para me temperar com amores novos a indole poetica originaria; d'ali é que me tomaram raizes as temerarias resoluções, que muitos annos depois se haviam de manifestar, na criação de um Methodo humano de ensino elementar, e nos esforços para o diffundir e estabelecer.
Em summa: todas quantas aspirações benevolas eu vim a patentear nos dois livrinhos, que ainda hoje amo, "Felicidade pela Agricultura", e "Felicidade pela Instrucção", não foram talvez senão reminiscencias d'aquelle prazo da minha vida.
XLIV
Ora eu, como os leitores sabem, não vim com este escripto representar de grande homem, que ninguem o é menos do que eu, nem menos do que eu o podia ser; o meu unico intuito foi expôr lisamente e com verdade os factos, de que a mim me parece poder-se concluir com verosimilhança: que a fortuna e a natureza andaram concordes em sequestrarem da multidão, para o deixarem só e exclusivamente poeta e amante, o individuo de quem eu fui herdeiro, e de que agora em parte sou biographo desapaixonado; por isso declaro com igual sinceridade: -- que a par com estas utopias beneficas e civilisadoras, a que o espirito de meu irmão se dava todo, cá no meu nunca deixaram de vicejar os outros generos de poesia menos alta e mais egoista, de que a indole e o costume me tinham feito necessidade.
A esses annos da serra pertencem pois, como já n'outras partes declarei, as traducções das "Metamorphoses" e dos "Amores" de Ovidio, muitas das bagatellas encorporadas nas "Excavações Poeticas", a "Noite do Castello", e os "Ciumes do Bardo", ciumes que, dilo-hei agora de passagem, nada tiveram absolutamente que ver com os ideaes amores de que venho conversando.
D'esses annos a primeira parte permittia ainda largos horizontes de esperanças, que depois se apoucaram e denegriram com as vicissitudes politicas, as guerras civis, e as perseguições que lá mesmo nos alcançaram.
Meu irmão, tão devaneador de venturas para extranhos, e que para algumas logrou de feito contribuir, claro está que da minha se não descuidaria. Assim como elle o era para mim, era eu para elle transparente. Ainda que algum de nós pretendesse jamais ter para o outro uma sombra de segredo, baldaria todo o seu empenho.
Sabia elle pois, tão bem como eu, e sem eu lh'o dizer, que o meu espirito poetico no meio de tantas poesias anciava ainda por outra mais especial, que volteava á superficie de todas, como a mariposa que vai e vem de flores para flores, e, mostrando-se contente de as possuir, deixa todavia suspeitar que ainda não encontrou aquella em cujo seio ha-de cerrar as azas, aninhar-se, e permanecer.
XLV
Uma tarde de verão, que me eu estava acompanhado só de minhas cogitações, no que chamavam meu "Templo das Musas", veio elle ter comigo, trazendo com alegria uma carta recemchegada de Vairão.
Era o meu afamado "Templo das Musas" uma barraca engenhada de cannas, vimes e feno, quadrada, alta que se podia estar em pé, ampla que se cabia reclinado ao comprido nos bancos de cortiça que por tres lados lhe guarneciam o interior; ao meio de cada uma das tres paredes, uma janella de um só vidro, e outra egual na porta, davam entrada ao dia, á lua, ás viraçoes frescas, e aos rumores proximos ou longinquos da vasta natureza exterior. Pompeava esta solitaria e majestosa fabrica junto a um alto denominado da "Pedra Branca", fóra do passal, e á beira do sobreiral de S. Sebastião; desafrontado posto, donde se descortinavam terras de quatro Bispados, com horizontes até onde olhos de aguia podiam ir. Era miradoiro, e era escuta tudo junto. ¡Quantas vezes d'ali não captavamos nós, poucos annos depois, o rolar dos trovões da artilheria na acção da Ponte do Marnel, e lá muito mais a longe, no cerco do Porto! ¡sons lugubres que vinham resaltando de cabeço em cabeço encher de enigmas e sustos a nossa descuidosa solidão!
Apezar de tudo, conservo saudades da boa da palhoça. Não havendo guerras civis, conversava sim tristezas, mas tristezas todas mansas, e com seus furta-côres de deleites e alegrias. Estava-se bem ali; e se occorria desejar-se por entre sonhos alguma outra coisa, era antes para que ella viesse enfeitar o deserto, do que não para se ir procurál-a fóra d'elle.
¡Tempos! ¡tempos! Tornei-me lá vinte annos depois; faz agora oito; mudanças até nas brenhas! Existia a mata e a capellinha; existia a Egreja e a Residencia; mas do meu "Templo das Musas", nem vestigio: os invernos e os estios tinham-lhe devorado até o minimo colmo. Onde eu dormia ou scismava deleites, dominando do meu castello rosado pela aurora, doirado pelo sol, prateado pela lua, espaços infinitos... estavam outra vez as queirozes em pacifica posse do seu torrão, a vangloriarem-se talvez, com as abelhas, de terem afinal triumphado de quem as desterrára; e as ovelhas, vigesimas descendentes de um rebanho que pastava á roda de mim sem me ver, nem ideia vaga tinham já de tal edificação; sumia-se-lhe na noite dos tempos.
Antonita, a pastorinha que o guardava, já por ali não era. ¡Que linda voz que não tinha, aquella prima donna dos oiteiros! ¡que poesia de anjo que não desperdiçava só para a sua roca, e para os carvalhos! que a mim não me via ella, ainda que tão de perto me rondava o tugurio, nem eu me denunciava, com medo de intimidar o rouxinol; o mais que fazia era entreabrir subtilmente a vidracinha da parte onde ella cantava, para lhe estar por ali furtando melodias para os meus devaneios.
Perguntei por ella; quando cresceu, cresceram-lhe ambições, deixou o mato e as ovelhas; fez-se tecedeira; ao tear, cantava ainda tão alegre e innocente, como tinha cantado á sua roca de lan nos descampados; depois, um bello dia, convidou-a o seu anjo para ir cantar no Ceo; e desappareceu.
¡De todo aquelle idyllio tão vivo, só eu resto! Guardadora, choça, rebanho, passou tudo... Mal ficou este pequeno reflexo mortiço na pagina que estou dictando, e que tambem, ella mesma, d'aqui a alguns annos se ha-de apagar.
Leu-se a carta; era um suave queixume pela quebra já mui longa da nossa correspondencia; e era em tudo uma confirmação evidente de que Maria não deslisava apice da que se manifestára e fôra desde todo o principio; e encerrava realmente no seu complexo todos os requisitos para a felicidade de um homem, que, possuindo paz e amores, já não cançaria o Ceo com grandes votos.
-- «Vamos -- exclamou meu irmão, abraçando-me; -- tenho promovido tantos casamentos por estes arredores, e regala-me sempre tanto administrar o setimo sacramento, folgasão preambulo dos baptisados, que desejo e mereço ver tambem alegrias d'essas na Residencia. Venha a tua solitaria amenisar emfim a nossa Thebaida. Havemos de fazer um jardim de proposito para ella por baixo da fonte do passal, com bastantes narcisos, que lhe recordem a primeira revelação que te ella fez da sua ternura.
«Quando as obrigações do meu ministerio me demorarem por fóra (a sua merecida fama de prégador começava a não lhe deixar dia nem hora livre; não havia festa grande nos quatro Bispados para que não fosse rogado), quando os meus especiaes estudos me privarem de cultivar comtigo a nossa cara Poesia, terás uma leitora e secretaria, que te coadjuve, e ao mesmo tempo te exalte a inspiração; a sua voz tornar-te-ha a Poesia mais poetica; os versos dictados para mão tão delicada, sahir-te-hão mais bem nascidos.
«Podiamos edificar aqui desde já uma casinha aprazivel, um verdadeiro ninho de andorinhas para o novo casal; mas possivel é, bem sabes, que não seja esta a terra que nos ha-de comer os ossos; e n'esse caso, o havermos lançado aqui raizes mais fundas, teria sido tornarmo-nos mais doloroso o arrancamento. Para gente sobria e simples, como nós, é de sobra o presbyterio; bastará guarnecermol-o de mais roseiras, abrirmos-lhe no meio do pateo o luxo de um tanque para espelho, e para pompa erigirmos ao fundo das laranjeiras o elegante pombal candido que projectavamos, e de cujas moradoras hade ella ser a providencia e a alegria, como de toda a vivenda.
«Em summa; os nossos haveres permittem-nos, sem taxa de temeridade, a realisação d'esta encantadora utopia, que talvez nos abra passo á realisação das tantas outras que planejâmos! Para obras de beneficencia, de humanidade e de civilisação, nunca é de mais uma conselheira, e então de tão alto juizo, de coração tão amante, e amadurecida pelos livros e pela solidão.» --
Era musica celestial tudo isto que lhe eu escutava; apertál-o bem apertado ao peito, foi toda a minha resposta de assentimento.
Verdade verdade: -- está-me vexando, apesar do que estabeleci no começo d'estas confidencias, tão diffuso falar sobre tão apoucado sujeito, que, por mais que eu diga, saiba e sinta, não ser eu, sempre hão-de tomar por mim; e portanto, dobrada censura: sobre importuno, immodesto. Paciencia. Os mal affeiçoados muito ha já que hão-de ter dado a sua curiosidade por satisfeita, e cerrado o livro; os outros, que vieram commigo até aqui, são mais soffridos de genio, e são amigos; hão-de-me acompanhar já agora com indulgencia até ao fim; e se a esses mesmo enfado, fique o restante da narração como soliloquio de um saudoso, ou dialogo de memorias tristes entre um vivo e dois finados.
XLVI
Tinha-me a Real munificencia do Senhor D. João VI, já em 1819, collocado em posição de fortuna, para entre poetas, e poetas portuguezes, muito invejavel: dera-me a propriedade sem onus de um dos mais pingues officios de Justiça na Correição de Coimbra. Com essa renda vitalicia, que ainda hoje durára, se não fossem as uteis refórmas introduzidas no fôro depois de 34, podia eu ter folgadamente realisado desde todo o principio o meu consorcio com Maria; mas eu tinha feito voto anterior de mim para mim, e não queria quebral-o, de deixar sempre na casa paterna, integral e incondicionado, o usufruto d'aquelle rendimento. Não era generosidade; era simples dever. Tendo pois, como se não tivesse, facilmente se imagina ¡como eu ficaria por dentro com este raiar subito da Providencia, da Providencia encarnada em amor fraterno! A chave d'oiro do meu paraizo tinha-a eu posto d'onde a não podia retomar; meu irmão acabava de me entregar outra; e com tal melindre de affecto, como tudo que d'elle vinha para mim, que recusar-lh'a eu, fôra magoal-o mais a elle, do que a mim proprio.
A casinha parecia-me transfigurada em albergue de fadas.
Respondeu-se ali mesmo á carta. Antonita estava cantando uma cantiga de amores a vinte passos de distancia; a alegria e a amizade cantava no coração de Augusto; no meu, cantavam o alvoroço, o enternecimento, a amizade. Era uma hora d'aquellas de que o Céo não empresta mais de uma ás existencias afortunadas.
A carta que eu então dictei para mensageira de tão boa nova, e a que tres dias depois se lia mysteriosamente no mesmo logar aos ultimos raios de um sol magnifico, existem ainda hoje, mas não pódem ser relidas; doer-me-hiam excessivamente; hão-de ser pelo contrario queimadas com todas as outras d'este romance intimo e sagrado, logo que eu tenha concluido o presente escripto. Se alguem não comprehender por si este melindre, paciencia; eu é que me não atrevo a explicar-lh'o.
A elegia "Ermitagem da montanha" tinha sido poucos dias antes phantasiada ali mesmo. Junto ao convento havia tambem serras, como já vos disse:
"Sola eris, et solos spectabis, Cynthia, montes."
Na desesperança, ou, quando menos, incerteza de conseguirmos jámais posse real um do outro, não eram bem naturaes aquelles desejos, aquellas visões do poeta solitario no meio dos seus bosques, pensando na poetisa solitaria á sombra do seu mosteiro? Que amante deixou de sonhar alguma vez que a felicidade o aguardava n'uma caverna sonegada aos olhos de todo o mundo?
A mutação maravilhosa que se me acabava de operar nas perspectivas da alma, fez rebentar o meu ultimo canto -- "A Esperança."
¡Ah! ¡a esperança! quem? não sendo amante, ou louco, póde fiar-se nos sorrisos de tal phantasma? Os gozos, que tão proximos se me antolhavam, ainda vinham longe. ¡Ha tantas illusões d'estas na vida! teem-se os olhos fitos n'uma ventura que já se vê e se ouve tão perto, que se figura alcançavel com dois passos... e não se repara em que entre ella e nós pode haver duas ribanceiras escarpadas, e até de permeio um rio sem ponte, profundo, vertiginoso, mortifero!
XLVII
Em 1828 sahia pela primeira vez á luz, mais por desejos de meu irmao que meus, o "Amor e Melancolia".
Aos que já então o tomassem por historia poetisada, como agora se vê que era, figurou-se de certo, como a mim proprio, que estava ella chegada ao seu desenlace ultimo. Era miragem de deserto; o verdadeiro lago para a sêde, jazia ainda bem remoto.
Vieram-se carregando cada vez mais as trevas do horizonte politico; ¡os receios e os sobresaltos, os perigos mui reaes a crescerem e a amiudarem-se!
O presbyterio queria ser arca de salvação; mas até elle, em tamanha altura, fluctuava já, e estremecia sobre o diluvio. Se se mandava fóra ave exploradora, voltava atemorisada sem nos trazer folhinha de oliveira. Recerrava-se o postigo, e ficava-se inerte á espera de melhores dias. Entretanto os trovões, ora mais ora menos longinquos, não despegavam, e os relampagos espreitavam ferozes por todas as fendas.
¡Foram tempos bem tristes! Nem o viver benefico de um bom Parocho, nem o viver innocente de um poeta, nem o concentrado de ambos n'uns reconcavos silvestres só vistos de cima pelo que vê tudo, nos aproveitaram para immunidade.
¡Que de refeições interrompidas por uma noticia de denuncia, e de encarceração meditada, proxima, infallivel! ¡que de noites mal dormidas, ou veladas pelos matos, ou por poisadas alheias! ¡que sumir de livros nos vãos dos altares! ¡que enterrar os objectos preciosos! ¡que abrazar papeis! ¡que vigiar do alto do campanario! ¡que fugir a subitas do ninho, para regressar a elle palpitando, e refugir de novo! ¡e tudo isto por quão longo tempo! até que, levantado já quasi o cerco do Porto, atterrados com o ultimo e inevitavel perigo de sermos monteados e perdidos, commettemos á desesperação o salvamento e, atravessando ainda por entre os cercadores n'uma ante manhan escura e chuvosa, lográmos acolher-nos á Cidade eterna.
E se vê, se um passaro assim combatido dos temporaes podia lembrar-se de construir e pendurar em ramos que todos rangiam e estalavam, cestinha de amores para onde chamasse companheira. Não podia ser, por mais temerario, por mais imprevidente que elle fosse.
Estes mesmos trabalhos e transes, que então me pareciam encobrir a Providencia, como as nuvens encobrem ao sol, pode ser que me viessem mandados tambem por ella a trazer-me germes que ainda me faltassem, de poesia affectuosa. Isso teem de seu, se me não engano, as perseguições revolucionarias: assolam, para fecundar; chovem odios, que em se evaporando terão feito desabrolhar bemquerenças. Alma que padeceu, condoe-se:
"Non ignara mali..............."
Só de longe é que isto se conhece bem, e como tudo no mundo é por melhor. Agora nem áquella quadra tormentosa quero mal.
Ella tambem, se hei-de dizer toda a verdade, posto que me retardasse projectos mui queridos, não me foi tão completamente negra como se poderia imaginar pelo que deixo exposto. O animo, pelo menos o dos poetas, pelo menos o meu, tem não sei que elasticidade com que resiste ás quedas e ás durezas mais asperas dos precipicios: torce-se, e não quebra; cai, e resurge; comprimem-n-o adversidades, e logo depois, elle por si mesmo se dilata. Apenas tinha passado um sobresalto, um terror, um homizio, ou uma fuga, e os ares se serenavam um tanto, voltava a bemdita imprevidencia, e com ella o contentamento, e com elle o viver semi-fabuloso com todo o seu cortejo de visões poeticas, accorridas de todos os pontos do horizonte, de todos os recantos do coração, de todos os esconderijos da memoria, de todas as grutas amenas da vontade, de todas as profundezas do discurso; como ao reapparecer do sol depois da trovoada, voltam á festa duplex da Natureza os insectos, as aves, os rebanhos, os pastores, o viço, a musica, o alvoroço.
¡Que de versos não devi eu a esses luminosos intervallos! Foi n'um d'elles que meu irmão e eu plantámos no pateo da Residencia um cedro, que eu mesmo trouxera recemnascido da matta do Bussaco, e que, ha já annos, cobre com a sua sombra balsamica o telhado hervoso da casinha, pradaria das pombas domesticas, e alem do telhado boa metade do terreiro.
Oito primaveras se teem devolvido desde que o visitei pela ultima vez.
¡Deve ser hoje a mais fastosa arvore da cercania!
XLVIII
Sentae-vos em espirito debaixo da sua copa, se vos apraz, e ouvireis o que lhe eu cantava ao firmarmol-o tenrinho n'aquella terra benta.
Adverti porém desde já, em que não ides escutar maravilhas de poeta. São versos faceis e descuidados, como os eu então fazia para matar o tempo, e esquecido de que havia mundo.
Podéra agora tel-os retocado; mas para quê? e que é do valor para estar desconcertando por mera vaidade litteraria umas saudades d'estas? Hão-de ir e hão-de ficar já agora singelos e montesinhos como nasceram. -- Ouvida a primeira duzia d'elles, quem lhe parecer, que deixe os outros.
¡Ó cedro, ó joven principe dos bosques,eis-te já no teu novo domicilio,eis-te vaidoso em pé, do sól á espera!Gente do presbyterio, afervorae-vos,entrançae danças, coroae-vos todos,cantae-lhe bençãos, tumultuae-lhe em roda.¡Gloria a Deus! ¡Como o dia vem formoso!Anjos que protejeis a Naturezavossa amavel irman filha do Eterno,que entre vós repartistes as montanhas,o arvoredo das Dryades palreiras,e a urna fresca das occultas Náyades,vinde, adoptae no seu primeiro diado filho de David a arvore antiga.D'entre os ramosos tufos elevadoseu cume se remonte á patria vossa,e aponte os Ceos ao pensamento humilde.Praza o carvalho a Jove; o loiro a Phebo;a vós o cedro; o cedro, inda saudosoe altivo do seu Libano, inda cheiodas lembranças da Biblia, inda soberbode hospedar em jardins, palacios, templos,Adonai, o Rei Sabio, o Povo Eleito.Assim glorioso e mistico, o bom cedro,o cedro-rei, viu supplice prostrar-seIsrael ora a Deus, ora á fortuna,aos ceos e ao mundo, á eternidade e ao tempo.¡Oh! ¡venerando! ¡oh! ¡cresce em nossa terra!co'a verdenegra copa não desdenhesacoitar o singelo presbyterio.Premeia o generoso desint'ressedo plantador que desce todo á campa.Sagradas são as dividas do affecto;os cuidados que assiduos te protegem,invoca o tempo de os pagar co'as sombras.Dias virão nos teus crescentes dias,em que nobre ante a porta da virtudecom ternura e respeito hão-de saudar-teos montanhezes descobrindo a fronte.Lembrarás os antigos patriarchas,que ao-pé da movel tenda no desertopertenciam aos Ceos pela esperança,e ao patrio mundo pelo amor dos homens.-- Ali -- dirão -- na sésta reclinadoo pobre ancião, pastor d'estas aldeias,ao circulo inquieto dos meninosensina a amar a Deus, a si, aos outros,ás lettras, ao saber, á patria, á gloria;e, abraçando-os risonho á despedida,distribue co'a mão tremula aos melhoresem premio doce disputados frutos. ---- Ali -- dirão tambem -- sentou-se um dia,e gabou a frescura das ramadas,um Bispo antigo e santo; ali tomavao seu café, resando o breviario;meu avô, bem que rustico e indigente,falou-lhe ali, beijou-lhe o annel e ouviu-o.¡Que apostolo! ¡que amor! ¡que urbanidade!essa arvore o cobriu, ficou sagrada. --Hospede e amigo do adoptado albergue,firma-te ao solo com raizes promptas;exalça a fronte aerea, alto, gigante;abre os cem braços co'os tufões em lucta.Piedoso Briarêu, não temas raio;o raio atrôe as serras, cegue, abrazeo altivo topo ás arvores soberbas;tu, não tremas; eu quero no futuroque um novo talisman te adorne e ampare,possante contra furias de elementos,contra o machado algoz, contra demonios:Se dos teus annos na madura forçaa mão que ora te planta inda for viva,essa mesma, já tremula e inda amiga,inda meiga ao seu cedro, e já caduca,no tronco te abrirá com tardo exforçograciosa capellinha, onde sorriaum San-João, o Santo alegre do ermo:trajo de pelles, juvenil frescura,olhos nos Ceos, aos pés cordeiro branco.N'essa noite poetica e devota,em que o prazer, centuplicando aspectos,povoa, anima, encanta o mundo inteiro;agua e terra, ar e ceo, tudo é macio;em que a velhice, a mocidade, a infancia,sympathisam no vago da alegria;em que n'alma insaciavel de deliciasse juntam com mistura inexplicavelo saudoso passado, os bens presentes,ao contente futuro ebrio de esp'ranças;em que n'um laço mystico se aggregamda vida e eternidade os pensamentos,gozos, superstições, fraquezas, cultos,como um ramo de rosas e ciprestesna caprichosa mão das feiticeiras;n'essa noite das noites invejada,té dos casaes lá do ultimo horizontea ti concorrerão por toda a partedançantes bandos que a viola impéra.Verás girar seus bailes rebatidosem redor das estridulas fogueiras;ouvirás os seus canticos em corodevoto e namorado; a bomba foge,zune fugindo, e solapada estoira;o buscapé no ar caracolandomorde n'um, morde n'outro, ameaça a todos,dispersa os grupos, gasta-se raivando,e entre os risos rebenta atroando os ares;aqui, circula em vertice perennea roda leve espadanando incendios,chovendo oiro luzente e estrellas alvas;ali, floreia o fulgido valverde,vulcão sonoro que arremette ás nuvens;vôa, remonta impaciente aos astroso ignívomo foguete estrepitoso.¡E a musica entretanto! ¡e as doces falas!¡e os segredos d'amor! ¡e a prece occulta!e essa mão dada a furto, e a furto acceita!¡e esse olhar falador! ¡e essas virtudesda meia noite em ponto! e a flôr crestada!¡e as sortes que a fortuna extrai ás vezes,e muitas mais a próvida malicia!¡e a fonte que amanhece entre descantes,e pasma rindo de se ver c'roadade festões verdes e enlaçadas flores!...¡Que noite! ¡que prazeres! ¡que triumphoste aguardam no porvir, me estão na mente!Mas se ao neto do Libano silvestre,se á arvore do templo, ao cedro antigo,mais contenta sublime austeridade,religioso é o chão que te sustenta,santa e severa a muda visinhança.D'esse lado, essa relva avelludadafoi chão d'egreja outr'ora, e esconde os mortos;onde a oliveira está, surgia a torre;bradava aos eccos dos remotos cumeso sino da oração, lá onde agoraestá cantando o melro; e pasce a ovelha,balando o seu amor ao filho ausente,onde a moça aldeana ajoelhadaem noite do Natal, ante o presepioacalentava em côro o Deus Menino.Nem portas, nem degraus, nem muros restam!¡Um saxeo altar! ¡por tecto uma parreira!¡e um San-Jorge musgoso entre silvados!D'aqui, filho do antigo, o novo templote alveja em face. Em fundo de sepulcrospor ossos vãos enredarás raizes.¡Que vezes para o ceo voarão juntoso perfume do incenso e o teu perfume,o teu sussurro e os canticos da Biblia!Escutarás por baixo do teu cumeos mysterios, a supplica chorosa,as lições da moral, do Eterno as glorias,o voto humilde, a gratidão serena,o tom pesado dos funereos Psalmos,a infancia d'entre as aguas renascida,os protestos do amor que acceita e córa;e o mais que o mal previne e o mal espia,gera, vigora o bem e o bem premeia,suavisa as dores, o prazer modera,adoça a vida, aperfeiçoa os homens,e por c'roa da paz a paz promette.Assim, quasi debaixo de teus ramos,juntarás o que a mil faria illustres:a raça que milita, e a que triumpha;os cultos da saudade, e os cultos vivos.Cresce pois outra vez, cem vezes cresce.Alto, em frente do humilde presbyterio,torna-te a sentinella das montanhas.Se o peregrino, attonito, espantado,errar nos cumes alongando os olhos;se vires muito ao longe os passos frouxos,o curvo dorso, o pallido semblante,e as cans sem honra do ancião mendigo;indica-lhes a senda hospitaleira,mostra-lhes em teu lar os seus penates;e dize ao peregrino: -- Eis a poisada; --e ao mendigo: -- Bom velho, andas perdido;reconhece o teu fumo, a tua porta,teu leito, os teus irmãos, teu pae, teus filhos. --¡Oh! ¡que viver, que almo viver te aguarda!beneficencia, paz, respeito, gozos,¡quantos bens! ¡e esses bens quão longas eras!Mas nós... ¡ah! nossos dias fugitivosseculos são se á rosa se comparam,mas passam como a rosa a par dos cedros.Para ti, de anno em anno a primaveravirá com pompa nova e novas galas;para nós, menos flores de anno em annolhe virão no regaço; menos fogonos olhos, no sorrir menos ternura.Eu, que outr'ora a cantei, que ardi por ella,para quem toda a alegre Naturezaera animada, meiga, inspiradora;que doce delirava entre as violetas,entendia o favonio e a voz das fontes,entrava co'a andorinha em seus prazeres,co'o rouxinol em seus segredos ternos;que do meu estro nas visões formosasarvoredos, oiteiros, grutas, rios,povoava das priscas divindades,e n'um mundo só meu, vivia todo...hoje, ¡quão frouxa pela mente nuasinto raiar a inspiração que imploro!Do genio a seiva, a primavera da alma,langue; raro floresce, a longe, a longe.¡Como! ¡tão novo ainda, é já forçosoque a grinalda poetica se esfolhe!¡Lyra que apenas entoou preludios,já desafina, e jazerá sem honra!Serão estes os canticos do cysne?Ó meus delirios, nuncios meus de gloriamentieis vós? ir-se-hiam para semprelagrimas, illusões, ternura, cantos?!¡Ah! ¡sentir-se morrer, que acerba morte!E tu tambem, tu morrerás um dia.As raizes cançadas de nutrir-tenão pedirão mais succo á larga terra.¡Adeus, ninhos d'outr'ora! adeus frescura,sombras, sussurro ameno e cheiro alegre!A copa verde que hospedava as nuvens,ludibrio d'auras, arida esvoaça.Mas ao menos feliz impresciencia,don melhor que mil dons, te coube em sorte.Dominas vastamente o ar e a terra,sobes vaidoso aos ceos, á Estyge afundas,e baqueias sonhando eternidades.¡Ó arvore, alevanta-te! ¡desataem nossos dias tua umbrosa pompa!Emquanto a raça ephemera dos homensvai e vem, faz, desfaz, se eleva, desce,tu, fixa, tu do sabio exemplo inutil,medra pelo descanço; igual hospéda,sorrindo sempre, as estações oppostas;presta-te aos soes e ás luas, que sem contovolverão sobre ti; sê caro asyloao favonio que em braços te adormeça,e ás aves que em teu seio se aninharem,e soffre ou goza o teu destino immenso.¡Ai, nunca de teus ares dominandopela terra de Luso oiças ou vejasda civil guerra as armas fratricidas!Inda agora nos eccos d'estes montesos seus trovões sacrilegos retroam.Inda em nossos ouvidos estremecemquadrupedante estrepito, relinchos,retinir d'armas, rufos de tambores,rolar de carros, vozear de chefes,e os gritos do clarim, pregões da morte,¡Que esposas inda agora estão carpindo!¡que mães, filhas, e irmans, inda hoje em lucto!Do sangue a côr maldita inda denigreesses campos de horror; e as sepulturasdos sem numero extinctos nos combates,não florirão inda esta primavera.Do raio o fumo a Lusitania assombra.Ó Paz, filha do Ceo, mãe da abundancia,da innocencia e do amor irman e amiga,alma Paz, volve a nós, que assaz é tempo.De opulentos avós mesquinhos netos,já não pedimos bens: aos descendentesdo povo infesto a Roma e Rei do mundo,basta um pouco de pão em paz comido.Sobre os antigos loiros desfolhadoscaiba-lhe ao menos respirar dormindo,¡Que ideia tão inhospita e gelada!...¡Aguas! ¡aguas! ¡reguemos o bom cedro!¡lá se vai por o sol! ¡cá nasce a lua!Ó lua, vem propicia á joven planta;e tu, doirado sol, propicio volta.Quem bate?... ¡parabens! dançae, folguemos?¡eis o pobre! ¡eil-o! ¡é Deus que a nós o envia!¡sim! da parte de Deus vem sempre o pobre.Entrou á rega; ¡é fausto o agoiro! ¡é fausto!enchei-lhe a taça, beberemos todos.Conduziram-n-o ao lar; da farta ceialeval-o-hão consolado á foufa cama.Agora, que estou só, que apenas oiçoo mui longe cantar das fiandeirasna aldeia d'alem-rio, ¡oh! vem... ¡sentemo-nosao-pé do que algum dia ha-de abrigar-nos,candida imagem de Maria ausente!segredarás aquella de que és sombra,que para ella está guardada a gloriade casar algum dia uma roseiraao já seguro tronco. ¡Ai, doce emblemada quêda e flórea vida, enlevo de ambos!
XLIX
Versos a este modo, e até somenos, brotaram por ali muitos nas temporadas luminosas, ou menos escuras; e em quasi todos elles brilhava, ou se entrevia, a estrellinha polar, para onde apontava o meu coração magnetisado.
¡Podera não! Todo o solitario tem lá sua visão de que se não desapega por mais que faça.
O poeta das tristezas não sonhava senão Roma no Ponto Euxino.
S. Jeronymo, na sua cova, batia com a pedra nos peitos, a ver se matava lá dentro seductores phantasmas de mulheres.
Eremitas na Thebaida, invocando Anjos do Ceo, eram tentados de demonios terrestres formosissimos.
Petrarca, em Valchiusa, tinha Laura morta engrinaldada sobre um altar a escutál-o.
Camões na gruta de Macau não estava sem Natercia.
Maria, nos fraguedos do Caramulo, não podia deixar de raiar-me a cada passo, como a lua, que, entre fagueira e melancolica, se encobre e descobre de continuo ao que transita por moitas e bosques; e, ou elle vá, ou pare, ou retroceda, o acompanha sempre, e lhe dá a sentir, com enternecido agradecimento, que não vai só.
O mais e o melhor da minha poesia inculta dirigida a ella, não era porém o que se escrevia; era sim o que se me ia
"de noite em leves sonhos que mentiam,""de dia em pensamentos que voavam;"
lyrica interior, que todos, cuido eu, conhecerão, ou conheceriam alguma vez; bafagens que veem direitas do paraizo á alma, e da alma se tornam para d'onde vieram, sem deixarem cá em baixo vestigio, mais que um frémito voluptuoso no coração, que de fóra se não percebe. Vêem-se manar lagrimas sem dôr, errar pelos labios uns sorrisos não alegres, mudar cores o semblante, despegar-se dos seios um suspiro, as mãos estenderem-se á procura do que quer que seja; vê-se tudo isto, e diz-se: -- É um visionario, ou está sonhando; -- e não é senão um poeta, que está lendo em si o mais celestial poema que nunca houve, mas que nem elle tornará a abrir, nem outrem jámais adivinhará.
D'esses poemas fiz eu, e perdi, innumeraveis.
Fazia-os ao pendurar ritualmente no crepusculo da tarde de cada sabbado uma capella de murtas nos ramos do meu cedro, consagrado a ella, e que me parecia tão desejoso de festejál-a como eu proprio; fazia-os deitado nos povaes de tijolo de S. Sebastião, ao ramalhar das carvalheiras, pelas séstas; fazia-os regando o jardimsinho de narcisos, gradeado de canas, por baixo da fonte do passal; fazia-os encostado sosinho a deshoras pela noite velha á janella do meu quarto, que deitava para a banda do horizonte, onde devia ficar o d'ella; fazia-os ouvindo ler versos apaixonados, que todos no espirito se me traduziam, e se combinavam na minha historia, muito mais apaixonada que elles todos; fazia-os escutando lá de um oiteiro o sino das Ave-Marias, ao cessarem os trabalhos da terra, na hora em que o ceo accende, como lampada para infinitos amores, a estrella magnifica de Venus; mas sobre tudo os fazia fechado por dentro na minha Villa Viçosa de palha, junto á "Pedra Branca", ao abrigo das chuvas e frios, do sol e dos ventos, de rumores e distracções, livre de olhos, de ouvidos e de pensamentos extranhos, só por só com a minha ausente. Para ella renovava as flores e a agua na urna de barro sobre a mesa entre os sophás de cortiça. Ouvia-a cantar ao som da sua viola franceza; dizia-lhe extremos de brandura, que nenhuma linguagem humana traduzira; perdia-me pelos mysteriosos labyrinthos da sua sensibilidade, nunca dantes franqueados; escutava o meu nome tornado musica pelos seus labios; recostava-a n'um coxim de rosmaninho; ajoelhava-lhe aos pés em adoração; voava-lhe aos braços, e anciava morrer ali assim, porém com ella, que eu sou o irmão mais novo de Propercio:
"Tunc ego, sed tecum, mortuus esse velim."
Nada me inspirava tanto como a boa da casinha, tão depressa e tão sem custo edificada, que parecera improviso de Sylphides e Sylphos, e na qual se dissera terem elles ficado; ¡que assim era prestigiosa!
Fôra sempre a minha ambição mais levantada, e algumas vezes me chegou a ser esperança tambem, o possuir vivenda minha em torrão meu, por mim delineada, feita aos meus gostos, sem visinhos mas respirando hospitalidade; solitaria, mas ridente; sem fausto, mas abundante em commodidades, em graças profusissima. Aquillo de poder um homem dizer que tem a sua cama, a sua meza, a sua lareira, e os seus livros, entre paredes e debaixo de telhas muito suas; que vive e pernoita com raizes no solo; que emfim é dono, para fruir e testar, de uma porção do terceiro planeta vindo do sol, ainda que não sejam senão poucas braças; e que o Imperador de França não é mais senhor, nem porventura tanto, das suas Tulherias... deve ser umas delicias muito grandes. Nunca as experimentei, nem experimentarei já agora; mas imagino-as; e pode-se dizer que as sonhei, sem dormir, no meu aureo salãosinho de feno.
¡Como eu ampliava tudo aquillo com a varinha de condão da phantasia! a um lado, a alcova nupcial, com suas janellas cortinadas de verde pela frondosidade do pomar contiguo; a outra parte, a saleta do fogão para o inverno, dominado aos bustos de Sapho e Anacreonte, a olharem para as estatuas de Homero e de Virgilio; aqui, a livraria com a mesa para a escripta, e dois espaldares de braços; a casa de jantar com sua fonte e viveiro de aves, e a porta larga e envidraçada aberta para a horta ajardinada; e a voz de Maria, a presença de Maria, a musica do seu vestido, o calor da sua bondade alegre e vigilante, por toda a parte.
Basta, basta já de pisar folhas d'outomno que murmuravam viçosas e rescendentes por cima e em derredor, e agora me estalam pallidas e seccas por baixo de cada passo.
L
Ahi fica entregue ao publico da minha terra, pelo ter em conta de amigo, a Chave do meu Enigma, assim como se põe nas mãos do melhor e mais proximo parente a do caixão doirado e funebre que desappareceu.
Como de hoje ávante nunca mais havemos de tornar a este assumpto, acrescentarei ainda algumas palavras, e as derradeiras, destinadas a acclarar outro supposto mysterio com que as trevas d'este se duplicavam.
O immortal autor da "Epopeia naval portuguesa", o meu bom e velho amigo Joaquim Pedro Celestino Soares, fazendo-me a honra de me dedicar este seu recente monumento de glorias portuguezas, mostra-se maravilhado de que eu pinte, sem os ver, tantos quadros da Natureza. Muitas pessoas antes d'elle tinham manifestado egual admiração, para mim obsequiosa, e mais que obsequiosa -- lisonjeira.
Suppondo que as minhas descripções de objectos visiveis, desde as "Cartas d'Ecco", "Primavera", "Amor e Melancolia", até ás presentes paginas, conteem algum longe d'esse merito que tão benevolamente se lhes attribue, aqui está a explicação que eu posso dar d'esse phenomeno simplicissimo.
Teve a nossa criança, emquanto o foi, e segundo já vos disse, uns olhos de formoso brilho, vividos, buliçosos perscrutadores insaciaveis, e de um alcance desmedido. Mais de uma vez ouviu dizer a sua mãe, que pareciam duas janellas armadas de festa, onde a alma vinha contente lá de dentro espairecer mirando-se no Universo.
Por volta dos seis annos, a segunda enfermidade, de que já vos falei, enfermidade peior que a imaginaria tysica, fechou inopinadamente aquellas janellas, deixando passar apenas, atravez, uns reflexos duvidosos de claridade, frios, desvestidos de côres, desertos, importunos; clarões, que, em vez de trazerem alimento a percepções e alegrias, só occasionavam pelo contrario dores physicas no orgão, por então só vivo para padecer. Este mesmo inutil e violento crepusculo, foi portanto necessario repulsal-o; um veo de seda negro foi lançado sobre a innocente cabeça; fecharam-se-lhe profundissimas as trevas; a victima, o meio-morto, descançou; ouvia chorar, não sabia por quê.
Se um cadaver no sepulcro podesse pensar, sobre que pensaria? Sem duvida sobre o anterior viver que se lhe acabára; revolveria, combinaria de mil maneiras as ideias do preterito, como um avaro, debruçado sobre o thesoiro, mergulha os braços até aos cotovelos, e o coração até ás auriculas, no seu charco inutil de oiro e prata. A pobre criança ruminava ás escuras as visões em que se pascêra na claridade; ia-as convertendo de vagar em substancia propria. Como por fóra fazia noite, illuminava-se por dentro com quantas luzes se lhe tinham prevenido a tempo, e que ella instinctivamente espertava de continuo. O seu espirito era como a lamina photographica, ainda não inventada: recebêra as imagens; fechara-se-lhe depois a camara obscura; agora estava-as fixando em si próprio por uma chymica natural; fôra espelho, era estampa.
Passaram annos; levantou-se o veo negro; Deus apiedado tinha outra vez dito: «Faça-se a luz.» Reappareceu o dia.
Reappareceu? não; veio novo, diverso, de natureza extranha; uma especie de dia crepuscular; entre ledo e saudoso; mixto de realidades, verosimilhanças, conjecturas, sonhos; comparavel por ventura, sem grande impropriedade, ao que são algumas das phantasticas noites de lua cheia no estio, ou ao alvor espalhado no Elysio pelos poetas.
Pensando bem n'isto, não posso deixar de render graças á Providencia, e de descobrir n'esta sua liberalidade, e mesmo nos precedentes rigores, novas inducções para acreditar, entre mim, que toda a minha predestinação era, como desde o principio me aventurei a dizer-vol-o, que não fosse eu jamais outra coisa senão cantor, e não fosse cantor senão de ternuras.
Vós, que ledes pelos vossos proprios olhos isto que vos eu escrevo por mão alheia, vós, que disfrutaes, sem a aproveitardes assaz, a dita de possuirdes uma excellente vista, sentireis por ventura alguma difficuldade em conceber aqui o fundo do meu pensamento. Ora vejamos se vol-o decifro.
LI
Com ser a luz uma communhão universal do Amor Divino, meza infinita em que os soes aos milhares ministram aos planetas sem conto; e aos entes sem limite de que os povoou o Omnipotente, é comtudo certo, que, assim como vão desiguaes os quinhões de luz de cada sol aos planetas e satellites que a distancias entre si diversas o rodeiam, assim tambem na esphera que habitâmos, por exemplo, a luz vem medida aos sitios, ás estações e ás horas, ás especies, aos individuos, ás edades e ás circumstancias, em proporções diversissimas, todas calculadas, todas certas, e todas em harmonia com as complicadas precisões de um systema geral e perfeitissimo.
Comparae a claridade das cinco zonas; em cada zona, a das quatro estações; e em cada estação, a das montanhas, dos valles, dos bosques, e das cavernas; a da manhan, do meio dia, da tarde e da noite. Depois em cada logar e á mesma hora, considerae no como a luz, banhando e tingindo unicamente a superficie dos corpos inorganicos, incapazes de a sentir, vai abraçar com as suas caricias os entes organisados, que n'ella, e no calor seu companheiro, parecem aspirar a vida, o amor, a alegria; a adoração, como sectarios de Zoroastro. Os vegetaes, sem olhos, a bebem, se inebriam, riem-lhe em flores, com murmurios lhe falam, com fragrancias a lisonjeiam; brincam-lhe com os raios, decompondo-os na folhagem buliçosa, resurtindo-os; alvoroçam-se com a aurora, pendem-se e fecham-se ao escurecer; despem galas no inverno; na primavera retoucam-se e amam; no estio pompeiam e triumpham. Mas n'esta mesma generalidade ¡que differenças e quasi excepções! Para todos a luz é condição do ser e felicidade; mas o musgo que prospera na penumbra da Islandia, pereceria fulminado como Sémele, se o ardente sol dos tropicos o visitasse; as plantas magnificas dos tropicos, nas nossas latitudes, só temperadas, morreriam cegas á mingua de esplendores. Uma herva ala-se do fundo do fojo para o celeste amante, a quem o girasol no seu jardim vai tambem seguindo com a larga fronte doirada, que parece um retrato ephemero do bello astro, explica a fabula de Clície, e dá razão aos dois versos do Camões:
"Transforma-se o amador na coisa amada""por virtude do muito imaginar."
Entretanto as grutas e os subterraneos lá teem não menos seus jardins umbrátiles, onde mil especies vegetaes, com uma só gotta de luz diluida nas trevas, alimentam e aditam a existencia.
Os animaes, se exceptuarmos algumas raras especies mais baixas na gerarchia, que parecem não ver, dado se voltem para a luz como as plantas, os animaes absorvem-n-a com delicias.
Os seus olhos são os vasos de gemmas finissimas por onde os seus espiritos a bebem; mas n'estes vasos sem conto, ¡que differenças nos tamanhos, nos feitios, nas cores, nas propriedades! Todos se enchem á immensa cascata de luz que jorra inexhaurivel: quaes em golfadas copiosas, quaes em estillas diminutas; estes, sombria, que fôra trevas para aquelles; aquelles, tão luxuosa, que cegaria a estes. A aguia devassa do alto os pormenores da campina; o insecto perscruta, com inveja dos sabios, o ignorado mundo dos infinitamente pequenos; e eximindo-se por sua tenuidade á perspicacia humana, é ainda por ventura condor, elephante, e lince para universos vivos, nem por nós sonhados, e de mil vezes mais espantosa exiguidade. Ha olhos-telescopios, ha olhos-microscopios, olhos que aproximam, olhos que afastam, olhos que alternativamente afastam e aproximam, olhos que se fitam rectos n'um só ponto, olhos que miram para todas as partes ao mesmo tempo, olhos para o dia, olhos para a noite, olhos unicos, olhos multiplices, olhos, em summa, que só a Sabedoria de Quem os ideou e perfez poderia discriminar e abranger em descripção ou cómputo.
No meio d'estas myriades de orgãos destinados a pascer-se nas lindezas e magnificencias exteriores da Natureza, foi ao homem, seu filho predilecto, que ella deu com a razão e o engenho os mais admiraveis de todos os olhos. Emquanto os dos outros viventes, afinados pelas precisões circumscriptas dos que os possuem, não transpõem limites relativos e determinados, os do homem, pelos milagres da Arte, tornam-se mais que de aguia no alcance longinquo; rivalisam com os dos insectos, mergulhando profundamente pelos abysmos da pequenez; vão buscar para o dominio da Sciencia astros sumidos nas profundezas do espaço, arcanos de anatomia nos vermes imperceptiveis, nos globulos do polen das florinhas mais tenues, nos atomos da poeira impalpavel; e dominadores da luz, pelos instrumentos com que se completam, a refrangem á vontade, e a decompõem, como a divina Iris no firmamento.
¡Entretanto a vista humana, assim mesmo dotada, quão pobre não é para saciar o animo curioso! ¡e então no seu estado natural, que myopia! ¡que imperfeição! ¡que fallibilidade! Aquelles mesmos objectos, que pelo seu volume e proximidade mais parecem estar em relação activa, passiva, necessaria, quotidiana, com o espectador, não passam de uns mascarados e uns fingidos, que, divertindo-o e ajudando-o, zombam d'elle continuamente.
Que é ver uma rosa, uma arvore, um edificio, um monte, o Oceano, mesmo com os olhos mais perspicazes e attentos? É receber de cada coisa d'estas uma ideia vaga, superficial, imperfeita, diminutissima, falsa. Quando não, acuda a lente a averiguar uma só petala da rosa, uma só folha da arvore, uma só pollegada do edificio, um só grão da terra do monte, uma só gotta do Oceano (mas ainda a lente não diz tudo); para logo se reconhecer com espanto que isso que se chamára ver, não passava de illusão; era um andar palpando em grosso e ás cegas alguns vultos grandes; nada mais. Se o mundo moral e intellectual nos estão inçados de mysterios, erros, e ignorancias, os aspectos do mundo physico não são menos enganosos; representa-se a comedia da vida n'um theatro já para ella de proposito armado pela Natureza, com o mais ficticio de todos os scenarios: "Mundum tradidit Deus disputationi hominum."
N'este cahos universal de enigmas e chimeras, o instincto de saber impacienta-se, agita-se, barafusta, sonda, investiga, conjectura; adivinha ás vezes; aspira a matar a grande esphinge, que se ri d'elle, e que não morre.
O instincto da Arte, menos ambicioso, mais pacato e mais philosophico a seu modo que o ardor scientifico, contenta-se com as brilhantes apparencias; estuda-as, sem pensar em as dissecar; e, como de todas lhe resultam harmonias, todas falam ao espirito e ao coração, sobre todas paira o ideal, de todas se reflecte o amor e a sabedoria, não precisa, nem pede mais, posto o deseje, e o aproveite quando a Sciencia o desencanta e lh'o ministra.
Reflectindo nas verdades incontestaveis e vulgares que deixâmos indicadas, tem-se logo de reconhecer que os poetas, na sua qualidade de pintores, só reproduzem apparencias, perseguem sombras; e, combinando-as e variando-as ao sabor da phantasia e do gosto, aquecendo-as de affecto, e arraiando-as de idealidade, criam para a alma, dentro n'um mundo phantastico, outro mundo ainda mais phantastico. Não é assim?
Ora pois: a criança tão nossa conhecida recebêra, nos annos das primeiras e fortissimas impressões, as ideias, como vós em egual edade as recebestes, e as continuais a receber, dos objectos que aos olhos se offerecem em multidão; depois, fechada a sós com essas ideias, não as destruiu: fortaleceu-as, confirmou-as; depois finalmente, quando entre ella e o espectaculo se ergueu de novo o panno, e a scena lhe appareceu transfigurada, isto é, quando reviu menos vividos e distinctos os mesmos objectos, tirou das suas reminiscencias com que os completar.
LII
-- Mas como é -- insistem -- que, distinguindo apenas, e a curta distancia, os vultos grandes e as côres, consegue descrever, não sem alguma verdade, quadros da Natureza vastos e minuciosos, cujos originaes sem duvida lhe escapam? -- Do mesmo modo, pouco mais ou menos, como qualquer leitor por uma descripção poetica debuxa no seu espirito um objecto, cujo total nunca viu, mas cujas partes componentes a uma e uma lhe são todas familiares. Variando os elementos que possuo, vou compondo os quadros a meu gosto.
Mas o que sobre isto vos poderia amiudar, já versos meus o disseram, agradecendo a um pintor amigo, a Sendim, o ter-me retratado. Se os lestes, saltae as seguintes paginas; se os não lestes, e vos interessa tal investigação, aqui os tendes. A mim apraz-me reproduzil-os; são já hoje saudades de vinte e tantos annos.
Já desde Homero, em tráficos do Pindo,amigo meu Sendim, não roda o oiro.Versos, bustos, paineis, primor das graças,pague-os sêcco Bretão por sommas brutas,se muito ha que do autor deu cabo a fome.Lisonja em metro, em marmores, em côres,encommende-a o mimoso da fortuna;pague com seus dobrões a gloria alheia.Nós que, longe da terra, ao vulgo extranhos,vivemos facil vida anachoretapor solidões de imaginario mundo;que os loiros para nós por nós plantadosouvimos sussurrar por sobre o colmoda ermidinha onde as musas nos visitam;nós, nós, a quem deu alma a Natureza,não terrea, não mortal, não simples alma,de instinctos animaes fugaz composto,mas generosa, esplendida, sublime,mixto da etherea luz, do olor das rosas,do gorgeio do cysne, e do profundobramir do Oceano, e do beijar das rolas,e do albor melancolico da lua,e da calma do estio, e das sonorasbafagens tuas, Héspero, e do lumetrémulo e scismador dos longes astros,não pomos preço vil ao que é sem preço.Como lá n'outra edade, entre homens simplices,colono, pescador, monteiro, artifice,de mão a mão seus commodos trocavam,tal dura e durará commercio nosso.Irmans, e não rivaes, as artes-bellasapertem mais e mais seus mutuos laços;sua origem commum, seus fins os mesmos,impõem-lhes lei de amar-se, unir esforços,umas ás outras realçar o encanto.Mais, muito mais que irmans, são todas uma;em nome, em fórma varia, é uma a essencia:a belleza, a verdade, anceiam todas.Pinta o Meónio, poetisa Apelles,Phydias derrama em marmore a harmonia,Orpheu nos magos sons esculpe os deuses.Não ha mais que um só Deus, uma verdade,uma belleza só; mostral-a em côres,em figuras, em sons, em phrases podes;são cultos de um só nume em linguas várias.A amendoeira em flôr é primavera,primavera é como ella o ceo macio,primavera a violeta, os ninhos novos.Unica e pura a eterna luz do engenhodos sentidos no prisma se refrange,e sai cambiada em fulgidos matizes.Como as côres são luz, são estro as artes.De nossa industria os fructos permutemos.O mago teu pincel doou-me aos evos;se os versos meus aos evos resistirem,nos versos meus reflorirá teu nome.¡Ah! ¡não poder eu mais! qual tu meu todoá estampadora pedra o confiaste,capaz de confundir maternos olhos,¡não poder eu tambem pintar no metrogenio, vida, expressão, physionomiade quadros, onde a mente aos olhos fala!Desegual foi comnosco a Natureza:amante seu feliz tu gozas d'ella,abráçal-a com extasi, sorri-te,descobre-te um a um seus mil encantos;e, como se um tal bem não fosse immenso,diz-te: -- «Eis-me aqui, retrata-me, ó ditoso;d'onde os gostos extrais, extrae a gloria.» --¡Não assim eu! eu busco-a... ella se occulta;chamo-a, invoco... ou não vem, ou só de longefugaz e esquiva se entremostra, e passa;como visão por sonhos vaporosos;como scena confusa e namoradade já perdido livro; como ideiada mui longinqua infancia, que inda a medopor sob as cans revôa ao pé das urnas;ou como o astro da noite em selva umbrosa;ou como as vozes de um serão do estio,quando da aldeia as virações as levamsoltas e vagas ao curioso ouvidode erradio viandante; ou como o vultode ingrata amada em vão, que evita encontros,leve atravez das arvores refoge,sem deixar mais de si que a viva imagemde alva roupa esvoaçada e gostos idos!Realiso as que a Grecia fabuláraimpaciencias do Alpheu, quando entre as nevoas,doido de amor, frenetico, debaldea vedada Arethusa andou buscando:«Nympha, vi-te -- clamava -- ¡ai! ¡quero ver-te!»e o "ai", com que as florestas apiedava,não apiedava o coração da isenta.Á beira de suas aguas fugitivasdepois cançado e triste ia encostar-se,a procurar pelo animo saudosoque feições enxergou, quaes poderiamser as mais que não viu; compunha-a toda,linda sim, mas phantastica; e por ellacom longo affecto os eccos entretinha.Por isso ninguem peça inteiro cantona harpa quebrada. A voz de outros poetasque o solte; não me assombra: a solfa inteiraperante os olhos seus se desenrola.Minha harpa incerta, em solidões, por noite,não apontados sons pendente exhala,a capricho de um zephyro que adeja.De Achilles, dos Jardins, do Eden os vates,e dos Bardos o Bardo, Ossian, o altivo,(pelo seu estro o juro; ¡immensa jura!)taes não subiram, se ás geladas trevasdesde a infancia atro genio os condemnára.Manhan da alma existencia. ¡Oh! ¡como alegreme alvoreceste! ¡oh! plena luz, enlevode que o minimo insecto ignaro goza,riqueza de que é rico o mundo todo,luz, com pródiga mão dos céos lançada,vida, belleza, luz! palavra etherea,a unica de um Deus no grão momento,em que ao formado mundo erguia o panno...¡luz! ¡luz! ¡eu te gozei na infancia minha!gozei?... quem te possue goza-te acaso?não; pródigo, indiff'rente, como todos,vi-te, desperdicei te ¡Ah! ¡quem me derad'essas horas doiradas um minuto,uma só gotta d'essas fontes amplaspor este areal tão sêcco! ¡Oh! ¡com que seden'um só momento me vingára de annos!¡que joias no poetico thesoiroavido para um seculo ajuntára!¡Como ás imagens pallidas, que á forçate arranco, ó Natureza, como arrancao oiro entre fezes duro escravo á mina,como a tantas imagens desbotadas,rico legado do menino ao homem,revivêra o matiz, o fogo, o lustre!Então, para pintar florestas, mares,não precisára de espreitar confusoum ramo a folha e folha, ou já no copo,agil movido, o rutilar da lympha.Se ouvisse descrever a majestadede um rosto varonil, de uma formosao encanto, de um menino as graças lindas,tudo isso o variára a mente facil.O aspecto do varão nem sempre fôraa paterna presença. Além de Amalia,de meus brincos pueris ligeira socia,mais formosas houvera, e mais formososanjos mortaes que o meu gentil do espelho,de olhos tão vivos, tão córado aspecto,riso tão doce, e que eu amava tanto!¡Saudades vans; desejos vãos e acerbos!Se o mar, se o céo, se os campos se me esquivam,róla a mente em seu mundo infindos mares,campos lhe alastra de opulencia extranha,circumvolve-o de céos fervendo em astros.Tal de Agenor o filho a patria perde;mas se lei deshumana o lança em fuga,oraculo phebêu condul-o a thronos;por Tyro que perdeu lá funda Thebas,a de cem portas nos canoros muros.Mas a patria... era a patria; aquella Tyro...era a Tyro da infancia; o solio, Thebas,o Elysio, o Olympo mesmo, a não valeram.¡Feliz o para quem da vida as portasjá se abriram sem luz! Só tem metadedo humano apego ao mundo e horror á morte:não viu, chupando o leite, o seio amigo,o sorrir brando, os olhos, e nos olhoso coração materno; as irmans suasnão foram mais que uns sons; a rosa, um cheiro;movimento, o passeio; o sol, quentura;um monte, a estiva noite; as Graças... nada.¡Longe outra vez, e para sempre longe,saudades vans, desejos vãos e acerbos!Que me importam canções? que outrem descrevacom mais proprio matiz do mundo os quadros?que tenha ou não mais azas para um voo?que importa que um volume de poesiaseja um thesoiro para mim sem chave?e que dos seios do animo rebentemmeus versos caudalosos, sem que eu possaco'a propria dextra abrir-lhes a passagem,por onde ávidas paginas inundem?Não me rege inda a luz os cautos passos?não me tinge inda ao perto as varias fórmas?livros... pluma... olhos meus e dextra minhaquando jámais n'outro "eu" me falleceram,n'outro "eu" onde os amei e os amo em dobro?¡Graças a amor, á Natureza graças!logrei constante, e lograrei perpétuonos laços fraternaes consorcio d'almas,nos de hymeneu fraternidade nova;meu ente n'estes entes se completa,já bardo sou tambem... sahi, meus versos;pura mão, don dos céos que eu pago em beijossollícita vos abre ao mundo estrada;sahi, voae! da gratidão ferventeaos olhos de Sendim levae meus votos!
LIII
Completemos estas explicações melancolicas.
Aquelles em quem o amor entrou só, ou principalmente, pelos olhos, acham custo em comprehender, como desservido da vista se possa na alma accender este fogo maravilhoso. A sua mesma ventura é que os torna assim pouco philosophos.
Examinemos.
Reuniu Deus para compôr a mulher -- remate, corôa, e epilogo da Creação -- a quinta essencia de tudo quanto derramára de melhor no paraizo, onde a collocou, e do qual, ainda depois de perdido, as descendentes de Eva ficariam avivando recordações. Quiz Elle, o Summo Factor, fundir-lhe o espirito brilhante e suave de um raio de oiro do sol, e de um raio prateado da lua. Deu-lhe a pureza da cecem, a alvura do lyrio, o pudor e a graça da rosa, a modestia da violeta; accendeu-lhe no olhar brilho de estrellas; descerrou-lhe auroras de carmim e perolas no sorrir; para fala, concentrou todas as melodias, balbuciadas no frémito das virações, no murmurinho das fontes, e nos canticos das aves; modelou-lhe a estatura pela dos arbustos mais esbeltos e mimosos; arredondou-lhe as fórmas, que lembrassem os frutos mais gentis e apetecidos; diffundiu-lhe os cabellos como as ramas pendentes e movediças do salgueiro aquatico; impregnou-lh'os de electricidade; embebeu-os de um aroma que fala; revestiu-os de brilhantismo; tão esmerado e prodigo os dotou, que o oiro e as perolas, as pedrarias, os perfumes, as sedas e as flores, ambicionando realçal-os, recebessem d'elles novo preço.
Este ente, meio positivo, meio aereo, meio terrestre, meio ceo, que volteia por entre nós como anjo desterrado, saudoso, mas contente, tendo por fala um canto, a sujeição e a humildade por imperio; em que a fraqueza é graça, e a graça omnipotencia; cujo encargo é mais que eternisar a especie, -- é entretecel-a, domesticál-a, refinar-lhe o gosto, os instinctos do bello, os arrojos para o bom e para o sublime; a mulher em summa, fadada de alguma sorte a ser mãe e mestra, guia, arrimo, lampada, conselheira, prophetisa, esforçadora, modelo e premio, não só de seus filhos, mas de seus irmãos tambem, de seu consorte, de seu proprio pae, de todos que de perto ou de longe lhe podessem receber directas ou reflexas as influições; a mulher, a mulher -- da qual, depois de tantos mil volumes de panegyrico, depois de uma idolatria universal de seis mil annos, ainda se não exhauriram louvores, nem jámais se hão de exhaurir -- não seria a vice-providencia, que devia ser, e que é, no meio da sociedade, se não possuisse este complexo ineffavel de seducções para toda a especie de indoles, de espiritos, de gostos; um laço infallivel para cada sentido; um milagre para cada incredulidade; para cada infortunio, seu balsamo; para cada edade, seu ramalhete; sua estrella para cada noite; mão inesperada e macia para cada desamparo; para cada fronte que se despedaçaria ao cahir, a almofada subita de um braço todo extremos, de um seio todo suspiros, de um coração todo divindade.
Parece que está aqui o animo a nadar á sombra de uma sagrada Paphos n'um pego verde e azul, aureo e argentino, embalado pelos mais ridentes genios das ficções; e não está senão folheando, ebrio de gratidão, o Génesis ineffavel da creatura em quem mais evidentes se revelam as perfeições do Creador. O que pareceria um hymno, é, para quem o souber meditar, uma succinta e desenfeitada pagina de historia natural.
Ao homem grosseiro, pervertido, gasto, embrutecido, represente-se muito embora que a mulher, brotada para seus prazeres ephemeros, como as flores, não pode penetrar dentro em nós senão pelos olhos; feche-os, e escute: lá está ainda ella com a sua magia. Furte-lhe tambem os ouvidos, como Ulysses ás sereias; não a destruiu; o calor, os abraços, e os beijos, lhe revelarão completos os seus encantos. Não ouse ou não possa tocál-a; um halito, uma fragrancia subtil, que não é de flores, mas de vida, -- que é mais que de vida, pois é do amor, -- lhe dirá: aqui está o fruto para a tua avidez e para a tua sêde.
É porque a mulher, communhão perfeita do affecto, é toda para todos, e toda para cada um. Triumpha na luz, como n'uma auréola; enleva nos sons, como n'um cantico; insinua-se por cada sentido; infiltra-se por cada póro; não ha porta na alma que se lhe não franqueie. É a chamma electrica, para a qual não ha resistencia nem muralhas. Fugi-lhe; esquivae-vos; sumi-vos nas entranhas da terra; lá mesmo sereis d'ella; vel-a-heis sorrir-vos, aquecer o vosso jazigo, bafejar cubiças ao vosso coração, fazer do vosso nada um universo, reerguer-vos para o Ceo, de que blasphemaveis.
Pelo que pertence em particular ao homem da nossa historia, eis aqui chãmente o que eu sei, e que não é muito.
Comprehendestes, cuido eu, como a grande Isis, a Natureza, a qual para nenhum de vós se despe de todos os seus veos, quiz ser ainda mais esquiva, mais recatada, mais avára para com elle, para com elle seu fervoroso adorador. Não se lhe furtou de todo; não apagou entre si e elle o sol, como já fizera com o seu Homero; mas annuveou-lh'o como para a solemnidade de um mysterio magico; e, mesclando trevas com luz, benigna e ainda mãe no seu rigor, lhe ensinou a adivinhál-a, a completar-lhe as lacunas das realidades com as phantasias, a estudar a um e um os seus pontos mais frisantes, e de inducção em inducção, de analogia em analogia, de probabilidade em probabilidade, a recompol-a, ou a creal-a, não verdadeira nem falsa, chimera organisada de certezas, hypothetica nos accessorios, incontestavel no essencial; retrato seu, imperfeito, mas reconhecivel, mas formoso, mas sympathico, mas inspirativo, mas sufficiente e sobejo para idolatrias.
Qual a Natureza lhe apparece e lhe poisa para modelo diante da lyra, tal lhe assoma diante do coração esta florida cifra da mãe Universal, o archétypo das perfeições: a mulher.
LIV
Mancebo, que me has-de ler curioso e condoido: conheces tu porventura aquella que te embelleza e te fascina? não te pergunto pelos arcanos do seu interior, que ella propria não decifra; falo só do que só porventura te seduziu; falo da sua fórma externa; falo mesmo d'aquella porção exclusivamente que a arte não some em nuvens de tecidos preciosos, em auroras de mil cores, em espumas de rendas, em cascatas de oiro, de aljofares, de diamantes, cahos esplendido que sonega um mundo de gentilezas a attrahir-te e a repulsar-te; falo unicamente do semblante; do semblante que emerge livre, dominador e risonho, por cima de tamanha cerração de enigmas. Vês tu em realidade esse rosto que te encara com tão seductora franqueza, que para ti se banha nu em ondas de luz sob os lustres e sob o sol? ¡Pobre illudido! ¡Se o vidro augmentativo t'o averiguasse, talvez recuarias de espanto! a tez mimosa e córada, a tez que ambicionavas beijar tão lisa e tão perfeita, reconhecêral-a vasto mappa de cavernas e montanhas, de torrentes mal cobertas, de espessuras, homizio e pastagens de viventes, para quem mais que para ti foram fabricadas aquellas regiões incognitas. Com a apparição d'esse mundo de lindezas microscopicas, evocadas por um crystalzinho convexo, desappareceria a beldade que a Natureza, benignamente enganadora, te inculcava; o que a tua sciencia ganhava, o enthusiasmo do teu amor o perdia sem remedio. Decomposta em mil formosuras, aniquilára-se a formosura, que só á providencial, á calculada imperfeição dos teus orgãos tinha devido a existencia.
¡Bemdita sempre e em tudo a Bondade Infinita do Creador! ¡Que philosopho insensato se afoitaria a tomar-lhe contas para o censurar! Nem eu, nem eu proprio, tenho que murmurar de ser menor que o de outros muitos convivas o quinhão que o Pae da luz me concedeu no seu festim.
Cada qual vê a mulher pelo seu prisma, prismas todos differentes e todos illusorios. O meu, fundido de um crystal mais turvo, decifra-a, individua-a muito menos, é verdade; mas em compensação permitte-me á phantasia o completal-a com todos quantos primores sabe, que são infinitos.
Querereis dizer-me que são ficticios, que não são ella, esses primores? ficticios embora o sejam na origem; mas tornam-se d'ella, são ella mesma perante a alma e o coração que lh'os prestaram; é a mulher sem-senão, a mulher idealisada, a mulher só assim ascendida a grau de divindade, mulher exterior mais parecida por ventura com o espirito gentilissimo que lhe mora dentro, que o bando de máscaras femininas, mais ou menos imperfeitas, que enxameiam por esse mundo á procura sempre de homenagens convictas e duradoiras.
Logo que eu, alchimista combinador e attento, senti uma voz suave, em que outros, distrahidos com o olhar não attentariam, e que me desceu do ouvido ao seio, distillo d'ella ao brando calor do sangue quanto succo ella continha de imaginação ou de Juizo, de melancolia, de prazer, de bondade, de innocencia, de sentimento. O perfume que d'ali se exhala, já annuncia a deusa. Entrevejo-a; branquejou-me o rosto, d'onde sahira tanta melodia e tanta alma. Doto-o, fado-o, opulento-o como podéra fazer o Oberon mais carinhoso, ou a Titania mais amante. O phantasma, já meio filho da minha adopção, passa por diante e perto de mim; reconheço-lhe, ou attribuo-lhe, como Virgilio á divina mãe de Enêas, a estatura, o movimento, o andar, que para ser adorada se lhe não dispensa:
"Et vera incessu patuit dea........."
e não accrescento, porque o não penso:
"...............tu quoque falsis " "Ludis imaginibus..............."
Beldade assim composta não é só perfeita, -- é inaccessivel aos estragos do tempo, é rosa que poderá morrer, mas não murcha, não desmaia, não se desfolha; quando por fatalidade desapparece, desapparece toda de uma vez.
O commum das mulheres produz o commum dos amores: fogos-fatuos fluctuantes, frouxos, passageiros; para a minha, arde o fogo de Vesta.
A par d'esta vantagem, que sem duvida o é para a poesia namorada, um terrivel desconto se apresenta logo:
Os olhos fazem mais que descortinar a formosura: dizem aos d'ella o effeito que ella produziu; supplicam, exoram, convencem, triumpham; possuem uma linguagem innata e universal, instantanea e completa, electrica, divina, intraduzivel em sons humanos. Carecer d'esta ineffavel faculdade, gozando-se embora da luz para disfructar e amar a vida, é vagar surdo-mudo pelo crepusculo n'uma região verde e florida, sem tratar com os moradores.
¡Grande e horrorosa verdade! Mas outra vez acudiu aqui maternal a Providencia. Assim como outorgára á phantasia uma intuição especial, concedeu á linguagem da poesia, encarregada de supprir a do olhar, um accrescimo de viveza, uma força de convicção, de sentimento, de lealdade, que podesse aspirar, a persuadir.
Os olhos commerceiam o amor, como opulentos, em moedas do mais fino oiro, ou em lettras que as sommam e as cifram n'um relance. A fala, embora poetica, mais pobre e mais humilde, vai contando os pagamentos do coração a real e real, em cobres gastos de uso, em pratas suspeitas de liga e falso cunho; moedas de baixo preço, que mil vezes se lhe recusam; mas afinal tambem salda a sua conta.
Não me affoito a dizer, nem quasi a pensar, que a diminuição do primeiro sentido fosse cabalmente compensada com um accrescimo proporcional na faculdade de exprimir pela palavra o sentimento; creio todavia, que alguma coisa com isso parecida se deu em realidade; com o que, já pode ser que o peculio poetico se augmentaria; nova e suprema prova do que assentáramos como fundamento no principio d'este escripto, a saber: -- Que a Natureza e a fortuna andaram concertadas em preparar por todos os meios, com os favores e com as sevicias, um cantor, embora inutil para tudo mais.
LV
Sobre o livro e sua historia, nada me resta para accrescentar; narrei tudo como o tinha na lembrança; forcejei pelo explicar sem vaidade nem modestia.
É um pobre escripto, que as almas de bem hão-de tomar á boa parte.
Presumpções litterarias, não as tem.
Quem, obedecendo a instinctos maus, exercesse n'elle critica malevola, e até por facillima não muito nobre, juro-lhe eu, sobre minha honra e vida, que perpetraria uma feia acção. Deixem aos chacaes o revolverem sepulturas, e cevarem-se em ossos.
Sei que ha indoles hostis, que ao tomarem um livro novo, levam já o fito em dilaceral-o; e a essas por demais seria o requerer-lhes misericordia.
Permittam-me comtudo rogar-lhes que esperem para entrarem na censura d'este, que o autor haja tambem desapparecido como o assumpto da obra. No intervallo, que não poderá já ser muito longo, aggridam, vulnerem, destruam muito embora qualquer outro dos seus escriptos, e todos; não lhes exceptua nem um só, a não ser o livrinho do ensino primario pelo amor, porque esse não é d'elle; é propriedade inauferivel da puericia, da Patria e da posteridade.
LVI
A collecção de mais de setecentas cartas, de que sahiu como summario a "Chave do Enigma", existia completa ha poucos momentos ainda; daria tres volumes que poderiam interessar, se não como historia, como romance intimo certamente; ardeu até ao minimo fragmento, ali, debaixo das arvores do meu jardim; eu proprio lhe puz o fogo, velei a pyra em quanto se não extinguiu, enterrei as cinzas; davam na torre do palacio das Necessidades as quatro da tarde d'este dia 25 de Agosto de 1862.
As razões que me induziram a este sacrificio, rastreiam-n-as todos; o que n'elle soffri, tambem o calo, que não importa a pessoa alguma.
A pedra que o ha-de ficar commemorando, e que algum poeta ou alguma poetisa lá para o futuro em estio ou outono de amores folgará porventura de visitar com este livrinho na mão, dir-lhe-ha isto:
AQUI JAZEM AS CINZAS DA CORRESPONDENCIA DE D. M. I. DE BAÊNA COIMBRA PORTUGAL E A. F. DE CASTILHO QUEIMADA N'ESTE MESMO LOGAR AOS 25 DE AGOSTO DE 1862
LVII
Mais uma ou duas paginas para responder já agora ás ultimas curiosidades.
A 29 de Novembro de 1834, na parochial egreja do Salvador do mosteiro de Vairão, recebia eu emfim por minha legitima esposa a D. Maria Isabel de Baêna Coimbra Portugal. O orgão cantava não sei que jubilos tristes; as Religiosas choravam a perda da sua mais espirituosa, mais suave, e mais amavel companheira de tantos annos. A mão d'ella, tremia na minha; o alvoroço do seu interior, exhalava-se baixinho em monosyllabos humidos de lagrimas; eu padecia e gozava como homem que ia fugir com um thesoiro furtado. A boa D. Anna Lucinda não podéra assistir á ceremonia; ¡tanto a desejára em quanto só a vira no futuro! e agora... desamparavam-n-a as forças para a encarar; jazia doente na sua cella deserta. Maria tomou-o por agoiro. ¡Nunca ceo sem nuvem sobre alegrias humanas!
Dois annos, pouco mais, durou a nossa união sempre harmoniosa e intima; sempre tal, qual m'a haviam promettido os meus devaneios poeticos tão ambiciosos.
Ao longo d'esse breve praso, de que nunca me poderei esquecer, foi sempre Maria a melhor metade da minha alma; os olhos e voz para a minha leitura; a mão para a minha escripta; a inspiradora para os meus versos; a conselheira nas minhas incertezas; a vestal para o fogo das minhas pequenas ambições; a socia, a luz, a explicação dos meus passeios; o calor, a fragrancia e a musica da minha poisada; um enxerto da arvore da vida no meu teixo; o ecco do meu coração; o meu estro fóra de mim a mostrar-se-me, a abraçar-me, a não me perder hora nem minuto de dia nem de noite; ella, ufana, de mim como de uma gloria; eu, d'ella encantado como de uma felicidade.
Filhos são nós que apertam os vinculos naturaes entre o homem e a mulher. Teve o Céo por superfluo dar-nos filhos; estreitar-nos mais era impossivel. ¡Grande misericordia foi aquella! a pobre assim, levou para o Céo uma saudade unica.
Uma enfermidade longa, durante a qual a sensibilidade de Maria, como clarão de alampada que se quer extinguir, me pareceu ainda mais viva, a pouco e pouco a arrastou até á borda dos desenganos, desenganos para ella e para todos; para mim não, que por instincto de vida, repulso constantemente, e até ultima, o crer na desgraça, o admittir-lhe mesmo a possibilidade.
LVIII
N'um dos dias de Janeiro do anno de 1837 (os que hoje contam menos de vinte e cinco annos não eram ainda nascidos) Lisboa toda branquejava amortalhada em neve profundamente (as memorias meteorologicas poderão dizer a quantos foi; eu esqueci-o, ou nunca o soube); sei que nem os velhos se lembravam de ter jámais visto por aqui espectaculo assim alpestre; nem de então para cá se renovou. Era um dia pallido e lugubre, que gelava o coração e as esperanças, -- um d'aquelles dias, não sei se amigos se adversos, não sei se verdadeiros se mentirosos, mas bons para se fecharem os olhos e se expirar com mais desapego da terra.
O quarto da resignada e valorosa victima, que repartia, sorrindo, esperanças que ella mesma para si já não queria, tinha a janella fechada ás tristezas de fóra; as do interior lhe sobejavam; uma lamparina aos pés da Imagem em vulto da "Senhora Mãe dos Homens", -- madrinha de Maria, e objecto da sua devoção de toda a vida, -- attrahia, como um reflexo precursor da luz perpetua, a vista perturbada da paciente, indo e vindo da Imagem, que parecia chamal-a, para o amante, que, recostada a fronte sobre o seu travesseiro, e apertando-lhe a mão, lhe supplicava mudamente o não deixasse.
Reconcentrou emfim, por um supremo exfôrço feminil os remanescentes do seu vigor exhausto; e mandando chamar meu irmão, que na proxima sala chorava por ambos nós, nos disse: que sentia já a sua existencia na vasante, e era tempo de apparelhar a alma para as bodas eternas; em quanto lhe restava entendimento e fala, queria dirigir a cada um de nós um rogo que de proposito reservára para aquelle momento em que nada se recusa.
Cada um jurou cumpril-o, fosse qual fosse.
-- «Tenho pena de ti, ¡meu pobre poeta! -- proseguiu ella apoz alguns momentos de concentração. -- Sei que deixo um grande vazio na tua vida. Se Anna Lucinda não fosse freira, essa conhecia-te como eu, amava-te quasi tanto como eu, podia continuar como tua esposa a obra da tua felicitação, que eu deixo incompleta. Se jámais a ventura te deparar outra mulher de alma, e capaz de comprehender a tua, instruida, amante, superior ao vulgo dos espiritos, apta emfim para te servir e consolar, offerece-lhe o logar que eu deixo ermo nos teus destinos; eu mesma abençoarei lá de cima a vossa união.»
Vim a cumprir-lhe o seu desejo testamentario; ella desempenhou-se da promessa.
Então, voltando-se para o nosso querido irmão, e depois de lhe agradecer todas as melindrosas manifestações de affecto, que tantos annos havia nos liberalisára, sem cançaço nem quebra, lhe supplicou, doce e graciosa como um anjo, cujas azas de prata já começavam a despontar, lhe outorgasse emfim a casinha candida com que tantas vezes lhe fizera sonhar; agora, para a erigir bastava uma só pedra; que lhe puzesse uma inscripção, na qual ao nome d'ella se ajuntasse o dos seus tres poetas: o meu, e o dos seus gloriosos parentes -- Ferreira e Tolentino.
A bella alma partiu.
LIX
No cemiterio de Nossa Senhora dos Prazeres o tumulo N.º 48, convisinho á ermida da Virgem, deixa ler este epitaphio:
MONUMENTODE PERPETUA SAUDADE,CONSAGRADO PORANTONIO FELICIANO DE CASTILHOASUA MULHERD. MARIA IZABEL DE BAÊNACOIMBRA PORTUGAL,DIGNA SOBRINHA DENICOLAU TOLENTINO DE ALMEIDA,EDESCENDENTE DO ANTIGOPOETA ANTONIO FERREIRA.NASCÊO NO PORTO A 2 DE JULHODEE FALLECÊO EM LISBOA A 1 DE FEVEREIRODE
Appendix A
Carta ao Ex.mo Sr. Casal Ribeiro datada em 1 de Março de 1859, publicada pela Associação Promotora da Educação Popular.
J. M. Latino Coelho: Biographia de A. F. de Castilho na "Revista Comtemporanea".
Cant. dos Cant., cap. II.
Pode-se ler a interessante descripção do que resta d'esta casa tão religiosa como historica no formoso livro "Bellezas de Coimbra", impresso n'aquella mesma cidade em 1831 pelo sr. Antonio Moniz Barreto Corte Real.
Pode-se ver na "Felicidade pela Agricultura" o artigo intitulado -- "O Clero, e as Mulheres".
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